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MARIA: QUADRINHOS, HUMOR CRÍTICO E LUTAS POLÍTICAS NO BRASIL

CONTEMPORÂNEO.

Neste artigo apresentamos dois momentos na trajetória da personagem Maria, criada pelo
quadrinista Henrique Magalhães na década de 1970. Surgida no período da Ditadura Militar no
Brasil, seguindo o humor crítico da linhagem representada pela geração de Henfil, trava embate com
o regime e defende a redemocratização. Na segunda metade dos anos 1980, assume a pauta da
liberdade e dos direitos dos homossexuais. Ao longo do tempo, ela revela o funcionamento de
estruturas sociais, políticas e morais com as quais debate, e em cujo embate revela seu fino humor e
ironia. Ela incomoda os defensores da tradição e da família burguesa e suas lutas se atualizam num
diálogo com os contextos históricos da contemporaneidade. O recorte apresentado neste artigo
contempla duas temáticas indicadas acima como momentos de mutação da personagem que o
criador assume como seu alter ego. Busca-se aportes teóricos do campo dos quadrinhos e na
análise do discurso, propondo sua relação com os contextos históricos e as demandas políticas e
sociais no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Quadrinhos, História, Brasil contemporâneo.

INTRODUÇÃO

Neste texto discutiremos dois momentos do diálogo da personagem de quadrinhos,


Maria, com a história do Brasil contemporâneo. Ela foi criada em 1975 por Henrique
Magalhães e publicada em tiras nos jornais paraibanos (O Norte e A União), entre 1975 e
2010, com períodos de interrupção, e também em revista própria com título homônimo.
Inserimos esse trabalho na interface História/Comunicação (Quadrinhos) a partir
das possibilidades abertas com a ampliação do conceito de fontes históricas. Como
constatam Vergueiro e Santos, tais estudos têm se expandido nas universidades brasileiras,
principalmente na área de Comunicação “mas é possível encontrar trabalhos investigativos
sobre histórias em quadrinhos nas áreas de Letras, Psicologia, História, Pedagogia e
Medicina” (VERGUEIRO e SANTOS 2010: 189).
Os quadrinhos como discurso, se constituem em linguagem narrativa, exigindo
conhecimentos de sua “gramática”, de seu código próprio, híbrido, articulação de imagens e
palavras: o quadro como espaço delimitador, o balão de fala (desenhado ou não), as
onomatopeias; os efeitos de sonoridade, de movimento e de cor induzidos pelo desenho
entre outras características. Essa semiótica dos quadrinhos é objeto de obras específicas e
consideramos sua terminologia um pressuposto do campo no qual dialogamos.1
Atentando para as preocupações de caráter teórico e metodológico de Vergueiro e
Santos (2010), buscamos definir um critério de seleção e uma base de análise que articule
história, quadrinhos, humor e discurso. O corpus do qual extraímos as tiras de quadrinhos
aqui tratadas foi definido a partir de duas datas: 1979 e 1984. A primeira, por sua
importância na luta política pelo fim da ditadura militar, a partir de pressões oposicionistas,
tanto de setores de “elite”, como de trabalhadores, em ritmo crescente desde 1977 (CNBB,
OAB, ABI, CEB‟s, sindicatos, associações de bairro, entre outras). Em 1979 ocorreram
greves em diversos setores de trabalhadores, foi o ano da anistia, da revogação dos Atos
Institucionais, da reorganização do sistema pluripartidário. Mas, simultaneamente, foi um
período de pressões sobre os movimentos de base popular, seguindo a concepção de
transição sob controle (ALVES, 1984). O segundo marco temporal foi escolhido pela
expectativa de uma grande “virada” política, a partir da mobilização popular em torno da
campanha Diretas Já. A derrota da emenda Dante de Oliveira (em 25 de abril), que
restaurava o processo de eleições diretas para presidente, encerrou as possibilidades e da
transição em bases efetivamente democráticas. (RODRIGUES, 2003).
Para este trabalho, selecionamos quatro tiras, sendo duas delas da revista Maria n º
4, de agosto de 1979, 32 páginas, com 30 tiras duplas, todas elas datadas desse ano. Nessa
edição, os temas mais abordados são as reivindicações populares e greves, que somam 14,
entre as 30 tiras da publicação. As outras duas tiras selecionadas são do álbum intitulado A
maior das subversões. A escolha das tiras foi feita nessa primeira parte do álbum, com19
páginas, 38 tiras datadas de 1984, nas quais Maria explicita a decisão de assumir sua
condição homossexual. A segunda parte do álbum se constitui em outra revista encartada,
com chamada de início na página 25 através de tiras datadas de 1983, abordando temas

