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Batalhas pela memória: ditaduras, revoluções e

democracias
Battles for memory: dictatorships, revolutions and democracies
Batallas por la memoria: dictaduras, revoluciones y democracias
Eduardo Roberto Jordão Knack*

O presente trabalho constitui em uma Halbwachs (2006, p.72) alerta sobre a


resenha do livro Ditaduras e Revolução. Demo- importância de marcos sociais para memória
cracia e Políticas da Memória, publicado pela coletiva, pois, partindo de suas considera-
Edições Almedina em 2015, organizado por ções, só conhecemos a história de nosso gru-
Manuel Loff1, Filipe Piedade2 e Luciana Cas- po nacional por meio de outros testemunhos
tro Soutelo3 (LOFF, et al., 2015). Ler e refletir de acontecimentos importantes. Sua con-
sobre o tema dessa obra é de fundamental cepção de história, baseada na analogia do
importância dada a conjuntura em que vive- “cemitério” com os fatos passados imóveis e
mos. Tanto no Brasil como em diferentes pa- sepultados, induziu a uma separação radical
íses da Europa, os últimos anos marcam um
momento em que revisões históricas sobre o
passado de regimes ditatoriais e fascistas ga-
nham espaço e discursos políticos incorpo- *
Doutor em História pelo Programa de Pós-Gra-
ram apologias e mesmo pedidos pela volta duação em História da Pontifícia Universidade
de alguns desses regimes. Com o objetivo de Católica do Rio Grande do Sul, Brasil. Graduado
e Mestre em história pelo Programa de Pós-Gradu-
lançar um olhar atento a esse tipo de retor- ação em História da Universidade de Passo Fundo,
no, de lutas e conflitos em torno da memória Brasil. Atualmente, está em pós-doutoramento no
Programa de Pós-Graduação em Memória Social e
desses estados de exceção em diferentes pa- Patrimônio Cultural na Universidade Federal de
íses do ocidente, o livro em questão é uma Pelotas, Brasil, email: eduardorjk@yahoo.com.br
leitura obrigatória. Recebido em 11/04/2016 - Aprovado em 12/12/2016
http://dx.doi.org/10.5335/hdtv.17n.1.

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entre história e memória. Catroga (2001) ob- sobre a existência de Uma memória européia.
serva alguns pontos em comum sobre essas De uma forma geral, os artigos reunidos na
duas formas de estabelecer filiações com o obra abordam sociedades que foram subme-
passado, bem como a possibilidade de mu- tidas aos regimes fascistas ou “fascizados”,
danças, revisões e novas interpretações so- sob forte repressão social e policial, especial-
bre os “fatos”, ou seja, tal como a memória, mente entre os anos 1970-1980.
a história também está sujeita às dinâmicas e De acordo com os autores que organi-
aos interesses do presente. zaram o livro, os últimos quarenta anos des-
Se a história é um cemitério, como Hal- de “o final do ciclo de impulso revolucioná-
bwachs imaginou, é constantemente revira- rio e emancipador” iniciado na década 1970
do e suas tumbas estão sempre abertas, por “até à vaga neoliberal e neoconservadora
onde, de tempos em tempos, alguns cadáve- que se vem espraindo desde então”, impli-
res retornam para espreitar os vivos (ou são cam em uma batalha pela hegemonia polí-
retornados forçosamente, despertados de tica e cultural que se estende ao campo da
seu sono). Por isso, a leitura de Ditaduras e memória (LOFF, et al., 2015, p. 10). Entre as
Revoluções é importante, pois lança luz aos questões abordadas pelos autores reunidos
elementos presentes em rememorações de estão algumas referentes ao papel do esta-
grupos e sujeitos em sua relação com a his- do na produção, difusão e representação de
tória e com políticas públicas que tratam do memórias e políticas públicas, que podem
passado que envolve memórias traumáticas promover (ou não) consequências legais aos
em diferentes países do mundo ocidental. sujeitos envolvidos, desde punições ao res-
Especialmente porque sarcimento e indenização das vítimas desses
regimes.
[...] qualquer passado pode ser usado,
transformado em mercadoria, distorcido, A democratização, no caso ibérico,
comercializado, reelaborado, deslocado, promovida na década de 1970 abriu uma
indiciado, processado, julgado e, é claro, porta para a libertação da memória, segui-
esquecido (HUYSSEN, 2014, p. 177). da por um período de reconciliação (mais
Assim, o livro traz reflexões de pes- visível na Espanha), que acabou conduzin-
quisadores de diferentes países (ou que es- do a uma “desvalorização da memória an-
tudaram ditaduras em diferentes contextos), tifascista” (LOFF, et. al., 2015, p. 12). Esses
particularmente sobre Portugal, Espanha e o embates ocorrem porque os Estados, insti-
Brasil. A primeira parte apresenta pesquisa- tuições, movimentos políticos, entre outros,
dores que se debruçam sobre A luta pela me- produzem discursos memoriais, represen-
mória em Portugal: da ditadura, da Revolução; a tações adequadas aos seus interesses que se
segunda parte aborda A memória da Guerra cruzam, ou mesmo contradizem e entram
Civil espanhola e do Franquismo; a terceira par- em conflito com narrativas tecidas nos gru-
te lança luz sobre Uma nova frente: a memória pos sociais, dos sujeitos que vivenciaram os
da ditadura militar no Brasil e a quarta parte, períodos mais difíceis desses regimes. São
colocada como considerações finais, indaga memórias que se constituem no âmbito fa-

