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Versão On-line ISBN 978-85-8015-076-6

Cadernos PDE

OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE


NA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE
Artigos
Construção de uma prática reflexiva do Ensino de História:
A compreensão da cultura por meio do Museu de Periferia

Elizete Szolomicki Pereira1


Dra. Maria Auxiliadora Moreira dos Santos Schmidt2

RESUMO
O presente artigo trata da aplicação da Proposta de Intervenção, parte
do Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE) no Estado do Paraná.
Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), nº. 9394/96,
em seu Art. 67, Título VI, “a formação de profissionais da educação [...] terá
como fundamentos: I) a associação entre teorias e práticas, inclusive mediante
a capacitação em serviço” (BRASIL, 1996).
A pesquisa objetivou explorar o MUPE – Museu de Periferia do Bairro
Sítio Cercado - Município de Curitiba – Paraná, como ferramenta pedagógica
no ensino da disciplina de História, no sexto ano do Ensino Fundamental do
Colégio Estadual Hasdrubal Bellegard, para que os educandos pudessem
perceber as contribuições dos habitantes que ocuparam o bairro a partir da
década de 1970 na construção da história de nosso município e região onde os
mesmos estão inseridos. O local é aberto ao público, contudo, de acordo com
relatos anteriores dos alunos, poucos o conheciam, o que incentivou a
pesquisa, considerando a importância de conhecerem o local em que vivem e
constroem a sua história, estudando a cultura local por meio de documentos
oriundos do MUPE. Inspirado nos museus comunitários da Maré e do Cantagalo
Pavão e Pavãozinho do Rio de Janeiro, o MUPE do bairro Sítio Cercado - Curitiba, foi
iniciado em 2009 por moradores deste bairro, a partir da Oficina Museu, ofertada pelo
Instituto Brasileiro de Museus - Ibram/MinC, inaugurando em dezembro de 2011 a
sua primeira exposição: “Memórias e Sonhos do Sítio Cercado”.

PALAVRAS-CHAVE: Museu de Periferia; identidade cultural, aula-visita


e ensino de história.

1 Professora do Quadro Próprio do Magistério da Secretaria de Estado da Educação do Paraná


– elizetezso@hotmail.com
2 Professora do Curso de História da Universidade Federal do Paraná – dolinha08@uol.com.br
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O museu é o lugar em que sensações, ideias e imagens de pronto


irradiadas por objetos e referenciais ali reunidos iluminam valores
essenciais para o ser humano. Espaço fascinante onde se descobre e
se aprende, nele se amplia o conhecimento e se aprofunda a
consciência da identidade, da solidariedade e da partilha.
IBRAM

