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2013
Lucas Massimo
RESUMO
O artigo analisa a produção bibliográfica publicada pela revista Dados acerca da implantação das reformas
orientadas para o mercado no Brasil, durante os anos 1990, com vistas a mapear as diferenças e as semelhanças
entre as explicações predominantes nesse periódico. A análise foi realizada por meio da confecção de fichas de
leitura para isolar a estrutura lógica da argumentação de cada artigo analisado. A grade de leitura discerniu os
seguintes elementos estruturantes: (i) o problema e pergunta de pesquisa; (ii) o objeto; (iii) os objetivos e conclusões,
e por fim, (iv) a tese de cada artigo. Por meio do enquadramento de 38 artigos foi possível constituir três famílias de
argumentos: a primeira ressalta os argumentos sociológicos, identificando três explicações para as quais a causa
das reformas encontra-se na sociedade brasileira. A segunda reúne duas explicações pragmáticas, que postulam a
inexorabilidade das reformas orientadas para o mercado. A terceira constitui-se por duas explicações
institucionalistas, que procuram nas instituições políticas a causa para a implantação das reformas neoliberais. O
artigo revela que as análises das reformas neoliberais no Brasil foram realizadas a partir de dados empíricos ricos
e diversificados, mas que, por outro lado, ainda denotam um debate teórico e conceitual bastante incipiente.
PALAVRAS-CHAVE: neoliberalismo; análise bibliográfica; revista Dados; Economia Política brasileira; Sociologia
Política brasileira.
FORJAZ, 1997). Esses trabalhos já vêm sendo coincide com as fronteiras disciplinares da Ciência
realizados há pelo menos 40 anos e fazem parte dos Política praticada nos programas de pós-graduação
esforços empreendidos para fazer a Sociologia do mais longevos do país. À diferença do primeiro
Conhecimento no país, a tal ponto que, ela mesma, já enfoque, o segundo elabora tipologias capazes de
tenha se constituído como uma subárea autônoma da classificar os temas analisados nos artigos – este é o
Sociologia, com perspectivas teórico-metodológicas caso dos trabalhos de Fernando Leite, que propõem
bastante consolidadas e, em certa medida, antagônicas um cruzamento entre duas dimensões: os temas e as
umas em relação às outras3. abordagens podem variar em um eixo que oscila do
teoricismo ao empiricismo, e, na segunda dimensão,
Ainda que com algumas semelhanças, a
a variância ocorre entre o politicismo e o societalismo
característica mais marcante dessa nova onda de
(LEITE, 2010a; 2010b).
levantamento bibliográfico é sua concentração sobre
a produção que aparece em periódicos científicos, em A nossa proposta neste artigo também se insere
teses e dissertações e em comunicações apresentadas nesta nova onda de levantamentos bibliográficos
em congressos científicos. Com a disseminação da realizados a partir da produção de periódicos
comunicação científica em meios eletrônicos, científicos, mas ela difere do que vem sendo realizado
ocorreram esforços consistentes para sistematizar essa em dois aspectos: em primeiro lugar, este trabalho não
produção em bancos de dados, com vistas a procurar analisa toda a produção dos periódicos, mas apenas
tendências e padrões da produção intelectual posterior uma parte dela – no caso da revista Dados,
à segunda metade da década de 1990 – esse será, selecionamos um décimo do que foi publicado durante
com efeito, um traço marcante que distingue essa nova o período analisado. Em segundo lugar, sacrificamos
onda de levantamentos bibliográficos realizados a partir a tabulação de uma grande quantidade de artigos em
dos anos 2000. favor de uma exegese dos seus argumentos centrais,
detendo-nos, particularmente, sobre a lógica que
Entre esses trabalhos podemos distinguir pelo
sustenta as explicações. Com isso escolhemos analisar
menos dois enfoques: o primeiro faz uma taxonomia
em profundidade a forma como são construídas as
de alguns elementos básicos de artigos publicados nos
teses e hipóteses mobilizadas na bibliografia para a
periódicos classificados em extratos elevados no
explicação de um assunto. É importante salientar que
ranking Qualis, elaborado pela Capes. Trata-se de
essa pretensão não está presente em nenhum dos
classificar características dos artigos como, por
levantamentos realizados nesses trabalhos que ocorrem
exemplo, o tipo de metodologia empregada, a natureza
a partir da década de 2000, uma vez que, em todos
das fontes mobilizadas nos artigos e até o perfil dos
eles, os dados de que parte a análise resultam de uma
seus autores, como seu gênero e sua vinculação
análise transversal que não toca nos conteúdos dos
institucional. Este primeiro enfoque resulta em uma
argumentos de cada artigo.
análise morfológica dos artigos que tem sido
publicados no Brasil, e seus indicadores assumem um O foco deste trabalho recai sobre como são
caráter quase que bibliométrico (SOARES, SOUZA construídas as explicações sobre o neoliberalismo no
& MOURA, 2010; OLIVEIRA, 2011). Brasil: queremos entender exatamente quais as causas
que explicam a ocorrência das reformas, quais os
O segundo enfoque também procura anotar
sentidos de suas operações de causalidade, o que
tendências e regularidades na produção dos periódicos,
explica e o que é explicado em cada artigo. Portanto,
mas, indo um pouco além das análises estatísticas,
a análise da estrutura lógica dos argumentos faz com
esse enfoque lança hipóteses acerca da constituição e
que o objeto de nossa investigação sejam as explicações
configuração de um campo intelectual que nem sempre
que aparecem nos artigos, e não os artigos que
aparecem nos periódicos. Consequentemente, não
3 Referimo-nos às críticas de André Botelho e Elide Rugai
pretendemos elaborar um perfil dos periódicos,
descobrir qual perspectiva teórico-metodológica é
Bastos a Sérgio Micelli (BASTOS & BOTELHO, 2010). Os
primeiros, adeptos da sociologia das ideias, enfatizam a hegemônica, nem tampouco analisar as tensões que
importância de ler a obra dos grandes intérpretes do Brasil definem esse ambiente.
como um objeto em si, destacando o componente normativo de
suas teses, que aparece quando se considera as ideias como
E por que, afinal de contas, realizar essa pesquisa
forças políticas em si mesmas. No campo de Sérgio Micelli, nos periódicos? Como podemos justificar a escolha
por outro lado, as questões centrais tratam da origem social da revista Dados como fonte de coleta das explicações?
dos intelectuais brasileiros, sua trajetória acadêmica, mas, Os artigos publicados em uma revista de excelência
sobretudo, das relações que se podem estabelecer entre sua exprimem, em alguma medida, o que acontece em um
origem social, socialização no mundo intelectual e o modo como determinado campo do conhecimento, já que, tendo
praticam ciências sociais no Brasil.
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sido arbitrados por pares, tais artigos receberam a uma década, e com graus diferentes de resistência,
chancela acadêmica de um corpo de editores e de uma conformar-se ao novo ambiente concorrencial. Esse
comunidade de avaliadores4. Para efeito de síntese, processo implica o desaparecimento de muitas
trazemos neste artigo apenas os resultados encontrados empresas5, e isso não seria possível sem uma profunda
em Dados, mas durante a pesquisa analisamos textos reorientação dos valores acerca do que é novo e
publicados nas revistas Economia e Sociedade, Lua ultrapassado em matéria de desenvolvimento
Nova, Revista de Economia Política, Revista econômico. Por isso as reformas supõem uma
Brasileira de Ciências Sociais e Novos Estudos – a profunda mudança de atitudes, comportamentos e
literatura internacional foi consultada de modo mais expectativas que, operando em um plano intencional,
circunstancial. Todos esses periódicos publicaram difundirá novos conteúdos afinados à nova
artigos sobre este assunto em particular, a implantação modernidade orientada, agora, para o mercado.
das reformas orientadas para o mercado no Brasil,
Isso deve ser levado em conta para se aquilatar a
durante a década de 1990.
