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MEMÓRIAS E NARRATIVAS SOBRE A LUTA ARMADA –

“LAMARCA: O CAPITÃO DA GUERRILHA (1980)”


Edson Silva
Doutorando em Memória: Linguagem e Sociedade
(PPGMLS/UESB).
E-mail: edisomsilva@gmail.com

José Alves Dias


Professor titular no Departamento de História (DH) e
professor permanente do Programa de Pós-Graduação em
Memória: Linguagem e Sociedade (PPGMLS), da
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).
E-mail: jose.dias@uesb.edu.br
Introdução

Em 1980, foi publicado pela editora Global, “Lamarca: o capitão da guerrilha”,


de Emiliano José e Oldack Miranda. Na época da publicação, Emiliano José, ex-preso
político e militante da organização de esquerda Ação Popular (AP), trabalhava como
repórter em Salvador, pelo jornal “O Estado de São Paulo”. Oldack Miranda, por sua vez,
também teve passagem pela Ação Popular (AP), era ex-preso político, trabalhava como
jornalista, exercendo o ofício profissional no jornal “A Tarde”, como editor de economia.
A editora Global, responsável pela edição do livro, foi fundada em São Paulo, em 1973,
por Luiz Alves. No final da década de 1970, destacou-se no mercado editorial brasileiro
publicando obras clássicas do socialismo. Notadamente, apresentava-se como uma
editora de oposição política à ditadura militar (MAUÉS, 2009, p.125-128).
A partir do ingresso do editor e militante socialista, de origem moçambicana,
José Carlos Venâncio, a editora adotou uma linha editorial ajustada com o pensamento
político dos partidos e organizações de esquerda no Brasil. Neste segundo momento, a
Global passou a publicar os autores brasileiros que faziam oposição à ditadura militar.
Nesta fase de política editorial, foi lançada a coleção Passado&Presente, voltada para as
questões da história recente do Brasil. Dentre as publicações da coleção, figuraram os
livros: “Dossiê Herzog: Prisão, Tortura e Morte no Brasil”, de Fernando Pacheco Jordão;
“Guerra de Guerrilhas no Brasil”, de Fernando Portela e “Tortura: a história da repressão
político no Brasil”, de Antônio Carlos Fon (MAUÉS, 2009, p.125-128). Foi a partir desta
coleção que ocorreu o lançamento da obra “Lamarca: o capitão da guerrilha”, de Emiliano
José e Oldack Miranda.
O livro, produzido a quatro mãos, apresentava uma narrativa biográfica do
guerrilheiro e ex-capitão do exército Carlos Lamarca, figura que ganhou relevo na
resistência armada à ditadura militar, ao lado de Carlos Marighela e Joaquim Câmera
Ferreira, tendo participado de duas organizações da luta armada: a Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR) e o Movimento Revolucionária 8 de Outubro (MR-8). Levando
em consideração as sucessivas edições, a partir do momento da primeira publicação, em
agosto de 1980, e a quinta edição de janeiro de 1981, observa-se que a obra teve uma
ampla circulação no mercado editorial e abrangência de um público leitor.
Concentrando-se no objetivo específico do presente texto, que visa abordar o
livro “Lamarca: o capitão da guerrilha” (1980), de Emiliano José e Oldack Miranda, e sua
narrativa memorialística sobre a experiência política da luta armada no Brasil,
consideramos que a produção da citada obra envolveu um esforço coletivo de trabalho
com a memória, um movimento de rememoração, elaborado por meio de entrevistas com
ex-militantes sobreviventes, depoimentos de agentes da repressão, pesquisa documental,
tais como, cartas e diários, e levantamento de informações na imprensa alternativa.
Conforme, apontaram os autores, em nota de introdução ao opúsculo: “o livro foi, assim,
fruto de um esforço coletivo” (JOSÉ; MIRANDA, 1980, p.16).
No contexto da publicação do livro, a sociedade brasileira convivia ainda com
os militares no poder, estando a frente do Executivo, o general João Figueiredo (1979-
1985). Todavia, experimentava-se um ambiente político de gradativa distensão da
ditadura, com a designada “abertura política”, iniciada nos anos precedentes pelo general
Ernesto Geisel, com algumas medidas institucionais de liberalização. O Ato Institucional
N° 5 (AI-5), depois de 10 anos de vigência, havia sido revogado e, finalmente, em 1978,
muitos perseguidos políticos e exilados haviam retornado ao país, com a aprovação da
controversa Lei de Anistia, em 1979. A censura prévia às publicações, também, havia
sido suspensa, possibilitando um afrouxamento das restrições oficiais do Estado, sob a
égide dos militares, a atividade de imprensa e relativa liberdade de expressão.
Apesar dos ares de distensão da ditadura, o final da década de 1970 e início de
1980, foi marcado por atos de terrorismo praticados por parte de agentes do Estado, no
caso, cometidos por militares identificados com o grupo da “linha dura”, relutantes a
abertura política proposta e em curso. Deste modo, uma série de atentados foram
praticados contra pessoas ligadas a oposição, lugares e instituições. No ano de 1980,
foram registrados, no Rio de Janeiro, um atentado à bomba contra a Associação Brasileira
de Imprensa (ABI), sendo uma funcionária vitimada e outros realizados no jornal
“Tribuna Operária” e no edifício da Câmara Municipal, ferindo servidores (SILVA, 2003,
p.270).
Somando-se a essas ações, bancas de jornais e revistas, no mesmo município,
foram incendiadas, como forma de intimidar e impedir à venda de publicações da
oposição. Por sua vez, lideranças de oposição, como o militante e político trabalhista
Leonel Brizola e o advogado Sobral Pinto, também foram alvos de ataques à bomba. O
caso mais emblemático e de repercussão, desta série de atentados, ocorreu em 1981,
também no Rio de Janeiro, no espaço conhecido como Riocentro, onde acontecia um
evento de comemoração ao dia do trabalhador, onde foram colocadas bombas no
ambiente. Contudo, o atentado foi frustrado devido a explosão de uma das bombas no
carro dos militares que planejaram o ataque (SILVA, 2003, p.270-271).
Foi, portanto, nesta conjuntura política, que chegou ao mercado editorial
brasileiro a obra “Lamarca: o capitão da guerrilha”, tratando de um personagem político
envolvido com os acontecimentos, na época, recentes, da luta armada sob a forma da
guerra de guerrilha. Trava-se de uma estratégia de embate e enfrentamento a ditadura
militar e de luta por transformações sociais, econômicos e políticas na sociedade
brasileira. Uma nota dos autores, na introdução da obra, aponta que a ideia de narrar a
história dos eventos relativos o assassinato do guerrilheiro Carlos Lamarca, ocorrido no
sertão da Bahia, ao lado de José Campos Barreto (Zequinha), pelo aparato de repressão
do Estado, surgiu de conversa com um ex-militante e sobrevivente, Olderico Campos
Barreto. Segundo o texto da nota:
Era preciso escrever tudo aquilo que revelava entre quatro paredes, na
cadeia e depois, sempre aos sussurros. Volta e meia o projeto ressurgia
e ia sendo adiado pela certeza de que se publicássemos a verdade, nos
meados de 70, viriam represálias (JOSÉ; MIRANDA, 1980, p.15).