1
Entre os diversos autores nacionais e estrangeiros que discutem a linguagem dos quadrinhos podemos indicar
como referências do tema: GROESTEEN, Thierry. Système de la bande dessinée. Paris: Presses
Universitaires de France, 1999; COHN, Neil. The Visual Language of Comicas. London: Bloomsbury,
2013;MCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: M.Books, 2005; EISNER, Will. Quadrinhos
e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes, 2010; RAMOS, Paulo. A leitura dos quadrinhos. São Paulo:
Contexto, 2009; CAGNIN, Antonio Luiz. Os quadrinhos. Linguagem e Semiótica. São Paulo: Criativo, 2014.
diversos. Considerando o interesse no momento de mutação da personagem, não
selecionamos tiras desse encarte.

O LUGAR DO DISCURSO NOS EMBATES POLÍTICOS

Durante o período da ditadura militar, o campo cultural foi um importante front de


embate ideológico. Na discussão sobre ideologia, John B. Thompson indica como uma de
suas estratégias de dominação a fragmentação (2009, p. 86-87). No Brasil da ditadura
militar, o discurso ideológico que dividia o mundo da Guerra Fria, também colocava a
sociedade brasileira numa divisão em dois campos: num deles, a “Ordem e Progresso” em
marcha “da família com deus pela liberdade”, o “país que vai pra frente” em contraposição
ao outro, aquele da desordem, dos terroristas, comunistas, ateus. O Estado pós-golpe de
1964 e seus aliados, posicionados no campo da “ordem”, travaram sua guerra contra o
“inimigo interno” do Estado de Segurança Nacional, pois se constituíam em obstáculo para
a estratégia ideológica da unidade, em permanente posição crítica às suas simbolizações
(THOMPSON, 2009, p. 86).
O exercício do poder militar dependeu não apenas do terror, mas em grande medida
da adesão. A manutenção da hegemonia (GRAMSCI, 1999) baseada na forte aliança entre
as elites, contava com o silêncio das classes médias, e o medo da maioria; mas, também,
dos resultados econômicos do “milagre brasileiro”, cuja crise, em meados da década de
1970, abalou uma das bases do regime, a aceleração do crescimento econômico (EARP e
PRADO, 2003). Nessa conjuntura, os intelectuais de esquerda vinculados às artes
participaram das batalhas simbólicas contra o campo da “ordem” e, em oposição ao
tristemente famoso slogan Brasil, ame-o ou deixe-o, os Doces Bárbaros cantavam o seu
amor, ame-o e deixe-o; Joaquim Pedro de Andrade alegorizava o regime com verba da
Embrafilme revelando calabouços, processos e torturas em Os inconfidentes; Henfil criava
a Graúna, um pássaro interrogativo, que do meio da caatinga desafiava a ordem na forma
de ponto de exclamação gráfica. O campo das artes sequenciais e do jornalismo alternativo
tiveram um forte papel na ampliação das posições contra hegemônicas (KUCINSKI, 1991).
Esses artistas eram herdeiros de um capital simbólico (BOURDIEU, 2000) da geração dos
anos 1960, aquela que participara das lutas por democracia radical e transformações
estruturais no país; uma geração que Marcelo Ridenti associa ao conceito de romantismo
revolucionário, a partir da formulação de Michel Löwy (RIDENTI, 2000). Pensando essa
conjuntura, recorremos à proposta analítica de Norman Fairclough quando afirma que “os
processos constitutivos do discurso devem ser vistos, portanto, em termos de uma dialética,
na qual o impacto da prática discursiva depende de como ela interage com a realidade pré-
construída” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 87). No caso do Brasil, a partir da segunda metade
da década de 1970, os impactos da crise econômica e política, em curso desde o fim do
“milagre brasileiro”, participam das “condições de possibilidade” de ampliação dos
discursos e do pleno exercício de colocar em prática ações de oposição que combateram o
exercício de poder regime militar e a eficácia de seu discurso e instrumentos de controle,
incluindo a censura internalizada (FOUCAULT, 2011).
No final da década de 1970, o regime militar buscava como saída para a crise
política, um tipo de liberalização que o prolongava e mantinha sob pressão os setores de
oposição. No campo artístico, desde o golpe de 64, as esquerdas surpreendiam pela
criatividade, pelo efeito de drible, da palavra e do gesto de denúncia; pelo o uso de
inversões, ironias, alegorias e metáforas, regularmente presentes em música, teatro, artes
gráficas, quadrinhos entre outras produções artísticas do campo oposicionista.
Em sua proposta de análise do discurso textualmente orientada (ADTO), Norman
Fairclough parte de conceitos de Foucault, mas introduz uma ampliação na perspectiva de
compreensão dos sujeitos como atores sociais, afirmando que

