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Introdução
Os conflitos territoriais agrários ainda integram uma triste realidade na vida dos
trabalhadores camponeses no Pará. Juntamente aos conflitos, vem a violência, que geralmente
ocorre por parte do latifundiário apoiado por suas milícias particulares e quase sempre
permanece na impunidade por parte do Estado omisso. Apesar de os casos mais intensos e
tumultuosos terem ocorrido durante, principalmente os anos de 1970 e 1980, eles não ficaram
resumidos a este período histórico. Aliás, o tempo não parece ter se passado, quando vemos
tantos crimes ocorrerem quase da mesma forma que outrora, englobando os mesmos agentes:
O trabalhador rural que tem suas terras cerceadas e seus direitos tolhidos; o latifundiário e
“suas” terras ociosas e muitas vezes griladas; o pistoleiro, “capanga” que faz todo o trabalho
sujo exterminando o problema do grande empresariado rural brasileiro, os trabalhadores
rurais. Existem, porém alguns aspectos diferenciados em relação ao passado, falo da “mídia
alternativa”, principalmente a internet, onde atualmente se pode acessar grande quantidade de
informações e é amplamente utilizada como principal meio de informação populacional. Ali,
onde notícias verdadeiras e falsas circulam livremente e onde o ódio e desinformação se
propagam de forma avassaladora, se divulgam “teorias” absurdas de que movimentos sociais
no campo seriam “terroristas” ou criminosos. Assim, até mesmo o conceito de direitos
humanos é deturpado, mal visto e falsamente apresentado como representativo de pessoas de
índole negativa e criminosa. É a partir de todo esse contexto de ignorância generalizada
amplamente compartilhada, que a elite agrária se respalda para continuar os intermináveis
ataques aos diversos grupos de trabalhadores rurais, camponeses e de movimentos sociais no
campo.
Desde fins da década de 60, a Amazônia vem sendo objeto de desenfreada espoliação e de
intensa devastação de seus recursos naturais. Suas terras são griladas ou cedidas a
poderosos consórcios, suas riquezas passam para as mãos dos poderosos trustes
estrangeiros. No norte do Pará, Daniel Ludwig, multimilionário norte americano, apossou-
se de 1,5 milhão de hectares de terra e de reservas minerais. No sul do Pará instalaram-se
diversos grupos financeiros ocupando vasta área, entre os quais Sul América, Atlântica,
Boa Vista, Peixoto de Castro, Bradesco, Volkswagen, Kings Hang e John Davis. A United
Steel Corp. tomou conta das fabulosas jazidas de ferro e manganês da Serra dos Carajás,
em Tucuruí constrói-se gigantesca usina hidrelétrica (...). Enquanto isso, camponeses são
escorraçados e os patriotas perseguidos.2
O presente artigo tem como principal objetivo, refletir sobre questões, tais como: os
conflitos por território, violência no campo, reforma agrária e a luta pelos Direitos Humanos
no estado do Pará. Para isso, correlacionarei alguns aspectos mencionados em minha
dissertação (ainda em construção) de título “A Sociedade Paraense de Direitos Humanos e os
conflitos agrários no Pará”.
1
MESQUITA, Thiago Broni. “Uma estrada revela o mundo”: O SNI e os conflitos pela posse da terra no
Pará. Tese de Doutorado apresentada ao programa de pós-graduação em História Social da Universidade
Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, 2018.
2
“A gloriosa jornada de luta”. Publicado no Jornal A classe Operária, n° 109, em 1976
3
Entrevista feita em 09/02/2022 com a professora doutora Leila Mourão, ex-integrante da SDDH.
Conflitos no campo paraense
4
Fonte: https://conexaoplaneta.com.br/blog/familia-de-ambientalistas-e-assassinada-no-para-pai-mae-e-filha-
tinham-projeto-de-soltura-de-quelonios-no-rio-xingu.
Surpreendente que o período que vai da metade dos anos 50 até o final dos
anos 70 tenha sido a era clássica da tortura ocidental, alcançado seu pico na
primeira metade dos anos 70, quando floresceu simultaneamente na Europa
mediterrânea, em diversos países da América Latina, com antecedentes até
então irrepreensíveis – Chile e Uruguai são exemplos claros – na África do
Sul e até na Irlanda do Norte, embora sem a aplicação de choque elétrico
nos órgãos genitais. (HOBSBAWN, 1998, p. 271)
Em oposição aos inúmeros incidentes envolvendo torturas, assassinatos, perseguições
e prisões injustificadas, ocorreu no Pará, em 1977, um aglutinamento de diversos grupos
sociais como intelectuais, trabalhadores urbanos e rurais, donas de casa, professores, alunos,
etc. com o objetivo de fundar a primeira entidade independente de direitos humanos no
Brasil. Determinados a resistir contra tantas violações dos direitos humanos cometidas
principalmente pelo Estado ditatorial ou “amparada” por ele, a SDDH – Sociedade Paraense
de Direitos Humanos, surge devido a um conflito agrário no sudeste do Pará onde o
proprietário da fazenda foi assassinado por posseiros em um confronto por acesso a água de
um riacho que ficava no interior de suas propriedades. Este foi um período histórico
fortemente marcado por conflitos, mortes e perseguições a lideranças sindicais e religiosas no
campo paraense.
