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Cláudia R. Plens
(Coordenação Editorial)
ENSINANDO O PASSADO
POR MEIO DO PATRIMÔNIO
CULTURAL
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO
ESCOLA DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
Reitor
Prof. Dr. Nelson Sass
Vice-Reitora
Prof.ª Dr.ª Raiane Patrícia Severino Assumpção
Diretor da EFLCH-Guarulhos
Prof. Dr. Bruno Konder Comparato
Vice-Diretora da EFLCH-Guarulhos
Prof.ª Dr.ª Sandra Regina Leite de Campos
ENSINANDO O PASSADO
POR MEIO DO PATRIMÔNIO
CULTURAL
Cláudia R. Plens
(Coordenação Editorial)
Copyright © 2022 - Universidade Federal de São Paulo
Revisão de texto
O conteúdo dos textos e seus dados em sua forma, correção e
confiabilidade são de responsabilidade dos respectivos autores
Projeto gráfico
MC&G Editorial
Diagramação
Glaucio Coelho
Ilustração de capa :
Bruno Menegatti
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-87312-73-6
PREFÁCIO 7
Nossa História 21
As narrativas dos eventos 21
Objetos e Patrimônio 22
O ensino de história dos bens culturais 23
Armadilhas da educação 25
Introdução 29
Considerações sobre a formação dos museus 31
Relações entre museus e escolas 40
Musealização: presenças e ausências em exposições 47
Considerações Finais 56
Introdução 125
O tempo em movimento: a história pela perspectiva temporal 127
O tempo, o espaço, o movimento, as ideias e as identidades 129
O tempo em suspenso 135
O paradoxo do tempo nas ideias em movimento 137
O ensino de História a partir de uma perspectiva crítica da
cultura material 139
Objetos da história na sala de aula: pelo direito de refletir
outras histórias 140
Os aspectos materiais e psicológicos da opressão 148
Considerações Finais 151
POSFÁCIO 157
Os recursos e os acervos como recursos didáticos 157
Cláudia R. Plens
Os caminhos do patrimônio na
formação de professores de História
7
têm dado nas orientações de trabalhos de conclusão de curso
que apresentam essas interfaces. Essas experiências também
se desdobraram nos cursos de Pós-Graduação em História de
perfil mais acadêmico (PPGH – UNIFESP) e do Mestrado Profis-
sional em Ensino de História (PROFHISTÓRIA – Núcleo UNIFESP)
nos quais os docentes também começaram a orientar e formar
novos pesquisadores.
Muito do que aqui foi escrito faz parte da construção coletiva
de um projeto de curso, hoje consolidado, do campo de estudos do
patrimônio e baseado na ampla experiência profissional desses
autores com a Museologia, a Arquitetura e a Arqueologia, bem
como nas relações entre Educação e Patrimônio por meio de bens
tangíveis e intangíveis.
Embora seja inegável que o Ensino de História se transformou
em um campo de estudos com grande autonomia, não é menos
verdade que sem o diálogo com profissionais de áreas como a
do patrimônio, a formação de professores de História estaria
incompleta. No meu entender, os estudos do patrimônio criam
as condições de inteligibilidade para produção do conhecimento
histórico, ampliando as possibilidades de atuação dos profissio-
nais da história dentro e fora das salas de aula. Ninguém pretende
ensinar ao professor como “inventar a roda”, mas sabe-se que
não é possível seguir nessa jornada sem consultar aqueles que se
puseram a pensar previamente sobre sua construção do processo
ensino-aprendizagem em História.
Estamos num momento histórico difícil e distópico na sociedade
brasileira com o advento de um neoautoritarismo ressentido,
do limiar de rompimento com as instituições democráticas, das
doenças coletivas propagadas em um mundo que ao se tornar
cada vez mais interligado parece, ao mesmo tempo, estilhaçar
vidas, rumos e suas materialidades.
Nesses tempos de comunicação por redes sociais e por outros
aparatos tecnológicos como sucedâneos da realidade são fabrica-
das fake news e têm se perpetuado negacionismos que retroali-
mentam esse neoautoritarismo. Começamos a perder, portanto,
os parâmetros dos benefícios que esses recursos tecnológicos
podem nos trazer e, consequentemente, passamos a questio-
nar se de fato a democratização digital um dia trará a igualdade
prometida. Como sinal desses tempos “digiatópicos”, pululam
SILVA, Vera Lúcia Gaspar da; SOUZA, Gizele de; CASTRO, César Augusto
(orgs.). Cultura material escolar em perspectiva histórica: escritas e possibili-
dades. Vitória: EDUFES, 2018.
Cláudia R. Plens
Nossa História
A história é costumeiramente narrada a partir de eventos
transformadores para a sociedade. A cada problema imposto aos
grupos culturais, seja da ordem ambiental ou social, as culturas
foram se adaptando por meio das modificações no ambiente a
partir da confecção de novos objetos e técnicas.
