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UERJ – FFP / São Gonçalo

Curso de Licenciatura Plena em Historia


Historia Fluminense II
Professor: Marcelo Magalhães
Felipe Augusto dos Santos Ribeiro
5o Período – 30 de novembro de 2004

RELATÓRIO DE LEITURA:
Caracterizando conjunturas: o Rio de Janeiro durante os primeiros anos de República,
o período Pedro Ernesto e a formação do Estado da Guanabara

Desde a chegada da família real às terras do Brasil, em 1808, o Rio de Janeiro


assume uma função política de suma importância, tornando-se a nova sede do Império
ultramarino português. Posteriormente, com a Independência do Brasil e a instauração do
regime monárquico, a cidade ratifica o seu papel de cabeça do Império. “(...) O Rio era
Corte Imperial, pólo irradiador de civilização e elo político entre o poder central e as
províncias.” 1
Com o advento da República e do pacto federalista, a situação política da cidade
passa a sofrer modificações significativas. Primeiramente, o governo provisório extinguiu
a Câmara Municipal carioca e criou um Conselho de Intendência provisório, com
membros nomeados pelo governo federal, sendo responsável pela administração da
cidade até que fosse estabelecido uma nova formatação política para a capital
republicana. Com o intuito de redefinir o poder central do Rio na federação, o Congresso
Constituinte de 1891 aprova a mudança da capital para o interior do Brasil, que seria
futuramente construída numa área afastada das agitações políticas cariocas e capaz de
integrar as diferentes regiões do país. Não foi estabelecido nenhum prazo para a execução
dessa nova medida, conservando ainda o Rio de Janeiro como Distrito Federal, porém
afastado de influências regionais e sem vínculos políticos como o Estado do Rio de
Janeiro; possuiria bancada própria de deputados e senadores e toda sua legislação ficaria
à cargo do Congresso Nacional. Além disso, havia uma questão a ser discutida acerca do
Rio de Janeiro ser reincorporado à antiga província fluminense ou transformado numa
cidade-estado. Ao final, ficou decidido que, após a transferência da capital, o Rio seria
uma unidade federativa própria, ou seja, uma cidade-estado.
Definidos os princípios constitucionais do país, foi criada no Congresso Nacional
uma comissão encarregada de elaborar uma Lei Orgânica para Distrito Federal, o que
provocou intensos debates.
Na Câmara, o deputado carioca Tomás Delfino defendeu um projeto autonomista
de governo, onde um órgão legislativo seria eleito com amplos poderes, inclusive
administrativos. Esse órgão elegeria o prefeito, que seria responsável pela execução das
decisões do legislativo.
Quando o projeto foi apresentado ao Senado Federal, recebeu severas críticas,
principalmente do senador fluminense Quintino Bocaiúva, que considerava tal projeto