Como observou, Maurice Halbwachs (2003), sobre o papel do testemunho na


reconstrução da memória:
É preciso que estes reconstrução funcione a partir de dados ou de
noções comuns que estejam em nosso espírito e também no dos outros,
por que elas estão sempre passando destes para aquele e vice-versa, o
que será possível somente se tiverem feito parte e continuarem fazendo
parte de uma mesma sociedade, de um mesmo grupo. Somente assim
podemos compreender que uma lembrança seja ao mesmo tempo
reconhecida e reconstruída (HALBWACHS, 2003, p.39).

Em anos anteriores não se podia escrever e publicar sobre o assunto, ainda que
muitos o tenham feito, pois a censura oficial e a repressão das forças de segurança
estavam vigilantes. Vale lembrar, que havia uma interdição oficial de 1971, expressa
depois da execução de Lamarca e Zequinha, para deter qualquer publicação, tratando da
vida ou dos episódios sobre a morte do guerrilheiro e ex-capitão do exército. A
determinação oficial da censura, fora manifestada, pelo presidente Garrastazu Médici, em
22 de setembro de 1971, nestes termos:
Por determinação do presidente da República, qualquer publicação
sobre Carlos Lamarca fica encerrada a partir da presente, em todo o
país. Esclareço que qualquer referência favorecerá a criação de mito ou
deturpação, propiciando imagem de mártir que prejudicará interesses
da segurança nacional (GASPARI, 2002, apud, MARCONI,1971).

