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ENSINANDO O PASSADO

POR MEIO DO PATRIMÔNIO


CULTURAL

Cláudia R. Plens
(Coordenação Editorial)
ENSINANDO O PASSADO
POR MEIO DO PATRIMÔNIO
CULTURAL
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO
ESCOLA DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

Reitor
Prof. Dr. Nelson Sass

Vice-Reitora
Prof.ª Dr.ª Raiane Patrícia Severino Assumpção

Diretor da EFLCH-Guarulhos
Prof. Dr. Bruno Konder Comparato

Vice-Diretora da EFLCH-Guarulhos
Prof.ª Dr.ª Sandra Regina Leite de Campos
ENSINANDO O PASSADO
POR MEIO DO PATRIMÔNIO
CULTURAL

Cláudia R. Plens
(Coordenação Editorial)
Copyright © 2022 - Universidade Federal de São Paulo

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa


da editora.

Revisão de texto
O conteúdo dos textos e seus dados em sua forma, correção e
confiabilidade são de responsabilidade dos respectivos autores

Projeto gráfico
MC&G Editorial

Diagramação
Glaucio Coelho

Ilustração de capa :
Bruno Menegatti

Esta obra foi composta com


a família tipográfica Fira Sans e Bitter.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural. [ recurso


eletrônico] / coordenação Claudia Regina Plens. — São Paulo :
Universidade Federal de São Paulo, 2023.
PDF

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-87312-73-6

1. Educação - História 2. Memória - Aspectos sociais 3. Patri-


mônio cultural 4. Patrimônio histórico I. Plens, Claudia Regina.

23-145626 CDD: 363 . 6909

Bibliotecária: Tábata Alves da Silva – CRB-8 / 9253-0

Índices para catálogo sistemático:


1. Patrimônio histórico e cultural : Memória e
preservação : História 363.6909
SUMÁRIO

PREFÁCIO 7

Os caminhos do patrimônio na formação de professores de História 7


Alexandre Pianelli Godoy

ENSINO DE HISTÓRIA POR MEIO DOS BENS CULTURAIS: UMA INTRODUÇÃO 21


Cláudia R. Plens

Nossa História 21
As narrativas dos eventos 21
Objetos e Patrimônio 22
O ensino de história dos bens culturais 23
Armadilhas da educação 25

APONTAMENTOS SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MUSEUS E ESCOLAS 29


Odair da Cruz Paiva

Introdução 29
Considerações sobre a formação dos museus 31
Relações entre museus e escolas 40
Musealização: presenças e ausências em exposições 47
Considerações Finais 56

O USO DE EDIFICAÇÕES ANTIGAS NO ENSINO DE HISTÓRIA 63


Lucília S. Siqueira

Vestígio/documento: o que ficou 67


Memória: o que se escolheu 68
Proposições para atividades com edificações antigas in loco 73
Os princípios seculares do uso de edificações antigas para
aprendizagem 90

OS DETETIVES DE CIDADES-FANTASMAS: AS POTENCIALIDADES


DAS RECONSTRUÇÕES GRÁFICAS VIRTUAIS PARA O ENSINO DA
HISTÓRIA URBANA 95
Fernando Atique

O criador de (uma cidade de prédios) fantasmas:


Francisco Prestes e seu “Plano de Avenidas” 96
Modelando o passado: problemas de
método e de faturas histórico-visuais 100
Os passados nas telas do presente 103
A praça que virou um canteiro (Viário) 104
A aula fora da sala 109
Considerações finais 118

AS POSSIBILIDADES E A COMPLEXIDADE DO ENSINO DE


HISTÓRIA A PARTIR DA CULTURA MATERIAL 125
Cláudia R. Plens

Introdução 125
O tempo em movimento: a história pela perspectiva temporal 127
O tempo, o espaço, o movimento, as ideias e as identidades 129
O tempo em suspenso 135
O paradoxo do tempo nas ideias em movimento 137
O ensino de História a partir de uma perspectiva crítica da
cultura material 139
Objetos da história na sala de aula: pelo direito de refletir
outras histórias 140
Os aspectos materiais e psicológicos da opressão 148
Considerações Finais 151

POSFÁCIO 157
Os recursos e os acervos como recursos didáticos 157
Cláudia R. Plens

SOBRE OS AUTORES 161


PREFÁCIO

Os caminhos do patrimônio na
formação de professores de História

“O que faz andar são relíquias de sentido e às vezes seus detritos,


os restos invertidos de grandes ambições”.
(CERTEAU, 1994, p. 185)

Os textos reunidos nesta coletânea de artigos foram elabora-


dos por especialistas da área de História, Memória e Patrimô-
nio do Departamento de História da Universidade Federal de
São Paulo (UNIFESP), Campus Guarulhos, da Escola de Filoso-
fia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São
Paulo (EFLCH), e que faz parte do projeto original do curso de
bacharelado/licenciatura desde sua montagem no ano de 2006
(TOLEDO; COSTA, 2014). Apesar das mudanças operadas nas
Diretrizes Curriculares Nacionais que nos obrigaram, em 2015, a
separar o bacharelado da licenciatura em dois percursos formati-
vos distintos, nosso curso procurou manter como eixo a formação
ampla e solidária para pesquisadores, educadores e professores
de História. As disciplinas da área de História, Memória e Patrimô-
nio vêm contribuindo tanto com a formação dos bacharelandos
em História, que podem inclusive se tornar profissionais em
instituições de patrimônio e áreas afins, quanto com a formação
dos licenciandos em História para o ensino básico, com discipli-
nas eletivas cuja demanda por parte de nossos alunos é grande.
Soma-se a isso os auxílios que os professores do departamento

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têm dado nas orientações de trabalhos de conclusão de curso
que apresentam essas interfaces. Essas experiências também
se desdobraram nos cursos de Pós-Graduação em História de
perfil mais acadêmico (PPGH – UNIFESP) e do Mestrado Profis-
sional em Ensino de História (PROFHISTÓRIA – Núcleo UNIFESP)
nos quais os docentes também começaram a orientar e formar
novos pesquisadores.
Muito do que aqui foi escrito faz parte da construção coletiva
de um projeto de curso, hoje consolidado, do campo de estudos do
patrimônio e baseado na ampla experiência profissional desses
autores com a Museologia, a Arquitetura e a Arqueologia, bem
como nas relações entre Educação e Patrimônio por meio de bens
tangíveis e intangíveis.
Embora seja inegável que o Ensino de História se transformou
em um campo de estudos com grande autonomia, não é menos
verdade que sem o diálogo com profissionais de áreas como a
do patrimônio, a formação de professores de História estaria
incompleta. No meu entender, os estudos do patrimônio criam
as condições de inteligibilidade para produção do conhecimento
histórico, ampliando as possibilidades de atuação dos profissio-
nais da história dentro e fora das salas de aula. Ninguém pretende
ensinar ao professor como “inventar a roda”, mas sabe-se que
não é possível seguir nessa jornada sem consultar aqueles que se
puseram a pensar previamente sobre sua construção do processo
ensino-aprendizagem em História.
Estamos num momento histórico difícil e distópico na sociedade
brasileira com o advento de um neoautoritarismo ressentido,
do limiar de rompimento com as instituições democráticas, das
doenças coletivas propagadas em um mundo que ao se tornar
cada vez mais interligado parece, ao mesmo tempo, estilhaçar
vidas, rumos e suas materialidades.
Nesses tempos de comunicação por redes sociais e por outros
aparatos tecnológicos como sucedâneos da realidade são fabrica-
das fake news e têm se perpetuado negacionismos que retroali-
mentam esse neoautoritarismo. Começamos a perder, portanto,
os parâmetros dos benefícios que esses recursos tecnológicos
podem nos trazer e, consequentemente, passamos a questio-
nar se de fato a democratização digital um dia trará a igualdade
prometida. Como sinal desses tempos “digiatópicos”, pululam

8 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


novas propostas de visitas, exposições virtuais e “imersivas” que
se tornam um grande sucesso de público, as quais até podem nos
atrair para conhecer lugares e obras tangíveis, mas que também
podem provocar a sensação de um afastamento da realidade, ou
seja, a sensação de padronização dos sentidos concebendo-os
como algo pronto para o espectador, tal como no processo de
fabricação de roupas seguindo o modelo ready to wear/prêt-à-por-
ter. Vale dizer, portanto, que um espectador ou fruidor possivel-
mente produzirá significados imprevistos ao que lhe é dado a
ver, ler ou sentir, mas é bom duvidar que a recepção possa ser
uma panaceia totalmente desprendida das normatizações desses
suportes tecnológicos, pois não há “obra aberta” sem “protocolos
de leitura” e, nesse embate, ora vencemos, ora sucumbimos, não
sabendo, afinal, em que momento isso se constituirá em êxito
ou fracasso.
Diante desses impasses contemporâneos é bom desacelerar e
voltar aos tempos em que os museus, as edificações, as cidades e
seus artefatos podiam ser conhecidos quando visitados, habitados,
caminhados, produzidos e manejados, ou pelo menos quando suas
representações ainda não eram tão mediadas por tantas outras
imagens, como as de hoje, a ponto de nos engolir e nos vertigi-
nar em uma sociedade altamente “visofágica”.
Não nos surpreende que, em tempos pandêmicos, a Secretaria
Municipal da Educação de São Paulo (SME/SP) começou a oferecer
suas “exposições virtuais”. As “exposições” estão no site da SME
em links com materiais em PDF (Portable Document Format –
representações 1, 2, 3 e 4) preparados em Powerpoint por uma
programação visual (representações 5 e 6) sobre o patrimônio e a
arquitetura escolar das escolas municipais de São Paulo (represen-
tações 7 e 8) por meio de uma curadoria (representação 9) de
fotografias (representação 10) de objetos escolares (representa-
ção 11) deslocados, alocados e expostos no Memorial da Educação
Municipal (representações 12, 13, 14 e 15) e de edificações escolares
(representação 16) em diferentes tempos e lugares (representa-
ções 17 e 18), com o “simples” fito de dar a ver e informar (represen-
tações 19 e 20) aos professores e alunos da rede municipal as
memórias e as histórias do que seriam, no mínimo, mais duas
representações de suas escolas, mas sem que haja qualquer indica-
ção de como lidar com esses suportes, programações, concepções,

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 9


instituições, escolhas, imagens, espaços, tempos e objetos tomados
como “patrimônios incontestes”.
Nesse sentido, é muito difícil que professores e alunos de
história e de outras disciplinas escolares possam se apropriar
desse material bidimensional, a não ser para “revelar” a “dissolu-
ção implacável do tempo” e “compartilhar fotos” de como as “coisas
de antigamente” eram “interessantes”, “curiosas” e, talvez, “estáti-
cas” e “velhas”.

Figura 1: 5ª Exposição virtual: Três dimensões: objetos e suas histórias, Slide 1.

Fonte: Exposições Virtuais –SME Portal Institucional (prefeitura.sp.gov.br).

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Figura 2: 5ª Exposição virtual: Vista Geral do acervo da Exposição Permanente do
MEM (Memorial da Educação Municipal), Slide 72.

Fonte: Exposições Virtuais – SME Portal Institucional – (prefeitura.sp.gov.br).

Nos dizeres que abrem essa exposição virtual, podemos


acompanhar suas intencionalidades explícitas na apresentação
do material composto por 74 slides de Powerpoint oferecidos no
site da SME na aba do MEM (Exposições Virtuais – SME Portal
Institucional – (prefeitura.sp.gov.br)) em PDF:

A Secretaria Municipal de Educação e o Memorial da


Educação Municipal – MEM apresentam “Três Dimensões:
objetos e suas histórias”. A história da educação paulis-
tana expõe a trajetória do cotidiano da vida escolar, tendo
início com a criação dos Parques Infantis e, sucessiva-
mente, do Ensino Fundamental e Médio, por meio de
documentos tridimensionais. O objetivo da exposi-
ção virtual é resgatar lembranças, fazendo a transição
entre passado e presente imbuídos de um significado da
memória que se pretende preservar juntamente com as
características do objeto, por meio de registros fotográfi-
cos. As fotos exibem móveis, utensílios, vestuários, livros,
cartilhas, esculturas e documentos pessoais de alunos e
servidores da educação. O acervo tridimensional é fonte
de informação e, acima de tudo, da memória coletiva,

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 11


é formado por doações ou transferências internas das
instituições (SME/DRE/UE). Os objetos que compõem
a exposição virtual encontram-se expostos no MEM. A
viagem começa agora! (5ª EXPOSIÇÃO VIRTUAL, Slide 2)

A prometida “viagem” também é respaldada por uma epígrafe


de Mário Chagas retirada de seu livro “Museália” (1996), antece-
dendo a apresentação de outros 72 slides que são compostos por
detalhes fotográficos com legendas dos objetos expostos de parte
do acervo do Memorial da Educação Municipal (MEM), restando
ao leitor “se virar” com:

[…] o que faz de uma coisa ou de um objeto um bem


cultural ou um documento é o nosso olhar interrogativo,
no momento em que perguntamos o nome do objeto,
de que matéria-prima é constituído, quando e onde foi
feito, qual é o seu autor, de que tema trata, qual a sua
função, em que contexto social, político, econômico e
cultural foi produzido e utilizado, que relação manteve
com determinados atores e conjunturas históricas. (5ª
EXPOSIÇÃO VIRTUAL, Slide 3, apud CHAGAS, 1996, s/p.)

O sentido da exposição é nitidamente comemorativo, não


por acaso, a data de citação do texto de Mário Chagas de 1996
coincide com a da criação do Memorial da Educação Municipal
e dos 40 anos de fundação da Rede Municipal de Ensino de São
Paulo (Rede), em 1956. O material foi produzido e disponibili-
zado ao público em 2019, na gestão do ex-prefeito Bruno Covas,
quando começávamos a viver a pandemia da covid-19. No mais,
não havia qualquer menção de como os professores, alunos da
Rede e o público em geral poderiam se apropriar dessas fotogra-
fias, isso sem alertar para as diferentes camadas de representações
que estavam envolvidas na produção desse material, isto é, dos
processos de fabricação e divulgação desses slides que interfe-
riram na leitura dos objetos que estão fora deles. O que esperam
os gestores e técnicos da Secretaria da Educação paulistana que
façamos com todas essas representações sem outras questões de
frente e de fundo?
Dessa forma, volto ao nosso ponto de partida, pois não basta
reconhecer que os objetos escolares têm histórias e que compõem
o “patrimônio” da Rede Municipal de Ensino de São Paulo num

12 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


efeito de “onda memorial”, bem como não basta afirmar que eles
devem ser devidamente interrogados pelo olhar dentro de suas
conjunturas históricas na medida em que não se trata apenas de
objetos, mas de camadas de representações. Por isso, é preciso
aprender e dialogar com profissionais que nos ajudem a enfren-
tar as armadilhas que esse tipo de material nos leva a pensar, mas
que no afogadilho das tarefas cotidianas da docência e da própria
pandemia parece ter sido uma solução que a Prefeitura Municipal
encontrou para “nos preservar” do distanciamento das escolas.

Figura 3: 6ª Exposição Virtual: Arquitetura escolar e suas identidades, Slide 1.

Fonte: Exposições Virtuais – SME Portal Institucional – (prefeitura.sp.gov.br).

Nessa outra “exposição virtual” disponibilizada ao público em


2021, na gestão do Prefeito Ricardo Nunes, também apresentada
em tom laudatório e comemorativo, temos as mesmas ausências
verificadas e as mesmas perguntas a serem feitas.

O Memorial da Educação Municipal – MEM apresenta a


6ª Exposição Virtual – Arquitetura escolar e suas identi-
dades, uma seleção de fotos com o objetivo de promover
reflexões sobre histórias, memórias e épocas. Diante de

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 13


fotos das Unidades Educacionais, podemos ver retratada
a arquitetura, o paisagismo, o entorno, dentre outras
possibilidades de olhares. Viajamos no tempo e descobri-
mos detalhes muito interessantes trazidos do local onde
passamos grande parte de nossas vidas e que muitas
vezes deixamos ocultar em nossas memórias. Ao revelar
imagens de patrimônios culturais, principalmente por
meio de fachadas das escolas municipais, reconhecendo
sua identidade e diversidade cultural na Cidade de São
Paulo, desafiamos todos a admirarem estas edificações
de modo a despertar lembranças e, para aqueles que
ainda não as conhecem, a oportunidade de apreciá-las e
refletir sobre as transformações ocorridas. Neste sentido,
convidamos todos para visitarem a exposição “Arquite-
tura escolar e suas identidades” e compartilhar fotos
tão especiais que pertencem à comunidade educativa
da Rede Municipal de Ensino de São Paulo (6ª EXPOSI-
ÇÃO VIRTUAL, Slide 02).

O material é igualmente composto por 71 slides de Powerpoint


disponibilizados em PDF, com fotos de inúmeras escolas localizadas
em diferentes pontos da cidade em ordem cronológica, partindo
da década de 1940 até a década de 2010. Contudo nem sempre as
fotos das escolas das primeiras décadas correspondem às escolas
de sua época de fato, causando uma espécie de confusão entre o
presente e o passado, muito embora Susan Sontag seja convocada
em epígrafe no material para “congelar” o tempo visto: “Tirar uma
foto é participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabi-
lidade de outra pessoa (ou coisa). Justamente por cortar uma fatia
desse momento e congelá-la, toda foto testemunha a dissolução
implacável do tempo” (6ª EXPOSIÇÃO VIRTUAL, Slide 03, apud
SONTAG, 2004, p. 26).

14 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


Figura 4: 6ª Exposição Virtual: “EMEF Olival Costa”, Slide 23.

Fonte: Exposições Virtuais – SME Portal Institucional – (prefeitura.sp.gov.br).

Afinal, o que o professor, o aluno e o público devem olhar?


As fotos, as edificações escolares, o patrimônio, a paisagem, a
cidade, a história, a memória, o presente, o passado, a programa-
ção visual do material, seu suporte ou seu processo de curado-
ria? As perguntas são tantas que a sensação de vertigem diante
de inúmeras imagens e edificações – sem contar as especificida-
des dos bairros e da época em que as escolas foram construídas,
bem como o momento cujas fotos foram tiradas e seleciona-
das no presente – que já não sabemos mais o quê, como, por
que e para quê utilizar esse material. Ademais, outras dúvidas
rondam diante desse caleidoscópio de representações: o que
seria, de fato, uma exposição virtual? Esse material se trata de
uma exposição virtual? Uma exposição virtual é apenas uma
série de fotos de coisas?
Não pretendo responder a nenhuma dessas questões, pois
elas ultrapassam os limites de um prefácio, mas reforço que a
entrada das escolas, dos seus objetos e das edificações na reflexão
patrimonial e na exploração de sua “cultura material escolar”,

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 15


desde finais dos anos 1990, na História da Educação, é algo que
pode ser buscado em autores e referências mais precisas sobre o
assunto (BENCOSTA, 2005; FRAGO; ESCOLANO, 2001; MOGARRO,
2015; SILVA; SOUZA; CASTRO, 2018; SOUZA, 2007).
Assim, é sempre bom ler o que os profissionais do campo do
patrimônio e que estão dentro das salas de aula têm a nos dizer
sobre a ida das turmas escolares para museus “concretos”; sobre
a utilização das edificações antigas (e reais) como fonte e objetos
de investigação da cidade presente dentro da cidade passada e
sobre como documentar esse processo com o uso adequado da
tecnologia e de suas representações; além de como dialogar com
a cultura material e visual e suas vicissitudes antes de olharmos
as nossas escolas por meio de suas edificações, objetos, fotogra-
fias e exposições em um modo exclusivamente “virtual”. Portanto,
faço outro convite!
O artigo de Odair da Cruz Paiva intitulado “Apontamentos
sobre a relação entre museus e escolas” problematiza as represen-
tações nas exposições museais, as quais serão observadas pelos
alunos e professores quando se propõem a visitar esses espaços,
tendo em vista suas finalidades educativas, mas que nem sempre
são explicitadas pelos produtores do campo museal. Longe de
prescrever, o autor apresenta a formação dos museus de história
em longa duração, a historicidade das relações entre museus e
escolas entre as décadas de 1940 a 1980 e, por fim, discute sobre
as presenças e ausências no processo de musealização e por que
as comunicações expositivas são apenas a “ponta do iceberg” que
envolvem a aquisição de objetos, sua transformação em documento,
a conservação e a pesquisa realizada por vários profissionais dentro
dessas instituições.
O artigo de Lucília Santos Siqueira intitulado “O uso de edifica-
ções antigas no ensino de história” propõe a saída de estudan-
tes e professores das salas de aula para o trabalho in loco com o
patrimônio cultural edificado, principalmente aqueles que estão
“tombados” pelos órgãos oficiais, de modo que possam entrar em
contato não só com a história das cidades, mas tornar o estudo
do passado mais próximo. Para isso, distingue-se principal-
mente o que é “vestígio” (o que ficou) e o que é “memória” (o que
se escolheu) e, a partir disso, propõe-se um roteiro significativo
de investigação das edificações tombadas, levando em conta os

16 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


objetivos a serem atingidos, as informações preliminares sobre
esses “bens”, os requisitos para uma pesquisa de campo, o que
observar quando a atividade for realizada e qual o sentido histórico
de sua aprendizagem.
O artigo de Fernando Atique intitulado “Os detetives de cidades
fantasmas: as potencialidades das reconstruções gráficas virtuais
para o ensino de história urbana” questiona o pressuposto de
que a cidade de São Paulo foi engolida por uma “metropolização
arrasadora” e que, por isso, não poderíamos mais ter acesso à
cidade que desapareceu no passado. Para tanto, situa historica-
mente um dos momentos mais importantes desse processo, que
foi o “Plano de Avenidas” de Prestes Maia, seus desdobramen-
tos entre os anos de 1920 e 1940 e mostra como permaneceram
sinais importantes para seu estudo no presente. Desse modo, o
esforço de rever a cidade desaparecida pode ser feito com o uso
da computação gráfica, mas atentando para diferentes fontes e
linguagens utilizadas nas reconstruções de maquetes eletrôni-
cas, desnaturalizando seus tempos, tipologias, representações e
seu modo de publicização.
Por fim, o artigo de Cláudia Regina Plens intitulado “As vicissi-
tudes do ensino de história a partir da cultura material” retoma a
importância de conceber que todo objeto pode ser interpretado
dentro de seu contexto, mas não se pode deduzir um contexto
prévio que anteceda a esses objetos com o risco de perdermos
dimensões centrais de sua produção, tais como: o movimento do
tempo em sua constituição que abrange sua marca individual e
coletiva, as identidades culturais, limites e suas interações sociais,
assim como suas continuidades e descontinuidades geográficas.
Porém a Arqueologia não trata apenas dos tempos imemoriais, mas
também da Arqueologia Histórica para compreensão de questões,
por exemplo, a forma como a cultura material pode indiciar confli-
tos contemporâneos na cidade; e sobre como os Direitos Humanos
e questões éticas que afligem grupos sociais que muitas vezes
são vistos apenas como “pertencentes ao passado”, tal qual os
povos indígenas, ainda são representados em produções didáticas
em um bloco único e desprezados pelas autoridades públicas por
serem considerados obstáculos ao “progresso”. Enfim, o que vamos
fazer diante da destruição de pessoas, monumentos, paisagens,
lugares e objetos?

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 17


Essa é a principal função educativa e formativa desta coletâ-
nea: sair dos voluntarismos da ação ou do ativismo pedagógico,
dos proselitismos políticos e da confusão constante entre História,
Memória e Patrimônio que servem apenas para comemorar e enalte-
cer os feitos dos prefeitos das cidades, dos poderes públicos e
de seus agentes sem um diálogo com profissionais do campo do
patrimônio, dos próprios sujeitos escolares e do público mais amplo
para quem o patrimônio deve ser realmente destinado, questio-
nado, usufruído ou apropriado. No entanto nada disso pode ser
feito se aceitarmos como inevitável o afastamento da realidade,
a naturalização dos sentidos e que a pandemia da covid-19 teria
inaugurado um caminho sem volta. Em razão disso, sim, devemos
voltar, voltar para a escola e para a sala de aula e, a partir dela,
partirmos aos museus, percorrermos as ruas da cidade, de suas
edificações e dos objetos como vestígios de nosso modo de fazer
nossas narrativas como elas são, foram e podem se tornar um
dia… Boa leitura!

Prof. Dr. Alexandre Pianelli Godoy –


Departamento de História da UNIFESP, inverno de 2022.

18 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


Referências
5ª EXPOSIÇÃO VIRTUAL. Três dimensões: objetos e suas histórias. Exposições
Virtuais – SME Portal Institucional – SME Portal Institucional (prefeitura.
sp.gov.br) . Acesso em: 29 jul. 2022.

5ª EXPOSIÇÃO VIRTUAL. apud CHAGAS, Mário. Museália. Rio de Janeiro: JC


Editora, 1996.

6ª EXPOSIÇÃO VIRTUAL. Arquitetura escolar e suas identidades. Exposições


Virtuais – SME Portal Institucional – SME Portal Institucional (prefeitura.
sp.gov.br). Acesso em: 29 jul. 2022.

6ª EXPOSIÇÃO VIRTUAL. apud SONTAG, Susan. Sobre a fotografia. Tradução

Rubens Figueiredo. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

BENCOSTA, Marcus Levy Albino (org.). História da Educação, Arquitetura e


Espaço escolar. São Paulo: Cortez, 2005.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1 – Artes de fazer. Tradução de


Ephraim Ferreira Alves. 2ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

FRAGO, Antonio Vinão; ESCOLANO, Augustín. Currículo, espaço e subjeti-


vidade: a arquitetura como programa. Tradução de Alfredo Veiga-Neto. 2ª
edição. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

MOGARRO, Maria João (coord.). Educação e patrimônio cultural: escolas,


objetos e práticas. Lisboa: Edições Colibri, 2015.

SILVA, Vera Lúcia Gaspar da; SOUZA, Gizele de; CASTRO, César Augusto
(orgs.). Cultura material escolar em perspectiva histórica: escritas e possibili-
dades. Vitória: EDUFES, 2018.

SOUZA, Rosa Fátima de. História da cultura material escolar: um balanço


inicial. In: BENCOSTA, Marcus Levy (org.). Culturas escolares, saberes e
práticas educativas: itinerários históricos. São Paulo: Cortez, 2007, p. 163-189.

TOLEDO, Maria Rita de Almeida; COSTA, Wilma Peres. Formação docente,


história, memória e educação patrimonial: os desafios para a produção de
novas práticas educativas. In: LEAL, Elisabete; PAIVA, Odair da Cruz (orgs.).
Patrimônio e História. Londrina: Unifil, 2014, p. 13-25.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 19


ENSINO DE HISTÓRIA POR MEIO DOS
BENS CULTURAIS: UMA INTRODUÇÃO

Cláudia R. Plens

Nossa História
A história é costumeiramente narrada a partir de eventos
transformadores para a sociedade. A cada problema imposto aos
grupos culturais, seja da ordem ambiental ou social, as culturas
foram se adaptando por meio das modificações no ambiente a
partir da confecção de novos objetos e técnicas.
Assim sendo, os problemas do cotidiano, na adaptação dos
nossos antepassados ao meio ambiente, possibilitaram vários
avanços na criação e uso das culturas materiais.
Quando as sociedades estavam totalmente adaptadas ao
meio ambiente e sem crises no meio em que viviam, as culturas
passaram por longos períodos de estabilidade social, com poucas
variações no estilo de vida e em toda a cultura material.
No entanto, na medida em que as sociedades entram em
crise e precisam se reestruturar em busca de equilíbrio, surgem
novas formas de viver e compreender o mundo em que se vive,
pautadas por novas tecnologias e objetos. Dessa forma, devemos
compreender que todos os eventos transformadores, por defini-
ção, foram precedidos por momentos de crise.

As narrativas dos eventos


Como bem explica Seligmann-Silva (2000), o evento só existe
a partir da leitura dos indivíduos sobre os fatos, portanto, todo
relato de eventos consiste em testemunhos, fruto da contempla-
ção de um indivíduo – carregado de todo seu repertório prévio e

21
particular sobre o mundo –, quanto a determinados acontecimen-
tos e fatos. Assim, considerando que as pessoas são diferentes e
têm histórias de vida distintas, cada um interpretará os mesmos
acontecimentos à sua maneira.

Objetos e Patrimônio
Todo objeto que foi confeccionado e/ou utilizado por pessoas
é passível de interpretação. A arqueologia estuda os mais variados
objetos para compreensão do comportamento humano. No entanto,
outras disciplinas também se ocupam de objetos para analisar
diferentes aspectos sociais, como a arquitetura, artes, antropo-
logia etc.
Diferentes cientistas, portanto, enxergam na materialidade os
significados históricos e sociais cumpridos pelos objetos dentro
das relações sociais humanas. No entanto, na sociedade contem-
porânea, apenas uma pequena parcela dos objetos do passado é
eleita patrimônio, por um determinado grupo de pessoas que são
selecionadas para representar a sociedade na escolha de quais
objetos merecem receber maior cuidado (e financiamento) para
sua proteção.
Desse modo, se por um lado diferentes pesquisadores focam
em determinados papéis performados pelos objetos, por outro os
patrimônios também são passíveis de diferentes olhares, possuindo
uma dimensão política bastante importante de ser estudada.
Nesse mundo focado no universo patrimonial eleito por um
seleto grupo de pessoas, pouca atenção é despendida para objetos,
monumentos e paisagens que não ganharam distinção prévia.
A escolha dos bens a serem patrimonializados nada mais é
do que uma nova forma de narrativa da história, em que o Estado,
por meio de suas instituições, narra os eventos a partir de sua
perspectiva e interesse político dos fatos.
Ao se atribuir a categoria de patrimônio a alguns bens culturais,
esse objeto ganha outro caráter e passa a exercer outra perfor-
mance na sociedade. Busca-se passar uma ideia da história a
ser narrada a partir da sublimação do bem cultural. O patrimô-
nio, que como qualquer objeto possui características que podem
descrever a sociedade, passa a exercer outra função, agora de

22 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


elemento estético e artístico, com função de causar sublimação
e admiração no receptor.
De acordo com Moses Mendelssohn (apud SELIGMANN-
-SILVA, 2000, p. 80), “a impressão forte que a admiração gera
na nossa mente, que não raro gera um assombro, ou até mesmo
uma espécie de anestesiamento, uma falta de consciência”. Dessa
forma, o sublime pertence ao campo do medo, do desconhecido.
E o receptor, aquele que testemunha esse objeto, exerce
uma performance de sublimação que suspende a consciência,
gerando uma sensação de medo, pois não lhe permite ref letir
sobre o desconhecido. Grande parte dos eventos históricos estão
ligados a traumas sofridos por segmentos sociais, e narrar esses
eventos traumáticos é um processo trabalhoso, uma vez que a
realidade é difícil de ser suportada (SELIGMANN-SILVA, 2000).
Há uma propensão a se tentar recalcar as histórias de tragédias e
violência que associamos ao Mal Absoluto. Dessa forma, há aspectos
de experiências que não conseguimos simbolizar: o “núcleo duro”
desses fatos – algo independente e separado da linguagem discur-
siva (KEHL, 2000, p. 138) –, que leva à alienação da humanidade
sobre a história dos acontecimentos associados ao Mal.
No entanto, quando o olhar das desgraças e problemas é
feito de modo lúcido, ele humaniza a dor, e o prolongamento da
memória sobre a dor obriga a reflexão sobre possíveis soluções
para os problemas advindos dessas histórias. Assim sendo, há
necessidade de exprimir as ações de dimensões humanas como
tentativas de interpretação dos acontecimentos dentro dessas
dimensões (MORAES, 2000).
É o ofício das áreas das humanidades tratar das questões de
que a sociedade tenta se alienar para se poupar da prorrogação
do sofrimento causado ao pensar sobre ele, para refletir sobre
o problema e buscar soluções para uma sociedade mais justa e
que possa viver melhor coletivamente.