Assim sendo, os problemas do cotidiano, na adaptação dos
nossos antepassados ao meio ambiente, possibilitaram vários
avanços na criação e uso das culturas materiais.
Quando as sociedades estavam totalmente adaptadas ao
meio ambiente e sem crises no meio em que viviam, as culturas
passaram por longos períodos de estabilidade social, com poucas
variações no estilo de vida e em toda a cultura material.
No entanto, na medida em que as sociedades entram em
crise e precisam se reestruturar em busca de equilíbrio, surgem
novas formas de viver e compreender o mundo em que se vive,
pautadas por novas tecnologias e objetos. Dessa forma, devemos
compreender que todos os eventos transformadores, por defini-
ção, foram precedidos por momentos de crise.
21
particular sobre o mundo –, quanto a determinados acontecimen-
tos e fatos. Assim, considerando que as pessoas são diferentes e
têm histórias de vida distintas, cada um interpretará os mesmos
acontecimentos à sua maneira.
Objetos e Patrimônio
Todo objeto que foi confeccionado e/ou utilizado por pessoas
é passível de interpretação. A arqueologia estuda os mais variados
objetos para compreensão do comportamento humano. No entanto,
outras disciplinas também se ocupam de objetos para analisar
diferentes aspectos sociais, como a arquitetura, artes, antropo-
logia etc.
Diferentes cientistas, portanto, enxergam na materialidade os
significados históricos e sociais cumpridos pelos objetos dentro
das relações sociais humanas. No entanto, na sociedade contem-
porânea, apenas uma pequena parcela dos objetos do passado é
eleita patrimônio, por um determinado grupo de pessoas que são
selecionadas para representar a sociedade na escolha de quais
objetos merecem receber maior cuidado (e financiamento) para
sua proteção.
Desse modo, se por um lado diferentes pesquisadores focam
em determinados papéis performados pelos objetos, por outro os
patrimônios também são passíveis de diferentes olhares, possuindo
uma dimensão política bastante importante de ser estudada.
Nesse mundo focado no universo patrimonial eleito por um
seleto grupo de pessoas, pouca atenção é despendida para objetos,
monumentos e paisagens que não ganharam distinção prévia.
A escolha dos bens a serem patrimonializados nada mais é
do que uma nova forma de narrativa da história, em que o Estado,
por meio de suas instituições, narra os eventos a partir de sua
perspectiva e interesse político dos fatos.
Ao se atribuir a categoria de patrimônio a alguns bens culturais,
esse objeto ganha outro caráter e passa a exercer outra perfor-
mance na sociedade. Busca-se passar uma ideia da história a
ser narrada a partir da sublimação do bem cultural. O patrimô-
nio, que como qualquer objeto possui características que podem
descrever a sociedade, passa a exercer outra função, agora de
Armadilhas da educação
Direito à educação é uma das prerrogativas reconhecidas pela
Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, que afirma que:
Introdução
A presença de estudantes em museus é algo comum e, no
geral, valorizada por escolas, alunos, professores, pais e, claro,
agentes responsáveis pelos museus. No entanto, ao lado desse
sentido positivo há uma série de questões que estão ausentes
e que determinam os resultados das visitas. Trabalhei durante
vários anos no setor de pesquisa documental do Memorial do
Imigrante – atual Museu da Imigração –, em São Paulo, e tive a
oportunidade de presenciar muitas visitas de alunos e profes-
sores naquele espaço. A partir disso, compreendi aos poucos a
dinâmica complexa subjacente às visitas de grupos escolares.
No campo das ausências, temos elementos como o trabalho
feito em sala de aula com os alunos pelos professores, a presença
de empresas “especializadas” nesse tipo de visita, seus monitores
que muitas vezes assumem a função dos professores na condução
da atividade no museu, as expectativas dos alunos com o “passeio”,
o gradiente de compreensões sobre o que vem a ser um museu e
as exposições, tanto por parte dos alunos quanto dos professores,
as noções sobre o que é a História, as expectativas e o trabalho
daqueles que compõem as equipes do setor educativo da institui-
ção – quando elas existem – etc.
Assim, há muitos fatores que influenciam a relação entre os
museus e as escolas. Entendo que as abordagens que farei ao longo
deste capítulo deixarão ao largo vários e importantes elementos
contidos na presença de alunos nessas instituições. Isto posto,
quero direcionar meu diálogo aos professores de História bem
como delimitar o campo museal aos museus de História. Em outros
29
termos, apresentarei algumas dimensões explicativas desse campo
e que, em certa medida, não fazem parte da formação dos profes-
sores da área de História.
