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1
Este artigo é uma versão modificada de capítulos de minha dissertação de mestrado intitulada
“Corrupção, narrativas de imprensa e moralidade pública nos anos 50: A conversão da corrupção em
problema público no Brasil” (PPGS/UFF).
2
Doutoranda em História (PPHR/UFRRJ), pós-graduanda no PRD/Ensino de História (Colégio Pedro
2) e professora da rede Estadual de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC/RJ).
3
Ao propor tal análise, não se pretende conceber um conceito de corrupção, nem mesmo se
apropriar de uma definição sobre o termo.
4
Caixa de Exportação e Importação do Banco do Brasil.
Entre as décadas de 1940 e 1960, o cenário político brasileiro era disputado
por dois projetos de poder. O getulismo, de caráter nacional-estadista: “pautado no
nacionalismo, proposta de fortalecimento de um capital nacional, criação de
empresas estatais em setores estratégicos e a valorização do capital humano com
redes de proteção humana” (Ferreira, 2008, p.303). E o projeto de caráter liberal-
conservador que “defendia a abertura irrestrita a investimentos, empresas e capitais
estrangeiros; ressaltando as leis do mercado e negando a intervenção estatal na
economia, reticente aos movimentos sociais e da participação popular”. (Ferreira,
2008, p.304). Estes dois projetos mediram forças gerando momentos de grandes
tensões políticas.
Nos anos 1950 estas disputas se tornaram mais latentes muito impulsionadas
pelas agitações políticas do período. Getúlio Vargas assumia pela segunda vez a
presidência do país, contrariando as notícias veiculadas pela imprensa da época e
‘nos braços do povo’, atribuindo caráter popular ao presidente que se autointitulava
“um líder das massas” (Wainer, 1988). ‘Nos braços do povo’ também configurava a
forma pela qual Vargas assume seu mandato, através de eleições diretas, diferente
de seu primeiro governo (1930- 1945). Sua chegada ao poder contrariava aos
interesses da elite brasileira inscrita numa lógica de redução do papel do Estado e
na exclusão da participação popular (Benevides, 1981).
A disputa entre o getulismo e o antigetulismo atingiria seu auge nos meses que
antecederam o suicídio de Vargas. Os parlamentares da UDN (notadamente
opositores ao getulismo), bem como a grande imprensa, atuaram como fatores
desestabilizadores do governo (Ferreira, 2008). Cotidianamente circulava pela
imprensa ofensas ao presidente do tipo “imoral, corrupto, desonesto” entre outras
visando desqualificar sua imagem e seu governo. (Ferreira, 2008 p. 307).
5
Jornal Tribuna de Imprensa, 12/09/1952, p. 3.
6
Idem, 07/12/1953, manchete.
desempenharam importante papel no desfecho político de Getúlio Vargas (Silva,
2017).
2. Sobre a imprensa.
7
“No Rio Grande do Sul reinava o Correio do Povo, comandado pelo jovem Breno Caldas. No Paraná
e em Santa Catarina, como em quase todos os outros Estados, não havia jornais importantes. Em
São Paulo, o Estadão, da família mesquita, já era hegemônico, embora também tivesse influência A
Gazeta, de Cásper Líbero, e o tradicional Correio Paulistano, que fora porta-voz do Partido
Democrático, controlado pelo grupo de Francisco Morato. No Nordeste e no Norte, só tinham algum
peso A Tarde, da Bahia, pertencente à família Simões, o Jornal do Commercio, de Pernambuco
controlado pelos Pessoa de Queiroz, e O Liberal, do Pará. Mas os grandes jornais brasileiros, os que
realmente contavam, eram editados no Rio de janeiro” (Wainer, 1988, p. 135)
8
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/tribuna-da-imprensa
Última Hora (1951-1984) também um importante jornal do século XX, fundado pelo
jornalista Samuel Wainer9. Na campanha presidencial de 1950, Wainer entrevistou
Getúlio Vargas e nesta entrevista Vargas afirmara que voltaria nos braços do povo
(Diniz, 2001). A partir daí Wainer se aproxima de Getúlio e cobre sua campanha,
nascia aí uma relação de amizade. Vargas foi eleito com larga vantagem sobre os
adversários, mas enfrentava dura oposição no meio político e na imprensa.