Desta forma, observa-se, que publicação da obra, articulada a partir de um


esforço coletivo de memória, era uma forma de manifestação pública, um
pronunciamento político de embate com os militares no poder, no sentido de denunciar e
elucidar os crimes e o uso sistemático da violência contra os opositores nos anos
anteriores da ditadura militar. Por outro lado, buscava-se constituir outra narrativa sobre
os personagens e os acontecimentos antes interditos e silenciados – um movimento de
reinvindicação pelo dever de memória e de construção de uma contramemória, isto é, uma
memória a contrapelo, nos termos da teoria da história de Walter Benjamin. A escrita
historiográfica de inspiração benjaminiana deve procurar evidenciar aquilo que foi
silenciado, esquecido ou recalcado pela memória oficial ou dos vencedores (BENJAMIN,
1987, p.223-232).
Como argumentou Paul Ricoeur, em “A memória, a história, o esquecimento”
(2007), ao discutir o conceito de memória impedida, o trabalho de memória e a justiça, a
compreensão do dever de memória não se restringe apenas a conservação dos rastros do
passado, porém, articula-se com o sentimento de dever para com os outros, aqueles que
nos antecederam; desdobrando, assim, na noção de dívida com as gerações passadas. De
tal modo, estabeleceu que a dívida com os nossos antecessores envolve uma predileção
moral e um compromisso ético-político, deve ser feita em reparação das vítimas
(RICOEUR, 2007, p.101-102).
A proposta de leitura, aqui, suscitada, constitui em evidenciar a produção, a
publicação do livro e do conteúdo narrativo, enquanto um esforço de rememoração, ou
seja, de memória, de luta contra o esquecimento, apresentando uma narrativa que, em
1980, revelava para a sociedade brasileira a perspectiva dos sobreviventes da luta armada,
denunciando a violência e a arbitrariedade do Estado, e reinvindicação da memória dos
mortos - vítimas da repressão da ditadura militar. Em síntese, um gesto político e ético de
salvaguarda da memória, revelação da violência de Estado e anseio de reparação, por
meio de uma construção de uma memória – a contrapelo dos relatos oficiais.

A denúncia da tortura

A entrevista realizada com Olderico Campos Barreto (transcrita como capítulo do


livro), sobrevivente e testemunha da chacina cometida pelo major Nilton Cerqueira, no
comando da ação que capturou Carlos Lamarca e José Campos Barreto (Zequinho). A
denominada Operação Pajuçara, ocorrida nas imediações dos municípios de Brotas de
Macaúbas, Oliveira dos Brejinhos, Ibotirama e Ipupiara, interior da Bahia, foi relevadora
das circunstâncias e dos métodos de atuação das forças policiais civis e militares, que
conformavam os órgãos de repressão, montados e instituídos pela ditadura.
O relato de Olderico Campos Barreto, aponta para o uso sistemático de tortura nos
interrogatórios:
Aí eu recebi vários pontapés, fui virado, chutado para lá e para cá, por
esse mesmo grupo que não aprovou a ideia, a resposta que eu dei.
Duas horas mais fiquei amarrado naquele mourão, o sol quente, e eu
ali, as feridas estavam cheias de terra, de estrume de animal. Minha
roupa que estava molhada de sangue endureceu com a areia, e eu
ficava ali, deitada, rolando de um lado para o outro, a pontapés.
Naquele dia foi um inferno. A manhã toda foi a mesma coisa. Eles
chegavam para mim e diziam: “Seu pai disse que você sabe”. Eu
respondia: Tragam ele para dizer isso na minha frente”. E pai lá ficou
com a fala da mesma forma: “Traga ele aqui pra dizer isso na minha
frente (JOSÉ; MIRANDA, 1981, p.21).

Em outro trecho do depoimento, rememorava o tratamento violento dos agentes


da repressão política:
28 de agosto. Me lembro desse dia. Eram cinco horas da tarde. Até essa
hora foi só tortura, pau, pontapé, pisar na mão quebrada. Eles reviraram
a casa, tudo que é mala, abrem tudo procurando coisas, e numa das
malas encontram uma fotografia de Zequinha, meu irmão, quando ele
serviu no Quartel de Quitaúna, em Osasco (JOSÉ; MIRANDA, 1981,
p. 25).