amplitude e a intensidade da classe de fenômenos
Por que propor uma revisão bibliografica sobre discriminados pela expressão “reformas orientadas para
esse assunto se a conjuntura econômica da década de o mercado”6. Diante disso, consideraremos que esse
2010 modificou-se bastante com relação à da década conjunto de transformações pode ser vislumbrado em
de 1990? Atualmente tem se escrito muito sobre um um quadro relativamente bem delimitado quando se
novodesenvolvimentismo no Brasil (BIANCARELI, enfatiza cinco conjuntos de reformas: (i) abertura
2012). Essas elaborações dialogam diretamente com comercial, que significa a eliminação de alíquotas de
o velho desenvolvimentismo, que já foi amplamente importação, a centralização de tarifas alfandegárias e
estudado (BIELSCHOWSKY, 1995), mas quando se a eliminação ou redução de barreiras não tarifárias;
referem ao seu imediato sucedâneo, o neoliberalismo, (ii) liberalização financeira, que ocorre por meio da
aí reside um impensado, um vazio teórico e conceitual eliminação ou redução dos programas de crédito
relativo às transformações experimentadas no Brasil dirigido, da eliminação dos controles sobre taxas de
durante a década de 1990. Como pretendemos juros, da reforma da legislação bancária e do mercado
demonstrar, existem algumas fraquezas conceituais de capitais; (iii) liberalização do regime de
associadas ao modo predominante como se pratica a investimentos estrangeiros, que implica a quebra de
sociologia política no Brasil, e este artigo pretende monopólios em áreas estratégicas e o fomento aos
contribuir para sanar essas deficiências, movimentos de fusões e aquisições, recompondo a
circunscrevendo as inconsistências verificadas nos malha empresarial doméstica, agora com ampla
estudos sobre o neoliberalismo. participação de empresas estrangeiras; (iv)
privatizações de serviços públicos e empresas estatais;
É consenso que na década de 1990 a estrutura
(v) a desregulamentação do mercado de trabalho,
sócioeconômica brasileira passou por transformações
caracterizada pela redução do orçamento de instituições
capazes de superar o nacional desenvolvimentismo,
de seguridade social, o fomento à prática de
um modelo de crescimento econômico que logrou,
terceirização, a exclusão da excepcionalidade do regime
em pouco menos de 50 anos, converter uma estrutura
de contratação por tempo determinado, a
econômica centralizada na lavoura, e direcionada para
subcontratação, a disseminação de contratos de
o mercado externo, em uma sociedade
aprendizagem e formação. Esse sumário é uma
predominantemente urbana, dinamizada pelos circuitos
adaptação da lista proposta por Sebastião Velasco e
da produção industrial (OLIVEIRA, 1976). Essas
transformações operam em pelo menos duas
dimensões: em um plano extensional, é necessário
reverter expectativas de um sem número de agentes 5 Informações disponíveis sobre a reestruturação produtiva
econômicos acerca do paradigma de modelo indicam que o movimento de concentração da malha empresarial
econômico. Cada qual se integra à economia doméstica adquire consistência durante a década de 1990, passando de 22
à sua maneira, determinada pelas peculiaridades do operações fusões e aquisições em 1991 para 169 em 1997
setor em que atua, e da região na qual está situado. E (MIRANDA & MARTINS, 2000, p. 71).
apesar da enorme heterogeneidade, as mais diversas 6 Existe uma divergência entre os pesquisadores desse assunto
estruturas econômicas domésticas irão, ao longo de sobre as oscilações terminológicas entre a expressão “reformas
neoliberais” e “reformas orientadas para o mercado”. A
divergência ocorre em torno da eficácia da segunda formulação
em descrever as reformas que ocorrem no âmbito das instituições
4 Não admitimos no universo ensaios, resenhas, homenagens estatais (BOITO JUNIOR, 1999, p. 28). Este artigo não propõe
póstumas, relatórios de pesquisa e comunicações derivadas de nenhuma discussão conceitual, portanto tomaremos ambas
congressos científicos. como sinônimos.
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COMO SE EXPLICA O NEOLIBERALISMO NO BRASIL?
Cruz acerca das reformas de ajustes estruturais abordagens ele poderia dialogar. Isso revelou-nos o
(VELASCO E CRUZ, 2004). que ordinariamente se conhece pelo tema do artigo.
Entretanto, o tema indica a filiação a uma dada
O artigo está organizado em quatro seções, além
corrente, a adoção de uma agenda de pesquisa, a
desta introdução. Apresentaremos, na seção II, a nossa
aplicação de uma proposta metodológica, em sentido
grade de leituras, isto é, a ferramenta utilizada para a
lato, a pertença a uma comunidade de saber. Isso
análise da estrutura lógica da argumentação de cada
não é suficiente para precisar a contribuição do artigo
artigo. No terceiro subitem descrevemos os resultados
à comunidade na qual ele se insere. Para isso,
da análise, discriminando quais são as explicações mais
inquirimos a cada artigo qual seria a sua pergunta de
frequentes na produção do periódico e quais são seus
pesquisa, ou seja, dentro de um dado conjunto de
nexos causais mais contundentes. No quarto tópico
estudos, qual é a pergunta que aquele artigo quer
apresentamos duas modalidades de crítica a essas
responder, como ele visa contribuir com os autores
explicações, uma referente aos seus pressupostos
que estudam o mesmo tema. Problema e pergunta,
lógicos e outra relativa às suas consequências
como ferramentas de análise, adquirem sentido
analíticas. Por fim, na conclusão, resumimos o que
somente em relação uma ao outro, pois a segunda
foi tratado previamente, frisando os limites e o alcance
visa especificar o primeiro.
da proposta deste artigo.
Segundo nossa grade de leituras, aquilo que
II. MATERIAIS E MÉTODOS: A GRADE DE
chamamos de pergunta do artigo – “o que se quer
LEITURA
explicar?” – normalmente indica à sua tese, “o que
Os cinco itens apresentados acima descrevem o explica?”. O problema mais a pergunta, e a tese,
que nos referimos como sendo reformas neoliberais. resumem a estrutura lógica da argumentação, um
Eles também foram utilizados como critério para a esquema que elaboramos a partir de cada um dos
constituição do universo bibliográfico investigado: artigos lidos, com a qual pudemos detectar quais as
selecionamos todos os artigos publicados pela revista explicações substantivas daquele subconjunto de
Dados, entre janeiro de 1990 e dezembro de 2006 artigos para a implantação das reformas neoliberais
(quando encerramos a coleta), que tratavam, direta no Brasil, durante a década de 1990.
ou indiretamente, de pelo menos um dos cinco pontos
Essas três ferramentas são mobilizadas em um
mencionados. Com esse procedimento, constituímos
esforço de interpretação, elaboração e análise que vai
um universo de artigos minimamente representativo
além do que está escrito pelos próprios autores;
da produção intelectual de cientistas políticos,
portanto, elas são ferramentas estéreis (por serem
economistas e sociológos brasileiros, por meio de um
abstratas) sem a referência direta àquilo que o artigo
critério objetivo, sujeito à validação. Entre janeiro de
estuda. Por isso, procuramos registrar em cada texto
1990 e dezembro de 2006, Dados publicou 348 artigos
o seu “objeto”, os seus “objetivos” e suas “principais
– aqui estão reunidas todos os itens mencionados no
conclusões”. O objeto é “aquilo que é explicado”. O
sumário de cada fascículo. A partir da análise desse
que o artigo investiga, qual o espaço-tempo daquilo
material, e da leitura de todos os resumos, detectamos
que ele trata, o que de mais importante ele descreve,
que 38 artigos guardavam alguma relação com os cinco
interpreta ou explica. No objetivo procuramos anotar
itens da pauta de reformas7.
os pontos de saída do artigo, e nas conclusões
A partir das leituras e releituras de cada um desses procuramos registrar seus principais pontos de
artigos, construímos uma grade de leitura para isolar chegada, seus achados mais importantes 8 .
e extrair a estrutura lógica de sua argumentação. Essa Esquematicamente, estes artifícios metodológicos
grade é formada por três elementos. O primeiro deles estão resumidos no Quadro 1.
é o problema do artigo, e ele procura entender em que
contexto (intelectual) o texto deve ser lido?
Formulando a resposta para essa interrogação em uma
frase, elaboramos para cada artigo um problema, ou 8 É importante sublinhar que o que as fichas de leitura registram
seja, uma frase que expressasse para quais como “objeto”, “objetivo” e “conclusões” são excertos
interlocutores o artigo apontava, com quais tipos de parafraseados dos artigos, ao passo que “problema”, “pergunta”
e “tese” são proposições nossas, em alguma medida arbitrárias,
visto que resultam da releitura na qual se assenta nossa análise.
Em situações limite, os autores dos artigos poderiam até mesmo
7 A menção a pelo menos um dos cinco itens ocorre em 57 discordar dessas proposições. Entretanto, sempre que falarmos
resumos, porém, em 19 artigos os fenômenos analisados não em “a tese” do artigo, está-se fazendo referência a uma ideia
faziam referência ao caso brasileiro, por isso eles foram excluídos que elaboramos a partir do texto, e isso deve atenuar o grau de
do universo. arbitrariedade de nossa interpretação.
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FONTE: O autor.
Esse quadro resume a ferramenta de pesquisa uma noção elaborada por Abraham Kaplan proveniente
utilizada para detectar padrões de argumentação sem do conceito de “Family Meanigs”, que Kaplan
incorrer em generalizações infecundas que, a nosso apresenta dessa maneira: “Wittgenstein nos provê a
ver, obscureceriam o modo como os autores explicam metáfora iluminadora da ‘família de significados’:
a implantação das reformas orientadas para o mercado semelhança familiar não trata de alguns atributos
no Brasil durante a década de 1990. Foi possível refinar definitivos, comuns a todos os membros da Família,
o universo de 57 artigos previamente selecionados, mas ao compartilhamento de uns ou outros atributos,
escolhendo-se os 38 artigos constitutivos do universo suficientes para mostrar a semelhança entre dois
bibliográfico analisado. membros da Família”9 (KAPLAN, 1964, p. 48).