9
Famosa eram as divergências entre os jornalistas Carlos Lacerda e Samuel Wainer. Seus jornais
eram palco de suas polarizações políticas expressas respectivamente no antigetulismo e getulismo.
10
Correio da Manhã, 14/02/1951, p. 8.
cruzeiros para fins particulares e políticos inteiramente estranhos aos objetivos do
principal estabelecimento de crédito. Em matéria do jornal Última Hora sobre o
relatório da comissão encaminhado ao presidente, é afirmado que constava
impressionante documentação sobre uma verdadeira ‘orgia de verbas’ de
publicidade distribuídas pelo Banco do Brasil a partir de 1946, custeando
campanhas políticas e publicidades de indústrias particulares. Também foi apurado
que grande parte dos valores custeados pelo Banco do Brasil era para publicidade
da fábrica de tecidos do ex-presidente do Banco do Brasil, a fábrica Bangu. Por
outro lado, grandes fortunas foram usadas para custear a propaganda de
desmoralização política e pessoal do presidente Getúlio Vargas. A matéria ainda
afirmava que não só a transcrição de discursos parlamentares, mas a encomenda
de artigos e entrevistas, e até caricaturas e charges, foram distribuídas a preço de
ouro a diversos jornais e revistas do país.11
No inquérito promovido por Vargas para investigar irregularidades no
governo Dutra, o nome de seu Ministro da Fazenda, Horácio Lafer, foi citado como
beneficiado por dinheiro público. Essa questão não foi abordada pela matéria do
jornal Última Hora ao tratar sobre o relatório parcial do inquérito. Com a criação da
comissão nos meses iniciais do governo e indicado seu posicionamento em apurar
as irregularidades cometidas no Banco do Brasil, ao longo de 1951 pouco se obteve
informações sobre o andamento do inquérito, apenas indicação de que este estaria
sendo apurado com rigor. Tal postura rendeu logo no início do ano de 1952 a
publicação pelo jornal Tribuna da Imprensa de uma charge na primeira página sobre
a forma como o governo estava encaminhando o inquérito.
11
Última Hora, 14/06/1951, p. 5.
A caricatura fazia alusão ao então presidente Getúlio Vargas que, sentado
sobre o inquérito, não oferecia as informações sobre o que havia apurado de fato.
No dia seguinte a esta matéria o Correio da Manhã trouxe um artigo intitulado
“Inquéritos Administrativos”, cobrando ao presidente os resultados do inquérito sobre
o Banco do Brasil. O artigo também fazia uma breve abordagem dos inquéritos que
o presidente mandou apurar desde que assumiu e que somente se referem ao
governo anterior, e insinua que há uma farsa dos escândalos.12.
Em agosto de 1952 em artigo intitulado “Inquérito” publicado no Correio da
Manhã, outra questão surge em torno do inquérito, de o porquê de somente se
investigar as relações do Banco do Brasil no governo Dutra e não ter estendido
também ao governo atual13. Também é denunciado o interesse pessoal e político em
detrimento do interesse coletivo, Getúlio não atuou como deveria atuar um
representante da administração pública. A preocupação de investigar alguns e não a
outros, ou mesmo da utilização da situação para benefício próprio, como sugere a
matéria, compromete a imparcialidade que um agente público deveria prezar no
exercício de sua função. Gradativamente a pressão para a divulgação do inquérito e
a postura do governo em não divulgá-los voltou-se de certa forma para o próprio
Governo Vargas, questionava-se o que existia no inquérito que não possibilitava sua
divulgação. Cogita-se então nos jornais o envolvimento de agentes ligados ao
governo.14
Lacerda, em matéria de capa, faz um balanço dos interesses envolvendo o
inquérito, ao qual teve acesso. Reforça o porquê do inquérito não avançar no
governo Vargas e levanta a acusação de que a condução do inquérito resulta na
evidência de uma série de negociatas para favorecer o partido que então constituía
a base parlamentar do governo, o PSD. Afirmava ser indispensável que “alguém
furasse a cortina de silêncio de meias verdades e de difamações sussurradas, que
assustava os meios políticos, econômicos e administrativos do país, mantendo-os
sob coação moral intolerável”15.
O desfecho do inquérito residiu no impasse de sua não publicação, tanto os
jornais Última Hora, Correio da Manhã e Tribuna da Imprensa noticiavam que foi
decidido pela mesa da Câmara a não publicação do inquérito no Diário do
12
Correio da manhã, 23/01/1952. p. 4.
