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A antessala do paraíso:
O CENIMAR na Ilha das Flores.
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Beatriz Kushnir
“As nossas mortes não são nossas. São de vocês. Elas terão o sentido que vocês lhes derem.”
1 Beatriz Kushnir é doutora em História Social do Trabalho [Unicamp] e professora convidada do Departamento de História
da Unicamp. Desde abril de 2005, dirige o Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro [Prefeitura do Rio/Secretaria das
Culturas]. Autora de Baile de Máscaras. Mulheres judias e prostituição. As polacas e suas associações de Ajuda Mútua
[Editora Imago, 1996], Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 [Editora Boitempo, 2012], e
organizadora de Perfis cruzados: militância e trajetória políticas no Brasil [Editora Imago, 2002].
2 Acerca da colaboração de parte da imprensa à ditadura civil-militar ver também Beatriz Kushnir, Cães de guarda:
jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 [2a. Ed., SP, Editora Boitempo, 2012].
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Em 4/9/1969, realizou-se no Rio uma das mais audaciosas investidas das esquerdas
armadas: o sequestro do embaixador norte-americano. Ou, como pondera Daniel Aarão Reis
Filho no filme documentário Hercules 56 [dirigido por Sílvio Da-Rin, em 2006], “não é
sequestro. Sequestro é assumir um crime. O que você está cometendo é uma ação
revolucionária”. A “caça às bruxas”, posterior a esta ação, trouxe à tona o papel
desempenhado por muitos, como o da grande imprensa colaboracionista, além de evidenciar o
clima de terror que o país viveu a partir do 5o. Ato Institucional, de 13/12/1968.
No ano de 1970, além das glórias do esporte, também despontaram nas declarações do
ministro da Educação do governo Médici, coronel Jarbas Passarinho, sobre a participação de
universitários nos atos de guerrilha urbana, as informações do general Antônio Carlos da Silva
Muricy acerca dos presos políticos e a denúncia da Comissão Internacional de Juristas à
Organização dos Estados Americanos (OEA) a propósito da violação de direitos humanos no
Brasil, seguida, meses depois, da condenação, pelo Papa Paulo VI, das práticas de violência e
tortura no país.
Nesse mesmo período, o ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, igualmente conheceu a
ira de manifestantes na Alemanha, que protestaram contra a ditadura civil-militar aqui
instalada. A imagem de um Brasil legal – com eleições e congresso funcionando − , sem o uso
de métodos de tortura e desrespeito aos direitos humanos – tão acalentada pelos “donos do
poder” na época –, caiu por terra no início de outubro, obrigando o ministro Buzaid a retornar
mais cedo de sua visita oficial a alguns países europeus. Tarefa árdua continuar pregando que
se vivia em um país livre e democrático.
Com a repetição desta ousadia − o sequestro de membros do corpo diplomático, como
em 11 de março, o cônsul japonês em São Paulo, Nobuo Okuchi; em 11 de junho, o
embaixador alemão no Rio, Ehrenfried von Holleben, e, em 7 de dezembro, o embaixador da
Suíça, Giovani Enrico Bucher –, foi possível libertar um total de 134 presos políticos.
Noticiados nos rádios e TVs do país e de todo o mundo, os acontecimentos vividos não
podiam ser negados. Alguns militantes fazem uma releitura, trinta anos depois do sequestro do
embaixador americano. Às vésperas do século XXI, para alguns deles, essa foi uma opção
contrária às diretrizes propostas por Carlos Marighella para a ALN e a consequência dessa
3 Jacob Gorender, Combate nas trevas. 5ª ed., São Paulo, Ática, 1998. p. 201.
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ação armada foi uma violenta resposta das forças de repressão, que aniquilaram as
organizações revolucionárias até meados de 1974.
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4 Marcelo Ridente, O Fantasma da Revolução Brasileira. São Paulo, Editora da UNESP, 1993. p.172.