III. RESULTADOS: TRÊS FAMÍLIAS DE ARGU- No nosso caso a categorização por famílias é
MENTOS SOBRE A IMPLANTAÇÃO DAS crucial, porque praticamente não existe na produção
REFORMAS ORIENTADAS PARA O de Dados explicações tipicamente monocausais, vale
MERCADO dizer, explicações simples e lineares, onde o fenômeno
A causa, explica ou determina (sozinho) o fenômeno
Tendo em vista organizar e sistematizar os nexos
B. Com efeito, isso não ocorre. Entretanto, quando
de causalidade encontrados na produção da revista
agregadas por famílias, é possível notar que, em uma
Dados, procuramos isolar e agrupar os traços mais
família de argumentos, normalmente as teses são
frequentes que apareceram nas fichas de leitura. Como
contruídas de modo similar, ou, de modo mais preciso,
resultado, classificamos as explicações sobre a
as operações lógicas que lhes dão sustentação são
implantação das reformas neoliberais no Brasil durante
bastante semelhantes.
a década de 1990 em três famílias de argumentos: (i)
argumentos sociológicos, isto é, aqueles que procuram Desse modo, em algumas fichas, a tese do artigo
as causas das reformas na sociedade brasileira; (ii) sugere que a fragmentação do empresariado explica a
argumentos pragmáticos, reunindo as explicações que desarticulação da política industrial, enquanto outra
postulam a inexorabilidade das reformas neoliberais e
(iii) argumentos institucionalistas, que agregam as
explicações segundo as quais as causas das reformas 9 No original: “Wittgenstein provides us with the iluminating
devem ser buscadas nas instituições políticas metaphor of a ‘Family of meanings’: family resemblance is not
brasileiras. a matter of some definite features common to all the memeber
of the Family, but the sharing of some features or other, enough
A categorização em famílias de argumentos foi to show the resemblance, by any two member of the Family”
realizada a partir da ideia de semelhança de família, (Nota e Tradução do Revisor).
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tese sugere que a profissionalização da representação A tese que explica a implantação das reformas
de interesses explica o sucesso do lobby dos industriais neoliberais pela fragmentação do empresariado admite
no Congresso Nacional. Tanto uma como a outra que os empresários compartilhavam, ao final da década
sugerem que a causa da implantação das reformas de 1980, uma ideologia antiestatal, mas que foram
neoliberais deve ser buscada na qualidade do incapazes de organizar um projeto hegemônico a partir
empresariado. Ele é fragmentado ou ele é bem dos interesses da indústria. Nessa tese afirma-se
articulado? Ao atribuir às qualidades do empresariado ostensivamente que a debilidade da ação política do
doméstico o nexo causal mais contundente para a empresariado deve-se às suas ambiguidades e
explicação da implantação das reformas neoliberais, contradições com relação à pauta das reformas
essa tese sugere que se procure na sociedade as neoliberais 10 . E, como consequência dessas
explicações desse fenômeno. É diferente das teses que ambiguidades, “a falta, por parte dos principais porta-
procuram essas causas nas estratégias perseguidas vozes do empresariado, de um projeto de longo prazo,
pela Presidência da República, ou na relação entre os dotado de consistência e coerência internas, contendo
poderes Executivo e Legislativo: aqui a explicação as especificações em torno de propostas para as
concentra-se sobre o que acontece nas instituições diferentes áreas de problemas, determina a grande
políticas, e não na sociedade. diversidade de conflitos quando da implementação de
programas globais de que afetam o conjunto da
A seguir, apresentaremos em detalhes cada uma
economia” (DINIZ, 1991, p. 354).
das famílias de argumentos encontradas na produção
do periódico. Segundo Eli Diniz, essas ambiguidades também se
verificam na disputa pelo desenho da organização
III.1. As explicaçãos sociológicas
sindical e dos direitos trabalhistas. Segundo a autora,
A primeira família de argumentos caracteriza-se “os empresários opuseram-se sistematicamente às
por procurar na sociedade brasileira as causas que tentativas de desmantelamento da estrutura corporativa
explicam a implantação das reformas neoliberais. Ainda oficial” (ibidem), mas perfilaram organizada oposição
que bastante genérica, essa proposição permite aos principais defendidos pelas Central Única dos
demarcar a diferença com as explicações que Trabalhadores (CUT) e pela Central Geral dos
investigam nas instituições políticas as causas para as Trabalhadores (CGT)11.
reformas.
A segunda tese que se ampara nas qualidades do
Esse quadro fica melhor delineado diante das teses empresariado doméstico como fator explicativo
propostas nessa família de argumentos. A explicação enfatiza exatamente o oposto. Ela observa na
sociológica ramifica-se em três modalidades de profissionalização da representação dos interesses a
conexões causais, cada qual explicando a implantação variável fundamental para o êxito do lobby realizado
das reformas à sua maneira: a primeira causa da pela CNI no Congresso Nacional.
implantação das reformas encontra-se na qualidade
do empresariado doméstico; conforme a segunda
causa, os conflitos distributivos explicam a implantação 10 Expressamente: “Assim, apesar do prevalecimento da
do neoliberalismo no Brasil; a terceira relação de posição de abertura ao capital estrangeiro, é possível detectar
causalidade explica a implantação das reformas a partir variações que oscilam do liberalismo radical à defesa da reserva
de mercado. Coexistindo com a crítica ao capitalismo cartorial,
da cultura e dos valores dominantes na sociedade
observou-se, no decorrer do debate público em torno da
brasileira durante a década de 1990. desregulamentação, considerável resistência, no meio
A primeira explicação sociológica procura nas empresarial, à proposta do Estado de eliminar as intervenções
para salvar empresas à beira da falência. Ao lado da demanda
propriedades do empresariado industrial nacional as
generalizada pela contenção dos gastos públicos e redução do
razões para a implantação das reformas. Aqui as déficit, considerados como causa fundamental da inflação, não
explicações dividem-se em duas teses: uma explica a foram infrequentes as ações de oposição sistemática às tentativas
implantação das reformas a partir da fragmentação e de cortar subsídios e rever a política de incentivos. Em alguns
da heterogeneidade da representação política dos casos chegou-se mesmo a solicitar o aumento dos subsídios”
interesses industriais, e a outra explica-as a partir da (DINIZ, 1991, p. 354).
sua unidade em torno de uma bandeira (a redução do 11 Nas palavras da autora: “Medidas consideradas imprescindí-
“custo-brasil”), e da coerência obtida com veis pelas lideranças sindicais, como o direito irrestrito de greve,
profissionalização da representação dos interesses da a redução da jornada de trabalho, a estabilidade no emprego, o
pagamento em dobro de horas-extras, a extensão da licença à
indústria pela Confederação Nacional da Indústria
gestante, foram duramente combatidas pelo empresariado,
(CNI), com o decorrente incremento da eficácia do constituindo uma de suas preocupações centrais a tentativa de
lobby empresarial no Congresso Nacional. derrotá-las na fase final da Constituinte” (idem, p. 355).
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A tese de Mancuso (2004) contrapõe-se à ideia da CNI e a Federação das Indústrias do Estado de São
debilidade do empresariado industrial brasileiro; para Paulo (Fiesp) na articulação dos interesses do
verificá-la, o autor mensura a eficácia do lobby empresariado junto às instâncias decisórias. Por isso,
realizado pela CNI no parlamento brasileiro. Suas a ideia de profissionalização na representação dos
evidências indicam que o empresariado industrial interesses explica o sucesso da mobilização da CNI
brasileiro é geralmente mais bem-sucedido em suas sobre o congresso nacional13.
incursões sobre o campo da política do que parte da
Os artigos de Mancuso (2004) e Diniz (1991) são
literatura faz crer.
duas manifestações de como a explicação sociológica
Um dos elementos cruciais para a tese da debilidade elabora suas teses tendo em conta as transformações
é a inépcia do empresariado para unificar-se em torno que ocorrem na sociedade brasileira. Esse é o traço
de uma bandeira, como fica mais ou menos explícito mais saliente da primeira família de argumentos, que
nas citações de Eli Diniz. “Em geral, a debilidade que também fica bem nítido quando a explicação ocorre
esses trabalhos apontam pode ser entendida como a pela via dos conflitos distributivos.
incapacidade do empresariado industrial em atingir um
A ideia de conflitos distributivos como causa da
consenso em torno de objetivos comuns, assim como
implantação das reformas neoliberais aparece na
de mobilizar um apoio decidido para a realização desses
explicação sociológica sob duas ênfases: por um lado
objetivos. Na situação particular em que o país se
conflitos distributivos descrevem predominantemente
encontra, marcada pela mudança do modelo de
a ação dos agentes sociais e por outro os conflitos
desenvolvimento econômico, a debilidade manifesta-
distributivos discernem majoritariamente as
se na incapacidade de definir e promover as decisões
transformações nas estruturas sociais nas quais
políticas necessárias para incrementar sua
acontece o conflito de interesses.
competitividade; em outras palavras, na incapacidade
de oferecer um apoio eficaz para a redução do custo A primeira forma de explicação enfatiza a
Brasil” (idem, p. 511) racionalidade dos atores em situação de conflito
distributivo (SMITH, 1993). Essa explicação opera
Segundo Mancuso, a atuação da CNI em favor da
em dois tempos: primeiro, desenha-se um cenário
redução do custo-brasil alterou esse quadro. Além disso,
onde os padrões de distribuição de recursos políticos
a abertura comercial realizada ao longo da década de
reajustam-se em um equilíbrio que combine economia
1990 transformou profundamente as condições de
de mercado com consolidação das novas
competitividade da indústria brasileira. Esse é um
democracias. Em um segundo momento, examina-se
primeiro fator que, nessa tese, condiciona uma mudança
como deverá ser o comportamento dos atores mais
nas propriedades do empresariado industrial. Essas
relevantes nesse novo cenário.
transformações no ambiente provocariam um desgaste
em um dos pilares da tese da fragmentação do A segunda ênfase da explicação sociológica com
empresariado, pois o comportamento auto-centrado e causa nos conflitos distributivos discerne
auto-referido que dizia Eli Diniz seria mais oneroso nesse majoritariamente as transformações nas estruturas
novo ambiente concorrencial12. sociais que subjazem os conflitos distributivos.
