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CONTEMPORÂNEO.
Neste artigo apresentamos dois momentos na trajetória da personagem Maria, criada pelo
quadrinista Henrique Magalhães na década de 1970. Surgida no período da Ditadura Militar no
Brasil, seguindo o humor crítico da linhagem representada pela geração de Henfil, trava embate com
o regime e defende a redemocratização. Na segunda metade dos anos 1980, assume a pauta da
liberdade e dos direitos dos homossexuais. Ao longo do tempo, ela revela o funcionamento de
estruturas sociais, políticas e morais com as quais debate, e em cujo embate revela seu fino humor e
ironia. Ela incomoda os defensores da tradição e da família burguesa e suas lutas se atualizam num
diálogo com os contextos históricos da contemporaneidade. O recorte apresentado neste artigo
contempla duas temáticas indicadas acima como momentos de mutação da personagem que o
criador assume como seu alter ego. Busca-se aportes teóricos do campo dos quadrinhos e na
análise do discurso, propondo sua relação com os contextos históricos e as demandas políticas e
sociais no Brasil.
INTRODUÇÃO
1
Entre os diversos autores nacionais e estrangeiros que discutem a linguagem dos quadrinhos podemos indicar
como referências do tema: GROESTEEN, Thierry. Système de la bande dessinée. Paris: Presses
Universitaires de France, 1999; COHN, Neil. The Visual Language of Comicas. London: Bloomsbury,
2013;MCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: M.Books, 2005; EISNER, Will. Quadrinhos
e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes, 2010; RAMOS, Paulo. A leitura dos quadrinhos. São Paulo:
Contexto, 2009; CAGNIN, Antonio Luiz. Os quadrinhos. Linguagem e Semiótica. São Paulo: Criativo, 2014.
diversos. Considerando o interesse no momento de mutação da personagem, não
selecionamos tiras desse encarte.
Neles buscamos a base mais ampla para a leitura das tiras de Maria em suas
especificidades como gênero de linguagem pertencente aos quadrinhos, vinculados à autoria
de Magalhães. Também recorremos ao esquema analítico de Violette Morin para explicitar
o funcionamento do humor em Maria. Ele foi aplicado pela autora em históricas cômicas
curtas, tal como são as tiras, nas quais indica e classifica três funções na estrutura narrativa:
1-a “função de normalização” ao apresentar os personagens; 2-a “função locutora de
deflagração” através da qual apresenta a questão problemática; 3-a “função interlocutora de
distinção” em que é apresentado o teor humorístico. Esta última depende de um elemento
denominado “disjuntor” que encaminha o desfecho para o humor na narrativa. (MORIN,
2013). Identificar esse disjuntor torna-se fundamental, pois ele “é o elemento polissêmico”
que permite à história “uma direção nova e inesperada” (MORIN, 2013, p.183).
Em relação à questão do riso e do humor nos baseamos na perspectiva freudiana que
vaticina estar o humor vinculado ao prazer , ou seja, apresentando-se como instrumento
econômico-psíquico para liberação de conteúdos reprimidos e internalizados. (FREUD,
1996). Por sua vez, Yves de La Taille (2014) propõe que as formas humorísticas, quando
apresentam personagens que sugerem a ideia de superioridade hierárquica, desencadeiam a
o “riso de zombaria”, perspectiva esta que nos interessa para a análise das tiras de Maria
analisadas neste artigo. Segundo o autor, ela envolve tanto as questões individuais como as
relativas ao papel do cidadão, suas instituições e valores culturais que deflagram, de certa
forma, o gênero humor existencial. Segundo Taille
Um conceito-chave para ajudar a compreender essa nova forma é o de
"dignidade” a partir da proposição de Romain Gary: „O humor é uma
declaração de dignidade, uma afirmação de superioridade do homem sobre o
que lhe acontece‟. (TAILLE, 2014, p.79)
Nessa fase, Maria pode ser alinhada aos personagens de humor crítico criados por
Henfil (Graúna, Bode Orellana, Zeferino, Os Fradins, entre outros), associados à
efervescência da imprensa alternativa de resistência e à tradição do humor político. O
ativismo de Maria, mais eloquente no final da década, representação em nova correlação de
forças, revela que nas práticas discursivas em disputa, os quadrinhos eram uma espécie de
outdoor ou espaço/meio privilegiado para a veiculação do humor crítico contra o regime,
como se vê abaixo:
Figura 2 - Maria, nº 4
Fonte: Editora Universitária UFPB, ANO II, Agosto, 1979, p. 11.
Figura 3. Maria, nº 4,
Fonte: Editora Universitária - UFPB, ANO II, Agosto - 1979, p. 23.
