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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JATAÍ

UNIDADE ACADÊMICA ESPECIAL DE ESTUDOS GEOGRÁFICOS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

DANILO SOUZA MELO

AS CONTRADIÇÕES DA REPRODUÇÃO DO LATIFÚNDIO E (RE)


CRIAÇÃO DO CAMPESINATO NOS TERRITÓRIOS RURAIS
PARQUE DAS EMAS (GO) E BOLSÃO (MS)

JATAÍ
2021
DANILO SOUZA MELO

AS CONTRADIÇÕES DA REPRODUÇÃO DO LATIFÚNDIO E (RE)


CRIAÇÃO DO CAMPESINATO NOS TERRITÓRIOS RURAIS
PARQUE DAS EMAS (GO) E BOLSÃO (MS)

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Geografia/PPGGEO - Stricto
Sensu - Universidade Federal de Jataí, Unidade
Acadêmica Especial de Estudos Geográficos,
como requisito para obtenção do título de Doutor
em Geografia.
Orientador: Prof. Dr. Sedeval Nardoque
JATAÍ
2021
DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a todos camponeses


e trabalhadores que lutam
diariamente por uma fração do território

Aos meus pais, seu João e dona Cida,


por todo amor e trabalho dedicados aos filhos
AGRADECIMENTOS

Esta pesquisa teve o privilégio de contar com o apoio e contribuição de muitas pessoas que, de

alguma forma, foram importantes nesta jornada. Expresso meu agradecimento e gratidão

particularmente:

A minha companheira Nayla, pelo o apoio na decisão em realizar o doutoramento e por

compreender as ausências provocadas pela pesquisa.

Agradeço ao meu irmão Samuel e à Loyane pelo apoio, incentivo e pelas correções gramaticais.

Agradeço aos meus familiares, em especial minha tia Susana, Wilson e Júlia.

Agradeço ao professor e orientador Dr. Sedeval Nardoque (UFMS/CPTL) pelo incentivo à

pesquisa de doutorado, pela paciência e orientação.

A professora Dra. Rose (UFMS/CPTL), primeira orientadora e quem me apresentou a pesquisa

e a Geografia Agrária.

Aos amigos, companheiros de pesquisa e sonhos André Bersani, Marco Aurélio e Mariele.

Agradeço ao querido Mie (Mieceslau Kudlavicz), figura importante na minha formação e

grande exemplo na luta ao lado dos camponeses e trabalhadores do campo.

A todos os colegas do Laboratório Geoagrária da UFMS/CPTL pela companhia e discussões

durante o grupo de estudos, em especial ao Prof. Thiago.

Às irmãs de orientação Letícia e Luana pelo companheirismo e colaboração na pesquisa.

Ao amigo Adalto Braz pela parceria na empreitada de morar e estudar em Goiás, dividindo as

alegrias e tensões da pós-graduação.

Ao amigo de pesquisa Acácio pelas milhões de dúvidas esclarecidas e pela parceria na análise

da estrutura fundiária brasileira.

A todos professores e membros da Rede Dataluta, em especial ao professores Bernardo

(UNESP), Cacá Feliciano (UNESP) João Fabrini (UNIOESTE) e Djoni Ross (UNIOESTE).
Ao professor Ariovaldo (USP), pelas contribuições durante o doutorado e pela disponibilização

da cadeia dominial da Fazenda Rio Paraíso.

Ao professor Celso Locatel (UFRN) por me receber na universidade em Natal (RN), pelo curso

de Arcgis e pelo trabalho de campo no território rural do Mato Grande.

Aos professores (as) da Universidade Federal de Goiás, atual UFJ, em especial, Prof. Evandro

Clemente, Prof. Dimas Peixinho e Prof. William Ferreira.

Agradeço ao jornalista Alceu Castilho pelas conversas sobre a Bancada Ruralista.

Agradeço aos colegas da pós-graduação na UFG Angélica, Bruno, Davi, Fernando, Flávia,

Guilherme, Gustavo, Gustavo Carvalho, Valdir, Vilson, Íria, Thiago, Hyago, Bruno, Marcos,

Mariza e Tatiane.

Ao amigo Hermiliano pela amizade e ajuda desde os tempos de graduação.

Agradeço ao professor Alécio pela receptibilidade no Laboratório de Geoprocessamento.

Agradeço a Micaeli secretária da pós-graduação em Geografia da UFJ.

A todos discentes e docentes do Instituto Federal de Goiás, campus de Jataí.

Agradeço ao amigo Fabio Queiroz pelo apoio nos trabalhos de campo em Paranaíba (MS).

Agradeço aos amigos Rodrigo, Juliano, Willians, Márcio, Vinicius e Samuel Tarsi, pela

amizade e pela foto de capa desta pesquisa.

Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEGP) pela bolsa

concedida.

Agradeço a todos (as) professores (as) que passaram pela minha vida, em especial a Prof. Tânia,
minha primeira professora de Geografia.
"Na verdade a questão agrária engole a todos e a
tudo, quem sabe e quem não sabe, quem vê e quem
não vê, quem quer e quem não quer".
(José de Souza Martins, 1994, p.12)
RESUMO
A presente pesquisa, parte do pressuposto teórico da existência de uma questão agrária
brasileira causada pelo desenvolvimento do capitalismo no campo que de maneira desigual,
contraditória e combinada reproduz elementos contraditórios, dentre eles, latifúndio e
campesinato. Dessa maneira, a concentração fundiária e o latifúndio são produtos do
desenvolvimento histórico de um capitalismo rentista, onde a propriedade da terra garante ao
proprietário o direito de se apropriar de parte da mais-valia social, a renda da terra.
Contraditoriamente, em uma disputa desigual com a agricultura capitalista, o campesinato luta
para (re)produzir seu modo de vida baseado no trabalho familiar por meio de práticas produtivas
e organizacionais que possibilitem a sua manutenção na terra e geração renda. Nesse sentido,
em um contexto de predomínio do latifúndio no Brasil, grande parte dos camponeses acessam
a terra por meio da política de Reforma Agrária. Outros programas, como o Programa Nacional
de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais (PRONAT) objetivaram estruturar e
organizar harmonicamente campesinato e agricultura capitalista. Assim, os esforços
empreendidos nesta pesquisa objetivam comprovar a hipótese da reprodução do latifúndio e da
recriação do campesinato nos territórios rurais Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS) como
parte da contradição do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo no campo.
Como procedimento de pesquisa, foi estabelecido: revisão bibliográfica de obras que tratam da
questão agrária, recriação camponesa e políticas públicas; sistematização e organização de
dados secundários, como do IBGE, INCRA, entre outros; trabalho de campo e uso de fontes
orais e aplicação de entrevistas. A pesquisa revelou a relação intrínseca e complexa da
reprodução do latifúndio e recriação camponesa no interior do desenvolvimento desigual,
contraditório e combinado do capitalismo. Observou-se ainda as relações de classe entre
capitalistas/latifundiários no Estado como elemento da questão agrária brasileira e sua
influência nas políticas públicas para o campesinato. Por outro lado, foi possível compreender
estratégias contraditórias adotadas pelos camponeses como forma de recriação enquanto classe
social.

PALAVRAS CHAVE: Questão Agrária; Latifúndio; (Re)criação camponesa; Estado.


ABSTRACT
This research starts from the theoretical assumption of a Brazilian agrarian question existence
caused by the capitalism development in the countryside which in an uneven, contradictory and
combined way reproduces contradictory elements, among them, latifundio and peasantry. Thus,
land concentration and latifundio are products of the historical development of rentier
capitalism, in which land ownership guarantees the owner the right to appropriate part of the
social surplus value, the land rent. Contradictorily, in an unequal dispute with capitalist
agriculture, the peasantry struggles to (re) produce their way of life based on family work
through productive and organizational practices that enable their maintenance on land and
income generation. In this sense, in a context of latifundio predominance in Brazil, a large part
of the peasants access the land through the Agrarian Reform policy. Other programs, such as
the National Program for Sustainable Development of Rural Territories (PRONAT) aimed to
structure and harmoniously organize peasantry and capitalist agriculture. Therefore, the
undertaken efforts in this research aim to prove the hypothesis of the latifundio reproduction
and peasantry recreation in the rural territories Parque das Emas (GO) and Bolsão (MS) as part
of the contradiction of the uneven and combined capitalism development in the countryside. As
research methodology, it was established: bibliographic review of works that deal with the
agrarian question, peasantry recreation and public policies; secondary data systematization and
organization, as from IBGE, INCRA, among others; fieldwork and use of oral sources and
application of interviews. The research revealed the intrinsic and complex relation between
latifundio reproduction and peasantry recreation within the uneven, contradictory and combined
development of capitalism. It was also observed the class relations between
capitalists/landowners in the State as a Brazilian agrarian question element and its influence on
public policies for the peasantry. On the other hand, it was possible to understand contradictory
strategies adopted by peasants as a form of recreation as a social class.

KEY WORDS: Agrarian Question; Latifundio; Peasantry (Re)creation; State.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Organograma do processo de representação da estrutura fundiária ....................... 47


Capa da Certidão de inventário .............................................................................. 57
Assentamento Serra, Paranaíba (MS): estrada de acesso ....................................... 63
Brasil: Área dos imóveis rurais de políticos declaradas ao TSE, por região brasileira
– 2018 92
Chapadão do Sul (MS): Revendedoras John Deere e Case Agriculture .............. 138
Rio Verde (GO): Vista panorâmica da Feira Tecnoshow Comigo - 2019 ........... 139
Jornal Estadão: manchete ..................................................................................... 150
Três Lagoas (MS): anuncio de compra de terras feito pela Eldorado Brasil ....... 151
Três Lagoas (MS), Chapadão do Sul (MS) e Jataí (GO): evolução dos preços da
terra (2003 – 2017) ............................................................................................................... 153
Fazenda Rio Paraíso: Cadeia dominial .............................................................. 163
Fazenda Morro Vermelho: Cadeia dominial ..................................................... 171
Cadastro Ambiental Rural: Brasil Real X Brasil Virtual .................................. 175
Brasil ocupações de terra (1988-2019).............................................................. 187
Brasil assentamentos rurais criados (1985-2019).............................................. 190
Brasil: Despesa empenhada na Ação de Aquisição de Terras - 211B, 2014 a 2020
(valores em R$) .................................................................................................................... 195
Mineiros (GO): acampamento Terra Livre ....................................................... 200
Paranaíba (MS): Lote dentro da área da Usina Paranaíba ................................. 201
Assentamento Paulistinha/Três Lagoas (MS): Lote e casa abandonados ......... 205
Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS): Vista parcial dos distritos rurais ......... 206
Simão – Paranaíba (MS): Sitio camponês ......................................................... 208
PA Serra: Poupa de maracujá embalada............................................................ 214
Manchete Jornal Correio do Estado: Incra cria em Sidrolândia mais uma “favela”
rural no Estado ..................................................................................................................... 216
Assentamento Pouso Alegre (Portelândia – GO): Camponeses apartando o gado
bovino de leite.......................................................................................................................223
Brasil: Programa de Aquisição de Alimentos - Doação (2010-2020) ............... 224
Assentamento 20 de Março (Três Lagoas – MS): horta.................................... 226
Assentamento Romulo Pereira (Jataí – GO): produção de biscoitos e doces ... 226
Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS): PAA Doação (2010-2020).................. 228
Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS): PNAE (2011-20) ................................ 230
Assentamento Lagoa do Bomfim: Vaca Bordada e o novo rebanho ................ 236
Mineiros (GO): Fundo do lote no Assentamento Formiguinha ........................ 247
Formiguinha: Ferramentas da quebra do baru................................................... 248
PA Nossa Senhora de Guadalupe (Jataí-GO): Produção de soja ...................... 252
Goiás e Mato Grosso do Sul: Emendas Parlamentares Federais para agricultura
em reais (2010 – 2017) ......................................................................................................... 257
Goiás: Emendas parlamentares Federais x Proinf (2010 a 2015) ..................... 258
Mato Grosso do Sul: Emendas parlamentares Federais x Proinf (2010 a
2015).............................. ...................................................................................................... 260
Mato Grosso do Sul: Reinaldo Azambuja faz entrega simbólica da chave dos
equipamentos aos prefeitos do estado .................................................................................. 263
PA Pontal do Faia (Três Lagoas-MS): Curral ................................................... 267
PA São Joaquim (Selviria-MS): novo prédio da escola .................................... 269
Bolsão (MS): Mosaico Encontro de Mulheres Camponesas ............................. 274
UFMS – Três Lagoas (MS): Feira Agroecológica ............................................ 279
Parque das Emas (GO): colegiado territorial .................................................... 280
LISTA DE MAPAS

Mapa 1 – Territórios rurais Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS): localização.....................18
Mapa 2 –Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS): rodovias e distâncias percorridas na
pesquisa.....................................................................................................................................62
Mapa 3 – Brasil: Imóveis rurais de políticos (2019-2022) ........................................................95
Mapa 4 – Brasil: imóveis rurais por estrato de área (2020)....................................................125
Mapa 5 – Brasil: imóveis rurais por estrato de área (2020)....................................................127
Mapa 6 - Territórios rurais Parque das e Emas e do Bolsão: Uso e ocupação do solo 2018.....137
Mapa 7 - Territórios Rurais Parque das e Emas(GO) e do Bolsão (MS): Estrutura Fundiária
2020........................................................................................................................................ 143
Mapa 8 – Brasil: Status dos imóveis certificados no SIGEF (2020)......................................177
Mapa 9 – Brasil: Imóveis rurais aguardando imissão da posse..............................................197
Mapa 10 – Parque das e Emas (GO) e Bolsão (MS): Assentamentos de Reforma Agrária e
Crédito Fundiário (2020).........................................................................................................210
Mapa 11 – Territórios rurais Parque das e Emas (GO) e do Bolsão (MS): População residente
e renda média por setor censitário (2010)...............................................................................218
Mapa 12 – Parque das e Emas (GO) e Bolsão(MS): Número de pessoas com idade igual ou
maior que 60 anos (2010)....................................................................................................... 238
LISTA DE TABELAS

Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS): módulos fiscais e dimensões dos latifúndios
em hectares (ha) – 2013 ........................................................................................................... 46
Brasil: número e área dos estabelecimentos com 1.000 hectares ou mais (1920-
2006)......................................................................................................................................119
Brasil: Número e área dos estabelecimentos agropecuários (2017) ..................... 120
Brasil: os 20 maiores imóveis rurais (2020) ......................................................... 123
Parque das Emas (GO): Número e área dos estabelecimentos agropecuários (2006 -
2017)......................................................................................................................................142
Bolsão (MS): Número e área dos estabelecimentos agropecuários (2006-2017). 143
Território Rural das Parque das Emas (GO): Maiores proprietários fundiários
(2020)..................................................................................................................................... 147
Território Rural do Bolsão (MS): Maiores proprietários fundiários (2020)......... 148
Brasil: formas de obtenção de terras para reforma agrária (2003-2017) .............. 191
Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS): Assentamentos rurais criados (1989 a
2019)......................................................................................................................................203
Brasil: Produção agropecuária entre pequeno e grande estabelecimentos
(2006).....................................................................................................................................221
Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS): PRONAF - Quantidade e Valor dos
Contratos (2015 -2020) .......................................................................................................... 233
Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS): Número de aposentadorias rurais e
porcentagem por município (2010 e 2019)............................................................................ 239
Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS): Número de famílias beneficiadas pelo Bolsa
Família em outubro de 2017 .................................................................................................. 243
LISTA DE QUADROS

Quadro 1- Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS): Candidatos a prefeito eleitos em 2016 e
suas ocupações............. ............................................................................................................ 97
Quadro 2- Parque das Emas (GO): Candidatos camponeses em 2020 ................................ 272
LISTA DE ABREVIAÇÕES

ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental


AGRAER - Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural
AGRIANUAL - Anuário da Agricultura Brasileira
ATER - Assistência Técnica e Extensão Rural
BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento
CAD - Cadastro Único
CAR - Cadastro Ambiental Rural
CIMI – Conselho Indigenista Missionário
CNA - Confederação da Agricultura e Pecuária
CNASI - Confederação Nacional das Associações de Servidores do Incra
CNPJ - Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica
CNPQ - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
COMIGO - Cooperativa Agroindustrial dos Produtores Rurais do Sudoeste Goiano
CPI - Comissão Parlamentar de Inquérito
CPT - Comissão Pastoral da Terra
CRI - Cartórios de registro de imóveis do município
DAP - Declaração de Aptidão ao Pronaf
DATALUTA - Banco de Dados da Luta pela Terra
DEM - Democratas
DNOCS - Departamento Nacional de Obras Contra as Secas
EIA - Estudo de Impacto Ambiental
FPA - Frente Parlamentar da Agropecuária
FSC - Forest Stewardship Council
FUNAI - Fundação Nacional do Índio
FUNRURAL - Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural
GEOAGRARIA- Laboratório de Geografia Agrária
GETT - Grupo de Pesquisa Terra-Território
IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
MAPA - Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IDAGO - Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás
INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
INPE - Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
LABER - Laboratório de Estudos Regionais
LABET - Laboratório de Estudos Territoriais
MAE - Metodologia de Avaliação de Empresas
MDA - Ministério do Desenvolvimento Agrário
MP – Medida Provisória
MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra
NCz$ - Cruzado Novo
NEAF - Núcleo de Agroecologia e Agricultura Familiar
NEDET - Núcleo de Extensão em Desenvolvimento Territorial
PAA - Programa de Aquisição de Alimentos
PCB - Partido Comunista Brasileiro
PDRT - Programa de Desenvolvimento Rural Territorial
PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PMN – Partido da Mobilização Nacional
PNAE - Programa Nacional de Alimentação Escolar
PNERA - Plano Nacional de Reforma Agrária
PNPB - Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel
PP - Partido Progressista
PPGEO/UFG - Programa de Pós-Graduação em Geografia Universidade Federal de Goiás
PRB – Partido Republicano Brasileiro
PROINF - Apoio a Projetos de Infraestrutura e Serviços em Territórios Rurais
PRONAF - Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
PRONAT - Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais
PSC - Partido Social Cristão
PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira
PSL – Partido Social Liberal
PT – Partido dos Trabalhadores
PTB – Partido Trabalhista Brasileiro
PV – Partido Verde
RIMA - Relatório de Impacto Ambiental
SEAD - Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário
SIGEF - Sistema de Gestão Fundiária
SNCI - Sistema Nacional de Certificação de Imóveis Rurais
SNCR - Sistema Nacional de Certificação Rural
STJ - Superior Tribunal de Justiça
SUDENE - Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste
TJMS - Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul
TSE - Tribunal Superior Eleitoral
UDR - União Democrática Ruralista
UFJ - Universidade Federal de Jataí
UFMS - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
UFPR - Universidade Federal do Paraná
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 16
1 AS CINZAS: OPÇÕES TEÓRICAS E PROCEDIMENTOS DA PESQUISA ........... 22
1.1 O caminho do pesquisador e a problemática da pesquisa ........................................... 24
1.2 Hipótese, objetivo geral e específicos ......................................................................... 26
1.3 Revisão bibliográfica e pressupostos teóricos ............................................................. 26
1.4 As categorias da pesquisa ............................................................................................ 30
1.5 Conceitos ..................................................................................................................... 37
1.6 Técnica de mapeamento da estrutura fundiária ........................................................... 42
1.7 Políticos e a questão agrária: PARALELO entre dados do TSE e DO INCRA .......... 48
1.8 O preço da terra ........................................................................................................... 51
1.9 Uso e ocupação do solo ............................................................................................... 53
1.10 Análise da cadeia dominial........................................................................................ 54
1.11 Trabalho de campo .................................................................................................... 59
2 HEGEMONIA LATIFUNDIÁRIA NO ESTADO BRASILEIRO ............................... 66
2.1 Por uma análise geográfica do Estado ......................................................................... 67
2.2 A formação do Estado agrário brasileiro ..................................................................... 73
2.2.1 Coronelismo nos estados de Goiás e Mato Grosso do Sul ..................................... 77
2.3 República latifundiária ................................................................................................ 84
2.4 Ruralismo e política no Parque das Emas (GO) e no Bolsão (MS) ............................ 96
2.5 Qual o lugar do campesinato no Estado? .................................................................. 102
3 A REPRODUÇÃO DO LATIFUNDIO NOS TERRITÓRIOS RURAIS PARQUE DAS
EMAS (GO) E DO BOLSÃO (MS) .................................................................................. 108
3.1 O latifundio no Brasil ................................................................................................ 110
3.2 A Territorialização e monopolização do capital no campo nos territórios rurais Parque
das Emas (GO) e do Bolsão (MS) ................................................................................... 128
3.3 A reprodução do latifúndio no Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS)..................... 141
3.4 Dinâmica Fundiária: disputa pela renda da terra PELOS AGENTES DO
agronegócio......................................................................................................................148
3.5 O gigante de pés de barro: A insegurança jurídica da propriedade capitalista privada
......................................................................................................................................... 154
3.5.1 Grilagem no Parque das emas (GO) e NO Bolsão (MS) ..................................... 159
3.5.2 Cercas virtuais: o georreferenciamento como instrumento de grilagem .............. 173
4 A (RE)CRIAÇÃO DO CAMPESINATO NO PARQUE DAS EMAS (GO) E NO
BOLSÃO (MS) ................................................................................................................... 180
4.1 Reforma agrária e contradição no BRASIL .............................................................. 182
4.2 A fração camponesa do terrítório no interior do latifúndio no Parque das Emas (GO) e
Bolsão (MS) .................................................................................................................... 198
4.3 Características socioeconômicas do CAMPESINATO NO Parque das Emas (GO) e
Bolsão (MS) .................................................................................................................... 211
4.4 As políticas públicas para a agricultura camponesa .................................................. 227
4.5 As políticas sociais como garantia de renda familiar ................................................ 236
4.6 O Programa Nacional de Produção e Uso de Biodísel .............................................. 250
4.7 Emendas Parlamentares e o clientelismo .................................................................. 254
4.8 Dialética da recriação: Ações privadas compensatórias e mitigadoras do
agronegócio......................................................................................................................264
4.9 Flores no latifúndio: A participação política e organização das mulheres camponesas
......................................................................................................................................... 270
4.10 Faca amolada: Fragmentos de autonomia camponesa............................................. 276
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 283
REFERENCIAS ................................................................................................................. 289
16

