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CENAS DA RESISTÊNCIA: EM CÂMERA LENTA DE RENATO TAPAJÓS


SOB A CENSURA DA DITADURA CIVIL-MILITAR

Por Kauê Vinícius de A. Silva1

Sobre Renato Tapajós e a escrita de Em Câmera Lenta

Natural de Belém do Pará, Renato Tapajós é um escritor e cineasta brasileiro.


Trabalhou como jornalista, com cinema e participou do grupo clandestino maoísta Ala
Vermelha, na resistência armada contra a ditadura civil-militar de 1964. Por este motivo,
entre 1969 e 1974, Tapajós esteve preso no presídio Tiradentes, – hoje demolido –, na
cidade de São Paulo. Foi neste período de cárcere que escreveu seu primeiro romance Em
câmera lenta (1973). Naquele contexto, a repressão política promovida pelo regime
militar, fazia-se escancarada por meio da aplicação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), de
1968: perseguições, exílios e suspensão de direitos políticos, prisões arbitrárias,
desaparecimentos, torturas dentre outras abusivas ações e mecanismos impostas pelos
militares.

A escrita de Em câmera lenta se deu por meio de um intenso trabalho clandestino:


após ser escrito em folhas comuns, Tapajós copiava seu próprio texto em pequenas letras,
em papéis de seda, impermeabilizadas com alumínio e fita adesiva e enroladas até ficar
do tamanho de uma pílula. Essas pequenas cópias eram levadas para fora do presídio
quando seus pais visitavam-no, levando-os sob a língua e, posteriormente, com a ajuda
de uma lupa, sua mãe redigia o texto na máquina de escrever enquanto seu pai o lia em

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Possui graduação e pós-graduação em História (UNIBAN/PUC-SP) e graduação em
Filosofia (USJT). Atualmente é professor da Rede Municipal de Educação em São Paulo
e em escola particular da mesma cidade. Dedica-se à pesquisas na área da história da
cultura, teoria da história, história da filosofia, filosofia contemporânea, estética e
filosofia política. Contato: kauevini@hotmail.com
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seguida. Como nos aponta Cury e Pereira (2018), em 1974, quando Tapajós é liberado da
prisão, seu romance já está totalmente datilografado, pronto para ser publicado.2

Havia, como comenta Tapajós em entrevista, um interesse em escrever algo


pessoal sobre o contexto político e o movimento armado de resistência. Um olhar seu
diante dos acontecimentos históricos. Porém, não havia uma ideia sobre a forma e o
gênero do qual iria ser escrito tal olhar, de modo que foi no próprio processo de escrita
que a forma foi-se fazendo. Há nesse processo, como diz Tapajós, um “jogo quase
espontâneo daquilo que estava vivendo, naquele momento”, o que expressa uma
necessidade à flor da pele de externalizar suas angústias, anseios e incorporações daqueles
processos vivenciados. É importante resgatar que a escrita de Em câmera lenta deu-se
após Renato Tapajós saber da morte, na prisão, da ativista política Aurora Maria
Nascimento Furtado, após ser torturada pelos agentes da ditadura.

Portanto, há um longo caminho entre a escrita e a primeira publicação, pela editora


Alfa-Ômega, em 1977. Num contexto como aquele, de repressão política e social, muitas
editoras não acolheram os originais de Tapajós, por medo do que as forças militares
poderiam fazer caso publicassem o romance. A editora Alfa-Ômega, fundada em 1973
por Fernando e Claudete Mangarielo, lançou-se como um projeto de publicações de obras
que tratavam da realidade brasileira e do pensamento crítico. Mesmo durante os anos de
chumbo, a editora buscou difundir obras de pensadores de esquerda, de modo que acolheu
o texto de Renato Tapajós publicando no ano já citado. A primeira e a segunda edição
(1977 e 1979) levava na capa branca, além do nome do autor o nome do romance escrito
em vermelho com letras garrafais, um desenho de uma boca em três atos, onde na terceira
imagem escorre um fio de sangue da boca fechada (imagem 1).

