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"A ABÓBADA", ALEXANDRE HERCULANO

CAPÍTULO I
ESPAÇO - Adro da Igreja de Santa Maria da Vitória, vulgarmente conhecido como Batalha.

TEMPO - Meio-dia do dia 6 de janeiro de 1401.

PERSONAGENS

• Afonso Domingues era um velho, de aspeto venerável, com uma comprida barba branca.

Tinha as faces fundas, "as maçãs do rosto elevadas, a fronte espaçosa e curva e o perfil do

rosto quase perpendicular". Trazia vestido um gibão escuro e sobre ele uma capa curta. Na

cabeça tinha uma touca. Apesar de cego e dos membros trémulos e enrugados, percebe-se

que o seu ânimo continuava inflamado de vida e que fora um homem de engenho, arte e

trabalho. Sentia-se marginalizado, menosprezado e revoltado por lhe ter sido retirada a

direção da construção do mosteiro, agora que estava cego; ele que, para além de cavaleiro ao

serviço de D. João I, na altura da crise política de 1383-1385, tinha sido um habilidoso

arquiteto, o criador e projetista da Batalha, reconhecido e estimado por todos, inclusivamente

pelo rei. O sentimento de revolta que deixa transparecer deve-se, por isso, não só ao seu

afastamento mas também ao facto de ter sido substituído por um estrangeiro, quando

acreditava que esta deveria ser uma obra que só um português poderia assumir e conduzir,

manifestando, deste modo, um profundo sentimento nacional.

•Frei Lourenço Lampreia - Padre-prior do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, era um homem

velho, de "tez macilenta" e com "barbas e cabelos grisalhos". O seu estatuto (ser considerado

um conceituado teólogo português) bem como o facto de ter sido confessor do rei D. João I

conferiam-lhe autoridade. Era um homem determinado, crente em Deus e piedoso.

• Frei Joane - Padre procurador do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, era ainda

relativamente moço, de "faces coradas e cheias" e de barba negra. Revelava-se um homem

teimoso, impaciente e pouco flexível, sobretudo no que à disciplina monástica dizia respeito.

• Ana Margarida - Velha ama de Afonso Domingues, era uma mulher trabalhadora e dedicada

ao mestre.

RELAÇÕES ENTRE AS PERSONAGENS

• Afonso Domingues / Frei Lourenço Lampreia - respeito mútuo, dadas as qualidades que
cada um reconhece no outro. Afonso Domingues sente à vontade para desabafar com o
padreprior e este chega a comover-se e a apiedar-se do velho cego.
• Afonso Domingues / Frei Joane - relação distante entre os dois homens; Frei Joane, apesar
de ouvir os desabafos de Afonso Domingues, nunca se dirige a ele e demonstra não o

compreender.

•Frei Lourenço Lampreia / Frei Joane - relação de confiança, demonstrada na informalidade

com que discutem; o padre-prior revela autoridade sobre o padre procurador.

•Afonso Domingues / Ana Margarida - relação de cumplicidade e carinho.

• Afonso Domingues / Mestre Ouguet - apesar de reconhecer as qualidades de Mestre

Ouguet, Afonso Domingues recusa-se a aceitar que ele o tenha substituído, não só porque o

projeto inicial era de sua autoria, mas por considerar que um estrangeiro que não viveu a crise

política de 1383-1385 nunca seria capaz de edificar uma obra que representa a especificidade

de toda uma nação.

• Afonso Domingues / D. João I - D. João I tem uma grande estima e consideração por Afonso

Domingues; este, por seu lado, sente-se ultrajado e menosprezado por causa do seu

afastamento forçado. Considera que a tença que lhe foi concedida não paga a glória nem a

imortalidade e que seria merecedor dela pelos seus feitos enquanto cavaleiro.

NARRADOR

Quanto à presença, é heterodiegético: "No adro do Mosteiro de Santa Maria da

Vitória, vulgarmente chamado da Batalha, fervia o povo..." (Il. 23-24); quanto à focalização é

omnisciente: "Mas não era para ouvir a missa conventual que o povo se escoava pelo

profundo portal do templo para dentro do recinto sonoro daquela maravilhosa fábrica; era

para assistir ao auto da adoração dos reis" (Il. 29-31); externa: "Dois frades estavam em pé no

limiar da porta e altercavam em voz alta: de vez em quando, pondo-se nos bicos dos pés e

estendendo os pescoços, parecia quererem descobrir no horizonte, que as cumeadas dos

montes fechavam, algum objeto..." (Il. 90-93)

SENTIMENTO NACIONAL-Visível no facto de Afonso Domingues ter lutado na batalha de

Aljubarrota, ao lado de D. João I; no facto de considerar uma afronta ter sido substituído por

um estrangeiro que acabará por retirar mérito a um arquiteto português e no facto de

considerar que o Mosteiro da Batalha não é "obra de reis [...I mas nacional, mas popular, mas

da gente portuguesa, que disse: não seremos servos do estrangeiro e que provou seu dito" (II.