O objeto desta pesquisa pauta-se nas atuais mudanças do ensino de


História após a década de 90. As correntes historiográficas utilizadas para
referenciar as Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná romperam com a
ideia historiográfica do documento escrito ser a única fonte confiável para o
estudo da história, ampliando o conceito de documento para: imagens, objetos
materiais, oralidade, entre outros, a partir dos quais o conhecimento histórico é
produzido. Sendo assim, o documento deixou de ser “considerado apenas um
indício do passado”, sendo ele mesmo determinado por quem o produziu e
também ampliou-se o conceito de documento histórico. Assim, o documento
não é mais a prova do real, mas um indício que depende das questões e dos
problemas postos pelo historiador (SCHIMIDT, 2007, p. 77).
Parte-se do pressuposto de que história ensinada é sempre produto de
uma seleção, de um “recorte” temporal, histórico. As histórias são frutos de
uma multiplicidade de leituras, interpretações de sujeitos históricos situados
socialmente e temporalmente, que produzem suas interpretações sobre os
acontecimentos do passado.
Museus, bibliotecas, parques têm uma faceta autocomemorativa,
privilegiados do conhecimento onde se encontram acervados determinados
assuntos, contudo muitos tópicos da mesma temática não se fazem presentes.
Portanto há que se considerar que estes materiais sozinhos não pensem por
nós, professores, e alunos. É necessário encaminhar uma discussão, uma
problematização acerca do que está sendo retratado, da mesma forma como
há de se problematizar as condições em que foram produzidos os documentos
históricos, um artigo erudito, um livro.
Questões como: Por quem fala tal documento? De que história particular
participou? Que ação de pensamento está contida em seu significado? Em que
consiste seu ato de poder? (MARSON, apud BITTENCOURT, p. 332). Deve
perpassar o cotidiano da prática do ensino de história.
Citando Paulo Freire (1987, p, 101) estudar história, não significa ou
implica saber apenas o que aconteceu, e sim poder ampliar o conhecimento
sobre nossa própria história. Sabendo que o ser humano é um ser, sendo, um
campo de possibilidades historicamente condicionado e aberto a mudanças
aponta para uma pedagogia em que o diálogo está enraizado na
“situacionalidade” do ser no mundo: "os homens são porque estão em
situação". Portanto, a educação proporciona o crescimento do ser humano na
medida em que considera o ser um estar, por meio da prática cotidiana de
pensar e atuar criticamente sobre a situação em que enquanto existência
participa efetivamente.
Nesta pesquisa buscou-se entender quais relações o MUPE – Museu de
Periferia do Sitio Cercado – Curitiba – Paraná tem com a cultura local, com a
comunidade como um todo, com as escolas que se encontram situadas nesta
região e a percepção que os alunos do Colégio Estadual Hasdrubal Bellegard
têm a respeito da construção da história contada a partir dos relatos dos
moradores que construíram o bairro em que residem, não por meio de uma
história oficial, grafada em livros, mas sim pela história documentada em
fotografias, pelos objetos da época dos primeiros acampamentos, pelos relatos
contados na variação linguística da comunidade que se instalou na localidade,
com início na década de 1970.
Desta forma, procurou-se privilegiar a utilização do objeto histórico como
documento na “aula-visita” ao Museu de Periferia, visto na sua dimensão de
evidência histórica, pela qual o estudante precisa aprender a fazer perguntas,
levando-o à percepção de que sua realidade e a sociedade na qual se insere
têm um passado e que o presente que hoje vivenciam passará a compor a
história do bairro, do município, do estado, enfim de sua própria história.
O MUPE pretende fortalecer a cultura da periferia, valorizando artistas
locais, reconhecendo e divulgando o patrimônio cultural, material e imaterial do
Sítio Cercado. A missão é ser um Museu Comunitário que faça seus visitantes
refletirem sobre o meio no qual estão inseridos, contemplando em sua
exposição os costumes, a arte, a cultura, a tradição, os valores, os rituais, as
crenças, o cotidiano e as diversas manifestações artísticas da Periferia.
A exposição do MUPE narra, por meio de fotografias e objetos, a história
da região sul de Curitiba – desde os desbravadores e proprietários do início do
século XX à formação das 13 vilas que compõem atualmente o bairro.
Possibilitando o conhecimento de como viveram os pioneiros no período da
ocupação, alojados em barracas, sobre os utensílios e ferramentas que
utilizavam, como por exemplo, chaleiras de ferro, torradores de café,
lamparinas, baldes, cordas para demarcarem o território dos lotes, o megafone
usado nos protestos de luta pela moradia. E, através desses objetos,
fotografias e relatos acervados tem-se o conhecimento das primeiras
lideranças comunitárias locais, bem como as lideranças atuais que ainda lutam