Importante frisar que não incorrerei no equívoco de ensinar
os(as) professores(as) de História a exercerem seu ofício numa
visita aos museus; as razões para tal são óbvias. Entretanto, há
questões no campo museal que devem ser discutidas e que auxiliam
a compreensão da relação entre museus e escolas.
Em visitas a museus, docentes e discentes estão expostos à
presença de artefatos organizados para embasar narrativas que, em
muitos casos, não demonstram com clareza sua intencionalidade.
Na sedução produzida por tridimensionais “exóticos”, “curiosos”
“exemplares” ou “únicos”, a contemplação lúdica não deve ser a
única. Por isso minha proposta, aqui, é apresentar algumas questões
básicas do campo a fim de que os(as) docentes compreendam
várias dessas ausências presentes nas visitas a museus. Enfati-
zarei, assim, três núcleos principais: a formação dos museus, as
relações entre museus e escolas, e o processo de musealização.
Produzirei um panorama preliminar sobre questões presen-
tes no campo da Museologia que informam as práticas museais
(presenças), mas que não emergem de maneira explícita nas exposi-
ções (ausências). Esse será o ponto que norteará a nossa reflexão.
Ademais, visitas a museus são mais produtivas se compreender-
mos as ações e linguagens que permeiam esse campo, haja vista
que museus e exposições são produtos de processos que envolvem
intencionalidades, de maneira que não devemos naturalizar o
que vemos.
Visando discutir esse assunto, estruturei este capítulo em três
seções. Nas Considerações sobre a formação dos museus, apresenta-
rei elementos que nos permitem melhor compreender a formação
dos museus de História em um processo de longa duração, que
remonta à Grécia Antiga e culmina na forma moderna de museu
criada durante a Revolução Francesa. Em Relações entre museus e
escolas, explorarei aspectos da historicidade dessa relação, entre
as décadas de 1940 e 1980, e farei alguns apontamentos sobre a
produção de materiais didáticos pelos museus. Em Musealiza-
ção: presenças e ausências em exposições, tratarei a musealização
enquanto um processo que envolve um conjunto amplo de ações,
etapas e sujeitos. A musealização é, portanto, um empreendimento
1 De acordo com Misan (2008, p. 3), “Foi em 1956 que Sólon Borges dos Reis então Diretor
Geral do Departamento de Educação […] propôs ao Secretário Vicente de Paula Lima a
criação dos primeiros museus históricos e pedagógicos (MHP): MHP Prudente de Morais
(Piracicaba), MHP Campos Salles (Campinas), MHP Rodrigues Alves (Guaratinguetá), e
MHP Washington Luís (Batatais). A intenção era criar centros de memória e de pesquisa
acerca da vida dos quatro presidentes republicanos oriundos do estado de São Paulo”.
Escola Museu
Objeto: recolher, conservar,
Objeto: instruir e educar.
estudar e expor.
Cliente cativo e estável. Cliente livre e passageiro.
Cliente estruturado em função da idade Todos os grupos de idade sem
ou da formação. distinção de formação.
Possui exposições próprias ou
Possui um programa que lhe é imposto,
itinerantes e realiza suas atividades
pode fazer diferentes interpretações,
pedagógicas em função de sua
mas é fiel a ele.
coleção.
Concebida para atividades em grupos Concebido para atividades geralmente
(classe). individuais ou de pequenos grupos.
Tempo: 1 ano. Tempo: 1 h ou 2 h.
Atividade fundada no livro e na palavra. Atividade fundada no objeto.
Exposição
Sentir-se confuso(a) quando da visita a um museu é algo comum.
Essa sensação, inclusive, foi capturada por autores que tentaram
compreender suas visitas a museus. Cito um deles: Paul Valéry.
Talvez o mais conhecido, esse autor descreve, em O problema dos
museus, sua experiência com esse tipo de instituição:
Musealização
Cultura Material
Considerações Finais
Neste capítulo, explorei algumas das questões que estão no
entorno das relações entre os museus e as escolas. A frequência de
grupos escolares museus é consequência da mudança na concepção
do senso comum acerca desses espaços, na qual eles seriam lugares
apartados da sociedade por se tratarem de territórios nos quais se
guardariam somente coisas velhas. Essa perspectiva interpreta os
museus como locais pouco interessantes para o contexto social,
cultural e econômico – que costuma valorizar apenas aquilo que é
novo, o que está na moda, a última tecnologia, e por aí vai. Sabemos
dos riscos trazidos pela sedução daquilo que é efêmero, especialmente
quando isso se traduz no frenesi das mercadorias, das imagens e
das mensagens veiculadas pelas redes sociais.
Não desejo reiterar aqui todas as questões tratadas neste
texto. Mesmo assim, creio que vale mencionar que as visitas de
Referências
ABREU, Regina. A Fabricação do Imortal: memória, história e estratégias de
consagração no brasil. Rio de Janeiro: Lapa / Rocco, 1996. 212 p.