1
FREIRE, Américo & SARMENTO, Carlos Eduardo. Três faces da cidade: um estudo sobre a
institucionalização e a dinâmica do campo político carioca. In: MOTTA, Marly Silva da; FREIRE,
Américo & SARMENTO, Carlos Eduardo. A política carioca em quatro tempos. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2004. p.25.
inviável, alegando de forma alguma o governo municipal da capital poderia ser
organizado nos mesmos moldes dos outros municípios e muito menos dos demais
estados. Para ele, a solução seria a existência de um governador distrital e de um
conselho executivo, nomeados pelo presidente da República, mediante sanção do Senado
Federal, que seria o responsável pelo Poder Legislativo do Distrito Federal.
O projeto foi então modificado no Senado e retornou à discussão inicial no
Congresso. Em 1892, foi aprovada a Lei Orgânica do Distrito Federal. O texto final do
projeto apresentou uma certa composição de interesses, criando o mandato de prefeito do
Rio, nomeado pelo presidente da República com a sanção do Senado. O prefeito teria
poder de veto sobre as resoluções do Conselho Municipal, cuja principal função era
responder pela elaboração e votação do orçamento da cidade, sendo que o veto do
prefeito deveria ser analisado pelo Senado.
Nota-se que a decisão do Congresso não pretendia pôr em risco a soberania do
poder federal em sua sede, transformando o Rio de Janeiro numa espécie de “distrito
neutralizado”, onde o centro de gravidade política não era claro. “Estavam montadas
portanto as bases legais da capital republicana. Definido o enredo, trataram os atores
políticos de ocupar a cena. Em outubro daquele ano [1892] foram realizadas as
primeiras eleições para o Conselho Municipal. Em dezembro, após muitas indecisões, o
vice-presidente Floriano Peixoto nomeou o primeiro prefeito carioca (...). Entravam em
funcionamento as duas bases do tripé que – em conjunto com o Senado – governava a
capital federal.” 2
A partir de então, o Rio de Janeiro começava a desenhar um panorama político
conturbado, um paradoxo que perseguiu a cidade por todo o século XX, sempre dividida
entre o federal e o local, a autonomia e a intervenção, a política e a administração. Sob
tutela federal, bancada estadual e administração municipal, o Rio transformou-se num
caso único do quadro federativo brasileiro, com um campo político bastante aberto e
fragmentado. “Na ‘frente’, encontravam-se as atribuições de uma cidade-capital, a qual,
na condição de agente da centralização e de baluarte da unidade nacional, deveria se
manter distante do localismo, do caciquismo e do provincianismo. No ‘verso’, como
decorrência da politização local, pontuada por disputas entre várias esferas de poder,
localizavam-se as práticas políticas baseadas em relação de interdependência pessoal e
sustentadas por redes clientelistas de bases locais. (...) A cultura política do Rio de
Janeiro seria, pois, construída a partir da convivência, sempre tensa e ambígua, entre
esses dois pólos do seu campo político: de um lado, a capital, vitrine da nação e cabeça
do país (...); de outro, a cidade, espaço político disputado por lideranças de corte local,
comprometidas com uma política considerada miúda.” 3
Portanto, é a partir desse contexto que a cultura política carioca se constitui,
configurando assim diversas conjunturas político-institucionais relativas ao Distrito
Federal durante a república, sendo que três merecem destaque: o Rio de Janeiro durante
os primeiros anos de República, o período Pedro Ernesto e a formação do Estado da
Guanabara.
2
FREIRE, Américo. República, cidade e capital: o poder federal e as forças políticas do Rio de Janeiro
no contexto da implantação republicana. In: FERREIRA, Marieta de Morais (coord.). Rio de Janeiro: uma
cidade na história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. p.21.
3

MOTA, Marly Silva da. Frente e verso da política carioca: o Lacerdismo e o Chaguismo. Rio de Janeiro:
Estudos Históricos, 1999. v.13. n.24. p.353.
1. Os primeiros anos de República