5 Aluízio Palmar, Onde foi que vocês enterraram nossos mortos?. Curitiba, Travessa dos Editores, 2006. p. 280.
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A DI/GB ao iniciar as ações armadas, em janeiro de 1969, assumiu a sigla MR-8. Após
ações revolucionárias − roubar diversos carros e três assaltos no Rio −, expondo os seus
militantes que, em breve, cairiam, como: Daniel Aarão Reis Filho, Cid de Queiroz Benjamin,
Cláudio Torres da Silva, Stuart Edgard Angel Jones, José Roberto Spiegner, Vera Silvia
Araújo Magalhães, Lúcia Murat, Carlos Alberto Vieira Muniz, Carlos Zílio, Fernando
Gabeira, Helena Bocayuva, e Franklin Martins – que teria sentenciado, “e por que nós não
fazemos o contrário, em vez de fazer uma ação pra libertar o Vladimir, nós não capturamos o
embaixador e trocamos?”
Analisando o material da DSI/MJ, chama a atenção um Série com dossiês dos
militantes presos na Ilha das Flores, onde a grande maioria são do MR-8 e da AP6, indicando
uma setorização da Repressão. Por que caberia ao Cenimar atuar na desarticulação destas duas
organizações, é uma questão. Para tentar decifrar este mistério, Daniel Aarão Reis Filho
pontua, com certa ironia, que
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alianças com a Coréia do Norte e com a Líbia (argh!), isto merecia uma
história!”7
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Perseguindo a noção da compartimentação da repressão, algo deve ficar claro: tais
divisões não foram lineares e permanentes. Aconteceram câmbios que, por vezes, podem nos
levar a erros de análise. O que defendo é que, no momento circunscrito ao episódio do
primeiro sequestro, pode-se constatada esta ideia nas prisões feitas em Brasília, que
derrubaram mais uma fatia da ALN; ou na atuação do coronel Octavio Medeiros, tido pelo
general Golbery como trapalhão, e que em Belo Horizonte, destroçou o Colina [Comando de
Libertação Nacional], onde militava a presidente Dilma Rousseff. Tais enfrentamentos e a
decretação do AI-5 buscavam frear as ações e manifestações de 1968, obrigando as
organizações a rever suas táticas e estratégias. Para Gaspari, numa construção imagética cruel,
Nos sete primeiros meses de 1969 se vivenciou um cabo de guerra entre as ações de
expropriação, por um lado, e o endurecimento da repressão, por outro. No Rio, o 1o. MR-8 foi
completamente dizimado. Um ex-militante do PCB que se tornara colaborador da polícia
revelou a estrutura de uma nova organização, saída da dissidência estudantil do PCB, em
Niterói.9 O MR-8 teve todos os seus quadros capturados; a fazenda no Paraná onde se
pretendia abrir um foco rural, localizada; e a surpreendente figura de Jorge Medeiros Valle, o
Bom Burguês, descoberta. Funcionário da agência do Banco do Brasil no Leblon, manipulava
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A herança da Ilha das Flores como ponto de reclusão, não foi disfarçada ou escondida,
mesmo depois de 1964. O jornal Correio da Manhã publicou, no dia 2 de dezembro de 1964,
uma matéria apontando o local como um presídio político, em 1935, quando encarcerou os
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Correio da Manhã, 2 de dezembro de 1964 [A ilha das Flores fora usada como presídio político em 1935, quando guardou
os revoltosos capturados no levante do 3° Regimento de Infantaria].
11 Élio Gaspari, A ditadura escancarada. SP, Companhia das Letras, 2002. p.49.
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No dia seguinte, o mesmo jornal, sem qualquer atuação investigativa e sendo pautado
pelos órgãos de repressão, informava que comandante Clemente José Monteiro Filho
apresentou à imprensa 22 dos 26 membros do MR-8 que estão detidos na Ilha das Flores.
Porque quadro eles não vieram a público, não se tornou questão. Eram eles, Aluísio Ferreira
Palmar (André), Francisco das Chagas Cordeiro Santos (Cláudio), Jorge Medeiros Vale
(Wagner, Burguês ou Setenta) e Helio Gomes Medeiros. Ao relatar as atividades e
desbaratamento do grupo, a equipe do Comandante Clemente sublinhou “(...) que o objetivo
do MR-8, (....), era tomar o poder pela a luta armada”. E numa tática de enfraquecimento
moral e fomento a delação, o jornal comentou que “(...) os presos do MR-8 têm opiniões
diferentes sobre o tratamento que vem recebendo na Ilha das Flores. Uns disseram que foram
vítimas de violências, mas Ubirajara José dos Reis Loureiro afirmou [que] o tratamento é
ótimo. Isso aqui nem parece prisão. E Pedro Porfírio fez elogios: “A oficialidade e os soldados
são ótimos. Temos toda assistência médica e a comida é boa.”