No primeiro quadro, Maria é percebida através do som que seu corpo emite
representado pela onomatopeia “ronc” grafada em letras maiúsculas. À sua frente, fardado,
há um policial que se assusta com o som (função de normalização), vira-se e parte para a
perseguição, cassetete em punho, daquela que representa o povo e que deve ser contida
(função locutora de deflagração); no terceiro quadro, o traçado à esquerda indicando a fuga
de Maria é a própria representação da aparente vitória do poder centralizado na instituição
militar, representada pelo soldado (ainda a função locutora de deflagração). No entanto, o
sorriso de certeza da vitória é surpreendido por um ruído, grafado de forma ainda mais
intensa em sonoridade, expresso em letra maior e em caixa alta, que ocupa praticamente
todo o espaço limitando o policial no canto do quadro. Este efeito gráfico contribui para que
o leitor perceba que o representante do poder está acuado, restando a ele correr para se
salvar. Até o quarto quadro, não se sabe de onde vem o som, mas percebe-se facilmente que
ele vem representado de forma ampliada (elemento disjuntor); e, finalmente, no último
quadro, desencadeia-se uma inversão na situação de superioridade representada pelo militar
para o grupo de civis em corrida acelerada e unida pela causa, a fome, em plena rebelião,
perseguindo o assustado e isolado soldado, uma representação da inversão da correlação de
força em favor dos setores populares (função interlocutora de distinção).
As duas tiras, revelam o entusiasmado discurso de representação desse potencial de
“viragem” que caracterizou o ano de 1979, com o novo sindicalismo, a organização de
associações de bairro, movimentos contra a carestia, por moradia, anistia política, liberdade
de expressão e retorno à democracia. Coincidentemente ou não, a tira foi publicada no ano
de uma grande greve de metalúrgicos do ABC paulista. Nesse ano, uma onda de greves se
desencadeou no país envolvendo professores, médicos e bancários, entre outras categorias.
Moreira Alves revela estatisticamente que “mais de 3.000.000 de trabalhadores
participaram das ações de greve desencadeadas em 15 dos 23 estados (ALVES, 1984: 253).
A maioria delas era considerada ilegal dentro dos parâmetros da legislação trabalhista. Mas
elas continuavam ocorrendo e em razão da crise econômica, a ditadura enfrentava
campanhas oposicionistas nas ruas. O governo reagia com a mobilização do aparato
repressivo e, em diversas ocasiões, os enfrentamentos resultaram em violência e prisões.
Nas duas tiras há a representação de uma aposta no empoderamento proveniente do
campo popular através do humor voltado contra os ditadores. Na primeira, rimos do
governo, zombeteiramente, na figura do emissário com ar de desespero, em sua fidelidade
subserviente de moleque de recado (ou cão treinado). Na segunda tira, rimos do policial e
de seu medo, rimos dessa inversão dos termos de disputa, de quebra do padrão hegemônico
pelo qual a polícia perseguia o povo. O ronco da barriga anuncia a fome e o policial que
persegue o ronco, revela a falta de reflexão sobre seu lugar de pertencimento - ele é parte do
povo, mas ele representa o governo agindo com truculência contra os setores populares,
defendendo a ação ditatorial. Se fosse uma narrativa literária, estaríamos diante de uma
sinédoque, figura de linguagem que toma a parte pelo todo: aqui Maria é a parte do todo, a
parte da população brasileira que enfrenta em piores condições a crise econômica e, o
soldado, a parte do todo, do regime militar, que reprime os famintos. Enquanto Maria se
torna o coletivo encarnando a palavra de ordem de esquerda o povo unido, o soldado, como
parte de um todo fragilizado, corre sozinho. Nos dois casos, o riso é vingativo e sobre essa
função, tanto Freud (1996) como Georges Minois (2003) quando inventaria o “poder ácido
do espírito”, ajudam a compreender sua função prazerosa e impulsionadora de lutas na
conjuntura em questão.
2
As tirinhas desse volume foram originalmente publicadas pelo Jornal A UNIÃO, a partir de 10 de setembro
de 1983.
pois, no dito popular, ganhar o mundo, indica a opção corajosa de assumir sua própria vida.
Num sentido simbólico, o discurso se contrapõe à hegemonia do padrão heterossexual e,
remete ao rompimento com o ambiente fechado, limitado pelas paredes (aqui mais
simbólicas que reais) da casa dos pais, onde é preciso ficar no armário, jargão conhecido
para a situação. O discurso subversivo de Pombinha surpreende Maria e a deixa sem
palavras, condição representada pelo desenho de seu rosto, sem boca com o sinal de
exclamação acima de sua cabeça como índice de sua surpresa. Nessa tira ocorre também
uma inversão dos papeis correntes das duas personagens, pois, em geral, é Maria quem
lidera o discurso e propõe conclusões, como podemos constatar na tira a seguir:
.
Figura 6 Maria - A Maior das subversões.
Fonte: Coleção Quadrinhos, Vol. 1, João Pessoa: Marca de Fantasia, primavera de 1984, p. 23-24.