13
Correio da Manhã, 02/08/1952, p. 4.
14
Idem
Tribuna da Imprensa, 01/08/1952, p. 1.
15
Congresso. Os parlamentares, bem como um grande número de jornais,
consideravam a iniciativa danosa aos interesses públicos16. Em edição de outubro
de 1952, Lacerda emite um parecer sobre os motivos que levaram a Tribuna da
Imprensa a não publicar o relatório. Neste, bancos seriam afetados gerando um
“crack” e também traria agonia para a população e ruína da nação17.
Uma questão que se coloca principalmente em relação à Tribuna na
Imprensa é a mudança de seu posicionamento. De forma ostensiva cobrava os
desdobramentos do inquérito e apresentava matérias irônicas sobre seu andamento.
Quando a Câmara decide por sua não publicação é evidenciado o silêncio deste
veículo e somente depois Lacerda emite o parecer de concordar com a não
publicação. Depois deste feito não identificamos mais questionamentos oriundos da
Tribuna.
Fato é que o inquérito, embora conduzido de forma reservada, habitava as
páginas dos jornais entre os anos de 1951 e 1952 e gradativamente foi sendo
preterido em detrimento de outras notícias até cair em esquecimento. Contudo, ele
foi considerado nesta pesquisa por algumas razões: A primeira por mobilizar certo
clamor acerca de seu teor por ser entendido como práticas que comprometiam o
bem público. Segundo porque a forma recorrente como foi noticiado lhe atribuiu
dimensão de escândalo político envolvendo práticas consideradas irregulares em
relação à administração pública.
20
Tribuna da Imprensa, 20/03/1952, p. 7.
21
Tribuna da Imprensa, 10/06/1952, p. 3.
22
Correio da Manhã, 13/01/1953, p. 12.
23
Correio da Manhã, 29/03/1953, p. 1
24
Correio da Manhã, 09/05/1953, p. 1.
25
Correio da Manhã, 03/06/1953, p. 10
“A cexim não é vítima de uma crise moral, mas um agente da corrupção”26.
Em poucos meses a corrupção passa a estar associada diretamente à Cexim. O
termo sofre um deslocamento gradativo de um contexto mais amplo para fixar-se na
figura do órgão que representa o governo. No caso do ‘Inquérito do Banco do Brasil’,
o termo ‘irregularidade’ era predominante para identificar práticas que lesavam a
administração pública. No caso da Cexim, claramente o termo corrupção passa a
tomar corpo e é associado às práticas de favoritismo dentro do órgão do governo.
Com os sucessivos escândalos e os interesses políticos envolvidos, a Cexim é
substituída pela Carteira de Comércio Exterior (Cacex) do Banco do Brasil através
da Lei nº 2.145, de 29 de dezembro de 1953.
É importante salientar o contexto político-econômico que contribuiu para a
extinção da Cexim. Entre 1949 e 1953, o Ministério da Fazenda foi ocupado por dois
industriais. Os dois órgãos que trabalhavam com política cambial eram a Cexim, que
representava a autoridade na emissão das licenças de importação e exportação e a
Sumoc (Superintendência de Moeda e Crédito). Vargas também indicou um
industrial para a presidência do Banco do Brasil, Ricardo Jafet. Desta forma, a
política protecionista garantiu o enriquecimento dos industriais devido à acumulação
de matérias-primas e equipamentos e aumentado às importações (Leopoldi, 1994).
Contudo, nos anos de 1951 e 1952, justamente quando surgem às
denúncias de corrupção na Cexim, as importações sobrepujaram as exportações,
gerando urna crise cambial e uma escassez de divisas que praticamente paralisou o
sistema de licença prévia. A alternativa apresentada pelos industriais para
superação da crise cambial era o controle mais rigoroso das importações de
produtos supérfluos, incentivos à exportação, maior controle dos pagamentos feitos
ao exterior e participação dos industriais na formulação de tratados comerciais,
iniciando o período de austeridade na prática do órgão (Leopoldi, 1994).