224-226).

RECURSOS EXPRESSIVOS

• Comparação - "Era um destes formosíssimos dias de inverno mais gratos que os de estio" (II.
4-5); "aquelas multidões, vestidas de cores alegres e semelhantes, no seu complexo, a

serpentes imensas." (II. 38-39)

•Enumeração - "mainéis rendados, peças dos fustes, capitéis góticos, laçarias de bandeiras,

cordões de arcadas..." (Il. 56-57); "cada coluna, cada mainel, cada fresta, cada arco era uma

página de canção imensa". (II. 186-187)

• Metáfora — "a natureza [...] rasgando o denso véu da estação das tempestades" (ll. 21-22);

"este mosteiro que se ergue diante de nós era a minha Divina Comédia, o cântico da minha

alma" (ll.184--185)

• Personificação — "em que os raios de Sol, [...] estirando-se vívidos e trémulos [...] errando

por entre os troncos pardos dos arvoredos despidos pelas geadas" (LI. 6-9); "em que a

natureza sorri como a furto" (l. 21)

SÍNTESE
Ao meio-dia de 6 de janeiro de 1401, o povo desloca--se em massa à Igreja de Santa

Maria da Vitória para assistir ao auto da adoração dos reis. Enquanto a multidão aguarda no

interior da igreja, um velho cego, sentado numa pedra, vai avaliando com as mãos o trabalho

que está a ser realizado no mosteiro, ao mesmo tempo que dois frades discutem sobre a

probabilidade de D. João I estar presente na cerimónia. Ao avistar o velho, Frei Lourenço

Lampreia dirige-se a ele e este aproveita para se lamentar do facto de ter sido afastado,

enquanto arquiteto, da direção das obras por estar cego. O Frade tenta reconfortá-lo, dizendo-

lhe que o rei continua a reconhecer o seu mérito e que, por isso, lhe concedeu uma tença, mas

Afonso Domingues advoga que essa gratificação se deve sobretudo ao seu desempenho como

cavaleiro na batalha de Aljubarrota e que não pagaria nem a glória nem a imortalidade.

Manifesta, ainda, a sua revolta pelo facto de a obra ter sido entregue a um estrangeiro que

nunca poderia traduzir o sentimento nacional inerente àquela construção. A conversa é

interrompida pela ama do mestre que o vem buscar para a ceia e nesse instante vê-se a chegar

ao longe a companhia de cavaleiros que acompanhava D. João I.

CAPÍTULO II
ESPAÇO — Interior da Igreja de Santa Maria da Vitória (no local onde é celebrado o auto e na

Casa do Capítulo).

TEMPO — Fim da tarde do dia 6 de janeiro de 1401.


PERSONAGENS

•D. João I — "Plebeu por herança materna, nobre por ser filho de D. Pedro I", era um rei muito

popular e amado pelo povo, sentimento que reconhecia e pelo qual se sentia muito grato.

Trazia uma espécie de capa de veludo carmesim sobre o brial, uma carapuça de pano preto e

um falcão adestrado para a caça. Era um homem de poucas formalidades, risonho, mas que

sabia também ser severo, quando a situação o exigia. Não temia os inimigos e sabia

reconhecer o mérito de quem o merecia, como é visível quando se pronuncia em relação a

Afonso Domingues.

•Mestre Ouguet — De origem irlandesa, era um homem de meia-idade e de estatura mediana,

embora ostentasse uma barriga avolumada, pelas grandes quantidades de líquido que ingeria.

Tido como um bom homem, percebia-se, no entanto, o seu egocentrismo, já que os seus

interesses eram colocados acima de quaisquer outros, bem como a sua ambição e vaidade. Era

responsável pelas suas obrigações, prudente. prático, eloquente, brioso e seguro do seu

trabalho, fazendo questão de realçar os seus dotes e talento como arquiteto. Apesar de

contratado por D. João I, evidenciava desprezo pelo povo português e pelo arquiteto a quem

sucedeu, embora tentasse dissimular essa sua altivez. Foi cavaleiro do duque de Lencastre e,

por isso e pelo facto de ter comprovado ter atingido o "grau de mestre na sociedade secreta

dos obreiros edificadores", conseguiu obter os favores da rainha, D. Filipa.