A narrativa, em primeira pessoa, até agora, ignorada para a sociedade e


circunscrita às pessoas mais próximas por ligações afetivas, laços de amizade ou de
família e silenciada para os demais, devido à censura sobre as publicações, por fim
ganhava espaço nas páginas do livro, em tom de denúncia da violência contra si e sua
família. Conforme assinalado, o pai de Olderico Campos Barreto, fora também torturado.
Em outro trecho da entrevista, apontava para violência à qual seu progenitor fora
submetido: “Pai, pegaram pai e caíram em cima dele, levaram para o barracão e só ouvia
os gritos [...]. Pai não estava muito disposto a soltar o que sabia, então o pau comeu o dia
inteiro” (JOSÉ; MIRANDA, 1981, p.21). Em outro momento da narrativa, acrescentava,
ainda, os castigos infligidos ao pai: “lembra que um dia dormiu pendurado, amarrado com
arame, e que um dia tinha sido espancado, torturado, massacrado” (JOSÉ; MIRANDA,
1981, p.27).
O aparato repressivo dos governos militares empregava a tortura entre os presos
políticos ou qualquer suspeito de militância política de maneira pensada, sistemática e
com técnicas específicas. A prática da tortura foi cogitada nas formulações da Doutrina
de Segurança Nacional (DSN), conjunto de conceitos desenvolvidos pós-Segunda Guerra
Mundial, contexto da guerra fria, na burocracia civil dos Estado Unidos e nas escolas
militares e ensinada nas instituições de formação de oficiais militares nos países da
América Latina. A Doutrina de Segurança Nacional, serviu de paradigma ideológico na
formação dos militares brasileiros, a partir da Escola Superior de Guerra, sendo
determinante na articulação do golpe de 1964, na construção de um Estado forte e
centralizador, na montagem dos órgãos de repressão política, vigilância e informação.
Como afirmou, Joseph Comblin, em reconhecido estudo sobre o assunto: “A tortura é a
regra do jogo” (COMBLIN, 1978, p.46).
Ao longo da obra, são relatadas diversas situações de prisões de militantes e o
uso corriqueiro da tortura durante os interrogatórios ocorridos durante a condução para
quartéis e delegacias ou menos dentro delas. A narrativa apresentada denuncia a tortura
como prática ordinária dos agentes do Estado, durante a experiência histórica da ditadura
militar brasileira, responsável por crimes contra os opositores, como prisões arbitrárias,
execuções e desaparecimentos forçados. Em outros termos, apresenta como uma memória
militante, que denunciou o uso sistemático da tortura como política de Estado dos
governos militares. Quanto a esse aspecto, devemos ressaltar, que trazer a esfera pública
narrativas de memória de sobreviventes da luta armada e vítimas de tortura, era um
movimento, ainda, incipiente, naquele contexto da década de 1980; ao tratar tão
abertamente do assunto, constituía-se, uma forma de enfretamento político com os
militares, que se encontravam ainda no poder.
No decurso da década 1980 foi desenvolvido o projeto “Brasil nunca mais”, uma
ampla pesquisa com os processos transitados no âmbito da Justiça Militar contra os presos
políticos, organizada por Dom Paulo Evaristo Arns e pelo reverendo Jaime Wright. Uma
parte deste, foi publicado e lançado em formatado de livro, pela editora Vozes, com a
primeira edição em datada de 1985, ano que findou o último governo militar. O livro
“Brasil nunca mais” (1985), tornou-se paradigmático ao expor o funcionamento do
sistema repressivo dos governos militares, apresentando a tortura como uma política de
Estado, com “objetivos, consequências, marcas nas vítimas, colaboração de médicos e
psiquiatras, variedade de técnicas utilizadas, estabelecimentos clandestinos e oficiais,
mortes e desaparecimentos” (MARTINS FILHO, 2002, p.187).