A escassez de divisas e a lentidão do processo pela Cexim geraram muitas
críticas a carteira do Banco do Brasil, principalmente pela UDN e por neoliberais,
então grandes críticos do intervencionismo estatal. Dentre esses críticos estavam de
um lado os industriais da Firj (Federação das Indústrias do Rio de Janeiro) que
queriam o fim da Cexim e a liberação total do câmbio, e do outro a Fiesp (Federação
das Indústrias do Estado de São Paulo), que defendia a manutenção da Cexim e o
26
Correio da Manhã, 27/03/1953, p. 11.
controle das importações (Leopoldi, 1994). A Cexim foi extinta e em seu lugar foi
criada a Cacex. Terminava assim o controle quantitativo das importações e a
agência controladora, a Cacex se abre aos industriais na determinação das taxas de
câmbio conforme a essencialidade dos produtos (Leopoldi, 1994).
27
Última Hora, 12/06/1951, p. 1.
28
Correio da Manhã, 27/05/1953, p. 5.
capital particular, montando em pouco mais de setenta e cinco milhões de cruzeiros
o débito das mesmas com o Banco do Brasil. Contestou que o valor dessa dívida
fosse mais de duzentos e cinquenta milhões de cruzeiros, declarando que a renda
da empresa, de que é um dos diretores, lhe assegura completa solvabilidade
financeira29.
Em 1953, a Tribuna da Imprensa promoveu uma campanha contra a Última
Hora. Sob o discurso moralizador e da crítica à violação do bem comum, Lacerda
potencializara de forma ostensiva as denúncias contra os interesses que envolviam
a criação do vespertino. Esta campanha não foi travada apenas no jornal, mas
também na rádio e na TV. Ao longo da campanha, o apoio recebido por diversos
segmentos da população, a forma ovacionada que Lacerda era recebido em
diversos comícios e palestras principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro,
contribuíram para potencializar sua influência política. Gradativamente, neste
contexto de denúncias construiu-se a imagem de Lacerda como um ‘herói’ no
combate à corrupção.
Muitas foram às audiências referentes ao inquérito e acompanhado
diariamente seu desfecho pela imprensa. Lacerda, além da Tribuna, também
reforçava as denúncias na Tv Tupi e na Rádio Globo. Embora não fosse
comprovada legalmente a atuação do presidente, constatou-se que houve
favorecimento pessoal para o vespertino não somente através da facilitação de
empréstimos, mas por pagá-los através de compensação de juros com publicidade,
o que Lacerda denominava como uma modalidade do favoritismo: “receber do banco
para pagar ao banco”30
A Última Hora passa a ser associada à corrupção e a falta de moralidade do
governo e acentua-se via Tribuna da Imprensa um clamor para seu fechamento.
Segundo Lacerda, o ‘Última Hora’ representava o próprio centro da corrupção, além
disso, o UH tomou o significado de uma bastilha da corrupção e assim que deveria
desaparecer. Para reparar o erro, Getúlio deveria fechá-lo. Claramente os agentes
do governo Vargas são associados à corrupção por favorecerem a criação do jornal
Última Hora com recursos públicos.
29
Correio da Manhã, ed.18480, 24/06/1953, p. 12.
30
Tribuna da Imprensa, edição 1080, 14/07/1953, p. 1.
4. A denúncia pública: a corrupção como instrumento de acusação política.
Nos casos de corrupção no governo Vargas essa questão pode ser observada.
A quantidade de denúncias construía uma imagem do governo inserido em uma
lógica de imoralidade. Lacerda foi um agente importante neste processo ao possuir
um jornal e ter entrada na Tv e na rádio, suas acusações contra órgãos e agentes do
governo eram potencializados. O ato de acusar de forma constante atribuía-lhe
credibilidade política e social. Lacerda era recebido em comícios de forma
alvoroçada como um herói no combate à corrupção. O governo por sua vez tinha
pouca entrada em veículos para voz de defesa, sendo o ‘Última Hora’ seu expoente
neste processo.
Este estudo nos possibilitou compreender como a corrupção pode ser utilizada
como moeda na pressão do jogo político e como a sua utilização pode interferir nas
decisões políticas do país. Isso só pode ser possível porque gradativamente foi
sendo construído um consenso de que a corrupção era nociva para o funcionamento
da administração pública. A corrupção nos anos 50 não está associada a somente
práticas individuais de agentes públicos, mas ao conjunto de ações consideradas
irregulares que comprometem a administração pública que visa o bem comum.
Neste aspecto e também pela mobilização das denúncias no jogo político através da
imprensa a corrupção ganha contornos de problema público no Brasil.
Referências Bibliográficas