RELAÇÕES ENTRE AS PERSONAGENS

•D. João I / Mestre Ouguet — Apesar de reconhecer o mérito do arquiteto irlandês,

repreende Mestre Ouguet quando fala sobre Afonso Domingues com pouco respeito. Mestre

Ouguet, embora pretenda agradar ao rei, não se coíbe, no entanto, de mostrar algum

desprezo quando, a sós, escarnece do seu povo.

• D. João I/ Afonso Domingues — D. João I revela uma enorme estima pelo arquiteto

português, reconhecendo-lhe grande mérito e exigindo respeito pela sua figura.

• Mestre Ouguet / Afonso Domingues — Embora declare venerar Afonso Domingues, Mestre

Ouguet menospreza o arquiteto português por considerar que lhe falta saber teórico.

NARRADOR — quanto à presença, é heterodiegético (ainda que a passos adote a 1ª pessoa do

plural, quando assume o seu relato): "Foi o caso: quando a cavalgada de que fizemos menção

no fim do antecedente capítulo vinha descendo a encosta sobranceira à planície do mosteiro,


entre o povo que estava dentro da igreja, impaciente já pela demora do auto, começou-se a

espalhar um sussurro, que cada vez crescia mais". (ll. 15-18); Quanto à focalização, é

omnisciente: "David Ouguet era bom homem, excelente homem: não fazia aos seus

semelhantes senão o mal absolutamente indispensável ao próprio interesse" (ll. 73-75);

externa: "Chegando à porta do mosteiro, onde o esperava já Frei Lourenço com parte da

comunidade, apeou-se de um salto e, com rosto risonho e a mão no barrete, agradeceu sua

cortesia e aquelas mostras de amor aos populares, que gritavam, apinhados à roda dele" (ll.

28-31).

SENTIMENTO NACIONAL — Evidente no facto de o narrador se referir ao rei D. João I como

tendo sido "eleito por uma revolução" e ser "o mais popular, o mais amado e o mais acatado"

de todos os reis da Europa, pelo que o povo, à sua chegada, grita "Viva D. João I de Portugal;

morram os Castelhanos" (ll- 31-32). Visível, ainda, nas palavras elogiosas que D. João tece em

relação a Afonso Domingues, enquanto maior arquiteto português e responsável por uma obra

que "causa assombro" aos ingleses e, por contraste, no tom de escarninho com que Mestre

Ouguet se refere ao povo português, às suas práticas e aos seus costumes.

RECURSOS EXPRESSIVOS

• Comparação — "De repente, toda aquela multidão se agitou, remoinhou pela igreja e

principiou a borbulhar pelo portal fora, como por bico de funil o líquido deitado de alto." (II.

19-21); "porque o povo, bem como o tigre, mistura sempre com o rugido de amor o bramido

que revela a sua índole sanguinária" (ll. 32-34).

• Enumeração — "David Ouguet era um irlandês, homem mediano em quase tudo; em idade,

em estatura, em capacidade e em gordura" (ll. 64-65); "de Santarém aqui é uma corrida de

cavalo; muito mais para quem, em vez de cota de malha, arnês e braçais, traz vestidos de

seda" (ll. 52-54).

• Metáfora — "seria capaz de se empoleirar sobre o cadáver de seu pai para tocar a meta de

qualquer desígnio ambicioso." (ll. 77-78); "Com três lições de frases ocas, dava pano para se

engenharem dele dois grandes homens de estado" (ll. 78-79).

SÍNTESE

Assim que D. João I chega ao mosteiro é recebido em apoteose pelo povo, que sai da

igreja para o aclamar. Depois de se recusar a tomar uma refeição e a descansar nos seus

aposentos e tendo manifestado vontade de ver a Casa do Capítulo, foi encaminhado para o
local por Frei Lourenço e por Mestre Ouguet que lhe confessou ter tomado a ousadia de

alterar o projeto de Afonso Domingues por achar que a "planta geral contrastava as regras da

arte" que tinha aprendido. D. João pergunta-lhe, então, se ele comunicou essa sua alteração

ao arquiteto português e, tendo respondido que não, o rei chamou-o à atenção para o facto de

Afonso Domingues ser considerado o maior arquiteto português e de a sua obra fazer furor

também em Inglaterra. Porém, como a luz do dia era já escassa, D. João adiou para o dia

seguinte o seu propósito de ver com atenção todos os pormenores da construção,

manifestando a intenção de ir assistir ao auto da adoração dos reis. Assim que o rei abandona

o local, Mestre Ouguet troça dos portugueses, considerando-os incultos e "miseráveis

selvagens" mas, ao atentar na "maciça abóbada" da Casa do Capítulo, corre esbaforido, como

um louco, "pela crasta solitária", maldizendo a sua sorte.