pela regularização dos terrenos, pela estruturação do bairro e organização da
comunidade.
Através da compilação de relatos sobre as primeiras famílias que
tomaram posse do território que hoje se denomina bairro Sítio Cercado, é
possível conhecer um pouco da história deste local desde a sua formação até
1987. Este relato foi lido pelo Senhor José Afonso Filho (Zuca), durante uma
reunião da comunidade na Vila Vitória em 22/05/2009 e se encontra acervado
no MUPE.
Um sítio de 175 alqueires deu origem ao atual bairro Sítio Cercado,
mantendo o nome do sítio que era cercado pelas águas dos arroios do Padilha,
Cercado e Boa Vista, que delimitam o terreno. Tinha como proprietário o
Senhor Laurindo Ferreira da Cruz, nascido em 22/12/1862, esposo de Maria
Pereira de Andrade. Habitavam uma casa grande, composta por 14 cômodos,
construída de pedra natural e de barro, onde hoje se encontra o conjunto de
Moradias Olinda, entre a rua Apucarana e a rua Sertaneja. Na propriedade se
criava gado bovino e suíno, com vasto pomar composto por laranjeiras,
mimoseiras, pessegueiros e figueiras.
O acesso ao sítio se dava através da linha seca, onde hoje se situa a
Igreja do Futurama. Após o falecimento do Senhor Laurindo em 23/05/1932, o
sítio foi dividido entre seus três filhos: Júlia, Sezinando e Isaac. A Júlia, casada
com Pedro Ferreira, coube a parte dos fundos do sítio, uma faixa de terra
encostada no arroio Cercado. Ao Sezinando coube a parte do meio, onde hoje
se localiza o território desde o Jardim Irati até o rio das Padilhas. Isaac ficou
com a casa paterna e a área de frente do sítio, onde atualmente se localizam
as vilas Rio Negro e Santa Celeste. Isaac casou-se com dona Magdalena
Claudino da Cruz que lhe deu três filhos: Deusita, Eurides e Isaíde.
O senhor Sezinando vendeu, em 1946, a sua parte do terreno à colônia
dos Irmãos Menonitas (alemães), onde passou-se a se criar gado leiteiro,
distribuindo a área em faixas de terra entre os leiteiros alemães, de acordo com
as condições e possibilidades de cada um. Em 1947, após a morte de sua filha
Isaíde, o senhor Isaac abandonou o sítio e se mudou para o atual bairro
Pinheirinho onde construiu uma casa na entrada da estrada para o atual bairro
Umbará, inaugurando o Posto de Gasolina Pinheirinho. O sítio foi entregue aos
cuidados de seu agregado José Gonçalves e sua esposa. Em 25/05/53 o Sr.
Isaac Ferreira da Cruz, que já havia vendido 10 alqueires aos leiteiros alemães,
vende o restante de sua herança ao Sr Maciel Augusto José Bohn, Newton e
Gilberto Agiber, que, em sociedade, deram início ao loteamento da Vila Rio
Negro. A Vila Santa Celeste foi loteada em 1972. O Sr. Domingos Campos
adquiriu a chácara com a casa original, área entre as ruas Porecatu e Astorga,
onde hoje se localiza o conjunto de Moradas Olinda. Em 21/04/1955, em
circunstâncias bastante confusas a casa original foi destruída em virtude de um
incêndio.
Contudo, com ausência de infraestrutura e interesse dos compradores, a
povoação do loteamento demora a ocorrer. Toda área que hoje compõe o Sítio
Cercado, com terrenos bastante valorizados, era considerada uma área sem
futuro ou condições de progresso.
Somente a partir dos anos de 1970, forçadas pelo êxodo rural, famílias
vindas inicialmente de Santa Catarina, depois do Norte do Paraná, passam a
ocupar os novos loteamentos.
Os alemães, produtores de leite e gado, pressionados pelo crescimento
da cidade, vendem as suas terras às companhias de loteamento, o que
promove uma mudança estrutural na região através das formações: Vila
Americana (1968), Vila Nossa Senhora de Lourdes, Santa Joana, Jardim
Tranquilo, Jardim Irati (1974), e outros. Em 1978, a partir de uma ocupação da
área por famílias sem casa surge a Vila Nova Aurora. E por fim em 1985, a
partir das desapropriações feitas pela Prefeitura Municipal de Curitiba com a
finalidade de assentar inúmeras famílias surgem as moradias Olinda e Del Rey.
Em 1987, esta parte do Sítio Cercado contava com mais de 6 000 famílias ou
24 000 pessoas.
Como ressalta José Américo Pessanha, qualquer exposição é,
necessariamente, um ato comunicativo, é preciso entender os museus no
conceito das "instituições argumentativas":
[...] mais do que em discursos museais, eu falaria em argumentos
museais. Os museus, a meu ver, e não só os museus, mas as
ciências humanas também, e não só as ciências humanas, a filosofia
também, nós todos no dia-a-dia somos seres fundamentalmente
argumentativos, persuasivos, o que é uma maneira de dizer que
somos seres sedutores. Pretendemos cativar para nossas ideias,
nosso ponto de vista, nossa causa, nosso programa, nosso partido,
nossa religião, nossa mercadoria, nosso produto, nossa empresa,
nossa pátria, nossa causa política, enfim, o tempo todo estamos não
simplesmente nominando coisas - água, água, copo, copo, caneta,
caneta, não importa -, nós não estamos dizendo às crianças 'pedra',
'lago', 'árvore’, mas 'não suba na pedra', 'não meta o pé no lago' [...]
(PESSANHA, 1996, p. 33).