Carlos Lamarca e a guerrilha rural

Observa-se que a obra, “Lamarca: o capital da guerrilha”, organizou um conjunto


narrativas de memória, denunciando a repressão dos governos militares, com o uso de
tortura e o assassinato por motivações políticas. Relatos que foram reprimidos e impostos
ao silêncio, por meio da censura oficial e da repressão política ou mesmo pela
autocensura, contudo, partilhados entre os ex-presos políticos, militantes sobreviventes,
amigos e familiares de mortos e desaparecidos. Por outro lado, mobilizou uma memória
da luta armada, por meio de depoimentos, entrevistas, documentos das organizações, de
cartas e diários. Em entrevista de Carlos Lamarca, apresentada no livro, e na narrativa
construída pelos autores ao longo dos capítulos, destaca-se a importância da Revolução
Cubana, da estratégia da guerrilha rural e do foco guerrilheiro, como paradigma de ação
política, para a insurgência e conflagração da luta armada no Brasil.
A guerrilha, como forma de oposição à ditadura militar no Brasil, foi objeto de
discussão e dissenso entre as diversas organizações envolvidas com a luta armada de
resistência à ditadura. Os principais pontos de divergência eram: qual devia ser o campo
de ação das atividades, na área rural ou na cidade? Carlos Lamarca estava convencido da
eficácia da guerrilha rural e do foco guerrilheiro. O ex-militar e militante da VPR,
enxergava com desconfiança a alternativa de militância e ações nas cidades. A narrativa
do livro, aponta que:
O Capitão Lamarca não acreditava muito na esquerda brasileira,
especialmente a que dirigia os movimentos de estudantes, e vivia à
procura de uma alternativa que pudesse materializar o ideal de Che
Guevara; ir para o campo, deflagar a guerrilha e levar o povo ao poder.
(JOSÉ; MIRANDA, 1981, p.41).

Carlos Lamarca, antes de ingressar na luta armada, foi oficial lotado no


regimento de Quitaúna, em Osasco, interior de São Paulo. Entretanto, já apoiava as
organizações de esquerda, principalmente, a VPR. A citada organização havia sido criada
em 1967, com a reunião de dissidentes da POLOP (Política Operária) e do Movimento
Nacionalista Revolucionário (MNR); este último, foi constituído, por ex-militares
expurgados das Forças Armadas brasileiras, logo após o golpe de Estado de 1964.
Ele fora convencido da possibilidade de desenvolver o foco guerrilheiro, em uma
área rural, de maneira imediata, pelo o ex-sargento, Onofre Pinto, militante do MNR.
“Essa era a promessa de Onofre” (JOSÉ; MIRANDA, 1981, p.43). Crédulo na perspectiva
de criar a guerrilha rural, Lamarca planejou e executou uma fuga do quartel em que atuava
levando consigo armas e munições para iniciar as ações guerrilheiras. Todavia, na versão
dos autores: “ele só vai descobrir que a área rural para a implantação do foco guerrilheiro
não existia dias antes de sua saída do quartel” (JOSÉ; MIRANDA, 1981, p.44).
As memórias evocadas no livro em questão, nos permitem visualizar o interior
das organizações da luta armada, assinalando para conflitos e discordâncias entre os
militantes, especificamente para dissensos entre a VPR e a ALN; além de uma tensão,
entre as lideranças, respectivamente, Carlos Lamarca e Carlos Marighela, quanto a
materialização da guerrilha rural:
Marighela, entretanto, pensava diferente. Achava que a ALN não tinha
condições, ainda, de implantar um foco guerrilhas, e também tinha a
convicção de que nenhuma outra Organização podia fazê-lo, mesmo a
VPR. “Era uma temeridade”, dizia Marighela aos militantes” (JOSÉ;
MIRANDA, 1981, p.43).

Em documento da VPR, transcrito no livro, em que relatava a experiência de


combate do Vale do Ribeira com os militares das Forças Armadas, Lamarca, assim,
ponderou:
A guerrilha rural é tão viável quanto a urbana. Necessita de maior e
mais eficiente infraestrutura (com maior capacidade de duração já que
não pode ser mudada como se muda de aparelho na cidade) logística,
de inteligência e de base social. A guerrilha rural em diversos pontos
do país conflagrará o campo (JOSÉ; MIRANDA, 1981, p.88).

Os membros da VPR foram para o Vale do Ribeira com o objetivo de realizar


treinamento militar de preparo para a guerrilha. “Após o treinamento, o plano era enviar
os mais destacados para duas regiões do nordeste do Brasil, onde desencadeariam um
vasto movimento guerrilheiro” (JOSÉ; MIRANDA, 1981, p.69). Entretanto, segundo as
narrativas de memória de Emiliano José e Oldack Mirada, a prisão dos militantes
Massafumi Yoshinaga e Celso Lungaretti, da VPR, em São Paulo, submetidos a tortura,
levou a descoberta da área de treinamento da guerrilha e a ocupação do Vale do Ribeira
pelos militares das Forças Armadas e policiais da repressão política (JOSÉ; MIRANDA,
1981, p.69-70).
O livro, construído a partir depoimentos, cartas e documentos de protagonistas
da luta armada contra a ditadura militar, lançava luz sobre os fatos, as ações, as
perspectivas políticas e as divergências do interior dos grupos entre as lideranças das
organizações. Eram questões sobre as quais pouco se sabia na sociedade brasileira, nos
anos 1960 e 1970, devido à censura, que, algumas vezes, impedia publicações com
informações acerca da vida dos militantes. Segundo Beatriz Sarlo, a interdição ou
silenciamento sobre o passado, pode até constituir enquanto uma diligência e zelo, por
parte daqueles que ocupam o poder,