A organização política do Rio de Janeiro firmada através da Constituição de 1891


e da Lei Orgânica municipal no ano seguinte foi literalmente testada e reprovada pelo
governo federal.. No início da década seguinte, já seriam implantadas algumas alterações
significativas na legislação do Distrito Federal, proporcionando maior poder aos
executivos federal e municipal em detrimento da ação supervisora do Senado e das
atribuições do Conselho Municipal.
O novo regime republicano permitiu a criação e o fortalecimento de grupos locais,
concentrados basicamente no Partido Republicano Federalista do Distrito Federal (PRF).
Criado em 1893, o partido logo passa a controlar vários cargos estratégicos no município
e na União, tornando-se o principal instrumento das elites locais frente ao governo de
Prudente de Morais. Tanto é que o presidente, ao reconhecer a força do partido, nomeia
para cargo de prefeito do Distrito Federal o médico e deputado do PRF carioca Furquim
Werneck. Em pouco tempo, o partido tornou-se uma importante peça política nacional,
tendo como principais lideranças Francisco Glicério e Tomás Delfino.
Influente em diversas esferas do poder republicano, o PRF ampliou sua
hegemonia e transformou-se num partido cada vez menos dependente do executivo
federal. Isso fez com que Prudente de Morais, no final do seu governo, em 1897,
instaura-se uma repressão política contra o PRF. Após sofrer uma tentativa frustrada de
atentado, o presidente intensifica a ofensiva contra seus adversários: exonera Furquim
Werneck da prefeitura e nomeia Ubaldino Amaral, seu aliado, para o cargo. É o fracasso
político do PRF, terminando assim a primeira experiência autonomista do Rio de Janeiro
e desencadeando um novo ciclo no cenário político carioca.
Com a eleição de Campos Sales para a presidência da República, em 1898, as
discussões sobre o formato político-administrativo da capital volta à tona, com o novo
presidente vislumbrando ampliar o controle do Executivo federal em sua sede. Campos
Sales aprovou um projeto de lei para alteração da Lei Orgânica do Distrito Federal, dando
aval para o governo nomear e demitir o prefeito quando quiser e tirando do Senado o
poder de sancionar sua escolha; reduzindo as atribuições do Conselho Municipal e
alterando inclusive a substituição eventual do prefeito pelo presidente do Conselho, que
agora seria realizada por um vice-prefeito. Estas propostas foram combatidas
veementemente pela bancada do PRF, porém sem alcançar resultados significativos.
Dessa forma, Sales busca saturar os mecanismos políticos na capital, esvaziando
as forças locais e ampliando ao máximo seu campo político. Nessa despolitização do
Distrito Federal, o governo ainda provoca um estrangulamento financeiro na prefeitura
como forma de denúncia de mau uso do dinheiro público pelos políticos locais,
responsabilizando-os por fraudes eleitorais, chegando até a anulação das eleições
municipais de 1902.
Na gestão presidencial seguinte, de Rodrigues Alves, esse esvaziamento de poder
local acentuou-se. Com maior apoio no Congresso, o novo presidente alterou
radicalmente a organização municipal do Distrito Federal, extinguindo o voto distrital e
reduzindo o número de intendentes no Conselho Municipal. Para implementar toas essas
modificações na legislação, o Conselho foi fechado e as eleições adiadas por seis meses.
Além disso, nomeou como prefeito o engenheiro Pereira Passos, dando carta branca para
que ele transformasse a face física da cidade. “Desde a criação do Distrito Federal e a
aprovação da Lei Orgânica, esta fora a mais profunda intervenção produzida no sistema
político-administrativo da cidade. Perderam força tanto os grupos políticos locais, que
tinham por base o Conselho Municipal, como o Senado Federal, que reduziria em parte
o seu poder de órgão supervisor da administração da capital federal.” 4
A gestão de Passos passaria a servir como exemplo de administração moderna e
eficiente. Seu enorme sucesso abriu espaço para a realização de um acordo político que
permitiu a reabertura do Conselho Municipal em troca da ampliação das atribuições
político-administrativas do prefeito. Com isso, enquanto a cidade voltava a ser vitrine da
Nação, como nos tempos do Império, um novo ordenamento político vigorava no Rio,
reequilibrando as forças do campo político.
Ao término da gestão de Passos, em 1906, com a realização de acordos e um
governo partilhado entre as diferentes forças políticas cariocas, firmou-se um padrão
burocrático para a nomeação dos prefeitos da capital, que passaram a imprimir um estilo
mais discreto em suas administrações. Os grupos locais tenderam a se fragmentar, o que
provocou dificuldades para coesões políticas. No entanto, o elemento que reunia as
diferentes lideranças locais na política era a luta pela autonomia da cidade do Rio de
Janeiro diante da chamada intervenção externa. “(...) A questão da autonomia (...)
terminou por constituir, na Primeira República, muito mais uma bandeira de luta (...) do
que um movimento de expressão social. Este fato não impediu, no entanto, que o tema se
fixasse como um dos principais elementos da tradição política carioca, que, reiteradas
vezes, seria recuperada em momentos-chave posteriores, como nos anos 1930, com o
Partido Autonomista do Distrito Federal liderado por Pedro Ernesto, e nos anos 1950,
quando do debate sobre transferência da capital para Brasília.” 5

2. O período Pedro Ernesto

Com a Revolução de 1930, o Rio de Janeiro deparou-se com uma nova


possibilidade de sucesso do vetor autonomista, retomando a discussão do papel da cidade
frente ao país e da livre atuação de seu campo político.
A promessa presente na plataforma eleitoral da Aliança Liberal era a defesa da
autonomia do Distrito Federal. Derrotado nas urnas, Getúlio Vargas desencadeia um
movimento revolucionário e, ao tomar o poder, busca o apoio das principais lideranças
cariocas para a consolidação dessa proposta.
O significativo crescimento da população do Distrito Federal na década de 20 pôs
em cheque o controle que a cidade exercia sobre seus habitantes, até então distantes da
plena cidadania política. Movimentos populares emergiam na busca de parceiros no jogo
político, condições por si só suficientes para a redefinição tanto do campo político carioca
quanto nacional. “(...) O ano de 1933 representaria um período de reajustamento das
principais forças em atuação no campo político nacional, tendo por referencial o
processo de reconstitucionalização do regime republicano. A convocação da Assembléia
Nacional Constituinte pelo chefe do governo provisório ocasionou a reorganização dos
partidos políticos e, conseqüentemente, uma melhor definição dos principais atores