O segundo elemento que ampara a tese do sucesso Chamou nossa atenção a ausência, nesse universo,
do empresariado enfatiza o papel desempenhado pelas de investigações sistemáticas sobre as relações de
entidades empresariais de maior abrangência, como a trabalho no Brasil durante a década de 1990. Em apenas
dois dos 38 artigos selecionados em Dados a
implantação das reformas neoliberais é observada por
12 Nas palavras do próprio autor: “Fragmentado em numerosas meio dos impactos que ela gera sobre sua base social,
‘coalizões distributivas’, o empresariado industrial empenha no sentido mais amplo – presumindo que nas relações
os recursos políticos à sua disposição em rent-seeking [...], ou
seja, para arrancar do poder público toda a sorte de vantagens
particulares, tais como tratamento tributário favorecido, crédito
subsidiado com taxas de juros diferenciadas, proteção especial 13 “Essa mobilização é o resultado da confluência entre um
contra a competição, entre outras. Os benefícios criados processo de natureza econômica, que tornou a competitividade
artificialmente por decisões casuísticas como essas são em meta prioritária, e a iniciativa de um ator político – a CNI –
apropriados com exclusividade pelas empresas e segmentos que se dispôs a assumir o custo de organizar a ação coletiva do
industriais privilegiados. A intenção de agir de forma tão estreita setor e que é capaz de assumir esse custo, seja por ocupar uma
é reforçada pela constatação de que o custo da ação política posição propícia como entidade de cúpula do segmento, seja
necessária para alcançar os enormes benefícios exclusivos é por contar com recursos financeiros suficientes, garantidos por
sempre menor do que o custo da mobilização da indústria como seu quinhão na contribuição sindical compulsória paga pelas
um todo” (MANCUSO, 2004, p. 512). empresas” (idem, p. 514).
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formada em torno do desenvolvimentismo, para a qual Parece claro que essa forma atabalhoada de
a debacle do plano Cruzado desempenharia um papel raciocínio expressa a falta de conceitos teóricos, mas
decisivo15. para esclarecê-lo, vejamos mais de perto as oscilações
do argumento com relação à intervenção do Estado
III.2. As explicações pragmáticas
na economia. Afirma Bresser-Pereira: “Entendo que
A segunda família de argumentos agrega as certo grau de intervenção do Estado é necessário para
explicações pragmáticas, vale dizer, que postulam a administrar os países capitalistas. Sem ela o
inexorabilidade das reformas neoliberais. Segundo esse crescimento econômico e social sustentado será
ponto de vista não há alternativa às reformas neoliberais, prejudicado. O mercado é, em grande escala, o melhor
ainda que se possa conjecturar sobre a forma como coordenador da economia; contudo, ele não é capaz
elas serão implantadas. Existem duas teses que de sozinho alocar recursos e garantir um crescimento
explicam a implantação do neoliberalismo no Brasil de satisfatório. Por outro lado, o mercado é uma
modo pragmático. A primeira afirma que a causa das instituição incapaz de garantir a distribuição de renda.
reformas neoliberais é a crise do Estado, e a segunda Por isso podemos afirmar que a atitude neoliberal [sic]
procura na crise de governabilidade a causa da contra a intervenção estatal é essencialmente ideológica.
implantação das reformas neoliberais no Brasil durante Isso não quer dizer, entretanto, que essa posição esteja
a primeira metade da década de 1990. simplesmente incorreta. Ao contrário, essa visão
conservadora é em muitos casos muito útil. Seu
Como se trata de uma explicação pragmática, a
argumento de que a intervenção estatal, ao tentar
tese da crise do Estado (BRESSER PEREIRA, 1991)
corrigir as insuficiências da coordenação da economia
recusa qualquer proposição teórica sobre a natureza
pelo mercado, acaba provocando distorções ainda
das instituições estatais. Em vez de se perguntar sobre
piores não pode ser facilmente descartado” (BRESSER
o que o Estado é, a tese da crise do Estado concentra-
PEREIRA, 1991, p. 7)
se em detectar por que ele não está funcionando
“corretamente”. Essa é uma característica muito Afirma-se “o mercado é o melhor coordenador da
importante da explicação pragmática. Ela recusa economia”, mas o que é o mercado? É uma instituição?
peremptoriamente conceitos teóricos: no máximo a Qual a sua natureza? Como é formado? Como se
explicação constrói alguns arquétipos de políticas transforma e como se conserva? Pode-se remeter esse
neoliberais, a partir da obra dos principais ideólogos tipo de questão ao substantivo “intervenção do Estado
do neoliberalismo, mas tais arquétipos são rapidamente na economia”, mas mesmo assim o argumento não
abandonados por serem doutrinariamente neoliberais, oferece respostas satisfatórias. Isso acontece porque
e pouco pragmáticos. O raciocínio funciona da a família de argumentos pragmáticos opera em um
seguinte maneira: em primeiro lugar detecta-se a nível tão elevado de generalidade que todas essas
ocorrência de falhas na administração de políticas do questões acabam sendo preteridas, já que a pretensão
Estado nacional – o Estado não consegue administrar de pragmatismo da explicação afasta qualquer
seu orçamento, sua moeda, sua dívida etc. Tendo sido contraditório de matiz conceitual. O que importa é
detectada a falha, elabora-se o cenário previsto pelo verificar se a intervenção do Estado na economia
diagnóstico das teorias neoliberais. Esse cenário enseja funciona ou não16.
uma solução neoliberal (o arquétipo), mas essa solução
A segunda explicação pragmática é uma versão
é rapidamente rejeitada porque é excessivamente
mais sofisticada do mesmo argumento. A tese da
doutrinária (ou ideológica) e pouco pragmática, isto
ingovernabilidade também está analisando a crise do
é, não pode ser executada concretamente nas
circunstâncias objetivas do Estado em crise.
16 Textualmente, isso aparece assim: “Em termos práticos, a
141
COMO SE EXPLICA O NEOLIBERALISMO NO BRASIL?
Estado, mas ela procura dar conta das causas políticas (ii) O resultado do pleito de 1994 é explicado pela
e sociais mais profundas que antecedem a retração do fator programático-ideológico e pela
desorganização nas contas públicas. Desse modo, a prevalência da aritmética eleitoral no cálculo dos
segunda explicação pragmática concentra seus atores político-partidários (RODRIGUES, 1995);
esforços no círculo vicioso formado entre
(iii) A congruência entre os atores estratégicos
fragmentação dos interesses setoriais (esse aspecto
explica o êxito das privatizações (ALMEIDA,
do argumento é informado pela primeira explicação
1999);
do argumento sociológico), a perda de capacidade
estatal e a consequente inépcia das autoridades (iv) As reformas neoliberais são explicadas pela
econômicas em retomar a coordenação das habilidade do presidente subjugar os interesses dos
expectativas entre os agentes econômicos. Esse Estados na política macroeconômica (SAMUELS,
circuito determinou a ocorrência da hiperinflação por 2003);
um longo período, e a explicação da governabilidade
(v) As coalizões transnacionais que emergem da
procura soluções capazes de desarmá-lo.
interação entre os atores explica a difusão de
Diante de tal quadro, não faz sentido munir-se de modelos de política públicas (MELO, 2004);
conceitos teóricos para enfrentar seja a natureza da (vi) O governo FHC teve sucesso na reforma da
crise, seja o significado político das soluções possíveis. legislação trabalhista porque mobilizou seus
Esse é o caráter pragmático da explicação: ela urge recursos legislativos para articular a base no
por soluções práticas, concretas e eficazes. Portanto, Congresso e isolar atores de veto, dentro e fora do
as duas versões da explicação pragmática (o argumento parlamento (DINIZ, 2005);
da crise do Estado e o argumento da crise de
governabilidade) concluem pelo reforço da eficácia (vii) O sucesso e o fracasso da reforma da
do Estado, enfatizando a sua importância na direção previdência são explicados pelo êxito do governo
do processo de reformas neoliberais. O problema dessa em aninhá-la à reforma da tributária, angariando
explicação é que seu caráter pragmático impede que com isso o apoio dos governadores de partidos da
ela analise em profundidade o significado político da oposição (MELO & ANASTASIA, 2005).