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miliar, ou mesmo em associações de classe, Manuel Loff, Estado, democracia e memória:
em uma escala menor que aquela dos agen- políticas públicas da memória da ditadura por-
tes do estado, instituições culturais ou de tuguesa (1974-2014). Esse artigo questiona o
partidos. fato de Portugal apresentar um quadro de
políticas públicas da memória da ditadura
Os estados que se definem como democrá-
ticos, que resultam de processos pós-auto- (1926-1974) que se constitui de forma muito
ritários, produzem discursos institucionais semelhante aos países em que a democracia
que descrevem processos de (re)fundação emergiu sem uma ruptura com o passado
radicados na rejeição da opressão (polí- autoritário, o que não aconteceu nesse país,
tica, social, étnica, cultural, de gênero...)
que precedeu a sua consolidação. Na his- onde uma revolução interrompeu o regime
toriografia e, particularmente, na divul- ditatorial. Loff também chama atenção para
gação histórica através dos mais variados a polarização que a revolução que pôs fim ao
instrumentos de atuação no espaço públi- salazarismo introduziu na sociedade portu-
co (e particularmente através dos média),
guesa, dificultando o enraizamento de con-
desenvolvem-se, também aqui inevitavel-
mente, políticas da memória (LOFF, et al., sensos mínimos sobre a memória da dita-
2015, p. 13). dura. O autor estabelece uma periodização,
apresentando, caracterizando e debatendo
Após as décadas iniciais da democracia
diferentes fases de políticas da memória da
em Portugal e Espanha, começam a ocorrer
ditadura em Portugal, desde 1976 até o pre-
confrontos entre discursos políticos opostos
sente.
que se concentraram em alguns pontos po-
O artigo de Paula Godinho, Passados
lêmicos, como a responsabilidade da Guerra
insubordináveis: acontecimento, razão escrita e
Civil espanhola, da repressão e da dignida-
memórias fracas é o segundo capítulo da pri-
de moral das vítimas e sobre a natureza polí-
meira parte. As considerações da autora gi-
tica do salazarismo, o colonialismo/Guerra
ram em torno de um estudo sobre os discur-
Colonial, a repressão e os movimentos de
sos biográficos de integrantes do Movimento
resistência (LOFF, et al., 2015, p. 12). Huys-
Reorganizativo do Partido do Proletariado
sen (2014, p. 177) esclarece que os traumas
(MRPP), especialmente no que diz respeito
históricos, como o Holocausto, o nazismo, o
aos embates entre uma memória coletiva do
fascismo, as ditaduras, figuram no primeiro
grupo em foco e em uma memória pública,
plano de uma política da memória mundial,
construída pelos discursos dos meios de co-
mas como a presente obra indica, avanços
municação, livros, toponímia, entre outras
neoliberais e conservadores nas sociedades
representações. Completam essa segunda
que sofreram com esses regimes autoritaris-
parte os artigos de Cristina Nogueira, Res-
tas e repressores entram em choque com a
gatar a memória: os jornais 3 páginas para as
memória das vítimas e dos integrantes de
Camaradas das Casas do Partido e A Voz das
movimentos de resistências.
Camaradas das Casas do Partido; de Fernando
Partindo dessas considerações, a pri-
Rosas, A Revolução portuguesa de 74/75 no seu
meira parte da obra inicia com o artigo de
40° aniversário; de Bruno Monteiro, Revolução