4
FREIRE, Américo. Op. cit., p.27.
5
Ibidem, p.31.
políticos e se suas plataformas. (...) Em relação ao Distrito Federal, a proximação das
eleições de maio traziam para um horizonte bastante próximo a discussão de um dos
elementos definidores de sua vida política. (...) A proposta de consessão de autonomia
política e administrativa para a capital do país significava, para as forças políticas
cariocas, uma completa redefinição de eu campo de atuação.” 6
Sendo assim, a indicação do médico pernambucano Pedro Ernesto para o cargo de
prefeito demonstrou a preocupação do governo federal em possuir na capital um
governante que estivesse integrado ao campo político carioca, além de manter uma certa
vigilância sobre o executivo da cidade.
Pedro Ernesto teria como difícil tarefa a formação de um partido local que
unificasse as forças locais em torno da proposta da autonomia e que pudesse concorrer
nas eleições para a Assembléia Nacional Constituinte. Para as forças políticas locais, essa
proposta de autonomia levaria não somente a uma posição de independência da capital
frente a interferência externa, como também possibilitaria o usufruto político de cargos
públicos, consolidando assim suas redes de clientela e patronagem. Tendo como base o
Rio de Janeiro dos primeiros anos de República, essa proposta configurava como uma
nova forma de lidar com as mesmas e antigas questões, apresentando novas soluções
possíveis para a cidade.
Como estratégia para unificar as forças políticas locais em torno de sua proposta,
Pedro Ernesto realiza uma campanha de recadastramento eleitoral, ampliando
sobremaneira o número de eleitores e, conseqüentemente, fragilizando as forças políticas
locais. Essa mudança de perfil do eleitorado carioca possibilitou uma certa autonomia dos
eleitores em relação aos antigos líderes políticos, que, sob a ameaça de não obter votos
suficientes na eleição de 1933, unem-se em torno do Partido Autonomista. O partido
elegeu dez deputados.
No entanto, a proposta de autonomia assumida por Vargas não foi diretamente
aceita na Constituinte, que aprovou em plenário um dispositivo que cerceava a autonomia
política-administrativa do Distrito Federal, estabelecendo a indicação do prefeito pelo
presidente da República mediante aprovação do Senado e com o Legislativo à cargo de
uma Câmara Municipal eletiva. Esse dispositivo seria o artigo 15 do primeiro capítulo da
nova Constituição Federal, mas o presidente Vargas encontrou uma forma de negociar a
decisão. Assim, em 1934, foi aprovado uma disposição transitória do texto constitucional
que regulamentava a transferência da capital para o interior do país e garantia ao Rio de
Janeiro, capital interina, total autonomia político-administrativa, sendo que o primeiro
prefeito seria eleito indiretamente pela nova Câmara Municipal. “(...) Se, nas eleições de
1933, o Partido Autonomista já se mostrava como força majoritária na cidade, o
percurso até as eleições municipais de outubro de 1934 não deixou dúvidas de que o
projeto de coesão das principais forças políticas locais, garantido pela vitória da moção
autonomista, alcançava a hegemonia no campo político carioca. (...) Os resultados do
pleito municipal não representaram nenhuma surpresa quando 20 das 24 cadeiras da
Câmara foram preenchidas por candidatos do Partido Autonomista. A vitória era a
confirmação do apio que Pedro Ernesto recebia da maioria dos chefes políticos da
cidade e, principalmente, do respaldo popular à sua administração. Para dirimir