BITTENCOURT, José das Neves. Cada Coisa em Seu Lugar: ensaio de interpre-
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Paulo, v. 8/9, p. 151-174, 2003. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/
anaismp/article/view/5372/6902. Acesso em: 02 jun. 2021.
CASTRO, Ana Lúcia Siaines de. O Museu do Sagrado ao Segredo. Rio de Janeiro:
Revan, 2009. 196 p.
LEFEBVRE, Henry. O Direito à Cidade. São Paulo: Editora Moraes, 1991. 145 p.
Tradução Rubens Eduardo Frias.
LIMA, Solange Ferraz de; CARVALHO, Vânia Carneiro de. Patrimônio e Objetos
do Cotidiano. In: CARVALHO, Aline; MENEGUELLO, Cristina. Dicionário
Temático de Patrimônio: debates contemporâneos. Campinas: Ed. Unicamp,
2020. p. 185-188.
SETTON, Maria das Graças J.; OLIVEIRA, Mirtes Marins de. Os Museus Como
Espaços Educativos. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 33, p. 1-23, 2017.
VALÉRY, Paul. O Problema dos Museus. Ars (São Paulo) On Line, São Paulo, v.
6, n. 12, p. 31-34, 2008. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ars/article/
view/3039/3728. Acesso em: 22 jun. 2022.
Lucília S. Siqueira
63
Neste texto lidamos apenas com bens protegidos oficialmente
porque, em geral, fornecem exemplos de casos mais conhecidos
por professores e estudantes e mais recorrentes no currículo. De
todo modo, as propostas aqui apresentadas, de tratamento in loco
de edificações, são válidas para bens que estão sob proteção do
estado e para bens que, mesmo oficialmente desprotegidos, são
objeto de valorização, constituindo-se em referência para um ou
mais grupos da sociedade, com ressonância que pode se restringir a
um bairro, a um município, alcançar uma região ou ser considerado
relevante até por gente de outros países.1 De toda maneira, pode
ser um exercício interessante contrastar um prédio tombado de
dimensão monumental, de uma região central, nascido no seio das
elites, com um prédio que não recebeu proteção oficial, localizado
em área mais distante do centro e cujo significado não ultrapassa
determinados grupos, além de apresentar materialidade mais singela.
Cada bem cultural protegido é um vestígio do passado, uma
parte do passado que permaneceu até o presente. Embora saibamos
que o passado é inalcançável - justamente porque já passou -, uma
parte dele restou e está acessível por sua materialidade. Isso não
é pouca coisa para professores de História que frequentemente
não dispõem de imagens fílmicas ou fotográficas captadas direta-
mente dos seus objetos, como montanhas, rios, plantas, vários tipos
de impacto ambiental, nuvens e ciclones em imagem de satélite,
exploração de minérios, tratamento de água e outros fenôme-
nos. Professores de História tampouco dispõem de laboratórios
como os colegas das ciências naturais, nos quais se mostram os
objetos e eventos explicados por escrito nas palavras, números
e fórmulas das reações químicas, da mecânica, da citologia, da
ótica, da morfologia animal etc.
Repisemos: o patrimônio reúne vestígios do passado. Mais ainda,
em geral o vestígio do passado que recebeu proteção oficial foi
arrumado para ser visto no presente, isto é, tornou-se objeto do estudo
de especialistas, foi restaurado, recebeu placas, legendas e holofotes
para ser visto de maneira espetacular à noite, foi arranjado como
se arrumam peças nas vitrines de um museu, tentando antecipar o
1 Ademais, o patrimônio pode ser objeto de controvérsia, como o caso dos monumentos
públicos que homenageiam escravizadores do passado em vários lugares do mundo,
inclusive no Brasil.
3 Para dirimir dúvidas de caráter técnico numa dimensão razoável para nosso interesse,
sugiro recorrer aos dicionários arquitetônicos. O mais conhecido é CORONA e LEMOS,
mas há outros que atendem a nossos objetivos de professores de História, como o
Dicionário ilustrado de arquitetura (ALBERNAZ e LIMA, 2000). Para ir mais adiante,
numa dimensão reflexiva: ZEVI, 2009.
4 Entre inúmeros aspectos dessas transformações, ressaltemos dois que têm a ver com
o assunto em tela: o interesse bem menor pelo patrimônio edificado e a proeminência
da antropologia no tratamento dos bens culturais.