INTRODUÇÃO

O campo brasileiro, historicamente marcado por conflitos entre trabalhadores rurais,


camponeses, latifundiários e capitalistas, possui no século XXI contornos de modernidade
graças a nova base técnica da agricultura capitalista adotada nas últimas décadas. Os aparatos
técnicos e tecnológicos, aliados ao convencimento público por meio de propagandas, como
“Agro é tech, Agro é pop, o Agro é tudo”, mascaram os problemas relacionados à posse, à
propriedade e ao uso da terra entre as classes sociais, compreendidos neste trabalho como
questão agrária.
Assim, ao passo que capitalistas e latifundiários vinculados às atividades do
agronegócio alimentam a imagem moderna que colocou o Brasil como o maior produtor de soja
do mundo1, há um rastro de desigualdades e violência invisibilizados para a sociedade. Soma-
se a este contexto, o crescente número de conflitos por terra, registrados pelo Cedoc Dom
Tomás Balduino, vinculado à Comissão Pastoral da Terra (CPT), nos últimos anos (2010–
2019). Segundo Canuto et. al. (2020), ocorreram 1.254 conflitos por terra no Brasil, em 2019,
envolvendo 144.742 famílias. Portanto, a barbárie e a modernidade no campo brasileiro,
apontadas por Oliveira (2003), são faces da mesma moeda do desenvolvimento desigual,
contraditório e combinado do capitalismo no campo.
Nessa perspectiva, a propriedade capitalista da terra possui centralidade, por ser
condição necessária para o desenvolvimento agricultura. O tributo social cobrado pelo seu uso,
reconhecido como renda da terra e entendido na literatura marxista como entrave ao
desenvolvimento do capitalismo, apresenta-se, no Brasil, como parte do processo de reprodução
ampliada do capital. Desta forma, a renda da terra, tornou-se lucro extraordinário, fundamental
para capitalistas e latifundiários. Segundo Oliveira (2010) o controle territorial por meio da
compra ou arrendamento da terra é a base da expansão do modo capitalista de produção no
campo.
A partir deste pressuposto teórico, a concentração fundiária e a reprodução dos
latifúndios no país ocorrem em consonância com a expansão das atividades ligadas ao
agronegócio. De acordo com Oliveira (2010), o capital ao se territorializar no campo finca suas
bases produtivas, como agroindústrias e concentra a propriedade da terra. Nesta perspectiva,
capitalistas/proprietários fundiários se associam na expansão dos latifúndios e monocultivos

1
Segundo o portal Embrapa, o Brasil é o maior produtor de soja em grãos do mundo, atingindo a marca de 124,845
milhões de toneladas produzidas. Disponível em: <https://www.embrapa.br/soja/cultivos/soja1/dados-
economicos>. Acesso em: 9 jan. 2021.
17

por todo o país. Quando não se territorializa, o capital monopoliza o território, controlando a
circulação da produção e de insumos (OLIVEIRA, 2010), se apropriando da renda da terra
gerada pela agricultura capitalista e camponesa.
Esta “brecha” possibilita ao campesinato manter-se no campo tendo parte da sua renda
subordinada ao capital. Portanto há contradições internas no interior do desenvolvimento do
capitalismo no campo, atrelando a reprodução do latifúndio à recriação do campesinato. Cabe
ressaltar, que não se trata de um processo mecânico, pelo contrário, emergem conflitualidades
e violência desta relação dialética, resultando na implantação de monocultivos, expulsão de
camponeses, povos indígenas e quilombolas e, ao mesmo tempo a luta pela terra. Segundo
Fernandes (2005, p. 06), “A conflitualidade é inerente ao processo de formação do capitalismo
e do campesinato. Ela acontece por causa da contradição criada pela destruição, criação e
recriação simultâneas dessas relações sociais.”
Os esforços empreendidos nesta pesquisa objetivam comprovar a hipótese da
reprodução do latifúndio e da recriação do campesinato nos territórios rurais Parque das Emas
(GO) e Bolsão (MS) como parte da contradição do desenvolvimento desigual e combinado do
capitalismo no campo. Elegeu-se como recorte de pesquisa os territórios rurais Parque das Emas
(GO) e Bolsão (MS), criados, respectivamente, em 2010 e 2013, por meio do Programa
Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais (PRONAT). Este programa
vigorou até o ano de 2016, sendo uma das principais ações do Estado para o desenvolvimento
rural, sobretudo para agricultura camponesa.
Com área de 76.322,37 km², os territórios rurais Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS)
são contíguos, separados apenas por divisões político-administrativas, mas compõem o mesmo
bioma Cerrado, local de avanço da agricultura capitalista. Outros aspectos naturais, como
relevo, clima e abundância de recursos hídricos também são compartilhados por estes territórios
rurais. Como representado no mapa 1, o Território Rural Parque das Emas (GO) é composto
por nove municípios: Aparecida do Rio Doce, Aporé, Chapadão do Céu, Jataí, Mineiros,
Perolândia, Portelândia, Santa Rita do Araguaia e Serranópolis. Do lado sul-mato-grossense, o
Território Rural do Bolsão (MS) abrange oito municípios: Água Clara, Aparecida do Taboado,
Cassilândia, Chapadão do Sul, Inocência, Paranaíba, Selvíria e Três Lagoas.
18

Mapa 1 – Territórios rurais Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS): localização

A tese está estruturada em quatro capítulos, objetivando discutir as diferentes


dimensões da questão agrária brasileira e as contradições da reprodução do latifúndio e a
recriação camponesa na área estudada. Tomou-se o cuidado de explicitar no início de cada
capitulo os procedimentos utilizados pra a elaboração do mesmo.
O capítulo 1 foi dedicado a apresentar de forma ampla o caminho trilhado na
construção da pesquisa, indicando como experiencias anteriores relativas à formação do
pesquisador contribuíram na formulação da hipótese. Nesta perspectiva, expõe-se os
pressupostos teóricos de vertente marxista que alicerçam a tese, assim como o conjunto de
categorias e conceitos que articulados dão movimento a teoria.
Procedimentos específicos e suas nuances também são explicadas, como o
mapeamento da estrutura fundiária, uso e ocupação do solo, e análise da cadeia dominial. Neste
último, por ser uma estratégia mais complexa, foi necessário discorrer detalhadamente como os
documentos cartoriais foram acessados e analisados. No mesmo caminho, as dificuldades e as
longas distâncias percorridas no trabalho de campo são descritas demonstrando ao leitor como
as informações empíricas foram obtidas.
19

No capítulo 2, é apresentado o debate atual do termo latifúndio, explicitando a


centralidade da propriedade capitalista da terra e sua renda na reprodução ampliada do capital
no Brasil. Procurou-se, nesse sentido, demonstrar como o rentismo engendrou no Brasil uma
sociedade latifundiária, pois o Estado, enquanto estrutura social organizada, reproduz o
latifúndio por meio de seus representantes políticos e de suas ações.
Essa perspectiva, apontada por Fernandes (1976), Leal (1976) e Martins (1994),
repete-se na atualidade, e essa pesquisa aprofunda a análise sobre os políticos eleitos nas
eleições gerais de 2018 e nas eleições municipais de 2016, indicando a presença de
latifundiários na política brasileira. Este caminho, aponta como as classes sociais,
principalmente capitalistas e latifundiários, se valem politicamente do Estado para representar
seus interesses particulares. O uso do Estado como apoio para a expansão geografia e
desenvolvimento do capital (SMITH, 1988); (HARVEY, 2009) é identificado, destacando-se
famílias latifundiárias historicamente presentes na política local e federal.
A representação dos interesses de latifundiários no Estado implica diretamente na
facilitação da apropriação de terras devolutas e na formação de latifúndios. Grupos organizados
dentro da política brasileira se destacaram ao longo da história, como a União Democrática
Ruralista (UDR) e, atualmente, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), reconhecida
como “Bancada Ruralista”, por representarem os interesses das atividades econômicas ligadas
ao agronegócio. Estes grupos atuaram, primeiramente, pela anuência legislativa na manutenção
de propriedades fundiárias com grandes extensões, excluindo a denominação de latifúndio da
legislação brasileira. Posteriormente, os políticos latifundiários utilizaram o Estado para atacar
as lutas populares por democratização da terra via política de Reforma Agrária.
No capítulo 3, os indícios da reprodução do latifúndio no Brasil são confirmados por
meio dados concisos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), utilizados na representação da estrutura
fundiária. A partir dos dados do INCRA, realizou-se a representação inédita em mapa da
estrutura fundiária brasileira, apontando a localização dos latifúndios no país, identificando os
20 maiores imóveis em seus respectivos municípios. A mesma estratégia foi aplicada nos
territórios rurais Parque das Emas (GO) e do Bolsão (MS), onde foram identificados os maiores
proprietários de terras, destacando-se empresas e capitalistas tornados latifundiários.
No interior da reprodução do latifúndio, a grilagem é identificada como um processo
continuo de apropriação de terras públicas e propulsor de conflitos com camponeses, posseiros,
indígenas e quilombolas. Neste trilhar, são destrinchados processos de apropriação capitalista
da terra nos territórios rurais Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS). Nesse sentido, a pesquisa
20

aprofunda na análise de dois casos nos territórios estudados demonstrando a fragilidade jurídica
da propriedade capitalista da terra, onde se assenta a agricultura capitalista vinculada ao
agronegócio.
A atualidade da grilagem é desvendada pelo uso de novas tecnologias de
georreferenciamento para legitimar a apropriação de terras devolutas e, nesse sentido, dados do
Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF) apontam grande quantidade imóveis no Brasil sem a
confirmação de registro de propriedade em cartório.
No capítulo 4, o contexto de reprodução ampliada do capital que consequentemente,
reproduz o latifúndio, foi preciso identificar e compreender a recriação do campesinato
enquanto classe social dentro do capitalismo. No plano geral, demonstrou-se como o Estado,
constituído por representantes da propriedade concentrada, interfere, contraditoriamente, na
recriação camponesa por meio da Reforma Agrária e de outras políticas para a agricultura
familiar camponesa. Os dados do Banco de Dados da Luta pela Terra (DATALUTA) e INCRA,
evidenciam a paralisação da política de Reforma Agrária nos últimos governos federais, mas
de importância dos assentamentos nos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e
1999-2002) e de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2006 e 2007-2010), mesmo não promovendo
transformações na concentração da propriedade da terra.
Ao longo dos trabalhos de campo nos assentamentos de Reforma Agrária, nos
territórios rurais Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS), foram constatadas diferentes estratégias
utilizadas pelos camponeses para permanecerem na terra. A análise feita sobre estas estratégias
indicam algumas contradições por se relacionarem diretamente com empresas ligadas ao
agronegócio, comprometendo a autonomia do campesinato.
Embora contraditórias, mostram a habilidade dos camponeses em resistir aos
momentos de crise, como na participação em projetos mitigatórios de empresas do agronegócio.
Nesse sentido, dados da Câmara dos Deputados apontam a relação direta entre recriação
camponesa e políticos ligados ao agronegócio por meio de emendas parlamentares destinadas
à agricultura camponesa, personalizando as ações do Estado, dando nomes e partidos às ações
e financiamentos.
O encontro tardio com a terra, proporcionado pela paralisação da Reforma Agrária,
caracteriza a população camponesa envelhecida nos assentamentos rurais. Assim, nos
trabalhados de campo, constatou-se a importância da política previdenciária como estratégia de
garantia de renda mínima para os camponeses, assegurando a permanência de famílias na terra.
Também foram identificadas ações inovadoras de apropriação das políticas públicas e
organização política das mulheres camponesas. A organização política entre os camponeses
21

revelou-se como um fio de esperança no interior da conjuntura contraproducente de avanço do


agronegócio e sua hegemonia dentro do Estado.
Por fim, espera-se que esta pesquisa evidencie ao leitor a relação dialética entre
latifúndio e campesinato instigada no desenvolvimento desigual, contraditório e combinado do
capitalismo no campo. Pretende-se ainda demonstrar a insegurança jurídica fundiária no Brasil
e como a grilagem continua sendo uma estratégia atual de apropriação capitalista da terra.
Ressalta-se ainda a necessidade da terra dividida, da retomada efetiva da Reforma Agrária como
ferramenta de combate a desigualdade do campo e permanência dos latifúndios no Brasil.
22

1 AS CINZAS: OPÇÕES TEÓRICAS E PROCEDIMENTOS DA


PESQUISA

A vida é um incêndio: nela


dançamos, salamandras mágicas
Que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam,
cantemos a canção das chamas!

Cantemos a canção da vida,


na própria luz consumida...

Mario Quintana - Inscrição para uma lareira

A tese, como produto final de pesquisa de doutoramento, assim como os artigos


científicos produzidos nos anos dedicados a esta empreitada, não expressa em sua totalidade o
fazer-se pesquisa. A chama da vivência científica, determinada pelas alegrias e angústias do
pesquisador ficam, em grande parte, fora da redação. Ao final deste trabalho, tem-se a
convicção que o principal resultado do doutoramento não é a tese, mas sim o pesquisador,
forjado pelas emoções e pelos conhecimentos da pesquisa.
As cinzas da pesquisa têm sua importância, indicam o caminho tomado pelo pesquisador
até os resultados apresentados. Ao revelar os procedimentos e estratégias adotados se demonstra
a cientificidade do trabalho, possibilitando o diálogo e as críticas. No caminho percorrido, os
erros e os acertos do pesquisador devem ser tomados pelo leitor como indícios para suas
pesquisas futuras. Além disso, revisitar todo o processo de sua construção possibilita
reconhecer-se no trabalho e compreender toda a evolução pesquisa-pesquisador.
Convém destacar que, apesar do aspecto formal do caminho metodológico, este trabalho
envolve acertos, incertezas e dúvidas, em muitos momentos, em seus procedimentos, sendo
necessárias reflexões e ajustes. Nesse sentido, neste item, as técnicas e análises feitas serão
apresentadas de maneira separada e organizada com a intenção de facilitar a compreensão do
leitor sobre o processo. No entanto, os procedimentos adotados não ocorrem de forma linear,
cronologicamente, como se planeja para a investigação de doutoramento. A pesquisa envolve
o complexo movimento de ir e vir de técnicas e estratégias, pois no percurso podem se
demonstrar exitosas, mas também podem não ter resultados significativos, sendo necessário,
por vezes, serem revistas e refeitas.
23

Normalmente o caminho metodológico, comum entre estudantes de Geografia, sustenta-


se na tríade: revisão bibliográfica, levantamento e análise de dados de fontes secundárias e, por
fim, o trabalho de campo. Na bibliografia, procura-se a sustentação teórica para o trabalho, os
dados secundários são organizados e transformados em gráficos, tabelas e mapas,
demonstrando a confirmação do fenômeno estudado. O trabalho de campo é utilizado para obter
informações primárias por meio de entrevistas/questionários e de fotografias.
De fato, este resultado de pesquisa não foge destes procedimentos, no entanto, se faz
necessário valorizá-los detalhando a investigação e apontando as dificuldades enfrentadas e
suas soluções para o leitor compreender as estratégias e a lógica do trabalho. Outro ponto a ser
considerado na pesquisa foi a construção de procedimento inédito para representação
cartográfica da estrutura fundiária, convergindo na associação de políticos ao latifúndio. Optou-
se, então, em esmiuçar os procedimentos para evidenciar ao leitor como foi pensada e articulada
uma das principais estratégias da pesquisa.
Além dos procedimentos, este item se dedicará a explicar as opções teóricas do trabalho
e a compreensão do pesquisador sobre as categorias e conceitos utilizados, com isso, o leitor
poderá entender como os resultados da pesquisa foram construídos e interpretados. Apesar dos
pormenores teóricos serem apresentados aqui, será no desenvolvimento da escrita da pesquisa
que a teoria, a categoria e os conceitos estarão em movimento na análise da realidade. Na
apresentação das teorias, categorias e conceitos neste capítulo, há o cuidado em expor
basicamente os pressupostos teóricos dos autores para não perder o real sentido das ferramentas
de pesquisa. No entanto, mesmo com os cuidados necessários, a transposição teórica de uma
investigação para outra há, o processo de interpretação não deve perder ou deturpar teorias,
categorias e conceitos. Em outras palavras, deve-se ter o cuidado em não distorcer as
formulações teóricas para elas se enquadrarem à realidade da pesquisa em desenvolvimento.
Antes de adentrar na estruturação da tese em si e apresentar os processos de investigação
e as instrumentações técnicas enunciadas, cabe contextualizar como formulou-se a investigação
e quais questões iniciais motivaram a se estudar a reprodução do latifúndio e a recriação do
campesinato no Parque das Emas (GO) e no Bolsão (MS).
24

1.1 O CAMINHO DO PESQUISADOR E A PROBLEMÁTICA DA PESQUISA

Toda pesquisa tem um início e a sua chama se principiou muito antes do doutorado,
mais precisamente em 2009, no antigo Laboratório de Estudos Regionais (LABER),
transformado, posteriormente, em Laboratório de Estudos Territoriais (LABET), da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), câmpus de Três Lagoas, atualmente
denominado de Laboratório de Geografia Agrária (GeoAgrária). Independentemente de seu
nome, foi neste laboratório, coordenado pela Prof. Dra. Rosemeire A. Almeida, ainda na
graduação em Geografia, onde ocorreram os primeiros contatos com a Geografia Agrária e a
questão agrária em Mato Grosso do Sul (MS) por meio da iniciação cientifica (IC).
O levantamento e organização de dados sobre a agricultura em Mato Grosso do Sul, nos
censos agropecuários 1995/96 e 2006, foram as primeiras investigações sobre a temática. Junto
com a IC, as reuniões do Grupo de Pesquisa Terra-Território (GETT), com a participação de
professores, mestrandos e graduandos, propiciaram as primeiras lições teóricas sobre a questão
agrária. A práxis do grupo colocava em movimento as teorias estudadas com trabalhos de
campo em assentamentos de Reforma Agrária em Três Lagoas (MS) e Selvíria (MS).
No antigo Labet, outras pesquisas foram desenvolvidas nos quatro anos de graduação,
dentre elas a participação na Rede DATALUTA2. Participando desta rede, iniciaram-se as
atividades e levantamentos de dados sobre ocupações de terra e manifestações dos movimentos
socioterritoriais (FERNANDES, 2005) do campo em Mato Grosso do Sul. Naquele período,
aprofundaram-se as pesquisas sobre a questão agrária, em especial a luta pela terra. As reuniões
anuais com professores e pesquisadores de grande parte do Brasil, membros da Rede
DATALUTA, foram importantes no descobrimento e compreensão sobre a diversidade teórica
envolvendo a questão agrária brasileira.
A experiência na Graduação, somada às investigações sobre a luta pela terra em MS,
culminaram na proposta de estudo para o Mestrado em Geografia no Programa de Pós-
Graduação em Geografia do Câmpus de Três Lagoas, na UFMS. Os 24 meses de estudos foram
dedicados a trabalhos de campo em ocupações de terra nos estados de Mato Grosso do Sul (MS)
e de Mato Grosso (MT) e leituras teóricas para se compreender a luta pela terra. Intitulada
“Geografia das ocupações e manifestações de terras em MT e MS (2000 a 2012)”, a dissertação,

2
O Banco de Dados da Luta Pela Terra (DATALUTA) é um projeto do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos
de Reforma Agrária (NERA) ligado ao curso de Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia (UNESP),
campus de Presidente Prudente. O DATALUTA articula-se em uma rede de pesquisadores de diferentes
universidades do país, que coletam e analisam dados sobre a questão agrária brasileira.
25

defendida em junho de 2015, contribuiu para a formação do pesquisador, sua linha de pesquisa
e sua base teórica.
Com a conclusão do Mestrado, novas atividades foram desenvolvidas no ano de 2015,
no projeto “Núcleo de Extensão em Desenvolvimento Territorial (NEDET)”, no Território
Rural do Bolsão, em Mato Grosso do Sul, coordenado pelo Prof. Dr. Sedeval Nardoque. O
projeto, financiado pelo extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e gestado pelo
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), previa a assessoria
à política do Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais
(PRONAT).3
Buscando articular e organizar na base do Território Rural do Bolsão (MS) os sujeitos
sociais para captação de projetos e recursos, foi preciso conhecer e convencer camponeses
assentados e tradicionais (sitiantes), servidores públicos e políticos locais da importância da
participação popular. Neste desafio, muitas reuniões, visitas e eventos foram organizados,
possibilitando conhecer todos os assentamentos de Reforma Agrária e comunidades rurais do
Bolsão (MS), como também o contexto regional da questão agrária.
No período de atividades do Pronat e do Nedet no Bolsão (2015-2017), foram
identificados, empiricamente, indicativos da recriação do campesinato tradicional e,
principalmente, nos assentamentos de Reforma Agrária e, ao mesmo tempo, ficaram evidentes
características da questão agrária no Bolsão (MS). Em campo, constataram-se estratégicas do
campesinato para se recriar em um contexto agrícola/agrário de hegemonia da agricultura
capitalista e de reprodução do latifúndio. A problemática vivenciada na assessoria ao Nedet e a
convivência constante com os camponeses foram as bases empíricas, concomitante à formação
do pesquisador, propiciaram a formulação do projeto de pesquisa aprovado no Programa de
Pós-Graduação em Geografia Universidade Federal de Goiás – UFG, campus de Jataí, atual
Universidade Federal de Jataí (UFJ).
No processo de investigação, delimitou-se um conjunto de municípios nos estados de
Goiás e de Mato Grosso do Sul inseridos no contexto da questão agrária e locais de aplicação
do Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais (PRONAT). A
escolha do Território Rural Parque das Emas (GO) justifica-se por ser composto, em parte, pelo
município de Jataí (GO), local do programa de Pós-Graduação e pelo contexto agrícola/agrário.