Para Halbwachs (1990, p.88):


“A memória coletiva, ao contrário [da história], é o grupo visto de
dentro, e durante um período que não ultrapassa a duração média da
vida humana, que lhe é, frequentemente, bem inferior. Ela apresenta
ao grupo um quadro de si mesmo que, sem dúvida, se desenrola no
tempo, já que se trata de seu passado, mas de tal maneira que ele se
reconhece sempre dentro dessas imagens sucessivas. A memória
coletiva é um quadro de analogias, e é natural que ela se convença
que o grupo permanece, e permaneceu o mesmo, porque ela fixa sua
atenção sobre o grupo, e o que mudou, foram as relações ou
contatos do grupo com os outros. Uma vez que o grupo é sempre o
mesmo, é preciso que as mudanças sejam aparentes: as mudanças,
isto é, os acontecimentos que se produziram dentro do grupo, se
resolvem elas mesmas em similitudes, já que parecem ter como papel
desenvolver sob diversos aspectos um conteúdo idêntico, quer dizer,
os diversos traços fundamentais do próprio grupo”
Halbwachs se refere à vida cotidiana ligando o indivíduo ao coletivo.
Salienta que o cotidiano promove encontros entre os homens e seus mundos
sociais nos quais a sociedade se sobreporia. Tanto no que tange a concepção
de sua própria existência por meio das construções das memórias sociais e
coletivas, quanto no seu lugar no tempo e no espaço. Faz referência a um
tempo que não se esvai, mas que é duradouro e permite a sensação de que o
grupo também poderia ter esta duração, continuação e estabilidade .

NARRANDO A HISTÓRIA DO BAIRRO A PARTIR DO MUPE – MUSEU DE


PERIFERIA DO SÍTIO CERCADO

A narrativa foi escolhida como forma de expressão do pensamento dos


alunos, partindo do pressuposto apontado por Rusen (1993), ao colocar que
quando se narra, pode ser apreendida a ação intencional do sujeito, isto é, a
sua consciência histórica. Quando narramos, produzimos conhecimento sobre
nossa vida, abrindo espaço para a (auto) (trans) formação, tornando possível a
compreensão de questionamentos pertinentes àquilo que está sendo narrado.
Segundo Rüsen a consciência histórica como forma de consciência
humana está relacionada com a vida humana prática. Para este autor, um dos
elementos dessa consciência é a orientação temporal, haja visto que o homem,
ao estabelecer um quadro comparativo do que experimenta como mudança de
si mesmo e de seu mundo, fundamenta-se no seu tempo para que possa
realizar intenções do seu agir. Distingue tempo natural de tempo humano,
sendo que o tempo natural é experimentado como um obstáculo ao agir,
vivenciado pelo homem como mudança sua e de seu mundo, opondo-se a ele.
Desta forma, a experiência do tempo é perturbadora da ordem de
processos temporais da vida humana prática. Como exemplo do tempo natural
pode-se citar o nascimento e a morte, sendo esses compreendidos mediante
interpretação do próprio ser humano.
Para Rüsen (2001) “as intenções e as diretrizes do agir são
representadas e formuladas como um processo temporal organizado da vida
humana prática”. Sendo o tempo projetado como intenção, influenciando o agir
humano, pois os homens se autoafirmam e buscam nele obter reconhecimento.
Esse autor aponta três fases distintas para especificar a operação
intelectual da narrativa no mundo da vida prática:
- A narrativa como constitutiva da consciência histórica - recorre a
lembranças para interpretar as experiências de mudanças temporais.
“O passado é, então, como uma floresta para dentro das quais os
homens, pela narrativa histórica, lançam seu clamor, a fim de
compreenderem, mediante o que dela ecoa o que lhes e presente sob
a forma de experiência do tempo (mais precisamente: o que mexe
com eles) e poderem esperar e projetar um futuro com sentido”
(RUSEN, 2001, p. 62).
Aponta que o passado não se recupera apenas por meio de lembranças,
sendo as experiências do tempo presente o impulsionador para esse retorno.
Sendo a consciência histórica o local em que o passado é levado a falar e,
este, só fala quando questionado.Contudo é a lembrança interpretativa que faz
presente o passado, na contemporaneidade.
- Representação de continuidade - sendo que a interdependência entre
passado, presente e futuro, se pauta pela orientação da vida humana prática
atual. Nesta, a narrativa histórica torna presente o passado, numa consciência
de tempo na qual passado, presente e futuro são integrados, constituindo a
consciência histórica.
“A narrativa histórica organiza essa relação estrutural das três
dimensões temporais com representações de continuidade, nas quais
insere o conteúdo experiencial da memória, a fim de poder interpretar
as experiência do tempo presente e abrir as perspectivas de futuro
em função das quais se podem agir intencionalmente. A narrativa
histórica constitui a consciência histórica como relação entre
interpretação do passado, entendimento do presente e expectativa do
futuro mediada por uma representação abrangente da continuidade”.
(RUSEN, 2001, p.65).