7 Não há força jurídica, portanto, para tombamentos realizados no Legislativo, por as-
sembleias estaduais de deputados ou câmaras municipais de vereadores. Apesar disso,
vem crescendo no país a prática de proteger bens por decretos ou por leis nascidas no
Legislativo. Tais problemas inserem-se em complexo e amplo debate, com dimensões
jurídicas e sóciopolíticas. No meu entendimento, do ponto de vista educacional, é
preciso disseminar na sociedade os conhecimentos básicos sobre o arcabouço jurídi-
co-institucional de que dispomos no país a fim de fortalecermos nossas instituições
e seus respectivos mecanismos de participação da sociedade. No limite, este capítulo
busca atender a essa finalidade.
8 Neste episódio, o restauro do dito convento franciscano é apresentado e proble-
matizado pela arquiteta Ana Cláudia Magalhães. Disponível em: https://sesctv.org.br/
programas-e-series/monumentos/?mediaId=0b054e76b485c1518813a26ff503c582.
Acesso em: 24 jun. 2022.
11 Além disso, uma edificação pode ser um ponto de condensação para tratar da história
da cidade, como o edifício Martinelli na capital paulista (PEIXOTO e BISPO, 2019).
2.3 Tombamentos:
Se a edificação a ser visitada é objeto de proteção oficial, é
indispensável saber quando foi tombada e qual instância pública
foi responsável pelo tombamento.
Se os objetivos da atividade estiverem focados na construção
da memória da edificação, nos sentidos que ela foi adquirindo ao
14 Cada lugar tem seus códigos. Em casa não nos portamos como na escola, em
templos religiosos precisamos ter cuidado com o volume de voz e o vestuário, nos
museus e bibliotecas espera-se movimentação e fala reduzidas para garantir o bem-
-estar das pessoas que estão em leitura ou observação atenta. Vale esclarecer aos
estudantes que não se trata de adesão moral à rigidez de atitudes, mas de respeitar
lugares de caráter público, de convivência entre pessoas diferentes que precisam de
certas condições para realizar a finalidade precípua do lugar: ler, instruir-se, fruir
obras de arte, descansar etc.
15 Para se aprofundar nos assuntos afeitos à educação dos sentidos e das sensibilida-
des, consultar as publicações dos projetos e grupos de pesquisa dos professores Kazumi
16 Para isso, buscar artigos científicos nas revistas de arquitetura pode ajudar; o pro-
fessor pode buscar textos sobre o bem cultural a ser visitado ou sobre algum outro mais
afamado e que seja do mesmo período e semelhante. Manuais de história da arquitetura
também podem esclarecer o professor. No caso do território paulista, ver LEMOS, 1999
e HOMEM, 1996. Para escapar de tipificações estilísticas equivocadas, é aconselhável
procurar desvendar os elementos visíveis da edificação consultando dicionários de
arquitetura. Mas o melhor mesmo, se possível, é conseguir informação diretamente
com um arquiteto; as prefeituras dispõem de profissionais de arquitetura em diferentes
órgãos e estes, eventualmente, podem ser consultados.
4.3 Implantação:
No jargão arquitetônico, implantação diz respeito ao modo
como estão dispostos os elementos construídos em um terreno.
Dessa maneira, é pela implantação que sabemos se uma edifica-
ção está mais para frente ou para trás no seu lote, se há outros
edifícios anexos na parte posterior do terreno, qual é a propor-
ção entre área construída e área livre, onde está a vegetação etc.
Ainda sem entrar na edificação, rodeando suas faces ou
até com auxílio de uma imagem aérea, é possível saber como
o prédio se localiza na quadra, na rua e até na mancha urbana
em que se insere. Assim, as perguntas que podemos formular
quanto a esses aspectos são: há jardins ou outro tipo de vegeta-
ção no terreno? Para que serviriam no passado e qual sua finali-
dade hoje? A edificação está circundada por área livre que lhe
garante boa visibilidade?
Olhando as fachadas, pode-se ver também a relação que a
construção estabeleceu com o relevo do terreno. Hoje em dia, em
virtude de dispormos de máquinas para acrescentar e remover
terra, o mais comum é construir sobre terrenos aplainados artifi-
cialmente. No Brasil de antigamente, em geral, as edificações em
terrenos acidentados eram construídas de modo a aproveitar o
desnível; assim, podem-se encontrar edificações cuja frente da casa
está no nível da rua, mas que, olhando de trás, vê-se que um porão
ou outros cômodos foram construídos embaixo do primeiro piso;
além de se encontrarem casas em que os fundos estão na parte
mais alta e a frente ficou na parte mais baixa. De toda maneira,
notar esse aproveitamento do terreno permite compreensão mais
alargada da implantação e a percepção dos recintos abaixo do piso
do pavimento principal que revelam usos hoje desconhecidos.
20 Hoje em dia é diferente, temos apartamentos bem pequenos e pouco valiosos em pré-
dios bastante altos, com muitos andares, até nas regiões mais distantes das regiões centrais
urbanas. Isso quer dizer que esta tecnologia ficou mais barata e, portanto, mais acessível.