O ensino de história dos bens culturais


Nas comunidades tradicionais de todo o mundo, as histórias e a
importância do legado cultural sempre foram transmitidas oralmente
entre as gerações e mantidas pelas famílias e comunidades. Com

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 23


o advento das grandes cidades que impulsionaram migrações de
pessoas de diferentes culturas, esse ritual de passagem do conheci-
mento se perdeu, assim como o ensinamento de todas as técnicas
e saber fazer.
Mais recentemente, coube, então, às escolas e às universida-
des o papel da transmissão de diferentes formas de conhecimen-
tos, desde cursos profissionalizantes que ensinam as pessoas a se
colocarem no mercado de trabalho, até as reflexões mais filosófi-
cas e históricas sobre a vida, acerca de nossa origem e a importân-
cia do legado cultural para nossa sobrevivência.
Se diante do traumático, assim como do sublime, nossas
consciências se paralisam, e não nos permitem pensar para além
da contemplação, há a necessidade de se defrontar com o medo
e ultrapassar o desconforto de refletir sobre os acontecimentos.
Para compreender o que não está mais presente, o que passou,
é requerida a atenção. Para tanto, é necessária uma preparação
do corpo, que diminui os movimentos e se abre para a sensibili-
dade de captar palavras, sons, cheiros, imagens e sensações táteis.
O receptor da informação interpretará os objetos mediante
seu um conjunto de repertório prévio, sendo, portanto, um objeto
passível de diferentes interpretações.
Ao educador cabe, antes de mais nada, compreender um pouco
do repertório prévio do seu público para que possa manter um
diálogo em que possa transmitir a informação de modo que diferen-
tes pessoas dentro desse mesmo grupo consigam captar a ideia
geral de forma similar e, subsequentemente, reinterpretar à sua
maneira o significado dos objetos e as mensagens imbuídas neles.
A mediação de um educador acerca do objeto, apontando
suas diferentes características e as distintas leituras existen-
tes sobre esse material, permite que o receptor da mensagem
reelabore seus conceitos e pré-conceitos sobre o mundo que já
conhece, caso contrário, sem mediação, ele usará o objeto apenas
para reenfatizar o mundo e repertório previamente conhecido,
não permitindo uma ampliação das ideias.
Os bens culturais nos permitem reelaborar o sentido histórico
de nossas origens, assim como outros sentidos e explicações para
o mundo em que vivemos, e desmistificar conteúdo enviesados
que nos foram contados, compreendendo ausências e dissonân-
cias por meio da cultura material.

24 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


O educador, por meio de pesquisas e confrontações prévias
sobre objetos e paisagens, deve possuir ferramentas importantes
e arcabouços teóricos para permitir o ensino a partir de diferentes
linguagens.

Armadilhas da educação
Direito à educação é uma das prerrogativas reconhecidas pela
Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, que afirma que:

1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instru-


ção será gratuita, pelo menos nos graus elementares
e fundamentais. A instrução elementar será obriga-
tória. A instrução técnico-profissional será acessível
a todos, bem como a instrução superior, esta baseada
no mérito.

2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvol-


vimento da personalidade humana e do fortalecimento
do respeito pelos direitos do ser humano e pelas liberda-
des fundamentais. A instrução promoverá a compreen-
são, a tolerância e a amizade entre todas as nações e
grupos raciais ou religiosos e coadjuvará as atividades
das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.

3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero


de instrução que será ministrada a seus filhos. (ORGANI-
ZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948, art. 26)

No entanto, a própria escola, criada para educar os indiví-


duos de maneira a provê-los de conhecimento e, mais recente-
mente, com o intuito de desenvolver ref lexão crítica de modo
democrático, até a atualidade, não conseguiu transpassar os
problemas de classe sociais e, no mundo moderno capitalista,
ainda atua mais como segregadora social do que democratiza-
dora do conhecimento, não possibilitando as mesmas inserções
sociais aos indivíduos.
O aparato escolar pode parecer um paradoxo que, criado
para democratizar o conhecimento, acaba por segregar as classes
sociais. Isso acontece porque os indivíduos adquirem mais ou
menos conhecimentos dependendo dos recursos econômicos que

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 25


possuem. Esse fenômeno é comum em todo o globo, e ainda é
aguçado por questões sociais, geográficas e regionais que restrin-
gem acesso ao ensino por diferenças tais quais gênero, etnia, classe
social e religião.
Um estudo esclarecedor realizado na Argentina analisou, por
meio da cultura material (arqueologia), a relação existente entre
as transformações na arquitetura, conteúdos didáticos das escolas
primárias de Buenos Aires e as transformações no sistema capita-
lista. Os resultados dessa pesquisa apontaram a escola como uma
“tecnologia do poder”. A escola, segundo Zarankin (2002), desde
sua criação até os dias atuais, é tida como ponto chave para a
democratização do saber, mas atua como uma forma de poder
sobre a população.
No século XIX, com o início do mercado capitalista, quando
a classe de trabalhadores passa a possuir poder aquisitivo para o
consumo de produtos utilizados até então somente pela burguesia,
a moda e a propaganda passam a ser utilizadas como ferramen-
tas de poder e manutenção da elite, sempre deixando clara a
diferença social entre a classe baixa e alta, sendo que a última
sempre passava a consumir produtos da moda, de valor muito
mais alto do que a versão anterior (PLENS, 2016).
Do mesmo modo, a escola particular segue esses critérios de bem
de consumo. Com o passar dos anos, não basta que o estudante esteja
matriculado em qualquer escola particular, pois surgem modelos
de escolas com pacotes pedagógicos alternativos, modernos, com
novos ideais, a que apenas uma minoria tem acesso, segregando
ainda mais a sociedade. Estado e sociedade usam a educação como
ferramenta de reafirmação de suas posições sociais.
Portanto, até o momento, a ideia de democracia com todos
os seus ideais, inclusive quanto à democratização do saber,
torna-se inviável em uma sociedade de classe, com desigual-
dades históricas na distribuição de bens, de conhecimento e
de acesso a assistências sociais, além dos próprios conflitos de
interesses (CHAUÍ, 2016).
E a desigualdade atinge também a pesquisa histórica, a
patrimonialização dos bens culturais e o ensino de História. Os
livros, assim como a proteção dos bens culturais, sempre privile-
giaram a história de determinadas culturas, em detrimento de
tantas outras. O privilégio da manutenção da história das elites

26 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


leva ao apagamento das histórias das “minorias” da memória
social, fazendo com que, pouco a pouco, o reconhecimento de
seus modos de viver e seu território sejam apagados do consciente
do coletivo e, dessa forma, facilite a expropriação de seus bens
culturais e territoriais. O apagamento das histórias leva às mais
violentas violações de direitos humanos, negando o direito das
“minorias” sociais de viverem de acordo com suas próprias culturas
e em seus territórios, culminando com a maior das violações:
seus direitos à vida.
A Educação Patrimonial é uma ferramenta criada para
suprimir ausências históricas dos livros didáticos e o ensino
de história. O livro didático, assim como o patrimônio, também
tem um grupo seleto que seleciona o que constará em suas
páginas, privilegiando algumas histórias. A partir da perspectiva
da Educação Patrimonial, o educador poderá escolher ferramen-
tas, suportes e visões alternativas da história para as necessi-
dades de seu público de conhecer ou aprofundar determinados
assuntos.
Nesse sentido, o curso de graduação em História da Univer-
sidade Federal de São Paulo (Unifesp) possui um bacharelado
com ênfase na área patrimonial, sendo quatro de suas disciplinas
focadas em diferentes aspectos da cultura material. Diferente-
mente de textos escritos, já bem conhecidos como fonte essencial
de estudo dessa disciplina, a cultura material ainda se apresenta
como um desafio teórico metodológico para os historiadores. De
modo que entendemos que esse mesmo desafio, muitas vezes,
atinja os professores e educadores patrimoniais.
Tentando transpor esses desafios, o recorte feito neste livro
traz uma primeira visão de professores da área patrimonial do
curso de bacharelado em História da Unifesp, das áreas de arquite-
tura, história, museus e arqueologia sobre a cultura material e o
patrimônio para o ensino de História.

“Nós temos que dilatar o tempo,


num exercício que parte da
experiência de cada um de
nós e que afeta o coletivo […]”
Ailton Krenak, 2022

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 27


Referências
CHAUÍ, M. A ideologia da competência. 1. edição. Belo Horizonte/Autentica
Editora, São Paulo/Fundação Perseu Abramo (Escritos de Marilena Chauí. V.
3), 2016.

KEHL, M. R. O sexo, a morte, a mãe e o mal. In: NESTROVSKI, A.;


SELIGMANN-SILVA, M. (org.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta,
2000. p. 137-148.

MORAES, E. R. A memória da fera. In: NESTROVSKI, A.; SELIGMANN-SILVA,


M. (org.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000. p. 149-156.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração universal dos direitos


humanos. New York: ONU, 1948.

PLENS, C. R. A arqueologia de São Paulo oitocentista: Paranapiacaba. São


Paulo: Annablume, 2016.

SELIGMANN-SILVA, M. A história como trauma. In: NESTROVSKI, A.;


SELIGMANN-SILVA, M. (org.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta,
2000, p. 73-98.

ZARANKIN, A. Paredes que domesticam: arqueologia da arquitetura escolar


capitalista; o caso de Buenos Aires. 2002. Tese (Doutorado) – Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2002.

28 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


APONTAMENTOS SOBRE A RELAÇÃO
ENTRE MUSEUS E ESCOLAS

Odair da Cruz Paiva

Introdução
A presença de estudantes em museus é algo comum e, no
geral, valorizada por escolas, alunos, professores, pais e, claro,
agentes responsáveis pelos museus. No entanto, ao lado desse
sentido positivo há uma série de questões que estão ausentes
e que determinam os resultados das visitas. Trabalhei durante
vários anos no setor de pesquisa documental do Memorial do
Imigrante – atual Museu da Imigração –, em São Paulo, e tive a
oportunidade de presenciar muitas visitas de alunos e profes-
sores naquele espaço. A partir disso, compreendi aos poucos a
dinâmica complexa subjacente às visitas de grupos escolares.
No campo das ausências, temos elementos como o trabalho
feito em sala de aula com os alunos pelos professores, a presença
de empresas “especializadas” nesse tipo de visita, seus monitores
que muitas vezes assumem a função dos professores na condução
da atividade no museu, as expectativas dos alunos com o “passeio”,
o gradiente de compreensões sobre o que vem a ser um museu e
as exposições, tanto por parte dos alunos quanto dos professores,
as noções sobre o que é a História, as expectativas e o trabalho
daqueles que compõem as equipes do setor educativo da institui-
ção – quando elas existem – etc.
Assim, há muitos fatores que influenciam a relação entre os
museus e as escolas. Entendo que as abordagens que farei ao longo
deste capítulo deixarão ao largo vários e importantes elementos
contidos na presença de alunos nessas instituições. Isto posto,
quero direcionar meu diálogo aos professores de História bem
como delimitar o campo museal aos museus de História. Em outros

29
termos, apresentarei algumas dimensões explicativas desse campo
e que, em certa medida, não fazem parte da formação dos profes-
sores da área de História.
Importante frisar que não incorrerei no equívoco de ensinar
os(as) professores(as) de História a exercerem seu ofício numa
visita aos museus; as razões para tal são óbvias. Entretanto, há
questões no campo museal que devem ser discutidas e que auxiliam
a compreensão da relação entre museus e escolas.
Em visitas a museus, docentes e discentes estão expostos à
presença de artefatos organizados para embasar narrativas que, em
muitos casos, não demonstram com clareza sua intencionalidade.
Na sedução produzida por tridimensionais “exóticos”, “curiosos”
“exemplares” ou “únicos”, a contemplação lúdica não deve ser a
única. Por isso minha proposta, aqui, é apresentar algumas questões
básicas do campo a fim de que os(as) docentes compreendam
várias dessas ausências presentes nas visitas a museus. Enfati-
zarei, assim, três núcleos principais: a formação dos museus, as
relações entre museus e escolas, e o processo de musealização.
Produzirei um panorama preliminar sobre questões presen-
tes no campo da Museologia que informam as práticas museais
(presenças), mas que não emergem de maneira explícita nas exposi-
ções (ausências). Esse será o ponto que norteará a nossa reflexão.
Ademais, visitas a museus são mais produtivas se compreender-
mos as ações e linguagens que permeiam esse campo, haja vista
que museus e exposições são produtos de processos que envolvem
intencionalidades, de maneira que não devemos naturalizar o
que vemos.
Visando discutir esse assunto, estruturei este capítulo em três
seções. Nas Considerações sobre a formação dos museus, apresenta-
rei elementos que nos permitem melhor compreender a formação
dos museus de História em um processo de longa duração, que
remonta à Grécia Antiga e culmina na forma moderna de museu
criada durante a Revolução Francesa. Em Relações entre museus e
escolas, explorarei aspectos da historicidade dessa relação, entre
as décadas de 1940 e 1980, e farei alguns apontamentos sobre a
produção de materiais didáticos pelos museus. Em Musealiza-
ção: presenças e ausências em exposições, tratarei a musealização
enquanto um processo que envolve um conjunto amplo de ações,
etapas e sujeitos. A musealização é, portanto, um empreendimento

30 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


coletivo que abrange múltiplas dimensões; conhecê-las é fundamen-
tal para termos uma perspectiva crítica das exposições.
Há uma vasta bibliografia que analisa o campo museal e as
relações entre museus e escolas. Sabemos, por um lado, que a área
do patrimônio cultural é interdisciplinar e que recebe contribui-
ções de outros campos do conhecimento, como a Antropologia,
Sociologia, Arquivística, Urbanismo e Arqueologia. Por outro, há
uma importante literatura da área da Educação que, há várias
décadas, discute as experiências oriundas das visitas a museus,
seja no que se refere ao público mais amplo ou relativas ao público
escolar. Dessa forma, a produção que será aqui mobilizada possui
um fundamento igualmente interdisciplinar, sem o qual não haveria
como analisar o campo da Museologia.

Considerações sobre a formação


dos museus
Farei neste momento um breve percurso pela evolução da
noção de museu no Ocidente, destacando as transformações da
forma museu a partir de uma trajetória referendada por autores
como Suano (1986), Costa (2020) e Castro (2009). Essa evolução
pode ser apreendida na tríade forma-função-estrutura, apresen-
tada por Lefebvre (1991).
O museion é considerado a compreensão mitológica clássica
da primeira forma do museu e se refere ao templo onde estavam as
nove musas, filhas de Zeus com Mnemosine, deusa da memória. De
acordo com Costa (2020, p. 22), “[…] esses templos não se destina-
vam a reunir coleções para a fruição dos homens; era um dos
locais reservados a contemplação e aos estudos científicos, literá-
rios e artísticos”. As nove musas eram responsáveis pelas áreas
das artes e das ciências”. O termo museion também nominava o
“filho de Orfeu, poeta e músico grego das divindades […]” (CASTRO,
2009, p. 37).
De acordo com Poulot (2013, p. 15),

O termo “museu”, segundo a etimologia clássica, remete


a uma pequena colina, o lugar das Musas. A genealogia

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 31


tradicional do museu evoca, de bom grado o testemu-
nho do geógrafo Pausânias, que, em sua “Descrição da
Grécia”, fala de um pórtico na ágora de Atenas que era
uma espécie de museu ao ar livre […].

Cada uma das musas estava ligada a uma forma de conheci-


mento ou expressão artística. Calíope era relacionada à canção
heroica, à poesia épica; Clio, à história); Erato, ao amor e às canções
nupciais; Euterpe, à harmonia e música; Melpomene, à tragédia;
Polímina, aos hinos sagrados; Tália, à comédia; Terpsícore, à dança;
Urania, à astronomia (COSTA, 2020). Nessa primeira forma do
museu, sua função era cultivar elementos da cultura considerados
os mais importantes pelos gregos antigos. Assim, o museion emerge
como produto de uma estrutura (tempo-histórico) que valorizava
o conhecimento artístico e filosófico. Parte desse conhecimento
se conectava à mitologia usada como alegoria para compreen-
são das questões sociais.
Nessa forma, ainda não estavam presentes a museália (artefa-
tos de museu). Segundo Costa (2020) e Suano (1986), artefatos,
esculturas, obras de arte e pedras preciosas estiveram presentes
numa forma de museu surgida no período Ptolomaico (305-30 a.C.)
no Egito Antigo. De todo modo, ambas as formas de museu que
emergiram na Grécia e no Egito Antigos cumpriram funções ligadas
à produção de conhecimento. Num olhar contemporâneo, foram
espaços que cumpriam uma função pedagógica que marcaria as
futuras formas de museus.
Na Europa, entre os séculos XV e XVIII, o surgimento dos Gabine-
tes de Curiosidades, por vezes também denominados Gabinetes das
Maravilhas, representou uma nova forma de museu, derivada das
práticas colecionistas de indivíduos com condições financeiras
para viajar e adquirir toda sorte de artefatos, remanescentes ou
não do período clássico greco-romano ou dos Novos Mundos do
Colonialismo. De acordo com Salgueiro (2002), a partir do século
XVII, o Grand Tour foi uma atividade cujo objetivo era educar os
membros da aristocracia europeia, o que fez aumentar as práticas
colecionistas. No entanto, muito antes do Grand Tour, colecionis-
tas e seus gabinetes já tinham notoriedade dentro dos círculos
cultos e letrados na Europa ocidental.

32 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


Figura 1 – Ritratto del Museo di Ferrante Imperato. Ilustração do livro XVIII da obra
Dell’Historia Naturale, de 1599.

Fonte: Disponível em: https://www.researchgate.net/figure/Ferrante-Imperatos-private-


-museum-in-Naples_fig1_264383452. Acesso em: 9 abr. 2022.

A forma Gabinete esteve ligada às estratégias de poder e


reconhecimento social. Numa estrutura na qual a Europa dinami-
zava as trocas comerciais com outras partes do mundo e erigia
seu poder colonial, acumulavam-se nos gabinetes os objetos mais
variados. Segundo Costa, compunham esses espaços:

Artificialia (artefatos produzidos pelo homem); Natura-


lia (manifestações de fauna, flora e minerais); Scientifica
(instrumentos para o estudo do mundo e do universo);
Memorabilia (coisas dignas de serem lembradas); Mirabilia
(admiráveis, Maravilhas que devem ser olhadas) e Exótica
(objetos vindos ou produzidos em terras e civilizações
longínquas. (COSTA, 2020, p. 26)

A fruição desses acervos era privilégio de poucos. De acordo com


Castro (2009, p. 51), “A denominação cabinet de curiosité (gabinete
de curiosidade) permaneceria conotando o local ou exposições

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 33


que privilegiavam o traço clássico ou o exotismo tropical, num
conjunto desarmônico acessível somente ao olhar, à contemplação”.
Da prática dos colecionistas emergiram elementos que deram
suporte aos museus modernos a partir do final do século XVIII e
XIX. Quero destacar três deles: a noção de coleção, os semiófo-
ros e uma nova forma de conhecimento. Segundo Pomian (1984,
p. 53), uma coleção é “[…] qualquer conjunto de objectos naturais
ou artificiais, temporária ou definitivamente fora do circuito das
actividades económicas, sujeitos a uma proteção especial num local
fechado preparado para esse fim, e expostos ao olhar do público”.
Em primeiro lugar, essa perspectiva de coleção foi uma das
características mais comuns dos Gabinetes e, depois deles, dos
museus modernos. Nessas coleções, está o gradiente de atribu-
tos de valor que representa uma das peças-chave para o processo
de musealização. Em segundo, os objetos de coleção assim o são
pelo fato de seus ambientes sociais (ou territórios) originais não
mais existirem, como é o caso da artificialia. Remanescentes de
outros tempos e dinâmicas culturais são recolhidos para serem
testemunhos daquilo que é invisível. De acordo com Pomian (1984,
p. 77), eles são “semióforos […] porque recolhidos não pelo seu
valor de uso, mas por causa de seu significado, como represen-
tantes do invisível: países exóticos, sociedades diferentes, outros
climas”. Desterritorializados de seus ambientes sociais onde foram
produzidos, os objetos de coleção passam a ser reterritorializa-
dos nos Gabinetes e transformados em signos estruturantes de
novas narrativas num ambiente agora artificial.
Finalmente, em terceiro lugar, há uma forma de conheci-
mento que emerge das práticas colecionistas. Para Bittencourt
(1996, p. 12), “[…] De fato, os gabinetes podem ser considerados,
eles mesmos, artifícios engenhosíssimos, quando olhados de perto.
Permitem uma espécie de ‘purgação’ da realidade, organizando
a experiência sensível”.
Nas palavras de Ginzburg (1989), a museália foi um substrato
importante para um conhecimento indiciário. Além disso, o caráter
privado dos museus restringiu sua visitação a um público menos
amplo. Houve exceções, claro, como o caso do Ashmolean Museum,
considerado o primeiro museu público europeu. De acordo com
Castro (2009 apud SUANO, 1986), ele teria se originado “a partir
da coleção de John Tradescant doada a Elias Ashmole que, por sua

34 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


vez, a encaminha para a Universidade de Oxford, com a recomen-
dação expressa de que fosse transformada em museu”.
Entre as várias coleções formadas neste período (séculos XV
e XVIII), uma das mais importantes foi a do médico irlandês Sir
Hans Sloane (1660-1753), composta por mais de 70.000 artefatos,
como livros, manuscritos, medalhas, moedas etc. (COSTA, 2020).
Com a aprovação pelo parlamento britânico da compra de sua
coleção em 1759, após sua morte, ela originou o Museu Britânico.
Outras formações de museus a partir de coleções ocorreram
na França, algumas décadas depois da criação do Museu Britânico.
Entre eles, o Museu de Monumentos Franceses, fundado por
Alexandre Lenoir (1761-1839).

Figura 2 – Sala de introdução do Museu de Monumentos Franceses, por Jean-Lubin


Vauzelle, dentro da Antiga Capela do Convento dos “Petits Augustins”.

Fonte: Disponível em: https://www.histoire-image.org/fr/etudes/musee-monuments-


-francais-alexandre-lenoir. Acesso em: 10 jul 2019.

Na literatura que discute o patrimônio cultural (CHOAY, 2001;


BREFE, 1997), a menção a Lenoir está relacionada à mudança da
noção de patrimônio; esta deixa de ter sentido financeiro e passa a

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 35


ser pensada como bem cultural. Isso aconteceu durante a Revolu-
ção Francesa. Com o êxodo de parte da nobreza e do clero, seus
bens foram alienados e transformados em patrimônio da nação.
Criaram-se, então, depósitos em vários lugares da França, com a
finalidade de guardar, inventariar e, por fim, vender esses bens.
Em 1790, a Assembleia Nacional destina o convento dos Petits
Augustins, em Paris, como um desses depósitos para receber
estátuas e túmulos. Responsável por esse depósito, Alexandre
Lenoir – arqueólogo – reorganiza parte dos artefatos encami-
nhados ao convento, criando o Museu dos Monumentos France-
ses. Em 1795, ele abre seu museu ao público; o que se viu foi uma
disposição cronológica do acervo de acordo com seu século de
produção. Assim, os artefatos foram expostos não pelo seu valor
financeiro, mas pelo seu sentido rememorativo, histórico. Lenoir
não apenas deu outro sentido para a noção de patrimônio como
criou um discurso expositivo que seria disseminado em vários
museus pela Europa no século seguinte.
Ao criar a sala dos séculos, Lenoir produziu uma narrativa
sobre a História da França. Essa forma de exposição contras-
tava com aquela presente nos Gabinetes de Curiosidades dada
a redução da museália exposta. É claro que o material a disposi-
ção de Lenoir era relativamente restrito em sua composição; no
entanto, a narrativa histórica no local resultava de um esforço
pedagógico que ia ao encontro dos interesses dos revolucionários
franceses. Os museus deveriam, portanto, ser espaços abertos a
todos e utilizados como territórios de transmissão de conheci-
mento, sendo esse também o contexto de abertura de arquivos
que, como os museus, ganharam sentido público.
Durante o século XIX na Europa, a burguesia incentivou a
criação de museus de História de abrangência nacional. Entre eles,
destacaram-se o Templo de Sibila (1801), em Varsóvia, o Museu de
Versalhes (1837), em Paris, o Museu Nacional da Germânia (1853),
em Nuremberg, além, é claro, do Museu Britânico (BREFE, 1997).
Há uma importante discussão acerca dos interesses da burgue-
sia em fomentar essas instituições, até mesmo porque os museus
foram espaços que apresentavam ao povo a História da nação,
suas glórias e seus heróis.
Nos casos de museus que também tinham conotações univer-
sais, como Versalhes e o Museu Britânico, estes apresentavam o

36 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


poder do imperialismo com a exposição de despojos de guerra ou
artefatos culturais de outras civilizações. Em quaisquer casos, os
museus de História – mas não apenas estes – estavam a serviço dos
nacionalismos, desempenhando importante papel pedagógico. A
forma dos museus de História na Europa erigia de uma estrutura
na qual o poder da burguesia se espraiava pelo continente. Ao
apresentar a história dos governantes, das guerras e dos heróis
da pátria, os museus eram transformados em ambientes para
uma narrativa sobre a nação, que era comprovada pela materia-
lidade de artefatos, pinturas e documentos.
No Brasil, a constituição dos museus teve uma trajetória particu-
lar. Durante o século XIX, as ideias propagadas sobre nossa História
pelo Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) contribuíram
para a forma de nossos museus. Ao contrário da Europa, a jovem
nação brasileira não herdara um patrimônio material que fosse
considerado à época significativo para a construção do passado.
Nesse sentido, os primeiros museus surgiram a partir do patrimô-
nio natural; no Brasil, o século XIX foi o século dos museus ligados
às Ciências Naturais. Um indício dessa diretriz está na disserta-
ção do naturalista germânico Von Martius, publicada na Revista
Trimestral de História e Geographia do IHGB em 1845, cujo título
é “Como se Deve Escrever a História do Brasil”. Segundo o autor,

Qualquer que se encarregar de escrever a História do Brasil,


paiz que tanto promete, jamais deverá perder de vista
quaes os elementos que ahi concorrerão para o desenvolvi-
mento do homem. São porêm estes elementos de natureza
muito diversa, tendo para formação do homem conver-
gido de um modo particular tres raças, a saber: a de côr
de cobre ou americana, a branca ou caucasiana, e emfim
a preta ou ethiopica. Do encontro, da mescla, das relações
mutuas e mudanças d’essas tres raças, formou-se a actual
população, cuja história por isso mesmo tem um cunho
muito particular. […] Portanto, vendo nós um povo nascer
e desenvolver-se da reunião e contacto de tão diferentes
raças humanas, podemos avançar que a sua história se
deverá desenvolver segundo uma lei particular das formas
diagonaes. (VON MARTIUS, 1845, p. 381-382)

Von Martius expressou um ideário disseminado entre as elites


brasileiras no qual nossa história estaria ligada à natureza. Nessa

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 37


lógica, os museus ligados às Ciências Naturais foram os arautos
de nossa história. Foram criados importantes museus ao decorrer
do século XIX, como o Museu Real (Museu Nacional), criado em
1808, o Museu Paraense Emílio Goeldi, de 1866, e o Museu Paulista,
de 1894. Essas instituições possuíam acervos ligados à Zoologia,
Botânica e Mineralogia.
De acordo com Schwarcz (1993, p. 70), o Museu Nacional foi criado
“tendo como função estimular os estudos da botânica e zoologia
no local”. O zoólogo Hermann Von Ihering (1850-1930) fez algo
semelhante durante o período no qual foi diretor do Museu Paulsita
(1895-1916), criando um importante acervo na área de Zoologia.
Segundo Schwarcz (1993, p. 83),

Estudar o “homem primitivo” não era muito diferente de


estudar a flora e a fauna locais. Na verdade, na perspec-
tiva oficial do MP, o estudo da humanidade claramente
se subordinava a certos ramos do conhecimento cientí-
fico, em especial da biologia, e só interessava enquanto tal.
Afinal, era de Von Ihering a definição e a certeza de que “a
evolução encontrada na natureza era exatamente igual àquela
esperada para os homens”. (Revista do Museu Paulista, 1897)

De acordo com Schwarcz, o fim da era dos museus etnográ-


ficos se deu, como fenômeno mundial, só a partir dos anos 1930.
Entretanto, no Brasil, indícios disso já estariam presentes décadas
antes. Afonso d’Escragnolle Taunay (1876-1958), quando se torna
diretor do Museu Paulista a partir de 1917, teve como um de seus
objetivos preparar a instituição para as comemorações do centená-
rio da Independência em 1922. Taunay também foi responsável
pela criação do Museu Republicano Convenção de Itu, em 1923, na
ocasião do cinquentenário da convenção republicana, realizada
naquela cidade em 1873. No Rio de Janeiro, a criação do Museu
Histórico Nacional foi possível graças à exposição internacional
comemorativa do centenário da Independência; Gustavo Dodt
Barroso (1888-1959) foi seu diretor de 1922 até a década de 1950
(BITTENCOURT, 2003).
A profusão dos museus de História no Brasil abriu caminho
para o surgimento de museus com recorte regional, como o caso
dos museus históricos e pedagógicos criados no estado de São
Paulo entre os anos 1956 e 1973. Segundo Misan (2008, p. 176), para

38 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


Vinício Stein Campos (1908-1990), um de seus principais ideali-
zadores, os museus históricos e pedagógicos deveriam “preser-
var a história da cidade e do patrono”.1
Esse breve percurso sobre o desenvolvimento da noção de
museu demonstrou que as formas assumidas por essas institui-
ções estão relacionadas às estruturas histórico-político-sociais,
devendo cumprir, assim, certas funções. Interessa particularmente
o caso brasileiro, no qual a abertura dos museus – especifica-
mente os museus de História – para o grande público só ocorreu
no século XX. Não se trata aqui de avaliar se essa abertura foi
ou não tardia à da Europa. O importante é considerar que foram
estudantes a rapidamente compor o maior grupo de visitantes
desses museus brasileiros. Na publicação do Instituto Brasileiro
de Museus (IBRAM) de 2011, chamada Museus em Números, há
dois dados que devemos ter em conta.

Figura 3 – Gráfico Porcentagem de Museus por Tipologia de Acervo. Museus em


Números – IBRAM/MINC, 2011, p. 76.

Fonte: Disponível em: https://antigo.museus.gov.br/wp-content/uploads/2019/06/


museus_em_numeros_volume1-1.pdf Acesso em: 24 maio 2022.

1 De acordo com Misan (2008, p. 3), “Foi em 1956 que Sólon Borges dos Reis então Diretor
Geral do Departamento de Educação […] propôs ao Secretário Vicente de Paula Lima a
criação dos primeiros museus históricos e pedagógicos (MHP): MHP Prudente de Morais
(Piracicaba), MHP Campos Salles (Campinas), MHP Rodrigues Alves (Guaratinguetá), e
MHP Washington Luís (Batatais). A intenção era criar centros de memória e de pesquisa
acerca da vida dos quatro presidentes republicanos oriundos do estado de São Paulo”.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 39


Figura 4 – Gráfico Porcentagem de Museus Segundo Segmento de Público Atendido
pelo Setor ou Divisão de Ação Educativa.
Museus em Números – IBRAM/MINC, 2011, p. 120.

Fonte: Disponível em: https://antigo.museus.gov.br/wp-content/uploads/2019/06/


museus_em_numeros_volume1-1.pdf. Acesso em: 24 maio 2022.

Analisando ambos os gráficos, podemos inferir uma conexão


entre os museus – não apenas os de História – e o público infanto-
-juvenil, ou seja, escolar. Sobre essa relação, existem vários estudos
que tratam dos públicos que visitam museus, segundo as tipologias
dessas instituições. Em um deles, Almeida (2004) aborda as diferen-
ças entre os públicos do Museu Paulista (História), da Pinacoteca do
Estado de São Paulo (arte) e do Museu de Zoologia (ciências). Nele, a
autora explora o contexto pessoal como elemento que determina a
fruição museal, enfatizando elementos como as motivações para a
visita, hábitos de consumo cultural, escolaridade, renda e as falas dos
visitantes. Nesse aspecto, não há como esquecer o estudo clássico de
Bordieu e Darbel (2007), produzido nos anos 1960, acerca dos museus
de arte na Europa e dos seus públicos. Mas, por ora, quero enfati-
zar que há muito o que discutir a partir dos números apresentados
pela publicação do IBRAM e pelos trabalhos como os de Almeida
(2004), Bordieu e Darbel (2007); eles são uma porta de entrada para
entender a relação entre instituição e público.

Relações entre museus e escolas


As relações entre museus e escolas têm diversos aspectos.
Faço, aqui, uma escolha: abordarei elementos relacionados a essa

40 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


relação, entre as décadas de 1940 e 1980. Após esse período, essa
relação se torna mais complexa, e uma análise sobre o contexto
mais recente demandaria uma incursão sobre questões que estão
além do escopo deste capítulo. A título de nota, há uma signifi-
cativa produção nos últimos 40 anos cujos temas circundam a
educação patrimonial – destaco o trabalho pioneiro do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), intitulado Guia
Básico de Educação Patrimonial (2014) –, os setores educativos e a
produção de materiais didáticos (MACHADO, 2009; MARANDINO,
2016; SETTON; OLIVEIRA, 2017).
De acordo com Knauss (2011), o tema sobre a relação entre
museus e escolas emerge na Museologia como questão relevante nos
anos 1940. Naquela década, o curso de museus do Museu Histórico
Nacional passou por sua primeira reformulação, permitindo o
surgimento de um debate acerca do papel social dos museus. Nesse
ambiente, segundo Knauss (2011, p. 585), “De modo pioneiro, Nair
Moraes de Carvalho, conservadora, coordenadora e professora
do Curso de Museus publicou, em 1947, artigo pioneiro sobre o
sentido educativo do Museu Histórico Nacional […]”. Na década
seguinte, outras vozes se somaram à reflexão acerca das relações
entre os museus e as escolas de maneira mais objetiva.