É possível não falar do passado. Uma família, um Estado, um governo


podem sustentar a proibição; mas só de modo aproximativo ou figurado
ele é eliminado, a não ser que se eliminem todos os sujeitos que o
carregam (seria esse o final enlouquecido que nem sequer a matança
nazista dos judeus conseguir ter) (SARLO, 2007, p.10).

Por parte dos militares, esboçava-se o esforço de fazer esquecer e silenciar.


Segundo essa perspectiva, a Lei da Anistia, aprovada em agosto de 1979, significou um
uma virada de página. Deste ponto de vista, a rememoração da repressão política da
conjuntura da ditadura militar, a denúncia da tortura, de assassinatos e desaparecimentos
forçados, representaria uma violação as disposições da citada lei. A referida legislação
devia fazer uma “tábua rasa” da história, instituindo um esquecimento das ações de
Terrorismo de Estado, dos crimes de tortura, dos desaparecimentos, dos assassinatos
políticos e das prisões ilegais.
Por outro lado, as narrativas do livro acionaram a memória dos torturados, dos
mortos, dos ex-presos políticos e da experiência da luta armada, o fazer lembrar para
relevar, reparar e não deixar esquecer, além de expressar uma contramemória, na
concepção discernida por Walter Benjamin nas suas teses sobre o conceito de história
(BENJAMIN, 1987, p.223-232; SELIGMANN-SILVA, 2003. p.387-413). A irrupção
das memórias na sociedade, na forma de livro, visibilizou a repressão, a tortura e os
assassinatos, apresentou os impasses das teorias revolucionárias dos partidos e
organizações envolvidas na luta armada. A rememoração aparecia como uma força
política, num processo de tomada da palavra dos sobreviventes, das famílias dos mortos
e desaparecidos, a reivindicação do direito à memória, ao avesso dos relatos oficiais.
Contudo, a importância da publicação não se restringiu apenas à recordação das lutas
passadas ou reinvindicação de uma memória a contrapelo (BENJAMIN, 1987, p.223-232;
SELIGMANN-SILVA, 2003. p.387-413).
Na conjuntura histórica de publicação do livro, da nomeada abertura política,
podemos afirmar, que a narrativa da obra agenciava um embate com os militares no
governo, ao dar conhecimento ao leitor dos crimes de tortura e dos assassinatos de
militantes. Por outro lado, ao trazer à tona personagens, considerados, então, pelos
governos militares como “inimigos internos1” e se pronunciar publicamente sobre suas
vidas e lutas, dando voz aqueles que foram reprimidos, torturados e assassinatos, pelo
autoritarismo de Estado, os autores não somente rememoravam, mas incidiam e atingiam
o presente, tensionando com as versões oficiais. A rememoração das lutas do passado não
importa apenas como forma de evitar o esquecimento, contudo, assinala para o papel da
memória de intervir sobre o tempo presente, “pois não se trata somente de não se esquecer
do passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, não sendo um
fim em si, visa à transformação do presente” (GAGNEBIN, 2006, p.55).
Uma mudança significativa na trajetória de Carlos Lamarca, ocorreu com sua
saída da VPR e a migração para MR-8. A discordância de Lamarca com a primeira girava