Os sujeitos sociais constituídos não são meramente posicionados de modo passivo,


mas capazes de agir como agentes e, entre outras coisas, de negociar seu
relacionamento com os tipos variados de discurso a que eles recorrem
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 87)

Neles buscamos a base mais ampla para a leitura das tiras de Maria em suas
especificidades como gênero de linguagem pertencente aos quadrinhos, vinculados à autoria
de Magalhães. Também recorremos ao esquema analítico de Violette Morin para explicitar
o funcionamento do humor em Maria. Ele foi aplicado pela autora em históricas cômicas
curtas, tal como são as tiras, nas quais indica e classifica três funções na estrutura narrativa:
1-a “função de normalização” ao apresentar os personagens; 2-a “função locutora de
deflagração” através da qual apresenta a questão problemática; 3-a “função interlocutora de
distinção” em que é apresentado o teor humorístico. Esta última depende de um elemento
denominado “disjuntor” que encaminha o desfecho para o humor na narrativa. (MORIN,
2013). Identificar esse disjuntor torna-se fundamental, pois ele “é o elemento polissêmico”
que permite à história “uma direção nova e inesperada” (MORIN, 2013, p.183).
Em relação à questão do riso e do humor nos baseamos na perspectiva freudiana que
vaticina estar o humor vinculado ao prazer , ou seja, apresentando-se como instrumento
econômico-psíquico para liberação de conteúdos reprimidos e internalizados. (FREUD,
1996). Por sua vez, Yves de La Taille (2014) propõe que as formas humorísticas, quando
apresentam personagens que sugerem a ideia de superioridade hierárquica, desencadeiam a
o “riso de zombaria”, perspectiva esta que nos interessa para a análise das tiras de Maria
analisadas neste artigo. Segundo o autor, ela envolve tanto as questões individuais como as
relativas ao papel do cidadão, suas instituições e valores culturais que deflagram, de certa
forma, o gênero humor existencial. Segundo Taille
Um conceito-chave para ajudar a compreender essa nova forma é o de
"dignidade” a partir da proposição de Romain Gary: „O humor é uma
declaração de dignidade, uma afirmação de superioridade do homem sobre o
que lhe acontece‟. (TAILLE, 2014, p.79)