3
Edital de chamada pública CNPq/MDA/SPM-PR Nº 11/2014 selecionou o projeto “Implantação e Manutenção
do Núcleo de Extensão em Desenvolvimento Territorial do Território Rural do Bolsão (MS)”.
26

Já o Território Rural do Bolsão (MS) foi escolhido por ser o local dos indícios empíricos que
instigaram a investigação e por onde o autor estudou em grande parte de sua formação.

1.2 HIPÓTESE, OBJETIVO GERAL E ESPECÍFICOS

Os questionamentos caminharam no sentido da investigação sobre o desenvolvimento


da agricultura capitalista e reprodução do latifúndio e, contraditoriamente, a recriação
camponesa e o papel das políticas públicas neste processo. Estabeleceu-se a hipótese da
reprodução do latifúndio e da recriação do campesinato nos territórios rurais Parque das
Emas (GO) e Bolsão (MS) como parte da contradição do desenvolvimento do capitalismo
no campo.
Como objetivo geral, definiu-se analisar a recriação do campesinato e reprodução do
latifúndio como parte das contradições do desenvolvimento do capitalismo no campo nos
territórios rurais Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS). Especificamente, objetiva-se: a)
identificar recriação camponesa como parte das contradições da reprodução do latifúndio; b)
identificar e analisar as principais políticas públicas destinadas ao campesinato nas áreas
estudadas; c) analisar, por meio de mapeamento, a estrutura fundiária no Parque das Emas (GO)
e no Bolsão (MS); d) analisar a relação entre Estado e agricultura capitalista; e) compreender a
contradição das emendas parlamentares de políticos latifundiários para o campesinato.
Para alcançar os objetivos foi arquitetado um conjunto de instrumentos teóricos e
procedimentos metodológicos para fornecerem resultados para o trabalho. Cada teoria e
procedimento foram pensados observando a totalidade da pesquisa, sendo necessário agora
apresentar ao leitor o caminho trilhado.

1.3 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA E PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

A construção da tese se inicia com a revisão bibliográfica, procedimento essencial por


fornecer argumentação teórica por meio de categorias e conceitos, além de reflexões sobre as
temáticas a partir de estudos já realizadas. Ao longo do trabalho, buscou-se em livros e artigos
experiências e teorias formuladas que pudessem contribuir na elaboração do texto final. A
descoberta de novos autores e trabalhos envolve também a socialização do pesquisador na
universidade, em grupos de pesquisa e eventos científicos. O convite para leitura e releitura de
27

obras indicadas demandam tempo e a figura do orientador se mostra importante no diálogo e


coerência na organização dos referenciais teóricos da tese.
Desta maneira, os pressupostos teóricos foram escolhidos na perspectiva da
permanência do camponês na atualidade e a reprodução do latifúndio, como partes do processo
de desenvolvimento desigual, contraditório e combinado do capitalismo no campo brasileiro
(OLIVEIRA, 1991; MARTINS, 1981).
Esta corrente teórica fundamenta-se nas contribuições de León Trotsky (2017) sobre a
forma como o capitalismo se desenvolvia nos países periféricos. Analisando o caso da Rússia,
Trotsky se opõe à corrente teórica evolucionista do progresso linear no desenvolvimento do
capitalismo irradiado a partir da Europa (LÖWY, 1995). Para o autor, formas avançadas e
arcaicas de produção não são etapas, mas sim contradições do desenvolvimento desigual e
combinado.
Portanto:
A desigualdade do ritmo, que é a lei mais geral do processus histórico,
evidencia-se com maior vigor e complexidade nos destinos dos países
atrasados. Sob o chicote das necessidades externas, a vida retardatária vê-se
na contingência de avançar aos saltos. Desta lei universal da desigualdade
dos ritmos decorre outra lei que, por falta de denominação apropriada,
chamaremos de lei do desenvolvimento combinado, que significa
aproximação das diversas etapas, combinação das fases diferenciadas,
amálgama das formas arcaicas com as mais modernas. (TROTSKY, 2017,
p. 34) (Grifo nosso).

A proposta teórica de Trotsky enfrentou o pensamento dualista dentro do próprio


marxismo marcado metodologicamente pelo economicismo (LÖWY, 1995). Este debate
também ocorreu entre os intelectuais de esquerda no Brasil e, segundo Deimer (2005), é o
sociólogo Florestan Fernandes a inaugurar pesquisas estruturadas na teoria do desenvolvimento
desigual e combinado de Trotsky.
Para Florestan, seria justamente a presença de elementos ‘anticapitalistas’ e
‘semicapitalistas’ que produziria funcionalidade ao capitalismo nas áreas
dependentes; o ‘arcaico’ não seria antípoda do ‘moderno’, e sim seu
complemento histórico e socialmente necessário. (DEIMER, 2005, p. 6).

Na Geografia, o principal referencial teórico é Ariovaldo Umbelino de Oliveira, pois,


em suas análises, compreende, no desenvolvimento do capitalismo, a reprodução de relações
tipicamente capitalistas (trabalho assalariado) e relações tipicamente não capitalistas, como o
trabalho familiar camponês (OLIVEIRA, 1991). O campesinato, nesta perspectiva teórica, é
resultado (contraditório) das relações capitalistas e não resquícios de outro modo de produção.
Também, José de Souza Martins, oriundo da Sociologia, mas na mesma perspectiva teórica,
28

compreende que “O nosso campesinato é constituído com a expansão capitalista, como produto
das contradições dessa expansão” (MARTINS, 1981, p.16).
Elegeu-se, em acordo com o orientador, referenciais teóricos para balizar a análise das
contradições do desenvolvimento desigual e contraditório do capitalismo. Ao longo da análise
da questão agrária, do campesinato e do latifúndio, observou-se a relevância da compreensão
do papel do Estado. Nesse sentido, foi preciso buscar no interior da perspectiva marxista autores
e teorias para compreensão das ações do Estado no desenvolvimento capitalista.
Mesmo objetivando o alinhamento teórico da pesquisa, foi necessário explorar trabalhos
de autores/pesquisadores de outras ciências e linhas teóricas considerando a relevância e
especificidades de seus trabalhos. Essa decisão não implica em incoerência teórica, mas como
estratégia para o entrelaçamento e o aprofundamento do debate.
A desconstrução e a interpretação da questão agrária no Parque das Emas (GO) e no
Bolsão (MS) fundamentaram-se em teorias, categorias e conceitos articulados sob a vertente
marxista campesinista. Com efeito, considera-se o campesinato como classe social dentro do
modo capitalista de produção, entendendo o debate sobre o fim do campesinato no início do
século XXI como superado e ineficiente na busca pela compreensão da realidade atual. Além
da especificidade da permanência do campesinato na atualidade, é preciso considerar o processo
de “recamponização”, como o caso dos sem-terra (ALMEIDA, 2006).
Ainda de acordo com Almeida (2006);
[...] a (re)criação do campesinato como uma relação não-capitalista é parte
contraditória do modo de produção capitalista, situação que, por sua vez, ao
permitir a acumulação do capital, também contém sua negação, seja na luta
contra a transferência de renda seja na luta direta pela terra de trabalho.
(ALMEIDA, 2006, p.86).

Dessa forma, não se deve compreender a (re)criação camponesa como processo


funcionalista do desenvolvimento capitalista, ou seja, este processo envolve um conjunto de
lutas destes sujeitos envolvendo a conquista da terra e sua permanência nela, a produção de
alimentos e a manutenção de sua família. Como parte de processo contraditório, o modo
capitalista de produção se apropria da produção camponesa e também de sua renda gerada,
portanto: “[...] o crescimento das explorações familiares camponesas tem representado o seguro
fornecimento de alimentos à mesa do trabalhador e a transferência de renda para o capital, que
passa a ser auferida na circulação de sua mercadoria” (ALMEIDA, 2006, p.96).
A (re)criação camponesa envolve diferentes lutas, tendo como base a união do seu
núcleo familiar, a manutenção e/ou conquista da sua terra e a liberdade do seu trabalho
(ALMEIDA, 2006; WOORTMANN, 1990). Para manutenção da família, da terra e do trabalho,
29

o campesinato se utiliza de diferentes práticas produtivas e políticas no interior do


desenvolvimento, da produção e da reprodução do capital, em especial no campo. Por outro
lado, essas práticas não deixam de ser contraditórias por ameaçarem diretamente sua
reprodução enquanto classe camponesa.
Toda a complexidade envolvendo o campesinato, as contradições e os problemas
gerados pelo processo de produção e de reprodução do capital configuram a questão agrária da
tese. Adotam-se as contribuições de Martins (1981) como referência sobre a questão agrária no
Brasil enquanto expressão do modo capitalista de produção. As contribuições teóricas de
Oliveira (1991;2010), sobre a mundialização da agricultura e os processos de territorilização do
capital no campo e monopolização do território pelo capital, fundamentam a análise da questão
agrária e da (re)criação do campesinato.
A teoria de Oliveira (1991;2010) sustenta o caráter geográfico da tese ao apresentar as
bases materiais e de localização na interpretação de como o capital se desenvolve e reproduz
no campo apropriando-se da terra e sua renda, utilizando-se, para tanto, o conceito de território
como principal balizador. Segundo o autor, há dois processos distintos de apropriação
capitalista da renda da terra. No primeiro, o território é monopolizado por empresas
controladoras da comercialização da produção no campo sem necessariamente apropriarem-se
ou possuírem a terra. Produzindo ou comercializando os insumos agrícolas, atuando na
comercialização/aquisição dos produtos oriundos da produção camponesa ou mesmo aquelas
ligadas ao capital financeiro e/ou atuando nas bolsas de valores no mundo, estas empresas se
apropriam de parte da renda de camponeses e/ou latifundiários-capitalistas (OLIVEIRA, 2010).
No segundo, estrategicamente, empresas capitalistas brasileiras e estrangeiras se territorializam,
controlando a propriedade privada e o processo produtivo, como no caso dos setores
sucroenergético e de celulose (idem, 2010), apropriando-se da renda da terra na produção da
mercadoria. A territorialização do capital implica diretamente na compra ou arrendamento de
terras que, por sua vez, possibilita a reprodução do latifúndio no Brasil.
Desta maneira, a contribuição teórica de Oliveira (1991;2010) permite compreender as
estratégias do capital no campo e, consequentemente, os processos de recriação camponesa e
de reprodução do latifúndio. Seguindo essa perspectiva, é preciso estruturar a investigação e a
teoria com categorias e conceitos capazes de auxiliarem na análise dos fenômenos da realidade.
30

1.4 AS CATEGORIAS DA PESQUISA

Apoderar-se de ferramentas, dominá-las e operacionaliza-las são os passos


necessários para a realização de uma pesquisa. As categorias, nesse sentido, se constituem como
estrutura e expressam a síntese teórica e ideológica. Desta forma,
As categorias, existindo como forma de relação entre os fenômenos,
expressam a estrutura das relações existentes entre os mesmos [...]. Essa
expressão não é neutra e se revela comprometida com uma determinada visão
de mundo. Por isso, nem todas as categorias são igualmente valorizadas em
todas as teorias. (CURY, 2000, p. 26).

As categorias devem estar alinhadas teoricamente à tese para que seus usos não sejam
equivocados ou mesmo tenham vazios de significado. Neste trabalho, elegeu-se as categorias
totalidade, contradição, hegemonia e reprodução para operacionalização dos conceitos
essenciais na discussão e análise da questão agrária. Se faz necessário apresentar ao leitor a
compreensão sobre as categorias elegidas e como contribuíram na desconstrução e análise da
questão agrária nas áreas estudadas.
Nesta perspectiva:
Assim, podemos chegar a uma conclusão fundamental: é na compreensão das
categorias que exprimem as relações da sociedade capitalista que
encontraremos a essência para compreender a estrutura e as relações de
produção das formas de sociedade desaparecidas. (OLIVIERA, 2016, p. 48).

As categorias escolhidas articulam-se entre si e, desta forma, a compreensão de uma


está ligada diretamente à outra. Desta maneira, é preciso sempre pensar as categorias em
movimento e como elas explicam a realidade ou parte dela.
A totalidade, enquanto categoria, tem a capacidade de unir dialeticamente processos
particulares, coordenando-os em síntese explicativa ampla (CURY, 2000). Não significa
reduzir a realidade em síntese simplista, mas dar unidade a diferentes processos e fenômenos
estabelecendo relações internas entre os mesmos.
Logo,
[...] uma compreensão dialética da totalidade exige a relação entre as partes e
o todo e as partes entre si. O todo, na verdade, só se cria a si mesmo na dialética
das partes, só pode existir concretamente nas partes e é na relatividade das
partes que o todo se estrutura e caminha. (CURY, 2000, p. 36).

Para Marx (2008), a relações de produção determinam a totalidade da vida material e o


processo de vida social, política e intelectual. “A totalidade dessas relações de produção
31

constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma
superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de
consciência.” (MARX, 2008, p. 47).
A noção de totalidade, explicitada por Marx, é constituída de partes heterogêneas
desenvolvidas em movimento desigual e contraditório das relações de produção. Na mesma
perspectiva, segundo Tse-Tung (2008):
Já que o particular está unido ao universal e que a universalidade, assim como
a particularidade da contradição, são inerente a tudo – a universalidade
residindo na particularidade –, deveríamos, ao estudar um objeto, tentar
descobrir tanto o particular como o universal e sua interconexão dentro do
próprio objeto, e descobrir as interconexões desse objeto com os muitos
objetos fora dele. (TSE-TUNG, 2008, p. 106).

Para tanto, para se compreender a totalidade, também pelas formulações marxistas, é


necessário estabelecer a conexão com a categoria contradição, chave para a intepretação da
realidade do campo brasileiro. Netto (2011), discutindo Marx e Engels e sobre a importância
no método de pesquisa, baseando-se no livro Ideologia Alemã (1999)4, aponta:
Para ambos, o ser social e a sociabilidade resulta elementarmente do trabalho,
que constituirá o modelo da práxis – é um processo, movimento que se
dinamiza por contradições, cuja superação o conduz a patamares de crescente
complexidade, nos quais novas contradições impulsionam a outras
superações. (NETTO, 2011, p.31).

A contradição, neste sentido, não é uma dualidade, mas produto de um movimento


único das relações sociais dentro do modo de produção. Segundo Marx, “É preciso [...] explicar
essa consciência pelas contradições da vida matéria, pelo conflito que existe entre as forças
produtivas sociais e as relações de produção” (MARX, 2008, p. 48). Utilizando a contradição
como ferramenta de pesquisa, elementos opostos na realidade devem ser compreendidos como
partes contraditórias da totalidade. Descobri-las, compreender sua natureza, condições e limites
são desafios na pesquisa.
Oliveira (2016), em sua tese5 de doutorado em Geografia, ao tratar de seu estudo e a
escolha do materialismo histórico como teoria dentro do método dialético, afirma:
[...] devemos lembrar que a totalidade orgânica no materialismo histórico é
uma totalidade contraditória, ou seja, onde o conceito de contradição é
extremamente importante, pois ele não só direciona, como também explica as
lutas de classe que são o motor da própria história. (OLIVERA, 2016, p. 46).

4
Foi publicado, originalmente, em 1846.
5
Tese de doutorado em Geografia publicada como livro em 2016. Disponível em: <
http://agraria.fflch.usp.br/sites/agraria.fflch.usp.br/files/CR%C3%8DTICA%20AO%20ESTADO%20ISOLADO
%20DE%20VON%20THUNEN.pdf>. Acesso em: 07 mai. 2020.
32

Para Oliveira (2016), valendo-se de Tse-Tung (1937), a totalidade é contraditória, não


harmônica, e o método dialético e sua principal lei, a da contradição, dá unidade aos contrários.
Com isso, “É na contradição que reside a fonte do movimento, e nela que encontraremos o
motor do próprio desenvolvimento da realidade.” (OLIVEIRA, 2016, p. 213). Desta maneira,
a realidade é produzida por contradições internas da sociedade;
As transformações na sociedade são resultado sobretudo do desenvolvimento
de suas contradições internas, isto é, a contradição entre as forças produtivas
e as relações de produção, entre as classes, e entre o velho e o novo; é o
desenvolvimento dessas contradições que empurra a sociedade para adiante e
dá ímpeto para a substituição da velha sociedade pela nova. (TSE-TUNG,
2008, p. 87).

Na análise da questão agrária, listam-se fenômenos contraditórios, como o campesinato


e o latifúndio possuindo na essência uma conexão: desenvolvimento desigual contraditório e
combinado do capitalismo no campo. Para Tse-tung (2008), é na particularidade de cada
contradição que existe sua universalidade, ou seja, dentro da contradição da existência do
latifúndio e recriação da classe camponesa há a razão universal, o desenvolvimento do
capitalismo.
Fabrini (2004) indica a particularidade da contradição camponesa:
O sentido contraditório e desigual está no fato do camponês garantir a sua
existência no sistema adverso pela luta. É como se o camponês não tivesse
lugar no capitalismo, fosse de fora, mas insiste em continuar existindo, ou
seja, traindo as leis do capital pela luta. De outro lado, ao se entender a
reprodução do campesinato como uma possibilidade aberta pelo capitalismo
ao campesinato, está-se admitindo que é uma relação de dentro do capitalismo,
ou seja, que tem lugar no capitalismo, servindo inclusive para a produção de
mercadoria. (FABRINI, 2004, p. 128).

Colocando em movimento a categoria contradição nas frações territoriais da realidade


analisada, pode-se entender a reprodução do latifúndio e a recriação do campesinato como
partes de uma lógica universal das relações de produção. Assim:
A contradição é mesmo a essência destas relações reveladas pela existência
do campesinato. É neste sentido, da compreensão do desenvolvimento
desigual e contraditório das relações capitalistas que se compreende a
existência camponesa neste modo de produção que lhe subordina e oprime.
(FABRINI, 2004, p. 135).

O desenvolvimento desigual e contraditório das relações capitalistas também gera, por


consequência, relações tipicamente não capitalistas. Segundo Oliveira (1991) o
desenvolvimento desigual do modo capitalista de produção é parte do processo de reprodução
33

ampliada do capital, articulando relações tipicamente capitalista e tipicamente não capitalistas.


A contradição, no entanto, não faz do campesinato um elemento fora do capitalismo:
Assim, o campesinato se recria como classe social capitalista e os múltiplos
modos comunitários de produção se reproduzem simultaneamente na
sociedade capitalista, processos que se realizam com tensões, conflitos e
resistências. (PRIETTO, 2017, p. 817).

Com isso, o desenvolvimento desigual não pode ser resumido há um processo


pragmático de permanência do campesinato dentro do modo capitalista de produção.
Camponeses resistem diariamente para conquistar a terra, travando conflitos históricos no
Brasil, como bem pontuou Martins (1981). No mesmo sentido, Fernandes (1999) revelou o
processo de formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e suas lutas
por todo o Brasil pela Reforma Agrária. Portanto, dentro da reprodução do campesinato, no
interior das contradições do desenvolvimento do capitalismo no campo, há a luta desta classe
social para permanecer/entrar na terra e para que sua renda não seja apropriada na totalidade
pelo capital.
Nessa perspectiva, o campesinato e o latifúndio, objetos desta tese, são entendidos como
particularidades dentro do movimento universal da contradição. Compreende-los em sua forma
e essência são a estrutura central, passando também por encontrar interconexões entre estes
contrários.
Com estes pressupostos, compreendem-se as contradições presentes na totalidade como
resultantes do processo de produção e reprodução ampliada do capital e, consequentemente,
promovendo-se a reprodução social dos sujeitos. Com isso,
A força de trabalho existe apenas como disposição do indivíduo vivo. A sua
produção pressupõe, portanto, a existência dele. Dada a existência do
indivíduo, a produção da força de trabalho consiste em sua própria reprodução
ou manutenção. Para sua manutenção, o indivíduo vivo necessita de certa
quantidade de meios de subsistência. (MARX, 2011, p. 316).

Outra categoria, a reprodução, auxilia na compreensão da sociedade e suas instituições


em seu processo de auto conservação reproduzindo as condições necessárias para a manutenção
de suas relações básicas (CURY, 2000). Como afirmado por Marx (2011), a reprodução envolve
para além da produção dentro do modo capitalista de produção, mas, também, a reprodução de
de toda a sociedade. Assim, “A reprodução de suas relações implica mais do que uma
(re)produção de coisas. Implica a tentativa de reproduzir o movimento do capital social como
um todo.” (CURY, 2000, p. 39).
Nas relações tipicamente capitalistas de produção, o trabalho assalariado é responsável
pela reprodução do capital, desta forma, o capitalista aplica parte do lucro advindo da
34

exploração do trabalho no aumento da exploração da mão-de-obra para, consequentemente,


aumentar a produção, apropriar-se da mais valia e obter mais lucro. Nas palavras de Marx
(2011)
Assim, por meio da ação da força de trabalho, não apenas seu próprio valor
se reproduz, mas também se produz um valor excedente. Esse mais-valor
constitui o excedente do valor do produto sobre o valor dos elementos
formadores do produto, isto é, dos meios de produção e da força de trabalho.
(MARX, 2011, p. 317). (Grifo nosso).