sua proposição central – em uma palavra: quem vai Enfatizando as regras que definem o ambiente
dirigir o aparelho de Estado, e com que propósitos? E institucional, temos cinco proposições:
quem será contrariado, e através de quais
mecanismos? Esse tipo de pergunta invariavelmente (i) As regras institucionais do jogo legislativo
remete a explicação para os porquês do neoliberalismo, explicam os resultados econômicos (MONTEIRO,
e esse, ao que parece, é o limite de uma formulação 1991);
tão genérica como a explicação pragmática. Esse (ii) O tipo de relação Executivo-Legislativo
aspecto será retomado no próximo item deste do condiciona as políticas de estabilização econômica
artigo. e ajuste estrutural (SANTOS, 1997);
III.3. As explicações institucionalistas (iii) A constituição de 1988 explica o processo de
A terceira família de argumentos reúne duas reforma do Estado no Brasil (COUTO, 1998);
explicações institucionalistas, vale dizer, análises que (iv) A guerra fiscal produziu a descentralização da
procuram nas instituições políticas brasileiras as indústria automobilística no Brasil (ARBIX, 2000);
causas para a implantação das reformas orientadas
para o mercado na década de 1990. O núcleo dessa (v) A estrutura decisória determina o ambiente onde
explicação afirma que ou as estratégias dos atores ou as equipes econômicas atuam após crises cambiais
as regras que definem o seu ambiente institucional (FAUCHER & ARMIJO, 2004).
explicam a implantação das reformas no Brasil. Por A análise detalhada de cada uma dessas 12
isso, a explicação institucionalista subdivide-se nestas proposições não precisa ser retomada agora, mas,
duas causas. Essa diferença fica bem demarcada apenas a título de ilustração, vejamos mais de perto
quando visualizamos os dois blocos de teses. dois casos de explicações institucionalistas.
No primeiro grupo, observamos sete teses que A primeira explicação realizada no âmbito da família
atentam para as estratégias que os atores mobilizaram de argumentos institucionalistas destaca a estratégia
nesse ambiente. perfilada pelos atores mais relevantes. Essa explicação
(i) A estratégia dos atores explica a formação de é institucionalista porque não são quaisquer atores
políticas públicas (MELO, 1990); cujas estratégias possuem essa propriedade explicativa:
são atores que estão, direta ou indiretamente, presentes
142
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 21, Nº 47: 133-153 SET. 2013
nas instituições políticas. Isso fica bem claro quando Plano Real, as políticas do governo federal provocaram
Samuels (2003) analisa os êxitos e os fracassos das a explosão da dívida pública” (idem, p. 820).
reformas macroeconômicas (e da reforma fiscal em
O que explica esse resultado? As contradições da
particular) nos governos Fernando Henrique Cardoso,
estratégia perseguida pela Presidência da República
em uma trama que articula as metas perseguidas pela
na gestão macroeconômica: “Em outras palavras, o
presidência aos interesses dos governadores estaduais.
êxito do governo FHC em algumas frentes significou,
A tese do artigo sugere que o processo de necessariamente, a criação de problemas em outras
implantação do Plano Real verifica o poder de frentes” (idem, p. 828).
influência das subunidades federadas sobre a política
A segunda explicação produzida pela família dos
macroeconômica no Brasil. A ideia é que a estratégia
argumentos institucionalistas enfatiza as regras nas
da administração Cardoso, tanto na presidência como
quais os atores exercem o poder político, as normas
no Ministério da Fazenda consistiu em reverter o
que definem que o seu ambiente institucional. A esse
desequilíbrio fiscal que advinha dos governos estaduais
respeito, um tema bastante comum entre as
– isso porque, nos governos Sarney e Collor, os
explicações institucionalistas é a relação entre
governadores desfrutaram de uma elevada margem
Executivo-Legislativo no Brasil pós-constituinte. O
de manobra fiscal, uma consequência do contexto
trabalho de Maria Helena de Castro Santos demonstra
favorável à descentralização que aglutinou as forças
que a investigação dessa relação pode complexificar o
contra o regime militar ao longo da década de 1980.
cenário desenhado pela explicação pragmática,
Segundo Samuels, “embora os economistas
produzindo causalidades específicas com as regras
advertissem que o descontrole dos gastos públicos
institucionais. O texto emprega a abordagem
estaduais contribuía decisivamente para as dificuldades
pragmática de Bresser Pereira, Maravall e Przeworski
do governo federal de estabilizar a economia no longo
(1993), reconhecendo, logo de início, a inevitabilidade
prazo, de Sarney a Itamar Franco nenhum presidente
histórica das reformas neoliberais: “Neste artigo, parto
empenhou suficiente capital político para obrigar os
do pressuposto que, no Brasil pós-constituinte,
governantes estaduais a conter seus gastos e pagar
qualquer que seja a extração ideológica de um
suas dívidas. Em vez disso, os presidentes quase
governante, a ele se colocarão os mesmos desafios,
sempre negociavam operações de salvamento das
com pequena margem de manobra no que se refere
dívidas estaduais em troca do apoio dos governadores
às soluções propugnadas. Assim, em primeiro lugar,
aos seus projetos no Legislativo. Em suma, a autonomia
ao governante se imporá, em um mundo globalizado,
política dos estados, aliada a presidentes relativamente
o ajuste da economia e reforma do Estado em crise”
fracos, impôs obstáculos à solução dos problemas
(SANTOS, 1997, p. 335)
fiscais brasileiros e impediu o governo federal de pro-
mover a estabilidade macroeconômica” (idem, p. 810). Mas essa não é uma explicação pragmática porque
esse é apenas o pano de fundo no qual se problematiza
O sucesso na estratégia presidencial se explica
a relação Executivo-Legislativo no Brasil pós-
quando a presidência condiciona o apoio dos
constituinte. Esse problema é apresentado em torno
governadores às medidas de austeridade fiscal à
de três desafios que se colocaram para qualquer
federalização das dívidas estaduais. Essa tática decorre
governante: (i) ajuste da economia e reforma do
do poder que os executivos estaduais exercem sobre
Estado, (ii) resgate da dívida social e (iii) preservação
as bancadas dos seus estados na câmara federal, mas
da ordem democrática.
ela também seria a responsável pela deterioração da
dívida pública do governo federal. Além disso, a O artigo faz um estudo de caso sobre o processo
elevação da dívida foi reforçada pela política de juros decisório da política salarial no governo Collor, e da
altos (para atrair investidores estrangeiros, e, ao mesmo política fiscal nos governos Collor e Itamar. O objetivo
tempo, controlar a inflação), que abateu é contribuir para o debate conceitual sobre processo
sistematicamente o controle que o governo logrou obter decisório no Brasil por meio da articulação da dimensão
sobre os orçamentos estaduais. “Em suma, o da formulação das políticas à dimensão da sua imple-
crescimento da relação dívida/PIB no Brasil durante a mentação. A categoria que a autora introduz para reali-
gestão de Fernando Henrique Cardoso não foi uma zar esta articulação vem da ideia de “capacidade gover-
consequência do desregramento dos gastos públicos, nativa”. Essa categoria indica se um sistema político
mas da própria política de juros e de câmbio do seu é “capaz de (i) identificar problemas da sociedade e
governo, e decorreu dos esforços para sanar as formular políticas públicas, isto é, oferecer soluções
finanças da União e dos estados e municípios. Ao e (ii) implementar as políticas formuladas, mobilizando
contrário do que se poderia esperar, embora a para isso os meios e recursos políticos, organizacionais
responsabilidade fiscal fosse um objetivo básico do e financeiros necessários” (idem, p. 344).
143
COMO SE EXPLICA O NEOLIBERALISMO NO BRASIL?
Trata-se de deslocar o olhar sobre as dificuldades democracias híbridas que combinam elementos de
no processo de implementação de políticas, gestão autoritários das políticas, com processos
frequentemente apontado como o lócus dos gargalos eleitorais democráticos. Com vistas a qualificar o
de políticas de ajuste, em favor de uma abordagem debate conceitual sobre processo decisório no Brasil,
mais ampla, que leve em conta variáveis do processo a tese do artigo faz claro como o desenho institucional
de formulação das políticas. Com isso, o artigo chegou será uma causa decisiva para a implantação das
a três importantes conclusões: (i) existe um padrão reformas neoliberais no Brasil durante a década 1990:
dual na tomada de decisão com relação às políticas de a tese afirma que é preciso articular, no plano analítico,
ajuste: políticas de estabilização são enclausuradas nas o tipo de política ao tipo de arena, discernindo as
altas burocracias governamentais e reformas políticas que passam pelo congresso daquelas que são
estruturais são submetidas ao congresso; (ii) o poder encapsuladas nas burocracias17.