MARIA NO ENGAJAMENTO POLÍTICO: UM DISCURSO DE EMBATE COM A


DITADURA MILITAR

Figura. 1. Capa Maria 4


Fonte: Acervo pessoal de Henrique Magalhães
De acordo com Henrique Magalhães Maria
Surgiu no bojo da cultura alternativa, cultura de resistência a um contexto político de
exceção. Sua fonte de inspiração não poderia ser outra que a efervescência política e social
do país, daí o caráter político, semelhante à charge, no início de sua criação. (Magalhães,
2005, p.7)

Nessa fase, Maria pode ser alinhada aos personagens de humor crítico criados por
Henfil (Graúna, Bode Orellana, Zeferino, Os Fradins, entre outros), associados à
efervescência da imprensa alternativa de resistência e à tradição do humor político. O
ativismo de Maria, mais eloquente no final da década, representação em nova correlação de
forças, revela que nas práticas discursivas em disputa, os quadrinhos eram uma espécie de
outdoor ou espaço/meio privilegiado para a veiculação do humor crítico contra o regime,
como se vê abaixo:

Figura 2 - Maria, nº 4
Fonte: Editora Universitária UFPB, ANO II, Agosto, 1979, p. 11.

Na tira em quatro quadros há uma referência direta à conjuntura do ano de 1979: no


primeiro quadro, temos a apresentação do grupo em greve liderado por Maria (à frente) e
um emissário do governo, atônito, corre verbalizando o caráter ilegal do movimento
segundo "seu ministro" (função normalizadora). Maria, no segundo quadro, propõe ao
grupo a seguinte questão incitando a refletirem: “dá samba?” (função locutora de
deflagração). A expressão isso ou aquilo dá samba, tem uma dimensão simbólica no Brasil,
pois o samba é associado às camadas populares e, simultaneamente, à brasilidade. A frase,
em um contexto de enfrentamento, sugere também outras interpretações como a de que a
greve justamente por ser ilegal, transforma-se em causa para união. Lembramos que a
expressão samba associada à dança tem dupla conotação. Na tira afirma-se a resistência,
apesar da força da palavra autorizada do ministro ser proibitiva, o enfrentamento ocorrerá
(elemento disjuntor). Então, vai ter samba, num sentido metafórico indicando a persistência
das grevistas como sugerem as imagens seguintes. No último quadro, Maria fortalecida
pelo grupo ao qual pertence, desqualifica o emissário do poder chamando-o de moleque de
recado, expressão originada do repertório das elites escravistas do período colonial
brasileiro. A frase, usada para designar um agente do governo, ultrapassa sua dimensão
simbólica e remete também a uma perspectiva indiciária, a desqualificação dos
interlocutores, elemento frequentemente presente em charges políticas. A imagem desse
emissário, que chega e sai correndo com a língua de fora, lembra a brincadeira de jogar um
objeto para um cachorro treinado e contribui para dar expressão caricata e ridícula ao
personagem (função interlocutora de deflagração). Nessa tira, a sutil relação construída pela
aparência entre o cão e o homem, revela a dimensão do riso estudada por Propp e, a
comicidade, vem da “qualidade” (ou defeito) que relaciona um cão a um emissário do
governo nessa circunstância, a subserviência. (PROPP, 1992, p. 66-67)
Na segunda tira temos o quadrinho sem diálogos. Nele, o discurso é construído pela
narrativa em imagens e onomatopeias:

Figura 3. Maria, nº 4,
Fonte: Editora Universitária - UFPB, ANO II, Agosto - 1979, p. 23.