A partir dos comunicados em Rede Nacional durante o sequestro do embaixador
americano e dos 15 militantes trocados e imediatamente expulsos do país, cria-se na opinião
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Statement of Female Prisoners Held at Ilha das Flores, Rio de Janeiro”, Terror in Brazil, a Dossier, datado de 8 de
dezembro de 1969.
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Fazenda do governo Médici, defendeu-se entre quatro paredes, durante um encontro com o
secretário de Estado interino Elliot Richardson. Elegante advogado de Boston, Richardson
entrou com cuidado no assunto, explicou que não pretendia censurar o governo, mas lembrou
a Delfim que o problema da tortura, feria a imagem do Brasil nos Estados Unidos e poderia
afetar as relações entre os dois países. O ministro saiu-se com uma invenção: “Na extensão em
que ocorre, a tortura não é apoiada pelo governo, e atualmente ele está conduzindo uma
importante investigação a respeito dessas acusações”.
A tese segundo a qual a tortura era produto da atividade de agentes desautorizados e
passíveis de punição, se nunca convenceu, foi ao menos, desmoralizada. Os presos da Ilha das
Flores, como também da penitenciária de Linhares e do presídio de Juiz de Fora, ao denunciar
as torturas, demonstravam a ação ditatorial do Estado, que punia sem investigação e
condenação.
Os desdobramentos desta investida ganham outros contornos numa reflexão que
privilegia um espaço e seus múltiplos agentes no tempo. A partir deste mote, a Ilha das Flores
se consagrou como uma arena de isolamentos, prisões e quarentenas; existindo tanto a
Hospedaria para imigrantes em quarentena epidemiológica, como cárceres militares para
presos políticos em 1922 [lá estiveram os revoltosos do Levante do Forte de Copacabana,
como os tenentistas Cordeiro de Faria e Juarez Távora], 1930, 1935, 1942 [após o governo
Vargas ter rompido relações com a Alemanha e a Itália, são instalados “campos de
concentração” para “estrangeiros perigosos”] e no pós-1964.
Nas malhas da burocracia do Estado brasileiro, a Hospedaria de Imigrantes foi
desativada em meados da década de 1960. O presídio não. Permitindo as duplas lembranças de
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Reinaldo Guarany. Descritas em dois livros autobiográficos, esse ex-militante da Ação
Libertadora Nacional [ALN] me auxilia a concluir este flash sobre a Ilha. Assim,
“[...] meia hora depois, éramos levados por uma lancha de desembarque, uma
MDVP, em direção à Ilha das Flores. Algemados, ficamos escutando o
marulhar do lado de fora da lancha. Eu e Xico sem conseguir tocar os pés no
chão. Ele me perguntou para onde iríamos, mas eu ainda não sabia. Um
fuzileiro gritou para que ficássemos calados.
[...] Desembarcamos na Ilha das Flores à noitinha. Subimos uma ladeira em
direção ao alojamento dos soldados. Puseram-nos no chão e pouco depois
apareceu o mandachuva dali. Fez uma preleção contra a tortura, asseverou-se
que na Ilha não se torturava e pediu-nos calma para que a borrasca passasse.
13Reinaldo Guarany, Fornos quentes. São Paulo, Alfa-Omega, 1980; e A fuga. São Paulo, Brasiliense, 1984 [Agradeço a
Denise Rollemberg, por ter me apresentado aos livros do Guarany]. Um outro texto literário que cita a Ilha das Flores é o de
Aguinaldo Silva [Lábios que beijei. [3ª ed.]. São Paulo, Siciliano, 1992]. Agradeço ao professor Afonso Carlos Marques dos
Santos que me fez chegar ao dramaturgo e que entrevistei em 20/11/2003.
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