- Critérios determinantes das representações de continuidade - a


narrativa como operação intelectual decisiva para a constituição da
consciência histórica. O elemento unificador no processo da relação: presente,
passado e futuro mediante a narrativa é a resistência do ser humano, a perda
de si e de seu esforço de autoafirmação, constituindo-se como identidade. “A
narrativa é um meio de constituição da identidade”. (p. 66). O autor conclui:
(...) “A consciência histórica constitui-se mediante a operação,
genérica e elementar da vida prática, do narrar, com a qual os
homens orientam seu agir e sofrer no tempo. Mediante a narrativa
histórica são formuladas representações da continuidade da evolução
temporal dos homens e de seu mundo, instituidoras de identidade,
por meio da memória, e inseridas, como determinação de sentido, no
quadro de orientação da vida prática humana”. (RUSEN, p. 66, p.67).

Ao propor um estudo sobre a importância sócio-histórica do MUPE para a


comunidade do bairro, há de considerar o exposto por Halbwachs
“Quando dizemos que um depoimento não nos lembrará nada se não
permanecer em nosso espírito algum traço do acontecimento
passado que se trata de evocar, não queremos dizer todavia que a
lembrança ou que uma de suas partes devesse subsistir tal e qual em
nós, mas somente que, desde o momento em que nós e as
testemunhas fazíamos parte de um mesmo grupo e pensávamos em
comum sob alguns aspectos, permanecemos em contato com esse
grupo, e continuamos capazes de nos identificar com ele e de
confundir nosso “passado com o seu” (1990, p.28).

Com base no exposto por Halbwachs, entendemos que o MUPE, enquanto


memória é um instrumento capaz de despertar nos educandos a percepção de
pertencimento do lugar em que se encontra, pelos laços que permanecem em
contato com o grupo.
Segundo Josso (2006, p.22), nas ciências humanas, as histórias de vida
como método de pesquisa iniciaram nas primeiras décadas do século XX, com
expressividade na sociologia, também utilizada na antropologia e psicologia. E, no
início dos anos de 1980, alguns pesquisadores no campo da educação de adultos,
começaram a se difundi-la, com destaque para: “G.Pineau e Marie-Michèle
(França-Québec), G. de Villers e sua equipe (Bélgica), B. Courtois e G. Bonvalot e
sua grande equipe da AFPA (França), P. Dominicé, M.Ch. Josso, M. Finger
(Suiça)”. No Brasil, conforme pesquisa, contatou-se que
[...] a intensificação de tais metodologias aqui no Brasil, sobretudo a
partir dos anos de 1990, contribuiu para renovar a pesquisa
educacional sob vários aspectos, notadamente no que diz respeito à
pesquisa e à formação de professores, fazendo aflorar o interesse por
questões e temáticas novas, tais como as que se configuram nos
estudos sobre profissão, profissionalização e identidades docentes
(BUENO, 2006, p. 386)
A partir dessas experiências abre-se a possibilidade de se instigar um
formar e um educar diferentes. Essa construção da experiência centra-se na
singularidade e na subjetividade, o que promove uma proximidade entre o
pesquisador e o sujeito da pesquisa, pois estabelece, pelo diálogo, uma
relação dialógica e dialética. A partir da década de 1990 podemos dizer que,
com a pluralidade de pesquisas, teorias e práticas há uma mudança no cerne
da pesquisa em educação, que supera uma racionalidade técnico-objetiva para
propor uma valorização da experiência vivida. Para Josso:
Trabalhar sobre relatos de histórias de vida no campo das ciências
humanas e na interpretação interativa com seus autores é uma
revolução metodológica que constitui um dos signos de emergência
de dois novos paradigmas: o paradigma de um conhecimento
fundamentado sobre uma subjetividade explicitada, ou seja,
consciente de si mesma, e o paradigma de um conhecimento
experiencial que valoriza a reflexividade produzida a partir de
vivências singulares. Trata-se, entre outras coisas, de dar uma
legitimidade para a subjetividade explicitada, fora de seus territórios
reconhecidos na literatura, nas artes e nas psicologias analíticas.
(2006, p.21)