Nessa tira, que fecha a parte do volume sobre a temática homossexual, Maria
assume o discurso amoroso em sua nova condição. Aqui o humor tem um caráter de
manifesto. No primeiro quadro, ela indica a Pombinha que tomou uma decisão (função
normalizadora); no segundo, terceiro, quarto e quinto quadros, Maria anuncia sua pauta
(“função locutora de deflagração”); no sexto quadro, temos a questão que permite o
desfecho e o humor (elemento disjuntor) e, por fim, o sétimo quadro define e fecha a
questão numa chave existencial e afetiva. A questão do amor unifica todas as tribos listadas
no quinto quadro. Enquanto que no último da tira, de número sete, justamente no momento
em que é necessária a virada de página, o quadrinista usa a técnica dos quadrinhos ao
apresentar um corte gráfico da página, convidando à leitura final ou contemplação da
imagem em único quadro, em tamanho diferente dos outros mostrando como em um palco
antes do fechar das cortinas, a apresentação final: Maria e Pombinha, de mãos dadas,
anunciando que Amor é a maior das subversões, frase que aparece fora de qualquer balão,
como título nomeando um tempo inaugural. Maria, com humor e delicadeza, assume sua
condição e estende a solidariedade do afeto às lutas de todas as minorias. Elas estão
presentes na pauta política na qual a centralidade do amor não bloqueia o teor crítico, pelo
contrário parece um pressuposto para transformações. Maria renova seu olhar sobre
questões existenciais e cotidianas, fica mais mafaldiana, mais reflexiva que ativista de
palavras de ordem.
Na fase que se inicia com Amor é a maior das subversões a reflexão de Maria tem
como centralidade um discurso que se opõe, segundo uma dimensão foucaultiana, à
disciplinarização do corpo e dos afetos, da bio-política e seus controles sociais
(FOUCAULT, 1988). Ela traz à pauta temas da intimidade e do cotidiano numa chave mais
existencial, sem que, em momento algum, deixe de ser discurso político. Quando nomeia as
velhas e novas tribos numa só chamada bichas, sapatos, oprimidos, feministas, operários,
hippies, negros, índios, punks, existencialistas de todo o mundo propõe uma ampliação da
palavra de ordem marxiana “trabalhadores de todo o mundo uni-vos” e um deslocamento
em relação ao mundo do trabalho e da revolução socialista. A chamada desloca Maria para
uma perspectiva existencialista e, numa aposta nova, cuja polifonia se revela na diversidade
dos convocados: amai-vos porque amor é a maior das subversões. A revolução e a
subversão tomam outra dimensão e sinalizam o encerramento de uma fase da personagem
na direção da multiplicidade de vozes e na constituição de novas identidades (HALL,
2006). Ela se encontra no espaço interdiscursivo, no sentido proposto por Fairclough,
dialogando com manifestos dessas minorias, seus debate público ou formas de expressão
literária, sua presença em textos acadêmicos, no âmbito de limites que “estão
constantemente abertos para serem redesenhados à medida que as ordens do discurso são
desarticuladas e rearticuladas no curso da luta hegemônica.” (FAIRCLOUGH, 2001, p.
159)
ELEMENTOS DE SIGNIFICAÇÃO NO QUADRO TEÓRICO E NA
CONJUNTURA HISTÓRICA
Recorremos, finalmente, à noção de Michel de Certeau sobre táticas e estratégias
nas disputas cotidianas, tanto no dizer como no fazer. O autor afirma o polo de força, como
detentor das estratégias, senhor do espaço, e o polo fraco como aquele que se afirma no
tempo da oportunidade, no uso de táticas (CERTEAU,1999, p.101-103). Seguindo a
proposição desse autor, consideramos que as táticas utilizadas pelos quadrininistas e artistas
gráficos, compositores de MPB, teatrólogos, entre outros agentes culturais, se apresentam,
na conjuntura histórica em questão, como táticas dependentes da astúcia e do efeito
surpresa, de dimensões alegóricas ou metafóricas que driblavam a censura. Essas táticas
permitiram o discurso resistente, mesmo no período mais repressivo da ditadura, o período
Médici (1969-1974), ou não seria possível a existência do jornal O Pasquim, nem os
quadrinhos de Henfil que desafiavam o regime. Maria segue esse mesmo percurso e
Henrique Magalhães com suas tiras humorísticas a convoca para uma posição crítica nas
duas conjunturas. Tanto numa quanto na outra, a renovação de seu discurso humorístico
incorpora as táticas do polo fraco contra o discurso hegemônico, no segundo momento já
numa outra chave temática que atualiza as lutas sociais pós-ditadura militar. Buscamos
neste artigo explicitar um pouco do funcionamento da relação política-humor crítico a partir
de uma interpretação das mesmas.
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