Em artigo de 1952 […] a conservadora Sigrid Porto de


Barros, afirmava: “É compreensível que haja ensino sem
auxílio dos museus e suas coleções […], mas é totalmente
injustificável que existam museus dissociados dos planos
educacionais vigentes […]” A autora, assim, sublinhava
que a relação entre museu e educação se estabelecia pela
via da escola e do ensino escolar. Além disso, reconhe-
cia a autonomia do ensino em relação aos museus, mas
reforçava a conexão dos museus com o ensino. […] se
de um lado, a autora defendia a autonomia das escolas
frente aos museus, de outro, cobrava uma renovação do
ensino que se traduziria na abertura das escolas para os
museus. (KNAUSS, 2011, p. 587, 588)

Sigrid Porto de Barros apresentou nos anos 1950 uma questão


importante e de difícil equacionamento nas relações entre museus
e escolas. Na perspectiva da conservadora, a autonomia da escola no
processo educativo não estava em questão, mas, sim, sua abertura
aos museus. Como sabemos, a complexidade de questões que

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 41


envolvem o ensino nas escolas é grande e a pauta das urgências
parece não ter fim. Faz sentido, infelizmente, que a agenda colocada
pela conservadora estivesse no fim da lista do sistema escolar.
No entanto, mudanças no outro polo da relação ocorreram nas
décadas seguintes. A Declaração de Santiago do Chile, oriunda do
Seminário do Conselho Internacional de Museus (ICOM), realizado
em 1972, apontava para uma nova Museologia comprometida com
sua aproximação junto às comunidades. O binômio museu-co-
munidade foi um norte para as atividades dos museus a partir
de então, criando um ambiente para o surgimento da educação
patrimonial. Dessa forma, segundo Knauss (2011, p. 598),

[…] a afirmação da especificidade da educação patrimonial


afastou os museus do foco na história escolar […]. Mesmo
recebendo estudantes escolares, os museus passaram a
propor conteúdos próprios, aprofundando sua relação
com as escolas a partir da afirmação da sua autonomia
de conteúdos e de sentidos, definindo-se como espaço
educativo alternativo.

É preciso considerar que “o oferecimento de conteúdos próprios”,


como bem apontado na passagem acima, baseados numa “autono-
mia de conteúdos e sentidos” foi compreendida – ao menos nos
anos 1980 e 1990 –, em certas práticas educativas nos museus, como
a reprodução dos discursos expositivos por parte dos estudantes.
A produção de materiais pedagógicos – por vezes denominados
como didáticos ou educativos – em museus é uma prática que
remonta aos anos 1980 e representa um capítulo importante na
literatura sobre a produção de materiais que traduzem ou fazem
uma transposição didática dos conteúdos apresentados pelos
museus a seu público.
O estudo de Costa (2008), intitulado A escrita de Clio nos temp(l)
os da Mnemósime: olhares sobre materiais pedagógicos produzi-
dos pelos museus, é uma referência importante sobre os materiais
produzidos por três museus brasileiros a partir dos anos 1980:
Museu Imperial de Petrópolis, Museu Histórico de Santa Catarina
e Museus Castro Maya, no Rio de Janeiro. Costa apresenta ao leitor
as transformações e a sofisticação dos materiais produzidos, de
maneira a explorar fontes pouco analisadas a fim de compreen-
der os museus de História.

42 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


Em todos os casos abordados por Costa, a centralidade do
museu é patente, tendo em vista que os materiais e atividades são
desenvolvidos pelas equipes que nele trabalham. Nos primórdios
dessa produção, práticas – hoje defasadas – de ensino foram reprodu-
zidas nos materiais pedagógicos desenvolvidos pelos museus. O
material a seguir, por exemplo, foi produzido pelo Museu Imperial
de Petrópolis na década de 1980.

Figura 5 – Ficha Didática Produzida no Museu Imperial de Petrópolis na Década de


1980.

Fonte: Costa, 2008, p. 223.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 43


Deparei com material semelhante numa visita ao Museu
Histórico Nacional em Montevidéu, no Uruguai, em 2016. A
prancha apresentada a seguir foi encontrada num setor do museu
destinado à reunião de crianças ou grupos escolares e faz parte de
um conjunto de outras pranchas que deveriam ser completadas a
partir de quadros expostos no museu ou coloridas de acordo com
o desejo das crianças. O material não deixa claro o seu objetivo,
a faixa etária a que se destina ou se havia um monitoramento da
atividade por parte do educativo do museu. Obviamente, o que me
chamou atenção foi a semelhança com o material produzido pelo
Museu Imperial de Petrópolis, mesmo que a distância temporal
de ambos fosse maior que três décadas.

Figura 6 – Material do Setor Educativo. Museu Histórico Nacional. Montevidéu.

Fonte: Fotografia do Autor, 2016.

44 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


Em ambos os casos, os materiais solicitam aos alunos ou às
crianças visitantes que façam a reprodução do que está presente
nas exposições. Compreender as relações entre museus e escolas a
partir dos materiais produzidos pelos museus é se defrontar com
um dos desdobramentos que Knauss (2011, p. 598) apresentou
anteriormente, no qual “os museus passaram a propor conteúdos
próprios, aprofundando sua relação com as escolas a partir da
afirmação da sua autonomia de conteúdos e de sentidos […]”.
Neste momento, vale uma breve referência aos descompas-
sos entre discursos e práticas presentes nas relações entre os
museus e escolas, no transcurso das décadas de 1940 a 1980. Parto
do pressuposto de que a reflexão da conservadora Sigrid Porto
de Barros, publicizada em 1952, foi bastante arguta, apontando
para uma questão não superada. Em outros termos, embora as
proposições do Seminário de Santiago do Chile, em 1972, tenham
produzido um ambiente propício à relação museu-comunidade,
essa abertura não foi compreendida em sua forma dialógica.
Marandino (2001) também analisou as relações entre museu e
escola, mas tendo como fundamento uma visita realizada por uma
turma de 8ª série a um museu de Ciências. Utilizando o trabalho
de Allard (1996), a autora sintetizou as particularidades de acordo
com a Tabela 1.

Tabela 1 – Especificidades de Ambas as Instituições.

Escola Museu
Objeto: recolher, conservar,
Objeto: instruir e educar.
estudar e expor.
Cliente cativo e estável. Cliente livre e passageiro.
Cliente estruturado em função da idade Todos os grupos de idade sem
ou da formação. distinção de formação.
Possui exposições próprias ou
Possui um programa que lhe é imposto,
itinerantes e realiza suas atividades
pode fazer diferentes interpretações,
pedagógicas em função de sua
mas é fiel a ele.
coleção.
Concebida para atividades em grupos Concebido para atividades geralmente
(classe). individuais ou de pequenos grupos.
Tempo: 1 ano. Tempo: 1 h ou 2 h.
Atividade fundada no livro e na palavra. Atividade fundada no objeto.

Fonte: Marandino, 2001, p. 3-4.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 45


Essa tabela de especificidades traz elementos que são de difícil
operacionalização quando pensamos as relações entre museus
e escolas. O que quero frisar é que elas seguirão compondo um
território complexo de conexões que estão em constante movimento.
No âmbito dos museus, suas tipologias – museus de História,
Ciência, Arte, Ecomuseus etc. – delimitam campos específicos para
seus discursos expositivos, acervos, políticas curatoriais, estraté-
gias de musealização, especificidades da cultura material, composi-
ção dos setores educativos e suas expectativas com relação às
escolas etc. No âmbito das escolas, outro conjunto complexo de
especificidades precisa ser considerado: níveis de escolarização e
faixas etárias, concepções de educação, origem social, expectati-
vas com relação à visita, preparação dos alunos etc. No encontro
entre os museus e as escolas, vislumbrar uma zona de interface
na qual ambos são sujeitos dessa relação me parece ser uma das
metas a serem atingidas.
Nesse território onde ambos os sujeitos – museus e escolas –
estão em constante movimento e cuja interação é por vezes apreen-
dida com certa imponderabilidade, o(a) professor(a) tem papel
fundamental. Evidentemente, não se quer discutir as competên-
cias e habilidades dos(as) docentes no exercício de sua função e da
necessária preparação da visita ao museu; no entanto, é preciso
considerar quais relações os(as) docentes estabelecem com os
museus nas visitas, haja vista que são essas relações que determi-
nam os caminhos a serem trilhados a partir desse encontro.
Em outros termos, é preciso que o(a) docente tenha algum
domínio sobre o campo museal e sobre a especificidade da constru-
ção de narrativas a partir dos artefatos. Não se trata, aqui, de
transformar o(a) professor(a) em museólogo(a), mas, sim, apresen-
tar elementos básicos para que esse(a) professor(a) compreenda e
interaja de maneira positiva nesse ambiente e que, a partir disso,
possa dialogar criticamente não apenas com os profissionais dos
setores educativos, mas principalmente com seus alunos.
Na próxima seção, apresentarei alguns elementos que compõem
esse campo, cuja compreensão crítica é fundamental numa visita
a museus de História. Parafraseando a proposição da conserva-
dora Sigrid Porto de Barros em 1952, ao menos o(a) professor(a)
precisa ser um elemento ativo na abertura das escolas para os
museus e dos museus às escolas.

46 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


Musealização: presenças e
ausências em exposições

Exposição
Sentir-se confuso(a) quando da visita a um museu é algo comum.
Essa sensação, inclusive, foi capturada por autores que tentaram
compreender suas visitas a museus. Cito um deles: Paul Valéry.
Talvez o mais conhecido, esse autor descreve, em O problema dos
museus, sua experiência com esse tipo de instituição:

Não gosto tanto dos museus. Muitos são admiráveis, nenhum


é delicioso. As ideias de classificação, conservação e utilidade
pública, que são justas e claras, guardam pouca relação
com as delícias. Ao primeiro passo que dou na direção das
belas coisas, retiram-me a bengala, um aviso me proíbe de
fumar. Já enregelado pelo gesto autoritário e a sensação de
constrangimento, penetro em alguma sala de escultura na
qual reina uma fria confusão. (VALÉRY, 2008, p. 31)

Outro autor é Ramos (2008) que, citando José Saramago em


sua obra Viagem a Portugal, retoma o que o autor português anotou
de sua visita ao Museu de Évora:

Exige que o visitemos, põe a correr que é nódoa cultural


desdenhar dele, e quando lá dentro nos apanha, como
discípulos que não a um mestre, em vez de nos ensinar com
moderação e critério, atira-nos com duzentas obras-pri-
mas, duas mil obras de mérito, outras tantas de aceitável
valor médio. Não é tão rico assim o Museu de Évora, mas
tem de sobra para um dia, que é excessivo tempo para as
posses do viajante. (Saramago apud RAMOS, 2008, p. 7)

Em ambos os registros, se vê o estranhamento causado pela


visita traduzido no contato entre o visitante e as exposições. As
exposições são o território de contato básico entre os museus e
seus públicos, porém ocorre que as equipes que trabalham nelas
nem sempre constroem exposições que sejam compreensíveis
aos visitantes. Na literatura museológica, frases como “discurso
expositivo” ou “narrativa dos objetos” são comuns, mas, em muitos
casos, as exposições não são construídas de maneira a explicitar ao

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 47


público o discurso, a narrativa ou a mensagem que deseja transmi-
tir. Assim, o sentido didático das exposições muitas vezes é pouco
evidente (RAMOS, 2008; MENESES, 2005).
No momento da visita ao museu, o(a) professor(a) e seus
estudantes saem de um ambiente no qual a lógica formal da
mensagem é a regra e deve ser seguida em todos os momentos
da comunicação e aprendizagem, que é a escola. Ao adentrar um
museu, por intermédio das exposições, esses sujeitos, por vezes,
não reconhecem os códigos da narrativa, colocando-os em dúvida
sobre sua existência. Por isso apresentarei a seguir algumas questões
acerca do “lugar” da exposição no processo de musealização, de
maneira a esclarecer aspectos desses estranhamentos.
Para Desvallès e Mairisse (2013, p. 42), “O termo ‘exposição’
significa tanto o resultado da ação de expor, quanto o conjunto
daquilo que é exposto e o lugar onde se expõe”. A exposição compõe
uma gama de ações de comunicação entre o museu e seu público,
fazendo parte delas as políticas de educação, publicações etc.
Segundo Ferreira e Rocha (2018), a exposição é a ponta do iceberg
do processo de musealização. Essa informação e suas implica-
ções geralmente não estão à disposição dos visitantes. A rigor, o
artefato exposto cumpriu uma trajetória nesse processo – conforme
explicitado na Figura 7 –, até ser considerado um documento ou
indício útil para uma narrativa sobre determinado fato.

Figura 7 – Metáfora do Iceberg.

Fonte: Ferreira; Rocha, 2018, p. 6,

48 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


A presença do artefato na exposição representa o ápice de sua
valorização enquanto documento; tridimensionais são fontes para
a compreensão do seu contexto produtor. Aqui, estamos diante
do que Pomian (1984) apontou como semióforos e o que Ginzburg
(1989) apresentou como indícios. Nesse particular, há uma excelente
literatura sobre a dimensão antropológica da cultura material.
Nela, o artefato pode ser o veículo que transmite a personali-
dade de seu detentor ao visitante. Por ora, embora o artefato seja
potencialmente documento e signo de uma mensagem, muitas
exposições não explicitam toda essa potencialidade.
Segundo Meneses (2005, p. 24), “[…] o museu deveria servir-
-se também dos objetos históricos e de qualquer objeto que lhe
possa permitir formular e encaminhar os problemas que tiver
selecionado como prioritários dentro de seu campo”. Para o autor,
toda exposição deveria apresentar um problema que fosse social-
mente relevante ao público. Na ausência de uma questão, a exposi-
ção se resume à reunião de artefatos que, aos olhos do visitante,
são curiosos. Num ambiente expositivo dessa natureza, o olhar
do visitante reduz o campo de abrangência do que está posto;
se assim, o museu naufraga em seu intuito pedagógico. Vários
autores, dentre eles Ramos (2008), concordam com essa assertiva.
Na ausência da mensagem, observa-se apenas o que é singular
e exótico. As crianças, por exemplo, são facilmente seduzidas por
artefatos que não fazem mais parte de seu cotidiano. Uma xícara de
bigode, um ferro de passar roupas a carvão ou uma arma de fogo
tem poder de chamar atenção e aguçar a curiosidade. A princípio,
não há qualquer problema com a presença desse tipo de artefato
nas exposições. No entanto, o que deve ser levado em conta é
que esse olhar sobre esses objetos não pode ser o único. Cabe à
curadoria lançar questões e problemas a serem discutidos e que
sejam relevantes.
Por outro lado, não é totalmente correto afirmar que as exposi-
ções não têm uma narrativa apenas porque não as compreende-
mos. Como resultado da ação humana, as exposições expressam
sempre alguma intencionalidade. Na presença de artefatos ligados
à militaria, na arrumação do gabinete de trabalho, na exposi-
ção de documentos “históricos” ou no trato com objetos de uso
doméstico, o que o visitante presencia é um ambiente portador
de uma mensagem. Ocorre que o diálogo entre o visitante e a

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 49


exposição pode não se desenvolver adequadamente devido a uma
narrativa pouco compreensível.
Casos em que a narrativa presente na exposição ganha um
patamar subliminar merecem toda a nossa atenção. Por exemplo,
em uma exposição na qual se apresentam objetos vinculados ao
vivido material da burguesia, pode estar intrínseco um elogio à
elite, em detrimento dos grupos sociais subalternos. Desse modo, a
presença ou ausência de determinados artefatos pode ser fruto de
escolhas que evidenciam certos sujeitos na História, suas ideologias e
interesses. A ausência de artefatos ligados às classes populares seria,
nessa linha, o resultado de um processo de musealização relacio-
nado a uma concepção de História específica. Assim, é importante
ter em conta algumas questões contidas nesse processo.

Musealização

A musealização produz a musealidade,


valor documental da realidade,
mas que não constitui, com efeito,
a realidade ela mesma.

(DESVALLÉES; MAIRISSE, 2013, p. 57)

Na metáfora do iceberg, a musealização é compreendia como


um processo. Sua primeira etapa consiste na aquisição do artefato,
ato que supõe algum tipo de valoração. Segundo Meneses (2009),
valores cognitivo, afetivo, estético, formal ou ético são maneiras
de se traduzir significados atribuídos ao patrimônio. Sua aquisi-
ção – ou quaisquer das formas de entrada do artefato no acervo
– deveria fazer parte de uma política baseada em estratégias
definidas pelo plano diretor da instituição ou por uma proble-
mática de pesquisa.
Como parte do acervo, os artefatos deveriam passar pelas
etapas seguintes – documentação, conservação e pesquisa, embora
não necessariamente nessa ordem – para que seu caráter como
cultura material fosse evidenciado. Em princípio, somente depois
dessas etapas do processo de musealização, o artefato seguiria
para a exposição, apresentando sua potência documental. Nessa
última etapa, ele comporia uma narrativa e faria parte de um

50 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


problema socialmente relevante a ser apresentado aos visitan-
tes, sendo, enfim, compreendido, refletido e discutido por eles.
Entretanto, a realidade da maior parte dos museus brasilei-
ros não permite com que sejam aplicadas ações de musealiza-
ção que sigam esse script. Isso envolve investimento e equipes
capacitadas. Segundo dados do IBRAM (2011),

• 41,1% dos museus brasileiros estão sob a administração


municipal;
• 72,4% do total de museus não possui plano museológico;
• 78,7% não possuem acervo registrado;
• 89,9% não possuem acervo tombado.

Ainda de acordo com os dados do IBRAM (2011), o Brasil possuía,


até então, 3.035 museus e o total de 5.564 municípios. Desses, “[…]
4.390 (78,9%) não possuem museus e, entre os 1.174 municípios
(21,1%) que apresentam instituições museológicas, 1.106 dispõem,
no máximo, de cinco museus” (IBRAM, 2011, p. 54).
Portanto, os dados demonstram não só uma distribuição muito
assimétrica dos museus no território nacional, mas também a
dificuldade dos museus brasileiros em efetivarem ações mais
profissionalizadas no tocante às práticas de muselização. Os dados
permitem inferir quão complicada é a situação dos museus em
nosso país, além das dificuldades decorrentes das suas precárias
condições materiais, que impedem o desenvolvimento de práticas
adequadas de musealização. Creio que sempre devemos conside-
rar essas muitas dificuldades pelas quais passam os museus ao
visitarmos esses espaços. É claro, uma perspectiva crítica sobre
eles é necessária, no entanto, as boas práticas museológicas
dependem de investimento e não apenas da boa vontade daqueles
que trabalham nos museus.
Há outros elementos a serem pensados no processo de
musealização. Quero ressaltar ao menos dois deles. O primeiro:
a musealização pode ser compreendida com uma prática que
dá vitalidade aos museus. A cada novo artefato que adentra ao
acervo da instituição e sua consequente pesquisa, conservação e
exposição, o museu agrega mais uma parte da História, mais um
pedaço da realidade que o circunda, mais um documento ou um
indício sobre a sociedade da qual faz parte. Segundo Desvallées

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 51


e Mairisse (2013, p. 57), “A musealização produz a musealidade,
valor documental da realidade […]”.
Uma política de captação de acervo é fundamental para que o
museu possa se atualizar e se transformar num território menos
apartado da sociedade. Instituições que não vislumbram essa
prática em seu cotidiano se tornam pouco atraentes ao público,
demonstrando que não estão alertas à discussão de problemas e
questões sociais que podem ser relevantes à sociedade. Com isso,
elas acabam por abdicar, aos poucos, do seu potencial pedagó-
gico. Professores, escolas, alunos e o público em geral tendem a se
afastar de museus cujas exposições são sempre as mesmas. Todos
perdemos com esse afastamento; museus, estudantes, docentes
e público são prejudicados com a ausência da prática cultural.
Como segundo elemento, Abreu (2012) discute o binômino
espetáculo-fórum no âmbito dos museus, enquanto Ramos (2008)
discute o binômio templo-fórum, no mesmo ambiente. Em ambos os
textos, o fórum emerge como um território onde o museu absorve
para si a discussão de questões sociais relevantes. De outro modo, o
objetivo a ser alcançado é que as práticas de musealização possam
transformar o espaço do museu numa Ágora, num fórum, num territó-
rio no qual a instituição acolhe questões socialmente importantes
sem perder sua identidade. Em 12 de março de 2022, encontrei no
sítio do Museu da Língua Portuguesa a seguinte nota:

No sábado, dia 12, o Núcleo de Articulação Social do Museu


promove uma visita temática pela exposição principal,
destacando a existência das mulheres trans. A ação é um
convite à reflexão sobre as pluralidades das identidades
femininas a partir da palavra travesti. Vale lembrar que
o Museu da Língua Portuguesa está localizado entre os
bairros da Luz e do Bom Retiro, onde vários grupos de
mulheres trans residem e também trabalham.

(Disponível em: https://www.museudalinguaportuguesa.


org.br/mlp-homenageia-as-mulheres-com-aula-de-dan-
ca-e-visitas-tematicas-pela-mostra-principal/. Acesso
em: 30 maio 2022)

Felizmente, essa iniciativa particular do Museu da Língua


Portuguesa é apenas um dos vários exemplos de práticas que encontra-
mos em outras instituições. A atividade do Núcleo de Articulação

52 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


Social eleva a um novo patamar a compreensão do que vem a ser
musealização. Isto é, o que se vê nesse caso é que a musealização
é mais do que adicionar artefatos ao acervo. Aqui, percebemos
concretamente o binômio museu-comunidade e as influências da
sociomuseologia (CHAGAS; PRIMO; ASSUNÇÃO; STORINO, 2018).

Cultura Material

E aqui há uma nova categoria que, aos poucos, vai se


ampliando quanto a esta função informativa: são os
objetos, as coisas físicas. Todo tipo de artefato, tudo o
que é resultado da ação do homem sobre a realidade
física: artefatos desde os utensílios até as estruturas de
todo tipo e, inclusive, as paisagens na medida em que elas
são alteradas pela ação humana e apropriadas cultural-
mente. Hoje em dia se vem reconhecendo cada vez mais ao
objeto sua função de documento, ainda que a predominân-
cia dos textos seja inquestionável. (MENESES, 1980, p. 3)

A princípio, quaisquer artefatos poderiam compor as reservas


técnicas dos museus de História e, por conseguinte, fazer parte
de exposições. Se compreendermos que o mais importante numa
exposição é apresentar uma questão socialmente relevante, a partir
da qual o museu possa se tornar um fórum, qualquer objeto pode
ser alçado à condição de fonte para uma narrativa-problema de uma
exposição (RAMOS, 2008). O que transforma um artefato qualquer
em cultura material é fundamentalmente a operação intelectual que
incide sobre ele. Uma garrafa d´água de plástico, dessas que compra-
mos e descartamos rapidamente, pode ser um artefato valioso se
a observarmos do ponto de vista da sociedade que a produziu, da
mercantilização e privatização da água, do acesso restrito a esse bem
natural etc. A análise da garrafa d´água nos permite alertar sobre
o uso indiscriminado do plástico e seus danos ao meio ambiente.
Faço, então, um breve “parêntesis” sobre uma exposição realizada
em 2004, no Museu do Ceará. Segundo Magalhães e Ramos (2011,
p. 64), a exposição de curta duração intitulada “Coisas do amor,
objetos e imagens do romantismo” foi

[...] Organizada pela professora Kênia Rios, com a partici-


pação de uma equipe de alunos do Curso de História

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 53


da Universidade Federal do Ceará (UFC), a exposição
teve como principal objetivo provocar o debate sobre a
materialização do amor em nossa sociedade, por meio
de diferentes objetos, como fotografias, cartas, móveis
etc. Objetos do acervo do museu dialogaram, então, com
imagens e objetos pessoais cedidos pelo público.

Magalhães e Ramos (2011) dão destaque à um urso branco


de pelúcia, desses que compramos em ruas de comércio, como
a 25 de março, em São Paulo. Esse produto banal, de consumo e
descarte rápidos, foi um veículo importante para apresentar a
mercantilização de nossos sentimentos e seu direcionamento
ao consumo de mercadorias.

Figura 8 – Urso de Pelúcia na Exposição “Coisas do amor, objetos e imagens do


romantismo” .

Fonte: Magalhães e Ramos (2011, p. 65)

54 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


Fechando os “parêntesis”, faço, agora, uma breve incursão
sobre o tema da cultura material, considerando a importância dos
artefatos em nosso cotidiano e algumas das implicações da ação
de seus doadores enquanto construtores de memórias. Segundo
Lima e Carvalho (2020),

A onipresença do universo material e, nele, dos objetos do


nosso dia a dia não nos faz conscientes de seu protago-
nismo; ao contrário, tendemos a nos relacionar com
eles de maneira maquinal, automatizada, baseados no
que alguns chamam de memória motora, o que nos
leva a perceber a nossa relação com esses objetos como
algo natural, e não como parte de nossa cultura. Ao
imergirmos no mundo das coisas de maneira jamais
vista, tornamo-nos insensíveis aos significados de sua
presença. (2020, p. 185)

A perspectiva apresentada pelos autores se aproxima da


noção antropológica de cultura material, segundo a qual determi-
namos e somos determinados pelos objetos que nos circundam
de tal maneira que, ao naturalizarmos a presença e relação deles
com nossas vidas, perdemos a chance de compreender nossa
humanidade. Miller (2013) entende isso como um paradoxo, à
medida que aquilo geralmente atribuído por nós como nossa
própria humanidade – em tese algo com dimensão intangível
– possa ser mensurado pelos trecos, troços e coisas que estão
ao nosso redor.
Essa perspectiva sobre a cultura material tem importância
nas práticas de musealização, visto que a desterritorialização
do artefato e sua reterritorialização no museu segue, por vezes,
etapas que revelam muitas escolhas antes desse processo. Em
outras palavras, há vários casos na literatura sobre museus nos
quais os doadores são construtores de memória e sua influên-
cia transcende as fronteiras da musealização, chegando até às
exposições. Abreu (1996) analisou o caso de Alíce de Porciúncula
(1875-1960), viúva de Miguel Calmon Du Pin de Almeida (1879-1935),
um homem envolvido na política da Primeira República.
A estratégia de Alice de Porciúncula foi a de doar, nos anos
1930, objetos pessoais de seu ex-marido ao Museu Histórico
Nacional, de modo a perenizar a memória de Miguel Calmon.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 55


O fato tem vários desdobramentos, mas o que quero ressaltar
aqui é que, antes de adentrar o Museu Histórico Nacional, os
objetos de Miguel Calmon passaram por uma seleção por parte
de sua esposa. O processo de escolha deu origem à Coleção
Miguel Calmon, que representava “[…] uma memória familiar
que ela (Alice de Porciúncula) desejava tornar pública. Assim,
ela forneceu os contornos de um homem público, precavendo-
-se até mesmo, para que nada transpirasse de sua vida íntima”
(ABREU, 1996, p. 37).
O caso da Coleção Calmon é ilustrativo de tantos outros; aqui
temos o doador como um construtor de memórias. Além disso, a
ação de Alíce de Porciúncula assemelhou-se à de um curador: não
apenas selecionou, ou seja, atribuiu valores aos objetos pessoais de
seu marido, como também construiu uma narrativa sobre sua vida
e história. Nesse exemplo, percebemos como as práticas curato-
riais estão distribuídas em várias – senão em todas – etapas do
processo de musealização, estando presentes inclusive antes delas.
Dessa forma, a presença e função do artefato numa exposição só
podem ser compreendidas em sua radicalidade se considerarmos
as ausências que explicam sua trajetória.

Considerações Finais
Neste capítulo, explorei algumas das questões que estão no
entorno das relações entre os museus e as escolas. A frequência de
grupos escolares museus é consequência da mudança na concepção
do senso comum acerca desses espaços, na qual eles seriam lugares
apartados da sociedade por se tratarem de territórios nos quais se
guardariam somente coisas velhas. Essa perspectiva interpreta os
museus como locais pouco interessantes para o contexto social,
cultural e econômico – que costuma valorizar apenas aquilo que é
novo, o que está na moda, a última tecnologia, e por aí vai. Sabemos
dos riscos trazidos pela sedução daquilo que é efêmero, especialmente
quando isso se traduz no frenesi das mercadorias, das imagens e
das mensagens veiculadas pelas redes sociais.
Não desejo reiterar aqui todas as questões tratadas neste
texto. Mesmo assim, creio que vale mencionar que as visitas de

56 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


estudantes aos museus devem considerar a historicidade das
relações entre museus e escolas – tratadas na segunda seção deste
capítulo. Da mesma forma, vale considerar que o campo museal
tem uma identidade particular, se comparado a outros campos
da vida social – procurei abordar essa dimensão na primeira e
na terceira seção.
Por fim, cabe ressaltar a importância dos(as) professores(as)
como agentes de mediação das relações entre museus e escolas. Essa
mediação será mais eficaz quanto melhor for o trânsito desses(as)
profissionais pelo campo museal. Espero que este capítulo possa
auxiliar os(as) docentes nessa questão.

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Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 61


O USO DE EDIFICAÇÕES ANTIGAS
NO ENSINO DE HISTÓRIA

Lucília S. Siqueira

Na maior parte das vezes, o ensino de História trabalha com


acontecimentos, pessoas e processos que apenas aparecem nas
palavras, ditas pelo professor e pelos estudantes ou escritas no
material didático. Cada vez mais, variamos o material de modo
a incluir documentos da época estudada, imagens fotográficas,
filmes, lembranças colhidas em entrevistas; uma série de suportes
e linguagens diferentes que permitem apreender sujeitos e versões
distintas, possibilitando diversificar as perguntas e as aborda-
gens sobre a realidade passada.
Quando estudantes e professores saem da sala de aula para
trabalhar in loco a partir do patrimônio cultural, avançamos alguns
graus na aproximação do passado em estudo. A potência do uso
do patrimônio cultural no ensino de História está no fato de que
ele apresenta concreta e visivelmente uma parte do passado, um
vestígio do que se passou. Um bem cultural que se tornou patrimô-
nio – pode ser uma edificação, como examinaremos aqui, o centro
ou o traçado antigo de uma cidade, uma coleção de peças expostas
em museu, um monumento público, um modo de fazer determi-
nada comida... – tem sempre uma dimensão material que pode ser
captada pelos sentidos da visão, do olfato, do tato, do paladar e da
audição, e que também por isso amplifica a relação dos estudan-
tes com o conteúdo, com o objeto de estudo.
O patrimônio é um conjunto de bens culturais que, num dado
momento, por serem considerados de grande relevância, receberam
proteção oficial. Mas há muitas expressões de cultura que, mesmo
sem estarem sob proteção oficial, podem ser consideradas patrimô-
nio de um grupo ou de uma sociedade. Em geral, o fato de estar ou
não sob proteção do estado, de ter sido tombado ou não, diz muito
sobre as razões que permitiram que o bem cultural chegasse até o
presente e como ele foi visto e tratado ao longo do tempo.

63
Neste texto lidamos apenas com bens protegidos oficialmente
porque, em geral, fornecem exemplos de casos mais conhecidos
por professores e estudantes e mais recorrentes no currículo. De
todo modo, as propostas aqui apresentadas, de tratamento in loco
de edificações, são válidas para bens que estão sob proteção do
estado e para bens que, mesmo oficialmente desprotegidos, são
objeto de valorização, constituindo-se em referência para um ou
mais grupos da sociedade, com ressonância que pode se restringir a
um bairro, a um município, alcançar uma região ou ser considerado
relevante até por gente de outros países.1 De toda maneira, pode
ser um exercício interessante contrastar um prédio tombado de
dimensão monumental, de uma região central, nascido no seio das
elites, com um prédio que não recebeu proteção oficial, localizado
em área mais distante do centro e cujo significado não ultrapassa
determinados grupos, além de apresentar materialidade mais singela.
Cada bem cultural protegido é um vestígio do passado, uma
parte do passado que permaneceu até o presente. Embora saibamos
que o passado é inalcançável - justamente porque já passou -, uma
parte dele restou e está acessível por sua materialidade. Isso não
é pouca coisa para professores de História que frequentemente
não dispõem de imagens fílmicas ou fotográficas captadas direta-
mente dos seus objetos, como montanhas, rios, plantas, vários tipos
de impacto ambiental, nuvens e ciclones em imagem de satélite,
exploração de minérios, tratamento de água e outros fenôme-
nos. Professores de História tampouco dispõem de laboratórios
como os colegas das ciências naturais, nos quais se mostram os
objetos e eventos explicados por escrito nas palavras, números
e fórmulas das reações químicas, da mecânica, da citologia, da
ótica, da morfologia animal etc.
Repisemos: o patrimônio reúne vestígios do passado. Mais ainda,
em geral o vestígio do passado que recebeu proteção oficial foi
arrumado para ser visto no presente, isto é, tornou-se objeto do estudo
de especialistas, foi restaurado, recebeu placas, legendas e holofotes
para ser visto de maneira espetacular à noite, foi arranjado como
se arrumam peças nas vitrines de um museu, tentando antecipar o

1 Ademais, o patrimônio pode ser objeto de controvérsia, como o caso dos monumentos
públicos que homenageiam escravizadores do passado em vários lugares do mundo,
inclusive no Brasil.