Aproximando essas questões teóricas para o campo brasileiro, o processo de reprodução


do capital também ocorre na expansão do trabalho assalariado na agricultura. Ao mesmo tempo,
Martins (1981) compreende os processos de produção e reprodução do capital no campo como
partes da reprodução ampliada do capital. De acordo com o autor, é importante discernir entre
produção do capital e reprodução capitalista, pois a primeira nunca é vista como capitalista.
Desta maneira, a lógica do modo capitalista de produção permite no seu interior a
reprodução de relações tipicamente não capitalistas, como as estabelecidas com o campesinato,
objetivando-se a apropriação de parte da renda gerada por estes sujeitos (MARTINS, 1981;
OLIVEIRA, 1991). Com isso, “[...] o próprio capital pode lançar mão de relações de trabalho e
de produção não-capitalistas (parceria, familiar) para produzir capital.” (OLIVEIRA, 1991, p.
19). A renda da terra é chave para compreender a permanência do campesinato como classe
social dentro do capitalismo, porque onde a renda é baixa, como no caso de muitos alimentos
básicos, o capitalista deixa de empregar capital no trabalho assalariado, permitindo-se a
produção camponesa, para depois se apropriar da renda gerada por meio de outros mecanismos,
sobretudo na circulação (MARTINS, 1981).
Desta forma, ao passo que a produção familiar camponesa se mantém dentro do
capitalismo, ou seja, com base no trabalho familiar não assalariado, a produção do campesinato
se subordina na compra de insumos ou no monopólio da circulação, quando ocorre a sujeição
da renda ao capital (MARTINS, 1981). Em síntese: “A expansão do modo capitalista de
produção, além de redefinir antigas relações, subordinando-as à sua produção, engendra
relações não-capitalistas igual e contraditoriamente necessárias à sua reprodução.”
(OLIVEIRA, 2007, p. 40).
A reprodução do latifúndio também se enquadra inicialmente como contradição do
processo de reprodução ampliada do capital, sobretudo pela cobrança da renda da terra pelo
proprietário fundiário para o capitalista utilizar a terra (MARTINS, 1981). Porém, no Brasil,
em casos de renda da terra elevada, como na soja, no eucalipto e na cana-de-açúcar, capitalistas
35

se tornam proprietários fundiários ou arrendatários capitalistas, reproduzindo o latifúndio,


processo denominado por Oliveira (1991;2007) de territorialização do capital.
O movimento de produção e de reprodução ampliada do capital necessita de consenso
entre as classes sociais subordinadas, no qual um conjunto de valores sociais passam da
exploração como um bem comum para todas as classes. Desta forma:
As transformações ideológicas rebatem sobre as relações econômico-sociais,
através das instituições sociais em geral e na própria consciência social das
classes. Por isso, a formação da ideologia não é dada, é construída pelas
classes sociais, afirmada como atividade política no próprio movimento
dessas classes. (CURY, 2000, p. 46).

Desta forma, a construção da ideologia passa pelas manifestações individuais e coletivas


envolvendo cultura, leis, educação, entre outros. Gramsci (1999) é a referência utilizada nesta
tese sobre ideologia e a categoria hegemonia. A densa construção teórica do autor não se reduz
à “hegemonia”, é necessário a compreensão mínima do desenvolvimento do seu pensamento
para não limitar o uso da categoria. Desta forma, as formulações de Gramsci passam por outras
categorias, como: bloco histórico, aparelho hegemônico, ideologia, consenso, Estado.
Segundo Gramsci (2007, p. 95), o exercício “normal” da hegemonia caracteriza-se pela
combinação da força e do consenso. O consenso entre as classes sociais é estabelecido por meio
da formação da opinião pública, ou seja, a universalização e reprodução da ideologia construída
pela classe social dirigente (dominante).
Sobre ideologia, o autor afirma:
[...] coloca-se o problema fundamental de toda concepção do mundo, de toda
filosofia que se transformou em um movimento cultural, em uma ‘religião’,
em uma ‘fé’, isto é, que produziu uma atividade prática e uma vontade, nas
quais ela esteja contida como ‘premissa’ teórica implícita (pode-se dizer,
desde que se dê ao termo ‘ideologia’ o significado mais alto de uma
concepção do mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito,
na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e
coletivas) — isto é, o problema de conservar a unidade ideológica em todo o
bloco social que está cimentado e unificado justamente por aquela
determinada ideologia. (GRAMSCI, 1999, p. 98) (Grifo nosso).

Na luta de classes, a classe social dirigente busca construir a ideologia dominante sobre
as outras classes para alcançar a capacidade de subordina-las e manter a estrutura social
produtiva e unificar o pensamento. Em Cury (2000):
A hegemonia é a capacidade de direção cultural e ideológica que é apropriada
por uma classe, exercida sobre o conjunto da sociedade civil, articulando seus
interesses particulares com os das demais classes de modo que eles venham a
se constituir em interesse geral. (CURY, 2000, p. 48).
36

A hegemonia é o exemplo de força das classes dominantes limitando e conduzindo o


pensamento (ideologia) da demais classes sociais. A formação ideológica e sua reprodução na
ciência, cultura, educação, leis, entre outros, influenciam as massas populares tornando-as
coesas em torno do pensamento e objetivos da classe dirigente. Portanto:

Estes sistemas influem sobre as massas populares como força política externa,
elemento de força coesiva das classes dirigentes, e, portanto, como elemento
de subordinação a uma hegemonia exterior, que limita o pensamento original
das massas populares de uma maneira negativa, sem influir positivamente
sobre elas, como fermento vital de transformação interna do que as massas
pensam, embrionária e caoticamente, sobre o mundo e a vida. (GRAMSCI,
1991, p. 114).

O aparelho hegemônico, base material para as análises de Gramsci e, segundo Liguori


(2017), está ligado à construção ideológica, ou seja, na luta de classes, o aparelho hegemônico
“cria” uma nova concepção de mundo. Na análise da questão agrária no Parque das Emas (GO)
e no Bolsão (MS), a luta de classes e a contradição entre capitalistas, proprietários fundiários e
camponeses possuem na agricultura capitalista, parte do denominado agronegócio, o fio
condutor da manutenção da hegemonia.
O discurso, a propaganda e a defesa política das atividades ligadas ao agronegócio
indicam a ideologia6 hegemônica para a manutenção da agricultura capitalista, parte da
universalidade da (re)produção ampliada do capital mundial. Inevitavelmente, problemas e
contradições, propiciados por tais atividades, geram enfrentamentos com a classe camponesa.
Nesse sentido, as emendas parlamentares para a agricultura e as ações mitigadoras das empresas
privadas analisadas nesta tese, são uma das vias de reprodução ideológica do agronegócio nos
assentamentos de Reforma Agrária.
Gramsci (2007), ao discutir a passagem e transformação dos interesses de grupos
dominantes para os grupos dominados, aponta a formação de ideologias:
[...] ou pelo menos uma única combinação delas [ideologias], tenda a
prevalecer, a se impor, a se irradiar por toda a área social, determinando, além
da unicidade dos fins econômicos e políticos, também a unidade intelectual e
moral, pondo todas as questões em torno das quais ferve a luta não no plano
corporativo, mas num plano ‘universal’, criando assim a hegemonia de um
grupo social fundamental sobre uma série de grupos subordinados.
(GRAMSCI, 2007, p. 41).

6
A tese de Rodrigo Simão Camacho faz a análise da disputa de paradigmas na educação do campo, ou seja, a
disputa ideológica entre as classes pela hegemonia. CAMACHO, Rodrigo Simão. Paradigmas em disputa na
educação do campo. 806 f. Tese (Doutorado) - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"
Faculdade de Ciências e Tecnologia. 2014.
37

É mister compreender que a proposição de Gramsci sobre hegemonia advém do


pensamento marxiano. Marx (2008) discutindo a base material das relações de produção, aponta
para existência de uma superestrutura condicionadora da consciência das classes sociais,
sobretudo o proletariado: “A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura
econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política
e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência.” (MARX, 2008, p. 47).
Assim, segundo o autor, a superestrutura é formada pelas forças repressivas do Estado e pelo
aparelho ideológico do Estado. Com base nestas contribuições teóricas, a categoria hegemonia
auxiliará na compreensão da reprodução ideológica de capitalistas e latifundiários por meio do
Estado, em diferentes práticas, como as emendas parlamentares.
Desta forma, pode-se observar que as categorias “totalidade, contradição, reprodução e
hegemonia” se articulam entorno da teoria e dos conceitos no decorrer da tese. Estas
ferramentas estarão presentes no texto, seguidos da interpretação e desenvolvimento da análise
do autor sobre a realidade analisada.

1.5 CONCEITOS

Na ciência, a abstração da realidade é sintetizada em conceitos, ou seja, palavras-chaves


com densa carga teórica que auxiliam, no caso, na análise geográfica. Para além de substantivos,
os conceitos carregam consigo a síntese teórica interpretativa da realidade. Articulados com
teorias e categorias, os conceitos são fundamentais na Geografia, possuindo polissemia diante
das vertentes teóricas da ciência.
Nesta tese, destacam-se os conceitos elegidos como centrais: território, Estado e
campesinato. Outros conceitos são utilizados de forma secundária no trabalho e serão
apresentados ao longo do texto.
As contribuições teóricas de Oliveira (1991;2010) sobre a territorialização e
monopolização do território permitem a análise geográfica mais refinada da questão agrária.
Compreendendo as estratégias do capital no campo, o conceito de território cunhado por
Oliveira (1991;2010) será o utilizado nesta tese.
Por outro lado, uma política de governo, denominada de Programa Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais (Pronat), utilizou o conceito de território
de forma vaga, referindo-se apenas como a aglutinação de municípios com características em
38

comum (MONTENEGRO GÓMEZ, 2006), portanto um simples recorte para aplicação da


política.
Diferentemente do entendimento de território no Pronat, na Geografia, há um diverso
arcabouço teórico com distintas e/ou proximais perspectivas entre elas, como: Saquet (2007);
Souza (1995); Haesbaert (2004); Oliveira (2007); Fernandes (2008).
Mesmo sendo análise de fora da Geografia, para Brandão (2007), houve esvaziamento
do conceito ao ser utilizado pelas políticas públicas e, sendo assim:
O território que deveria ser visto como ambiente politizado, em conflito e em
construção, é posto como ente mercadejado e passivo, mero receptáculo. O
que é fruto de relações sociais aparece como relação entre objetos. Há uma
coisificação e o território parece ter poder de decisão, transformado em sujeito
coletivo. (BRANDÃO, 2007, p.13).

Como indicado, a concepção de território utilizado pelas políticas públicas não contribui
na apreensão da questão agrária estudada. Com isso, o conceito de território, compreendido
nesta tese, é resultado de sua interpretação como produto das relações de poder (luta de classes)
no interior do modo capitalista de produção.
Sendo assim, segundo Oliveira:
O território é assim, produto concreto da luta de classes travada pela sociedade
no processo de produção de sua existência. Sociedade capitalista que está
assentada em três classes fundamentais: proletariado, burguesia e
proprietários de terra. Dessa forma, são as relações sociais de produção e o
processo contínuo/contraditório de desenvolvimento das forças produtivas
que dão a configuração histórica específica ao território. Logo o território não
é um prius ou um a priori, mas a contínua luta da sociedade pela socialização
igualmente contínua da natureza. [...] é esta lógica contraditória que
constrói/destrói formações territoriais em diferentes partes do mundo ou faz
com que frações de uma mesma formação territorial conheçam processos
desiguais de valorização, produção e reprodução do capital, conformando as
regiões. (OLIVEIRA, 2007, p. 3).

Deste modo, compreendendo a hegemonia do modo capitalista de produção no mundo,


considera-se o território enquanto totalidade, produto das relações capitalistas e, portanto, da
luta de classes. Esta opção conceitual deixa de considerar os fenômenos de forma isolada nos
territórios rurais (entendidos aqui como simples delimitações) e passa a compreende-los a partir
da influência e conexão de toda a sociedade capitalista (universalidade, particularidade e
singularidade). Desta forma, apesar do uso do termo territórios rurais, não há concordância com
o seu uso no programa (PRONAT) e sua perspectiva sobre o conceito de território e, desta
forma, quando necessário se referir ao Pronat, não será utilizado Território Rural, mas Parque
das Emas (GO) e Bolsão (MS). Sendo assim, levando-se em consideração o aporte teórico de
39

Oliveira (2007), o território é construído, também, por ações do Estado diretamente ligadas aos
interesses de classes sociais e inerentes aos seus conflitos.
Portanto, historicamente, as políticas públicas para o campo foram e são formuladas sob
a perspectiva produtivista, objetivando o desenvolvimento do/no campo por meio do aumento
produtivo e incentivo creditícios para a agricultura capitalista. As políticas públicas ganharam
novos contornos a partir de 1990 com a influência direta do Banco Mundial, propondo “[...]
uma mudança no enfoque, colocando num primeiro plano o mercado e o senso empresarial
como elementos diretores da nova dinâmica e reduzindo o papel do Estado, nas futuras
propostas de desenvolvimento para o meio rural.” (MONTENEGRO GÓMEZ, 2006, p. 61).
Para compreender estas políticas públicas, utiliza-se, neste trabalho, a análise do Estado a partir
da luta de classes, ou seja, negar o Estado enquanto abstração e compreende-lo como o conjunto
de sujeitos pertencentes a classes sociais que atuam de acordo com seus interesses.
Buscou-se, primeiramente, em Marx, fundamentos teóricos sobre o Estado. O autor não
elaborou uma obra específica sobre o assunto, porém sua compreensão está presente em seus
trabalhos. Foi preciso realizar a leitura de Marx (1991;2011) e Marx e Engels (1999) em
diferentes momentos para compreender como os autores avançaram na compreensão sobre o
assunto. Ainda foram utilizadas leituras de obras influenciadas por Marx, como de Gramsci
(1984), de Harvey (2005) e de Smith (1984), possibilitando o aprofundamento do debate no
capítulo dedicado a esta análise.
Sendo assim, segundo Marx (1991), os sujeitos, valendo-se do meio chamado Estado,
conseguem mascarar suas intencionalidades referentes às suas perspectivas de classe. Apesar
da hegemonia burguesa no Estado, há tensionamentos com a sociedade civil (GRAMSCI,
1984). Dito de outra forma, não é o Estado que rege e controla a sociedade de forma neutra,
mas sim a sociedade dividida em classes, no interior do modo capitalista de produção, que se
expressa por meio dele. O Estado e seus representantes são a expressão da dinâmica do modo
capitalista de produção em seu regime de expansão e acumulação. Para Marx e Engels (1999),
o Estado é uma via de controle e expressão dos interesses da burguesia.
Essa perspectiva indica o caminho para compreender como no Brasil se constituiu o
Estado ligado a uma burguesia originada, contraditoriamente, a partir de oligarquias rurais
(FERNANDES, 1976) e, atualmente, mesmo com população predominantemente residente nas
cidades, e o incremento de nuances de uma economia moderna, há a manutenção do poder
político dos proprietários fundiários. Com efeito, historicamente o Estado é composto, também,
e/ou influenciado por grandes proprietários de terras e suas relações políticas são
compreendidas baseadas no coronelismo (LEAL, 1976) e no poder do atraso (MARTINS,
40

1994). Portanto, parte-se da compreensão do Estado e das políticas públicas para o campo como
resultado da luta de classes, sobretudo entre capitalistas, latifundiários e camponeses.7
Deste modo, as ações do Estado, no que concerne às políticas públicas ou ações diretas,
não são livres de valores e ideais de classe e, nesse sentido, Martins (1981, p.13), ao se referir
à questão agrária e as contradições da Reforma Agrária, entendida como política pública, faz
uma ressalva: “O problema nem é um problema estritamente econômico nem estritamente
teórico – é um problema político, da luta e do confronto entre as classes sociais, entre
exploradores e explorados”.8
Esta perspectiva provoca opções teóricas no interior da tese, principalmente sobre as
noções de agricultura familiar e território utilizados pelas políticas públicas. A opção por
utilizar o conceito de campesinato, ao invés de agricultura familiar, comumente presente nas
políticas públicas, justifica-se pela coerência teórica e metodológica da pesquisa baseada na
luta de classes. Nessa perspectiva, opta-se pelo conceito de campesinato pelo motivo de
carregar consigo o histórico de lutas e resistências no campo e, portanto, representa a classe
social analisada neste trabalho.
Esta opção baseia-se em Marx (2013), sobre a relação da sociedade com os meios de
produção. Assim: “[...] isto é, os assalariados, os capitalistas e os proprietários fundiários,
formam as três grandes classes da sociedade moderna, fundada no modo de produção
capitalista”. (MARX, 2013, p.1162). Autores alinhados ao marxismo, como Oliveira (1991),
Martins (1981) e Almeida (2006), também contribuem nesta perspectiva teórica.
Em contrapartida, o termo agricultura familiar, construído e estabelecido no Brasil por
meio das análises feitas por Abramovay (1992), fundamenta-se essencialmente na esfera
econômica das pequenas propriedades rurais e sua relação com o mercado. Portanto, a
compreensão é de que a agricultura familiar é um setor da economia.
Posteriormente, a Lei 11.326, de 2006 estabeleceu as diretrizes para a formulação da
Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais,
popularizando o termo e utilizando nas políticas públicas. Segundo Almeida (2006, p.90), o
termo agricultura familiar se apresenta como novo, mas na realidade o seu uso nega o
campesinato como classe social e conflitiva dentro da questão agrária.

7
Com a modernização e a expansão do capitalismo no campo brasileiro nas últimas décadas, muitos latifundiários
tornaram-se capitalistas e capitalistas tornaram-se latifundiários. Também, há que se compreender que frações de
classes burguesas nacionais e internacionais avançaram com seus negócios no campo.
8
É certo, também, mesmo entre aqueles que não são proprietários fundiários nem capitalistas, por meio da
ideologia dominante, se posicionam contra a Reforma Agrária e as ações dos movimentos socioterritoriais do
campo.
41

Entende-se o conceito de campesinato ser o mais pertinente na interpretação da


realidade estudada e em sintonia com os pressupostos teóricos de desenvolvimento desigual
contraditório e combinado do capitalismo no campo e na luta de classes. O campesinato,
portanto, como classe social, baseia-se no trabalho familiar na agricultura (MARTINS, 1981;
OLIVEIRA, 1991; ALMEIDA, 2006) e, por conseguinte, a agricultura familiar é praticada
pelos camponeses.
Deste modo, será realizado, nesta perspectiva teórica, o esforço da compreensão do
Estado e das políticas públicas, mesmo os seus documentos oficiais adotando o termo
agricultura familiar. Claramente, como apontado por Almeida (2006), a adoção do termo
agricultura familiar significa um posicionamento político, revelando a perspectiva classista do
Estado em negar o campesinato, como será apresentado mais adiante neste texto.
Apesar de não ser considerado um conceito nesta pesquisa, é preciso apontar ao leitor a
compreensão sobre agronegócio e agricultura capitalista. Primeiramente, a agricultura
capitalista é compreendida aqui como parte de um modo produtivo realizado no campo, onde
ocorrem majoritariamente relações assalariadas entorno da média e grande propriedade privada,
produzindo essencialmente para a comercialização.
Mudanças na base técnica produtiva provocadas pela Revolução Verde na década de
1970 associaram a agricultura capitalista relações fora da unidade produtiva9 (campo), como
serviços urbanos, indústrias de implementos, parte do mercado financeiro e educação.
Desta forma, somou-se à agricultura capitalista um conjunto de relações para além do
processo produtivo no campo, adicionando serviços na/da cidade, a indústria de insumos ou
beneficiadora da produção e o mercado financeiro. Todo este conjunto de atividades ligadas à
agricultura capitalista foi denominada de agronegócio. Portanto:
O agronegócio nada mais é do que um marco conceitual que delimita os sistemas
integrados de produção de alimentos, fibras e biomassa, operando desde o
melhoramento genético até o produto final, no qual todos os agentes que se
propõem a produzir matérias-primas agropecuárias devem fatalmente se inserir,
sejam eles pequenos ou grandes produtores, agricultores familiares ou patronais,
fazendeiros ou assentados. (OLIVEIRA, 2007, p. 148).

Ao generalizar, associando o processo produtivo no campo a uma rede de serviços


oriundos da cidade, o agronegócio se apropria midiaticamente dos números da balança

9
Sobre o assunto, recomenda-se a leitura de: ARRUDA, Zuleika Alves de. Onde esta o agro desse negocio?:
transformações socioespaciais em Mato Grosso decorrentes do agronegócio. 2007. 279p. Tese (doutorado) -
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Geociências, Campinas, SP.
42

comercial, como no documento apresentado10 pela Confederação Nacional da Agricultura


(CNA) apontando-o como responsável por 24,31% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro,
totalizando quase R$ 2 trilhões.
De acordo com Alentejano (2021);
Agronegócio é a combinação nefasta da grande propriedade fundiária, isto é,
do velho latifúndio, com o grande capital, em especial as grandes corporações
transnacionais, sob o patrocínio do Estado (basta ver os bilhões de reais de
créditos e subsídios destinados ao setor, como a isenção fiscal para exportação
de produtos primários ou a isenção de ICMS para os agrotóxicos, instituída
em 1997 e renovada de forma escandalosa neste ano de 2021) e a benção da
grande imprensa empresarial. (p. 03).

Além disso, o uso do termo agronegócio, além de abranger as relações fora da


agricultura capitalista, também mascara a permanência do latifúndio e demais relações arcaicas
e desiguais:
A imagem do agronegócio foi construída para renovar a imagem da
agricultura capitalista, para ‘modernizá-la’. É uma tentativa de ocultar o
caráter concentrador, predador, expropriatório e excludente para dar
relevância somente ao caráter produtivista, destacando o aumento da
produção, da riqueza e das novas tecnologias. (FERNANDES, 2019).