CAPÍTULO III
ESPAÇO — Interior da Igreja de Santa Maria da Vitória (no Local onde é celebrado o auto e na

Casa do Capítulo).

TEMPO — Noite do dia 6 de janeiro de 1401.

PERSONAGENS

• Diabo — Assume uma postura espalhafatosa, não só por se apresentar "vestido de peles de

cabra, com um rabo que lhe arrastava pelo tablado e seu forcado na mão" mas também pelas

suas constantes caretas, "trejeitos e esgares" bem como pela sua faceta de palhaço.

Demonstra-se confiante, por acreditar no seu papel antiquíssimo de desestabilizador.

• Idolatria — Surge com uma postura queixosa, por recear deixar de ser alvo de culto.

• Fé — Assume uma postura perentória em relação à Idolatria, ao afirmar que desde sempre

esteve "apontado o dia em que o império dos ídolos devia acabar".

• Esperança — Dotada de virtude e submissa a Deus, a sua missão era apontar o caminho reto

à Humanidade. Além disso, pugnava pela igualdade entre todos e, por isso, é acusada de ser

"sandia" e de enganar os Homens.

•Soberba — Revela-se desdenhosa, orgulhosa e defensora dos mais poderosos, acabando, no

entanto, por ficar desarmada com as palavras da Caridade.

• Caridade — Adota uma postura firme; proclama que todos os Homens são iguais e que Deus

tem mais comiseração pelos mais pequenos e humildes.


• Reis magos — Surgem ricamente vestidos, com roupas compridas e finas, "mantos reais e

coroas na cabeça".

• Mestre Ouguet — Irrompendo pela multidão, revela um estado de profunda loucura, visível

nos "cabelos desgrenhados", na "boca torcida e coberta de escuma" e nos "olhos esgazeados".

Em delírio total, lança imprecações contra Afonso Domingues, responsabilizando-o pelo seu

falhanço, e depois contra Frei Lourenço, por o julgar cúmplice do cego.

• Frei Lourenço — Crente em Deus, não hesita em exorcizar Mestre Ouguet por o considerar

possuído pelo demónio. Emociona-se com a queda da abóboda da Casa do Capítulo.

• D. João I — Homem devoto e crente em Deus, começa por assistir atentamente ao

desenrolar do auto, tendo-se mostrado absorto e passivo, quando Mestre Ouguet irrompe

intempestivo pela Igreja. No entanto, quando a situação assim o exige, revela-se firme e

resoluto, animando os seus súbditos e dando-lhes mostras coragem e garantias de proteção,

ainda que se tenha deixado mover com a queda da abóboda da Casa do Capítulo.

RELAÇÕES ENTRE AS PERSONAGENS

•Fé, Esperança e Caridade / Idolatria, Diabo e Soberba — Revelam uma relação de oposição,

já que as primeiras figuras representam virtudes e as segundas os vícios da Humanidade.

•Mestre Ouguet / Afonso Domingues — Mestre Ouguet nutre ódio por Afonso Domingues, a

quem apelida de maldito e feiticeiro e a quem atribui a culpa do seu desaire como arquiteto.

•Mestre Ouguet / Frei Lourenço — Mestre Ouguet destila o seu ódio sobre o frade por o

considerar cúmplice de Afonso Domingues. O frade apieda-se do arquiteto e prontifica-se a

exorcizá-lo.

NARRADOR — Quanto à presença, é heterodiegético (ainda que a passos adote a 1ª pessoa do

plural, quando assume o seu relato):”. Pela mesma porta da sacristia saíram logo as primeiras

figuras do auto, as quais, descendo ao longo da nave, subiram ao cadafalso pelas pranchas de

que fizemos menção" (II. 18-20). Quanto focalização, é omnisciente; "Supor que endoidecera

parecia grande despropósito; porque nenhum motivo havia para tal lhe acontecer, quando

merecera os gabos de el-rei e de todos, por levado a cabo a grandiosa obra que lhe estava

encomendada. Estes e outros raciocínios, hoje ridículos, mas, segundo as ideias daquela época,

bem fundados e correntes, fazia o reverendo padre-procurador Frei Joane" (II. 189-193);

externa: "Dizendo isto, Frei Lourenço chegou-se a el-rei e disse-lhe o que quer que fosse. Ele

escutou-o atentamente, e, tanto que o prior acabou, assentou-se outra vez na sua cadeira de
espaldas e fez sinal com a mão aos fidalgos e cavaleiros para que também se assentassem" (ll.

