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RELATÓRIO DE LEITURA:
Caracterizando conjunturas: o Rio de Janeiro durante os primeiros anos de República,
o período Pedro Ernesto e a formação do Estado da Guanabara
1
FREIRE, Américo & SARMENTO, Carlos Eduardo. Três faces da cidade: um estudo sobre a
institucionalização e a dinâmica do campo político carioca. In: MOTTA, Marly Silva da; FREIRE,
Américo & SARMENTO, Carlos Eduardo. A política carioca em quatro tempos. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2004. p.25.
inviável, alegando de forma alguma o governo municipal da capital poderia ser
organizado nos mesmos moldes dos outros municípios e muito menos dos demais
estados. Para ele, a solução seria a existência de um governador distrital e de um
conselho executivo, nomeados pelo presidente da República, mediante sanção do Senado
Federal, que seria o responsável pelo Poder Legislativo do Distrito Federal.
O projeto foi então modificado no Senado e retornou à discussão inicial no
Congresso. Em 1892, foi aprovada a Lei Orgânica do Distrito Federal. O texto final do
projeto apresentou uma certa composição de interesses, criando o mandato de prefeito do
Rio, nomeado pelo presidente da República com a sanção do Senado. O prefeito teria
poder de veto sobre as resoluções do Conselho Municipal, cuja principal função era
responder pela elaboração e votação do orçamento da cidade, sendo que o veto do
prefeito deveria ser analisado pelo Senado.
Nota-se que a decisão do Congresso não pretendia pôr em risco a soberania do
poder federal em sua sede, transformando o Rio de Janeiro numa espécie de “distrito
neutralizado”, onde o centro de gravidade política não era claro. “Estavam montadas
portanto as bases legais da capital republicana. Definido o enredo, trataram os atores
políticos de ocupar a cena. Em outubro daquele ano [1892] foram realizadas as
primeiras eleições para o Conselho Municipal. Em dezembro, após muitas indecisões, o
vice-presidente Floriano Peixoto nomeou o primeiro prefeito carioca (...). Entravam em
funcionamento as duas bases do tripé que – em conjunto com o Senado – governava a
capital federal.” 2
A partir de então, o Rio de Janeiro começava a desenhar um panorama político
conturbado, um paradoxo que perseguiu a cidade por todo o século XX, sempre dividida
entre o federal e o local, a autonomia e a intervenção, a política e a administração. Sob
tutela federal, bancada estadual e administração municipal, o Rio transformou-se num
caso único do quadro federativo brasileiro, com um campo político bastante aberto e
fragmentado. “Na ‘frente’, encontravam-se as atribuições de uma cidade-capital, a qual,
na condição de agente da centralização e de baluarte da unidade nacional, deveria se
manter distante do localismo, do caciquismo e do provincianismo. No ‘verso’, como
decorrência da politização local, pontuada por disputas entre várias esferas de poder,
localizavam-se as práticas políticas baseadas em relação de interdependência pessoal e
sustentadas por redes clientelistas de bases locais. (...) A cultura política do Rio de
Janeiro seria, pois, construída a partir da convivência, sempre tensa e ambígua, entre
esses dois pólos do seu campo político: de um lado, a capital, vitrine da nação e cabeça
do país (...); de outro, a cidade, espaço político disputado por lideranças de corte local,
comprometidas com uma política considerada miúda.” 3
Portanto, é a partir desse contexto que a cultura política carioca se constitui,
configurando assim diversas conjunturas político-institucionais relativas ao Distrito
Federal durante a república, sendo que três merecem destaque: o Rio de Janeiro durante
os primeiros anos de República, o período Pedro Ernesto e a formação do Estado da
Guanabara.
2
FREIRE, Américo. República, cidade e capital: o poder federal e as forças políticas do Rio de Janeiro
no contexto da implantação republicana. In: FERREIRA, Marieta de Morais (coord.). Rio de Janeiro: uma
cidade na história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. p.21.
3
MOTA, Marly Silva da. Frente e verso da política carioca: o Lacerdismo e o Chaguismo. Rio de Janeiro:
Estudos Históricos, 1999. v.13. n.24. p.353.
1. Os primeiros anos de República
4
FREIRE, Américo. Op. cit., p.27.
5
Ibidem, p.31.
políticos e se suas plataformas. (...) Em relação ao Distrito Federal, a proximação das
eleições de maio traziam para um horizonte bastante próximo a discussão de um dos
elementos definidores de sua vida política. (...) A proposta de consessão de autonomia
política e administrativa para a capital do país significava, para as forças políticas
cariocas, uma completa redefinição de eu campo de atuação.” 6
Sendo assim, a indicação do médico pernambucano Pedro Ernesto para o cargo de
prefeito demonstrou a preocupação do governo federal em possuir na capital um
governante que estivesse integrado ao campo político carioca, além de manter uma certa
vigilância sobre o executivo da cidade.