64 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


percurso do olhar do observador. Infelizmente, nem todos os bens
patrimonializados receberam os cuidados conservativos necessá-
rios; no Brasil, um número razoável de edificações protegidas pelo
estado chega a se arruinar, mostrando que o passado nem sempre
é valorizado como os professores de História gostariam, ou pelo
menos que certo passado não é valorizado por certos grupos.
As grandes edificações que os órgãos oficiais tornaram
patrimônio são, quase na totalidade, exemplares oriundos das elites
de nosso país. Entretanto, isso não diminui o enorme potencial
que têm para mostrar o passado de outros grupos sociais. Acima
de tudo, veiculando conhecimento sobre a trajetória das elites ou
de grupos subalternos, tais bens culturais, justamente por serem
patrimonializados, precisam ser apropriados por parcelas amplas
da sociedade brasileira; distintos grupos sociais da atualidade
merecem usufruir esteticamente e intelectualmente desses bens
(MENESES, 2010). A chave do caráter emancipatório ou conservador
da relação que um cidadão tem com o patrimônio não está somente
na origem do bem cultural, mas na qualidade e no caráter crítico
do instrumental de que dispõe esse cidadão (SIQUEIRA, 2019).
Campo vasto e complexo, os estudos do patrimônio cultural
são atravessados por diversas disciplinas – história, antropolo-
gia, arquitetura, sociologia, economia, semiótica e muitas outras.
No espectro da relação do patrimônio com o ensino de História,
uma infinidade de temas e autores poderiam ser tratados neste
capítulo. Entretanto, persegui o que considerei mais relevante
para o propósito deste texto: apresentar propostas de abordagem
para o uso de edificações antigas no ensino de História. Quando
julguei adequado, acrescentei algumas obras e autores de referên-
cia para o caso de o leitor querer se aprofundar num determi-
nado assunto.
Procurei exemplificar tais propostas com casos em que a
ideia tratada pode ser mostrada com clareza. 2 Com efeito, quase
a totalidade dos exemplos de edificação e das referências indicadas
como leitura situa-se no território paulista, que é o que conheço

2 Sugiro, também, ver os casos examinados e as propostas de sequências didáticas


formuladas nas seguintes dissertações do programa de mestrado profissional de for-
mação de professores da Unifesp – ProfHistória: CAETANO, 2020; PEDROSO; RIBEIRO,
2021 e SANTOS, 2021.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 65


melhor. Optei por não inserir imagens porque se trata de prédios
facilmente encontrados na internet e, principalmente, porque
a fotografia aqui arranjada para expressar a ideia em questão
impediria justamente um dos fins mais acurados que este texto
pretende defender: a capacidade de, olhando a materialidade de
uma edificação, apreender elementos que levem à formulação
de perguntas e de conhecimento. Direcionar o observador para
constatar numa fotografia uma ideia já formulada seria encurtar
o percurso do olhar e interromper o fluxo reflexivo, diminuindo
a envergadura do esforço cognitivo.
Como não podia ser diferente, minha formação de historia-
dora, minha atuação como formadora de professores e os objeti-
vos deste texto fazem com que as abordagens desenvolvidas não
alcancem um tratamento rigoroso e sofisticado do ponto de vista
da arquitetura.3 Abri mão de outras questões e formas de entendi-
mento de edificações do ponto de vista arquitetônico para chegar
mais perto do que considero interessante às aprendizagens referen-
tes ao pensar sobre o tempo, à percepção das mudanças que sofre
um prédio ao longo do tempo.
É imperativo ter em mente que o patrimônio, conjunto grande
e variado de bens culturais multifacetados, tem duas dimensões
que interessam diretamente ao ensino de História: a de vestígio
e a de memória. Na trilha do que foi indicado por Jacques Le Goff
(1990, p.535-549), um bem patrimonializado pode ser visto como
documento, o que aqui chamamos de vestígio, e também pode ser
apreendido como monumento, ou seja, como manifestação de
memória, pois expressa aquilo que a sociedade escolheu preser-
var, carrega os significados que lhe atribuíram e a arrumação pela
qual passou para ser visto no presente.
Claro está que as dimensões de vestígio e de memória coexis-
tem e se influenciam mutuamente na realidade presente em que
se analisa o patrimônio; para estabelecer um terreno mais sólido
para professores de História que pretendem fazer uso do patrimônio

3 Para dirimir dúvidas de caráter técnico numa dimensão razoável para nosso interesse,
sugiro recorrer aos dicionários arquitetônicos. O mais conhecido é CORONA e LEMOS,
mas há outros que atendem a nossos objetivos de professores de História, como o
Dicionário ilustrado de arquitetura (ALBERNAZ e LIMA, 2000). Para ir mais adiante,
numa dimensão reflexiva: ZEVI, 2009.

66 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


edificado em suas aulas, tentemos refletir separadamente sobre
cada uma delas.

Vestígio/documento: o que ficou


A casa de Piracicaba/SP onde viveu a família de Prudente de
Moraes (1841-1902) durante algumas décadas é uma edificação
construída nos anos finais da década de 1860 e traz até hoje alguns
dos elementos materiais do seu contexto de origem, como a quanti-
dade de portas e janelas, o corredor central e as salas da frente.
O convento franciscano de Santa Maria Madalena, em Marechal
Deodoro/AL, foi construído durante os séculos XVII e XVIII; portanto,
seu contexto de origem é estendido no tempo. O conjunto que se vê
ali é mais complexo do que a casa de Piracicaba/SP, pois conta com
vários prédios, igrejas, celas e dormitórios, pátio central, cemité-
rio, refeitório e outros recintos.
Essa materialidade que está na variedade, no tamanho e na
disposição dos cômodos, num pátio central, na largura das paredes,
na quantidade e na altura das janelas, na distância entre o piso e
o forro, na técnica construtiva, nos materiais usados, enfim, isso
que pode ser observado quando se está in loco pode trazer muita
informação sobre seu contexto de origem, sobre a época em que a
edificação foi construída para ser um convento ou uma residên-
cia e como foi habitada, sobre quais atividades eram realizadas
em cada recinto: onde se dormia e se faziam as refeições, onde
as frutas e verduras eram cultivadas pelos moradores, onde se
rezava, onde se enterravam os monges falecidos; enfim, há muita
informação sobre a sociedade do contexto de origem que pode
ser depreendida da edificação ou que, lida em algum texto ou
escutada na fala do professor, pode ser verificada na materiali-
dade que está diante dos olhos.
Entretanto, a edificação que hoje se observa não ficou congelada
no seu contexto de origem. Embora cada prédio tenha sido desenhado
para cumprir determinadas necessidades funcionais, tenha nascido
com um programa arquitetônico – que podia ser, por exemplo, casa
de morada, mercado, convento, casa de Câmara e Cadeia, escola,
matadouro de animais, hospital e muitas outras possibilidades –,
apesar de sua origem, uma edificação antiga passou por outros

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 67


períodos e sofreu transformações materiais para se adequar a novas
funções. Assim, a casa de morada da família do presidente Prudente
de Moraes foi vendida para a prefeitura de Piracicaba no começo
dos anos de 1930 e virou um prédio escolar; o convento alagoano
com mais de duzentos anos de existência, já esvaziado de francis-
canos, em 1915 passou a abrigar um orfanato de meninas.
A história vivida por uma edificação e as mudanças materiais nela
impressas – como pintura com novas cores, fechamento de portas e
janelas, nova disposição dos cômodos, eliminação parcial ou integral
do terreno do quintal, criação de banheiros e cozinhas, instalação
de canos de água e de eletricidade etc. – mostra concretamente a
passagem do tempo e exercita a capacidade de pensar sobre como
a sociedade se transforma. Portanto, um prédio antigo é vestígio e
documento de diferentes períodos, da época em que foi construído
e das outras etapas por que passou, dos diferentes usos a que serviu.
Ver diferentes épocas num mesmo vestígio do passado é exercí-
cio vigoroso para uma boa parte do que pretendemos no ensino
de História: que as transformações da realidade social ao longo
do tempo possam ser percebidas pelos estudantes.

Memória: o que se escolheu


Os bens culturais que compõem o patrimônio foram preser-
vados porque certos grupos lhes atribuíram valor, e claro que tal
valorização muda com o passar do tempo. No Brasil, de uns tempos
pra cá, paramos de patrimonializar as casas onde moraram os
homens ilustres, como Prudente de Moraes, que foi o primeiro
presidente civil da República (1894) e o primeiro paulista a ocupar
a cadeira presidencial. Desde o começo do século XXI, seguindo as
determinações da Constituição de 1988, os órgãos públicos estão
mais voltados para a preservação de bens oriundos das popula-
ções indígenas e afrodescendentes (ABREU e CHAGAS, 2009).4
Assim como outros locais onde residiram presidentes da
República, a casa de Prudente de Moraes acabou sendo protegida

4 Entre inúmeros aspectos dessas transformações, ressaltemos dois que têm a ver com
o assunto em tela: o interesse bem menor pelo patrimônio edificado e a proeminência
da antropologia no tratamento dos bens culturais.

68 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


nos níveis federal, estadual e municipal, pois o seu morador foi o
habitante mais célebre do município de Piracicaba, tem importância
estadual por ter imprimido a presença de São Paulo no começo da
República brasileira e, por fim, por se tratar de pessoa que chegou
ao cargo mais alto do país, tem relevância nacional e foi protegida
pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Inúmeros presidentes da República – Deodoro da Fonseca,
Rodrigues Alves, Washington Luís, Getúlio Vargas, Juscelino Kubits-
chek e outros – tiveram suas casas preservadas e musealizadas em
diversas localidades do país. Se tais casas foram protegidas décadas
atrás por terem sido morada desses homens ilustres, é preciso
que os estudantes entendam como isso aconteceu e possam se
alegrar com o fato de que hoje já não buscamos louvar o heroísmo
deste ou daquele poderoso, mas que, por meio dessas edifica-
ções vetustas, podemos conhecer como ali viveram e trabalha-
ram outros grupos sociais: crianças, jovens e mulheres da família
e do convívio presidencial; escravizados e empregados que faziam
os serviços domésticos; fornecedores que abasteciam a morada.
Como sabemos, a própria biografia de tais homens poderosos pode
desvelar aspectos amplos e críticos da sociedade que governa-
ram. E é sempre conveniente lembrar que uma parte considerá-
vel das pessoas escravizadas que durante séculos trabalharam no
território brasileiro habitavam as cidades e, portanto, andavam
nas ruas, becos e largos, na lida entre e dentro das casas, lojas e
prédios públicos que hoje podemos investigar.
Quando se montou o órgão federal de patrimônio no Brasil –
que hoje se denomina Iphan, Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional – no final da década de 1930, os mentores do
patrimônio privilegiavam a arquitetura e, mais ainda, os exempla-
res arquitetônicos da época colonial; por isso temos um grande
conjunto de igrejas, fortes, conventos e casas de Câmara e Cadeia
remanescentes desse período. (CHUVA, 2009, p.195-244) Com
algumas variações, tais edificações foram vistas como valiosas
porque eram belas obras arquitetônicas ou porque representavam
uma determinada fase da história da arquitetura neste território.
Como boa parte das construções do período colonial, então, o
valor atribuído ao convento franciscano em Alagoas para susten-
tar a proteção oficial foi principalmente arquitetônico, ou melhor,
de exemplar de uma certa etapa da história da arquitetura, com

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 69


determinados materiais e certas técnicas construtivas. Além disso,
aquele convento foi tratado como parte de um conjunto de conventos
espalhados pelo território brasileiro. Assim se procedeu também
com os diferentes conjuntos que tinham sido construídos na época
colonial pelos jesuítas, pelos beneditinos, pelos carmelitas e outras
entidades religiosas, como as irmandades leigas.
Da mesma maneira que acontece com as casas presiden-
ciais da época do Império ou do começo da República, as edifica-
ções coloniais também podem ser abordadas sob pontos de vista
renovados e não apenas como belos artefatos e obras de arquite-
tos famosos. Além de nos maravilharem, nossas bonitas igrejas
barrocas podem colaborar no entendimento de diversos outros
aspectos, como o funcionamento das irmandades religiosas, as
divisões de gênero e o imaginário religioso do período.
Em 1937 criou-se o Iphan – Sphan, naquela época – e, no
mesmo ano, o Decreto 25 instituiu o tombamento, que é o mais
forte e eficaz instrumento jurídico de preservação de que dispomos
no país até hoje. Desde então, para fazer nossas edificações se
tornarem patrimônio, é preciso tombá-las, inscrevê-las num livro
de tombo. Os procedimentos administrativos e as decorrências do
tombamento são assunto extenso; para o que pretendo aqui, basta
levar em conta os quatro pontos seguintes: primeiro, o tombamento
determina que as características físicas de um bem cultural não
podem ser alteradas; em caso de necessidade de consertar ou
reformar uma edificação, o proprietário precisa obter autorização
do órgão oficial que a tombou.5 Em segundo lugar, o tombamento
não implica em expropriação e não é desapropriação, ou seja,
o proprietário continua com direito de propriedade sobre seu
imóvel depois que este foi tombado, podendo inclusive vendê-lo.
Terceiro: o tombamento é instrumento usado para bens materiais
– edificações, imagens sacras e obras de arte, por exemplo –;
os bens de natureza imaterial – como festas, saberes, rituais e
outras formas de expressão – são protegidos por meio de outros
instrumentos.6 E, por fim, como se trata de legislação federal, todos

5 Há debate jurídico sobre as determinações do tombamento quanto ao uso que se faz


de uma edificação, mas o assunto ultrapassa o escopo deste capítulo.
6 Sobre o patrimônio imaterial e seus respectivos instrumentos de salvaguarda, ver:
http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/234. Acesso em 14 jun. 2002.

70 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


os tombamentos feitos em nível estadual ou municipal devem
obedecer aos mesmos princípios do Decreto 257.
O patrimônio é uma parte do passado que foi selecionada
para estar no presente, mas não é uma parte tal como existiu no
seu tempo. Para ser preservado, o bem cultural patrimonializado
passa por restauro. Para restaurar, isto é, conforme o caso, para dar
condições de uso na atualidade, para impedir que a degradação
prossiga ou para restabelecer algo do que se perdeu, é preciso
fazer escolhas, pois quando os profissionais do patrimônio chegam
a uma construção antiga como o convento alagoano, deparam
com alterações, exclusões e inserções que foram realizadas
ao longo do tempo, e é preciso decidir o que priorizar. 8 Nesse
caso do convento, a diretriz maior estava em manter o caráter
franciscano do conjunto conventual – e não a memória de quando
abrigou um orfanato, por exemplo –. Por isso, quando algumas
prospecções revelaram pinturas artísticas em alguns recintos,
estes passaram a receber mais cuidado, pois se tratava de pontos
de concentração de atividade religiosa; e o branco foi escolhido
para pintar as paredes do conjunto restaurado porque as mesmas
prospecções revelaram que esta era a primeira camada de tinta,
do contexto ainda franciscano (MAGALHÃES, FERRARE e SILVA,
2012, p.215 e p. 197-198).
Para quem examina um prédio antigo, compreender o
restauro e identificá-lo na edificação permite um entendimento
histórico mais consistente, como indica Beatriz Kühl (CARVALHO
e MENEGUELLO, 2020, p.67-70). Conhecer quais foram os objetivos
que orientaram os restauradores e em que medida conseguiram

7 Não há força jurídica, portanto, para tombamentos realizados no Legislativo, por as-
sembleias estaduais de deputados ou câmaras municipais de vereadores. Apesar disso,
vem crescendo no país a prática de proteger bens por decretos ou por leis nascidas no
Legislativo. Tais problemas inserem-se em complexo e amplo debate, com dimensões
jurídicas e sóciopolíticas. No meu entendimento, do ponto de vista educacional, é
preciso disseminar na sociedade os conhecimentos básicos sobre o arcabouço jurídi-
co-institucional de que dispomos no país a fim de fortalecermos nossas instituições
e seus respectivos mecanismos de participação da sociedade. No limite, este capítulo
busca atender a essa finalidade.
8 Neste episódio, o restauro do dito convento franciscano é apresentado e proble-
matizado pela arquiteta Ana Cláudia Magalhães. Disponível em: https://sesctv.org.br/
programas-e-series/monumentos/?mediaId=0b054e76b485c1518813a26ff503c582.
Acesso em: 24 jun. 2022.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 71


atingi-los possibilita apreensões mais sofisticadas acerca de
como o passado pode permanecer no presente. Por exemplo,
é importante compreender que muitos projetos de restauro
procuram atender ao princípio da distinguibilidade, que vem
a ser o princípio de não misturar épocas diferentes para não
confundir o observador; é por isso que vemos certos elementos
bem modernos e aparentes em alguns prédios antigos restau-
rados, porque o restauro procurou deixar claro que no passado
aquele elemento não existia – como vidros nas janelas e portas,
elevador e instalações elétricas, por exemplo –, ou que não foi
possível recuperar o elemento antigo – como uma janela de
madeira ou um piso em mosaico de pedras –.
Entretanto, nem sempre a escolha é por ressaltar as diferen-
ças de época; às vezes se opta por manter certa harmonia de
conjunto; outras vezes pelos aspectos simbólicos, para satisfazer
os interesses de memória de alguns grupos. No caso de atender a
interesse memorial, há exemplos mais legítimos e outros menos
legítimos 9.
Lembremos, como exemplo de legitimidade, o caso da igreja
matriz de São Luís do Paraitinga/SP, inteiramente derrubada pelas
inundações de 2010 e refeita à semelhança do que tinha sido, do
piso à cruz da torre. Segundo os cânones do restauro arquite-
tônico, não caberia refazer integralmente um templo religioso
que viera ao chão, pois, como indicamos acima, seria induzir os
observadores ao engano, levando-os a ver naquela igreja recente
uma edificação que tivesse cerca de dois séculos de existência;
contudo, os munícipes não se conformavam com a perda de sua
igreja e queriam-na de volta como era antes das enchentes; e
assim foi refeita.10
Entender como diferentes discursos e investimentos de
memória foram aderindo e se descolando de uma edificação ao
longo do tempo e perceber que o que vemos hoje foi arrumado para

9 O Pátio do Colégio, núcleo inicial da cidade de São Paulo, é um caso de restauro


orientado por interesse de memória. Ao longo da segunda metade do século XX ali se
construíram réplicas de edificações que tinham sido destruídas. Sobre as discussões
acerca do caso: (RODRIGUES, 2000, p. 101-105; KUHN, 2018).
10 Sobre o impacto da enchente de 2010 e as iniciativas de recuperação do patrimônio
da cidade de São Luiz do Paraitinga, ver principalmente: http://portal.iphan.gov.br/
pagina/detalhes/388/. Acesso em 16/junho/2022.

72 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


realçar uma certa perspectiva do passado são processos cogniti-
vos complexos que contribuem para objetivos nobres do ensino
de História: compreender como se constrói a memória social, que
é múltipla; e no limite, compreender como se constrói conheci-
mento sobre o passado.

Proposições para atividades com


edificações antigas in loco
Vistas essas ideias mais gerais sobre as dimensões de vestígio
e de memória das edificações, proponho adiante algumas etapas
e diretrizes para montagem de atividades de História a partir de
edificações antigas. A ordem que vai aqui não precisa ser seguida;
antes disso, deve ser adaptada ao prédio e ao escopo da atividade
que se intenta realizar. Sobretudo, tais propostas precisam ser
adaptadas aos estudantes que realizarão a atividade de campo e
àquilo que o professor pretende que seja aprendido. A observação
dos prédios antigos, as indagações que dela decorrerem e as análises
e interpretações que dela resultarão podem ser operadas indivi-
dualmente, em pequenos grupos ou, o que parece mais potente,
podem ser construídas coletivamente in loco sob a coordena-
ção do professor, que mostra o que não foi notado por ninguém,
aprimora uma pergunta, responde uma outra para a qual não
houve resposta etc.

1 Objetivos de aprendizagem: responder e fazer perguntas


Como sabe quem leciona, ter claros os objetivos de aprendiza-
gem é condição de partida; antes de planejar o que será realizado
com os estudantes, é preciso considerar o que se pretende. Às
vezes se trata do mais simples, ou seja, de aprender mais e melhor
acerca do conteúdo convencional tratado em sala de aula, sobre o
período e os acontecimentos em questão; na casa de Prudente de
Moraes em Piracicaba/SP, por exemplo, conhecer um representante
das oligarquias cafeeiras do Sudeste que chegaram a dominar o
país nas primeiras décadas da República.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 73


Pode ser também que os objetivos estejam voltados a um
conteúdo mais reflexivo, sobre como se construiu neste país uma
memória das elites excluindo vastos contingentes da sociedade;
no caso do núcleo inicial da cidade de São Paulo/SP, por exemplo,
todo o investimento memorial no Pátio do Colégio se fez em favor
da agência dos padres jesuítas, excluindo a atuação dos indígenas
como sujeitos históricos. Em boa parte dos núcleos de fundação dos
municípios brasileiros, dos “centros históricos”, a narrativa montada
exclui os povos originários; os indígenas não são tratados nem
mesmo como objeto de expulsão do território quando do começo
da ocupação pelos grupos dominantes. Em todos os lugares onde
há memorialização, nos quais se veiculam informações sobre o
passado, é possível perceber a escolha que foi feita, as exclusões
e os apagamentos que foram operados.
O patrimônio colabora para a capacidade de pensar sobre o
passado mesmo quando não traz respostas. A materialidade de uma
edificação, como vestígio do passado, pode ajudar a elaboração
de perguntas procedentes, cabíveis, que façam sentido como
maneiras de abordar a realidade passada. Desse modo, ainda
que o bem edificado não esclareça diretamente o assunto em
questão, pode, sim, contribuir para fomentar nos estudantes
a curiosidade sobre o que já não existe e até mesmo levá-los a
entender porque certas perguntas são improcedentes para uma
realidade passada.
De acordo com os objetivos e o conteúdo a ser trabalhado no
local visitado, é importante que o professor discrimine o que é
discurso veiculado no local e quais as perguntas que pretende ter
respondidas a partir dessa saída a campo. É desejável inclusive que,
na medida do possível, oriente os estudantes para que também
cheguem a discernir essas diferentes camadas de informação.
Por exemplo: a casa onde viveu o presidente Prudente de Moraes
hoje abriga um museu que, como tal, enfatiza sua trajetória de
homem público; no entanto, os estudantes podem estar naquele
local buscando aprender sobre urbanização nas últimas décadas do
século XIX e, sendo assim, observarão outros elementos além dos
painéis e vitrines do museu: se havia áreas livres no terreno para
cultivo e criação de pequenos animais, se na época da construção
o lote estava numa área densamente ocupada do núcleo urbano,
se há equipamentos urbanos do século XIX próximos à casa,

74 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


como mercado, matadouro, estação ferroviária, chafariz para
abastecimento de água etc.11
O manejo de edificações patrimonializadas no ensino de
História é oportunidade para aprendizados que não se esgotam
na escola e tampouco terminam no final da escolarização, já que
durante toda a vida aperfeiçoamos nossa capacidade de observar
e compreender as edificações nas áreas onde habitamos ou visita-
mos. Por isso, aprender a observar um prédio com acuidade, notar
seus elementos fachadísticos e sua implantação, conjecturar a
função de cada recinto e dali extrair informação ou perguntas
sobre o passado, sobre quando foi construído ou restaurado, tudo
isso é para toda a vida, para bem aproveitar os lugares por onde
passamos; numa perspectiva paulofreireana, para aprimorar a
capacidade de ler o mundo.
Antes de visitar uma edificação ou um conjunto de edifica-
ções com os estudantes, é importante saber se o foco estará na
história dos proprietários que ali moraram, na história da arquite-
tura, nas pessoas que trabalharam para construir tais bens ou
que viveram em torno deles, naquilo que pode contar acerca da
história da cidade, no processo pelo qual aqueles artefatos se
tornaram patrimônio, se se trata de pensar sobre o que justifica
sua preservação e a qual grupo essa memória favorece, ou ainda
se é o caso de notar como aquele lugar foi preparado para ser
observado na atualidade.

2 Informações preliminares: construção, usos,


proprietários e tombamentos
Para o entendimento de uma edificação antiga e patrimonia-
lizada são necessárias algumas informações recolhidas anterior-
mente. Em alguns casos tais informações, ou parte delas, só podem
ser encontradas no próprio local; sendo assim, aquilo que era
preliminar se torna informação a ser coletada na própria visita. Em
geral, os dados que devem subsidiar o professor antes do planeja-
mento da(s) atividade(s) e informar os estudantes antes mesmo
de visitarem o local são os seguintes:

11 Além disso, uma edificação pode ser um ponto de condensação para tratar da história
da cidade, como o edifício Martinelli na capital paulista (PEIXOTO e BISPO, 2019).

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 75


2.1 Data e contexto de origem:
É preciso conhecer os diferentes agentes envolvidos no
contexto de origem de uma edificação. Há a pessoa que pagou
pela construção – que em geral era seu proprietário –, aquela
que projetou o que seria construído – o profissional arquiteto,
engenheiro, mestre de obras –, e as pessoas que trabalharam na
construção. No caso das aulas de História, é bastante esclarecedor
identificar as diferenças sociais e de atuação entre tais agentes
e saber em quais registros podemos encontrar tais informações:
documentos de autorização de obras no arquivo do município,
memórias familiares etc.
Outra informação de partida é a que se refere à função primeira
para a qual o prédio foi construído, isto é, seu programa arquite-
tônico. Justamente por suas longas histórias decorridas, edifica-
ções antigas podem ter sofrido grandes alterações materiais e,
principalmente, podem ter usos antigos apagados pelo uso atual.

2.2 Transmissões de propriedade e diferentes


usos ao longo do tempo:
Isso é importante porque há inúmeros casos no país de edifica-
ções que na origem eram propriedade particular e que, depois de
vendidas para o município ou o estado, passaram a ter uso público,
tornando-se escolas, museus, hospitais, sedes do Executivo ou de
outros órgãos oficiais.
Também há diversos casos no país em que, embora a edifica-
ção antiga tenha permanecido como propriedade privada, sua
conservação só foi possível porque uma instituição pública passou
a ser abrigada no prédio. Há várias casas antigas que são conser-
vadas pela prefeitura municipal ou pelo governo estadual pelo fato
de ali ter se instalado uma biblioteca, um museu, uma escola etc.
Enfim, saber que os donos de um imóvel mudam ao longo do
tempo ajuda a vê-lo como um bem que se transformou, sofrendo
as mudanças de uso e de sentido que hoje não estão aparentes.

2.3 Tombamentos:
Se a edificação a ser visitada é objeto de proteção oficial, é
indispensável saber quando foi tombada e qual instância pública
foi responsável pelo tombamento.
Se os objetivos da atividade estiverem focados na construção
da memória da edificação, nos sentidos que ela foi adquirindo ao

76 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


longo do tempo e na compreensão de como ela é percebida na
atualidade, talvez valha a pena o professor conhecer o processo
de tombamento.12 De posse do tombamento, os seguintes aspectos
devem ser considerados:

• O processo de tombamento é um conjunto de documen-


tos de tipologias variadas em que se juntam, em ordem
cronológica, correspondências, laudos de técnicos do órgão
de patrimônio, pareceres de conselheiros do Conselho de
patrimônio, artigos de jornal, fotografias etc. Portanto,
não é fácil compreender um processo de tombamento
e dele extrair as informações desejadas.
• Notar a duração do processo de tombamento, suas datas
de abertura e encerramento. Há casos de tombamento
feito sem pesquisa, outros em que os estudos são extensos,
aqueles em que há pausa prolongada e inexplicada por
anos, e outros ainda em que o trabalho dos técnicos foi
realizado de maneira célere e competente, principal-
mente quando se tratava de proteger algum bem em
risco iminente de desaparecimento.
• Identificar os agentes que participaram do processo de
patrimonialização e quais diferenças de interesse manifes-
taram. Cada processo de tombamento seus pontos canden-
tes, que despertaram maior discussão; diferentemente do
que muitos pensam, as tensões mais recorrentes não se
dão entre proprietários e órgãos oficiais de patrimônio,
mas no debate entre o conjunto de técnicos e conselhei-
ros, entre os dois conjuntos ou no interior de cada um
desses grupos, no tocante à concepção do bem cultural, às
relações entre este bem e seu grupo próximo, à necessi-
dade de consultas de teor jurídico etc.
• O principal dado a ser fornecido por um processo de
tombamento a um professor de História é o valor que

12 Creio que só ao professor cabe analisar um processo tombamento, pois se trata de


documentação complexa, incluindo autos de variada datação e tipologia. Alguns órgãos
de patrimônio deixam tais processos disponíveis na internet ou, no caso do Iphan,
enviam uma cópia digitalizada se lhes for solicitada por e-mail com certa antecedência.
Para entender como se constitui um processo de tombamento: GRIGOLETTO, 2009.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 77


foi atribuído num dado momento ao bem cultural em
questão. É interessante, em primeiro lugar, ver como
tais valores mudam ao longo do tempo; depois, perceber
como os laudos e pareceres ecoam os jargões e as premis-
sas da área de formação de quem os emite. Assim, em
geral, há pareceres bastante diferentes de historiado-
res, de arqueólogos e de arquitetos, o que é revelador do
quanto variam os sentidos percebidos nas edificações e
as razões pelas quais são preservadas.
• Muitas localidades brasileiras têm edificações preserva-
das por outro tipo de proteção oficial, como decretos e
leis municipais. É primordial que os estudantes saibam
como se faz preservação na cidade em que vivem, que
aprendam qual é o órgão público e os agentes que vêm
se encarregando dessa tarefa. Nesse sentido, é provei-
toso que os estudantes conheçam o texto final do decreto
ou lei que consolidou a proteção oficial, o que pode ser
encontrado no Diário Oficial ou mediante consulta nos
órgãos municipais.13
A depender dos objetivos da atividade, o professor precisa
escolher quais são as informações sobre o lugar tratadas antes
da saída a campo, quais são conhecidas no local e quais serão
vistas somente depois, na sala de aula. Assim, um mapa das
ruas do entorno, por exemplo, pode ser examinado numa aula
preparatória, para que ao chegarem na edificação os estudantes
consigam se localizar em relação ao entorno; ou o mapa pode
vir depois do caminhar exploratório que os estudantes façam ao
redor do prédio; ou ainda o mapa pode ser trabalhado numa aula
posterior à saída de campo, para que verifiquem na represen-
tação cartográfica o que puderam apreender quando caminha-
ram pelo local.

13 Quando se trata dos aspectos propriamente ligados à preservação, ao campo das


políticas de patrimônio, podemos dizer que foi ultrapassada a fronteira do ensino de
História e já alcançamos o que se denomina educação patrimonial. Para um enten-
dimento claro do que vem a ser educação patrimonial e como ela pode colaborar nas
aulas de História, ver: TOLENTINO, 2016 e SIQUEIRA, 2019.

78 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


3 Quesitos materiais e prontidão para a realização da
atividade de campo
Aprender fora da escola é diferente de aprender na sala de
aula. (BITTENCOURT, 2008, p.273-290) Quando se está em outro
ambiente, há outros elementos da realidade interferindo na atenção
dos estudantes, sem falar nas diferenças de mobilidade e postura
corporal. É bom se preparar para conseguir manter a atenção
focada nos pontos a serem trabalhados.

3.1 Condições mínimas para ter bem-estar durante


a realização da atividade:
Para que o andamento da atividade se faça sem intercorrên-
cias, é adequado se preparar tanto quanto possível para as caracte-
rísticas do lugar a ser visitado, respeitando as especificidades do
que se pretende, para dispor das seguintes condições quando a
atividade se iniciar: vestuário adequado, equipamentos de registro
em ordem – papel e caneta, equipamento com baterias carrega-
das para fotografar, gravar áudio e filmar –, necessidades sanitá-
rias, de sono, de sede e de alimentação satisfeitas.

