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31/03/24, 11:05 Os golpes, 60 anos depois do golpe | Leia Isso

GAZETA DO POVO

Os golpes, 60 anos depois do


golpe
LEONARDO COUTINHO 30 MARÇO 2024 | 5min de leitura

Em 2021, a influenciadora Khing Hnin Wai fazia, diante de uma câmera,


suas habituais sessões que misturam ginástica e dança para publicar em
suas redes. De repente, ao fundo, aparecem blindados que passavam em
direção ao parlamento em Nay Pyi Taw, a capital de Mianmar. Enquanto
Khing se movimenta freneticamente, um golpe de Estado se dava em
suas costas sem que ela se desse conta. O vídeo, que obviamente
viralizou, reforçou a percepção geral de golpes clássicos. Aqueles em que
militares montados sobre tanques avançam sobre o poder civil,
tomando-o de assalto.

Não faz muito tempo, a América Latina se transformou em um terreno


fértil para golpes como aquele transmitido acidentalmente por Khing. De
tempos em tempos, país por país, aparecia um novo evento que levava à
derrubada de presidentes, que eram substituídos por militares.

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Em 1964, há exatos 60 anos, os militares chegaram ao poder por uma via


bem sui generis. Eles não tomaram o poder exatamente pela força, mas,
sim, com o amparo de parcela significativa da população e a participação
ativa do Congresso.

A América Latina, que foi palco de tantos golpes militares, criou


mecanismos de reação aos avanços das tropas sobre o Estado, mas
não aprendeu a lidar com aqueles provocados pela destruição
gradativa de suas instituições, muitas vezes por líderes eleitos

Mesmo assim, estavam lá os homens de farda e seus oficiais generais


dando as ordens no país. No Brasil, foram 21 anos assim. Nos vizinhos
Argentina, Chile e Uruguai, a conquista do poder envolveu mais força
bruta e os regimes se estenderam por menos tempo. Bolívia e Paraguai
também foram palcos de uma sucessão de golpes, quase nunca
lembrados, mas que sempre seguiam a cartilha do golpe clássico. Com
seus militares, a força e a ruptura.

Mas os tempos mudaram, e os golpes também.

Muita gente ainda insiste em acreditar que sem pelo menos umsoldado e
um jipe não se dá um golpe de Estado. Por essa razão muito simples,as
pessoas, no geral, só conseguem assimilar a ideia quando há o
ingredientemilitar envolvido.

Como resultado direto disso, é quase impossível para a maioria entender


os mecanismos sistemáticos de destruição da democracia que levam ao
mesmo objetivo dos golpes clássicos, mas sem chamar muito a atenção.

A América Latina, que foi palco de tantos golpes militares,criou


mecanismos de reação aos avanços das tropas sobre o Estado, mas
nãoaprendeu a lidar com aqueles provocados pela destruição gradativa
de suas instituições,muitas vezes por líderes eleitos.

Esta coluna já tratou por diversas vezes sobre o tema. Em 2019, o


boliviano Evo Morales renunciou à presidência e fugiu dizendo-se vítima

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de um golpe. Muita gente embarcou na versão dele, pois, afinal, como


está prescrito nos manuais, apareceram uns oficiais gordinhos que
fizeram um pronunciamento para que ele deixasse o poder.

Morales, na realidade, era o golpista da história. Por anos a fio, ele


mudou as regras em seu favor, implodiu a democracia e montou as
condições para sua perpetuação no poder sem que ninguém se desse
conta de que havia um golpe em curso na Bolívia.

Na Venezuela não é diferente. Hugo Chávez foi eleito na última eleição


livre do país, em 1998. Depois disso, ele governou o país até a sua morte
em 2013 e o deixou de herança para Maduro, que segue até hoje e não vai
largar o osso. Ao longo de 25 anos, Chávez sobreviveu a uma tentativa de
golpe militar, em 2002, e depois disso ele trabalhou para implodir as
instituições e tomar o controle do país.

Que tal pensar que o Brasil está sofrendo essa nova modalidade de
golpe, sob ações paulatinas de corrosão da democracia?

Isso não se deu de uma hora para outra, tampouco foi sutil. As pessoas
percebiam que havia uma perda gradual da democracia, mas insistiam
em negar que havia uma ditadura em construção. Maduro assumiu de
vez o perfil autocrático do regime, mas com um hibridismo diversionista
que serve para parte significativa do mundo ainda se enganar ou
reproduzir as mensagens e conceitos que são de interesse do regime. Um
deles é chamar de “eleição” o que não é eleição.

No Brasil, 60 anos depois do golpe de 1964, muita gente acredita que o


país esteve na iminência de repetir a história. Os depoimentos do núcleo
do governo indicam as tensões golpistas de Jair Bolsonaro na reta final
de seu governo. Cercado de aloprados, o presidente chegou a acreditar
que daria para empregar as Forças Armadas para restabelecer a ordem
democrática. Mas Bolsonaro não tinha os militares, não tinha a mídia,
não tinha a classe política, não tinha o empresariado. Não tinha nada.

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O que restou foi uma mini-insurreição popular.

Mas o fato de o Brasil ter flertado com o golpe – ainda queapenas no


desejo – é o sintoma de que a saúde democrática do país não está
nadabem. Que tal pensar que o Brasil está sofrendo essa nova
modalidade de golpe,sob ações paulatinas de corrosão da democracia? O
delírio golpista, que marcouo fim de 2022 e início de 2023, não seria
apenas um dos sintomas e não a causa?

Com um pouco de esforço, dá para ver sinais claros de que oprocesso de


corrosão institucional no Brasil criou as condições para que, sob
opretexto de salvar, se agravasse o problema.

Engana-se quem pensa que salvou a democracia no Brasil. Talvezela


nunca tenha estado ameaçada como se acreditou. Ou talvez ela esteja
maisameaçada do que nunca.

Feliz Páscoa!

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