Executivo normalmente predomina na definição do
Neste ponto já é possível sistematizar o conjunto
processo legislativo, mas o congresso não é nem
das conexões causais produzidas pelas três famílias
irrelevante e nem sempre cooperativo; (iii) o padrão
de argumentos. Esquematicamente, podemos
dual de tomada de decisão está relacionada às
sintetizá-las como disposto no Diagrama 1.
Qualidades
do empresariado Regras
Crise do Estado institucionais
Cultura e valores
domiantes
Sete causas para a Implantação das Reformas Neoliberais durante a década de 1990
FONTE: O autor.
IV. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS: O EXAME DE orientadas para o mercado no Brasil, durante a década
PRESSUPOSTOS (LÓGICOS) E CONSEQUÊN- de 1990, colocou-nos diante de sete modalidades de
CIAS (ANALÍTICAS) DOS ARGUMENTOS EN- explicação, que foram agrupadas em três famílias de
CONTRADOS
A leitura da produção bibliográfica publicada pela Por outro lado, se boa parte das políticas de estabilização são,
revista Dados acerca da implantação das reformas basicamente, formuladas na relativa clausura das burocracias
governamentais, as reformas estruturais – a segunda fase do
programa de ajuste – são todas submetidas ao Legislativo, até
17 Nas palavras da autora: “Em resumo, no que se refere às porque dependem, em parte de reforma constitucional, o que,
políticas de ajuste – item da pauta de todos os governos pós- necessariamente, passa pelas dificuldades descritas de negociação
Constituintes –, se sua deficiência de implementação é entre os dois poderes, prolonga o tempo do processo de
conhecida, o processo de formação das políticas que passam formulação das reformas estruturais, tão ansiosamente
pelo crivo do Congresso é frequentemente complexo e difícil. perseguidas pelos governos pós-1990” (SANTOS, 1997, p. 363).
144
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 21, Nº 47: 133-153 SET. 2013
argumentos. Diante disso, resta saber se essas No momento de propor as soluções viáveis, a tese
explicações são boas ou não, e por quais razões. da crise do Estado afasta peremptoriamente o
receituário neoliberal puro, o plano de Washington que
A extração e o exame da estrutura lógica de cada
chegaria, segundo essa explicação, como um pacote
artigo permitiu-nos inferir alguns elementos dos
fechado, estranho às condições políticas práticas. O
pressupostos que amparam as teses desses artigos,
economista tecnocrata é, segundo essa explicação, o
bem como algumas consequências que decorrem delas.
sujeito capaz de identificar o que há de doutrinário e o
A seguir, apresentaremos duas críticas aos
que há de “praticável” nesse receituário. Como se
pressupostos de uma explicação pragmática e faremos
define esse agente social? “Por pragmáticos eu defino
algumas ponderações sobre consequências analíticas
os economistas-tecnocratas que trabalham dentro das
presentes em uma explicação sociológica. Essas
organizações estatais e definem atualmente a política
críticas apontam algumas deficiências na forma como
econômica na maioria dos países. Eles não são
se tem praticado a sociologia política no Brasil nos
economistas teóricos, nem economistas ideológicos.
últimos anos, ainda que não sejam suficientes para
São economistas práticos, diretamente ligados ao
asseverar um diagnóstico sobre o estado da arte nessa
governo” (idem, p. 7).
disciplina – há que se ter em mente que estamos
lidando com um segmento dessa produção, aquela Esse agente está em posição de distinguir, dentro
relativa a implatanção das reformas neoliberais durante do receituário de políticas recomendadas pelas
a década de 1990. Em que pese essa limitação, é instituições multilaterais, quais são aquelas com teores
possível afirmar com alguma segurança que, exceto de neoliberalismo mais acentuado ou mais ameno.
pelas explicações institucionalistas18, esse tema foi mal Portanto, entre as soluções aventadas por essa
analisado pelos especialistas brasileiros. explicação pragmática há uma espécie de gradação de
“teores de neoliberalismo” ora mais ou menos
IV.1. O exame de pressupostos (lógicos) das explicações
dogmático, ora mais ou menos pragmático. É como
pragmáticas
houvesse uma espécie de “centro de gravidade” em
Afirmamos que a família de argumentos cujo vértice encontram-se obras de autores neoliberais
pragmáticos não oferece explicações com sólidos consagrados (as referências seriam Friedrich Hayek,
fundamentos teóricos. Isso fica muito nítido quando Milton Friedman e James Buchanan). As ideias que
se solicita ao argumento da crise do Estado uma análise mais se aproximam desse vértice aparecem como
cuidadosa das causas para a sua ocorrência. A dogmáticas, ao passo que, quanto mais distantes desse
explicação pragmática simplifica essa operação, dessa vértice, menores serão as concessões ao que se
maneira: “Em termos práticos, a intervenção do Estado conhecia no final da década de 1980 como “consenso
em um determinado setor da economia tende a ser neoliberal”, e mais pragmática poderá ser a abordagem.
inicialmente eficaz, isto é, tende a corrigir as
O que se nota, portanto, é que há nesses
insuficiências coordenativas do mercado. Todavia, uma
argumentos uma variação em função de grau, em
vez que os políticos, os funcionários e os empresários
referência a diversos “teores” de neoliberalismo. Isso
diretamente associados na intervenção raramente
aparece com clareza no texto de Bresser Pereira,
concordam sobre quando deve cessar o processo
Maraval e Przeworski (1993), quando os autores
intervencionista, este tende a se prolongar no tempo e
apresentam a tese central do artigo: “Tanto a
acaba sendo ineficiente. As regulações tornam-se
observação de que a estabilização gera recessão, quanto
casuísticas; a proteção a certas indústrias deixa de
a de que os programas de estabilização frequentemente
ser provisória, como deveria ser e tende a ser tornar
minam as condições para o crescimento futuro são
permanente; os gastos estatais e as renúncias fiscais
hoje indiscutíveis. Na realidade, as vozes aqui referidas
tendem a aumentar a uma taxa muito mais alta do que
emanam do Banco Mundial e do Fundo Monetário
as receitas do Estado; o déficit e a dívida pública
Internacional – o FMI. O ponto a partir do qual nos
crescem; a ameaça de uma crise fiscal torna-se
afastamos do consenso neoliberal diz respeito à
iminente” (BRESSER PEREIRA, 1991, p. 7).
questão central da análise de Bresser Pereira, quando
argumentamos que as reformas orientadas para o
mercado não são suficientes para gerar condições de
crescimento” (idem, p. 181).
18 Não apresentamos críticas às explicações agrupadas na
Dizíamos acima que os argumentos pragmáticos
família de argumentos institucionalistas porque a conjugação
operam em um elevado nível de generalidade. Agora,
do problema com a pergunta de pesquisa, mais a tese enunciada
nestes artigos revela uma estrutura lógica muito consistente regredindo aos pressupostos lógicos do argumento,
nessas explicações. observa-se, com essa gradação de teores de
145
COMO SE EXPLICA O NEOLIBERALISMO NO BRASIL?
neoliberalismo, o tratamento genérico com o qual esta A segunda explicação que compõe a família de
explicação aborda a relação entre Estado e mercado argumentos pragmáticos concentra-se sobre a crise
em sociedades capitalistas. No cerne da tese da crise de governabilidade. Esse argumento constitui-se na
do Estado, como fundamento da sua estrutura lógica, tentativa mais arrojada dessa bibliografia de explicar,
“Estado” e “mercado” aparecem como duas ideias em seu conjunto, a implantação das reformas
que discriminam concepções normativas concorrentes orientadas para o mercado por meio da separação entre
sobre a alocação de recursos em sociedades a dimensão da formulação e a implementação das
capitalistas. Isto é, como eixo da estrutura lógica da políticas públicas. Entretanto, como veremos a seguir,
argumentação, a contraposição “Estado” versus o argumento da crise de governabilidade revela outro
“mercado” contém em si dois princípios antagônicos problema, a ausência de uma teoria do Estado, o que
de distribuição de recursos, sejam eles recursos atesta sua caracterização como uma explicação
político-institucionais, posições de mando ou pragmática sobre a implantação das reformas
dominação, sejam mesmo recursos econômicos em neoliberais no Brasil, na década de 1990.
sentido mais estrito, com relação ao circuito de
Resumidamente, o problema central consiste em
investimento, produção e consumo. A ideia de um
saber se as instituições políticas brasileiras funcionam
centro de gravidade parece-nos adequada para
ou não, e por quê. Nessa ordem. O debate sobre a
descartar uma (inverossímil) ideia de linearidade na
governabilidade das instituições políticas brasileiras
oposição Estado versus mercado. Com efeito, se
aparece na primeira metade da década de 1990 como
representada visualmente, tal variação caberia muito
uma tentativa de racionalizar a crise política e
melhor em um gráfico de dispersão do que variando
econômica na qual o desenho político-institucional da
em apenas um eixo (como em um continuum).
democracia brasileira foi forjado. Essa discussão
Isso porque os prognósticos previstos pela consumiu parte importante da comunidade de
explicação pragmática recusam uma identificação tout estudiosos políticos brasileiros na década de1990, e
court entre “Estado com atraso” e “mercado com já foi objeto de alguns levantamentos bibliográficos.
moderno”. Procura-se elaborar linhas de reflexão Valemo-nos desses esforços de modo a situar, por meio
capazes de escapar a esse maniqueísmo. Mas é de uma discussão que aparece na revista Dados, as
exatamente por isso que a matização em teores precisa críticas que amparam a apreciação negativa que
variar em função de grau: há que se construir um fazemos sobre essas explicações.