3.2 Prontidão para observação:


Fora da sala de aula e da escola, é preciso um esforço maior
para se manter atento. Os estudantes precisam ser instados a
apurar o olhar e a falar pouco, a manter o silêncio tanto quanto
possível a fim de perceber como é o lugar, a fim de ver e compreen-
der os f luxos de pessoas e veículos, de perceber quais são os
códigos comportamentais do local e até mesmo poder sentir
a temperatura, os sons e os cheiros que existem por ali – em
edificações antigas, odores de madeira, por exemplo, são caracte-
rísticas marcantes –.14

14 Cada lugar tem seus códigos. Em casa não nos portamos como na escola, em
templos religiosos precisamos ter cuidado com o volume de voz e o vestuário, nos
museus e bibliotecas espera-se movimentação e fala reduzidas para garantir o bem-
-estar das pessoas que estão em leitura ou observação atenta. Vale esclarecer aos
estudantes que não se trata de adesão moral à rigidez de atitudes, mas de respeitar
lugares de caráter público, de convivência entre pessoas diferentes que precisam de
certas condições para realizar a finalidade precípua do lugar: ler, instruir-se, fruir
obras de arte, descansar etc.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 79


De acordo com os aspectos a serem observados, pode-se pedir
que os estudantes desenhem a edificação, parte dela ou o conjunto
urbano onde está inserida. Se o que se busca é ref letir acerca
de como aquele prédio é usado, os estudantes podem construir
uma representação dos fluxos, inserindo flechas num mapa de
ruas ou na planta baixa do edifício (SANTOS, 2021, p.110-ss). Se
o foco está no significado da edificação ou na maneira como é
apreendida socialmente, talvez se possa entrevistar pessoas que
circulam, vivem ou trabalham no local. Ou seja, há diferentes
maneiras de otimizar a observação de um bem arquitetônico;
apenas é bom cuidar para que a tarefa a ser realizada por escrito
– desenho, mapa ou respostas de uma entrevista – não monopo-
lize os olhares e impeça os estudantes de, ao menos por alguns
minutos, ver a edificação de uma maneira mais autônoma, sem
um roteiro pré-definido para onde olhar.
Para conhecer um local, não basta vê-lo (GUIMARÃES, 2007
e MENESES, 2007) É bem importante caminhar com mais vagar
e diminuir o ritmo com que se olha; mas não queremos que os
estudantes permaneçam muito tempo sob restrição, sem poder
falar ou andar de modo mais livre; por isso, saber antecipada-
mente quando e o que exigirá mais atenção pode garantir um bom
planejamento para concentrar os esforços de atenção de todas
as pessoas num determinado intervalo de tempo. Por outro lado,
saber que haverá um tempo livre, quando as conversas e “brinca-
deiras” estarão contempladas, diminui a ansiedade dos estudan-
tes e ajuda a conseguir seu empenho no tempo de trabalho mais
intenso.
Portanto, a atividade não pode estar incluída numa jornada
exaustiva, ou seja, o planejamento de saída da escola não pode
querer atender a inúmeros objetivos e tampouco incluir diversos
lugares no roteiro, espremendo as etapas da atividade em períodos
curtos. Sobretudo, é bom cuidar para não misturar objetos e aborda-
gens muito diferentes, pois o olhar que busca observar o relevo
numa paisagem ampla não é o mesmo mobilizado para ver peças
em vitrines de museu. Trocar rapidamente os tipos de olhar não
colabora para uma boa observação.15

15 Para se aprofundar nos assuntos afeitos à educação dos sentidos e das sensibilida-
des, consultar as publicações dos projetos e grupos de pesquisa dos professores Kazumi

80 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


3.3 Ritmo de realização da atividade fora da sala de aula:
Dado que a saída a campo é iniciativa que demanda esforço e
custo, as escolas tendem a juntar diversas “atrações” numa mesma
ocasião. É comum que depois de visitar museus os estudantes
sejam levados a um shopping center para comer ou ter momentos
de entretenimento. É como se afirmássemos aos estudantes que
o museu – ou qualquer outro bem cultural do patrimônio – não
justifica sozinho o custo operacional envolvido na saída a campo. É
como se disséssemos que o dia só vale a pena se tiver um shopping
incluído no final, como recompensa ao sacrifício museal anterior. É
como defender que museu não é lugar de fruição, onde as atividades
não podem ser agradáveis.
O olhar demandado por um shopping center – com suas luzes,
f luxos acelerados e vitrines chamativas – vai de encontro ao
olhar mais vagaroso que foi construído durante uma ou duas
horas na observação de artefatos antigos – sejam peças móveis
musealizadas ou um imóvel tombado. Pode ser interessante fazer
do shopping center um objeto de análise crítica, fazer com que
os próprios estudantes comparem os olhares ali mobilizados
com outros tipos de observação; mais uma vez: não é o objeto
analisado que garante um bom aprendizado, mas a abordagem
que dele se faz.
Mesmo quando não se trata de planejamento da escola ou dos
professores, há instituições culturais nas quais o roteiro proposto
pelo setor educativo é bastante acelerado e repleto de informações.
O melhor é sempre conhecer de antemão o que e como será ofertado
aos estudantes. Se preciso, vale solicitar que diminuam a velocidade,
que realizem a mediação da visita com mais vagar, mesmo que
custe não ver tudo que está previsto no roteiro.
Com objetivos de aprendizagem bem definidos, com cuidadoso
preparo antes de ir a campo e com objeto de análise reduzido –
um só lugar ou prédio, numa manhã ou numa tarde – a tendência
é realizar a atividade com mais tranquilidade e obter melhores
resultados, principalmente aqueles que dizem respeito à elabora-
ção de ideias mais complexas e críticas sobre a construção da
memória em nossa sociedade. Repito: ver não basta; apenas ver,
rapidamente, não produz conhecimento.

Munakata, da PUC-SP, e Marcus Aurelio Taborda de Oliveira, da UFMG.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 81


4 Observação in loco
Dentro ou fora de uma edificação pode-se obter muita informa-
ção. Em seguida, vão alguns elementos que podem ser observa-
dos nas fachadas de um prédio, no modo como ele se insere na
rua e na área urbana em que se encontra e como seu interior pode
revelar formas de viver naquele lugar.
Para além dessas etapas, para ter um entendimento propria-
mente histórico de qualquer edificação, é desejável que sejam
compreendidos dois aspectos de sua materialidade: o primeiro
é a história de sua construção – partes originais e acréscimos ao
longo do tempo – e o segundo são as partes da casa conforme sua
funcionalidade – área de serviços, área social, onde se recebem
pessoas que não fazem parte do dia-a-dia do uso da edificação
e, se for residência, a área íntima, que no comum das vezes são
dormitórios e banheiros. Pensando em garantir a compreensão
desses dois aspectos, vejamos algumas propostas para observa-
ção e análise de edificações.

4.1 Fachadas: frontal, lateral e posterior:


Uma edificação tem fachadas na frente, nos lados e na
parte de trás. Antes de mais nada, é bom identificar a frente de
um edifício, isto é, sua entrada principal. Às vezes a frente foi
alterada em algum momento da história do prédio. Há igrejas
que, tendo nascido como pequenas capelinhas, foram agasalha-
das no interior de um grande templo que se construiu depois
e que acabou por transformá-las em um altar dentro de uma
edificação bem maior, talvez voltada para outro lado da cidade,
diferente daquele original. Temos no caso do prédio da Pinaco-
teca de São Paulo um exemplo desse tipo de mudança; depois
de um ousado projeto de restauro realizado na década de 1990,
a entrada principal do prédio saiu da frente, da grande avenida
em que se situava, e passou para a lateral.
Em geral, a fachada é capaz de revelar o caráter de uma
edificação. Conversar sobre como descobrimos mesmo por fora
se um prédio tem uso público ou privado, se é uma residência
ou não, se é frequentado por muitas ou por poucas pessoas,
se é mais ou menos antigo do que o restante das edificações
daquela rua ou quadra, ..., tudo isso mostra como certos elemen-
tos da fachada generosamente ofertam informação. Explicitar

82 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


tais elementos ensina a formular perguntas e hipóteses sobre
edificações e a estabelecer procedimentos que, com algumas
variações, podem ser utilizados em ocasiões e bens culturais
distintos. Trata-se de se interrogar sobre: há roupas ou objetos
pessoais aparecendo numa janela ou num varal? O que indicam
as placas e bandeiras hasteadas na fachada frontal? Se a porta
de entrada é mais larga do que o usual, a que funções ela se
destina, quem passa por ela?
Ainda na observação da fachada pode-se saber o material
de que foi construída a edificação: se foi madeira, pedra, tijolos,
taipa, concreto etc. Em geral, há materiais combinados. Mas é
bom notar, por exemplo, se as esquadrias das janelas e portas
foram feitas em madeira ou em pedra, se os tijolos estão à vista
ou cobertos de reboco, se as paredes externas parecem ter sido
feitas do mesmo material do solo até o telhado. Outro grupo de
perguntas a fazer diz respeito à identificação do que é estrutu-
ral e do que é ornamental e pode ser visto por quem olha de fora;
assim, é útil se interrogar sobre em que se apoia principalmente
o peso e quais elementos, por ornamentais, poderiam ser retira-
dos sem causar desestabilização. Com efeito, é preciso discernir,
como professor, a que fins se subordinam tais informações de
caráter arquitetônico, ou seja, saber identificar que uma edifica-
ção é feita de taipa e que a outra ao lado é feita de tijolos só faz
sentido se há uma informação maior, da história da arquitetura,
em que se alocam primeiramente os prédios de taipa e, cronolo-
gicamente posterior, aqueles que foram construídos em tijolos
(ZEVI, 2009).16
Examinando as fachadas, pode-se saber o estado de conser-
vação de um edifício. Geralmente, prédios bem conservados têm
fachadas em ordem, sem descontinuidade do seu revestimento e

16 Para isso, buscar artigos científicos nas revistas de arquitetura pode ajudar; o pro-
fessor pode buscar textos sobre o bem cultural a ser visitado ou sobre algum outro mais
afamado e que seja do mesmo período e semelhante. Manuais de história da arquitetura
também podem esclarecer o professor. No caso do território paulista, ver LEMOS, 1999
e HOMEM, 1996. Para escapar de tipificações estilísticas equivocadas, é aconselhável
procurar desvendar os elementos visíveis da edificação consultando dicionários de
arquitetura. Mas o melhor mesmo, se possível, é conseguir informação diretamente
com um arquiteto; as prefeituras dispõem de profissionais de arquitetura em diferentes
órgãos e estes, eventualmente, podem ser consultados.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 83


da pintura; quando se entra na edificação e se comprova a impres-
são obtida no lado de fora, tudo está em bom estado de conser-
vação. Entretanto, há casos de prédios antigos em que se fez uma
maquiagem para criar um cenário adequado a filmagens, nos
quais a fachada frontal recebeu uma camada de tinta e as laterais
já mostram falta de cuidados, como vimos em 2014 numa visita
técnica de estudantes de História da Unifesp à Santa Gertrudes,
uma fazenda cafeeira na cidade de Santa Gertrudes/SP que já foi
locação de telenovela e cujo uso mais frequente na atualidade é
a realização de eventos, principalmente casamentos.
Há casos ainda em que apenas se cuidou da fachada e o interior
permaneceu se deteriorando. Aliás, existe em diversas regiões
do mundo uma maneira de preservar conjuntos urbanos apenas
mantendo em bom estado aparente as fachadas dos prédios;17
desconsiderando a população que vive ou trabalha nessas áreas,
trata-se de aformosear uma parte da cidade para atrair turistas;
desse modo, monta-se um cenário em que a materialidade das
edificações não se enraíza no passado, não informa sobre modos
de viver e tampouco expressa relações com a sociedade de hoje
(RUBINO, 1991; LEITE, 2004 e JOSÉ, 2007). O Pelourinho, em
Salvador/BA, é exemplo clássico em que, numa certa altura das
últimas décadas do século XX, um grande projeto urbano renovou
o bairro e o direcionou para o turismo; os casarões original-
mente ocupados pelas famílias abastadas, e que no momento
eram morada para uma série de grupos sociais empobrecidos,
foram esvaziados dos seus moradores e atividades considera-
das degradantes para se tornarem lojas de roupas e souvenirs,
restaurantes e bares, tudo caracterizado como expressão de

17 As pessoas costumam perguntar sobre os tombamentos parciais, quando se prote-


gem apenas as fachadas e o proprietário pode modificar o interior do seu imóvel, mu-
dando a disposição dos cômodos, por exemplo. Sobre isso, basta saber que: a) há grande
variação entre os órgãos de patrimônio sobre os diferentes graus de tombamento; b)
é comum o tombamento apenas da fachada, o que em geral se faz para manter pre-
servado um determinado conjunto urbano, uma certa paisagem na cidade que não se
quer que seja alterada; c) quando se tomba apenas a fachada e o interior do imóvel pode
ser alterado, isso traz a vantagem de respeitar as mudanças que vão acontecendo nos
modos de vida das pessoas que utilizam essa edificação, mas também traz desvantagem
porque, como vimos ao tratar de alterações neste texto, com uma nova disposição de
cômodos e o desaparecimento de certos recintos, perdemos a apreensão de como se
vivia naquele lugar em épocas anteriores.

84 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


“negritude baiana” cuja autenticidade chegou-se a questionar;
criava-se uma área apartada do restante da Bahia, uma “disney-
lândia”. (SOTRATTI, 2005).18

4.2 Quantidade de vãos (portas e janelas) e pavimentos:


Notar quantos são e em que lugar se localizam os vãos de uma
edificação serve para levantar hipóteses sobre quantos cômodos
ela comporta, para que cada cômodo é usado, sobre as necessi-
dades de segurança, se há muitas ou poucas pessoas que entram
e saem do prédio diariamente e se veículos adentram o local. É
importante pensar sobre a finalidade precípua de cada vão, se
servia principalmente para iluminação, ventilação ou passagem
e, além disso, sobre o que revelam o tamanho e a quantidade
de vãos acerca dos problemas de segurança vividos por aquela
sociedade e sobre o grau de acesso à edificação que julgavam
importante oferecer para os passantes.19 Há prédios, por exemplo,
que foram construídos sobre galerias no nível da rua, isto é, com
aberturas para a passagem de cidadãos que vão de uma rua a
outra; há sobrados do século XIX em que a parte propriamente
residencial era somente a do pavimento superior e cujo térreo
era ocupado por lojas comerciais que ficavam o dia todo com as
altas portas abertas.
Para bem compreender o funcionamento de um edifício, ajuda
inseri-lo numa rede de fluxos, do passado e de agora. É preciso
compreender como se circulava dentro e fora do prédio, quem
entrava e saía e para fazer o quê. No mesmo sentido, compreender
os significados e usos que a edificação tem hoje passa por analisar
os fluxos da atualidade, identificando quem são as pessoas que
passam pelo local e com que finalidade; em muitos casos, o indicado
é entrevistar os passantes e os usuários do prédio, inclusive para
saber de que maneira o fato de viver entre uma edificação antiga
qualifica a vida das pessoas, ou se essa experiência é vista como
desagradável pelos cidadãos, desejosos de um prédio novo, onde
supõem que teriam mais conforto e melhor funcionalidade.

18 Para casos ainda mais modernos de políticas urbanas instrumentalizando a cultura


nas cidades sul-americanas e Nova Iorque: GORELIK, 2019 e ZUKIN, 2010.
19 Sobre as meias aberturas que havia em forma de rótulas e muxarabis, que uniam
e/ou separavam quem estava dentro e quem passava na rua, ver MARINS, 2001. Para
sentidos e apreensões mais sutis acerca da relação entre cheios e vazios, ver ZEVI, 2009.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 85


A quantidade de andares de uma edificação pode revelar o
grau de desenvolvimento tecnológico disponível à época de sua
construção, o que comumente coincide com os níveis de riqueza
de quem as construiu e usou. Nas cidades brasileiras, até o século
XIX e boa parte do século XX, as casas de mais de um pavimento
eram das famílias mais abastadas. 20

4.3 Implantação:
No jargão arquitetônico, implantação diz respeito ao modo
como estão dispostos os elementos construídos em um terreno.
Dessa maneira, é pela implantação que sabemos se uma edifica-
ção está mais para frente ou para trás no seu lote, se há outros
edifícios anexos na parte posterior do terreno, qual é a propor-
ção entre área construída e área livre, onde está a vegetação etc.
Ainda sem entrar na edificação, rodeando suas faces ou
até com auxílio de uma imagem aérea, é possível saber como
o prédio se localiza na quadra, na rua e até na mancha urbana
em que se insere. Assim, as perguntas que podemos formular
quanto a esses aspectos são: há jardins ou outro tipo de vegeta-
ção no terreno? Para que serviriam no passado e qual sua finali-
dade hoje? A edificação está circundada por área livre que lhe
garante boa visibilidade?
Olhando as fachadas, pode-se ver também a relação que a
construção estabeleceu com o relevo do terreno. Hoje em dia, em
virtude de dispormos de máquinas para acrescentar e remover
terra, o mais comum é construir sobre terrenos aplainados artifi-
cialmente. No Brasil de antigamente, em geral, as edificações em
terrenos acidentados eram construídas de modo a aproveitar o
desnível; assim, podem-se encontrar edificações cuja frente da casa
está no nível da rua, mas que, olhando de trás, vê-se que um porão
ou outros cômodos foram construídos embaixo do primeiro piso;
além de se encontrarem casas em que os fundos estão na parte
mais alta e a frente ficou na parte mais baixa. De toda maneira,
notar esse aproveitamento do terreno permite compreensão mais
alargada da implantação e a percepção dos recintos abaixo do piso
do pavimento principal que revelam usos hoje desconhecidos.

20 Hoje em dia é diferente, temos apartamentos bem pequenos e pouco valiosos em pré-
dios bastante altos, com muitos andares, até nas regiões mais distantes das regiões centrais
urbanas. Isso quer dizer que esta tecnologia ficou mais barata e, portanto, mais acessível.

86 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


Temos nas nossas cidades atualmente uma grande quantidade
de construções antigas cujo entorno se alterou, em que o traçado
das ruas mudou a ponto de fazer sumir o largo que rodeava uma
igreja ou a praça que continha um chafariz público, onde cresceu
a quantidade de prédios altos e, por isso, a edificação antiga foi
sufocada e ficou quase invisível na paisagem urbana.
Na região central da capital paulista temos alguns casos gritan-
tes, como o do conjunto colonial do Carmo, que acabou espremido
numa esquina atravessada pela grande avenida Rangel Pestana.
Outro caso paulistano de alteração na implantação é o da Capela
dos Aflitos, no bairro da Liberdade. Essa capelinha construída no
final do século XVIII compunha originalmente o cemitério que
existia naquela área da cidade para enterrar as pessoas escraviza-
das, as indigentes e todas as outras que não podiam ser sepulta-
das nos perímetros sagrados das igrejas católicas existentes. Com
o tempo, o cemitério foi desativado e tantos edifícios mais altos
surgiram por ali que mal se vê a capela e, o que é pior, o que se
vê não permite sequer imaginar o que já foi. (SEVCENKO, 2004
e POPPERL, 2019)
Quanto às edificações que nasceram com programa residen-
cial, é bem interessante notar como foram perdendo seus terrenos
de trás, seus quintais e pastinhos. Com efeito, nos contextos em
que o mercado de consumo não era tão desenvolvido, as unidades
domésticas eram também unidades de produção de gêneros alimen-
tícios, de roupas e de vários utensílios; as moradas urbanas eram
como chácaras, com galinheiros, chiqueiros, hortas e pomares
para abastecer as famílias com frutas, verduras, carnes e ovos.
Além disso, era preciso ter lugar para os animais de montaria,
um ou mais equinos, ou para os animais de leite, cabras e vacas.
Então, é bom examinar como o lote onde se inserem tais edifica-
ções hoje em dia é apenas uma pequena parte do terreno onde
viveram as famílias em geral até os meados do século XX.

4.4 Alterações para somar e para extrair


A diminuição do terreno com o desaparecimento da parte
posterior muitas vezes veio acompanhada de um aumento da área
construída, pois com a chegada da água encanada, e depois do fogão
a gás, essas moradas ganharam banheiros e cozinhas. Antes disso,
a cozinha ficava separada da casa e o fogão era tocado a lenha.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 87


Na casa de Prudente de Moraes, pode-se ver como desapa-
receram o quintal e as benfeitorias que nele existiam. Tendo se
tornado prédio público, a parte de cozinha, banheiro e serviços
da moradia foi completamente extirpada. Quando a residência
se transformou em prédio que abrigou um órgão administrativo,
fez-se um anexo atrás da casa. Quando um museu se instalou
naquele conjunto, construiu-se ainda mais um anexo nessa parte
posterior do terreno.
Com o que se acrescentou e o que se perdeu, o fato é que já na
chegada aquele lugar em Piracicaba/SP aparece para os cidadãos
de hoje como um local público, tendo se despido por completo de
qualquer aparência de domesticidade. Esse mesmo processo de
desaparecimento da domesticidade pode ser visto em inúmeras
edificações antigas que hoje abrigam instituições públicas, em
diversas partes do país.
Os prédios onde hoje existem museus pouco nos permitem ver
que, na origem, foram residências; ou foram equipamentos públicos
de outra natureza, como é o caso da Hospedaria dos Imigrantes,
no bairro do Brás, na cidade de São Paulo, construída na década
de 1880, e que hoje abriga o Museu da Imigração (PAIVA, 2016). Ali
nem sempre é fácil ver esses elementos do passado que permane-
ceram, pois o uso do prédio como museu lhe acrescenta painéis,
revestimentos no piso, iluminação artificial e janelas fechadas,
enfim, inúmeros outros elementos são colocados entre o olhar
do observador e a materialidade da edificação antiga.
Em síntese, trata-se de treinar o olhar para perceber o que se
alterou em relação ao contexto de origem; de lá pra cá, o que se
somou e o que foi excluído. Fazer isso juntamente com o que foi
privilegiado no projeto de restauro e com as informações sobre
como os usos se transformaram ao longo do tempo, garante uma
compreensão consistente do processo histórico vivido pela edificação.

4.5 Dentro da edificação:


No interior do prédio antigo, o primeiro a fazer é mesmo
examinar a entrada; indagar-se sobre desde quando se entra por
aquele vão, se houve mudança ao longo do tempo que alterou
por onde se entrava na edificação e, principalmente, se havia
entradas diferenciadas. A sociedade brasileira viveu sob escravidão
durante aproximadamente três séculos e, por isso, teve e tem uma

88 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


forte estratificação social, bem marcada em variadas esferas; a
entrada de serviço bem separada e distinguida da entrada princi-
pal de uma edificação é uma forma de marcar essas hierarquias
sociais. Pensar sobre quem entrava e por qual vão de passagem,
além da hierarquização, permite entender certas funcionalida-
des: entradas largas na parte de trás do terreno serviam para
passar animais, carregamentos de lenha e outras necessida-
des de abastecimento.
Depois de ref letir sobre a entrada, é preciso identificar a
divisão dos cômodos e tentar relacioná-la com os usos do prédio.
Uma edificação que nasceu para ser residência e depois se tornou
escola deveria passar por quais modificações? Aumentar ou
diminuir o número e o tamanho de cômodos? É aqui que lavande-
ria, cozinha(s) e banheiro(s) – aparentes ou extirpados – podem
dar muita informação.
É nesta etapa também que se pode relacionar os prováveis usos
dos cômodos com grupos sociais mais e menos abastados porque,
em geral, gente que não é rica tende a viver em casas com poucas
divisões, em recintos onde são realizadas atividades de diferentes
naturezas, como dormir e rezar, comer, receber pessoas de fora e
rezar, armazenagem de produtos, beneficiamento de grãos e fabrico
de utensílios etc. Por sua vez, os grupos mais abastados viviam em
casas que, a partir de um certo momento, passaram por uma boa
especialização no uso dos cômodos; foi quando surgiram salas de
estar e de comer, sala de música, banheiro e sala para visitas etc.
(LEMOS, 1999 e HOMEM, 1996). Além das diferenças de riqueza e de
lugar social, a divisão de um prédio pode informar sobre diferen-
ças de gênero, com lugares onde exclusiva ou preferencialmente
só circulam mulheres – como os recintos onde se fiava algodão e
se bordava – e com lugares nos quais apenas os homens podiam
ficar, como as salas de jogos. (CARVALHO, 2008)
Enquanto se observa a edificação do ponto de vista da planta
baixa, já se veem seus revestimentos: pisos, forro, azulejos e pintura.
Já se pode notar como acabamentos mais recentes convivem ou
substituem outros mais antigos; é fácil comparar ladrilhos e
acabamentos de piso para conjecturar o que é mais novo e o que
é vestígio de outros tempos.
Se na edificação visitada há mais de um pavimento, é
esclarecedor identificar como se passa de um a outro, se ocorreram

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 89


adaptações para garantir acessibilidade a pessoas com deficiên-
cia, entre outras. As alterações ocasionadas pelas obras de acessi-
bilidade fertilizam a discussão sobre quanto se deve transformar
uma edificação antiga para permitir seu uso na atualidade.

Os princípios seculares do uso de


edificações antigas para aprendizagem
Ainda nos primeiros anos do processo revolucionário francês,
no final do século XVIII, aqueles que tinham tomado o poder e
derrubado a monarquia afirmavam que os bens expropriados da
coroa, da nobreza e da igreja pertenceriam dali em diante a toda
a nação francesa e, mais ainda, serviriam para atrair estrangei-
ros que vinham à França interessados em antiguidades e para
ensinar os artífices e estudantes. Quanto aos bens móveis, era
preciso acabar com a centralização tradicional das obras-primas
no território e espalhá-las para que os cidadãos as conhecessem.
Aquele novo-velho patrimônio da nação francesa já não era uma
ameaça, mas um recurso para a configuração da nova França,
na qual as velharias do antigo regime, sob nova maneira de ver,
serviriam para elaborar uma definição abstrata e racional da
nação, constituindo-se na sua encarnação, vinculando passado e
futuro. Na verdade, ainda que não tivessem formulado explícita e
cabalmente os novos significados que atribuíam àquele imenso
e variado conjunto de bens, a ressemantização que pretendiam
implicava em, a partir dos mesmos elementos do passado, contar
uma história renovada, comprometida com a atualidade. (CHOAY,
2001, p.95-123 e POULOT, 2009, p.85-122)
Nas cidades brasileiras há inúmeras edificações que gozam
de proteção oficial e servem principalmente para render homena-
gem às nossas elites e para contar uma história em que figuram
sobretudo homens brancos, nossos supostos heróis. Ao modo
revolucionário francês, podemos nos apropriar dessas edifica-
ções monumentalizadas e renovar seus significados, usá-las
como documento do que, sabemos, foi nossa história até aqui:
a construção tensa de uma nação bastante desigual e eivada de
violência.

90 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


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Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 93


OS DETETIVES DE CIDADES-FANTASMAS:
AS POTENCIALIDADES DAS RECONSTRUÇÕES
GRÁFICAS VIRTUAIS PARA O ENSINO DA
HISTÓRIA URBANA

Fernando Atique

A cidade de São Paulo ficou conhecida, tanto na historiografia


quanto nos comentários midiáticos, como aquela que se destruiu
para dar lugar a uma metrópole. Essas imagens de esfacelamento,
ruptura com o passado ou mesmo de progresso, permearam o
imaginário de gerações que viveram o século XX, e parecem ter
naturalizado os processos de demolições pelos quais a cidade
passou. Isso nos permite compreender os deslocamentos de popula-
ções atingidas pelos desmontes, processos de desapropriação,
valores pagos, desaparecimento de espaços simbólicos, confli-
tos na imprensa e representações – laudatórias e contestadoras
– ligadas a esses processos. Entretanto, também percebemos que
nem tudo se perdeu ou desapareceu no tecido da cidade, muito
menos no imaginário urbano. Mas o que resta, na imensa maioria
das vezes, não permite que acessemos a cidade que se esvaiu.
Então propomos, neste capítulo, uma compreensão metodo-
lógica de algumas das dimensões inerentes à configuração e à
reconfiguração da cidade de São Paulo. Uma das maneiras para
isso é apresentar, no processo formativo dos estudantes, a riqueza
que a confrontação espaço-temporal de territórios da cidade
possui. Especificamente, uma das ferramentas possíveis para
tal fim é aproximar os estudantes das reconstruções gráficas
virtuais, conhecidas como maquetes eletrônicas. A possibilidade de
comparar aspectos e conformações atuais com as imagens antigas
ganha ênfase quando edifícios demolidos podem ser reinseridos,
por meio das maquetes eletrônicas, em seus lugares originais.
As gerações mais recentes, em idade escolar, são consideradas

95
nato-digitais, e a vida em ambientes lúdicos, como os fornecidos
pelos videogames e visualizações imersivas, é fundamental para a
interação entre educador e educando, além de uma possibilidade
de reorganização da ministração de conteúdos ao se aproximar
da linguagem virtual – tão cara às novíssimas gerações.
Este capítulo 1 discutirá essa potencialidade, valendo-se da
(des)montagem da Praça João Mendes, em São Paulo, que, por meio
da implantação do Plano de Avenidas, elaborado e implantado por
Prestes Maia, entre 1938 e 1945, em pleno Estado Novo Varguista,
eliminou edifícios fundamentais para a antiga São Paulo, como a
Igreja da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios e a antiga
Casa de Câmara e Cadeia de São Paulo, depois Congresso Estadual,
alma mater da Assembleia Legislativa do Estado. A partir disso,
neste texto, vamos apresentar elementos que reúnem informa-
ções sobre o antes e o depois de São Paulo, pautando-os por
ref lexões acerca da história urbana que nos levaram a recriar
edifícios desaparecidos, os quais, por sua vez, como fantasmas,
não estão mais visíveis, mas, mesmo assim, muitos juram que
eles se apresentam para quem quer vê-los. Dessa maneira, vale
a pena desafiar os estudantes a assumirem o papel de detetives,
analogia não apenas lúdica e presente no imaginário infanto-
-juvenil, mas também muito relacionado com o perscrutar das
cidades, dentro da proposta de Carlo Ginzburg ao tratar de rastros,
fios e cacos documentais (GINZBURG, 1992).

O criador de (uma cidade de prédios)


fantasmas: Francisco Prestes e seu
“Plano de Avenidas”
Francisco Prestes Maia, natural de Amparo, São Paulo, e
nascido em 1896, formou-se engenheiro-arquiteto na Escola
Politécnica de São Paulo, em 1917. Iniciou suas atividades na

1 Agradeço, imensamente, aos meus antigos orientandos Armando Pereira Bezerra


Júnior, Georgia de Proença dos Santos, Bianca Moraes Vicente e Patrícia Costa, por
terem partilhado tema, fontes, redação e imagem, que aqui comparecem de forma
mesclada. As referências aos trabalhos desse historiador e dessas historiadoras são
feitas ao longo do texto.

96 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


Diretoria de Obras Públicas (DOP), da Secretaria de Agricultura,
Comércio e Obras Públicas do Governo do Estado logo em 1918.
Nos anos seguintes, até 1923, participou da comissão encarre-
gada dos melhoramentos para a comemoração do centenário
da Independência, tendo acompanhado a elaboração do projeto
do Monumento da Independência e as propostas urbanísticas
dele decorrentes, como a abertura da Avenida Dom Pedro I e a
criação do Parque da Independência – sem deixar de cuidar, claro,
das desapropriações necessárias para essas obras, conforme
diz José Alfredo Vidigal Pontes (CIDADE, a.III, n. 4, 1996, p. 5).
Entre 1924 e 1926, Prestes Maia tornou-se membro da comissão
técnica criada para acompanhar o desenvolvimento da proposta
do Perímetro de Irradiação concebido por João Florence de Ulhôa
Cintra, 2 em 1922, estrutura seminal para o Plano Urbanístico
que modificaria, literalmente, os rumos e as vias de São Paulo
(LUCCHESE, 2016, p. 100). Autor de um dos mais emblemáti-
cos planos urbanos para a capital de São Paulo, datado de 1930,
Prestes Maia tornou-se prefeito em maio de 1938, e recebeu
suporte político do governo estadonovista de Getúlio Vargas
para implantar o que tinha desenhado.
Mas, afinal, qual era o Plano de Prestes Maia? Intitulado oficial-
mente de “Introdução ao Estudo de um Plano de Avenidas para a
Cidade de São Paulo”, a proposta para a capital paulista que Prestes
Maia fez acabou sendo chamada apenas de “Plano de Avenidas”.
Maria Cristina da Silva Leme, uma das primeiras pesquisadoras
a investigar esse Plano, apontou que, do ponto de vista viário, o
projeto se baseava em “vias traçadas a partir do perímetro de
irradiação [um cinturão de vias largas que contornaria os distritos
da Sé e da República] em direção a todos os quadrantes da cidade”,
podendo ser dividido em dois componentes básicos: perimetral e
radial (LEME, 1990, p. 14). Com isso, Leme mostra que:

2 Engenheiro civil pela Escola Politécnica de São Paulo, formado em 1911, João Florence
de Ulhôa Cintra integrou o corpo funcional da administração municipal de São Paulo
entre 1913 e 1944. Além de chefe da Divisão de Urbanismo da Prefeitura, foi também
professor de hidráulica urbana na Escola Politécnica de São Paulo. Em 1927, com a saída
do engenheiro Saturnino de Brito da Comissão de Melhoramentos do Tietê, Ulhôa Cintra
assumiu seu lugar no cargo de chefia e, em 1938, na gestão do prefeito Prestes Maia,
tornou-se Diretor Geral de Obras do Município – cargo em que permaneceu até 1944,
ao falecer aos 54 anos de idade (LUCCHESE, 2016, p. 99-105).