205-208).

SENTIMENTO NACIONAL — Manifestado na realização de um auto integrado nas tradições

populares portuguesas e no facto de D. João I declarar que nada que seja natural é "capaz de

pôr espanto em cavaleiros portugueses".

RECURSOS EXPRESSIVOS

• Comparação — "Milhares de olhos estavam fitos nesse vulto, que semelhava uma larva de

condenado saída das profundezas para turbar a festa religiosa." (ll. 179-181); "E houve um

momento de angústia e terror, em que todos os corações deixaram de bater, e em que todos

os olhos, braços e pernas ficaram fixos, como se fossem de bronze." (Il. 248-250).

• Enumeração — "Enfim, um homem, rompendo por entre a multidão, sem touca na cabeça,

cabelos desgrenhados, boca torcida e coberta de escuma, olhos esgazeados, saltou para

dentro da teia" (Il. 151-153); "A estas palavras, rei, cavaleiros, frades, povo, tudo se pôs de

joelhos." (l. 218).

• Metáfora — "porque entendera enganar os homens com vaidades de incertos futuros e

sustentá-los com fumo" (ll. 46-47); "Belchior não pôde continuar, com grande dissabor do

poeta, que via murchar a coroa de louros que neste auto esperava obter." (Il. 147-148).

• Personificação — "um segundo grito soou e veio morrer sussurrando pelas naves da igreja

quase deserta." (ll. 283-284); "a lua, que passava tranquila nos céus, refletia o seu clarão pálido

sobre este montão de ruínas" (ll. 290-291).

SÍNTESE

No interior da igreja, começa a desenrolar-se o auto de adoração dos reis. Finda a

intervenção das seis figuras alegóricas representativas das virtudes e dos vícios humanos e na

altura em que os reis magos fazem o seu discurso de adoração ao menino, a cerimónia é

interrompida por Ouguet, que entra na igreja em estado de delírio, praguejando contra Afonso

Domingues e proferindo um discurso sem nexo para os presentes. Convencido de que o

arquiteto estava possuído pelo demónio, Frei Lourenço começa a exorcizá-lo e o homem acaba

por cair estatelado no chão. Nessa altura, ouve-se um grande estrondo que assombra a

multidão. D. João I de imediato prontifica-se a averiguar o que se tinha passado e, seguido pela

sua comitiva, pelos frades e por uma parte substancial do povo, dirige-se à Casa do Capítulo e

aí constata que a abóboda acabara de cair.


CAPÍTULO IV
ESPAÇO — Sala dos aposentos reais no Mosteiro da Batalha.

TEMPO — Meio-dia do dia 7 de janeiro de 1401.

PERSONAGENS

• D. João I — Apesar de se sentir injustiçado e incrédulo, quando sabe o que pensa Afonso

Domingues sobre o seu afastamento das obras do mosteiro, D. João I revela não ser orgulhoso

ao decidir voltar, de forma acautelada, a conduzir o arquiteto português no cargo de mestre de

obra. No diálogo que trava com Afonso Domingues, começa por demonstrar ser sincero,

humilde e piedoso. No entanto, quando o cego lhe faz frente, mostra-se altivo mas, servindose
da sua eloquência, deixa transparecer de novo a sua humildade, generosidade, patriotismo

e ser magnânimo quando não alimenta as querelas entre João das Regras e Nuno Álvares

Pereira.

• João das Regras — Tido como um cavaleiro honrado e muito nobre, era um dos principais

conselheiros do rei, a par de Nuno Álvares Pereira. Revela ser conflituoso e submisso à força

dos ingleses, preterindo o que é nacional em favor dos aliados.

• Martim de Océm – Era conselheiro de D. João I e considerado um grande cavaleiro, muito

estimado pelo rei. Percebe-se que sente algum desprezo pelas práticas religiosas.

•Mestre Ouguet - Recuperadas as faculdades psíquicas, revela ser um homem sincero ao

confessar que, apesar de não se recordar de tudo, a sua reação durante a cerimónia tinha sido

uma consequência de ter percebido a fragilidade da abóboda.

• Frei Lourenço - Fiel. ao rei, nada lhe esconde e, por isso, põe-no a par da conversa que tinha

tido no dia anterior com Afonso Domingues. Revela ser um homem colérico e irónico, quando

o provocam.