No primeiro quadro, Maria é percebida através do som que seu corpo emite
representado pela onomatopeia “ronc” grafada em letras maiúsculas. À sua frente, fardado,
há um policial que se assusta com o som (função de normalização), vira-se e parte para a
perseguição, cassetete em punho, daquela que representa o povo e que deve ser contida
(função locutora de deflagração); no terceiro quadro, o traçado à esquerda indicando a fuga
de Maria é a própria representação da aparente vitória do poder centralizado na instituição
militar, representada pelo soldado (ainda a função locutora de deflagração). No entanto, o
sorriso de certeza da vitória é surpreendido por um ruído, grafado de forma ainda mais
intensa em sonoridade, expresso em letra maior e em caixa alta, que ocupa praticamente
todo o espaço limitando o policial no canto do quadro. Este efeito gráfico contribui para que
o leitor perceba que o representante do poder está acuado, restando a ele correr para se
salvar. Até o quarto quadro, não se sabe de onde vem o som, mas percebe-se facilmente que
ele vem representado de forma ampliada (elemento disjuntor); e, finalmente, no último
quadro, desencadeia-se uma inversão na situação de superioridade representada pelo militar
para o grupo de civis em corrida acelerada e unida pela causa, a fome, em plena rebelião,
perseguindo o assustado e isolado soldado, uma representação da inversão da correlação de
força em favor dos setores populares (função interlocutora de distinção).
As duas tiras, revelam o entusiasmado discurso de representação desse potencial de
“viragem” que caracterizou o ano de 1979, com o novo sindicalismo, a organização de
associações de bairro, movimentos contra a carestia, por moradia, anistia política, liberdade
de expressão e retorno à democracia. Coincidentemente ou não, a tira foi publicada no ano
de uma grande greve de metalúrgicos do ABC paulista. Nesse ano, uma onda de greves se
desencadeou no país envolvendo professores, médicos e bancários, entre outras categorias.
Moreira Alves revela estatisticamente que “mais de 3.000.000 de trabalhadores
participaram das ações de greve desencadeadas em 15 dos 23 estados (ALVES, 1984: 253).
A maioria delas era considerada ilegal dentro dos parâmetros da legislação trabalhista. Mas
elas continuavam ocorrendo e em razão da crise econômica, a ditadura enfrentava
campanhas oposicionistas nas ruas. O governo reagia com a mobilização do aparato
repressivo e, em diversas ocasiões, os enfrentamentos resultaram em violência e prisões.
Nas duas tiras há a representação de uma aposta no empoderamento proveniente do
campo popular através do humor voltado contra os ditadores. Na primeira, rimos do
governo, zombeteiramente, na figura do emissário com ar de desespero, em sua fidelidade
subserviente de moleque de recado (ou cão treinado). Na segunda tira, rimos do policial e
de seu medo, rimos dessa inversão dos termos de disputa, de quebra do padrão hegemônico
pelo qual a polícia perseguia o povo. O ronco da barriga anuncia a fome e o policial que
persegue o ronco, revela a falta de reflexão sobre seu lugar de pertencimento - ele é parte do
povo, mas ele representa o governo agindo com truculência contra os setores populares,
defendendo a ação ditatorial. Se fosse uma narrativa literária, estaríamos diante de uma
sinédoque, figura de linguagem que toma a parte pelo todo: aqui Maria é a parte do todo, a
parte da população brasileira que enfrenta em piores condições a crise econômica e, o
soldado, a parte do todo, do regime militar, que reprime os famintos. Enquanto Maria se
torna o coletivo encarnando a palavra de ordem de esquerda o povo unido, o soldado, como
parte de um todo fragilizado, corre sozinho. Nos dois casos, o riso é vingativo e sobre essa
função, tanto Freud (1996) como Georges Minois (2003) quando inventaria o “poder ácido
do espírito”, ajudam a compreender sua função prazerosa e impulsionadora de lutas na
conjuntura em questão.

HOMOSSEXUALIDADE EM MARIA: NOVA “MILITÂNCIA” POLÍTICA

Figura 4. Capa Album Maria. A maior das subversões.