Contudo, em 27 de julho de 1977, ao sair do prédio da editora Abril, onde


trabalhava, Renato Tapajós é preso pela segunda vez por agentes do Deops (Polícia Civil
do Departamento de Ordem Política e Social), dois meses depois do lançamento de seu
romance, “pois o livro, segundo ofício do delegado Sérgio Fernando P. Fleury, violava a

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Ver CURY, Maria Zilda Ferreira. PEREIRA, Rogério Silva. Em câmera lenta, de
Renato Tapajós, 40 anos: autocrítica pública e sobrevivência. In: estudos de literatura
brasileira contemporânea, n. 54, p. 435-454, maio/ago. 2018.
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Lei de Segurança Nacional por ser “uma apologia do terrorismo, da subversão e da


guerrilha em todos os seus aspectos”” (REIMÃO, 2019, p. 93).

Segundo o próprio autor, houve um grande interesse pelo romance na época de


sua publicação, de modo que quando os agentes da censura acionaram a retirada da obra
de circulação nas livrarias, muitos exemplares já haviam sido adquiridos. No entanto, de
acordo com Cury e Pereira, após as duas primeiras edições o livro tem sido pouco lido
pelo público geral, se comparado com outras obras que também tratam desse contexto,
como O que é isso companheiro, de Fernando Gabeira e Os carbonários, de Alfredo
Sirkis. Mesmo tendo pouca adesão para o público geral, Em câmera lenta tem uma
“notável fortuna crítica”, sobretudo nas universidades. É um livro muito analisado em
artigos e dissertações acadêmicas.3

Figura 1: Capa da 1ª e 2ª edição de Em câmera lenta.

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CURY, Maria Zilda Ferreira. PEREIRA, Rogério Silva. 2018.
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A estrutura do romance: imagens recortadas como cenas fílmicas

Em câmera lenta é o primeiro livro publicado de memórias de militantes políticos


no contexto do regime militar, seguido dos já citados O que é isto companheiro, de
Fernando Gabeira e Os carbonários, de Alfredo Sirkis. Resgata a memória de Renato
Tapajós em sua militância na resistência armada contra a ditadura. Citando Mário
Augusto Medeiros da Silva, Em câmera lenta é o “primeiro livro de memórias, um
romance, fruto de um militante ativo do período de desenvolvimento e fim das ações
armadas e da guerrilha urbana” (SILVA in: REIMÃO. p. 95, 2019). Porém, não trata-se
de um mero texto autobiográfico em que suas memórias de jovem combatente fazem-se
de modo linear e numa clara proposta documental, em linguagem-depoimento. O texto
de Tapajós possui uma estrutura visual fortemente acentuada, como cenas recortadas e
fragmentadas, como de um longa-metragem. Ao ler sua obra, somos levados à
constituição de imagens que, num fluxo complexo, reconstrói a memória em diálogo com
um constructo ficcional cinematográfico, por assim dizer, permeando os processos
subjetivos, políticos e históricos sem diminuí-los, sem deixá-los em um segundo plano.
Como diz Antônio Cândido em seu parecer sobre a obra:

“Em câmera lenta não é um retrato documentário, contínuo e fiel da


realidade. É escrito conforme uma técnica requintada de fragmentação do real,
mistura de planos temporais, visão rotativa, tudo ordenado em torno da ação que
se completa aos poucos e dá nome ao livro. E não apresenta um significado, mas
uma série deles: tantos quantos são as faces da realidade e os correspondentes
ângulos de visão” (CÂNDIDO In: TAPAJÓS, p. 177, 2022)

Essa proposta literária, em produzir um romance em diferentes camadas de


acontecimentos, de imagens e de temporalidades, nos projeta para uma construção
imagética e memorial dialética. Seu leitmotiv, a resistência armada em ações e perdas,
faz-se tanto como espelho da memória e como fleches poéticos que dão forma às cenas.