E Moran (2003) complementa: “Se os alunos fazem pontes entre o que


aprendem intelectualmente e as situações reais, experimentais, profissionais
ligadas aos seus estudos, a aprendizagem será mais significativa, viva,
enriquecedora”.
Desta forma acredita-se que o MUPE pode ofertar condições que
propiciem o aprendizado sobre a realidade que nossos alunos vivenciam,
através das pesquisas, dos relatos, das comparações, das indagações, das
narrativas acerca do tema e, enfim, analisar a importância do Museu de
Periferia para o ensino da história local.

ENCAMINHAMENTOS METODOLÓGICOS

Com base nos pressupostos teóricos apresentados, o percurso


metodológico da proposta baseou-se na perspectiva da pesquisa qualitativa,
tendo como referência o estudo de caso do Museu de Periferia do Sitio
Cercado e sua relação com a aprendizagem histórica de alunos e professores.
Neste sentido, adotou-se a perspectiva da aula-visita ao Museu, a partir dos
trabalhos desenvolvidos por Compagnoni (2009). Este autor, no seu trabalho
sobre as relações entre museus e educação histórica, discute o significado, a
“aula visita” como uma proposta metodológica para a educação histórica e
museus. Entre as questões principais apontadas por ele, estão elementos
importantes a serem destacados, tais como o fato de que a ida ao museu tem
que ser preparada antecipadamente pelos professores, não pode ser encarada
como um mero passeio, os documentos do acervo precisam ser trabalhados
como evidências históricas, isto é, não podem ser percebidos pelos alunos
como meros registros de um passado pronto e acabado, mas precisam ser
problematizados e questionados.
O primeiro passo foi conhecer antecipadamente, o MUPE – Museu de
Periferia do Sítio Cercado, sua finalidade, a exposição, os objetos. Como o
Museu se organiza para a “aula-visita” com relação ao horário de
funcionamento, agendamento, o número de alunos permitidos por “aula-visita”,
a necessidade de acompanhante, entre outros.
A “aula-vista” ao museu não pode ser improvisada. Ela precisa ser
planejada e discutida com os educandos dando ênfase aos aspectos do
conteúdo que será trabalhado, o significado do museu, os interesses e a
participação ativa dos mesmos enquanto sujeito na produção do conhecimento
histórico, manifestada em forma de uma narrativa histórica, após a “aula-visita”
ao museu (SCHMIDT e CAINELLI, 2004, p. 123).
Lucien Febvre (1989) explica que "[...] pôr um problema é precisamente
o começo e o fim de toda a história. Se não há problemas, não há história.
Apenas narrações, compilações". Desta forma entende-se que a
problematização é a priori, negar as perguntas tradicionais, as indagações que
solicitam apenas dados ou informações sobre datas, fatos ou determinadas
personalidades. No caso do museu: Quais as peças expostas? Qual a data de
determinado artefato? A quem pertenceu este ou aquele objeto? Estas
interrogações inclinam-se para a produção de um reflexo condicionado. E não
havendo problemáticas historicamente fundamentadas, o resultado da pergunta
ofertará somente informações sobre datas e fatos, sem relação dialética com o
presente.
Portanto, o desafio posto foi potencializar o campo de percepção diante
dos objetos, por meio da "pedagogia da pergunta", como apontado por Paulo
Freire: Aprender a refletir a partir da "cultura material" em sua dimensão de
experiência socialmente engendrada.