“meio-termo” entre essas duas coisas – que, de resto,
Para compreendermos o raciocínio que preside o
sabe-se lá o que sejam. É importante sublinhar que
debate sobre a crise de governabilidade é preciso
muito frequentemente as teses pragmáticas recusam
separá-lo em cinco etapas
peremptoriamente a oposição entre Estado versus
mercado. Segundo nossa leitura, ao estabelecer seu Na primeira etapa constata-se uma crise. A face
contraditório nesses termos, o argumento pragmático mais aparente dessa crise é a desordem monetária.
revela-se tributário dessa oposição. A contraposição Porém, logo abaixo dessa primeira camada está um
Estado versus mercado é negada para ser, em um desarranjo cuja matriz é de ordem sociocultural
momento seguinte, requalificada. Esse requalificar da (FAUCHER, 1993, p. 396). Nessa primeira etapa não
contraposição é uma operação lógica necessária para há um esforço de enquadramento teórico sobre as
designar diferentes graus de neoliberalismo – mais ou naturezas do problema em tela: tateia-se a crise, com
menos pragmático, mais ou menos ideológico. a intuição de que sua solução está em uma terceira
camada, na política (DINIZ, 1995, p. 387).
Portanto, o pressuposto dessa explicação
pragmática é que as soluções para a crise do Estado O exame dessa intuição é a operação que conduz à
constituem-se sem conceitos elaborados teoricamente, segunda etapa do raciocínio: Por que há uma crise? A
mas em meio a um conjunto relativamente uniforme resposta, novamente, é: porque “o Estado não
de ideias, concepções, juízos e opiniões. Ou seja, a funciona” (FAUCHER, 1993, p. 395). A resposta é a
oposição entre Estado versus mercado aparece em transição para a segunda etapa, visto que ela eleva o
concepções sobre as relações entre Estado e sociedade, grau de abstração. Agora é preciso saber o que é o
na formulação dos gargalos à modernização econômica Estado, ao passo que, quando somente se constava a
e no prognóstico sobre cenários de democratização. crise, isso não era necessário.
Em todos esses objetos, a causação, o núcleo das
Na segunda etapa do raciocínio ainda não se
explicações solicita uma polarização genérica e
debruça sobre o que é o Estado, mas sobre por que
superficial entre dois conjuntos de ideias, ora
ele não funciona. Como vem sendo notado, essa será
identificadas com “Estado”, ora com “mercado”.
a principal falta do debate, que não dispõe de uma
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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 21, Nº 47: 133-153 SET. 2013
147
COMO SE EXPLICA O NEOLIBERALISMO NO BRASIL?
Sem ideias ou
1º Nível de conceitos.
abstração Constata-se
uma crise.
As
recomendações
3º Nível de não sabem o que
é Estado ou
abstração
sociedade, mas
propõem
conceitos novos.
Novo conceito: a
fusão de
governance com
4º Nível de governabilidade
abstração transforma-se
em capacidade
estatal.
FONTE: O autor.
Em resumo, a lógica que preside o argumento da eco aos esforços mobilizados para produzir respostas
crise de governabilidade demonstra que essas razoáveis a um arranjo político institucional que na
explicações sobre as reformas neoliberais são frágeis primeira metade da década de 1990 parecia fadado ao
do ponto de vista teórico-conceitual porque esses fracasso. Exceto pelo artigo de Maria Helena dos
autores analisam uma modalidade de fenômeno que Santos – que, como já mencionamos, propõe uma
se situa entre a sociedade e o Estado, mas suas análises explicação institucional – todos os demais textos que
são desprovidas de modelos teóricos consistentes sobre discutem a ingovernabilidade são produzidos até 1995,
um ou outro polo. Isso é claro. Não nos encontramos em um debate mais amplo, que ocupou uma parcela
em condições de oferecer uma explicação para esse significativa da comunidade de sociólogos e politólogos
“comportamento”, pois nossa análise restringe-se ao brasileiros nesse período.
âmbito da estrutura dos argumentos – uma pesquisa
IV.2. O estudo de consequências (analíticas) a partir
mais ampla, com um corte específico da sociologia
de uma explicação sociológica.
dos intelectuais poderia lançar hipóteses a esse respeito,
o que, evidentemente, não é o nosso caso. Ainda assim, Além dessas considerações sobre os pressupostos
podemos notar que a produção da revista Dados faz das explicações pragmáticas, podemos destacar
148
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algumas consequências analíticas que decorrem de permanecem não explicadas. No artigo de Mancuso
uma explicação sociológica. O equívoco, nesse caso, (2004) examina-se a articulação política dos interesses
também está relacionado à ausência de modelos industriais por meio de um estudo da eficácia da ação
teóricos; entretanto, como veremos a seguir, ele implica política da CNI. No espaço abstrato da estrutura lógica
problemas mais severos. Trabalhando a posteriori, as da sua argumentação (problema+pergunta=tese) fica
imprecisões que serão apontadas decorrem de uma nítido como o texto transforma os objetivos
estratégia hiperdescritiva de análise. estratégicos do empresariado industrial em categoria
explicativa da sua ação política. Segundo Mancuso,
A primeira explicação sociológica analisa
“Não obstante a enorme fragmentação do empresariado
implantação das reformas à luz das qualidades
industrial, e o impulso centrífugo decorrente desta
empresariado, como discriminado no item III.1. Essa
fragmentação, pelo menos desde meados da década
explicação aparece na tese da fragmentação do
de 1990 a indústria vem realizando um grande trabalho
empresariado, e a ela contrapõe-se a interpretação da
coletivo para definir e defender uma posição comum
profissionalização da representação de interesses: essa
em relação a propostas legislativas que tramitam no
segunda tese explica como a unificação da burguesia
Poder Legislativo federal e cuja aprovação, reforma
industrial foi obtida graças à ação consertada da CNI,
ou rejeição pode contribuir para a solução de
que aglutinou diversos segmentos industriais sob a
problemas que afetam negativamente a competitividade
bandeira da redução do custo-brasil.
de todo o segmento. Essa mobilização é o resultado
O primeiro obstáculo da explicação da fragmenta- da confluência entre um processo de natureza
ção do empresariado é que ela não indica por que ele econômica, que tornou a competitividade em meta
deveria estar unificado, isto é, por qual motivo o prioritária, e a iniciativa de um ator político – a CNI –
empresariado deveria liderar um projeto hegemônico que se dispôs a assumir o custo de organizar a ação
para toda a sociedade. Como consequência, e na coletiva do setor e que é capaz de assumir esse custo,
medida em que se furta a essa reflexão, o argumento seja por ocupar uma posição propícia como entidade
arrola um conjunto de ausências, à despeito do exame de cúpula do segmento, seja por contar com recursos
das presenças, isto é, das circunstâncias financeiros suficientes, garantidos por seu quinhão na
socioeconômicas nas quais o empresariado existira contribuição sindical compulsória paga
como tal. Em outras palavras, ao afirmar que o pelas empresas” (MANCUSO, 2004, p. 514).
empresariado era fragmentado, a explicação não
A combinação de um processo de natureza
informa como as classes proprietárias posicionavam-
econômica (elevação da competitividade) com a ação
se perante a distribuição da riqueza social antes e depois
política da cúpula do segmento explica a sua unificação
da implantação das reformas neoliberais. Isso é
em torno de uma bandeira. Essa é a tese do artigo.
importante porque, com essa distinção, iluminam-se
Mas qual seria a diferença entre essa tese e o discurso
as condições sociopolíticas necessárias para a
da CNI sobre sua própria estratégia de ação como
reprodução da instabilidade monetária. Usualmente, as
cúpula do empresariado industrial?
explicações para essa situação enfatizam a ineficácia
dos mecanismos institucionais responsáveis pela Ao assimilar como problema de pesquisa os
“normalidade econômica”: daí que, diante de um severo problemas colocados aos agentes das reformas, a
quadro de crise, os autores questionem-se se o Brasil análise das correlações de força que caracterizam uma
é governável. A análise dos interesses satisfeitos pelas conjuntura confunde-se com a sua descrição. É por
políticas econômicas durante o período da crise conduz isso que as explicações que trabalham no registro
a reflexão para outro tipo de eficácia, no caso, aquela hiperdescritivo são conduzidas à crônica política na
responsável pela manutenção, por um longo período, qual o neoliberalismo acontece. O que não aparece
da hiperinflação. Qual seria a posição do empresariado nessa crônica? Os mesmos fenômenos que são
neste contexto? A tese da fragmentação tem pouco a preteridos pela sua análise, a saber, quais os interesses
dizer a esse respeito. sociais estão representados por esse lobby, e por quê?