Penso que a produção do romance, sua proposta enquanto resgate da memória


política, na forma multifacetada em que se apresenta e o contexto histórico do qual estava
inserido, vai ao encontro com que Walter Benjamin discorre sobre o autor como produtor.
Neste texto, Benjamin defende a concepção de que o escritor, o artista, o intelectual que
esteja propenso à escrever visando dinamizar e compartilhar de sua produção literária
com a classe trabalhadora, deve, sobretudo, pertencer às experiências desta classe. Dito
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de outro modo, deve deixar a ideia e o conforto burguês, de uma postura quase kantiana,
para exercer uma escrita e produção pedagógica, nos termos brechtianos, “integrando a
sociedade”, deixando de fornecer os “aparelhos de produção” para atender a tarefa da
“adaptação desses aparelhos” para fins pedagogicamente revolucionários. Penso assim
que Em câmera lenta politiza o gênero romance, ao trazer à tona, nos anos de chumbo, a
memória em cenas escritas da resistência armada, de dentro da cela para as casas dos
brasileiros.

Politizar a (em defesa da) memória

É mister a ideia de que o poder político da classe dirigente procurou, e procura, se


não apagar por completo, ao menos enfraquecer e domesticar a memória política da
população. Isso se faz por longa data e de modo recorrente, por meio dos aparelhos
ideológicos da classe dominante. A memória é campo de disputa, e sendo campo de
disputa, é política. Exemplo disso são as terminologias daqueles que defenderam, e ainda
defendem, o golpe de 1964 dizendo ser uma “contrarrevolução” ou mesmo “revolução”.
Torturadores tornam-se “heróis”, dentre outros mecanismos de distorção narrativa do
bloco histórico em que vivíamos.

Ao escrever suas miúdas letras em folhas de seda, visando ganhar dimensão


concreta para além da prisão, o romance de Renato Tapajós, projetou como memória,
constructo e narrativa, as agruras e as mortes daqueles que opuseram-se como resistência
contra o regime, sem romantismos e mistificações. Lê-lo fez-me, não abarcar apenas as
experiências dos guerrilheiros, em suas mais profundas condições e contradições
históricas, mas, sobretudo, de reforçar o papel da arte, e da literatura em especial, como
instrumento pedagógico de construção social de memória política.

A construção de uma identidade nacional hegemônica, por meio dos discursos,


narrativas e construções míticas das artes e da literatura tem grande relevância nesse
processo da fabricação da memória política. Do movimento arcádico do século XVIII,
passando pelos românticos do século XIX, pelos modernistas, tropicalistas e pela arte
engajada dos anos 1960 e 1970, sem citar outros movimentos e perspectivas, mais à
esquerda ou à direita, vemos a importância das obras de arte e da literatura como difusores
de ideários, ideologias e de processos históricos. Assim como Platão defendia uma
República em que os poetas estariam do portão para fora da cidade, num Brasil de
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chumbo, pisado por brilhantes coturnos, os autores-produtores, por assim dizer, também
não foram bem vistos e quistos.

Por fim, penso que os jovens que queiram se apropriar da produção cultural
daquela época podem ir ao encontro com esse romance, pois possibilita inúmeros
movimentos interpretativos e estéticos. Um importante marco da literatura nacional ainda
pouco descoberto e explorado fora do círculo especializado.

Referências:

BENJAMIN, Walter. O autor como produtor – Conferência proferida no Instituto para


o Estudo do Fascismo (Paris), em 27 de abril de 1934. In: Estética e sociologia da arte.
Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

CURY, Maria Zilda Ferreira. PEREIRA, Rogério Silva. Em câmera lenta, de Renato
Tapajós, 40 anos: autocrítica pública e sobrevivência. In: estudos de literatura
brasileira contemporânea, n. 54, p. 435-454, maio/ago. 2018.

DALCASTAGNÈ, Regina. O espaço da dor – O regime de 64 no romance brasileiro.


Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996.

REIMÃO, Sandra. Repressão e resistência – Censura a livros na ditadura militar. São


Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Fapesp, 2019.

TAPAJÓS, Renato. Em câmera lenta. São Paulo: Carambaia, 2022.

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