6
SARMENTO, Carlos Eduardo B. A arquitetura do impossível: a estruturação do Partido Autonomista
do Distrito Federal e o debate autonomista nos anos 1930. In: FERREIRA, Marieta de Morais (coord.).
Op. cit., pp.36-37.
quaisquer dúvidas, o interventor resolveu candidatar-se também a uma cadeira na
Câmara Municipal: foi o candidato mais votado (...)” 7
Eleito pela Câmara para cumprir o primeiro mandato de prefeito do Rio de janeiro
autônomo, Pedro Ernesto propôs um novo modelo de Estado que garantisse à população
o acesso a bens e serviços públicos, implementando significativas reformas nos sistemas
educacionais e de saúde pública da cidade e criando instituições de renome, como a
Universidade do Distrito Federal (UDF) e a União Trabalhista do Distrito Federal.
Enquanto isso, o governo federal, que passava por modificações estruturais,
intensificando sua base autoritária e centralizadora para a implementação o Estado Novo,
não viu com bons olhos o grau de autonomia e popularidade do prefeito Pedro Ernesto na
capital, sendo considerado uma ameaça política.
À essa época, os movimentos de massa ganhavam força no país, fazendo com que
Vargas altera-se a Lei de Segurança Nacional e promovesse a cassação de direitos
políticos, incluindo parlamentares. Nesse contexto, em 1936, o prefeito do Distrito
Federal é preso sob a acusação de tentativa de golpe comunista. As elites políticas locais,
temendo a perda total de autonomia política, aceitam a intervenção federal mediante a
manutenção do funcionamento da Câmara.
Promovido à chefe do executivo carioca, o então presidente da Câmara, padre
Olympio de Melo, passa a divergir radicalmente com seus antigos amigos de legenda a
proposta autonomista. Percebendo a possibilidade de absolvição e retorno do prefeito
Pedro Ernesto ao cargo, Olympio de Melo trama, juntamente com o presidente Vargas,
uma estranha composição que assegurasse a manutenção do poder local e solicita uma
intervenção federal. O governo Vargas não só aprova a intervenção, como também
decreta o fechamento da Câmara e nomeia o padre Olympio como interventor,
encerrando assim o breve período de autonomia político-administrativa do Distrito
Federal. “Garantida pelo governo Vargas, a experiência autonomista dos anos 1930
representou uma forma de controle, indireto e tutelar, das forças políticas locais.” 8 Ao
mesmo tempo, devido especialmente a sua aproximação com as massas urbanas, o
período autonomista no Rio de janeiro configurou como “um experimento político
inovador que deixaria marcas indeléveis na cultura política brasileira e evidenciaria o
vigor do campo político carioca.” 9

3. A formação do Estado da Guanabara

Com a transferência da capital federal para Brasília no governo Juscelino


Kubitschek, prevista desde a Constituição de 1891 mas só efetivada em 1960, o Rio de
Janeiro enfrentou o desafio de encontrar um novo lugar na federação e na política
nacional.
A idéia da construção de Brasília sustentou-se na interpretação de que o Rio não
possuía mais a capacidade de exercer a função de capital de um país que precisava se
modernizar e se integrar ao mundo desenvolvido com segurança e tranqüilidade. “(...) A
7
FREIRE, Américo & SARMENTO, Carlos Eduardo. Op. cit., pp.37-38.
8
Ibidem, p.40.
9

SARMENTO, Carlos Eduardo B. Op. cit., p.57.