• Afonso Domingues - Bom e honrado português, cego, mouco e coxo, começa por adotar

uma postura de humildade, quando está na presença de D. João I, chegando mesmo a

menosprezar-se. No entanto, demonstra também ser um homem sincero e frontal, não se

coibindo de dizer ao rei que ficou ofendido com o seu afastamento. Revela ainda uma faceta

profética, comprovativa do seu talento, quando admite ter sabido de antemão que a abóbada

iria desabar. Porém, face ao pedido do rei de voltar a dirigir as obras de mosteiro, Afonso

Domingues sentindo-se ferido no orgulho recusa, inicialmente, a proposta, dando mostras de

que não valoriza os bens materiais, mas os da glória e da imortalidade. Acaba por se comover e
aceitar conduzir as obras, pois acredita nas suas capacidades e no seu talento.

RELAÇÕES ENTRE AS PERSONAGENS

• D. João I /Afonso Domingues - Apesar de terem mantido uma relação de mútuo respeito e

reconhecimento, o arquiteto português ficou ressentido com o seu rei por ter sido afastado da

condução das obras do Mosteiro da Batalha. Afonso Domingues reconcilia-se com D.

João, admitindo que as suas almas eram gémeas e que. só os dois reconheciam o real valor

dos conceitos de pátria e glória.

• D. João I / João das Regras - D. João reconhecia a importância de João das Regras para a sua

regência e, por isso, evitava desaguisados entre ele e Nuno Álvares Pereira. João das Regras,

embora fosse fiel ao rei, por vezes, discordava da sua conduta.

• João das Regras / Afonso Domingues - João das Regras revela uma atitude pouco amistosa

em relação a Afonso Domingues (o cego foi homem de armas de Nuno Álvares Pereira; prefere

que Ouguet continue como mestre de obra em nome da aliança com Inglaterra)

• João das Regras / Nuno Álvares Pereira - Embora desempenhando um papel de igual

relevância junto do rei, João das Regras e Nuno Álvares Pereira têm uma relação conflituosa,

não se coibindo de dar provas do seu valor; o chanceler, apelando à sua sapiência; o

Condestável, invocando a sua coragem.

NARRADOR - Quanto à presença, é heterodiegético: "Atrás da cadeira de el-rei, um pajem

esperava, em pé, as ordens do seu real senhor. O quadrante do terrado contíguo apontava

meio-dia." (ll. 11-12); Focalização omnisciente: "El-rei sentiu a piedade coar--lhe no coração

comprimido de despeito e dilatar-lho suavemente." (II. 140-141); externa: "El-rei parecia

grandemente comovido, e, talvez involuntariamente, lançou um braço ao redor do pescoço do

cego, que soluçava e tremia sem soltar uma só palavra." (ll. 162-164).

SENTIMENTO NACIONAL - Evidente na dedicação de D. João à construção do mosteiro,

enquanto marco de urna revolução coletiva a favor da independência do reino e nas palavras

elogiosas com que se refere, orgulhosamente, ao povo português. É ainda visível na forma

sentida com que Afonso Domingues explica o significado de âmbito nacional que a sua

projeção do mosteiro pretende transmitir, no seu orgulho por ter lutado contra os castelhanos

na batalha de Aljubarrota, no elogio que faz à liberdade tão querida e desejada havia poucos

anos pelo povo português e no facto de ter exigido ter como colaboradores artífices

portugueses. Manifesta-se também, por contraste, no facto de João das Regras estar disposto
a abdicar de um grande mestre português para agradar aos aliados ingleses.

RECURSOS EXPRESSIVOS

• Comparação - "Se estes olhos não tivessem feito com que eu fosse posto de banda como

uma carta de testamento antiga, que se atira, por inútil, para o fundo de uma arca" (ll. 114-

115); "var-rê-la-ei da memória, como o entalhador varre as lascas e a pedra moída pelo cinzel

de cima do vulto que entalhou em gárgula de cimalha rendada" (ll.176-177).

• Enumeração - "vós tendes um cetro e uma espada; tendes cavaleiros e besteiros; tendes

ouro e poder" (ll.. 121-123).

• Metáfora - "A sua grande canseira é que ninguém saberá continuar a edificação do mosteiro

ou, como ele diz, prosseguir a escritura do seu livro de pedra" (II. 56-58); "D. João I, que

conhecia serem esses dois homens as pedras angulares do seu trono, escutava-os sempre com

respeito" (Il. 66-67).