Portanto, ao longo do texto, o uso de agronegócio e agricultura capitalista serão


aplicados de acordo com a definição explicitada neste item. Logo, a utilização destes ocorrerá
referindo-se especificamente ao processo produtivo no campo (agricultura capitalista) ou de
forma ampla (agronegócio) relacionando o conjunto de atividades no campo e cidade.

1.6 TÉCNICA DE MAPEAMENTO DA ESTRUTURA FUNDIÁRIA

Representar a estrutura fundiária brasileira por meio de mapas e localizar latifúndios e


minifúndios são desafios, principalmente pela ausência de dados georrefernciados. A busca por
atender ao objetivo da pesquisa, de analisar a manutenção e reprodução da grande propriedade,
impôs a necessidade de avançar na representação da estrutura fundiária, elaborando-se uma
nova técnica de representação.
Historicamente, a Geografia representou a estrutura fundiária brasileira, mormente, por
meio de tabelas e quadros gerados com dados de fontes secundárias, constituídos por órgãos

10
Disponível em:<https://cepea.esalq.usp.br/upload/kceditor/files/sut.pib_dez_2020.9mar2021.pdf>. Acesso em:
06 abr. 2021.
43

oficiais, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Instituto Nacional de


Colonização e Reforma Agrária (INCRA). A forma clássica consiste em classificar os dados de
fontes secundárias da estrutura fundiária por classes de área (hectares), ou seja, separar os
estabelecimentos e imóveis rurais pelas suas dimensões ou estratos.
Há ainda diferenças conceituais entre IBGE e INCRA sobre a compreensão dos
estabelecimentos e imóveis rurais. O IBGE contabiliza e analisa as unidades rurais utilizando-
se de “estabelecimento agropecuário”, termo balizado nas premissas estabelecidas pela
Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (Food and Agriculture
Organization – FAO). Desta maneira, em sua nota técnica11, o IBGE conceitua o
estabelecimento agropecuário:
[...] corresponde à unidade econômica de produção agropecuária sob
administração única, incluídos os produtores sem-área, produtores que
exploram áreas próximas distintas como sendo um único estabelecimento
(mesma maquinaria, mesmo pessoal e mesma administração), produtores
que exploram terras de imóveis rurais na forma de arrendamento, parceria,
ou aquelas simplesmente ocupadas. (IBGE, 2006, p.101/102).

Por não possuírem atributos específicos de localização (georreferenciamento), os dados


tradicionais do IBGE limitam a análise na escala municipal, ou seja, sabe-se da existência do
latifúndio no município, mas não se sabe sua real localização e distribuição das demais unidades
econômicas. Portanto, para o IBGE, não importa a situação jurídica da unidade econômica, ou
seja, se é propriedade de direito real.
Em outra perspectiva, o INCRA utiliza imóvel rural para referir-se às propriedades
rurais sustentando-se na Lei nº 4.504 de 1964 (Estatuto da Terra), no seu artigo 4º, definindo-
se imóvel rural como “[...] prédio rústico, de área contínua, qualquer que seja a sua localização,
que se destine à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial, quer através de planos
públicos de valorização, quer através de iniciativa privada”. Também: “Imóvel rural, segundo
a legislação agrária, é a área formada por uma ou mais matrículas de terras contínuas, do mesmo
titular (proprietário ou posseiro)”. Portanto, ‘[...] pode ser propriedade e/ou posse, pode ter
vários documentos, como registro, matrícula, escritura ou outra documentação [...]”. No
entendimento do Incra, “Propriedade é o imóvel rural com registro em cartório”, com dois de
posse: a justo título, quando o proprietário tem documento registrado em cartório ou posse por

11
Disponível em: < http://www.fao.org/3/I9396PT/i9396pt.pdf >. Acesso em: 12 ago. 2020.
44

simples ocupação, quando o documento não tem validade para ser registrado no cartório de
registro de imóveis.12
Apesar da sua relevância na análise de concentração/desconcentração, as formas
clássicas, utilizando-se IBGE ou INCRA, possuem limites na localização e identificação das
unidades rurais. Por isso, aqui apresenta-se a representação, por outro meio, com o objetivo de
complementar as informações e não substituir as representações clássicas tradicionais da
estrutura fundiária, além de servir de base de análise nos dois recortes desta tese.
Nesse sentido, o INCRA, desde a década de 1970, faz o levantamento e sistematização
de dados secundários sobre a estrutura fundiária brasileira por meio do Sistema Nacional de
Certificação de Imóveis Rurais (SNCI). A partir da lei 11.952, de 25 de junho de 2009, o órgão
adotou novos critérios e informações ao cadastro, dentre elas, o georreferenciamento das
propriedades rurais (art. 9º).
Após o início da certificação georreferenciada pelo SNCI, em 2009, o INCRA e o
Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA)13 criaram uma ferramenta para gerir os dados
sobre estrutura fundiária e subsidiar as ações do Estado. Em 2013, o Sistema de Gestão
Fundiária (SIGEF) foi criado pela instrução normativa nº 77 e passou a receber e validar dados
sobre propriedades rurais. Desta maneira, o INCRA possui dois bancos de dados de
propriedades rurais, o SNCI (2009 a 2013) e o SIGEF, juntos possibilitam diferentes análises
da estrutura fundiária brasileira por meio do georreferenciamento.
Há, também, um banco de dados georreferenciados ligados ao meio ambiente. O
Cadastro Ambiental Rural (CAR), como afirma em seu site oficial14, foi “[...] criado pela Lei
nº 12.651/2012, no âmbito do Sistema Nacional de Informação sobre Meio Ambiente -
SINIMA, e regulamentado pela Instrução Normativa MMA nº 2, de 5 de maio de 2014 [...]”,
um sistema de registro público de propriedades e de suas áreas de preservação. Desta forma, o
CAR tem por objetivo gerenciar e fiscalizar as normativas ambientais em propriedades rurais,
não se preocupando com as questões fundiárias, pois não há exigência de vinculação de dados
registrais de direito real nas declarações feitas ao CAR.

12
Disponível em: <http://www.incra.gov.br/pt/credito/2-uncategorised/240-ccir-perguntas-e-respostas.html>.
Acesso em: 22 ago. 2020.
13
Criado em 1999, o Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), após o impeachment de Dilma Rousseff
(PT) e posse de seu vice, Michael Temer (PMDB), foi reduzido a secretaria lotada na Casa Civil e, atualmente, no
Governo Bolsonaro, a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários foi transferida para o Ministério da Agricultura
Pecuária e Abastecimento, sob o comando de Tereza Cristina (DEM). O atual Secretário Especial de Assuntos
Fundiários é o ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Luiz Antônio Nabhan Garcia.
14
Informação retirada do site do Cadastro Ambiental Rural (CAR). Disponível em:
<http://www.car.gov.br/#/sobre>. Acesso em: 12 ago. 2020.
45

A partir dos dados do SIGEF e do SNCI, apresenta-se aqui a técnica de representação


da estrutura fundiária, objetivando identificar os latifúndios e sua distribuição nas áreas
estudadas na tese.15
A partir dos dados (shapefiles) do INCRA, disponibilizados separadamente entre SNCI
e SIGEF, as informações são fornecidas detalhadamente entre propriedades públicas e privadas.
No caso desta tese, elegeram-se os dados das propriedades privadas como arquivo principal. O
cadastro e o georreferenciamento das propriedades rurais ocorrem gradativamente, havendo
ainda propriedades não georreferenciadas e, consequentemente, deixando ausente (vazios
cartográficos) em pequenas porções do território brasileiro. Todavia, mesmo sem a totalidade
das informações sobre as propriedades rurais, o SNCI e o SIGEF permitem o download e as
análises/representações cartográficas dos dados (shapefiles).
Nesse caminho, o Atlas da Agropecuária Brasileira, publicado online16, reuniu dados do
SNCI, do SIGEF e do Cadastro Ambiental Rural (CAR). A proposta, no entanto, não classificou
a estrutura fundiária por dimensão, além de utilizar dados (CAR) não recomendados para este
tipo de análise. A não classificação da estrutura fundiária por dimensão das propriedades rurais
no atlas mencionado, inviabiliza a análise sobre concentração e desconcentração fundiária,
tornando-o sem efeito nesta tese. A estratégia de utilizar o CAR para complementar as
informações ausentes nos dados do INCRA foi um equívoco, sobretudo pelo CAR se tratar de
uma ferramenta ambiental sem validade jurídica da propriedade, além de ser auto declaratória.
Diante das inconsistências do Atlas, optou-se por elaborar uma técnica destinada à
análise da estrutura fundiária, considerando-se apenas dados oficiais do INCRA. Ao assumir
apenas os dados do INCRA, tem-se a consciência que no mapeamento haverá pequenas áreas
com a ausência de informações (vazios cartográficos), no entanto, grande parte das áreas
estudadas está coberta pelas informações georreferenciadas.
Definidos as duas fontes de informações (SNCI e SIGEF) sobre as propriedades rurais,
estabelecem-se critérios ou parâmetros para a classificação da estrutura fundiária. Como, no
âmbito da pesquisa, objetiva-se analisar a manutenção e reprodução do latifúndio, adota-se a
dimensão dos imóveis como critério na classificação. A definição de pequena, média e grande
propriedade é estabelecida em módulos fiscais (hectares) pela Lei nº 8.629/1993, contudo, cada
município brasileiro possuí seu módulo fiscal, variando sua dimensão em hectares.

15
Em Melo e Braz (2017), há o primeiro ensaio desta técnica de representação cartográfica para a estrutura
fundiária a partir dos dados do SNCI e do SIGEF.
16
Os dados estão disponibilizados em: <http://certificacao.incra.gov.br/csv_shp/export_shp.py>. Acesso em: 17
mai. 2018.
46

Como a área da pesquisa contempla nove municípios no estado de Goiás e outros oito
em Mato Grosso do Sul, estabeleceu-se a generalização dos critérios de dimensão para
classificar as propriedades rurais. Nesta tese, considerou-se latifúndio como sinônimo de grande
propriedade, estabelecendo como base a dimensão de 1.000 hectares.
Convém destacar o Art. 4º da Lei nº 8.629/1993, que classifica como grande todo imóvel
acima de 15 módulos fiscais. Nas áreas estudadas, o tamanho do módulo fiscal dos municípios
varia entre 35 e 90 hectares, como apresentado na tabela 1. Desta forma, seguindo-se a Lei nº
8.629/1993, as dimensões da grande propriedade por municípios variam entre propriedades
acima de 525 hectares (módulo fiscal igual a 35 ha) ou propriedades acima de 900 hectares
(módulo fiscal igual a 60 ha).

Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS): módulos fiscais e dimensões dos latifúndios
em hectares (ha) – 2013
Parque das Emas (GO) Bolsão (MS)
Latifúndio Latifúndio
Módulo (15 vezes o Módulo (15 vezes o
Município Fiscal módulo) Município Fiscal módulo)
Ap. do Rio Doce 40 600 Água Clara 35 525
Aporé 40 600 Aparecida do Taboado 40 600
Chapadão do Céu 40 600 Cassilândia 40 600
Jatai 40 600 Chapadão do Sul 40 600
Mineiros 60 900 Inocência 40 600
Perolândia 40 600 Paranaíba 40 600
Portelândia 60 900 Selvíria 35 525
Santa Rita do
60 900 Três Lagoas 35 525
Araguaia
Serranópolis 60 900
Fonte: INCRA – SNCR, 2013. Organizado pelo autor.
Levando-se em consideração as informações da tabela 1 e a variação do tamanho
característico, a grande propriedade, de acordo com a Lei nº 8.629/1993, nestes municípios,
optou-se pela padronização, definindo como latifúndio/grande propriedade todos os imóveis
rurais com dimensão a partir de 1.000 hectares. Este critério contempla a diferença entre os
módulos fiscais dos municípios estudados permitindo mapear e classificar de forma
padronizada por cores a estrutura fundiária nos territórios rurais Parque das Emas (GO) e Bolsão
(MS). Ressalta-se que estudos clássicos sobre a temática, como Oliveira (1991) e Guimarães
(1968), também utilizaram 1.000 hectares como parâmetro para análise dos latifúndios no
Brasil.
De posse dos dados do INCRA e com o critério de classificação estabelecido, realizou-
se o procedimento de representação da estrutura fundiária no software de geoprocessamento
47

Arcgis. Neste procedimento, notou-se que os limites das propriedades rurais não coincidem com
os do município, logo, foi preciso considera-las com áreas além dos limites municipais.
A figura 1 representa, em síntese, o processo descrito sobre a representação da estrutura
fundiária. Assim, o SNCI e o SIGEF do INCRA são as fontes dos dados utilizados e organizados
por software de geoprocessamento resultando no mapeamento e classificação das propriedades
rurais.

Organograma do processo de representação da estrutura fundiária

Fonte: Elaborado pelo autor.


A proposta alcança o nível esperado de detalhamento de representação. Contudo, há
limites na técnica, especialmente na análise histórica e em pequenas escalas. Como o processo
de georreferenciamento dos imóveis no INCRA é gradual e acumulativo, não se tem uma base
(shapefile) completa, mas o aumento gradativo das informações, impossibilitando a análise
histórica da estrutura fundiária. Outro limite encontrado situa-se na análise mais ampla dos
48

imóveis rurais, contemplando estado (UF) e regiões. A mudança de escala dificulta a


visualização dos pequenos imóveis rurais, limitando a análise em municípios.17
Além da localização dos imóveis rurais, o INCRA, em seu Sistema Nacional de
Cadastro Rural (SNCR), fornece18 informações em arquivos (planilha) que permitem identificar
os proprietários e associá-los aos imóveis rurais disponibilizadas pelo SIGEF. A associação
destes bancos de dados, permite identificar os maiores proprietários e os maiores imóveis rurais.
Nessa perspectiva, esse estudo identificou os maiores proprietários no Parque das Emas (GO)
e no Bolsão (MS). Desta maneira, os dados do SNCR em planilha permitiram a organização e
sistematização dos grandes proprietários, avançando na compreensão da estrutura fundiária em
comparação aos dados do IBGE.

1.7 POLÍTICOS E A QUESTÃO AGRÁRIA: PARALELO ENTRE DADOS DO


TSE E DO INCRA

A manutenção e a reprodução do latifúndio no Parque das Emas (GO) e no Bolsão (MS)


situa-se no interior das relações sociais no modo capitalista de produção, permeando os agentes
do Estado. Nesse sentido, a identificação dos proprietários rurais possibilita identificar
políticos, tais como governadores, deputados e prefeitos donos de imóveis rurais.
No aprofundamento da análise das relações entre políticos e questão agrária, as
informações sobre proprietários e imóveis rurais são relevantes e se tornam essenciais quando
associadas aos dados sobre doações eleitorais. Os dados disponibilizados pelo Tribunal
Superior Eleitoral (TSE)19, sobre doações às campanhas eleitorais, indicam os principais
financiadores de campanhas eleitorais de candidatos a governadores, senadores(as),
deputados(as) federais e estaduais. Ao se levantar os financiadores, foram identificados, nos
dados do INCRA, proprietários fundiários nas áreas estudadas, bem como suas participações
diretamente nos cargos eletivos.

17
Os prazos para georreferenciamento de imóveis rurais foram alterados diversas vezes. Os novos prazos para
imóveis acima de 25 ha e abaixo de 100 ha foi estendido a partir de 20 de novembro de 2023. Aqueles abaixo de
25 ha, a partir de 20 de novembro de 2025. Os imóveis rurais com área superior a 100 hectares estão obrigados a
promover o georreferenciamento e solicitar a certificação em caso de desmembramento, parcelamento,
remembramento e em qualquer situação de transferência de imóvel rural. Disponível em:
<http://www.cadastrorural.gov.br/perguntas-frequentes/propriedade-rural/45-quais-sao-os-prazos-para-
georreferenciar-e-certificar-o-imovel-rural>. Acesso em: 25 ago. 2020.
18
Disponível em: <http://www.incra.gov.br/consulta-imoveis-rurais>. Acesso em: 12 ago. 2020.
19
As informações podem ser acessadas em:<http://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/>. Acesso em: 10 ago.
2020.
49

Até o ano de 2014, as doações eleitorais poderiam ser realizadas por empresas,
facilitando a busca no banco de dados sobre proprietários fundiários. Nas eleições seguintes,
apenas pessoas físicas poderiam doar para as campanhas eleitorais, dificultando a associação
entre doador e proprietário fundiário, principalmente pela possibilidade de existência de nomes
homônimos. É sabido, no entanto, que as doações de grandes empresas não cessaram, apenas
passaram as feitas diretamente por seus proprietários e associados. Desta maneira, escolheu-se
as eleições gerais de 2014 como fonte inicial de informações para desnudar a relação entre
proprietários fundiários e política.
Posteriormente, foram analisadas as informações das eleições gerais de 2018 para todo
o Brasil, identificando os políticos eleitos e seus três principais financiadores (pessoas físicas).
Foram levantadas informações sobre 1.782 políticos entre presidente, senadores, governadores,
deputados federais e estaduais do país. Seguindo os procedimentos de pesquisa propostos por
Gonçalves (2012), buscou-se no Tribunal Superior Eleitoral20, nas declarações de patrimônio,
dados sobre imóveis rurais dos políticos analisados na tentativa de compreender vínculo entre
estes e a agricultura capitalista e às empresas ligadas ao agronegócio.
Com os dados em planilha do SIGEF, foram cruzados com os dados dos políticos eleitos
em busca de compreender a relação próxima entre propriedade fundiária e políticos,
demonstrando como estes são proprietários fundiários ou receberam volumosas doações para
suas campanhas eleitorais. Assim, senadores, governadores, deputados e prefeitos representam
interesses de classes dentro do Estado, preterindo, por vezes, as reivindicações dos camponeses.
Obviamente, há reciprocidade entre financiador e financiado. Nesse sentido, buscou-se para o
estudo os projetos, as ações e as votações, os quais políticos financiados por empresas do
agronegócio e latifundiários apoiaram os interesses dos mesmos. Muitas informações foram
encontradas em suas páginas oficiais (site) ou redes sociais e outras fontes, como a câmara
legislativa e bibliografias sobre o assunto, também foram consultadas.
A relação entre agricultura capitalista e política também apresenta suas contradições,
uma delas está nas emendas parlamentares propostas para agropecuária. As emendas consistem
na forma mais direta de políticos se relacionarem com a população, direcionando recursos ou
equipamentos para os estados e os municípios. Todas as emendas parlamentares aprovadas são
registradas e alocadas em um banco de dados disponibilizados pela plataforma Siga Brasil21 do
Senado Federal e pelo Portal da Transparência22.

20
Dados podem ser acessados em: <http://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/>. Acesso em: 20 jul. 2020.
21
Página pode ser acessada em: <https://www12.senado.leg.br/orcamento/sigabrasil>. Acesso em: 12 ago. 2020
22
Página pode ser acessada em: <http://www.portaltransparencia.gov.br/emendas>. Acesso em: 12 ago. 2020.
50

As informações sobre emendas parlamentares são disponibilizadas em planilhas,


permitindo a seleção por estado da federação, autor da emenda e o setor do recurso destinado.
Foram selecionadas emendas destinadas aos estados de Goiás e de Mato Grosso do Sul
direcionadas à agricultura, à reforma agrária e ao setor agropecuário, de forma geral. Todavia,
os latifundiários e o campesinato também se beneficiam de emendas não direcionadas
diretamente ao campo, por exemplo, emendas feitas à educação, ao transporte ou à saúde podem
indiretamente impactar o campo, bem como para obras de infraestrutura.
Nesse sentido, foram levantados e organizados dados sobre emendas parlamentares para
a agricultura entre os anos de 2010 e 2019. As informações, primeiramente, foram organizadas
pelo ano e pelos valores monetários das emendas em cada estado. Depois, dentro das
informações, entre os anos de 2010 e 2019, separou-se os políticos que mais destinaram
emendas à agricultura. Verificou-se ainda se parte destes políticos estão alinhados à agricultura
capitalista e/ou foram financiados por proprietários fundiários. Essa estratégia possibilitou
compreender a atuação política na questão agrária, revelando políticos alinhados a
latifundiários, porém, ao mesmo tempo, destinaram parte das emendas ao campesinato. Esta
contradição dá pistas sobre a permanência destes políticos alinhados ao agro no Estado e sua
busca pelo apoio popular no campo distribuindo benefícios pontuais.
No que se refere a emendas destinadas à agricultura, há dificuldade de organizá-las entre
agricultura capitalista e agricultura camponesa, pois em título ou detalhamento da proposta as
informações são vagas, limitando-se, em grande parte, a expressão “fomento ao setor
agropecuário”. Nesse sentido, buscou-se informações junto a prefeituras, assessorias de
imprensa de políticos e camponeses sobre as emendas destinadas aos municípios pertencentes
ao Parque das Emas (GO) e aos do Bolsão (MS). Houve sucesso no levantamento de notícias
em jornais eletrônicos e páginas (sites) de prefeituras e coleta de informações nos
assentamentos rurais, onde foi possível registrar em fotografias e em entrevistas o impacto das
emendas parlamentares.
A tentativa de contato com a assessorias de imprensa de parlamentares falhou, o
principal motivo foi pela falta de respostas do contato via e-mail. Foi possível apenas um
contato com a assessoria de imprensa de um deputado federal goiano, que forneceu uma tabela
detalhada de suas emendas para a agricultura. Não foi possível uma fala ou uma nota do político
sobre as emendas e sua perspectiva sobre o campo.
A ausência de informações também impossibilitou mapear os municípios mais
beneficiados, pois, em sua maioria, as emendas estão destinadas ao estado, não permitindo a
análise detalhada.
51

1.8 O PREÇO DA TERRA

A compreensão da reprodução dos latifúndios passa pela análise do preço da terra e sua
dinâmica ao longo do tempo. Essa discussão se assenta na renda da terra e como capitalistas e
latifundiários disputam a posse e o domínio da propriedade fundiária. Mensurar o preço da terra
permite compreender como determinados setores da agricultura capitalista, principalmente
produtores de soja, de eucalipto e de cana-de-açúcar, estrategicamente, adquirem grandes
extensões de terras.
Além disto, Oliveira (2007) decifra a estratégia adotada por latifundiários e capitalistas
na busca pela acumulação. O autor explica que estes sujeitos ponderam entre a taxa de juro e
valor e o preço da terra, objetivando maior lucratividade. Desta forma, o latifundiário ou
capitalista avaliam a aplicação do seu capital no setor produtivo e mercado financeiro ou na
compra de terras em busca de renda. Logo, há relação direta entre o preço da terra e a taxa de
juro, pois, quando está alta, os sujeitos procuram “[...] transformar a terra em capital-dinheiro
e consequentemente aplicá-lo no mercado de capitais. Ao contrário, quando a taxa de juros
começa a baixar, correm todos para vender seus papéis e comprar terras.” (OLIVEIRA, 2007,
p. 63).
Esta dinâmica escancara o significado da terra para os latifundiários e capitalistas no
modo capitalista de produção. Assim:
O preço da terra [...] (para proprietários de terra e para os capitalistas) aparece,
portanto, como juro do capital com que compra a terra e, por conseguinte, o
direito à renda. Por isso, o preço da terra é regulado, de um lado, pelo montante
da renda da terra e, de outro, pela taxa média de juro no mercado de capitais.
(OLIVEIRA, 2007, p. 63).