ZEVI, Bruno. Saber ver a arquitetura. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
ZUKIN, Sharon. Naked city: the death and life of authentic urban places. New
York: Oxford University Press, 2010.
Fernando Atique
95
nato-digitais, e a vida em ambientes lúdicos, como os fornecidos
pelos videogames e visualizações imersivas, é fundamental para a
interação entre educador e educando, além de uma possibilidade
de reorganização da ministração de conteúdos ao se aproximar
da linguagem virtual – tão cara às novíssimas gerações.
Este capítulo 1 discutirá essa potencialidade, valendo-se da
(des)montagem da Praça João Mendes, em São Paulo, que, por meio
da implantação do Plano de Avenidas, elaborado e implantado por
Prestes Maia, entre 1938 e 1945, em pleno Estado Novo Varguista,
eliminou edifícios fundamentais para a antiga São Paulo, como a
Igreja da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios e a antiga
Casa de Câmara e Cadeia de São Paulo, depois Congresso Estadual,
alma mater da Assembleia Legislativa do Estado. A partir disso,
neste texto, vamos apresentar elementos que reúnem informa-
ções sobre o antes e o depois de São Paulo, pautando-os por
ref lexões acerca da história urbana que nos levaram a recriar
edifícios desaparecidos, os quais, por sua vez, como fantasmas,
não estão mais visíveis, mas, mesmo assim, muitos juram que
eles se apresentam para quem quer vê-los. Dessa maneira, vale
a pena desafiar os estudantes a assumirem o papel de detetives,
analogia não apenas lúdica e presente no imaginário infanto-
-juvenil, mas também muito relacionado com o perscrutar das
cidades, dentro da proposta de Carlo Ginzburg ao tratar de rastros,
fios e cacos documentais (GINZBURG, 1992).
2 Engenheiro civil pela Escola Politécnica de São Paulo, formado em 1911, João Florence
de Ulhôa Cintra integrou o corpo funcional da administração municipal de São Paulo
entre 1913 e 1944. Além de chefe da Divisão de Urbanismo da Prefeitura, foi também
professor de hidráulica urbana na Escola Politécnica de São Paulo. Em 1927, com a saída
do engenheiro Saturnino de Brito da Comissão de Melhoramentos do Tietê, Ulhôa Cintra
assumiu seu lugar no cargo de chefia e, em 1938, na gestão do prefeito Prestes Maia,
tornou-se Diretor Geral de Obras do Município – cargo em que permaneceu até 1944,
ao falecer aos 54 anos de idade (LUCCHESE, 2016, p. 99-105).
Fonte: ATIQUE; GUARNIER et al. Pauliceia 2.0. Acesso em: 20 jul. 2022.
Fonte: Folha da Manhã, 22 de outubro de 1941, p. 8, Acervo Folha. Disponível em: https://
acervo.folha.com.br/
Considerações finais
Este capítulo foi batizado, de uma maneira lúdica, de “Os
detetives de cidades-fantasmas: as potencialidades das recons-
truções gráficas virtuais para o ensino da história urbana”. Com
isso, tentamos mostrar que espaços urbanos desaparecidos, ou
fantasmagorias urbanas, podem permear a vida nas cidades.
Não se trata de evocar espíritos ou mesmo ectoplasmas, como
no famoso filme dos Caça-Fantasmas, mas de fornecer substra-
tos virtuais que confrontem as dinâmicas urbanas, as mesmas
que levaram, sobretudo no século XX, espaços importantes ao
4 Livro lançado em 1945, no qual Prestes Maia apresenta a transformação que realizou
no município.
CAMPOS NETO, Cândido Malta; SOMEKH, Nádia. A cidade que não pode
parar: planos urbanísticos de São Paulo no século XX. São Paulo: Mackpes-
quisa, 2002.
DUARTE, Raul. São Paulo de ontem de hoje. São Paulo: Empresa Imobiliária
Novo Mundo; Imprensa dos Tribunais, 1941.
SAMPAIO, Maria Ruth Amaral de; BITRAN, Cláudia; CSILLAG, Diana. São Paulo
1934-1938: os anos da administração Fábio Prado. São Paulo: FAU-USP, 1999.
SEGRE, Roberto; BOAS, Naylor Vilas; KÓS, José, PARAIZO, Rodrigo. A Cıdade
em 3D: Perspectıvas Contemporâneas da Hıstórıa da Cıdade. Anais do IV
SIGRADI, Rio de Janeiro, 2017.
TUMA, Nicolau. As obras que Prestes Maia não realizou. In: MAIA, Francisco
Prestes. Os Melhoramentos de São Paulo. 2. ed. São Paulo: Imprensa Oficial,
2010, p. 384-387.