disposição de Juscelino Kubitschek de interiorizar a capital teria derivado, em parte, do
fato de o Rio de Janeiro ter sido o principal cenário da ampla mobilização popular
durante o último governo Vargas, bem como da conspiração golpista que se seguira e
que quase impedira a sua posse. (...) Tal como Campos Sales, Kubitschek se sentira
vulnerável diante da ‘agitada’ e ‘ameaçadora’ capital.” 10
Na realidade, as forças políticas locais pouco importaram-se com a
possibilidade de transferência da capital federal. Pelo contrário, perceberam até que essa
medida poderia configurar como uma melhor oportunidade para a conquista da
autonomia político-administrativa da cidade. Nesse sentido, o senador carioca Mozart
Lago já havia conseguido aprovar, em 1956, uma emenda constitucional que garantia a
eleição direta para prefeito do Rio nas eleições de 1960, demonstrando que a estratégia
das forças políticas locais seria buscar o controle da prefeitura sem enfrentar qualquer
interferência do governo federal.
Em meados de 1958, inicia-se uma série de discussões acerca da reorganização
político-administrativa da cidade do Rio de Janeiro após a futura inauguração de Brasília.
É que apesar da Constituição Federal indicar que o Rio deveria transformar-se num
estado da federação, o Estado da Guanabara, interesses políticos distintos ainda
propunham novas alternativas. Havia quem defendesse a fusão do então Distrito Federal
com o Estado do Rio de Janeiro, travando inúmeros debates entre parlamentares
fluminenses a cariocas. “(...) O ponto central que comandou a discussão sobre o futuro
do Rio de Janeiro foi o lugar a ser ocupado na federação pela centenária capital. Ou
seja, (...) era descobrir que identidade política deveria ser adotada pela ‘grande capital
do Império e da República’.” 11
Nesse debate, três foram as propostas apresentadas para o futuro político do Rio:
tornar-se território da Guanabara, neutralizando a disputa política na ex-capital; Estado da
Guanabara, como previa a Constituição; ou Município, sendo incorporado ao Estado do
Rio. Tudo isso demonstra que o debate sobre o futuro do Rio como ex-capital, sobre sua
nova identidade política, foi muito mais polêmico do que a própria transferência da
capital para Brasília. “(...) Afinal, a apenas duas semanas de deixar de ser capital, o Rio
de Janeiro ainda não sabia o que seria. (...) Autonomia, fusão, intervenção... Na Câmara
Federal, decidia-se o destino do Rio de Janeiro.” 12
Afinal, a apenas duas semanas de deixar de ser capital, o Rio de Janeiro ainda não
sabia qual seria seu futuro. Fonte de intermináveis debates desde a abertura dos trabalhos
parlamentares de 1960, o conturbado desenho político do Rio foi objeto de uma Emenda
Constitucional apresentada pelo deputado carioca Menezes Côrtes, estabelecendo que a
ex-capital tornaria-se Estado da Guanabara, podendo ocorrer a tão propalada fusão,
mediante plebiscito. Desse modo, nas eleições de 60, eleitores dos dois estados poderiam
optar pela possível fusão, que em caso de aprovação seria efetivada em 1963, quando
então a cidade do Rio tornaria-se capital do Estado do Rio de Janeiro. Entretanto, o
debate na Câmara revelou que a sua aprovação seria difícil, já que contava com vários
adversários, destacando-se entre eles o deputado Nelson Carneiro.
10
MOTTA, Marly Silva da. “Que Será do Rio?”: refletindo sobre a identidade política da cidade do Rio
de Janeiro. In: Tempo. Rio de Janeiro, 1997. v.4. p.150.
11
Ibidem, p.156.
12
Ibidem, p.162.
Após incansáveis discussões, finalmente, na madrugada do dia 12 de abril de
1960, ou seja, há apenas dois dias da data fatal para a ex-capital, foi aprovada a Lei
3.752, estabelecendo as normas de convocação da Assembléia Constituinte da
Guanabara. “A definição do futuro do Rio de Janeiro após a saída da capital (...) acabou
se resolvendo pela combinação, sempre tensa e ambígua, do peso da tradição com
circunstâncias da conjuntura política; do passado de capital da cidade com o seu futuro
de estado. (...) Essa complicada composição – antiga capital e novo estado – manteve a
Guanabara na situação de um campo aberto a experimentos políticos, que poderiam ir
tanto na direção de fortalecer a estadualização, quanto no sentido de reforçar a
capitalidade.” 13
Esse paradoxo entre a “capitalidade” e a “estadualização” pode ser simplificado
em duas importantes e distintas correntes políticas cariocas: o Lacerdismo e o
Chaguismo.
Lacerda foi o primeiro governandor da Guanabara, eleito em 60. Dono de uma
oratória brilhante e polêmica, era chamado de “demolidor de presidentes”, numa clara
referência ao tentado que sofreu em 1954, provocando uma séria crise política que
resultou no suicídio Vargas. Para Lacerda, a Guanabara deveria preservar seu tradicional
papel de “lócus” da política nacional. Além disso, ele esperava conquistar o eleitorado do
país como candidato assumido a eleição presidencial, prevista para 1965, que não houve
devido ao Golpe de 64. Com seu estilo tribuno e pouco mediador, teve dificuldades em
comandar a criação de uma nova estrutura política no novo Estado da Guanabara, na qual
deveria manter seu status de “cabeça do país” e “caixa de ressonância” dos problemas
nacionais.
Por outro lado, Chagas Freitas, governador da Guanabara de 1971 a 75 e do
Estado do Rio de Janeiro de 1979 a 83, deixou de lado o projeto caro de Lacerda,
preferindo investir na consolidação da Guanabara como simplesmente mais um estado da
federação. Mais à vontade na estruturação do poder local, registrou sua firme ascensão
política no comando de redes clientelares. Sua política miúda, desinteressada em
conquistar espaços na política nacional, acabou por reforçar a capitalidade de Brasília e
reuniu as condições propícias para efetivar a estadualização da Guanabara, consagrada
através da fusão em 1975, quando a Guanabara deu lugar ao município do Rio de Janeiro,
capital do novo Estado do Rio de Janeiro, como conhecemos hoje.

* * *

13
Ibidem, p.172.

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