A dinâmica da taxa de juros e preço da terra provoca disputas entre proprietários


fundiários e capitalistas de um modo geral, sobretudo da agroindústria pelo monopólio da terra
e pela renda fundiária. Essa disputa e o aumento dos preços da terra prejudicam diretamente a
agricultura camponesa ao pressionarem a venda e/ou o arrendamento de suas propriedades e a
inviabilização da política de Reforma Agrária. A análise da majoração do preço da terra ajuda
a decifrar, em parte, a dificuldade de criação de assentamentos rurais nas áreas estudadas, pois
a principal forma de obtenção de terras para a política de Reforma Agrária é por meio da
compra.
Informações sobre o preço da terra são de difícil acesso no Brasil, principalmente por
não haver nenhum órgão público que realize pesquisa e subsidie estes dados. Apenas empresas
52

especializadas no setor agropecuário realizam levantamentos sobre o preço da terra no país,


porém as publicações com essas informações são vendidas a preços considerados altos para
uma pesquisa de doutorado.
O Anuário da Agricultura Brasileira (AGRIANUAL) é uma publicação do Instituto
FNP, empresa especializada no mercado agrícola. Publicado anualmente, o Agrianual reúne
informações sobre a agricultura capitalista e o mercado de terras. O relatório anual do mercado
de terras também é vendido23 separadamente e a edição atual (2019) tem o preço de R$3.930,00
(Três mil, novecentos e trinta reais). Diante do preço da publicação e o auxílio financeiro
recebido24, buscou-se, sem sucesso, contato com a empresa para uma possível cooperação, por
meio de cedência dos dados. A alternativa encontrada foi a busca de pesquisas sobre o tema na
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, onde localizou-se, entre acadêmicos, quem
possuía a publicação do Agrianual referente ao ano de 2019.
Com a possibilidade de análise histórica do preço da terra no Parque das Emas e no
Bolsão, buscou-se por publicações mais antigas do Agrianual em bibliotecas da Universidade
Federal de Goiás e da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Na pesquisa, localizou-se
a edição de 2017 na UFG, em Goiânia (GO), no câmpus Samambaia. Mesmo com a posse das
informações do mercado de terras dos anos de 2017 e 2019, havia ainda a necessidade de
informações mais antigas para possibilitar uma análise temporal comparativa mais abrangente.
Buscando em livrarias online, encontrou-se em uma de livros usados (sebo) duas edições
usadas do Agrianual do ano de 2000 e de 2009, vendidos por uma empresa de terraplanagem
no interior do estado de São Paulo. Adquiridas estas publicações, foi possível iniciar a
organização e análise das informações sobre o mercado de terras entre os anos de 2000 a 2009.
Porém, na leitura inicial, constatou-se que o instituto responsável pela pesquisa mudou
seus procedimentos de análise e de registro das informações ao longo dos anos. A pesquisa não
realizava o levantamento sistemático de todos os municípios do Brasil, considerando “regiões”
e os seus principais municípios até 2010. Desta forma, as publicações não contemplavam todos
os municípios estudados nesta pesquisa. Como nem todos os municípios estavam dispostos nas
publicações, para fins de comparação temporal, foram escolhidos os municípios de Três Lagoas

23
Vendido no site:<http://informaeconomicsfnpstore.commercesuite.com.br/terras-ct-36-349650.htm>. Acesso
em: 6 fev. 2020.
24
Como parâmetro, utiliza-se o valor das bolsas de pós-graduação no país, no qual a Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pagava (em 2020) aos estudantes, em nível de doutorado,
bolsa mensal de R$2.200,00 (Dois mil e duzentos reais) e a instituição de fomento à pesquisa do estado de Goiás,
a FAPEG, financiadora desta pesquisa, pagou ao doutorando, em 2020, R$ 2.000 (Dois mil reais) mensais em
forma de bolsa.
53

(MS), Chapadão do Sul (MS) e Jataí (GO), contemplados nas publicações de 2003 e 2017 do
Agrianual.
Nos relatórios sobre o mercado de terras, as informações são especificas sobre o preço
e sua relação à qualidade do solo, sua capacidade produtiva e localização. Deve-se compreender
que os preços apresentados no Agrianual correspondem à aproximação e à média da realidade,
pois em corretoras imobiliárias podem ser encontradas fazendas com preços menores ou
maiores.
Por fim, com as informações organizadas, produziu-se um gráfico com o objetivo de
apresentar a majoração do preço da terra ao longo dos anos nas áreas estudadas. Estas
informações permitiram afirmar que altas nos preços da terra são causa e efeito da/na
reprodução do latifúndio diante da territorialização do capital no campo e as dificuldades de
acesso à terra aos camponeses sem terra, justamente pela não realização da Reforma Agrária.

1.9 USO E OCUPAÇÃO DO SOLO

Compreender os cultivos desenvolvidas no contexto da reprodução do latifúndio foi a


estratégia utilizada com o objetivo de compreender se há relação entre a expansão da agricultura
capitalista e reprodução do latifúndio. Busca-se, também, compreender o processo de
territorialização do capital no campo, como referenciado teoricamente por Oliveira (2006). Para
tanto, buscou-se representar o uso e a ocupação do solo nas áreas estudadas por meio de
ferramentas e softwares de geoprocessamento.
Foram obtidas imagens de distribuição gratuita25 dos satélites Landsat-8 sensor OLI,
com 30 metros de resolução. Ao todo, nove cenas (imagens) foram obtidas, todas para o período
seco (junho a agosto) de 2018. A escolha deste período se justifica pelas imagens de melhor
qualidade sem interferência de nuvens.
Mosaicadas e processadas, as imagens foram classificadas pelo software eCognition.
Após a classificação dos pixels, o arquivo foi transferido para o software Arcgis e recebeu a
classificação final com cores, privilegiando os cultivos de cana-de-açúcar, soja, eucalipto e
pastagem. Esta classificação permitiu observar a distribuição dos principais cultivos e gerar
dados da área cultivada no Parque das Emas e no Bolsão.

25
As informações foram adquiridas no site do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Disponível em:
<http://www.dgi.inpe.br/>. Acesso em: 5 mar. 2020.
54

Esta análise se ampliou para todo o Brasil, objetivando identificar as características


produtivas em áreas onde há imóveis declarados por políticos brasileiros. Esta busca
possibilitou a identificação de imóveis desses sujeitos em áreas de desenvolvimento da
agricultura capitalista, principalmente na região Centro-Oeste. Para o mapeamento abranger
todo o país, foi preciso acessar dados do Projeto de Mapeamento Anual da Cobertura e Uso do
Solo no Brasil (Mapbiomas), criado em 2015, responsável por fornecer informações detalhadas
sobre o uso do solo no Brasil anualmente.
Desta forma, foram utilizados os dados mais recentes publicados pelo Mapbiomas
referentes ao ano de 2018. Estes dados foram processados no software de geoprocessamento,
sendo classificados e privilegiando o destaque dos tipos de monocultivos desenvolvidos e
generalizando as formações vegetais e naturais.

1.10 ANÁLISE DA CADEIA DOMINIAL

Durante a disciplina “Organização Espacial”, ministrada pelo Prof. Dr. Ariovaldo


Umbelino de Oliveira26, discutiu-se, entre outros assuntos, a fragilidade jurídica das
propriedades rurais onde o agronegócio está territorializado em todo o Brasil. Em discussões
durante as aulas, o professor explicou como grande parte das terras devolutas brasileiras foram
apropriadas indevidamente e a análise documental das transcrições sequenciais das
propriedades dos imóveis indicaria a sequência dos proprietários, chegando-se até sua
matricula inicial, pois deveria constar a transmissão inicial da propriedade da terra do Estado
brasileiro para o primeiro proprietário privado. Esta análise denomina-se “cadeia dominial”,
por indicar a sequência dos proprietários de determinada propriedade. De toda forma, havia
suspeita de cadeias dominiais não possuírem tal lastro jurídico, ou seja, a primeira matrícula
não oriunda do Estado.
Pretende-se analisar as cadeias dominiais para demonstrar que o latifúndio e a gênese
da apropriação capitalista da terra, em dois casos analisados nas áreas em estudo, são eivados
de vícios por meio de grilagens de terras. Portanto, demonstra-se que a origem da apropriação
capitalista da terra deu-se por meio da concentração da terra, configurando-se pela
predominância do latifúndio (em área ocupada) com rebatimentos em tempos presentes, ou seja,

26
A disciplina foi oferecida e cursada na Universidade Federal de Goiás, campus de Jataí, no primeiro semestre
de 2017.
55

a manutenção da estrutura fundiária concentrada, a predominância de atividades econômicas


típicas de exportação e o bloqueio à Reforma Agrária.
As informações das cadeias dominiais são adquiridas em cartórios de registro de
imóveis do município (CRIs) sede da comarca onde o imóvel foi registrado. Para acessar tais
informações, é preciso saber o nome da propriedade, do proprietário e/ou o número atual da
matrícula. Com apenas o nome da fazenda, corre-se o risco de encontrarem-se outras com a
mesma denominação e, sendo assim, o primeiro passo é buscar informações complementares
(nome do proprietário, por exemplo) junto ao INCRA, por meio do SIGEF e do SNCR.
Na construção da cadeia dominial de um imóvel rural, em cada transferência de
titularidade, é gerada uma nova averbação ou uma nova matrícula quando se desmembra o
imóvel. Nesse sentido, o trabalho dos funcionários do cartório é levantar sequencialmente todas
as matrículas referentes ao imóvel desde sua formação. O cartório cobra, por cada cópia de
matrícula, aproximadamente, R$30,00 (Trinta reais). Logo, as cadeias dominiais, com grande
número de transcrições, resultam em alto custo para o pesquisador. Como exemplo, o Prof. Dr.
Ariovaldo Umbelino de Oliveira doou para esta pesquisa a cadeia dominial de uma propriedade
rural no município de Jataí (GO), referente ao seu trabalho desenvolvido como professor
visitante na UFG, atual UFJ, de 2016 a 2018. O preço pago pela cadeia dominial foi de,
aproximadamente, R$4.000,00 (Quatro mil reais). Esta cadeia será objeto de análise neste
trabalho, posteriormente.
A segunda cadeia dominial foi acessada pelo processo 0092977-8 no Superior Tribunal
de Justiça (STJ). No processo, Arthur José Hofig Junior contesta o Ministério de
Desenvolvimento Agrário (MDA) pela inclusão de suas propriedades no Livro Branco da
Grilagem de Terras, publicado em 1999, além do cancelamento do cadastro de seus títulos
referentes aos imóveis rurais localizados entre os municípios de Três Lagoas (MS) e de
Brasilândia (MS).
Na disputa judicial, o INCRA apresentou a cadeia dominial da fazenda Arapuá e sua
matrícula inicial não indica a transferência do imóvel do Estado para o primeiro proprietário
particular, levando a conclusão da fazenda, possivelmente, ser grilada. Posteriormente, o
representante de Arthur José Hofig Junior anexou aos autos do processo um documento com
data de 1913 no qual o presidente do antigo estado de Mato Grosso27 transferia as terras públicas
para o primeiro proprietário.

27
É preciso lembrar que Mato Grosso do Sul até 1977 pertencia ao território do chamado antigo Mato Grosso.
56

Em seguida, buscou-se outro imóvel, a partir das informações obtidas no INCRA


(SIGEF), indicando outro latifúndio no município de Três Lagoas (MS), denominado Fazenda
Jatobá, com dimensão de 4.552 hectares. De posse dessas informações, tentou-se localizar o
número da matrícula da fazenda no Cartório de Registro de Imóveis do município que, após
várias tentativas, foi localizada. Protocolado o pedido da cadeia dominial da Fazenda Jatobá,
passaram-se duas semanas para a entrega do documento. Este pedido, com cópia das nove
matrículas, presentes na cadeia, teve o preço de R$350,80 (Trezentos e cinquenta reais e oitenta
centavos). Infelizmente, a primeira matrícula da cadeia dominial da Fazenda Jatobá era
inconclusiva, pois indicava sua origem na Fazenda Arapuá, já mencionada no processo de
Arthur José Hofig Junior.
No complexo quebra-cabeça dos imóveis, buscou-se seguidamente a terceira fazenda
denominada Morro Vermelho que, durante a pesquisa de Leonardo (2020, p.201), foi
reconhecidamente como matriz de origem de outras fazendas do entorno do Distrito de
Guadalupe do Alto Paraná28, no município de Selvíria (MS). Pesquisando sua denominação na
base do INCRA, foi encontrada a dimensão atual e o nome do proprietário, mas, no entanto,
não havia informações sobre o número da matrícula. Em diálogos com o professor e historiador
em Mato Grosso do Sul, Carlos Alberto Dutra, descobriu-se a existência de uma carta
endereçada ao INCRA, em 1985, constando que o remetente indicava ao Estado imóveis
passíveis de Reforma Agrária, dentre elas a Fazenda Morro Vermelho. Segundo a carta, a
fazenda tinha 11.849,18 hectares e estava classificada no INCRA como latifúndio, levando o
autor a elege-la como passível de Reforma Agrária. Ainda na carta, o autor apontava a
localização da fazenda, o nome do proprietário e o número de sua matrícula, informações que
possibilitaram protocolar o pedido da cadeia dominial no Cartório de Registro de Imóveis de
Três Lagoas (MS).
A procura por informações de cadeia dominial não é comum e deixou os funcionários
do cartório intrigados com o objetivo desta procura. Com o pedido protocolado, os funcionários
afirmaram a necessidade de tempo para levantarem as informações solicitadas. Após duas
semanas, o cartório entrou em contato informando a não localização da matrícula nos arquivos,
suspeitando de seu erro no número requerido. A carta com as informações foi revista e então
foi identificado um erro na escrita da matrícula, assim, solicitou-se novamente, via e-mail, a
cadeia dominial da Fazenda Morro Vermelho.

28
Popularmente, o distrito é conhecido como Véstia.
57

Após três semanas de espera, a cadeia dominial ficou pronta, ao preço de R$196,00
(Cento e noventa e seis reais). Neste documento foi observado que a matrícula inicial não
indicava a transferência do Estado para o proprietário particular, mas, no entanto, a primeira
matrícula referia-se a um inventário do ano de 1911. Primeiramente recorreu-se ao cartório para
solicitar uma cópia do inventário, porém, segundo a funcionária, na época a matricula foi
expedida sem uma cópia registrada no cartório deste documento. Nesse contexto, foi preciso
buscar junto ao fórum da Comarca em Três lagoas (MS), no qual foi informado o
armazenamento de processos antigos no Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS),
em Campo Grande (MS).
Em contato com Departamento de Pesquisa e Documentação do TJMS, descobriu-se a
existência do inventário e, após solicitação, fora digitalizado e enviado ao pesquisador. Por ser
um documento de 1911, a escrita era toda à mão, como de costume da época (figura 2). Esta
característica impossibilitava a leitura do documento e a busca pela origem da Fazenda Morro
Vermelho.

Capa da Certidão de inventário

Fonte: TJMS - Departamento de Pesquisa e Documentação


58

Com isso, buscou-se um profissional capaz de realizar a transcrição do documento e


revelar as informações procuradas, doutorando da Universidade Federal do Paraná (UFPR)29,
pesquisador em arquivos da América Portuguesa, usando-se a transcrição paleográfica. De
posse das informações sobre o imóvel, foi possível realizar a análise da cadeia dominial, objeto
de análise posterior.
A construção da análise iniciou-se com o complexo processo de leitura das matrículas
das fazendas Rio Paraíso, em Jataí (GO), e Morro Vermelho, em Três Lagoas (MS), objetivando
a montagem da sequência de transição dos proprietários. O documento das cadeias dominiais
utilizado pelos cartórios de imóveis em Goiás e Mato Grosso do Sul são semelhantes,
primeiramente informam sobre a matrícula atual, seu proprietário e a dimensão do imóvel e, ao
final, indicam o número da matrícula anterior. Desta maneira, as informações obtidas na
matrícula apresentam o movimento do presente para o passado do imóvel, sendo possível,
assim, organizar e montar a sequência da cadeia dominial da matrícula atual até sua origem.
Devido à quantidade de informações, representar a cadeia dominial por meio de
gráficos, tabelas ou quadros limitava a sua compreensão. Primeiramente, investigou-se no
portal de periódicos30 da CAPES trabalhos realizados sobre a análise e a representação da cadeia
dominial no Brasil. Ao não se encontrar nenhuma pesquisa como referência de representação,
houve a necessidade de construir uma forma de representar as cadeias dominiais estudadas.
Como resume-se em uma sequência (caminho) de matriculas e transcrições, optou-se por
representa-las por meio de organogramas no software Corel Draw. Na representação, enfatizou-
se a sequência das matrículas até seu primeiro registro, demonstrando-se não haver “registro
anterior”, ou seja, não havia documento comprovando a transferência da terra pública para o
domínio privado. Desta forma, a figura do organograma possibilita a visualização de toda a
trajetória do imóvel, indicando se houve o cumprimento das legislações vigentes da época, a
partir de sua matricula inicial. A legislação fundiária brasileira, desde a Lei de Terras de 1850,
exige que as terras de domínio público ou devolutas devem ser a origem de todas as terras
particulares. Portanto, a primeira matrícula de uma cadeia dominial deve sair do Estado para
particulares.
O preço elevado para o pesquisador, pago no CRI de Três Lagoas, além da espera e a
dificuldade em adquirir informações sobre as matrículas, limitaram a análise em apenas duas
propriedades. Observaram-se desconfortos nos cartórios de imóveis pela pesquisa de cadeias

29
Agradecimento especial a Bruno Cezar Bio Augusto pela transcrição do documento.
30
O portal pode ser acessado em: <https://www.periodicos.capes.gov.br>. Acesso em: 17 ago. 2020.
59

dominiais, consideradas incomuns. Após sucessivos atendimentos, os funcionários passaram a


solicitar documento formal (requerimento) exigindo nome do pesquisador, endereço e o motivo
da procura por tais informações. Apesar da burocracia, foi possível acessa-las. Em síntese, a
estratégia se mostrou relevante em demonstrar a insegurança jurídica do latifúndio nas áreas
rurais nas quais se desenvolve a agricultura capitalista, sobretudo da soja e de eucalipto, no
Parque das Emas (GO) e, sobretudo, no Bolsão (MS).

1.11 TRABALHO DE CAMPO

O trabalho de campo é um recurso tradicional na Geografia brasileira por permitir a


interação com o local e os sujeitos envolvidos nos estudos e nas pesquisas. Esta atividade, no
entanto, necessita de planejamento e estudo, além de estar sujeita a questões institucionais
relacionadas à infraestrutura.
Ir a campo para conhecer o local de estudo, conhecer os sujeitos estudados é o
procedimento capaz de auxiliar na compreensão de questões teóricas colocadas. Aliás, a
pesquisa deve seguir o movimento dialético (realidade-teoria-realidade), pois a pesquisa e a
teoria só existem por haver problemáticas a serem pensadas pela humanidade. Nesta
perspectiva, o trabalho de campo é um procedimento antes, durante e depois de formulações
teóricas.
Netto (2011, p.22), analisando a construção da obra de Marx, afirma:
[...] o método de pesquisa que propicia o conhecimento teórico, partindo da
aparência, visa alcançar a essência do objeto. Alcançando a essência do objeto,
isto é: capturando a sua estrutura e dinâmica, por meio de procedimentos
analíticos e operando a sua síntese, o pesquisador a reproduz no plano do
pensamento; mediante a pesquisa, viabilizada pelo método, o pesquisador
reproduz, no plano ideal, a essência do objeto que investigou.