Quais as frações do empresariado que se unificaram
Esse deslocamento qualificaria o modo de pensar
em torno dessa plataforma, e que setores dela foram
a implantação das reformas neoliberais no Brasil durante
preteridos?
a década de 1990, na medida em que com ele
vislumbrariam-se novos atores, e as relações sociais Não nos parece nada simples determinar as causas
que constituem a situação de crise seriam alçadas ao pelas quais se adota o registro hiperdescritivo – ainda
primeiro plano. que possamos constatar as suas consequências, neste
caso, uma narrativa que mimetiza o discurso da classe
Com efeito, quando passamos para a tese da
empresarial representada pela CNI; com efeito,
unificação do empresariado, tais contradições
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COMO SE EXPLICA O NEOLIBERALISMO NO BRASIL?
deparamo-nos novamente com as restrições do nosso descrição diria, mas nos diz alguma coisa a mais do
próprio desenho de pesquisa: como deduzir uma causa que a mera descrição daquilo que é cientificamente
(o por quê da explicação equivocada) a partir de explicado.”20 (idem, p. 329). A fragilidade do registro
somente um de seus efeitos (a descrição estilizada do hiperdescritivo aparece quando ele revela-se incapaz
processo político)? Apesar disso, é possível lançar uma de estabelecer relações entre classes de fenômenos
conjectura coerente com o plano em que se situa nossa que, aparentemente, não estão relacionadas. E esse
investigação, a estrutura lógica das explicações. Ela “algo a mais” é um tipo de designação que não
certamente não resolve a questão, mas deixa algumas aparecerá no registro hiperdescritivo, por mais
pistas sobre como entender a ocorrência dessas minucioso que ele seja. Ainda segundo Kaplan, “Tais
explicações enviesadas. designações somente descrevem o que pretendem
explicar: elas não colocam-no em relação com outros
Para nos aproximarmos da origem desse problema,
processos ou eventos”21 (ibidem).
podemos começar observando a distinção operada por
Kaplan (1964) entre o que é claro e o que é verdadeiro. V. CONCLUSÕES
Para Kaplan, o verbo explicar pode ser utilizado em
Este artigo analisou 38 dos 348 artigos publicados
duas acepções. A primeira é simplesmente a explicação
pela revista Dados entre 1990 e 2006. Portanto, é
semântica, aquela capaz de produzir um esclarecimento
necessário frisar que não se discutiu o perfil dos artigos
sobre uma palavra, no sentido de torná-la intelígivel –
publicados por esse periódico, nem tampouco as
e, é evidente, a explicação semântica só pode ser
configurações do campo intelectual brasileiro no
considerada assim se ela for capaz de se fazer clara. A
período – com a leitura de um décimo da produção
segunda acepção do verbo “to explain”, para Kaplan,
dessa revista quaisquer afirmações nesse sentido não
se refere às explicações científicas, que, à diferença
afetariam mais do que a ponta de um iceberg.
da explicação semântica, não satisfazem o pré-requisito
da clareza. Segundo Kaplan “A diferença entre Entretanto, foi possível reunir boa parte da
explicações semânticas e explicações cientificas é à produção doméstica realizada acerca de um assunto:
esse respeito como a diferença entre o enunciado ser a implantação das reformas orientadas para o mercado
claro e ser verdadeiro. Nós não podemos dizer que no Brasil, durante a década de 1990. E o traço mais
um enunciado é claro sem indicar, ao menos marcante dessa produção é a diversidade de
tacitamente, para quem é claro. Mas se dizemos que explicações produzidas sobre essas reformas.
um enunciado é verdadeiro para esta ou aquela pessoa, As sete proposições explicativas que foram
nós dizemos que ela acredita nele, ou tem evidências discernidas no artigo indicam que podemos procurar
para ele, ou alguma coisa do tipo. Podemos querer as causas das reformas neoliberais seja na sociedade
dizer também que a pessoa interpreta de tal modo que brasileira, seja nas suas instituições políticas – entre
a proposição não depende dela ou de qualquer outra estas últimas, pudemos entender que as análises
pessoa [para ser verdadeira]”19 (idem, p. 327). explicam as reformas seja por meio da ênfase nas
Desse ponto de vista, não há dúvida sobre a clareza regras que definem o ambiente institucional, seja por
da explicação produzida pelo registro hiperdescritivo. meio do exame pormenorizado das estratégias que os
Todavia, ao especificar a distinção entre o que é claro atores mais relevantes mobilizam nesse ambiente. Entre
e o que é verdadeiro, Kaplan estabelece, de forma as explicações sociológicas as conexões causais
bastante convincente, a diferença que nos é também variam bastante, com interpretações
fundamental: “A explicação científica, por contraste compondo suas explicações a partir dos conflitos
com a descrição, não nos diz não somente o que distributivos deflagrados com a implantação das
acontece, mas por que (...) a explicação científica não reformas, ou, por uma outra via, mediante a análise
diz alguma coisa diferente do tipo de coisa que a dos valores e das opiniões predominantes entre as elites
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ou entre a população brasileira durante a década de1990 superficial entre duas concepções normativas
do século XX. Ainda no rol das explicações que concorrentes sobre a alocação de recursos em
procuram na sociedade brasileira a causa da sociedades capitalistas, uma identificada a uma ideia
implantação das reformas, detectamos na produção genérica de “Estado”, outra mais próxima da noção
da revista Dados uma divergência entre duas teses imprecisa de “mercado”. Além disso, a crítica realizada
sobre o empresariado, uma mais recente, enfatizando no plano dos pressupostos permitiu reconstruir a
a sua unidade, e outra mais antiga, reforçando a sua categoria chave da tese da crise de governabilidade, a
fragmentação. ideia de capacidade governativa. Desagregamos o
raciocínio que orienta essa tese em cinco etapas, para
Como se vê, o traço mais marcante na produção
verificar como ele desenvolve-se em um terreno teórico
de Dados é a diferença, e não a uniformidade, entre as
conceitual frágil e inseguro.
explicações lançadas acerca das reformas neoliberais.
E essa diferença é de tal monta que a terceira grande O segundo bloco de conjecturas críticas explora
explicação presente nesse universo bibliográfico recusa as consequências de uma abordagem hiperdescritiva.
até mesmo uma proposição teórica sobre a natureza Ao final do quarto item exploramos a confusão entre
da transformação econômica: a explicação pragmática a estratégia de ação do empresariado e a estratégia de
postula a inexorabilidade das reformas neoliberais e, argumentação mobilizada para a sua análise. Aqui, a
com isso, busca racionalizar a desarticulação entre descrição minuciosa de conjuntura confundiu-se com
Estado e sociedade no Brasil por meio de duas teses, a análise das suas correlações de força, em prejuízo
uma mais pontual, sobre a crise do Estado, e outra ao conhecimento positivo da implantação das reformas
mais ampla, sobre a crise de governabilidade. neoliberais. Procuramos salientar esses defeitos do
registro hiperdescritivo tendo em mente os limites que
O aspecto positivo que encontramos na produção
o nosso próprio nível de análise impõe, qual seja, a
de Dados decorre dessa diversidade de explicações:
estrutura lógica dos argumentos.
essa parcela do acervo desse periódico é formada por
artigos com evidências empíricas sólidas, produzidas, Feitas todas as contas, notamos que as explicações
em sua maioria, com a análise de fontes primárias da implantação das reformas orientadas para o mercado
sobre diversas dimensões da implantação das reformas no Brasil, durante a década de 1990, carecem de
neoliberais. amadurecimento no plano teórico e conceitual, ainda
que muitas pesquisas empíricas já tenham sido
Nossas conjecturas críticas foram organizadas em
produzidas sobre o tema. Essa ponderação é tanto mais
dois blocos: no primeiro, detivemo-nos sobre os
necessária se levarmos em conta que datam desse
pressupostos de algumas explicações e, no segundo,
período os arranjos institucionais sob os quais foi
exaurimos algumas consequências analíticas de uma
forjada a atual estrutura de competição política.
das explanações sociológicas estudadas em Dados.
Portanto, é razoável conjeturar que uma retomada
Trabalhando sobre os pressupostos, enunciamos o fio
dessas teses possa auxiliar a reflexão sobre o que há
condutor que preside a argumentação da tese da crise
de novo e o que há de velho no modelo brasileiro de
do Estado. Demonstramos como essa explicação
desenvolvimento econômico e social.
pragmática ampara-se em polarização genérica e
Lucas Massimo (lucasmassimo@gmail.com) é Mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) e pesquisador do Núcleo de Estudos em Sociologia Política Brasileira da Universidade Federal do
Paraná (UFPR).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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OUTRAS FONTES
CAPES. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. 2013. conteudoweb.capes.gov.br/conteudoweb/
Caderno de indicadores. Disponível em: http:// CadernoAvaliacaoServlet. Acesso em: 6.ago.2013.
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ABSTRACTS
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