1 De acordo com Maria Helena Moreira Alves, no livro “Estado e Oposição no Brasil (1964-1984)”, a
teoria do “inimigo interno” estava baseada na Doutrina de Segurança Nacional (DSN) e sua definição de
guerra revolucionária, demarcada por fronteiras ideológicas e não territoriais. Assim, postulava a crença na
manifestação de uma infiltração comunista internacional em diversos setores da sociedade, responsável por
fomentar conflitos e dissensos internos e ameaçar a segurança nacional; sendo identificados como
indivíduos, partidos políticos, movimentos sociais e sindicatos, que despontasse oposição ao governo dos
militares.
em torno do vanguardismo e militarismo reinante na organização. De acordo com os
autores do livro, “estava convencido: a VPR era inviável, extremamente vanguardista. A
teoria jamilista negava qualquer espaço para as massas, para o povo, e Lamarca não via
possibilidade de mudanças” (JOSÉ, MIRADA, 1981, p.111). A mencionada teoria
jamilista consistia na defesa da atuação da guerrilheira rural a partir do foco guerrilheiro,
em detrimento nos movimentos de massa e da militância nas cidades.
No relato apresentado na obra, o momento de inflexão ocorreu a partir do
sequestro do embaixador suíço, Giovanni Enrico Bucher. Na ocasião, “o debate interno
do ‘mata-não-mata-o-embaixador’ (sic) foi o ponto de partida de toda uma revisão do
clico da luta armada, e Lamarca sai na frente” (JOSÉ; LAMARCA, 1981, p.106).
Defendia o guerrilheiro, que a VPR devia revisar a forma de luta, mudar a estratégia de
atuação e romper o círculo vicioso que havia criado, ou seja, de prisões de militantes,
torturas e assassinatos, e novos sequestros de embaixadores para libertar os companheiros
presos.
A partir de março de 1971, Carlos Lamarca, desligou-se do comando da VPR, e
passou a integrar o MR-8, identificando nesta organização uma alternativa para continuar
a ação guerrilheira, e, sobretudo, por considerar o papel da mobilização popular no
processo de luta. Na versão apresentada pelos autores, o MR-8, “Apesar de fazer parte da
esquerda armada, reservava às massas algum papel no processo revolucionário. Para ele,
abria-se novamente a possibilidade de ir para o campo, fazer o foco guerrilheiro e libertar
o país” (JOSÉ; LAMARCA, 1981, p.111). Entretanto, naquele momento do ingresso do
principal nome da luta armada na organização, o MR-8, encontrava-se encurralado pela
repressão no Rio de Janeiro, com prisões e assassinatos sob tortura de militantes, a
exemplo, da morte de Stuart Edgar Jones. No livro, relatasse que diante do cenário
repressivo, a organização guerrilheira foi obrigada a deslocar Lamarca para o Estado da
Bahia, a fim de garantir a segurança do ex-capitão (JOSÉ; LAMARCA, 1981, p.111-
112).
No relato dos autores, Lamarca e sua companheira, também militante do MR-8,
Iara Iavelberg, acossados pela repressão no Rio de Janeiro chegaram a Bahia com apoio
da organização. Ela foi encaminhada para Salvador, ele foi acompanhado por um
militante da organização para Brotas de Macaúbas, município localizado no interior do
Estado. Lamarca passaria, então, ajunta-se a José Campos Barreto (Zequinha), Luís
Antônio Santa Bárbara, Olderico Campos Barreto e Otoniel Campos Barreto. Na zona
rural do município eles deviam desenvolver atividades de formação política da população
local.
Todavia, em Salvador, ao longo do ano de 1971, sucederam prisões de membros
e dirigentes do MR-8, submetidos a tortura, foram descobertos aparelhos e pontos de
encontros. Em carta para Iara Iavelberg, transcrita no livro, datada de 1971, Lamarca
escreveu: “11 Ago – A queda do Kid pode alertar a repressão e, se abrir o que sabe, acaba
o que existe no campo. Achamos que não abre, mas passa a existir a insegurança” (JOSÉ;
MIRANDA, 1981, p.148). Depreende-se a partir do relato dos autores, que a prisão e
tortura deste militante foi importante para a repressão localizar Carlos Lamarca no sertão
da Bahia, no Cristalino do Buriti, município de Brotas de Macaúbas, distante cerca de
600 quilômetros de Salvador. “No Buriti a repressão já chegou muito bem-informada. Zé
Carlos, duas semanas depois de preso, havia confirmado a presença de Lamarca na região
e os órgãos de segurança começaram a enviar homens para a área” (JOSÉ; MIRANDA,
1981, p.152).
De modo que, com a localização de Lamarca, se fizeram presente na região
todos os órgãos da comunidade de informação e repressão política:
Ao todo, o major Nilton de Albuquerque Cerqueira chefiava 215
homens, um comando difícil de ser exercido. Havia elementos de todos
os órgãos de segurança do país, cada um perseguindo a autoria da
proeza de matar o Capitão Lamarca (JOSÉ; MIRANDA, 1981, p.154).