Fonte: Acervo pessoal de Henrique Magalhães

Após o processo de redemocratização, novos atores e lutas emergem no cenário


social político brasileiro. Essas lutas ganham expressão nas representações culturais e
artísticas: feministas, homossexuais, movimento negro e outros que representam alguns dos
agentes coletivos mais significativos desse momento. As tiras 3 e 4 revelam essa virada no
percurso da personagem:

Figura 55. Maria - A Maior das subversões.


Fonte: Coleção Quadrinhos, Vol. 1, João Pessoa: Marca de Fantasia, primavera de 1984, p.
17. 2

No primeiro quadro, as personagens Maria e Pombinha são apresentadas iniciando


uma reflexão ainda sem muita definição (função normalizadora); No segundo, terceiro e
quarto quadros, Maria conclui seu pensamento exprimindo o temor das perdas frente à
decisão de assumir a homossexualidade, ou seja, apresentar-se publicamente como
homossexual, comumente rotulada pela gíria como sapatão. Essa expressão, para além do
sentido icônico (tamanho maior do sapato masculino) se transformou em jargão popular
para designar mulheres lésbicas. No desenho, a preocupação se revela em olhos espantados
e traço da boca. O uso da expressão pejorativa encaminha o para a conclusão de perda da
família. No quarto quadro, a palavra rua, em caixa alta e tamanho maior, revela-se como
um grito, e Maria encarna o papel do pai ou da mãe mandando a filha pra fora de casa (até
aqui temos a função locutora de deflagração). No quinto quadro, Maria questiona qual o
ganho em assumir essa condição (sua questão é o fator disjuntor que permite o desfecho de
humor). Pombinha que até então escutara o desabafo de Maria expressa a perspectiva
positiva de assumir-se: sai-se de casa pra ganhar o mundo (função interlocutora de
distinção). Rimos porque Pombinha muda, inteligentemente, o rumo da perda em ganho,

2
As tirinhas desse volume foram originalmente publicadas pelo Jornal A UNIÃO, a partir de 10 de setembro
de 1983.
pois, no dito popular, ganhar o mundo, indica a opção corajosa de assumir sua própria vida.
Num sentido simbólico, o discurso se contrapõe à hegemonia do padrão heterossexual e,
remete ao rompimento com o ambiente fechado, limitado pelas paredes (aqui mais
simbólicas que reais) da casa dos pais, onde é preciso ficar no armário, jargão conhecido
para a situação. O discurso subversivo de Pombinha surpreende Maria e a deixa sem
palavras, condição representada pelo desenho de seu rosto, sem boca com o sinal de
exclamação acima de sua cabeça como índice de sua surpresa. Nessa tira ocorre também
uma inversão dos papeis correntes das duas personagens, pois, em geral, é Maria quem
lidera o discurso e propõe conclusões, como podemos constatar na tira a seguir:

.
Figura 6 Maria - A Maior das subversões.
Fonte: Coleção Quadrinhos, Vol. 1, João Pessoa: Marca de Fantasia, primavera de 1984, p. 23-24.