As informações empiricamente adquiridas permitem ao pesquisador formular


problemáticas e hipóteses, além de auxiliar no planejamento. Logo, distância, acessibilidade e
relação com os sujeitos envolvidos são fatores a serem considerados para o bom andamento da
pesquisa. Neste planejamento, a estrutura da Universidade deve ser levada em conta,
principalmente a possibilidade de utilização dos recursos (veículos e motorista) durante o
trabalho de campo.
Durante a pesquisa, ir a campo é procedimento a ser utilizado em mais de um momento,
para levantamento de informações primárias (fotografias, entrevistas e documentos), mas
60

também confirmação in loco das possíveis reflexões/conclusões encaminhadas pelo


pesquisador. A realidade pode dar as respostas não encontradas pelo pesquisador em
bibliografias, como também pode contrariar as hipóteses formuladas.
Seguindo as exigências do Programa de Pós-Graduação da UFG/UFJ, o primeiro passo
para o trabalho de campo desta pesquisa foi sua aprovação no Conselho de Ética na Plataforma
Brasil31. O processo de aprovação demanda tempo, sobretudo de formulação nas normas
exigidas e no período de avaliação. A Plataforma Brasil não foi elaborada para pesquisas em
Ciências Humanas, assim alguns questionamentos e exigências não se enquadram neste estudo,
como, por exemplo, perguntas sobre coleta de materiais biológicos.
Nesse sentido, a aprovação da pesquisa no Comitê de Ética demorou, aproximadamente,
três meses, entre o enquadramento do projeto nas normas e sua avaliação na plataforma. Na
elaboração do projeto, é exigido do pesquisador a apresentação de quem serão os entrevistados
e o roteiro (perguntas) de entrevista, questionamento aparentemente simples em pesquisa sobre
campesinato, mas novos sujeitos são encontrados em campo, como funcionários públicos,
prefeitos, comerciantes, entre outros, fugindo do projeto inicial.
Além disso, exige-se do pesquisador a apresentação de termo de consentimento de
entrevista ao entrevistado e a coleta de sua assinatura em uma segunda via. Em pesquisas
qualitativas como esta, o número de pessoas entrevistadas é relativamente pequeno, no entanto,
para pesquisas quantitativas, com levantamento em campo de informações via aplicação de
questionários, essa exigência demanda grande quantidade de material impresso.
O trabalho de campo se embasou nas experiências de Marcos (2006) e no uso de fontes
orais de Almeida (2006). Sendo assim, a postura e o comportamento diante dos sujeitos
entrevistados devem ser pensados, principalmente, quando são camponeses, com baixa
escolaridade. Assim,
Um ponto importante da pesquisa, talvez o mais importante, se refere à
‘chegada’ à área de estudo. A forma como nos apresentamos e nos
(com)portamos reflete muito do que somos e pode servir a nos abrir as portas,
ou a fechá-las definitivamente. (MARCOS, 2006, p. 111).

Considerando sempre a necessidade de o pesquisador deixar de ser estranho no local


para transformar-se em visita agradável, a necessidade de coleta de assinatura durante o campo
prejudica o andamento da pesquisa. Camponeses, em sua maioria, possuem pouca escolaridade,
porém são sempre desconfiados, ainda mais diante de um estranho fazendo perguntas e
fotografando. Muitos aceitaram simpaticamente conversar, mas sem assinar o termo; outros

31
Plataforma pode ser acessada em: <http://www.comitedeetica.saomateus.ufes.br/plataforma-brasil>. Acesso
em: 17 ago. 2020.
61

começaram a se portar mais reservadamente após a solicitação da assinatura, limitando a


entrevista em respostas curtas e vagas. Os camponeses mais jovens, titulares de lotes de
Reforma Agrária, ou seus filhos, receberam melhor o pedido de assinatura do termo de
consentimento. Até mesmo funcionários públicos se mostraram receosos com o pedido de
assinatura do documento. Esta experiência mostra como a exigência de assinatura imposta pelo
Comitê de Ética é limitante e desconfortável para o pesquisador e entrevistados.
Por outro lado, a apresentação da pesquisa de forma escrita e resumida foi bem aceita.
Sendo assim, para os camponeses entrevistados e visitados, foi distribuído material impresso
em uma folha, com informações sobre a pesquisa e o pesquisador, incluindo telefone e endereço
da Universidade.
O trabalho de campo foi realizado, em grande parte, nos assentamentos de Reforma
Agrária no Parque das Emas (GO) e no Bolsão (MS). Foram realizadas, pelo menos, uma visita
em cada um dos 16 assentamentos estudados. Órgãos federais, como INCRA, em Brasília (DF),
e a representação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, em Campo Grande
(MS), também foram locais visitados durante o procedimento.
Ocasionalmente foram utilizados os veículos da Universidade para trabalhos de campo
em locais próximos. A demanda por veículos, somada à falta de funcionários, e a perspectiva
de campos com duração de mais de um dia, inviabilizaram o uso de recursos da Universidade.
Dadas às longas distâncias e à necessidade de trabalhos de campo mais extensos, fez com que
se optasse pela locação de veículos com recursos próprios, permitindo trabalhos nos feriados e
nas férias escolares. No mapa 2, demonstra-se a abrangência da área pesquisada e a relação em
quilômetros entre os assentamentos e os municípios de Jataí (GO) e de Três Lagoas (MS).
Calcula-se, nesta pesquisa, apenas em trabalhos de campo a assentamentos rurais, mais
de 3 mil quilômetros percorridos em rodovias, sem considerar o deslocamento entre os lotes
das famílias. No Parque das Emas (GO), estima-se que o caminho percorrido nos trabalhos de
campo, apenas nos assentamentos rurais, totalizou 1.640 quilômetros. A maior distância foi de
Jataí (GO) até a área rural de Santa Rita do Araguaia (GO), correspondendo a,
aproximadamente, 350 quilômetros, totalizando 700 quilômetros no percurso completo (ida e
volta). No Bolsão (MS), a soma das distâncias percorridas de todos os trabalhos de campo nos
assentamentos de Reforma Agrária totalizou 1.732 quilômetros. Em um único trabalho de
campo, de Três Lagoas (MS) até o assentamento Aroeira, em Chapadão do Sul (MS), foram
418 quilômetros percorridos, totalizando 836 quilômetros no trajeto de ida e volta.
62

Mapa 2 –Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS): rodovias e distâncias percorridas na pesquisa
63

A chegada até aos assentamentos se apresentou como desafio para o pesquisador em


virtude das péssimas condições das estradas de chão batido. As dificuldades dos camponeses,
para além da distância, puderam ser constatadas no início do trabalho de campo, como
apresentado na figura 3, da estrada de acesso ao assentamento Serra, no município de Paranaíba
(MS).

Assentamento Serra, Paranaíba (MS): estrada de acesso

Fonte: Trabalho de campo, 2019. Foto: do autor.

Estar em campo significa viver a pesquisa para além de conhecer os sujeitos, mas sentir,
mesmo que parcialmente, toda as subjetividades na realidade. Vivenciar o cotidiano do
campesinato permite compreender as decisões e as lutas diárias dos camponeses estudados. A
fala dos sujeitos é uma das formas de expressão mais potentes no trabalho de campo, pois
alimenta a pesquisa com informações carregadas de emoções e de olhares sobre a realidade.
As fontes orais, utilizadas nesta pesquisa, auxiliam na compreensão da realidade em
suas particularidades e singularidades por fornecerem informações concebidas e ou
reproduzidas no local onde se dão as relações inerentes à questão agrária, mas, ao mesmo
tempo, trazem elementos da universalidade. As fontes orais possuem a autoridade de confirmar
e/ou refutar fatos e dados oficiais. Assim;
A classe hegemônica tem na escrita o seu marco essencial, o seu suporte para
contar e interpretar a história, e não permite à classe não hegemônica as
mesmas condições para desenvolver o dom da escrita e contar os percalços
sobre sua vida. (CASSAB, RUSCHEINSKY, 2004, p.12).
64

Portanto, a riqueza das fontes orais, para além das informações, está na expressão, na
forma como os sujeitos demonstram a relevância dos acontecimentos. Desta forma, situações e
acontecimentos, que poderiam passar desapercebidos pelo pesquisador, são realçadas com a
entonação de voz e de gestos. Esta percepção não é simples, e exige o olhar apurado do
pesquisador e a relação mais próxima dos camponeses, justamente pelas contradições e pela
difusão do pensamento hegemônico.
Geralmente, as entrevistas se desenvolvem melhor quando os entrevistados oferecem
“café” e convidam o pesquisador para dentro do lote e da casa. Este gesto é um sinal de
confiança e também de curiosidade dos camponeses sobre o pesquisador e a pesquisa. Ocorre
na cozinha, na presença da família, a ampliação da entrevista; pai, mãe, filhos e outros
agregados revisitam os fatos ocorridos no assentamento e com a família. A habilidade em
conduzir a entrevista é necessária, por momentos, pois os familiares vão se confrontar, isso se
explica porque a individualidade e a experiência de cada familiar lhes proporcionam percepções
diferentes do mesmo fato. Nesse sentido:
[...] é na fala, isto é, no processo de revisitar sua memória que o entrevistado,
muitas vezes, se descobre como sujeito da história, interpreta os encontros e
desencontros que a vida apresenta nos seus múltiplos aspectos, nos espaços de
luta constituídos pelo desejo da terra. Assim, fontes orais ‘conta-nos não
apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que acreditava estar fazendo
e que agora pensa que fez’. (ALMEIDA, 2006, p.38).

Por mais curta que seja a conversa, houve o registro com gravador ou celular e, ainda,
anotações sobre outras informações consideradas pertinentes no momento. A depuração e a
organização das informações coletadas em campo são procedimentos que demandam tempo.
Os cuidados com a organização incluem separar as entrevistas, listar os nomes dos entrevistados
com datas e os locais.
O tempo de duração das entrevistas em campo variaram muito, de 15 minutos a mais de
duas horas. Histórias familiares e outros assuntos constantemente estão presentes nas falas,
havendo a necessidade de filtrar apenas o conteúdo pertinente da conversa para o processo de
transcrição. Por se tratar de sujeitos, majoritariamente, que não tiveram acesso à escola, erros
de concordância e de pronúncia são comuns nas entrevistas. Diante dessa característica, optou-
se por transcrever as falas na norma culta da Língua Portuguesa. Esta escolha fundamenta-se
por considerar a manutenção da fala informal pejorativa aos camponeses. O ajuste formal das
falas retira vícios de linguagem como “que”, “né”, “então”, entre outros, facilitando, também,
a leitura e a compreensão.
65

Em situações de uso de expressões informais, consideradas erros na Língua Portuguesa,


são necessárias para dar sentido à informação, optou-se por mantê-las na íntegra. De toda forma,
houve o cuidado para que as informações fossem precisamente transcritas sem depreciar o
campesinato. As fontes orais se mostraram eficientes na pesquisa evidenciando detalhes, fatos
no movimento contraditório de reprodução do latifúndio e de recriação do campesinato.
66

2 HEGEMONIA LATIFUNDIÁRIA NO ESTADO BRASILEIRO

A propriedade da terra é o centro


histórico de um sistema político
persistente. Associada ao capital
moderno, deu a esse sistema político
uma força renovada, que bloqueia
tanto a constituição de uma verdadeira
sociedade civil, quanto da cidadania
de seus membros.

José de Souza Martins, 1994, p. 13.

A compreensão da questão agrária brasileira e seus processos contraditórios de


reprodução do latifúndio e de recriação do campesinato exige cuidados teóricos acerca do
Estado, pois o desenvolvimento do capitalismo tem nesta instituição um de seus pilares.
Portanto, a questão agrária brasileira permeia a compreensão do Estado e sua capacidade em
criar condições para produção e reprodução do capital e suas contradições.
Parte-se da concepção inicial do Estado como instituição, ou seja, como sujeito
expressando sua vontade por meio de determinadas pessoas ou órgãos (DALARI, 1998). Esta
abstração não é suficiente para entender como e porque um país com população
predominantemente urbana32, segundo o IBGE, 81,25%, possui uma bancada parlamentar
significativamente ligada ao rural e ao agronegócio. Talvez o leitor indague que esta seja uma
questão de governo e não de Estado, mas o exercício realizado aqui esclarecerá como no Brasil
o Estado foi erigido a partir das classes de proprietários fundiários e de capitalistas, perpassando
historicamente de forma hegemônica diferentes governos.
Inicialmente, será preciso recorrer à Teoria Geral do Estado para compreender sua
construção social e revelar a verdadeira estrutura de poder no qual os sujeitos se valem para
impor as aspirações de classes ou frações de classes representadas. A distinção entre o Estado
instituição/sujeito e Estado enquanto produto da sociedade de classes se baseará nas concepções
marxistas que, por conseguinte, fomentam a análise sobre seu poder e sua legitimidade no
processo de reprodução ampliada do capital.

32
Não é objeto de análise neste trabalho, mas compreende-se que “[...] a maioria das cidades brasileiras tem
população inferior a 20 mil habitantes, ou seja, 4.642 sedes de município, de um total de 5.6564 (IBGE, 2010)
[...]” e “De acordo com os dados demográficos do IBGE (2010), somente 130 municípios brasileiros tinham mais
de 200 mil habitantes”. (NARDOQUE, 2015, p.161-2). É certo que há significativa população residente no campo
brasileiro, ou seja, quase 40 milhões de pessoas.
67

Neste caminho, revisitar a História, por meio das referências bibliográficas, e


reconhecer como a construção deste Estado brasileiro, a partir dos anseios de proprietários
fundiários e capitalistas, possibilita compreender como determinadas classes sociais se
perpetuam no poder. Em vista disso, desde arranjos políticos locais, passando pela União
Democrática Ruralista (UDR), até a atual Bancada Ruralista, latifundiários e capitalistas,
ligados à agropecuária e ao agronegócio, representaram seus interesses particulares por meio
desta instituição.
Para comprovar esta condição, buscou-se informações no Tribunal Superior Eleitoral
(TSE) sobre as campanhas eleitorais no Brasil, sobre os bens (imóveis rurais) declarados e
também os principais financiadores das campanhas. Este procedimento metodológico
demonstrará o interesse de políticos na propriedade capitalista da terra em regiões de intenso
desenvolvimento da agricultura, como, também, a participação de empresas territorializadas no
Parque das Emas (GO) e no Bolsão (MS), nos arranjos políticos locais e estaduais.
A hegemonia de latifundiários e de capitalistas no Estado afetam diretamente a luta de
classes, sobretudo a luta pelo acesso à terra por meio da Reforma Agrária. Com isso, é preciso
compreender como a luta de camponeses e de trabalhadores no Brasil foi diluída por diferentes
governos sob a influência de ruralistas com objetivo de sustentar o desenvolvimento das
atividades econômicas ligadas ao agronegócio, no campo e na cidade.

2.1 POR UMA ANÁLISE GEOGRÁFICA DO ESTADO

Muito se discute sobre o Estado, suas origens e sua estrutura em diversas áreas,
denominando-se, no Direto e nas Ciências Sociais, Teoria Geral do Estado. Todavia, esta
abordagem na pesquisa geográfica só se torna relevante ao explicitar as relações de poder
emanados pela instituição e seus desdobramentos sobre o território. Nesse sentido, esforça-se
para se compreender como a constituição do Estado, por sujeitos pertencentes majoritariamente
à burguesia e aos proprietários fundiários, é importante no processo de reprodução ampliada do
capital e, logicamente, na produção do território, no caso em tela, pela forte concentração
fundiária.
A origem do Estado é objeto de estudo a partir de duas principais linhas teóricas. A
primeira, denominada de naturalista, considera o surgimento e organização da sociedade como
movimento natural da humanidade (DALARI, 1998). Nesta linha, “[...] a sociedade é o produto
da conjugação de um simples impulso associativo natural e da cooperação da vontade humana.”
68

(DALARI, 1998, p. 9). Embora pareça coerente a associação humana como o movimento
natural nos primórdios da espécie, esta perspectiva não corrobora na compreensão das
contradições e do uso da instituição Estado como porta-voz de aspirações classistas.
A segunda linha interpreta o surgimento do Estado como a associação não natural a
partir das necessidades de grupos humanos, ou seja, um contrato social. Portanto:
Nesse instante, o ato de associação produz um corpo moral e coletivo, que é o
Estado, enquanto mero executor de decisões, sendo o soberano quando
exercita um poder de decisão. O soberano, portanto, continua a ser o conjunto
das pessoas associadas, mesmo depois de criado o Estado, sendo a soberania
inalienável e indivisível. (DALARI,1998, p. 11).

Sob a perspectiva do contratualismo, o Estado agiria dentro dos interesses coletivos da


sociedade. A preservação do “contrato” e das leis permitiriam a existência da sociedade por
meio da existência de poder visível, o Estado (DALARI,1998). A compreensão do Estado,
enquanto guardião dos interesses em comum, limita a análise de como as classes sociais na
atualidade se constituem como parte do Estado e agem a partir de seus interesses particulares.
Há ainda uma terceira perspectiva, alinhada ao marxismo (DALARI, 1998),
compreendendo o Estado como organização da classe dominante para manter suas condições
de produção por meio da opressão e da exploração de outras classes (BONAVIDES, 2000).
Alinhando-se a esta terceira perspectiva, o caminho a ser trilhado, por dentro da Geografia,
deve estar balizado nestas interações da sociedade, implicando no ordenamento territorial como
condição para a reprodução do capital.
Desta forma, o Estado é objeto permanente de análises na Geografia Política e na
Geopolítica, sendo a obra “Geografia Política”, de Ratzel (1887), um dos principais clássicos
sobre o tema (KAROL, 2013). O controle do território é um dos principais trunfos em ser/estar
no Estado. Mesmo não utilizando o conceito de território, Ratzel, segundo Raffestin (1993, p.
13), “[...] partiu da ideia de que existia uma estreita ligação entre o solo e o Estado”. Partindo
de concepção determinista, o domínio do solo e de seus recursos naturais definiriam a formação
e o poder do Estado e das comunidades. Para Ratzel, “[...] o elemento fundador, formador do
Estado, foi o enraizamento no solo de comunidades que exploraram as potencialidades
territoriais.” (RAFFESTIN, 1993, p. 13). A abordagem, apontada por Ratzel, dá pistas na
compreensão do papel do Estado na questão agrária, principalmente por relaciona-lo aos
recursos naturais e sua apropriação.
Castro (2005) destaca, na obra de Ratzel, que “[...] o sentido geográfico jamais faltou
aos pragmáticos homens de Estado, sendo dissimulado sobre o nome de ‘instinto de expansão’,
69

de ‘vocação colonial’ ou de ‘sentido inato de poder’ [...].” (p. 69). Segundo a autora, Ratzel
observou a consolidação dos Estados Nacionais por meio da submissão do território.
A busca pela compreensão da relação entre classes sociais, Estado e território, nesta
pesquisa, parte da concepção de Estado moderno, adjetivo utilizado para se referir a instituição,
a partir dos séculos XV e XVI, quando houve a dissolução de impérios na Europa e dos poderes
da igreja (COSTA, 2010). Apesar de não concordar com uma “estrutura geral” do Estado
moderno, Costa (2010) compreende o contexto da fase primitiva do capitalismo e de suas
classes sociais como responsável pela sua construção: “Ele representava, para a nova classe
dominante que se formava, de início um organismo institucional subordinado ao mercado e,
também, a expressão do poder da aristocracia.” (p. 261). Para Castro (2005), o Estado é a
instituição política mais importante da modernidade, responsável por organizar e delimitar o
território por meio de leis e de normas, podendo ainda recorrer à coerção física em caso de
desobediência.
Com base nesta perspectiva, não se pode perder da discussão a intepretação do Estado
como produto da luta de classes. Sendo assim:
O Estado não é pois, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de
fora para dentro; tampouco é ‘a realidade da idéia moral’, nem ‘a imagem e a
realidade da razão’, como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade,
quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão
de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela
própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue
conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses
econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa
luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da
sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da
‘ordem’. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se
distanciando cada vez mais, é o Estado. (ENGELS, 1984, p. 191).

Em sua concepção clássica, Marx e Engels compreendem o Estado como um dos pilares
do capitalismo, atuando na legitimação da exploração do trabalho e de outros interesses. Logo,
“[...] este Estado não é outra coisa senão a forma de organização que os burgueses dão a si
mesmos por necessidade, para garantir reciprocamente sua propriedade e os seus interesses
tanto externos quanto internamente”. (MARX; ENGELS, 1999, p.74).
Estar e ser o Estado permite ações de uma classe específica em benefício próprio por
meio da sua suposta neutralidade emanada. Os sujeitos, enquanto parte do Estado, conseguem
mascarar suas intencionalidades referentes às suas perspectivas de classe. Portanto:
Disso decorre que o homem se liberta de uma limitação, valendo-se do meio
chamado Estado, ou seja, ele se liberta politicamente, colocando-se em
contradição consigo mesmo, alteando-se acima dessa limitação de maneira
70

abstrata e limitada, ou seja, de maneira parcial. Decorre, ademais, que o


homem, ao se libertar politicamente, liberta-se através de um desvio, isto é, de
um meio, ainda que se trate de um meio necessário. (MARX, 1991, p.39).

Também, com interpretações no interior do modo capitalista de produção, Antônio


Gramsci (1984) formula outra compreensão, aprofundando a análise na vertente marxista ao
compreender Estado e sociedade civil como dois grandes planos superestruturais unidos
dialeticamente, denominado de Estado Integral (LIGUORI, 2017). Nas palavras de Gramsci:
Permanecemos ainda no campo da identificação entre o Estado e o governo,
identificação que é justamente uma representação da forma corporativo-
econômica, isto é, da confusão entre sociedade civil e sociedade política;
porque é preciso notar que a noção de Estado comporta elementos que devem
ser vinculados à sociedade civil (no sentido de Estado = sociedade política +
sociedade civil, isto é, hegemonia encouraçada de coerção. (GRAMSCI, 1984,
p.149).