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de outro modo. Práticas de construção da memó- trabalho na análise das políticas públicas
ria sobre a revolução entre as elites económicas promovidas no âmbito do Estado que, para
do Porto; de Ana Sofia Ferreira, Memória da a autora, apenas foram promovidas em fun-
luta armada durante os 40 anos de democracia; ção da mobilização de uma parcela da socie-
de Filipe Piedade, A memória das Forças Ar- dade. Nesse caso, foram abordadas a forma-
madas sobre a Guerra Colonial nas páginas de ção da Comissão de Anistia, da Comissão
publicações militares (1976-2012); finalizando de Mortos e Desaparecidos e a Comissão da
com Luciana Soutelo, O revisionismo histórico Verdade, todas entendidas como uma forma
em perspectiva comparada: os casos de Portugal de ampliação do estado sobre a memória,
e Espanha. observando os consequentes avanços e re-
A segunda parte do livro, direcionada trocessos em relação à legislação e às políti-
à Guerra Civil espanhola começa com o ar- cas de memória sobre a Ditadura.
tigo de Julián Casanova, O castigo no(s) pós- O capítulo escrito por Lucileide Costa
-guerra(s), onde analisa a ditadura de Franco Cardoso versa sobre a elaboração de discur-
saída da guerra civil e consolidada entre a sos memorialísticos e historiográficos do
Segunda Guerra Mundial. O autor elabora Golpe de 1964 e da ditadura e como inter-
um paralelo entre a construção de uma me- pretações históricas acabam incorporadas à
mória da Guerra Civil espanhola, da ditadu- memória, contribuindo para cristalizações,
ra franquista e da Segunda Guerra. Casano- revitalizações e confrontos. Os novos recor-
va demonstra como os debates em torno dos tes, temáticos, conceituais e temporais im-
direitos humanos, das memórias de guerras pulsionados pelos movimentos sociais, as
e ditaduras em um plano internacional im- datas simbólicas como os trinta, quarenta e
pulsionou movimentos e organização das cinquenta anos do golpe foram abordados
vítimas da guerra e da ditadura espanhola pela autora que defende a tese de que, no
em uma busca por justiça e reconhecimen- caso brasileiro, não houve uma ruptura po-
to público da tragédia. Outros dois artigos lítica na transição da ditadura para a demo-
compõem a análise do caso espanhol: o tra- cracia, mas o estabelecimento de consensos
balho de Carme Molinero, A herança do pas- entre diferentes grupos sociais. Para susten-
sado. O franquismo e a direita espanhola, e o de tar sua proposta, Lucileide empreende uma
Pere Ysàs, Memória e silêncio. A esquerda espa- pesquisa em diferentes produções memoria-
nhola durante a transição. lísticas e históricas sobre o regime ditatorial
A terceira parte, dedicada aos estudos brasileiro desde 1964 até 1980.
sobre a ditadura no Brasil é composta por A quarta parte apresenta três capítulos:
dois artigos: o de Carla Luciana Silva, As Memórias europeias. Perspetivas emaranhadas,
políticas de memória no Brasil, 50 anos após o de Enzo Traverso; Invasores ou vítimas? Sobre
Golpe, e de Lucileide Costa Cardoso, 50 Anos a memória transnacional da guerra germano-so-
Depois: Discursos de Memória e Reconstruções viética (1941-45), de Xosé M. Núñez Seixas e
históricas sobre o Golpe de 1964 e a Ditadura A ética da memória europeia: o que deve ser feito,
Brasileira. Carla Luciana Silva direciona seu de Luisa Passerini. Traverso inicia seu arti-

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go tecendo considerações sobre as relações aborda diferentes questões relacionadas a
entre memória e história, observando intera- constituição, revisão, comemoração e reme-
ções e limites entre esses dois conceitos, con- moração do passado em países que sofreram
siderando que, no último século, a memória com ditaduras, mas, também, traz questões
coletiva se transformou em um objeto de in- importantes sobre a memória de sujeitos e
vestigação para os historiadores. Suas consi- grupos revolucionários, que combateram es-
derações teóricas giram em torno das formas ses regimes.
de representação do passado, da escrita da
história e da constituição de uma memória
Notas
histórica. Para exemplificar sua discussão, o
autor aborda diferentes acontecimentos ao 1
Professor no Departamento de História e de Es-
tudos Políticos e Internacionais da Faculdade
longo do tempo do espaço, como a memória de Letras da Universidade do Porto, investiga-
do Holocausto e sua narrativa, bem como o dor do Instituto de História Contemporânea da
papel que esse evento, ou melhor, a maneira FCSH/UNL.
2
Mestre em História Contemporânea e Licenciado
como foi instituída sua memória (a memória em Línguas e Relações Internacionais pela Facul-
das vítimas), influenciou a narração e a me- dade de Letras da Universidade do Porto.
3
Mestre em História Contemporânea e doutoran-
mória de outros conflitos europeus. da em História na Faculdade de Letras da Uni-
Xosé Núñez Seixas centra suas refle- versidade do Porto.
xões em torno da construção de uma memó-
ria transnacional após a guerra germano-so-
Referências
viética (1939-1945), elaborando uma síntese
do percurso dessa elaboração em países
CATROGA, Fernando. Memória, história e histo-
Alemanha, Itália, Espanha, França, Finlân- riografia. Quarteto Editora: Coimbra, 2001.
dia, Holanda, Bélgica, Noruega e Suécia.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva.
O autor assinala que não existe um padrão São Paulo: Centauro, 2006.
de rememoração ou lembrança desse da
HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-pre-
Frente Leste desse conflito, existindo uma sente: modernismos, artes visuais, políticas da
grande variedade de memórias públicas e memória. Rio de Janeiro: Contraponto: Museu
privadas e de políticas da memória estatal- de Arte do Rio, 2014.
-nacional que dialogam entre si. Finalizando LOFF, Manuel; PIEDADE, Filipe; SOUTELO,
o livro, Luisa Passerini questiona a existên- Luciana Castro. (Coord.). Ditaduras e revolução.
cia de uma identidade europeia que possa Democracia e políticas da memória. Coimbra:
servir de base para a criação de uma memó- Edições Almedina, 2015.
ria comum aos europeus. Em seu artigo, a
autora analisa o papel dos migrantes, das
artes visuais, do cinema e até da mitologia
nas tentativas da criação de uma memória
comum na Europa. Concluindo, é possível
observar que o livro Ditaduras e Revoluções

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