Com a tomada do poder pelo Governo Militar, a violação destes direitos ficou cada
vez mais recorrente e normalizada por todos, até mesmo por grande parte da população e dos
meios de comunicação. De acordo com Norberto Bobbio, citado por Samantha Quadrat:
Em 1975, foi fundada a Comissão Pastoral da Terra - CPT, que foi e ainda é uma das
maiores organizações nacionais de amparo aos trabalhadores rurais e que se opõe arduamente
à permanência da grande propriedade e ainda denunciava o processo violento de expropriação
e exploração dessas populações (RICCI, 1999). Dela e de outros movimentos regionais, foi
gestado o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, tendo sua criação efetiva no ano
de 1984.
Como dito no início deste artigo, um dos aspectos abordados em minha pesquisa para
a dissertação de mestrado foi a fundação da Sociedade Paraense de Direitos Humanos. Esta,
surgiu dentro do contexto ditatorial brasileiro (mais precisamente em 1977) e representava
um enfrentamento direto ao autoritarismo do Governo Militar, principalmente no que
concerne questões de falta de moradia, carestia e ao apoio aos trabalhadores rurais e urbanos.
De maneira geral, apresentava características que tinham compatibilidade com a esquerda
política e os grupos que a compunham eram bastante heterogêneos, pois as pautas levantadas
para reivindicações eram diversas, porém com o mesmo intuito. Alcançar, de maneira geral,
justiça, liberdade, igualdade, direito à moradia, entre outros fatores relacionados ao mínimo
necessário para se ter uma vida digna.
A SDDH, foi formalizada, após seus componentes virem esta necessidade, pois
objetivavam auxiliar judicialmente oito posseiros acusados de assassinar o dono de uma
enorme propriedade de terra na região de Paragominas. Tratava-se da Companhia
Agropastoril Água Azul, a capaz. O proprietário, John Davis, veio para o Brasil em uma
missão organizada pela Igreja Presbiteriana e tinha como principal objetivo criar gados e
fazer com que eles se reproduzissem. Para isso, contou com o investimento da SUDAM, já
que neste momento histórico, o governo militar realizou uma série de investimentos para
atrair a ocupação estrangeira no Brasil.6
Porém, assim como muitos proprietários de terra, John Davis, se fez valer da prática
da grilagem para ampliar ainda mais seu território, além de contratar milicias particulares e
pistoleiros, também como muitos latifundiários faziam. A região tomada pela companhia era
extremamente tumultuosa, seja por conflitos envolvendo posseiros, seja grupos indígenas.
Houve, inclusive, denúncias de que Davis realizou um processo de esterilização em massa de
mulheres camponesas de forma compulsória (MESQUITA, 2018). Outro aspecto que
chamava atenção, era a enorme quantidade de terras ociosas em sua propriedade e que eram
denunciadas de maneira recorrente. Tal quadro de desuso daquelas terras foram decorrentes
do fracasso do projeto de criação de gado, sendo utilizada como segunda alternativa, a
extração de madeira de lei que era encontrada em grande quantidade nestas regiões do Pará.
Eram também denunciadas, as constantes invasões a pequenas propriedades e expulsões de
seus moradores pelos pistoleiros a mando do proprietário da fazenda capaz. Diante de todos
esses conflitos envolvendo território, é valido ressaltar que a fronteira disputada não envolve
somente questões geográficas, mas também culturais, sociais e antropológicas, como José de
Souza Martins, esclarece em Fronteira:
6
Fonte: Jornal O Estado de São Paulo, dezembro de 1978.
Fronteira de modo algum, se reduz e se resume à fronteira geográfica. Ela é
fronteira de muitas diferentes coisas: fronteira da civilização (demarcada
pela barbárie que nela se oculta), fronteira espacial, fronteira de culturas e
visões de mundo, fronteira de etnias, fronteira da história e da historicidade
do homem. E, sobretudo, fronteira do humano. Nesse sentido, a fronteira
tem um caráter litúrgico sacrificial. (MARTINS, 2009).