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 97


O sistema perimetral é composto por três anéis viários. O
primeiro, envolvendo a área central, é denominado períme-
tro de irradiação. O segundo anel, “boulevard exterior”
nome inspirado nos boulevares franceses, era traçado
sobre o leito das linhas férreas da São Paulo railway e
da Sorocabana. O terceiro anel, denominado circuito de
“parkways” fecha o círculo em torno à área urbanizada da
cidade naquela época, traçado sobre as marginais do rio
Tietê e rio Pinheiros, segue até as cabeceiras do Ipiranga
e desce o vale do Tamanduateí até a confluência com o
Tietê. (LEME, 1990, p. 21)

A cidade de São Paulo de 1930, a que acolheu a publicação do


Plano de Avenidas, era bastante diferente daquela que, em 1938,
Prestes Maia encontraria como prefeito. Recém-saída da crise
econômica internacional de 1929, que ainda avançou por vários
anos da década de 1930, a cidade já era mais populosa em 1938,
fruto de um aumento da expectativa de vida, de imigrações e de
migrações internas (LUNA; KLEIN, 2019, p. 429). São Paulo, durante
a primeira administração de Prestes Maia (1938-1945) vivencia-
ria, também, os efeitos da Segunda Guerra Mundial, sofrendo
com a escassez de inúmeros produtos e dificuldades de diversas
ordens, consequências da geopolítica mundial que acabou causando
deslocamentos de pessoas e supressões de direitos por causa do
Estado Novo.
O “Plano de Avenidas” que Prestes Maia havia publicado em
1930 passou, então, a receber alterações, de maneira que pudesse
vir a ser implantado pelo prefeito-urbanista. Consequentemente,
o Perímetro de Irradiação teve sua feição modificada. Não poderia
mais ser a concretização daquela proposta desenhada em 1930,
publicada em luxuoso volume de capa dura, editado pela Cia.
Melhoramentos, às custas do gabinete do prefeito. E por quê? Bom,
após enfrentar resistências de ocupantes de alguns setores da
Santa Efigênia, e visando, da mesma forma, eliminar constru-
ções julgadas “insalubres”, “obsoletas”, “promíscuas”, “antigas” e
“deterioradas”, o Perímetro de Irradiação se acomodou a uma nova
sociotopografia. Isso significou, no vocabulário técnico do período,
um “aprimoramento” da solução esboçada na década anterior, e
um avançar sobre áreas que eram frágeis em termos de represen-
tação política – como bairros com cortiços e população pobre

98 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


–, vistas pela tecnocracia da época como espacialmente obsole-
tas, em especial aquelas que possuíam edificações advindas de
séculos anteriores (Figura 1).

Figura 1 – Mapa SARA Brasil, de 1930, com aplicação de camadas georreferenciadas


dos lotes demolidos (vermelho) para a passagem das avenidas (azul) do Perímetro
de Irradiação de Prestes Maia, entre 1938 e 1945.

Fonte: ATIQUE; GUARNIER et al. Pauliceia 2.0. Acesso em: 20 jul. 2022.

Assim, o “Plano de Avenidas” incutiu na mentalidade paulis-


tana uma ideia de Modernidade, como se uma marcha sem retorno
estivesse passando sobre a localidade (MEHRTENS, 2010; SAMPAIO,
1999; ATIQUE, 2004). Essa Modernidade estava manifestada na
ideologia do automóvel, na verticalização das edificações e na ideia
de uma metrópole cosmopolita e salubre, a qual os habitantes de
São Paulo “faziam” por merecer experimentar. Esses ideais eram
professados por Prestes Maia que, mesmo tendo alguns antípo-
das no próprio ambiente de debate sobre o urbanismo paulis-
tano, conseguiu impor o seu diagrama à forma da cidade, como
notaram Nadia Somekh e Candido Campos Neto (2002).
Em uma pesquisa que desenvolvemos recentemente (2018-2021),
sistematizada na exposição virtual “Pauliceia esfacelada: demolições
e reconfigurações da capital pelo Plano de Avenidas”,3 averiguamos

3 Disponível em: https://pauliceia-esfacelada.com/creditos/. Acesso em: 20 jul. 2022.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 99


a introdução dessa Modernidade em São Paulo, desconfiando de
sua adesão inconteste pelos paulistanos. Isso nos levou a buscar,
com uma grande equipe de pesquisadores, os empecilhos de várias
ordens – técnica, econômica, política e social – com os quais Prestes
Maia teve de lidar, pois, como prefeito indicado por Adhemar de
Barros para governar São Paulo durante a vigência do Estado Novo,
conseguimos levantar tensões sociais que ajudaram a compreen-
der melhor sua figura, os meandros da governança paulistana
em tempos varguistas, e a face social de vários desalojados pelas
modificações processadas pelo Poder Público – até hoje ausentes
na nossa historiografia. Foi por meio dessa pesquisa, financiada
pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnoló-
gico (CNPq) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (FAPESP), que propusemos a formatação de maquetes
virtuais para comparações entre a cidade de hoje e a desprezada
durante a prefeitura de Prestes Maia.
A proposição de restabelecimento de espaços desapareci-
dos das cidades é uma ferramenta didática fundamental para a
contemporaneidade. Cidades que passaram por grandes transfor-
mações espaciais, como São Paulo, ficam praticamente ilegíveis aos
seus ocupantes, em especial aos estudantes, dada a sua comple-
xidade formal, que mescla trechos de várias épocas, mas sem
coesão espacial. As maquetes eletrônicas, assim, se prestam à
desnaturalização de várias ordens – política, espacial, historiográ-
fica e imagética –, pois levam a uma nítida tomada de consciên-
cia ao evidenciar muitas questões processuais imbuídas nessas
transformações pela comparação entre passado e presente nas
alterações são postas.

Modelando o passado: problemas de


método e de faturas histórico-visuais
Refazer o passado é impossível. A história, como atividade
intelectual humana, se vale de estratégias investigativas e métodos
diversos de escrita, em especial a gráfica, para registrar os aconte-
cimentos passados. Sabe-se – frisamos mais uma vez – que refazer
o passado é atividade impossível, mas muito desejada. A máquina

100 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


do tempo, há séculos, tem permeado as representações de várias
sociedades, rendendo livros, desenhos, gravuras, telas, filmes e
maquetes eletrônicas. A emergência da computação, em meados
do século XX, desencadeou uma revolução também na maneira
de se acessar o passado.
Sabemos que jogos de videogames, que se popularizaram
a partir dos anos 1980, e que ganharam contornos realistas nas
últimas décadas, enfatizaram muitas vezes temas históricos.
Como aponta o historiador Ricardo Maques Ramalho Garcia, “o
que torna os videogames tão particulares como fonte histórica é a
forma pela qual as representações históricas neles são construí-
das” (GARCIA, 2021, p. 16). O historiador continua sua argumen-
tação, afirmando que “ao pensarmos sobre os videogames como
fonte precisamos considerar seu aspecto lúdico, uma vez que
a representação histórica em um jogo de videogame vai além
da narrativa audiovisual e se articula à jogabilidade, ou seja, ao
caráter ativo do jogador na constituição da narrativa histórica”
(GARCIA, 2021, p. 17). Somado a esse fato, e se considerarmos,
como também faz o historiador da arte e da arquitetura Bruno Zevi
(1994, p. 29-50), que o espaço, que é o “protagonista da arquite-
tura”, é mais bem representado pela combinação de diferentes
linguagens – como plantas, interpretações e esquemas espaciais,
fachadas, fotografias, vídeos e maquetes –, e ainda, que estas
diferentes linguagens devem ser dispostas simultaneamente de
modo a se complementar sem comprometer as leituras individuais,
parece razoável supor que o computador tem muito a oferecer
nesse campo da ludicidade para o aprendizado da vida urbana
(SEGRE et al., 2014, p. 5).
O arquiteto Rodrigo Cury Paraizo, enfrentando a problemática
de acessar espaços antigos desaparecidos nas cidades, deparou-
-se com a necessidade de compreender a dimensão dos hiperdo-
cumentos. Hiperdocumentos são estruturas informacionais que
permitem o entrecruzamento de referências e dados, como se
fossem hubs, conectores de lógicas e sentidos. Segundo Cury Paraizo,
“os hiperdocumentos que tratam do patrimônio urbano tiveram
seu desenvolvimento vinculado inicialmente aos museus e aos
guias turísticos” (PARAIZO, 2003, p. 50). O historiador Armando
Pereira Bezerra Júnior, comenta que “a partir dos anos 1990, a
indústria de jogos apresentou lançamentos nos quais a ação se

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 101


desenvolveu em função da arquitetura histórica”, ampliando o
interesse pelas simulações, como ferramentas didáticas (BEZERRA
JUNIOR, 2019, p. 41).
Se os jogos de videogames têm essa multiplicidade de estraté-
gias de uso, e são repositórios de relações históricas, uma das
dimensões que também são pertinentes na sala de aula perpassa
a utilização de realidades virtuais, como as maquetes eletrôni-
cas. Armando Bezerra Junior, explica que “o hiperdocumento
maquetes eletrônicas tem a vantagem de ser um dispositivo
informacional capaz de mobilizar e articular as múltiplas fontes
em uma imagem síntese, possibilitando a representação da urbs
em suas diversas camadas” (BEZERRA JUNIOR, 2019, p. 13). Ele
ainda expõe que:

as maquetes eletrônicas como imagem-síntese destas


múltiplas tipologias, podem ser compreendidas como um
documento, a um só tempo suporte de dados e informações,
que podem ser identificadas e decodificadas evidenciando,
assim, a trajetória de confecção do modelo. (BEZERRA
JUNIOR, 2019, p. 81)

A realidade virtual ou os modelos digitais aparecem usualmente


vinculados à apresentação de projetos ou à representação daquilo
que virá a existir, e são muito explorados na produção arquite-
tônico-urbanística. Mas, como expõe Armando Bezerra Junior,
as maquetes eletrônicas são portadoras de conteúdo nato-digi-
tal, que levam a “uma nova proposta de visualidade, interação, e
publicização alinhados com os novos suportes tecnológicos, com
as novas metodologias pedagógicas que se valem de dispositivos
informacionais como tablets, computadores, celulares etc.”(BE-
ZERRA JUNIOR, 2019, p. 41).
Dessa maneira, educar as novas gerações já nato-digitais para
a compreensão do patrimônio e do espaço abre uma perspectiva
de ludicidade e de representação hiperconectada aos educado-
res, que poderão desenvolver, mediante o aprendizado de estraté-
gias de construção imagética tridimensionais, tanto suas próprias
maquetes quanto consumir produtos que tendem a ser produzi-
dos por criadores de conteúdos didáticos digitais.
O que iremos mostrar a seguir revela exatamente a contri-
buição, nessa linha, do grupo de pesquisa Cidade, Arquitetura

102 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


e Preservação em Perspectiva Histórica (CAPPH), do Departa-
mento de História da Unifesp.

Os passados nas telas do presente


Desde 2018, as maquetes eletrônicas vêm sendo pesquisadas
no âmbito do grupo de pesquisa CAPPH, desenvolvidas e defendi-
das como documento histórico nato-digital capaz de contribuir
para novas abordagens e interpretações sobre as transformações
das cidades, sobretudo pelas suas características de objeto síntese
confeccionado a partir de múltiplas fontes e pelas novas visualida-
des dos bens e do patrimônio histórico-cultural que proporciona –
foco das investigações desse grupo. O historiador Armando Bezerra
Junior liderou uma proposta metodológica, dentro do CAPPH, que
resultou em uma apropriação inovadora das maquetes eletrô-
nicas para o entendimento sobre os espaços desparecidos. Sob
minha coordenação, fomos esboçando estratégias que permitis-
sem juntar os cacos documentais acerca dos edifícios desapa-
recidos com a implantação do “Plano de Avenidas”, de modo que
pudéssemos reacessá-los.
Cientes do que propõem Ben-Kiang Tan e Hazifur Rahaman
(2009), podemos identificar três domínios ou fases no processo
de confecção das maquetes eletrônicas. O primeiro diz respeito
à documentação ou à procura pelo maior número de fontes, em
suas múltiplas tipologias, que possam subsidiar a confecção das
maquetes. A etapa seguinte é a da representação, que se refere
à modelagem da maquete propriamente dita. Por fim, a terceira
etapa trata da publicização do produto elaborado em distintos
suportes, tais como a internet, exposições virtuais, CDs, aplica-
tivos etc.
No que diz respeito à etapa inicial de documentação, iniciamos
nossos trabalhos a partir do material levantado pelos pesquisa-
dores do projeto Pauliceia Esfacelada, que incluíram varredu-
ras no Arquivo Histórico Municipal da prefeitura de São Paulo
(AHM), no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de
São Paulo (IEB-USP), na Biblioteca Mário de Andrade, na Casa
da Imagem, no Museu Paulista da USP, e em livros diversos.
Destaque deve ser dado para a extensa pesquisa online em

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 103


inúmeros acervos digitalizados: Acervo Fotográfico do Museu
da Cidade de São Paulo, acervo Tesouros da Cidade da Biblio-
teca Mário de Andrade, Arquivo Público do Estado de São Paulo,
coleção Brasiliana Fotográfica, coleção da Biblioteca Nacional,
além de diversos outros acervos brasileiros. A partir das fontes
pesquisadas nos arquivos e acervos supracitados, foram elabora-
das as maquetes eletrônicas da antiga Casa de Câmara e Cadeia,
posteriormente Congresso Estadual Paulista, e da Antiga Igreja
de Nossa Senhora dos Remédios. Os referidos produtos gráficos
tiveram por objetivo permitir uma contribuição para uma nova
visualidade dos edifícios, uma vez que os registros visuais e
iconográficos são, até certo ponto, escassos.

A praça que virou um canteiro (Viário)

Na década de 1930, São Paulo estava em vertiginoso cresci-


mento, vivenciando uma rápida expansão e industrialização, ao
mesmo tempo que ocorriam debates em torno da sua remodela-
ção urbana. Isso era também discutido nos jornais, que a partir
de notícias já preparavam discursos que mobilizariam a popula-
ção paulista a embarcar, conjuntamente com os engenheiros,
arquitetos e figuras políticas, no processo de transformação da
urbe (CORREIO PAULISTANO, 16 jul 1941, p. 4).
Em uma reportagem intitulada “No mundo da Lua”, o Correio
Paulistano criticou o governo de Fábio Prado (1934-1938), anteces-
sor de Prestes Maia, por ele parecer ignorar “a deplorável situação
das vias públicas paulistanas”, visto que “pouquíssimas são as
ruas que oferecem trânsito normal”. A matéria, rogava para que
o prefeito, enfim, abandonasse “de vez as fantasias públicas”
(CORREIO PAULISTANO, 3 abr 1935, p. 5).
Esse posicionamento da grande imprensa dialoga com o
objetivo por trás do “Plano de Avenidas”, o de auxiliar a expansão
e a instauração da ideia de “progresso”, de aceleração da vida
cotidiana, mediante as novas vias que a cidade receberia. São
imagens de uma aceleração que parecia entorpecer a popula-
ção mediante o imaginário sobre um futuro em construção e de
pujança econômica – pelo menos é o que podemos observar nos

104 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


jornais do período do Estado Novo, controlados pelo Departamento
de Imprensa e Propaganda (DIP). As edificações que destoassem
desse pensamento modernizador estavam passíveis de serem
deslocadas e demolidas, fadadas a desaparecer.
Edifícios coloniais, durante o Estado Novo, encontraram-
-se em meio a uma polêmica. Enquanto muitos foram valora-
dos por meio das ações do recém-criado Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1937, outros tantos
foram demolidos, pelo mesmo regime político, por terem sido
receptores de uma imagem de obsolescência e atraso, incompa-
tível com a Modernidade que Vargas procurava atrelar ao seu
governo. A Praça João Mendes, por exemplo, nos serve como
excelente caso para a compreensão desse fenômeno estadonovista.
O antigo Largo dos Remédios era assim denominado por conta
da Igreja construída em devoção à virgem Maria, considerada
como digna de culto não apenas “para a cura de doenças, mas
para a libertação; seja da prisão, de uma angústia, de uma dor,
de um sofrimento”, como apontam Marcia Carolina Mariotto e
Mariza Furquim Werneck (2014, p. 3). As autoras também afirmam
que o culto a essa dimensão mariana foi introduzido no Brasil
em meados do século XVIII (MARIOTTO; WERNECK, 2014, p. 2).
No mesmo Largo, havia a Assembleia Provincial de São Paulo,
que, em 1879, ocupou o edifício assobradado com feição neoclás-
sica fronteiro à Igreja dos Remédios e lindeiro à Igreja de São
Gonçalo. Esse edifício foi inaugurado em 1791, para abrigar a Casa
de Câmara e Cadeia de São Paulo, que acabou emprestando seu
nome ao logradouro, evocado como Largo da Cadeia ou mesmo
Largo Municipal (DUARTE, 1941, p. 61).
Existia em seu perímetro o famoso Teatro São José, erigido
em 1864, que, por um breve período, batizou a área de Largo do
Teatro. O Teatro São José foi demolido em 1898, após um incêndio
que o comprometeu. A área, então, passou a ser conhecida como
praça Doutor João Mendes, a partir da Resolução nº 102, de 29
de novembro de 1898, que homenageou o político e magistrado
de eminente atuação na capital (DICIONÁRIO DE RUAS DE SÃO
PAULO – Praça Doutor João Mendes).
Outro aspecto evidente que incide sobre a área é o esface-
lamento dos suportes de memória vinculados à escravidão e aos
negros na Pauliceia. A igreja serviu de espaço de resistência e

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 105


de organização antiescravagista por décadas; além de realizar
diversas procissões religiosas, abrigou lutas abolicionistas e
negros foragidos. Como indicado por Nuto Sant’Anna, a Igreja
dos Remédios foi como o “quartel-general” dos escravos, tendo
sido o templo religioso o local em que negros se reuniam junto a
Antônio Bento para libertar outros negros (FOLHA DE S. PAULO, 9
jun 1942, p. 15). Nuto Sant’Anna destacou, ainda, ser esse o princi-
pal motivo pelo qual teria se conservado a igreja, uma vez que
ela esteve intimamente relacionada à história da capital paulista
e a grupos que não eram da elite. A demolição da igreja, nesse
sentido, representa um apagamento da memória negra, pois,
já em sua época de contendas com a municipalidade por causa
das obras do “Plano de Avenidas”, ela veio à tona.
A reurbanização do Largo e o desaparecimento da Igreja de
Nossa Senhora dos Remédios nos permite interpretar um silencia-
mento da história da população negra por meio da demolição
(BRITT, 2018, p. 4), assim como uma desvalorização da arquite-
tura e da arte executada por essa população (GONÇALVES, 2018).
Marginalizados e relegados ao esquecimento, os negros represen-
tariam, de acordo com essa lógica, episódios da história do Brasil
que deveriam ser esquecidos, discurso, inclusive, muito presente
nas falas de políticos da época (SP NEGRA, 2017).
A demolição da Igreja dos Remédios estava prevista na
primeira fase da execução da Avenida de Irradiação do “Plano
de Avenidas”, a qual interferiria na Praça João Mendes (CORREIO
PAULISTANO; 27 jun 1947, p. 1). Por conta desse fator, a Praça seria
fortemente noticiada como um “alvo” para futuras transforma-
ções na gestão de Maia. Aliás, ela já tinha sido alterada ao longo
do século XIX, tendo recebido novas edificações, como o já citado
Teatro São José e a linha de bondes – levando à abertura de
uma passagem entre a quadra adossada à Igreja dos Remédios e
limítrofe ao Largo Sete de Setembro, que impedia a ligação com a
atual avenida Liberdade. Além disso, a Praça passou, no final do
século XIX, por um ajardinamento ao gosto do paisagismo inglês,
que a inseriu em registros fotográficos de Guilherme Gaensly e
Militão de Azevedo.
O local, como visto, era cercado de edifícios simbólicos: Igreja
dos Remédios, Igreja de São Gonçalo, o incendiado prédio do
Teatro São José, e os fundos da nova catedral. Contudo, grande

106 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


destaque se dava à antiga edificação que abrigara a Casa de Câmara
e Cadeia, depois sede da Assembleia Provincial. Para um breve
contexto histórico, e para compreender a trajetória desse edifício
na região da Praça João Mendes, convém apontar que em 1862 a
Câmara Municipal de São Paulo propôs ao Governo da Província
que a Assembleia Provincial se firmasse em um edifício situado
no Largo de São Gonçalo, ao lado da Igreja de São Gonçalo. Esse
prédio teve suas obras iniciadas em 1784, construído para abrigar
a “casa de Câmara, tendo como dependências cadeia e açougue”
(ALESP, 2021). Foi finalizado em 1788, e no andar superior funcio-
naria a Câmara Municipal de São Paulo. Em maio de 1877, foram
removidos do local os últimos presos da Cadeia, e, em 1878, o
prédio foi reformado para receber, enfim, apenas a Assembleia
Legislativa Provincial de São Paulo.
Com a instauração da Era Vargas a partir do Golpe de 1930, todas
as Casas Legislativas no Brasil foram dissolvidas. Após a promul-
gação da Constituição Federal de 1934, o Legislativo Paulista voltou
a funcionar no ano seguinte, instalando-se no mesmo edifício
da Praça João Mendes, no dia 8 de abril, 60 deputados eleitos no
dia 14 de outubro de 1934, para assim, lançar a Constituição de
9 de Julho de 1935. Firmava-se, então, em seu local de partida, a
Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, naquele mesmo
edifício da Praça João Mendes. No entanto, sua permanência ali
foi breve, visto que, em novembro de 1937, Getúlio Vargas instau-
rou o Estado Novo e decretou o fechamento do Poder Legislativo
no Brasil. Com isso, o prédio paulistano acabou sendo demolido
no final de 1944, a fim de permitir a execução de melhoramen-
tos urbanísticos do governo de Prestes Maia que culminariam no
alargamento da Praça João Mendes. Sua localização era estraté-
gica para consolidar a ligação com a rua Maria Paula, e está, em
seu lugar, desde o início dos anos 1940, a cabeceira do viaduto
Dona Paulina, que cruza o Ribeirão Itororó, submerso pela avenida
23 de Maio, aberta só nos anos 1960, mas já prevista no “Plano
de Avenidas” levado a termo.
Esses “melhoramentos urbanísticos” da Praça João Mendes
foram bastante noticiados na imprensa. Na primavera de 1941,
publicou-se a marcante manchete no jornal Folha da Manhã:
“Enorme Praça de Vinte e Seis Mil Metros Quadrados Ligará o
Futuro Viaduto D. Paulina à Rua Anita Garibaldi”. A matéria

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 107


permite-nos verificar um dos aspectos principais da execução
do “Plano de Avenidas”: “construir a grande Praça João Mendes”.
Para isso, indicava-se, em tom quase cínico, que, para progredir
São Paulo, era necessário arruinar a antiga cidade. Assim, o jornal
grafou que a modernidade só seria possível com a demolição “do
antigo edifício do Congresso, prédio de obstrução antiquada e
inestética, de nenhum valor arquitetônico e que apresenta além
do mais, um contraste chocante com as linhas de uma cidade
moderna” (FOLHA DA MANHÃ, 22 out 1941, p. 8).

Figura 2 – Reprodução de matéria da Folha da Manhã, de 22 de outubro de 1941,


acerca das transformações da praça João Mendes, em decorrência das obras do
“Plano de Avenidas”.

Fonte: Folha da Manhã, 22 de outubro de 1941, p. 8, Acervo Folha. Disponível em: https://
acervo.folha.com.br/

Com a transformação viária do espaço, vemos que ocorreu a


desmaterialização de simbolismos coloniais. Aliás, abundam-se
informações sobre as demolições dos edifícios, mas são escassas as
documentações acerca da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios,

108 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


e, mais ainda, da Casa de Câmara e Cadeia da capital, da qual
nada restou. O que temos são registros fotográficos externos,
mas descrições ou mesmo fotografias do seu interior não foram
encontradas. Sobre essa edificação paira uma névoa, impedindo
que conheçamos verdadeiramente o edifício que durou séculos
até cair sem maiores lamentos.
Dessa maneira, podemos afirmar que a Praça João Mendes é
um logradouro que, mesmo já tendo sido cartão postal da cidade, se
tornou um canteiro viário. A área é um grande vazio urbano, capaz
de expor com grande ênfase o esfacelamento dos tecidos urbanos,
o que dificulta a leitura da história e impede a boa apropriação dos
espaços pelos cidadãos. Uma estratégia para confrontar essa situação
é reinserir os edifícios que se perderam no local que ocupavam.
Para tanto, as reconstruções virtuais se mostram bastante úteis.

A aula fora da sala


Estudos do meio, aulas de campo e visitas técnicas são
práticas pedagógicas já consagradas nos estudos históricos. A
sala de aula toma uma proporção diversa daquela cristalizada no
ambiente escolar tradicional quando se ocupa a rua. Entretanto,
torna-se muito complexa a atividade de educar o olhar e garantir
a interpretação sobre o patrimônio quando os deslocamentos
das salas de aulas ocorrem visando a apreensão de territórios
que não existem mais, que poucos traços deixaram sobre si na
cidade contemporânea.
É nesse momento que as maquetes eletrônicas podem servir
para uma ação pedagógica mais eficiente. A possibilidade de
explorar, por meio de códigos de barras (QR Codes), de hospeda-
gem em websites, de visualizações imersivas, e até por meio de
jogos eletrônicos, os locais muito diversos daquilo que vemos a
olho nu garante um duplo ganho. Primeiramente, torna-se possível
problematizar a concepção de cidade, discutindo-a como um
espaço político e campo de negociações. Mostrar os embates e as
consequências das ações políticas e das administrações públicas
pode nortear o processo de aprendizagem, assumindo proporções
transformadoras para a prática da cidadania. Em segundo lugar,
o uso de ferramentas que tensionam o virtual pela ancoragem no

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 109


real não apenas acelera o processo de aprendizado como garante
uma reconexão dos estudantes com a vida pública.
Nossa pesquisa reconstruiu, como vimos, a partir de
documentos diversos a antiga Casa de Câmara e Cadeia da
capital, espaço importante para a governança colonial e imperial,
mas que se tornou inacessível quando demolido. Reconstruí-
mos, também, o templo da Irmandade de Nossa Senhora dos
Remédios, local fundamental para o movimento abolicionista e
para a memória negra na cidade, que desapareceu, impossibili-
tando a compreensão sobre a sua coexistência com a governança
da cidade, instalada na mesma área e representada pela Casa
de Câmara e Cadeia.
Os resultados apresentados aqui permitem que confronte-
mos narrativas, visualidades e paisagens, e, vistos a partir dos
espaços contemporâneos, revelam uma dimensão potente das
transformações urbanas. Pretendendo possibilitar a compreen-
são das transformações do espaço, mostraremos a seguir um
compilado de alguns documentos que nos auxiliaram nas recons-
truções. Começando pela cartografia, o levantamento SARA Brasil,
de 1930, mostra a conformação da área (Figura 3).

Figura 3 – Detalhe do Mapa SARA Brasil, de 1930, com ênfase na conformação da


Praça João Mendes.

Fonte: Portal GEOSAMPA, PMSP. Disponível em: http://geosampa.prefeitura.sp.gov.br/.


Acesso em: 20 jul. 2022.

110 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


A mesma área, vista em cartografia dos anos 1950, revela uma
ruptura no tecido urbano pela passagem do conjunto de avenidas
projetadas por Prestes Maia.

Figura 4 – Detalhe do Mapa VASP Cruzeiro, de 1954, com ênfase na conformação da


Praça João Mendes.

Fonte: Portal GEOSAMPA, PMSP. Disponível em: http://geosampa.prefeitura.sp.gov.br/.


Acesso em: 20 jul. 2022.

O viaduto Dona Paulina desembocou nas antigas costas do


edifício da antiga Casa de Câmara e Cadeia, e sua presença, hoje,
sequer é notada. Observando a iconografia alusiva ao edifício,
percebemos que o prédio compunha de forma importante a área,
locado na parte noroeste do logradouro. Atualmente, ele é uma
ausência que pode ser explicitada pela sobreposição de camadas
temporais numa mesma imagem.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 111


Figura 5 – Assembleia Provincial e Câmara Municipal.

Fonte: Álbum Comparativo da Cidade de São Paulo (1862 -1916).

Figura 6 – Maquete eletrônica da Casa de Câmara e Cadeia, produzida pelo Grupo


CAPPH para a exposição virtual “Pauliceia Esfacelada”.

Fonte: Disponível em: www.pauliceiaesfacelada.com/percurso5. Acesso em: 20 jul. 2022.

112 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


Disponível em: www.pauliceiaesfacelada.com/percurso5. Acesso em: 20 jul. 2022.
Figura 7 – Maquete eletrônica da Casa de Câmara e Cadeia, produzida pelo Grupo
CAPPH para a exposição virtual “Pauliceia Esfacelada”. Disponível em: www.pauliceia-
esfacelada.com/percurso5. Acesso em: 20 jul. 2022.

Fonte: Disponível em: www.pauliceia-esfacelada.com/percurso5. Acesso em: 20 jul. 2022

Figura 8 – Maquete eletrônica da Casa de Câmara e Cadeia, produzida pelo Grupo


CAPPH para a exposição virtual “Pauliceia Esfacelada”.

Fonte: Disponível em: www.pauliceia-esfacelada.com/percurso5. Acesso em: 20 jul.


2022.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 113


As três imagens anteriores, visualizações das maquetes eletrô-
nicas, inserem o edifício em contraste com a ocupação urbana
contemporânea. Quando demolido, nos anos 1940, a verticaliza-
ção que vemos hoje na cidade não existia; agora, os prédios altos
que cercam a antiga localização servem como marcos espaço-
-temporais. Um celular, com as imagens acima, poderia servir
para que a turma de alunos percebesse a dinâmica da transfor-
mação urbana.

Figura 9 – Vista presente na plataforma Google Maps, na mesma direção em que


outrora tínhamos a entrada principal da Casa de Câmara e Cadeia da capital paulista.
Acesso em: 20 jul. 2022.

Fonte: Google maps. Disponível em: https://www.google.com.br/maps. Acesso em: 20


jul. 2022.

Com relação ao antigo templo da Irmandade de Nossa Senhora


dos Remédios, o efeito é semelhante. A cartografia já reproduzida
na Figura 3 mostra como a igreja garantia ao logradouro coesão
formal e direcionamento focal do olhar. Com a Figura 4, notamos
que o espaço se esvaziou de densidade e de sentido.
Desse modo, refazer virtualmente a Igreja de Nossa Senhora
dos Remédios permite que as turmas, posicionadas in loco, ou
mesmo à distância, percebam a transformação.

114 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


Figura 10 – Fotografia de Militão Augusto de Oliveira, datada de 1862, mostrando à
esquerda o templo da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios.

Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural. Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org.


br/pessoa2001/militao-augusto-de-azevedo. Acesso em: 20 jul. 2022.

Figura 11 – Vista presente na plataforma Google Maps, na mesma direção em que


outrora tínhamos a entrada principal da Casa de Câmara e Cadeia da capital paulista.

Fonte: Google maps. Disponível em: https://www.google.com.br/maps. Acesso em: 20


jul. 2022

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 115


Figura 12 – Maquete eletrônica da Igreja dos Remédios, produzida pelo Grupo CAPPH
para a exposição virtual “Pauliceia Esfacelada”.

Fonte: Disponível em: www.pauliceia-esfacelada.com/percurso5. Acesso em: 20 jul. 2022.

116 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


Figura 13 – Maquete eletrônica da Igreja dos Remédios, produzida pelo Grupo CAPPH
para a exposição virtual “Pauliceia Esfacelada”.

Fonte: Disponível em: www.pauliceia-esfacelada.com/percurso5. Acesso em: 20 jul. 2022.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 117


Figura 14 – Maquete eletrônica da Igreja dos Remédios, produzida pelo Grupo CAPPH
para a exposição virtual “Pauliceia Esfacelada”.

Fonte: Disponível em: www.pauliceia-esfacelada.com/percurso5. Acesso em: 20 jul. 2022.