SÍNTESE - Depois de o rei, os seus conselheiros, os frades e outros fidalgos avaliarem a

situação ocorrida no dia anterior e consultarem o projeto idealizado por Afonso Domingues, D.

João manda chamá-lo, disposto a restituir-lhe o cargo de mestre das obras do mosteiro. O

arquiteto português, ferido no seu orgulho, recusa a proposta. Então o rei, adotando uma

postura humilde e enfatizando o valor dos portugueses e do próprio mestre, consegue

dissuadi-lo e convencê-lo a conduzir a edificação da abóboda. O cego compromete-se a levar a

cabo no prazo de quatro meses. Esta recondução do arquiteto português acaba por desagradar

a João das Regras, por estar convencido que seria mais conveniente assegurar a permanência

de Mestre Ouguet, como forma de garantir as boas relações com os aliados ingleses.

CAPÍTULO V

ESPAÇO - Casa de Frei Lourenço e Casa do Capítulo do Mosteiro da Batalha.

TEMPO - Cerca do meio-dia do dia 7 de maio de 1401 até dia 10 do mesmo mês e ano. o.

PERSONAGENS

• D. João I - Tido como um verdadeiro cavaleiro português, revela ser um homem de palavra,

quando envia para a Batalha os melhores artífices portugueses que trabalhavam em

Guimarães, conforme prometera a Afonso Domingues. Demonstra, ainda, ser corajoso e

protetor da pátria, nos confrontos que mantém com os castelhanos (e daí surgir na Batalha
devidamente armado), sensível e solidário com o povo, até pelas suas origens, perspicaz.

Mostra-se humilde e modesto, quando recebido por Frei Lourenço, embora tenha sempre bem

cientes as suas responsabilidades enquanto rei. Por outro lado, é manifesta a sua crença em

Deus, já que é sua intenção pedir o Seu o auxílio na luta contra os castelhanos, durante o

tempo em que aguarda que a ponte fique pronta. É visível também uma faceta humorística e

irónica, quando, dialogando com Brites de Almeida, lhe diz que faz questão de agora

retribuir aos castelhanos as constantes visitas que fizeram a Portugal, e a sua generosidade e

reconhecimento do mérito, quando doa a Ana Margarida "as casas em que o mestre morava"

e manda erigir uma estátua para homenagear o velho arquiteto português.

• Martim Vasques - "De rosto comprido, tez queimada, nariz aquilino, olhos pequenos e

vivos", revela ser um homem de confiança de Afonso Domingues a quem este reconhece

grande talento. É evidente também a sua humildade. Por outro lado, manifesta ser

extremamente diligente no cumprimento das tarefas que lhe são incumbidas.

• Frei Lourenço - Fiel ao rei, revela a sua afeição por D. João na forma como o recebe em sua

casa. Demonstra também ser humilde, responsável e disciplinado, na medida em que está

ciente das suas obrigações enquanto prior do Mosteiro da Batalha.

• Afonso Domingues — Revela ser um homem com uma grande força de vontade e de

trabalho e muito determinado — terminou a abóboda antes do prazo e cumpriu

escrupulosamente os votos que fez. Além disso, é evidente ser um homem talentoso, até

porque todos o reconhecem, bem como extremamente honrado. Faz transparecer também

alguma humildade, quando reconhece o valor de Mestre Ouguet.

• Brites de Almeida — Velha gorda, de "tez avermelhada", corajosa, valente e patriota, no

ódio que evidencia pelos castelhanos e na forma como, no confronto entre estes e os

portugueses, no passado, acabou por matar sete deles, ato que lhe tinha valido o eterno

reconhecimento de D. João I.

RELAÇÕES ENTRE AS PERSONAGENS

• D. João I / Afonso Domingues — A reconciliação entre os dois é total, tendo ambos

cumprido com a palavra. Afonso Domingues acaba por dar a vida pela sua obra tão amada e D.

João, reconhecido e grato pela sua atitude e grandiosidade, manda erigir uma estátua em sua

homenagem.

•Afonso Domingues / Mestre Ouguet — Ambos acabam por reconhecer o mérito um do


outro, assistindo-se, por isso, a uma reconciliação entre os dois arquitetos: Afonso Domingues,

ao sugerir que, se algo lhe acontecesse, o seu melhor sucessor seria Mestre Ouguet; o

arquiteto irlandês, ao reconhecer que a morte de Afonso Domingues se tinha constituído

como uma grande perda.