Nessa tira, que fecha a parte do volume sobre a temática homossexual, Maria
assume o discurso amoroso em sua nova condição. Aqui o humor tem um caráter de
manifesto. No primeiro quadro, ela indica a Pombinha que tomou uma decisão (função
normalizadora); no segundo, terceiro, quarto e quinto quadros, Maria anuncia sua pauta
(“função locutora de deflagração”); no sexto quadro, temos a questão que permite o
desfecho e o humor (elemento disjuntor) e, por fim, o sétimo quadro define e fecha a
questão numa chave existencial e afetiva. A questão do amor unifica todas as tribos listadas
no quinto quadro. Enquanto que no último da tira, de número sete, justamente no momento
em que é necessária a virada de página, o quadrinista usa a técnica dos quadrinhos ao
apresentar um corte gráfico da página, convidando à leitura final ou contemplação da
imagem em único quadro, em tamanho diferente dos outros mostrando como em um palco
antes do fechar das cortinas, a apresentação final: Maria e Pombinha, de mãos dadas,
anunciando que Amor é a maior das subversões, frase que aparece fora de qualquer balão,
como título nomeando um tempo inaugural. Maria, com humor e delicadeza, assume sua
condição e estende a solidariedade do afeto às lutas de todas as minorias. Elas estão
presentes na pauta política na qual a centralidade do amor não bloqueia o teor crítico, pelo
contrário parece um pressuposto para transformações. Maria renova seu olhar sobre
questões existenciais e cotidianas, fica mais mafaldiana, mais reflexiva que ativista de
palavras de ordem.
Na fase que se inicia com Amor é a maior das subversões a reflexão de Maria tem
como centralidade um discurso que se opõe, segundo uma dimensão foucaultiana, à
disciplinarização do corpo e dos afetos, da bio-política e seus controles sociais
(FOUCAULT, 1988). Ela traz à pauta temas da intimidade e do cotidiano numa chave mais
existencial, sem que, em momento algum, deixe de ser discurso político. Quando nomeia as
velhas e novas tribos numa só chamada bichas, sapatos, oprimidos, feministas, operários,
hippies, negros, índios, punks, existencialistas de todo o mundo propõe uma ampliação da
palavra de ordem marxiana “trabalhadores de todo o mundo uni-vos” e um deslocamento
em relação ao mundo do trabalho e da revolução socialista. A chamada desloca Maria para
uma perspectiva existencialista e, numa aposta nova, cuja polifonia se revela na diversidade
dos convocados: amai-vos porque amor é a maior das subversões. A revolução e a
subversão tomam outra dimensão e sinalizam o encerramento de uma fase da personagem
na direção da multiplicidade de vozes e na constituição de novas identidades (HALL,
2006). Ela se encontra no espaço interdiscursivo, no sentido proposto por Fairclough,
dialogando com manifestos dessas minorias, seus debate público ou formas de expressão
literária, sua presença em textos acadêmicos, no âmbito de limites que “estão
constantemente abertos para serem redesenhados à medida que as ordens do discurso são
desarticuladas e rearticuladas no curso da luta hegemônica.” (FAIRCLOUGH, 2001, p.
159)
ELEMENTOS DE SIGNIFICAÇÃO NO QUADRO TEÓRICO E NA
CONJUNTURA HISTÓRICA
Recorremos, finalmente, à noção de Michel de Certeau sobre táticas e estratégias
nas disputas cotidianas, tanto no dizer como no fazer. O autor afirma o polo de força, como
detentor das estratégias, senhor do espaço, e o polo fraco como aquele que se afirma no
tempo da oportunidade, no uso de táticas (CERTEAU,1999, p.101-103). Seguindo a
proposição desse autor, consideramos que as táticas utilizadas pelos quadrininistas e artistas
gráficos, compositores de MPB, teatrólogos, entre outros agentes culturais, se apresentam,
na conjuntura histórica em questão, como táticas dependentes da astúcia e do efeito
surpresa, de dimensões alegóricas ou metafóricas que driblavam a censura. Essas táticas
permitiram o discurso resistente, mesmo no período mais repressivo da ditadura, o período
Médici (1969-1974), ou não seria possível a existência do jornal O Pasquim, nem os
quadrinhos de Henfil que desafiavam o regime. Maria segue esse mesmo percurso e
Henrique Magalhães com suas tiras humorísticas a convoca para uma posição crítica nas
duas conjunturas. Tanto numa quanto na outra, a renovação de seu discurso humorístico
incorpora as táticas do polo fraco contra o discurso hegemônico, no segundo momento já
numa outra chave temática que atualiza as lutas sociais pós-ditadura militar. Buscamos
neste artigo explicitar um pouco do funcionamento da relação política-humor crítico a partir
de uma interpretação das mesmas.

REFERÊNCIAS
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