Considerações finais
Este capítulo foi batizado, de uma maneira lúdica, de “Os
detetives de cidades-fantasmas: as potencialidades das recons-
truções gráficas virtuais para o ensino da história urbana”. Com
isso, tentamos mostrar que espaços urbanos desaparecidos, ou
fantasmagorias urbanas, podem permear a vida nas cidades.
Não se trata de evocar espíritos ou mesmo ectoplasmas, como
no famoso filme dos Caça-Fantasmas, mas de fornecer substra-
tos virtuais que confrontem as dinâmicas urbanas, as mesmas
que levaram, sobretudo no século XX, espaços importantes ao

118 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


chão, promovendo rupturas e o esfacelamentos da sua própria
compreensão.
Para tanto, expusemos as situações que fizeram São Paulo
assumir uma feição metropolitana durante o Estado Novo
Varguista, e mediante o governo do prefeito-urbanista Francisco
Prestes Maia (1938-1945). Esse último, também autor do “Plano
de Avenidas para a Cidade de São Paulo”, publicado em 1930,
conseguiu implantar sua proposta de transformação da capital
paulista ao assumir o governo municipal em 1938. Prestes Maia,
que sucedeu Fábio Prado na prefeitura – por meio de uma indica-
ção de Getúlio Vargas ao interventor do Estado, Adhemar de
Barros –, desenvolveu, de fato, uma das maiores transforma-
ções físicas que a cidade já conheceu.
Naqueles anos pós-revolução constitucionalista de 1932,
São Paulo vivia uma conturbada relação política com Vargas, e a
nomeação de Prestes Maia, um técnico do pensamento urbano e
paulista, pelo presidente mostrou-se como uma valorização do
cenário tecnocrático e burocratizante que o Estado Novo praticava
(ARAVECCHIA-BOTAS, 2016). Uma ideia de eficiência e de transfor-
mação, então, atrelou-se às transformações espaciais, pelo menos
nos discursos dos técnicos e políticos. Expressões poéticas, mas
alinhadas com essa teleologia de São Paulo como “condenada
ao futuro”, não apenas estavam carregadas de dados ufanistas
nos anos 1930, como mostra a historiadora Barbara Weinstein
(2015), como apregoavam que as modificações espaciais pelas
quais a cidade passava eram supostamente “libertadoras” das
mazelas provenientes do passado. Essa representação de avanço
não desapareceu do imaginário paulistano. O jornalista Nicolau
Tuma, comentando a obra de Prestes Maia à frente da prefeitura,
entre 1938 e 1945, disse que

O bisturi do urbanista cortou fundo no corpo da velha


cidade. Não havia, então, câmara municipal nem tribunal
de contas. Ele foi o fiscal de si mesmo. Desapropriou,
contratou, derrubou, reconstruiu, pagou. (TUMA, 2010,
p. 384)

Tuma, jurista e radialista, conviveu com Prestes Maia e escreveu um


artigo, à guisa de depoimento, para a reedição do livro Melhoramentos

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 119


de São Paulo,4 realizada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
em 2010. Tentando mostrar a probidade administrativa de Prestes
Maia, Tuma valeu-se da alusão à metáfora médica, evocando o bisturi
que o médico usa para abrir, cortar, eliminar e curar o corpo humano,
fazendo-o aplicável à realidade urbana.
Dessa forma, a intenção de demolir a Igreja Nossa Senhora dos
Remédios fez parte do escopo de ações que integravam o “Plano
de Avenidas”, mais especificamente do rol de trabalhos previs-
tos para implantação da porção sul do Perímetro de Irradiação
e que incluía o redesenho da atual Praça João Mendes. Hoje, no
espaço que a igreja ocupou na Praça João Mendes, não há nenhuma
menção à existência pretérita de um importante e representativo
monumento da história da população negra. O mais chocante é
que o lugar ocupado pelo templo no passado é, hoje, uma “ilha”
pavimentada que nenhuma função urbana exerce, a não ser a
de separar fluxos de carros, numa metrópole que se rasgou para
acomodar uma modernidade mecânica.
Como acessar alguma materialidade sobre aquele espaço tão
significativo à memória urbana de grupos da população negra? Por
meio de vestígios arqueológicos? Sim, sem dúvida. Mas em territó-
rio não escavado essa é tarefa praticamente impossível. Uma saída
é confrontar, por meio de equipamentos digitais, como smartpho-
nes, os espaços reconstruídos. As maquetes eletrônicas, assim,
garantiriam essa confrontação de espaços que ainda existem e que
poucos elementos de comparação possuem no ambiente ao qual
integra. Olhar o antes e o depois, em tempo real, estando na cidade
real, e enxergando fantasmas arquitetônico-urbanísticos, além
de uma dimensão lúdica, traz uma contribuição à formação mais
densa, plural e adequada a uma população em idade escolar que
nasceu na era digital. Os jogos de vídeos praticados em interiores
domésticos podem, sem muita dificuldade, ser transportados para
a cidade, trazendo a dimensão detetivesca da história para perto
de estudantes que gostam de decifrações, simulações e realida-
des virtuais. Olhar o passado pelas telas digitais do presente pode
ser uma pequena revolução na maneira de se propor a cidade
como sala de aula.

4 Livro lançado em 1945, no qual Prestes Maia apresenta a transformação que realizou
no município.

120 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


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Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 123


AS POSSIBILIDADES E A COMPLEXIDADE
DO ENSINO DE HISTÓRIA A PARTIR DA
CULTURA MATERIAL

Cláudia R. Plens

Introdução
A maneira como nós, humanos, nos relacionamos com a cultura
material, construindo e utilizando objetos, tem sido continuamente
modificada ao longo da história de acordo com o nosso entendi-
mento sobre o papel da humanidade como parte do universo. Do
mesmo modo, as narrativas que construímos a partir das culturas
materiais sobre nossa história são reconstruídas de acordo com
a ampliação e complexificação das relações de conhecimentos
do mundo em que habitamos.
Se por um longo período a humanidade narrou sua história a
partir de um viés de causas e consequências, tendo na figura de
heróis, deuses, semideuses e demais figuras místicas como protago-
nistas da história, os conhecimentos trazidos pelas descobertas
científicas complexizaram as tramas e relações entre as causas e
consequências dos acontecimentos, possibilitando a visualização
dos fatos a partir de diferentes prismas e diferentes interpretações.
No mundo moderno se compreendeu que diferentes testemunhos
relatam a história sob um viés específico cujos acontecimentos foram
compreendidos e interpretados pelos indivíduos sob suas perspectivas
de vida particulares, familiares e sociais, e que, algumas particularidades
dos eventos, podem, ainda, estar armazenadas sob diferentes camadas
da psique humana, inclusive, no inconsciente. Portanto, narrativas
sob os eventos, de valor inestimáveis, devem ser estudadas como
objetos a serem lapidados e comparados com os diferentes prismas
interpretativos existentes sobre os mesmos eventos.

125
Para além das narrativas dos indivíduos que testemunha-
ram os eventos que porventura possam chegar até nós, nos é
relegado remanescentes materiais que estruturaram e foram
usados nos eventos históricos. Como bem conhecem os arqueó-
logos, os vestígios materiais, por mais variados e estranhos, são
passíveis de análise para interpretação do passado.
Assim, objetos de refugo de ações cotidianas, das mais simples,
podem fornecer pistas e informações incalculáveis sobre o passado
humano. E a arqueologia, com seus métodos e técnicas, explicam
empiricamente o significado desses objetos a partir de arcabou-
ços teóricos. Todo objeto, dentro de seu contexto, tem significado
passível de ser interpretado.
Entretanto, para além dos objetos de uso cotidiano, outras
qualidades de objetos foram construídas pela humanidade, com
finalidade simbólica, seja para elaboração e interpretação da humani-
dade e sua origem, suas cosmovisões sobre o mundo, seja para
recontar eventos históricos específicos, marcar território e legiti-
mar diferentes formas de poder: os monumentos, por exemplo.
Embora monumentos sejam objetos longevos na história, o
conceito de patrimônio é bastante recente. Apesar das primeiras
notícias acerca da preocupação pela conservação de bens culturais
no mundo ocidental remontarem ao século XVIII, quando, na Itália,
Ferdinando de Médici elaborou uma lista de obras de 18 pintores
que não poderiam ser exportadas e, em seguida, na França, no pós
Revolução Francesa quando foram criados o conceito de monumentos
e uma série de instituições e instrumentos a serviço da proteção
dos bens culturais (Neves, 2018, p. 91), foi somente no século XIX
que o conceito de patrimônio foi cunhado.
A destruição dos bens materiais de cunho nacionalista levou
à elaboração de uma série de estratégias para a salvaguarda
desses bens e preservação do poder sobre o território, a partir
da reconstrução da memória histórica em alguns países europeus.
A preocupação com a salvaguarda não era sem propósito. Como
bem conhecido pelos países colonialistas, ao longo de milênios, o
meio para se dominar e conquistar um grupo ou uma nação foi por
meio de assassinatos e diferentes formas de violações de corpos e,
paralelamente, pelo aniquilamento de bens e símbolos culturais dos
grupos subjugados. Uma vez conquistado, ocorre a apropriação de
seus patrimônios e de seus conhecimentos. Nesses contextos, novos
símbolos e modos de viver são impostos, até que, em poucas gerações,

126 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


aconteça o apagamento das histórias e dos direitos territoriais do
grupo dominado e, desse modo, a dominação se torna completa.
Dada as diferentes formas de culturas materiais, desde objetos
cotidianos, até monumentos e bens patrimonializados que nos
permitem acessar a história de quem a confeccionou, usou e reutili-
zou para diferentes fins, a cultura material, em seu amplo espectro,
permite o ensino da história de uma maneira crítica e envolvente.
O objetivo deste capítulo é, portanto, apresentar as sutilezas
da materialidade da história humana, as múltiplas dimensões de
opressão do patrimônio e o uso da cultura material para o ensino
de história a partir de uma perspectiva crítica. Para tanto, utiliza-
remos neste capítulo exemplos relacionados a questões indígenas,
pois esse segmento social é o mais carente de políticas públicas.

O tempo em movimento:
a história pela perspectiva temporal
Para compreender o tempo por meio de uma perspectiva
arqueológica, traço aqui uma reflexão acerca da construção do
conhecimento a partir da cultura material, em que a dinâmica
do tempo permitiu que a humanidade se articulasse em grandes
redes sociais e reconstruísse o mundo.

Figura 1 – O tempo em movimento.

Fonte: Imagem de Maíra Plens Figuti.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 127


A arqueologia é uma disciplina que se propõe a analisar a
cultura material para compreensão do comportamento humano.
Artefatos envolvem uma ampla e variada gama de formas nas
quais as criações podem ser moldadas, tendo como ponto princi-
pal como os produtores deixam marcas de autoria em seus artefa-
tos, cujas características podem identificar o período, lugares e
identidade específicos de confecção. Tal descoberta se dá por
meio de métodos como os artistas negociam e constroem suas
identidades individuais ou coletivas mediante a criação, exibição
e consumo, de modo a se compreender acerca da sociedade em
que o artista e sua arte estão inseridos (Sanz et al., 2009, p. 16-8).
As continuidades e descontinuidades geográficas entre diferen-
tes tipos de evidências materiais são fundamentais para estabe-
lecer os limites das culturas e as interações sociais, compreender
a forma como o espaço foi definido e utilizado em um contexto
sociocultural específico, a duração e continuidade da ocupação,
e, sobretudo, como a percepção de um determinado lugar mudou
ao longo do tempo na construção de identidades sociais (Sanz et
al., 2009, p. 20-1).
Algumas coisas possuem autoria identificadas, porém, para
a maioria delas, a identidade pessoal se perdeu, contudo, não a
possibilidade de se compreender acerca da sociedade em que os
indivíduos estão inseridos. O fluxo do conhecimento continua
presente e é possível conhecer sobre o tempo, espaço e identi-
dade cultural por meio da cultura material.
Mas o que é o tempo? Embora essa seja uma das pergun-
tas mais realizadas pela humanidade, muitos pesquisadores e
cientistas ainda têm se debruçado para tentar compreendê-lo
e explicá-lo. Todavia, não há consenso sobre o que é o tempo,
mas há diferentes perspectivas que nos ajudam a adentrar esse
enigmático tema.
A arqueologia visa a compreensão do comportamento humano
por meio da cultura material em uma perspectiva de classifica-
ção cronológica, para se entender como a humanidade foi se
adaptando ao mundo.
O tempo aqui, sob uma perspectiva arqueológica e pessoal,
é entendido como o movimento do pensamento e das ações que
fluem com o ar que tudo toca, incessantemente. Com o movimento
do ar, o tempo passa, os corpos se movem, e as pessoas transitam

128 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


pelos espaços, pelos caminhos abertos nas paisagens e, com elas,
as ideias atravessam barreiras geográficas e sociais. Pouco a pouco,
blocos de saberes se consolidam, se materializam por meio da
cultura material, dos artefatos, e novas formas de conhecimento
e de viver são construídas, fazendo com que a humanidade se
torne humanidade.

O tempo, o espaço, o movimento,


as ideias e as identidades
São inúmeros os movimentos na história da humanidade
que impulsionaram ações que, ao se materializarem em forma
de matéria concreta, mobilizaram mais pessoas e, portanto, novas
ideias. É por meio do tempo e do movimento, ou seja, do fluxo de
circulação nos espaços, que pessoas são expostas umas às outras
e, consequentemente, às diferentes ideias, forjando novas identi-
dades, novas culturas.

Figura 2 – O tempo, o espaço, o movimento de ideias e as identidades.

Fonte: Imagem de Maíra Plens Figuti.

A evolução do processo cognitivo possibilitou a criação de


ferramentas que ajudaram a humanidade a se adaptar melhor ao
meio ambiente e explorar um maior número de recursos naturais.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 129


Ademais, o próprio processo de aprendizagem de atividades
coordenadas, exigidas para a fabricação de ferramentas, pode ter sido
benéfico e estimulado o autocontrole emocional de seus artesãos.
Paciência e tolerância, emoções necessárias para atividades de captação
de recursos e seu subsequente consumo (Jablonka et al., 2012).
Na arqueologia é conhecido que o advento do fogo, conjunta-
mente com a materialização da fogueira, foi um evento transfor-
mador na história da humanidade. Evidências arqueológicas
apontam que os seres humanos teriam controle do fogo há, pelo
menos, 700 mil anos em Israel (Alperson-Afil e Goren-Inbar, 2010)
e 1,5 milhão de anos na África (Gowlett e Wrangham, 2013).
Acredita-se que o uso eficiente do fogo pelos humanos
durante o Pleistoceno teria sido o gatilho para o desenvolvimento
do comportamento de cooperação entre eles. O ato de cooperar,
por sua vez, teria levado à maior probabilidade de sobrevivência
e reprodução, já que evitaria incêndios e a possibilidade de que a
humanidade se tornasse caça, viabilizando o acesso regular aos
seus benefícios, tal como o calor e a possibilidade de cozimento
de alimentos (Twomey, 2014).
Alguns pesquisadores também aventam a hipótese de que
o início da fala poderia ter surgido da necessidade de se organi-
zar e manter as fogueiras para cozimento de suas comidas e se
protegerem do frio e de outros animais.
A linguagem articulada é uma característica da espécie humana.
Para o desenvolvimento da linguagem são necessárias perfor-
mances nos sistemas de imitação, empatia, mimese, articula-
ção e troca de perspectiva. A linguagem permite a troca de ideias,
cooperação para criação de novos objetos culturais e formas de
pensar (MacWhinney, 2005).
A fala permite a troca de experiências, sociabilidade e coopera-
ção. Ela possibilita a transmissão de conhecimento pela história
oral e da construção das identidades por meio do conhecimento
das memórias que ligam as pessoas, que apontem de onde elas
vieram, e a que grupo cultural pertencem. A sociabilidade levou as
pessoas a planejarem seus futuros, se organizarem para planejar
captação de recursos, migrações e conquistas de novos territórios.
O recurso mais básico e primordial, o alimentar, sempre foi um
dilema para nossos ancestrais. Para além da carne obtida por meio
de perigosas caçadas, e cujo consumo deveria ser rápido antes que

130 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


estragasse, os demais recursos naturais, frutas e vegetais eram
esparsos e altamente tóxicos, chegando, inclusive, a ser letais. Foi
necessária muita experimentação empírica para que as popula-
ções soubessem o que seria comestível ou não e transmitisse esse
conhecimento para os demais. Experimentar, morrer ou sobrevi-
ver: esse era o método que as populações nômades e migrantes
dispunham para reconhecer seus novos hábitats.
Estudos arqueológicos e etnográficos apontam que todas as
culturas em todo o globo, desde períodos imemoráveis, inclusive
sociedades de caçadores-coletores, pelos seus amplos conheci-
mentos dos ambientes em que vivem, sempre utilizaram do seu
conhecimento empírico acerca de consumo de plantas com fins
medicinais (Hsu & Harris, 2010; Day, 2013). Ademais, procedi-
mentos cirúrgicos, como a trepanação, já foram realizados na
pré-história em várias regiões geográficas do mundo no intuito
de preservar a vida e melhorar a qualidade de vida de animais e
humanos (Broca,1867; Horsley, 1888; Persuad, 1984; Alt et al., 1997;
Lillie, 1998; Piek et al., 1999; Marino-Junior and Gonzales-Portillo,
2000; Clower and Finger, 2001; Finger & Fernando, 2001; Liu and
Apuzzo, 2003; Rossi & Froment, 2018).
Hoje, o alcance da medicina, associada à ingestão de vitami-
nas propiciadas pelo consumo de frutas e verduras manipuladas
pelo ser humano para as tornarem menos tóxicas e mais nutriti-
vas, leva a uma qualidade de vida que faz a humanidade viver por
mais tempo. Até novas doenças, consequência da nova longevi-
dade, ou mesmo pelo surgimento de novos vírus, têm sido tratadas
com medicamentos ou vacinas elaboradas em um curto período
de tempo por meio da pesquisa científica.
Há pelo menos 40.000 mil anos, a humanidade também
despertava para a arte mais abstrata. Desde então, diferentes
formas visuais que representam externamente pensamentos
internalizados têm sido multiplicadas sob inúmeras formas
como expressões socioculturais do meio em que o indivíduo
está inserido e com o qual teve contato e, criativamente, cujo
autor desenvolve métodos e técnicas estéticas para representar
seu pensamento.
Para pesquisadores e amantes das artes, a elaboração e criati-
vidade estética é ponto focal, para a arqueologia, todo o objeto
possui elementos que possibilitam o arqueólogo saber sobre o

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 131


período e cultura em que o objeto foi confecionado e/ou utilizado.
Tudo tem sua história.
Embora as múltiplas performances artísticas visuais confec-
cionadas desde o período pré-histórico sejam uma forma de
linguagem que tinha por intuito comunicar uma mensagem, os
códigos para interpretá-la eram compartilhados entre os membros
dessa cultura e, por mais que arqueólogos tentem trabalhar para
a interpretação da linguagem, esses códigos se perderam; hoje
eles nos são subjetivos pela falta de vínculo cultural. Mas outros
códigos foram articulados e as expressões artísticas se multipli-
caram ao longo do tempo.
Outro código que ultrapassou barreiras geográficas e culturais
e levou a um salto cultural na humanidade foi a escrita. Na escrita,
associada à produção de livros, os pensamentos e ideias de uma
pessoa, com dados, informações e memórias, muitos conhecimen-
tos foram transmitidos de forma física. Desse modo, por meio da
circulação de livros, a comunicação passou a ser propagada para
fora do âmbito familiar e do núcleo cultural a que um indivíduo
fazia parte, permitindo que ele adquirisse conhecimento e ideias
provenientes de outros lugares e tempos. A mensagem ultrapas-
sou barreiras políticas, sociais e religiosas e sobreviveu a longos
períodos históricos.
Diversos sistemas de escritas foram criados em diferentes
partes do mundo, por culturas que já apresentavam grande comple-
xidade social, sobretudo em sua rede de comércio, concomitan-
temente ao desenvolvimento de grandes cidades.
Na cidade, os objetos estão em todos os lugares atestando a
presença das diferentes pessoas ao longo do tempo. Nela, o tempo
e os movimentos fluem em uma dinâmica mais intensa, pois as
relações sociais são necessariamente acentuadas. Ideias e cultura
material se renovam em ritmo mais acelerado.
A cidade, a paisagem e os lugares são complexos espaços onde os
movimentos são palcos para as relações sociais. Lugares são pontos
de conexão entre ambiente, pessoas e significados responsáveis
pelo processo de criação do comportamento humano, em que os
indivíduos desenvolvem a cognição e a percepção acerca do espaço –
e os comportamentos humanos intrínsecos a ele –, e o utiliza como
marco para a promoção e transmissão de conhecimento e memória

132 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


social. A materialidade da relação entre lugar, pessoas e memória
que se desdobra sobre aspectos sociais, políticos, econômicos e
simbólicos da paisagem (Bowser e Zedeño, 2009, p. 1-6).

Figura 3 – O tempo nas cidades.

Fonte: Imagem de Maíra Plens Figuti.

Na cidade há múltiplas camadas de histórias e relações


sociais, há lugares e histórias locais onde estão guardadas
informações acerca das causas e consequências de mudanças
ocorridas em cada lugar e em seus usuários. Na interligação entre
os múltiplos lugares é que estão guardadas as múltiplas histórias
e relações sociais que, aos poucos, configuram a paisagem e o
comportamento humano em grande escala (Bowser e Zedeño,
2009, p. 10).
As cidades são espaços que atraem pessoas de diferentes
origens e costumes socioculturais para viverem próximas
umas às outras. Nesses espaços, a necessidade de cooperação é
imprescindível para que a cidade funcione e as pessoas sobrevivam.
Dentro dos ambientes das cidades, a humanidade aprimorou
sua capacidade de ref letir sobre dimensões filosóficas da sua
existência, tais como moral e ética, permitindo a compreensão
de seu passado desde os mais remotos tempos e a análise do
futuro que pretende para a humanidade.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 133


Figura 4 – Moral, ética e direitos humanos.

Fonte: Imagem de Maíra Plens Figuti.

Ayala (2010) entende que o ser humano é um ser moral por


natureza, pois sua constituição biológica determina a presença de
três condições necessárias para o comportamento ético: a capaci-
dade de antecipar as consequências das próprias ações, de fazer
julgamentos de valor e, por fim, de escolher entre cursos alterna-
tivos de ação. Desse modo, o senso moral surgiria da predisposi-
ção dos indivíduos de avaliarem algumas ações como virtuosas e
outras como más, consequência da evolução cerebral que permite
uma rede de sinapses mais elaboradas.
De fato, a história da humanidade é repleta de exemplos de
instituições que organizaram normas visando a melhor convivên-
cia das sociedades. No entanto, foi somente em meados do século
XX que normas internacionais foram instituídas e, desde então,
reformuladas para a proteção dos direitos fundamentais de todos.
Os direitos humanos são normas que visam proteger todas as
pessoas de graves abusos políticos, legais e sociais. Para tanto, se valem
de questões sobre a existência, conteúdo, natureza, universalidade,
justificativa e status legal dos direitos humanos (Nickel, 2019).
A noção moral e ética tem permitido que a humanidade sobreviva
em uma ampla rede de cooperação social, construindo espaços
e normas cada vez mais elaboradas para uma convivência mais
pacífica e justa para todos.
A partir dos movimentos dos corpos, lampejos de possibi-
lidades e comunicação, a humanidade pôde desenvolver redes
sociais de proteção dos indivíduos, cuidar do futuro das gerações
vindouras a partir de seus legados culturais, redes de comércio,
infraestrutura, saúde, e do ponto de vista moral e ético. As redes
de cooperação, sob pactos sociais disseminados e aceitos pelos
semelhantes, permitiram que a humanidade se desenvolvesse
de maneira esplendorosa.

O tempo em suspenso
Mas se tantas ações humanas foram alçadas revolucionando o
modo da humanidade viver a partir da proteção de seus semelhan-
tes, inevitavelmente, sombras dessas ações sempre se alastraram
muito próximas ao esplendor das culturas.
No município de Guarulhos, SP, uma pesquisa interdisciplinar
discutiu a história e o patrimônio da cidade. Por meio da arqueologia,
a análise de caminhos e de construções para a mineração de ouro
constatou que, desde o século XVI, o contato do colonizador com
indígenas levou a uma corrupção das relações sociais: a escravidão
de pessoas para a exploração do ouro. Ao longo dos séculos, a
importância da presença indígena ficou impressa somente nas
toponímias de estradas, rios, fazendas e bairros da cidade, mas
não permitiu o curso contínuo de conhecimentos das pessoas
e das comunidades indígenas na história. Junto das liberdades
culturais e dignidade pessoal dos indígenas que foram tolhidas,
suas histórias também pereceram (Plens, 2017).
A análise de documentos, associada ao discurso e à memória
de moradores, revelaram que na construção da cidade foi necessá-
ria a expropriação e grilagem dos territórios indígenas, subtração
de suas culturas e vidas e aniquilamento de seus conhecimentos
e ideias para que a história da cidade fosse criada sob os valores
coloniais e republicanos brasileiros (Miranda, 2017; Plens, 2017).
A história do município de Guarulhos, forjada sob a exploração
mineral, é um exemplo da corrupção moral que cerceia os direitos
indígenas desde a colonização até os dias atuais.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 135


Se em toda a história da humanidade as normas de coopera-
ção sempre foram colocadas entre os semelhantes para melhor
convivência, também sempre houve indivíduos que quebraram
os pactos sociais e se desviaram de praticar ações em benefício
do coletivo. A violência é uma característica da humanidade e
sempre esteve presente na história.

Figura 5 – Moral, ética no contrafluxo do tempo.

Fonte: Imagem de Maíra Plens Figuti.

Alguns indivíduos, sem pleno controle de suas faculdades emocionais,


sempre extrapolaram o espaço e respeito pelo próximo, praticando dos
mais variados atos de violência. Junto dos grandes avanços culturais,
a sombra da humanidade sempre esteve presente: a maldade.
Porém, quanto mais complexas as sociedades se tornam, a
violência se revela mais obscura. Surgem indivíduos outorgados de
poder, seja ele econômico, político ou religioso, que, embrutecidos
e cegos para com os interesses do próximo, não se destacam mais
pela construção de um projeto que gere novos ideais em benefício
do coletivo, mas pela ruptura com o pacto social de trabalhar em
prol do interesse comum, responsáveis pela suspensão do tempo.
Assassinatos em massa, genocídios, estupros, tortura, corrupção,
discursos de ódio e seus apoiadores, passam a aniquilar corpos e almas
humanas em quantidade, e com maior crueldade, de modo nunca antes
visto. A cultura material – diferentes ferramentas, artefatos, armamentos,
monumentos, arquiteturas, campos de batalha criados para a brutalidade
–, atesta igualmente estes períodos de involução humana.

136 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


Uma vida violada é uma ruptura na dinâmica do movimento. Há
uma quebra no ritmo e circulação de pensamentos, são interrompi-
dos os fluxos de ideias e ações que em seu curso normal impulsio-
nariam a humanidade. O tempo em suspenso atrofia a sociedade.
Medos e conflitos gerados na interação entre as pessoas levam
ao contrafluxo do raciocínio lógico, dos movimentos dos corpos
que, aflitos, perdem sua liberdade de ir e vir, de pensar e de agir.
Os movimentos reversos colocam pessoas e ideias em letargia.
E lá, mesmo que o relógio mecanicamente pareça ressoar na
cadência de sempre, o pêndulo está parado e o tempo suspenso, à
espera de um pulsar de vida, uma brisa de novas ideias para colocar
todas as engrenagens em movimento harmônico, em fluxo contínuo.

O paradoxo do tempo nas ideias em


movimento
Perde-se muito com as vidas ceifadas, com elas se vão conheci-
mentos profundos, sobre ambiente, ervas farmacológicas, histórias,
o saber fazer de inúmeras artes. Perdem-se o riso e o abraço das
pessoas que se foram. Perde-se qualquer possibilidade de comuni-
cação, perdem-se ideias, só resta o silêncio.

Figura 6 – O tempo em suspenso

Fonte: Imagem de Maíra Plens Figuti.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 137


Para as vítimas de violência, a suspensão do tempo estagna.
Família e sociedade, atrofiadas, sobrevivem em meio a dor, atordoa-
mento e quebra de confiança na sociedade. O conhecimento dos
sobreviventes sobre o ato de violência que retirou as pessoas de
sua liberdade, de seus movimentos, dilacera a alma, e nos faz
sentir diminuídos como humanidade. A percepção é de um tempo
reverso, como se muitos dos adventos mais belos e produtivos
alcançados pela humanidade não tivessem existido.
Essas vidas perdidas antes da hora, de modo violento, rompe os
movimentos que conectariam ideias com outras ideais que levariam
a novos adventos. Os sobreviventes voltam, mas sem os mesmos
fluxos que trariam progresso à curto prazo. Nesses momentos de
crise, a humanidade precisa de criatividade para recriar novos
fluxos de ideias e novos pactos sociais de moral e ética.
A comunicação, que desde períodos imemoráveis permitiu a
troca de ideias e a construção dos maiores auspícios da humani-
dade, também permite discursos de ódio que, com o intuito de
influenciar atitudes apoiadoras da comunidade para os atos mais
ilícitos, faz uso de retóricas que despertam os medos e precon-
ceitos mais recalcados dos indivíduos, tornando-os espectros de
si mesmos. Sem uma compreensão lúcida e consciente da raiz
dos gatilhos de seus próprios pensamentos, medos e preconcei-
tos, as pessoas agem e apoiam discursos e atos de violência que
se perpetuam por um tempo contínuo e longo demais, levando a
profundas fissuras em eixos estruturantes da sociedade que se
tornam cada vez mais difíceis de serem restaurados.
Mas nem mesmo o sufocamento pelas piores das brutalida-
des e ignorância foi capaz de interromper por completo o fluxo da
humanidade. O pulsar involuntário dos corpos lentamente se agita,
e quando impelidos na mesma vibração voltam a se movimentar,
as ideias, mesmo que em outro ritmo, voltam a circular. Este arfar
propelido com um alto custo para as pessoas e para a humani-
dade sobreviventes permite que vidas antes sufocadas voltem a
entrar em uma nova harmonia, recobrando um novo equilíbrio
no tempo e no movimento. A voz, então, se amplia, ganha espaço
e chega nos ouvidos dos próximos, recriando maneiras cada vez
mais elaboradas para novos laços de cooperação.
Movimento de pessoas e ideias lapidam a paisagem natural e
constrói o mundo aos moldes de seus medos, conflitos e sonhos.

138 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


O mundo cultural é uma obra de arte, reflexo do tempo no seu
incessante movimento.
A própria arqueologia, criação da humanidade para estudar o
passado e compreender de onde viemos e porque agimos do modo
como agimos, nos permite acessar profundamente os mais diversos
comportamentos humanos, desde as espetaculares construções
de obras que constituem as maravilhas do mundo, até o que há de
mais sórdido e abjeto da humanidade, como valas comuns, onde
corpos amotinados e silenciados aguardam por justiça.
Para compreender a humanidade, há que se destacar a beleza
de sua jornada pelo mundo, mas sem deixar de atentar para seus
atos mais sombrios, para que a violência não seja naturalizada
como um ato social aceitável, ao contrário, para deixar claro que
a violência é apenas um ato desviante e corrupto, a mais obscura
sombra da natureza humana.

O ensino de História a partir de uma


perspectiva crítica da cultura material
A circulação de pessoas por meio de migrações e/ou do comércio
impulsionou o intercâmbio de produtos e artefatos exóticos. A
partir das grandes navegações, a surpresa de conhecer popula-
ções com culturas tão distintas levou à reunião e ostentação de
artefatos singulares provenientes de terras distantes, formando
verdadeiras coleções.
Com o passar do tempo, por diferentes razões, as famílias
proprietárias das coleções artefatuais tiveram que se desfazer
delas e passaram a doá-las para as universidades e aos museus.
Nesses espaços, a classificação e catalogação dos artefatos eviden-
ciaram que a partir dessa organização era possível reconhecer
os produtores e modos de produção dos artefatos, sem que se
conhecesse de fato os indivíduos que os produziram, dando início
ao campo da arqueologia.
Para melhor compreensão, imagine que esses objetos reunidos
aleatoriamente nas universidades passaram a ser agrupados
em diferentes formas lógicas, tal como o país de proveniência.
Dessa forma, todos os objetos oriundos da Índia, por exemplo,

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 139


ocupavam uma estante e, assim, sucessivamente. As prateleiras
que continham objetos provenientes desse país possuíam caracte-
rísticas semelhantes, como técnicas e empregos de determinadas
matérias primas, símbolos e marcas da cultura que foram transmi-
tidas entre gerações. Assim, esses atributos apresentados pelos
objetos de uma determinada cultura, quando estão devidamente
organizados e classificados, permitem a identificação de padrões
para a identificação da origem de um determinado artefato. Mais
do que isso, essa organização dos objetos permitiu, por meio de
suas características, reconhecer quais objetos foram confeccio-
nados primeiramente e como evoluíram para diferentes estilos.
A classificação dos objetos permite ao arqueólogo entender
padrões e rupturas geradas pelas ações e eventos socioculturais,
e é a partir dessa premissa que a leitura da cultura material nos
permite compreender o comportamento humano.