Os episódios narrados no livro sobre os acontecimentos ocorridos a partir da


chegada das forças de segurança na região, enfatizam a denúncia da violência, as mortes
de Otoniel Campos Barreto e Luís Antônio Santa Bárbara, as torturas em Olderico
Campos Barreto e em seu pai José Barreto, e o medo sentido pela população local. Nesta
narração a memória aponta que:
O estado de sítio sobre decretado no Buriti Cristalino. Todo mundo
proibido de sair à noite; de dia somente por extrema necessidade. Eles
queriam ter o direito de matar quem encontrassem, pois andar no escuro
numa situação daquela só podia ter um motivo: ajudar os “terroristas”
(JOSÉ; MIRANDA, 1984, p.162).

Após semanas vasculhando a região, com auxílio de informantes, guias e


autoridades locais, Zequinha e Lamarca, foram localizados no povoado de Pintada,
território do município de Ipupiara, pelos homens comandados pelo major Nilton de
Albuquerque Cerqueira. Para os autores:
A verdade correu o mundo. O Capitão Lamarca não teve tempo de
reagir. Morreu deitado, sem tocar nas armas. Mas Zequinha se levantou
e correu. Caribé tomou a metralhadora das mãos do major e saiu atrás
dele, atirando. Zequinha, desesperado, ainda jogou uma pedra na sua
direção e caiu gritando:
- Abaixo a ditadura! (JOSÉ; MIRANDA, 1984, p.166).

A narrativa do livro, montada a partir de relatos de testemunhos, documentos das


organizações, cartas, diários e entrevistas, evocava um conjunto de memórias da
experiência política de uma geração, lançava a perspectiva dos militantes sobreviventes
sobre a morte, ou melhor, o assassinato político de Zequinha e Lamarca. A publicação de
Emiliano José e Oldack Mirada, expôs a tragédia, o sofrimento dos presos políticos, o
terror da tortura nos quartéis e cárceres e a catástrofe dos assassinatos dos militantes;
assumiram, assim, francamente, a perspectiva de narrar a história dos vencidos,
procurando rememorar o sofrimento, as mortes, os mortos e as lutas, num confronto com
os vencedores. O livro, desta forma, contribuiu e interveio no debate sobre a chamada
abertura política, denunciado a ditadura e seus crimes, apresentando o olhar dos
protagonistas dos acontecimentos e testemunhos. Nos termos empregados por Walter
Benjamin: “Pois irrecuperável é cada imagem do passado que se dirige ao presente, sem
que esse presente se sinta visado por ela” (BENJAMIN, 1987, p.224).

Considerações Finais

Aqui, apresentamos uma proposta de estudo das memórias da experiência da luta


armada na obra “Lamarca: o capitão da guerrilha”, de Emiliano José e Oldack Miranda,
observando o contexto histórica da publicação e o conteúdo interno. Assim, consideramos
que o livro foi capaz mobilizar uma narrativa articulada a partir de memórias da luta
armada, desenvolvida por organizações que defendia a guerrilha como estratégia de
enfrentamento e resistência à ditadura civil-militar, rompendo com o silenciamento o qual
a censura oficial havia imposto acerca do assunto em anos anteriores a publicação.
O fazer lembrar no presente as lutas de resistência do passado, os mortos e as
vítimas de tortura, constituía um contrapondo a tentativa de se fazer “tábua rasa da
história” e de relegar ao esquecimento, portanto, um gesto político e de contramemória a
versão oficial dos vencedores. Por outro lado, apontamos que esta produção de memória
expressava uma luta no presente, a saber, o embate pelo esclarecimento e a denúncia dos
atos de terrorismo de Estado e dos crimes cometidos pela repressão dos governos
militares, além de prenunciar a reparação das vítimas e o direito à memória. A produção
memorialista não estabelecia somente uma busca de impedir o esquecimento, por sua vez,
contribuía na luta por justiça, reparação histórica e reivindicação ao direito à memória
dos torturados, mortos e seus familiares.
Em síntese, a evocação das memórias da luta armada e dos seus protagonistas,
pelos autores do livro, procurou rememorar os presos políticos, os mortos e torturados
nos cárceres dos governos militares, e instituir uma interpretação dos acontecimentos do
período, criando uma memória a contrapelo da ditadura militar, ao avesso dos relatos
oficiais e da memória dos vencedores. O que evidencia o papel político da obra. As
narrativas memorialistas constitutivas do livro, na conjuntura de publicação, agenciavam
uma ação, uma luta, uma intervenção no presente, com o intuito de fazer emergir e incidir
sobre ele, tensionando as possibilidades de manifestação púbica e de denúncia no
contexto da abertura política.

Referências:

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política.
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