Canclini argumenta que


"[...] o museu e qualquer política patrimonial tratam os objetos, os
edifícios e os costumes de tal modo que, mais que exibi-los, tornam
inteligíveis as relações entre eles, propõem hipóteses sobre o que
significam para nós que hoje os vemos ou evocamos." (CANCLINI,
1998, p. 202)

3. PROCEDIMENTO DE IMPLEMENTAÇÃO PEDAGÓGICA NA ESCOLA

Após apresentação do Projeto à Direção, à Equipe Pedagógica e ao


Corpo Docente do Colégio para ciência das atividades que seriam
desenvolvidas através do Programa de Desenvolvimento Educacional, o
projeto foi apresentado aos educandos do 6º ano F, do Ensino Fundamental,
turma na qual o projeto foi aplicado.

3.1 ATIVIDADES REALIZADAS:

Atividade 1: Explicação para os educandos sobre os objetivos do projeto PDE


e como ele se efetiva dentro da escola.
Os alunos foram indagados sobre o conhecimento que tinham sobre museus;
- Se já haviam visitado um museu?
- Se sim, qual?
- Qual a sensação que sentiram ao visitá-lo?
- Se conheciam o MUPE - Museu de Periferia do Sitio Cercado.

Atividade 2: Apresentação do MUPE aos alunos através de fotos e slides.


- Realizamos uma conversa sobre museus e seus objetivos, como são
organizados e mais especificamente sobre o Museu do bairro. Explicamos o
que é um acervo, o que são fontes históricas e indagamos sobre o que estas
coisas podem nos contar.
- Foi proposto para os alunos contarem através de imagens e/ou texto como
eles imaginavam o bairro antes de se transformar em um lugar tão povoado.
Posteriormente, alguns apresentaram para a sala o que produziram.
Atividade 3: Os alunos foram incentivados a realizar uma pesquisa junto a
seus familiares (pais, tios, avós..) no intuito de pesquisarem sobre a
contribuição que os mesmos tiveram na construção/formação do bairro Sítio
Cercado. As perguntas foram:
- Quando vieram morar no bairro?
- De onde vieram?
- Que motivos os trouxeram para cá?
- Como era o bairro quando aqui chegaram?
- Que mudanças ocorreram?
- Se eles têm fotos antigas do bairro.
Após a pesquisa realizada pelos alunos, abrimos uma roda de conversa para
que pudessem expor o que haviam pesquisado sobre seus familiares e sobre a
história do bairro.

Atividade 4: Após ter agendado a visita ao MUPE, foi encaminhada


autorização para os pais e responsáveis para que os alunos pudessem visitar o
Museu de Periferia. Onde foi possível:
- Observar alguns objetos que faziam parte do cotidiano dos acampamentos;
- Observar inúmeras fotografias dos acampamentos (figura 1 e 2) das primeiras
casas, das ruas que foram surgindo, como eram os locais onde hoje se
encontram as grandes lojas, os colégios, as ruas, o terminal de ônibus e
mesmo as residências dos alunos;
- Conversar com os administradores do Museu e escutar histórias sobre o
bairro.
Figura 1 - Acampamento da ocupação feita em 1988 e que desencadeou a formação do bairro
nos moldes de hoje

Fonte: MUPE

Figura 2 Exposição de fotos – primeiros habitantes do bairro Sítio Cercado

Fonte: autora - 2014


Atividade 5: Laboratório de Informática.
Os alunos foram encaminhados ao laboratório de informática para pesquisarem
mais sobre o MUPE e sobre o bairro Sítio Cercado e assim puderam comparar as
informações encontradas nos sites com o que eles vivenciaram.

Atividade 6: Produção de narrativas textuais e orais sobre os conhecimentos


obtidos através do MUPE sobre a formação histórica do bairro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este projeto pretendeu levar os alunos a compreenderem a


formação/construção histórica do bairro em que vivem através do MUPE,
despertando, através da história de seus antepassados, o sentimento de
pertencimento individual e coletivo, e, assim, despertar nesses educandos, a
valorização do próprio eu e a percepção de que, se os primeiros moradores
deixaram suas histórias documentadas através da memória do MUPE, é
possível e importante que eles também o façam, pois essas crianças não só
vivenciam com são a história atual do Sítio Cercado.

REFERÊNCIAS

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