Objetos da história na sala de aula: pelo


direito de refletir outras histórias
A história do suporte didático para intermediar o professor
e o aluno na tarefa de passar o conhecimento dentro de sala de
aula passa pela lousa, cadernos, livros didáticos e computadores.
Dentre eles, os livros didáticos são os principais e mais
longevos instrumentos utilizados em sala de aula com o objetivo
de transpor o conhecimento acadêmico para o público escolar. Ele
é um compilado de conteúdos básico, sistematizado em conteú-
dos considerados essenciais para a sociedade de um determi-
nado período. O livro didático é um conjunto de pequenos textos
de simplificações de assuntos complexos, que são construídos
dessa forma visando auxiliar a leitura e divulgar o saber cientí-
fico de forma facilitada (Bittencourt, 2017, p. 72-3).
Embora um facilitador na comunicação entre professor e
aluno, o livro didático traz uma série de problemas. A simplifi-
cação excessiva dos textos deixa de trazer informações e concei-
tos que provoquem reflexões entre os estudantes. Não tendo outro
material que expanda seu olhar sobre o tema, resta ao aluno acredi-
tar nas leituras e percepções do autor e editor sobre o assunto

140 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


e tomar o texto como verdade absoluta. Além disso, dado que o
livro didático é uma mercadoria, e obedece ao mercado e à lógica
de sua comercialização, ele sofre diversas influências, desde sua
confecção até sua distribuição, de forma que não deixa de ser
produto de “reprodução de ideologias e do saber oficial imposto
por determinados setores do poder e pelo Estado” (Bittencourt,
2017, p. 71-3).
A adoção de livros didáticos exclui a preocupação com que o
aluno leia conteúdos mais extensos para formular o pensamento.
As leituras no ensino básico passam a ser realizadas por pequenos
trechos. O estudante mais avançado, quando requerido que leia
obras maiores e mais densas, realiza a leitura de forma “diagonal”,
em que o todo não é apreendido e, por essa razão, muitas vezes as
conclusões do autor são criticadas pela incompreensão da lógica
de construção do pensamento, ou mesmo relegado ao esqueci-
mento sem maiores reflexões.
No livro didático, a História do Brasil é pautada pelo eurocen-
trismo, sob a lógica de periodização de Estado-nação e resultado
do mercantilismo europeu. “Trata-se, portanto, de uma história
nacional que não se origina no espaço nacional, mas no lugar
central do capitalismo emergente” (Bittencourt, 2017, p. 23-4).
Desse ponto emerge um dos vários problemas do livro didático
de História, o ensino sobre questões indígenas. Nos anos 1870 e
1880 as primeiras representações indígenas nos livros didáti-
cos confeccionados por clérigos eram cenas de canibalismo que
atestariam a selvageria dos índios no Brasil e a figura de religio-
sos como heróis salvadores desses pecadores (Bittencourt, 2017,
p. 85-6). Essa visão sobre o indígena permaneceu ao longo do
século XX nos livros didáticos e os problemas ainda hoje estão
longe de ser superados.
Embora muitos livros didáticos já deem uma abordagem
um pouco menos pejorativa sobre os índios, muitos problemas
permanecem. Os indígenas aparecem no livro didático nas primei-
ras páginas do tema de História do Brasil, geralmente apresen-
tando poucas páginas se referindo a grupos que muitos autores
consideram mais interessantes, sem abordar a diferente gama
de culturas que se encontrava no Brasil quando foi “descoberto”.
Ademais, após a primeira abordagem do contato entre europeu
e indígena, os índios deixam de ser mencionados, como se todos

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 141


eles tivessem sido exterminados. Isso também acontece com os
africanos escravizados e seus descendentes, que são menciona-
dos para discutir pontualmente a escravidão, mas em ambos os
casos, nas páginas seguintes dessas discussões, esses segmen-
tos sociais magicamente desaparecem junto com suas histórias.
A história indígena no Brasil é vasta e complexa. A arqueolo-
gia brasileira pré-colonial possui centenas de sítios arqueológi-
cos que testemunham a longevidade da ocupação desse território
pelos mais variados grupos indígenas, há mais de 11 mil anos AP
(antes do presente) até os dias atuais. A partir do momento em que
grupos de caçadores-coletores entraram no continente americano
e se espalharam por diferentes regiões, passaram a lidar de modo
particular com a realidade que os cercavam. Eles criaram modos
de viver, com ampla gama de artefatos específicos, construindo
estruturas, casas e aldeias com convívio social específicos, levando
a existência de culturas individuais e únicas.
Compreender como essas populações viveram, reverenciaram
seus antepassados e criaram suas culturas, aprendendo a recriar
o mundo e sua cultura material para melhor usufruir de seus
ambientes, é essencial para que a sociedade brasileira conheça os
povos originários a partir de seus processos históricos que levam
os indígenas a viverem como vivem atualmente, com todos seus
conhecimentos e lutas.
Por um lado, a arqueologia traz um grande número de informa-
ção acerca das sociedades indígenas; por outro, a História tem
contribuído mais discretamente para o conhecimento desses
grupos. Isto porque, diferentes condições levam ao registro histórico
enviesado, sobretudo pelo fato de que o registro escrito foi efetuado
por homens, brancos e letrados ao longo da história e pelo número
reduzido de pesquisas históricas relativas às questões indígenas,
há ainda muito por se conhecer sobre as populações nativas do
Brasil após o contato com o europeu.
O já mencionado estudo interdisciplinar entre Arqueolo-
gia Histórica e História efetuado no município de Guarulhos, SP,
apontou que terras indígenas da Sesmaria de Ururaí foram tomadas
por grileiros ao longo de mais de 400 anos, no mesmo ritmo em
que a presença indígena foi sumindo do registro histórico até seu
total desaparecimento (Miranda, 2017; Plens, 2017).

142 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


Diversas limitações apresentadas pelo livro didático podem
ser superadas com o estudo da história em conjunção com a
cultura material. O uso da cultura material em sala de aula visa
compreender os processos históricos ocorridos nas sociedades,
com a inserção dos demais segmentos sociais que não tiveram
voz no registro histórico.
Lima (2014) em uma pesquisa realizada com estudantes de
aproximadamente 10 anos de idade da rede pública municipal de
Londrina, PR, problematizou as histórias das populações indíge-
nas (pré-colonial e histórica) na região. Em uma primeira aborda-
gem em sala de aula com alunos do ensino básico, ela apresentou
uma imagem histórica de Londrina antes da colonização estran-
geira articulada pela Companhia de Terras Norte do Paraná, com
a área ainda florestada que, para receber os novos colonizado-
res, foi derrubada.
A pesquisadora apresentou um questionário para saber sobre
a visão que os alunos tinham acerca de questões indígenas e para
responderem o que viam na imagem apresentada. Além disso, foi
solicitado que as crianças desenhassem aquela mesma área num
passado mais distante, pensando em quem vivia na região antes da
derrubada da floresta. Nos primeiros desenhos, as crianças represen-
taram florestas vazias, com animais africanos, com casas em padrões
recentes, com indígenas sendo caçados e que moravam em tocas.
Após uma série de encontros com os estudantes – nos quais a
pesquisadora apresentou material arqueológico e realizou ativida-
des com recursos materiais, sobretudo arqueológico, refletindo
sobre questões indígenas da região a partir do conhecimento
advindo da Arqueologia –, ela voltou a solicitar que os alunos
fizessem um novo desenho com a visão de que eles tinham sobre
como era a região antes da colonização estrangeira.
Nesses novos desenhos os rios ganharam destaque, como
um eixo da vida cotidiana em uma comunidade organizada, em
que os indivíduos realizavam diversas atividades, com a presença
de famílias, distinção entre homens, mulheres e crianças. Mais
do que isso, os alunos continuaram a representar os animais na
floresta, mas, dessa vez, da Mata Atlântica.
Após os encontros, a pesquisadora constatou que os alunos
conseguiam pela primeira vez compreender o processo histórico
de ocupação indígena há milhares de anos até os dias atuais.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 143


É fato que ao escolhermos narrar uma história, silenciamos
outras (Harari, 2016, p. 184). No entanto, a diversidade da cultura
material permite que troquemos nosso repertório, abramos novas
possibilidades de discussão, que novas pessoas incluam outros
objetos, questionamentos e reflexões nas discussões acerca dos
diferentes processos históricos, segmentos e comportamentos sociais.
Muitos outros pontos, para além das questões indígenas, podem
ser tratados com o emprego da cultura material em sala de aula.
Como discorre Harari (2016, p. 67-8), uma estratégia para fazer com
que as novas gerações entendam as lutas atuais, como as greves
gerais e a luta das mulheres pelos seus direitos, o historiador deve
narrar as origens e a histórias desses movimentos. Dessa forma,

[a] nova história vai explicar que “nossa situação não


é nem natural nem eterna. As coisas uma vez já foram
diferentes. O mundo injusto que conhecemos hoje foi
criado apenas por uma série de eventos ocasionais. Se
agirmos com sabedoria, poderemos mudar este mundo
e criar um muito melhor (Harari, 2016, p. 67-8).

Do ponto de vista da utilização da cultura material para o


ensino em sala de aula, uma reflexão sobre os significados dos
objetos pode despertar interesses, aflições e questionamentos
que levem a debates e pensamentos críticos e criativos sobre a
sociedade. Não se trata, portanto, de uma aula em que o profes-
sor descreva as características dos objetos, mas lance questões
a serem desenvolvidas para reflexão dos alunos. Não há respos-
tas prontas, mas gatilhos de perguntas que visam suscitar outros
questionamentos.
Objetos e paisagens são geralmente naturalizados pela nossa
mente, e frequentemente não nos perguntamos sobre sua origem e
processos históricos. Arqueólogos históricos há muito tempo estudam,
por exemplo, os jardins sob o ponto de vista da cultura material
encontrando relações de poder na elaboração e construção dessa
paisagem (Kelso & Most, 1990; Leone, 1984; Yamin & Metheny, 1996).
A imponência e a complexidade no planejamento de jardins por
botânicos e arquitetos e sua subsequente manutenção são símbolos
de legitimação de riqueza, poder e status social. A constatação de
existência desse arranjo é um marco simbólico da relação que seus
proprietários queriam manter com a sociedade em seu entorno.

144 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


Harari (2016) traça aspectos interessantes para pensarmos
sobre os gramados. Primeiramente, provenientes de jardins de
castelos aristocráticos, o início do emprego de gramados em
jardins nasce no final da Idade Média, tornando-se, portanto, uma
característica das residências da nobreza. Antes disso, nenhuma
outra sociedade parece ter se dedicado tanto à manutenção de
gramados que, sem utilidade prática, demandam terreno, mão
de obra e grande quantidade de água.
Palácios reais, castelos e antigas universidades ainda hoje
usam os gramados como símbolo de poder. Até mesmo no futebol
e no tênis, como lembra o autor, as partidas da elite ocorrem sobre
gramados. Os gramados, assim como os jardins mais abastados
como os do Vale do Loire, na França, são símbolos de concentra-
ção de riqueza, poder político e status social.
Com a Revolução Industrial, primeiramente a burguesia,
mas posteriormente, também, a classe média, cada vez mais com
concentração de dinheiro adotou o uso de jardins com gramados
em suas residências. Nos EUA, os subúrbios passaram a adotar
o gramado, toda a parafernália e o comportamento para a sua
manutenção como uma necessidade de classe. Todos os domingos,
após a missa, o gramado toma boa parte das manhãs dos morado-
res do subúrbio americano.
Atualmente, até mesmo no meio da península da Arábia, o
Museu de Arte Islâmica no Qatar, projetado por uma companhia
americana, possui um jardim com mais de 100 mil m2 de grama!
(Harari, 2016).
Como ressalta o autor, estudamos história não por uma simples
curiosidade sobre os eventos, mas, sobretudo, para a compreen-
são de como nossos comportamentos foram moldados por eles
e quais estratégias e soluções queremos para o futuro da nossa
sociedade.
O exemplo acima demonstra que objetos e paisagens triviais
podem apresentar histórias, comportamentos e relações sociais
ligados a uma série complexa de eventos. Olhar de maneira crítica
e analítica para os objetos pode ser a porta para compreender o
mundo a nossa volta de uma maneira mais criativa. Como dito por
Bittencourt (2017, p. 20), é importante para o cidadão compreen-
der que os direitos de hoje não são concessões por parte do poder
instituído, mas fruto de lutas populares com origens históricas.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 145


Pensando no potencial do uso dos objetos para se compreen-
der as sociedades, o uso de cultura material em sala de aula é
importante para uma conexão mais próxima e mais sensível com
o estudante. Não importa o nível do estudante, do Fundamental ao
Universitário, os objetos aproximam histórias abstratas com algo
mais concreto e palpável. O material traz as experiências vividas
pelo indivíduo, ele aguça a memória a partir de todos os sentidos
(o tato, olfato, visão, audição e mesmo paladar). Cada pessoa já
presenciou, experimentou o mundo de determinada maneira e
tem como participar de discussões sobre as representações dos
objetos sob diferentes ângulos.
Como explica Harari (2016, p. 242-3), na Europa medieval a
fórmula para o conhecimento era Conhecimento = Escrituras x Lógica.
Na Revolução Científica o conceito mudou, Conhecimento = Dados
Empíricos x Matemática. No primeiro caso, para ter conhecimento
era necessário ler as escrituras e usar a lógica para interpreta-
ção dos significados para as questões que se buscava solucionar.
Já no segundo caso, o conhecimento é regrado pelo empiricismo,
ou seja, medindo e replicando modelos para saber se ele é correto
por meio da corroboração dos dados.
No entanto, na área das Humanidades o empiricismo não é
possível, o pesquisador jamais conseguirá replicar em laboratório
um processo histórico. Dada a quantidade infinita de variáveis,
além da necessidade de submeter pessoas às mesmas condições
de vida ser algo impossível, o empiricismo não prevalece nessa
área. Nesse caso, o conhecimento ganha uma nova fórmula:
Conhecimento = Experiências x Sensibilidade. A experiência
abarca todas as sensações e pensamentos que possam emanar do
indivíduo, o repertório cultural construído por suas experiências
de vida. Cada um se relaciona de maneira única com os objetos
a sua volta.
Sensação, frio, calor, tensão, emoção, medos, raivas, compai-
xão, entre outros, são sensibilidades que cada indivíduo desenvolve
sobre um determinado objeto (também, lugares e paisagens) em
determinadas situações. Nesse sentido sensibilidade para fins de
conhecimento é uma análise consciente da conjunção de sensações,
emoções e pensamentos que um determinado objeto ou aconteci-
mento exerce sobre o indivíduo. Trata-se de uma reflexão interna
de cada pessoa.

146 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


A sensibilidade, portanto, não se aprende somente com conteú-
dos de livros ou com palestras, mas com experiências individuais
(Harari, 2016, p. 244).
Após evocar a memória de vida pessoal, o educador pode
ultrapassar este nível de experiências e sugerir o uso da empatia,
fazer com que o estudante pense nas demais pessoas, se colocando no
lugar de outros segmentos sociais que viveram diferentes experiên-
cias a partir de acontecimentos históricos; que eles imaginem
a ligação de processos históricos do passado com a atualidade.
Além disso, que estudantes critiquem as tradições que carrega-
mos por conta de processos históricos e pensem em estratégias
criativas para melhorar nossa sociedade.
O ponto de partida é o professor conhecer seus estudantes e
suas origens, entender suas histórias e comportamentos, fazer com
que o estudante reflita seu papel dentro da história coletiva. Um
professor com boa formação universitária deve ter o preparo de
pesquisador para extrapolar o limite dos livros didáticos e pesqui-
sar novas bibliografias para se aprofundar em novos temas que
os alunos tragam em suas discussões.
Mais do que isso, para compreender a complexidade humana,
objetivo máximo da área das Humanidades, é preciso transpor os
limites instituídos pelas disciplinas, é necessário um olhar mais
atento para a geografia, antropologia, medicina entre outras, com
a finalidade de se compreender as relações dos processos que
definem o comportamento humano.
Comportamentos supostamente triviais podem alertar formas
de poder e subjugamento. Nabhan (2013, p. 16-7) descreve uma
situação inusitada a qual presenciou em sua juventude nos EUA.
Acostumado a levar mantimentos doados pelo governo federal
para as populações indígenas do México, ele foi solicitado por
seu amigo, Gabriel, para ajudá-lo a levar leite em pó para sua vila
indígena, Pima. Após colocar as caixas de leite na traseira de seu
carro, ambos se dirigiram para a vila onde Gabriel pediu para
que ele descarregasse as caixas na quadra de baseball. Ao que
Nabhan respondeu negativamente, ele poderia sem problema
algum passar de carro em todas as casas e deixar o leite para
cada família.
Nabhan estava mesmo entusiasmado em poder, finalmente,
levar às famílias indígenas alimentos mais saudáveis e nutritivos.

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 147


Em suas experiências anteriores em levar mantimentos para as
populações indígenas do México, ele costumava transportar comidas
enlatadas, com muita gordura, açúcares e sódio.
Gabriel disse que não precisava levar as caixas de leite nas
casas. Era preferível que ele as deixasse na própria quadra, onde
o leite seria mais útil. Intrigado, Nabhan perguntou como que o
leite seria útil na quadra. Gabriel disse que demarcaria as bases
da quadra com o leite em pó (cultura material). Ele usaria todo o
leite doado pelo governo para demarcar a quadra!
Como ele podia ser tão displicente com um mantimento
doado pelo governo, perguntou Nabhan. Ao que Gabriel respon-
deu que todas as famílias tinham caixas e mais caixas de leite
que recebiam todos os meses e estavam estocadas em suas casas.
Não precisavam de mais. E, ainda, que o governo sabia que eles,
assim como grande parcela de população indígena, é intolerante
à lactose. Sua comunidade simplesmente não podia ingerir leite.
Obviamente que o governo sabia desse aspecto nutricional
dessa população e não se tratava de um equívoco sem importân-
cia. Sob uma leitura mais ampla sobre as medidas governamentais
para com as populações indígenas americanas, o fornecimento
de alimentos pelo governo é uma estratégia política adotada
para fragilizar ainda mais esse segmento social. Nesse caso, uma
compreensão de aspectos históricos, biológicos e de saúde sobre
os índios, ajudam a revelar comportamentos e estratégias veladas
de poder e resistência em um conflito de longa duração.

Os aspectos materiais e
psicológicos da opressão
O uso da cultura material ultrapassa o ensino de história do
passado, mas deve ser também usado para repensar criticamente
a história do tempo presente.
Muito se fala sobre a importância do patrimônio, os bens
culturais reconhecidos por instituições responsáveis pela
salvaguarda patrimonial, para a manutenção da identidade
cultural e preservação histórica e da memória de um povo. A
partir desses patrimônios, uma série de atividades de educação

148 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


patrimonial é desenvolvida com a finalidade de se conhecer a
história desse bem cultural e as pessoas envolvidas com ele.
Pouco se discute, contudo, sobre a patrimonialização ser
uma escolha realizada por um grupo seleto de pessoas que, a
partir de seu repertório de conhecimentos e seus valores morais,
escolhem, em nome da sociedade, o que será patrimonializado,
ou seja, quais bens merecem e serão reconhecidos como de maior
valor social e quais receberão verbas públicas para suas proteções
em detrimento dos demais bens culturais.
Dessa forma, pouco se debate quais bens foram preteri-
dos para proteção dos bens patrimonializados e, tampouco, as
consequências dessas escolhas. A patrimonialização, assim como
a educação por meio do uso de alguns elementos materiais em
detrimento de outros, guiam a perspectiva histórica do que está
sendo narrado, reforçando algumas histórias e memórias e invisi-
bilizando tantas outras.
Se a patrimonialização nos permite criar identidades e laços
sociais, o contrário também é verdadeiro. Ao não se reconhecer
o patrimônio de diferentes segmentos sociais, se retira o direito
da manutenção da história de determinados grupos, que pouco
a pouco, vão perdendo seus símbolos, suas histórias, e o respeito
pelas suas identidades pelo grupo social hegemônico. Conjunta-
mente com suas memórias, histórias e identidades, a retirada de
uma série de direitos econômicos, sociais e culturais (Dulitzky,
2022), culminam com a expropriação de seus territórios e a violação
máxima dos direitos, o direito à vida (Plens, 2022), o processo
colonial completo.
Atualmente, no Brasil, a depredação de monumentos que
simbolizam como heróis os perpetradores de genocídios contra
indígenas tem ganhado destaque. Usaremos como exemplo os
casos dos monumentos do Borba Gato e o Monumento à Bandeira,
ambos de São Paulo.
Nesse debate é possível destacar três posições: a primeira,
daqueles que suscitaram o debate, e que entendem esculturas
como o Borba Gato e Monumento às Bandeiras como ofensi-
vos e, por não terem atendidas suas reivindicações de justiça
social para os povos originários, culminam com atos simbóli-
cos de ataques a esses monumentos controversos a fim de
destruir esses símbolos, como último recurso diante da falta

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 149


de abertura para discussão e proposições para solucionar o
problema. Por outro lado, há pesquisadores, acadêmicos entre
outros, que opinam que esses monumentos devem ser preser-
vados de qualquer forma no local, mesmo que seja para servir
como marco histórico para uma análise crítica sobre o papel
desses personagens na história.
Uma terceira possibilidade de leitura, aqui defendida pela
autora, é que esses monumentos sejam retirados de seus locais
originais e transportados para lugares onde a reflexão sobre seus
significados seja devidamente explorada a partir da Educação
Patrimonial. A preservação de monumentos de genocidas
expostos como símbolos representativos de um pensamento de
uma determinada época, no mesmo local escolhido por essa
sociedade do passado, que conferiu prestígio ao colocar esses
símbolos em lugares estratégicos para serem cotidianamente
vistos pela sociedade e terem sua memória e admiração por seus
feitos lembrados, aponta que a sociedade atual compartilha do
reconhecimento desses personagens como símbolos a serem
preservados como foram forjados.
Não é verdade que esses monumentos inseridos no contexto
da cidade leve a sociedade a uma reflexão das ações hoje conside-
radas criminosas. Deixar esses símbolos ocupando o mesmo lugar
que outrora mostra que ele ainda é um símbolo para a sociedade
atual. E na cidade, entre o trânsito de pessoas, esse debate crítico
não ocorrerá, pois não há contrapropostas em formas de monumen-
tos e símbolos para contrastar e para fazer a sociedade pensar
criticamente. No vai e vem do trânsito e na correria do dia a dia, a
sociedade não é suscitada a pensar criticamente na cultura material
e símbolos; a mensagem que fica é que esses personagens merecem
ainda hoje destaque na sociedade, tal qual a própria definição de
monumentos: obras destinadas a transmitir ou a perpetuar para a
posteridade a lembrança de um determinado evento ou persona-
gem seja pela grandeza ou pela sua magnificência.
Há, contudo, vários outros espaços em que esses persona-
gens devam ser preservados e discutidos criticamente: museus
e centros culturais, onde haja de fato uma proposta crítica.
Se esses monumentos são abjetos para parte da sociedade
que entende a dimensão das violações cometidas pelas popula-
ções indígenas, eles são ainda mais repugnantes para os povos

150 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


originários e seus descendentes que assistem à violência sistêmica
desde a colonização até os dias atuais. O exercício de se colocar
no lugar do outro e pensar que muitas pessoas que tiveram seus
parentes e entes queridos violentados pelo ataque histórico contra
os povos indígenas tenham que olhar esses monumentos todos
os dias quando circulam por esses e demais monumentos deve
apontar a tamanha perversidade que é a manutenção desses
monumentos em lugares de destaque nas cidades.
Fazer com que a sociedade naturalize uma figura que representa
o genocídio de seus antepassados, ou de um segmento importante
da sociedade, não é uma questão patrimonial, mas de injustiça
social.
Dessa forma, é importante que os monumentos sejam retira-
dos do lugar original para simbolizar uma ideia e um valor moral
da época. Caso contrário, a mensagem que ele passa é que esse
valor moral de violação de todos os direitos humanos contra os
povos originário é ainda possível de ser aceito socialmente.
Nesse contexto de controvérsia, por conta da injustiça social,
as reivindicações quando não atendidas por meio da justiça legal,
leva a revolta. E o fogo e pixações nada mais são do que novos
símbolos, fruto da sociedade contemporânea e da leitura crítica
que elas fazem desses monumentos e dos valores da atualidade.
A Educação Patrimonial, por meio da cultura material, deve
se guiar pela perspectiva de mostrar a realidade das pessoas para
que elas possam traçar estratégias da coletividade.

Considerações Finais
Embora a cultura material de diversos períodos e eventos
históricos tenham o potencial de ser explorados em sala de
aula, optamos por utilizar no capítulo exemplos de questões
indígenas, do passado e do presente, pois em toda a América
esse segmento social é o mais carente de políticas públicas de
toda a natureza, inclusive, no Brasil, nem ao menos direito à
cidadania as populações indígenas têm assegurado, sendo ainda
hoje tutelados pelo Estado.
Questionar, analisar, refletir e criar na área das Humani-
dades é um exercício que requer repertório de conhecimento

Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural 151


amplo. Para que essa postura crítica chegue ao ensino básico e
venha atingir toda a sociedade, é necessário que a universidade
se recrie, de forma que ela assuma o compromisso de inclusão
de outros segmentos sociais como objeto de pesquisa na univer-
sidade, de modo a democratizar a História, englobando parcelas
da sociedade que recorrentemente são excluídas dela.
Outro compromisso, como extensão do primeiro, é a publicação
dos conhecimentos produzidos na academia em livros acadêmi-
cos para a difundi-lo tanto entre os pesquisadores, quanto entre
os professores. É a partir da transmissão desse conhecimento,
em obras de leituras mais completas do que os livros didáti-
cos (e livro do professor), que os professores de 1º. e 2º. graus
poderão ampliar seus repertórios de conhecimento e propor
novas abordagens para a História a partir da cultura material.
Ir para além dos limites impostos pelo livro didáticos é essencial,
pois eles tendem a ser limitados quanto às diversas perspectivas
que se pode olhar para um mesmo evento.
A partir do momento em que o conhecimento produzido na
área de Humanidades no nível universitário circule mais entre
os professores e sociedade, a difusão do saber poderá atingir
cada vez mais o ideal democrático de acesso ao conhecimento
e saber, de modo a não se manter as barreiras de conhecimento
tão grandes entre os segmentos sociais do presente por razão de
falta de acesso ao conhecimento e ao ato reflexivo.

152 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


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OS RECURSOS E OS ACERVOS COMO
RECURSOS DIDÁTICOS

Cláudia R. Plens

Como foi visto ao longo desse livro, a confecção e o uso de


materiais são inerentes a nossa condição humana. Desenvolve-
mos nossa cultura e nossas habilidades a partir do manejo dos
objetos e somos, também, pautados por essa materialidade.
Porém, apenas muito recentemente na nossa história compreen-
demos o conjunto dessa materialidade de forma diferente, como
portadora de conteúdo, da história das relações humanas impres-
sas na materialidade.
Conforme observa Ailton Krenak, em Os Lugares de Origem,
a cultura material, como recurso, é aquilo que você usufrui em
sua vida. É aquilo que você utiliza de forma inconsciente. Mas, a
partir do momento em que você toma consciência do conjunto do
material e do significado que ele possui, ele passa de um simples
recurso para um acervo.

O recurso é aquilo que você frui na vida, é como mudar


de paisagem e experimentar a brisa, o vento, o cheiro, o
bem-estar de um lugar saudável, e descobrir que o outro
lugar que você veio estava poluído, era sujo e insalubre.
Depois que você experimentar o bem-estar de fruir um
recurso, [tudo modifica]. Ele não é um acervo disponível,
[porque] você não tem consciência desse acervo, não sabe
que do outro lado da montanha você pode respirar ar puro;
você está do lado de cá da montanha, e se atravessar o lado
de lá vai respirar ar puro, beber água limpa. Vai fruir um
recurso. É diferente da ideia de você ter um acervo. Nesse
conceito de acervo, você está aqui deste lado da montanha,
mas sabe que do outro lado da montanha tem disponível
um conjunto de bens, de coisas que você pode ter contato
(Ailton Krenak, Os Lugares de Origem, 2021, p. 25-26).

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Segundo Ailton Krenak, quem detém o conhecimento sobre o
que há no outro lado, tem potencial para a construção de narrati-
vas para aqueles que ainda não observaram esse outro lugar. Dessa
forma, o autor mostra o poder e a potência da subjetividade nos
processos de comunicação.
Como exemplo, Krenak usa o crime socioambiental ocorrido
no rio Doce, em 2015. Os não indígenas, de pronto, narravam o
evento como a morte do rio Doce, dando por findada qualquer
possibilidade de recuperação do rio. Em contrapartida, os Krenak,
que têm o rio Doce como sagrado, afirmavam que o rio estava
em coma. Com isso sublinhavam a esperança na recuperação do
“Watu” e que ações nesse sentido eram necessárias.
As narrativas não são neutras; elas compreendem os fatos a
partir de determinadas perspectivas e, dependendo do poder ou
das articulações dos intérpretes, têm força para instituir visões
e versões sobre o passado. Assim, por meio do regramento de
livros didáticos e do patrimônio, representantes do Estado e suas
leituras sobre passado, elegem quais bens se tornarão “patrimônio”
e quais história serão escolhidas para compor o seleto conjunto
de narrativas sobre o passado.
A patrimonialização de bens culturais é o resultado de escolhas
que, ao valorizarem determinados remanescentes do passado,
colocam no plano das ausências outros possíveis. Num jogo de
presenças que se sobrepõem e ausências que são esquecidas,
a narrativa sobre o passado numa dada sociedade não só elege
como sujeitos determinados grupos em detrimento de outros,
mas, também, podem ser naturalizadas com o passar do tempo.
O Estado classifica e inventaria determinados objetos por
ele escolhidos como narrativas do passado, a serem protegidos
em detrimento dos demais bens. E, assim, a sociedade passa a
visualizar o patrimônio que foi eleito como narrativa do passado e
guarda na memória essa história e, ao longo do tempo, se esquece
das demais.
E a beleza de sociedades multiculturais se perde para uma
história hegemônica.
Como enfatiza Elizabeth Jelin, “a distância temporal comprime
memórias.” A revisão sobre os eventos precisa, por essa razão, ser
sempre efetuada. Em La Lucha por el Pasado, a autora aponta que
a memória é algo aberto, que está sempre passível de revisão e

158 Ensinando o passado por meio do Patrimônio Cultural


reinterpretação, pois as dívidas com o passado não estão resolvi-
das, nem em termos institucionais, nem simbólicos.
O ocultamento e o consequente esquecimento dos fatos por
conta de narrativas enviesadas, ou a negação dos eventos, não
apaga as consequências e traumas gerados pelos acontecimen-
tos, apenas os reprime. Mas as consequências do privilégio das
escolhas históricas se refletem na sociedade a partir das diferen-
ças e injustiças sociais que culminam em múltiplas formas de
violências.
Para uma sociedade com melhor convívio, é necessário que
os eventos históricos sejam retrabalhados de tempos em tempos,
revistos sob novos enfoques e novos dados, para que haja a reelabo-
ração dos fatos para que novas políticas públicas contemplem a
história de todos e permitam um futuro mais justo para o coletivo.
É dentro dessa perspectiva que a História - por meio da Educação
Patrimonial com o uso de objetos, desde os itens de pequeno porte,
até a arquitetura e a paisagem -, deve ser desnaturalizada. Sabemos
que cada presente apreende o passado a partir de suas questões
e problemas; neste sentido, o historiador deve produzir novas
perguntas, na tentativa de construção de um pensamento crítico
que agregue novos conhecimentos e nos permita traçar estraté-
gias mais justas e democráticas para o futuro.
É nesse intuito que esse livro foi redigido, uma primeira tentativa
interdisciplinar entre historiadores, arqueóloga e arquiteto da
Universidade Federal de São Paulo, de visualizar a materialidade
sob diferentes prismas para a Educação Patrimonial.
O capítulo de Odair da Cruz Paiva nos faz repensar sobre as
exposições museais como fonte didática. Lucília Santos Siqueira
propõe a observação dos bens tombados para repensar a história
social, Fernando Atique, por sua vez, propõe um material didático
alternativo a partir de reconstruções gráficas virtuais para o ensino
de história e, finalmente, em meu capítulo tento mostrar que toda
e qualquer materialidade pode ser utilizada para compreensão do
comportamento humano e nos fazer repensar no nosso próprio
lugar na história.
Todos temos acordo que a neutralidade do conhecimento
não existe. De todo modo, devemos ter em mente abrangência
do repertório contido nas narrativas que transmitimos para que
o ensino de história seja mais ético e justo com os segmentos

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sociais que foram – e ainda são – historicamente subalternizados
e não seja um instrumento que privilegie a cultura hegemônica.

Referências
Jelin, Elizabeth. La Lucha por el Pasado: Cómo construímos la memória social.
Buenos Aires: Siglo Veinteuno Editores, 2017.

Krenak, Ailton e Campos, Yussef. Lugares de Origem. São Paulo: Editora


Jandaíra, 2021.
Sobre os autores

Cláudia R. Plens é professora de “Arqueologia Histórica”


do Departamento de História da Universidade Federal de
São Paulo – UNIFESP, onde atua também no Programa de
Pós-Graduação em História da Unifesp. Líder do Grupo
de Pesquisa CNPq Territórios e Direitos Humanos (TDH)
e Núcleo de Estudo e Pesquisa em Arqueologia e Antropo-
logia Forenses (NEPAAF) e bolsista produtividade em
pesquisa do CNPq, nível 2.

Fernando Atique é professor associado de História,


Espaço e Patrimônio Edificado no Departamento e no
Programa de Pós-Graduação em História da Universi-
dade Federal de São Paulo - UNIFESP. Líder do Grupo de
Pesquisa CAPPH – Cidade, Arquitetura e Preservação em
Perspectiva Histórica (CAPPH) e bolsista produtividade
em pesquisa do CNPq, nível 2.

Lucília Santos Siqueira é professora de “História, Memória


e Patrimônio” do Departamento de História da Universi-
dade Federal de São Paulo-Unifesp, onde também atua no
Professora de História, Programa de Mestrado Profissional
de Formação de Professores de História.

Odair Paiva é professor no Departamento e no Programa


de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de
São Paulo – UNIFESP.

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