WEINSTEIN, Barbara. The Color of Modernity: São Paulo and the making race
and nation in Brazil. Durnham: Duke University Press, 2015.
ZEVI, Bruno. Saber ver Arquitetura. São Paulo, Martins Fontes, 1994.
Cláudia R. Plens
Introdução
A maneira como nós, humanos, nos relacionamos com a cultura
material, construindo e utilizando objetos, tem sido continuamente
modificada ao longo da história de acordo com o nosso entendi-
mento sobre o papel da humanidade como parte do universo. Do
mesmo modo, as narrativas que construímos a partir das culturas
materiais sobre nossa história são reconstruídas de acordo com
a ampliação e complexificação das relações de conhecimentos
do mundo em que habitamos.
Se por um longo período a humanidade narrou sua história a
partir de um viés de causas e consequências, tendo na figura de
heróis, deuses, semideuses e demais figuras místicas como protago-
nistas da história, os conhecimentos trazidos pelas descobertas
científicas complexizaram as tramas e relações entre as causas e
consequências dos acontecimentos, possibilitando a visualização
dos fatos a partir de diferentes prismas e diferentes interpretações.
No mundo moderno se compreendeu que diferentes testemunhos
relatam a história sob um viés específico cujos acontecimentos foram
compreendidos e interpretados pelos indivíduos sob suas perspectivas
de vida particulares, familiares e sociais, e que, algumas particularidades
dos eventos, podem, ainda, estar armazenadas sob diferentes camadas
da psique humana, inclusive, no inconsciente. Portanto, narrativas
sob os eventos, de valor inestimáveis, devem ser estudadas como
objetos a serem lapidados e comparados com os diferentes prismas
interpretativos existentes sobre os mesmos eventos.
125
Para além das narrativas dos indivíduos que testemunha-
ram os eventos que porventura possam chegar até nós, nos é
relegado remanescentes materiais que estruturaram e foram
usados nos eventos históricos. Como bem conhecem os arqueó-
logos, os vestígios materiais, por mais variados e estranhos, são
passíveis de análise para interpretação do passado.
Assim, objetos de refugo de ações cotidianas, das mais simples,
podem fornecer pistas e informações incalculáveis sobre o passado
humano. E a arqueologia, com seus métodos e técnicas, explicam
empiricamente o significado desses objetos a partir de arcabou-
ços teóricos. Todo objeto, dentro de seu contexto, tem significado
passível de ser interpretado.
Entretanto, para além dos objetos de uso cotidiano, outras
qualidades de objetos foram construídas pela humanidade, com
finalidade simbólica, seja para elaboração e interpretação da humani-
dade e sua origem, suas cosmovisões sobre o mundo, seja para
recontar eventos históricos específicos, marcar território e legiti-
mar diferentes formas de poder: os monumentos, por exemplo.
Embora monumentos sejam objetos longevos na história, o
conceito de patrimônio é bastante recente. Apesar das primeiras
notícias acerca da preocupação pela conservação de bens culturais
no mundo ocidental remontarem ao século XVIII, quando, na Itália,
Ferdinando de Médici elaborou uma lista de obras de 18 pintores
que não poderiam ser exportadas e, em seguida, na França, no pós
Revolução Francesa quando foram criados o conceito de monumentos
e uma série de instituições e instrumentos a serviço da proteção
dos bens culturais (Neves, 2018, p. 91), foi somente no século XIX
que o conceito de patrimônio foi cunhado.
A destruição dos bens materiais de cunho nacionalista levou
à elaboração de uma série de estratégias para a salvaguarda
desses bens e preservação do poder sobre o território, a partir
da reconstrução da memória histórica em alguns países europeus.
A preocupação com a salvaguarda não era sem propósito. Como
bem conhecido pelos países colonialistas, ao longo de milênios, o
meio para se dominar e conquistar um grupo ou uma nação foi por
meio de assassinatos e diferentes formas de violações de corpos e,
paralelamente, pelo aniquilamento de bens e símbolos culturais dos
grupos subjugados. Uma vez conquistado, ocorre a apropriação de
seus patrimônios e de seus conhecimentos. Nesses contextos, novos
símbolos e modos de viver são impostos, até que, em poucas gerações,
O tempo em movimento:
a história pela perspectiva temporal
Para compreender o tempo por meio de uma perspectiva
arqueológica, traço aqui uma reflexão acerca da construção do
conhecimento a partir da cultura material, em que a dinâmica
do tempo permitiu que a humanidade se articulasse em grandes
redes sociais e reconstruísse o mundo.
O tempo em suspenso
Mas se tantas ações humanas foram alçadas revolucionando o
modo da humanidade viver a partir da proteção de seus semelhan-
tes, inevitavelmente, sombras dessas ações sempre se alastraram
muito próximas ao esplendor das culturas.