NARRADOR — Quanto à presença, é heterodiegético (ainda que a passos adote a 1." pessoa do

plural, quando assume o seu relato): "Antes de partir de Lisboa, D. João I mandara sair dos

cárceres em que jaziam bom número de criminosos e de cativos castelhanos, que, com grande

pasmo dos povos, e rodeados por uma grossa manga de besteiros, tomaram o caminho da

Batalha, sem que ninguém aventasse o motivo disto" (Il. 50-53); Focalização omnisciente:

"Tinham chegado àquele sítio a 5 de maio, e no seguinte dia el-rei partira aforradamente para

a Batalha, porque não se esquecera de que os quatro meses que pedira Afonso Domingues

para alevantar a abóbada eram passados e fora avisado por Frei Lourenço de que a obra

estava acabada, mas que o arquiteto não quisera tirar os simples senão na presença de el-rei."

(Il. 45-49); externa: "El-rei, o prior e o arquiteto ainda se demoraram um pedaço, falando

acerca da obra e do que cumpria fazer no prosseguimento dela; mas o cego dissera o que quer

que fora, em voz baixa, ao rapaz que o acompanhava, o qual saíra imediatamente, e que só

voltou quando os três acabavam a conversação." (ll..122-125).

SENTIMENTO NACIONAL - Visível na forma como Brites de Almeida, enquanto representante da

voz do povo, se manifesta contra os castelhanos, disponibilizando-se para lutar com eles, na

intenção de D. João "retribuir" aos castelhanos as múltiplas visitas feitas aos portugueses e no

facto de Afonso Domingues ter êxito na construção da abóbada, o que funciona como um

reflexo da grandiosidade portuguesa, reconhecida até por Mestre Ouguet.

RECURSOS EXPRESSIVOS

•Comparação — "Os presos ergueram-se [...] o terror fazia-lhes crer que já sentiam ranger e

estalar as vigas dos simples e que, às primeiras pancadas, as pedras desconformes da abóbada,

desatando-se da imensa volta, os esmagariam, como o pé do quinteiro esmaga a lagarta

enroscada na planta viçosa do horto" (Il. 175-179); "Também a abóbada estava firme, como se

fora de bronze" (1. 249).

▪ Enumeração — "Durante estes quatro meses os sucessos políticos tinham trazido D. João I a

Santarém, onde se fizera prestes com bom número de lanças, besteiros e peões" (II. 33-34);

"Passada uma hora, aquele montão de vigas, barrotes, tábuas, cambotas, cabrestantes, réguas
e travessas tinha passado pela cresta fora em colo de homens" (ll. 235-236).

• Metáfora — "Quem, se vós morrerdes, continuará esta fábrica, tão formosa filha de vosso

engenho?" (ll.198-199); "Frei Lourenço rezou em voz baixa uma oração fervente pela alma

generosa que, até o último arranco, escrevera sobre o mármore o hino dos valentes de

Aljubarrota." (ll.272-274).

SÍNTESE — O capítulo inicia com uma breve retoma dos acontecimentos ocorridos

anteriormente, nomeadamente no que diz respeito à promessa de Afonso Domingues de que

a abóbada estaria concluída no prazo de quatro meses e ao compromisso assumido por D.

João de que colocaria ao serviço do arquiteto os artífices portugueses que estavam a trabalhar

em Guimarães, Fica a saber-se também que as querelas entre portugueses e castelhanos se

reacenderam e que está a ser construída uma ponte de barcas em Tancos, para se proceder a

um assalto contra as forças espanholas. É, pois, enquanto se aguarda pela edificação da ponte,

no dia 7 de maio, volvidos os quatro meses de prazo pedido por Afonso Domingues, que D.

João se desloca à Batalha para assistir à retirada dos simples da abóbada, acompanhado de um

grande número de prisioneiros que são convidados a entrarem na Casa do Capítulo, sendo

usados como cobaias, por receio de que a abóbada pudesse voltar a ruir e matasse inocentes.

É nessa altura que D. João I fica a saber que Afonso Domingues fez o voto de se colocar por

debaixo da abóboda, assim que os simples fossem retirados, durante três dias, sem comer

nem beber. O facto é que a abóbada não caiu e os prisioneiros foram libertados. Mas, ao cabo

de três dias, quando Afonso Domingues se preparava para abandonar o local porque, se a

abóboda não tinha caído até ao momento, nunca cairia, as suas forças esgotam-se e ele acaba

por sucumbir. Todos choraram e lamentaram o sucedido. D. João I mandou construir uma

estátua em sua homenagem para ser colocada na Casa do Capítulo e até Mestre Ouguet

acabou por reconhecer que a sua morte tinha sido uma grande perda.

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