Pedro Ernesto teria como difícil tarefa a formação de um partido local que
unificasse as forças locais em torno da proposta da autonomia e que pudesse concorrer
nas eleições para a Assembléia Nacional Constituinte. Para as forças políticas locais, essa
proposta de autonomia levaria não somente a uma posição de independência da capital
frente a interferência externa, como também possibilitaria o usufruto político de cargos
públicos, consolidando assim suas redes de clientela e patronagem. Tendo como base o
Rio de Janeiro dos primeiros anos de República, essa proposta configurava como uma
nova forma de lidar com as mesmas e antigas questões, apresentando novas soluções
possíveis para a cidade.
Como estratégia para unificar as forças políticas locais em torno de sua proposta,
Pedro Ernesto realiza uma campanha de recadastramento eleitoral, ampliando
sobremaneira o número de eleitores e, conseqüentemente, fragilizando as forças políticas
locais. Essa mudança de perfil do eleitorado carioca possibilitou uma certa autonomia dos
eleitores em relação aos antigos líderes políticos, que, sob a ameaça de não obter votos
suficientes na eleição de 1933, unem-se em torno do Partido Autonomista. O partido
elegeu dez deputados.
No entanto, a proposta de autonomia assumida por Vargas não foi diretamente
aceita na Constituinte, que aprovou em plenário um dispositivo que cerceava a autonomia
política-administrativa do Distrito Federal, estabelecendo a indicação do prefeito pelo
presidente da República mediante aprovação do Senado e com o Legislativo à cargo de
uma Câmara Municipal eletiva. Esse dispositivo seria o artigo 15 do primeiro capítulo da
nova Constituição Federal, mas o presidente Vargas encontrou uma forma de negociar a
decisão. Assim, em 1934, foi aprovado uma disposição transitória do texto constitucional
que regulamentava a transferência da capital para o interior do país e garantia ao Rio de
Janeiro, capital interina, total autonomia político-administrativa, sendo que o primeiro
prefeito seria eleito indiretamente pela nova Câmara Municipal. “(...) Se, nas eleições de
1933, o Partido Autonomista já se mostrava como força majoritária na cidade, o
percurso até as eleições municipais de outubro de 1934 não deixou dúvidas de que o
projeto de coesão das principais forças políticas locais, garantido pela vitória da moção
autonomista, alcançava a hegemonia no campo político carioca. (...) Os resultados do
pleito municipal não representaram nenhuma surpresa quando 20 das 24 cadeiras da
Câmara foram preenchidas por candidatos do Partido Autonomista. A vitória era a
confirmação do apio que Pedro Ernesto recebia da maioria dos chefes políticos da
cidade e, principalmente, do respaldo popular à sua administração. Para dirimir
6
SARMENTO, Carlos Eduardo B. A arquitetura do impossível: a estruturação do Partido Autonomista
do Distrito Federal e o debate autonomista nos anos 1930. In: FERREIRA, Marieta de Morais (coord.).
Op. cit., pp.36-37.
quaisquer dúvidas, o interventor resolveu candidatar-se também a uma cadeira na
Câmara Municipal: foi o candidato mais votado (...)” 7
Eleito pela Câmara para cumprir o primeiro mandato de prefeito do Rio de janeiro
autônomo, Pedro Ernesto propôs um novo modelo de Estado que garantisse à população
o acesso a bens e serviços públicos, implementando significativas reformas nos sistemas
educacionais e de saúde pública da cidade e criando instituições de renome, como a
Universidade do Distrito Federal (UDF) e a União Trabalhista do Distrito Federal.
Enquanto isso, o governo federal, que passava por modificações estruturais,
intensificando sua base autoritária e centralizadora para a implementação o Estado Novo,
não viu com bons olhos o grau de autonomia e popularidade do prefeito Pedro Ernesto na
capital, sendo considerado uma ameaça política.
À essa época, os movimentos de massa ganhavam força no país, fazendo com que
Vargas altera-se a Lei de Segurança Nacional e promovesse a cassação de direitos
políticos, incluindo parlamentares. Nesse contexto, em 1936, o prefeito do Distrito
Federal é preso sob a acusação de tentativa de golpe comunista. As elites políticas locais,
temendo a perda total de autonomia política, aceitam a intervenção federal mediante a
manutenção do funcionamento da Câmara.
Promovido à chefe do executivo carioca, o então presidente da Câmara, padre
Olympio de Melo, passa a divergir radicalmente com seus antigos amigos de legenda a
proposta autonomista. Percebendo a possibilidade de absolvição e retorno do prefeito
Pedro Ernesto ao cargo, Olympio de Melo trama, juntamente com o presidente Vargas,
uma estranha composição que assegurasse a manutenção do poder local e solicita uma
intervenção federal. O governo Vargas não só aprova a intervenção, como também
decreta o fechamento da Câmara e nomeia o padre Olympio como interventor,
encerrando assim o breve período de autonomia político-administrativa do Distrito
Federal. “Garantida pelo governo Vargas, a experiência autonomista dos anos 1930
representou uma forma de controle, indireto e tutelar, das forças políticas locais.” 8 Ao
mesmo tempo, devido especialmente a sua aproximação com as massas urbanas, o
período autonomista no Rio de janeiro configurou como “um experimento político
inovador que deixaria marcas indeléveis na cultura política brasileira e evidenciaria o
vigor do campo político carioca.” 9
* * *
13
Ibidem, p.172.