Em 1975, foi construída a rodovia PA70, que tinha como objetivo unir Belém a
Marabá, facilitando assim o comércio de castanhas, e atraindo para seu entorno uma enorme
quantidade de trabalhadores rurais vindos de diversas regiões do país em busca de
oportunidade de trabalho e moradia. Ao chegarem nestas regiões foram “acolhidos” por
lideranças rurais sindicais e religiosas que, por sua vez, incentivavam a ocupação das terras
em desuso por estes trabalhadores, o que causou ainda mais tumulto nas terras de Davis, já
que a rodovia atravessava parte do território da capaz. O ápice do conflito se deu, quando
Davis ordenou que seus empregados cercassem a única fonte de água da região, um rio que
ficava localizado em suas propriedades. Revoltados, mais de 30 posseiros derrubaram a cerca
de os impedia de ter acesso a água, o que gerou um confronto direto e armado com Davis e
seus filhos e resultou no assassinato dos três no dia 4 de julho de 1976 (OLIVEIRA, 2018).
O ocorrido coincidiu com o bicentenário da independência dos Estados Unidos, e por
isso, o padre Giuseppe da prelazia de Bragança, que apoiava este grupo de posseiros, foi
enquadrado na Lei de Segurança Nacional e expulso do Brasil, sendo obrigado a retornar para
a Itália. Quanto aos 8 posseiros, foram presos, sem direito a defesa e mantidos sem
comunicação com suas famílias (PEREIRA, 2013).
É nesse momento que pessoas como Humberto Cunha, Paulo Fonteles, Isabel Veiga e
tantos outros, se articulam para auxiliar estes camponeses. Contando com a defesa dos
advogados Ruy Barata e Gabriel Pimenta, conseguem a libertação dos posseiros e fundam
oficialmente a Sociedade Paraense de Direitos Humanos. Esta foi a primeira de muitas
denúncias e articulações contra o sistema ditatorial, feitas também e inclusive pelo jornal
Resistência fundado pela própria sociedade.
Em 19 de abril de 1986, foi realizado o Tribunal da Terra pelo Movimento Nacional
7
dos Direitos Humanos no Palácio da Justiça para julgar os crimes praticados no campo
contra lavradores e sindicalistas mortos e expulsos. O tribunal foi simbólico, ou seja, um júri
simulado, e teve como réus o latifúndio, o Estado e as multinacionais e teve por principal
objetivo fazer uma campanha contra a violência no campo que até aquele ano já registrava
226 mortes.
7
Jornal Resistência, 12 de abril de 1986.
A defesa foi feita pelo advogado Egídio Salles Filho e a acusação pelos advogados
José Carlos Castro e Luís Eduardo Greenhalg. Um conselho de sentença formado por oito
pessoas, compôs as vozes do Juri. A então presidente da SDDH, Isa Cunha e o vice
presidente da CUT, Avelino Ganzer, explicaram ao jornal Resistência, a importância de
realizar em Belém, o tribunal da terra. Para eles, o evento tinha por objetivo principal levantar
uma discussão sobre a violência e a impunidade, fatores que protegiam os criminosos e que
incentivavam a ocorrência de novos crimes. Entre os casos citados no tribunal, estavam os da
chacina da Fazendas Princesa e Ubá, a morte do gatilheiro Quintino Lira e o assassinato da
irmã Adelaide. O presidente do Tribunal foi o padre Ricardo Rezende, que já trabalhava no
campo a mais de 10 anos com questões relacionadas a violência agrária.
O advogado da cúria de São Paulo, Luís Eduardo Grenhalgh, revelou que conflitos no
campo aconteciam no país inteiro, pois é um “reflexo da estrutura da sociedade brasileira.
Cada dia aumenta a falta de justiça, os lavradores estão sem esperança na máquina do Estado,
que só move seus aparelhos para garantir os interesses dos poderosos.” Juntamente a
Grenhalgh, estava também o advogado Edígio Salles Filho, “o meu objetivo é compor este
ato simulado, que na verdade é um ato de denúncia contra estes réus, estou prestando minha
colaboração”. Todos os casos expostos e julgados no tribunal, chocam por sua extrema
violência e crueldade.
8
A província do Pará – Tribunal ouve trabalhadores a alerta contra violência. 20/04/1986
Considerações Finais
Entretanto, apesar de toda luta e resistência por parte dos movimentos sociais, a
impunidade ainda prevalece diante de tantos crimes ocorridos no campo. Existem ainda
queixas que relatam propositais omissões por parte da polícia, que não fazia registros de
ocorrências alegando que as máquinas de escrever estariam quebradas, que papeis haviam
9
Entrevista com Marga Rothe no VII Encontro Nacional de Direitos Humanos ocorridos em Petrópolis, Rio de
Janeiro. 1992
acabado, atenuando ou distorcendo os relatos dos depoentes e até mesmo usando palavravas
pejorativas como “invasores” para referir-se aos camponeses e posseiros (PEREIRA, 2015).
Ainda assim a luta dos movimentos sociais por justiça resiste, a informação e a
divulgação de relatos verdadeiros e as denúncias devem continuar e a despeito de tantos
dados, tantas histórias destruídas, tanta vida ceifada, há ainda a esperança de que um dia a luz
da justiça se faça presente no campo paraense, assim como foi proferido no Tribunal da
Terra:
Bibliografia