No município de Guarulhos, SP, uma pesquisa interdisciplinar
discutiu a história e o patrimônio da cidade. Por meio da arqueologia,
a análise de caminhos e de construções para a mineração de ouro
constatou que, desde o século XVI, o contato do colonizador com
indígenas levou a uma corrupção das relações sociais: a escravidão
de pessoas para a exploração do ouro. Ao longo dos séculos, a
importância da presença indígena ficou impressa somente nas
toponímias de estradas, rios, fazendas e bairros da cidade, mas
não permitiu o curso contínuo de conhecimentos das pessoas
e das comunidades indígenas na história. Junto das liberdades
culturais e dignidade pessoal dos indígenas que foram tolhidas,
suas histórias também pereceram (Plens, 2017).
A análise de documentos, associada ao discurso e à memória
de moradores, revelaram que na construção da cidade foi necessá-
ria a expropriação e grilagem dos territórios indígenas, subtração
de suas culturas e vidas e aniquilamento de seus conhecimentos
e ideias para que a história da cidade fosse criada sob os valores
coloniais e republicanos brasileiros (Miranda, 2017; Plens, 2017).
A história do município de Guarulhos, forjada sob a exploração
mineral, é um exemplo da corrupção moral que cerceia os direitos
indígenas desde a colonização até os dias atuais.
Os aspectos materiais e
psicológicos da opressão
O uso da cultura material ultrapassa o ensino de história do
passado, mas deve ser também usado para repensar criticamente
a história do tempo presente.
Muito se fala sobre a importância do patrimônio, os bens
culturais reconhecidos por instituições responsáveis pela
salvaguarda patrimonial, para a manutenção da identidade
cultural e preservação histórica e da memória de um povo. A
partir desses patrimônios, uma série de atividades de educação
Considerações Finais
Embora a cultura material de diversos períodos e eventos
históricos tenham o potencial de ser explorados em sala de
aula, optamos por utilizar no capítulo exemplos de questões
indígenas, do passado e do presente, pois em toda a América
esse segmento social é o mais carente de políticas públicas de
toda a natureza, inclusive, no Brasil, nem ao menos direito à
cidadania as populações indígenas têm assegurado, sendo ainda
hoje tutelados pelo Estado.
Questionar, analisar, refletir e criar na área das Humani-
dades é um exercício que requer repertório de conhecimento
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Cláudia R. Plens
157
Segundo Ailton Krenak, quem detém o conhecimento sobre o
que há no outro lado, tem potencial para a construção de narrati-
vas para aqueles que ainda não observaram esse outro lugar. Dessa
forma, o autor mostra o poder e a potência da subjetividade nos
processos de comunicação.
Como exemplo, Krenak usa o crime socioambiental ocorrido
no rio Doce, em 2015. Os não indígenas, de pronto, narravam o
evento como a morte do rio Doce, dando por findada qualquer
possibilidade de recuperação do rio. Em contrapartida, os Krenak,
que têm o rio Doce como sagrado, afirmavam que o rio estava
em coma. Com isso sublinhavam a esperança na recuperação do
“Watu” e que ações nesse sentido eram necessárias.
As narrativas não são neutras; elas compreendem os fatos a
partir de determinadas perspectivas e, dependendo do poder ou
das articulações dos intérpretes, têm força para instituir visões
e versões sobre o passado. Assim, por meio do regramento de
livros didáticos e do patrimônio, representantes do Estado e suas
leituras sobre passado, elegem quais bens se tornarão “patrimônio”
e quais história serão escolhidas para compor o seleto conjunto
de narrativas sobre o passado.
A patrimonialização de bens culturais é o resultado de escolhas
que, ao valorizarem determinados remanescentes do passado,
colocam no plano das ausências outros possíveis. Num jogo de
presenças que se sobrepõem e ausências que são esquecidas,
a narrativa sobre o passado numa dada sociedade não só elege
como sujeitos determinados grupos em detrimento de outros,
mas, também, podem ser naturalizadas com o passar do tempo.
O Estado classifica e inventaria determinados objetos por
ele escolhidos como narrativas do passado, a serem protegidos
em detrimento dos demais bens. E, assim, a sociedade passa a
visualizar o patrimônio que foi eleito como narrativa do passado e
guarda na memória essa história e, ao longo do tempo, se esquece
das demais.
E a beleza de sociedades multiculturais se perde para uma
história hegemônica.
Como enfatiza Elizabeth Jelin, “a distância temporal comprime
memórias.” A revisão sobre os eventos precisa, por essa razão, ser
sempre efetuada. Em La Lucha por el Pasado, a autora aponta que
a memória é algo aberto, que está sempre passível de revisão e
Referências
Jelin, Elizabeth. La Lucha por el Pasado: Cómo construímos la memória social.
Buenos Aires: Siglo Veinteuno Editores, 2017.