A perspectiva de Gramsci revela a sociedade civil como parte do Estado reproduzindo


ideologias e permitindo, dentro de um consenso entre as classes governadas, a manutenção atual
de sua estrutura. Logo, “[...] Estado é todo o complexo de atividades teóricas e práticas com as
quais a classe dirigente justifica e mantém não só seu domínio, mas também consegue obter o
consenso ativo dos governados”. (GRAMSCI, 1984, p.87).
A ampliação do conceito de Estado, formulada pelo autor, revela a não separação entre
sociedade civil e a instituição. Aliás, pela contribuição marxista, demonstra-se o equívoco em
considerar o Estado enquanto sujeito, pois, na realidade, é produto das relações de poder entre
as classes sociais. A despersonalização do interesse individual por meio do Estado permite
ações classistas transfiguradas em interesse comum da sociedade.
Desta maneira, a burguesia se vale desta despersonalização, enquanto agentes do
Estado, para legitimar ações objetivando a acumulação capitalista. O poder da instituição sobre
a sociedade explica o interesse capitalista em todas as escalas (local, regional e mundial) em
ser o agente do Estado ou ser representado por um. Nesse sentido, o Estado é constituído
permanentemente e/ou temporariamente por sujeitos de classes sociais compreendendo
diferentes níveis da sociedade, passando pelo legislativo, executivo e judiciário.
Ser um agente do Estado permite administrar os conflitos de classe e prover, com
infraestruturas sociais e físicas, a reprodução capitalista. Mesmo promovendo a expansão e a
acumulação, as ações do Estado aparentam imparcialidade na busca pelo “bem” comum. Para
Smith (1984, p.78):
Com a divisão da sociedade em classes, o Estado surge historicamente como
meio de controle político. [...] é função do Estado administrar a sociedade de
71

classe, conforme os interesses da classe dominante; é o que faz através de suas


armas militares, jurídicas e ideológicas e econômicas. (SMITH, 1984, p.78).

No interior da sociedade capitalista, a instituição Estado (e seus representantes), além


possuir o poder de administrar a luta de classes, também pode criar as condições necessárias
para a reprodução ampliada do capital. A aplicação de parte da mais-valia na intensificação
produtiva, ao invés do consumo pessoal da classe capitalista, constitui-se a base da reprodução
ampliada (LUXEMBURG, 1970).
Nesse sentido, a retirada de direitos via ação dos representantes do Estado, assim como
o respaldo jurídico para a apropriação da terra e natureza contribuem para a acumulação. Esta
base legislativa, dentre outras ações, permite que capitalistas aumentem seu capital e os
reaplique no processo produtivo.
O capital aplicado nos meios de produção percorre todo o circuito de exploração do
trabalho até a venda da mercadoria com o valor do capital aplicado somado a um mais-valor.
Desta forma, quando “A aplicação de mais-valor como capital ou a reconversão de mais-valor
em capital se chama acumulação de capital.” (MARX, 2013, p.796). Esse processo se perpetua
diante da concorrência entre capitalistas, desta maneira, “[...] a acumulação não é mais do que
a reprodução do capital em escala progressiva. (MARX, 2013, p.799).
O autor complementa:
Além disso, o desenvolvimento da produção capitalista converte em
necessidade o aumento progressivo do capital investido numa empresa
industrial, e a concorrência impõe a cada capitalista individual, como leis
coercitivas externas, as leis imanentes do modo de produção capitalista.
Obriga-o a ampliar continuamente seu capital a fim de conservá-lo, e ele não
pode ampliá-lo senão por meio da acumulação progressiva. (MARX, 2013,
p.813).

Discutindo as sucessivas crises de acumulação do capital, Harvey (2005) afirma a


capacidade do capitalismo em criar novas oportunidades para a acumulação por meio da
intensificação da atividade social numa mesma estrutura ou pela sua expansão geográfica. Em
ambas as alternativas, o Estado age removendo barreiras/entraves à acumulação capitalista. É
neste ponto que a Geografia se torna fundamental na compreensão do Estado e sua relação na
reprodução ampliada do capital.
A expansão geográfica do capital implica no seu investimento contínuo na criação de
um ambiente para produção, proporcionando a acumulação (SMITH, 1984). O Estado passa a
atuar nesse sentido, criando infraestrutura necessária para a expansão capitalista.
Assim;
72

O Estado também deve desempenhar um papel importante no provimento de


‘bens públicos’ e infra-estruturas sociais e físicas; pré-requisitos necessários
para a produção e troca capitalista, mas os quais nenhum capitalista individual
acharia possível prover com lucro. Além disso, o Estado, inevitavelmente,
envolve-se na administração de crises e age contra a tendência de queda da
margem de lucro. (HARVEY, 2005, p.83).

A personificação da burguesia em Estado é condição necessária para a criação de


possibilidade de superação dos limites da acumulação. Harvey (2005), apoiando-se em Marx,
indica a expansão geográfica como estratégia para conter as crises do capital. Chamado de
ajuste espacial, Harvey (2005) indica a expansão das relações predominantemente capitalistas
em busca do aumento do mercado externo, exportação de capital para produção (empréstimos
para outros países ou colônias) e expansão do proletariado por meio da acumulação primitiva.
Fundamentando-se nas análises de Marx sobre ações imperialistas (Estado) de
colonização nas Américas, Harvey (2005) explica como o capitalismo nos países centrais
expandiu-se geograficamente para as colônias destruindo formas primitivas de produção
existentes gerando reservas de mão-de-obra, “Isso significa alguma forma de acumulação
primitiva no exterior (por meio da penetração das relações capitalistas de propriedade, das
formas monetárias, da imposição de controles estatais e legais etc.” (HARVEY, 2005, p. 120).
Em Smith (1984), em sua análise sobre o desenvolvimento desigual, a expansão
geográfica também é tratada como uma das condições para a acumulação capitalista;
A acumulação pela acumulação e a necessidade inerente de expansão
econômica conduzem à expansão espacial assim como à expansão social do
domínio do trabalho assalariado. O processo de exploração que ajudou a
unificar o mercado mundial é progressivamente ocultado pelo processo de
colonialismo, que não apenas lança as sociedades pré-capitalistas no mercado
mundial, mas eventualmente introduz a relação especificamente capitalista de
trabalho assalariado em tais sociedades. (SMITH, 1984, p. 131).

A mediação dos agentes do Estado na expansão geográfica e na acumulação do capital


são evidentes. Por isso, Smith (1984) reconhece a necessidade de a burguesia em cada etapa de
seu desenvolvimento representar seus interesses na política. Citando o volume 2 de O Capital,
Smith escreve: "A burguesia, desde o estabelecimento da indústria moderna e do mercado
mundial, finalmente conquistou para si mesma, no moderno Estado representativo, exclusiva
dominação política (MARX, 1973, p. 162 apud SMITH, 1984, p. 205).
Em síntese, a análise geográfica do Estado passa pela compreensão de como a burguesia
respalda-se na representação de seus interesses por meio da política e como esta é necessária
nos processos de acumulação e expansão geográfica do capital. Questões sobre a
73

representatividade das classes e o controle sobre o território, sobretudo para a reprodução


ampliada do capital são o fio condutor desta pesquisa.
Aproximando este raciocínio para a escala nacional, no Brasil, o Estado é constituído
historicamente por sujeitos ligados à classe social dominante. Todavia, ao invés da burguesia
industrial, como na Europa, são os proprietários fundiários que são o Estado ou têm seus
interesses representados no Brasil, por meio, principalmente, da política. Como exemplo, o
ordenamento jurídico de acesso à terra, como a Lei de Terras de 1850, deu-se para atender aos
interesses dos proprietários de terra (MARTINS, 2010).

2.2 A FORMAÇÃO DO ESTADO AGRÁRIO BRASILEIRO

O Estado brasileiro resulta de uma construção histórica de representação de interesses


dos proprietários fundiários no país. Pensá-lo, nesse sentido, implica analisar a participação das
oligarquias rurais no Estado e sua atuação em diversos momentos da História. Essa constatação
ficará mais evidente no decorrer deste capítulo, sendo possível observar a presença de
representantes de latifundiários ou da burguesia ligada à agricultura capitalista na atualidade
como características de uma estrutura arcaica do Estado brasileiro. Com isso, na sociedade
brasileira, de História lenta, há a necessidade de “[...] distinguir no contemporâneo a presença
viva e ativa de estruturas fundamentais do passado” (MARTINS, 1994, p. 14).
Diferente dos países centrais, no Brasil, o interesse de proprietários fundiários em serem
representados por agentes do Estado está na possibilidade da apropriação de terras. A terra,
nesse sentido, não é vista como local de desenvolvimento da produção capitalista, na qual parte
do capital é aplicado no pagamento pela utilização da área, como demonstrou Luxemburg
(1970). Tal apropriação de terras faz-se pela legislação permissiva aos proprietários fundiários,
como a Lei de Terras de 1850 (Lei n.601, de 18 de setembro de 1850) e, recentemente, a Medida
Provisória 91033, de 10 de dezembro de 2019, facilitando a apropriação privada de terras
públicas.
A apropriação capitalista de terra no Brasil ocorre no caminho alternativo de reprodução
ampliada do capital, pois a propriedade da terra significa a possibilidade de lucro e renda. Isso
porque, de acordo com Martins (2010) e Oliveira (2007), no Brasil se desenvolveu um

33
Esta Medida Provisória durou 120 dias, perdendo a validade em maio de 2020 por não ter sido votada diante do
contexto da pandemia do Covid-19. A MP foi substituída pelo Projeto de Lei (PL 2.633/20) que ainda não entrou
em vigor no ano de 2021. Disponível em:<https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/05/20/mp-da-
regularizacao-fundiaria-perde-validade-e-e-substituida-por-projeto-de-lei>. Acesso em: 15 abr. 2021.
74

capitalismo rentista, pois os capitalistas se tornaram proprietários de terra. Desta forma, “[...]
no Brasil, o desenvolvimento do modo capitalista de produção se faz principalmente, através
da fusão em uma mesma pessoa do capitalista e do proprietário de terra.” (OLIVEIRA, 2007,
p. 131).
Especialmente no Brasil, o processo de reprodução ampliada do capital possui em sua
equação a apropriação de novas áreas em busca de auferir renda. Desta maneira, a instituição
Estado se torna fundamental na mediação e na legitimação da apropriação capitalista da terra
no país. Na História brasileira, o acesso a grandes extensões de terras sempre esteve atrelado a
relações da burguesia e proprietários fundiários com o Estado. Pode-se reconhecer este processo
desde o início da colonização portuguesa, quando, no sistema de sesmarias:
[...] a concessão de terras devolutas, de domínio da Coroa, a particulares,
baseava-se em requisitos estamentais que dificultavam a legalização da
ocupação indiscriminada dos terrenos a quem não fosse branco, puro de fé e
senhor de escravos. (MARTINS, 2010, p. 45).

A afirmação de Martins (2010) demonstra como a Coroa portuguesa limitava o acesso


à terra no Brasil, beneficiando, principalmente, senhores do engenho e a elite escravocrata. De
acordo com Florestan Fernandes (1976), como colônia de Portugal, o Brasil desempenhava uma
função dentro do capitalismo mundial ao exportar sua produção agrícola e canalizar grande
parte da renda para a Coroa. A importância “externa” da Colônia não fez a realeza portuguesa
se importar com o crescimento do poder interno dos senhores rurais. O crescimento econômico
e político dos senhores de engenho e proprietários fundiários foram a base da construção do
Estado agrário brasileiro após o período colonial, desta maneira, “[...] uma parte considerável
das potencialidades capitalistas da grande lavoura foram canalizadas para o crescimento
econômico interno, permitindo o esforço concentrado da fundação de um Estado nacional [...]”.
(FERNANDES, 1976, p. 28).
O desenvolvimento da agricultura sob a grande propriedade demonstrava as
transformações sociais que ocorreriam no interior da sociedade brasileira, integrando parte dos
proprietários rurais ao Estado. Assim:
À medida que se intensifica a expansão da grande lavoura sob as condições
econômicas, sociais e políticas possibilitadas pela organização de um Estado
nacional, gradualmente uma parcela em aumento crescente de ‘senhores
rurais’ é extraída do isolamento do engenho ou da fazenda e projetada no
cenário econômico das cidades e no ambiente político da Corte ou dos
Governos Provinciais. (FERNANDES, 1976, p. 28).

Portanto, a participação do proprietário fundiário na construção histórica do Estado


brasileiro estava diretamente ligada aos interesses de classes, sobretudo na possibilidade de
75

criar condições para a reprodução do seu capital. Nessa perspectiva, o Estado brasileiro se
constituía a partir da égide do monopólio da grande propriedade, considerada sagrada e
inviolável no capitalismo.
Martins (2010) exemplifica, ao analisar a formulação Lei de Terras de 1850, instituindo-
se a propriedade capitalista da terra, a iminência do fim da escravidão no país. Segundo o autor,
a Lei de Terras, além de dificultar o acesso de grande parte da população brasileira à terra,
também possibilitou ao capitalista e latifundiário se livrar da imobilização de parte do capital
na compra de trabalhadores escravizados. Dessa forma, “O resultado não foi apenas a
transformação do trabalho, mas também a substituição do trabalhador, a troca de um trabalhador
por outro. O capital se emancipou, e não o homem.” (MARTINS, 2010, p. 33).
Esta mudança alterou os mecanismos de reprodução capitalista, antes baseados no
trabalho escravo, passando a explorar a mão-de obra assalariada no campo e na cidade, além de
extrair renda da terra. Com isso, segundo Martins (2010), o fazendeiro passou a atuar no centro
da reprodução capitalista no Brasil. Aquele contexto evidenciava a transformação e a união de
duas classes sociais distintas (proprietário fundiário e capitalista) expressas em um único sujeito
social. É certo que se criou um mercado de terras, transformando-as em mercadorias, pois sua
condição tornada em equivalente de capital, transformou-se em garantia real, ou seja, dada em
hipoteca em empréstimos bancários para a ampliação da produção, da especulação, da
conversão de terras públicas em privadas e na (re)produção do capital por meio do rentismo.
Este círculo vicioso movimenta o agronegócio na atualidade por meio da conversão de terras
públicas e devolutas em propriedades privadas, como, por exemplo, nas regulamentações legais
de regularizações fundiárias que serão apresentadas ao longo da tese.
Os senhores rurais, como afirma Fernandes (1976), “aburguesaram-se”, promovendo a
perpetuação das suas concepções políticas e as aspirações sociais e, ao mesmo tempo, passaram
a ter um modo de vida mais próximo ao urbano, aceitando as novas organizações sociais
econômicas, jurídicas e políticas. Com isso, latifundiários e burgueses passaram a constituir
parte do Estado, tornando-se políticos, juízes, advogados, entre outros agentes públicos.
No início do século XX, durante a República Velha (1889-1930), a política era baseada
na alternância de oligarquias rurais na Presidência da República, entre políticos apoiados pelos
cafeicultores paulistas e pelos grandes proprietários mineiros, demonstrando-se a transferência
de interesses de fazendeiros para agentes do Estado. Este arranjo ficou conhecido como
“Política Café com Leite”, em alusão à oligarquia paulista, produtora de café, e a mineira,
produtora de leite. Sendo assim:
76

As oligarquias políticas no Brasil colocaram a seu serviço as instituições da


moderna dominação política, submetendo a seu controle todo o aparelho de
Estado. Em consequência, nenhum grupo ou partido político tem hoje
condições de governar o Brasil senão através de alianças com esses grupos
tradicionais. (MARTINS, 1994, p. 20).

Ainda na República Velha, a representatividade dos interesses das oligarquias rurais no


Estado, como aponta Leal (1976), deu-se por meio do coronelismo. Neste, a força do grande
proprietário predominava sobre a sociedade em seu entorno;
[...] concebemos o ‘coronelismo’ como resultado da superposição de formas
desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social
inadequada. Não é, pois, mera sobrevivência do poder privado, cuja
hipertrofia constituiu fenômeno típico de nossa história colonial. É antes uma
forma peculiar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em
virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm
conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa.
(LEAL, 1976, p.43).

Para Leal (1976), o poder econômico local, expresso pelo coronel, influencia
diretamente a população rural, passando a considera-lo como “benfeitor”. O fazendeiro se torna
fundamental no processo eleitoral intermediando as relações entre políticos e a população local.
Portanto,
Ainda assim, como a organização agrária do Brasil mantém a dependência do
elemento rural ao fazendeiro, impedindo o contato direto dos partidos com
essa parcela notoriamente majoritária do nosso eleitorado, o partido do
governo estadual não pode dispensar o intermédio do dono de terras.
(LEAL, 1976, p.53). (Grifo nosso).

A estrutura representativa revela que as oligarquias rurais, quando não se transfiguram


em agentes políticos (prefeitos, deputados, senadores), possuem representantes eleitos por suas
influências. Essa relação possui reciprocidade entre político e o coronel, e os benefícios estatais
são a moeda de troca (LEAL, 1976). Sob este prisma, os interesses privados misturam-se às
ações públicas e, desta forma, “A política do favor, base e fundamento do Estado Brasileiro,
não permite nem comporta a distinção entre o público e o privado” (MARTINS, 1994, p. 20).
Obviamente, a participação e a força política do proprietário fundiário lhe trazem
benefícios relativos aos seus interesses privados, sobretudo a possibilidade de os agentes
representativos do Estado garantirem a estrutura e o ambiente propícios para extrair lucro e
renda. Nesse sentido, a apropriação capitalista da terra centra-se no debate sobre o Estado no
Brasil, pois, ao longo da História, proprietários fundiários, sob a figura dos coronéis e, mais
recentemente, capitalistas, buscam a manutenção do privilégio sobre o monopólio da terra.
De acordo com Martins (1994), o Estado brasileiro, ao longo de sua história, privilegiou
a manutenção e a expansão do monopólio da propriedade privada. Além de legislar, os
77

latifundiários brasileiros, transfigurados na representação política e na estrutura do Estado,


atuaram na defesa da propriedade privada, controlando, reprimindo e refutando toda luta
camponesa no decorrer do século XX. Não se pode perder de vista a ocorrência das relações e
de interesses de classes com agentes do Estado nos mais variados níveis, estando presentes na
política municipal, estadual e nacional. Para além de políticos, as relações de interesses dos
proprietários fundiários e de burgueses também cooptam funcionários públicos, juízes,
advogados, procuradores e tabeliões/notários de cartórios, entre outros.
Como exemplo, é importante a análise de Oliveira (1981) sobre o desenvolvimento do
capitalismo no Brasil a partir das regiões, sobretudo no Nordeste e o papel da Superintendência
de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). O autor apreende como o Estado foi constituído
pelas oligarquias regionais e como atuavam na manutenção da estrutura econômica. Oliveira
(1981), analisando o caso do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS),
indica o coronelismo e o poder das oligarquias rurais no Estado brasileiro, como apontado por
Leal (1976) e por Martins (1994). Desse modo, o:
[...] Estado sob a forma da ação e dos gastos do DNOCS mantivesse, mais do
que transformasse, as condições de reprodução da estrutura econômica e
social: conduziu, em suma, a uma forma de Estado oligárquico, onde se
fusionavam e tornavam-se indistintas as esferas próprias do Estado e da
sociedade civil. O Estado foi capturado por esse ‘Nordeste’ algodoeiro-
pecuário, e mais do que isso, num mecanismo de reforço, o Estado era
esse ‘Nordeste’ algodoeiro-pecuário. (OLIVEIRA, 1981, p.53). (Grifo
nosso).

A “captura” do Estado, afirmado por Oliveira (1981), não ocorreu apenas na região
Nordeste. Nos estados de Goiás e de Mato Grosso do Sul também houve a presença ou
representação de interesses dos proprietários fundiários no nas estruturas do Estado, como será
demonstrado mais adiante. Pode-se compreender a construção regional de parte do Estado
alicerçada em oligarquias rurais ou em famílias que, ao longo de suas gerações, representaram
politicamente os ideais dos grandes proprietários de terra do Centro-Oeste brasileiro.

2.2.1 CORONELISMO NOS ESTADOS DE GOIÁS E MATO GROSSO DO SUL

No atual34 estado de Goiás, grandes grupos familiares compunham parte Estado,


principalmente no período da República Velha (1889-1930). Famílias com o sobrenome

34
É preciso lembrar que o atual estado de Goiás, durante o Brasil Império, era considerado província e sua extensão
abrangia parte dos atuais estados de Tocantins, parte de Mato Grosso e de Minas Gerais.
78

Bulhões, Jardim e Caiado disputavam politicamente o governo de Goiás. A ascensão destas


famílias iniciou-se com a discordância da indicação de presidente da província feita pelo
Imperador D. Pedro II, saindo a família Bulhões derrotada nesta disputa (AMORIN, 2015).
Posteriormente, as oligarquias rurais deram a força para os Bulhões ascenderem
politicamente. Impopular entre os proprietários rurais por conta da criação do imposto sobre a
propriedade rural, o presidente do estado, indicado pelo Imperador, foi demitido em 1878 e, em
seu lugar, foi indicado Aristídes de Souza Spínola, que logo alinhou-se à família Bulhões
(AMORIN, 2015). A sequência de conchavos políticos possibilitou a chegada dos Bulhões à
presidência do estado no início da República Velha, mais precisamente em 1892, possuindo
como Vice-Presidente Antônio José Caiado (AMORIN, 2015).
Em contrapartida ao apoio político, o governo dos Bulhões satisfazia aos interesses dos
grandes proprietários fundiários e não sobrecarregavam com impostos os produtos
agropecuários, nem a posse da terra (CAMPOS, 2003). Portanto, os Bulhões estavam
diretamente ligados ao poder dos latifundiários e, “Mesmo não possuindo terras, os Bulhões
tornaram-se porta-vozes nacionais de Goiás e defensores dos interesses da pecuária e dos
demais setores da economia regional.” (CAMPOS, 2003, p. 84).
O fim da República Velha, motivado pelo desacordo entre as oligarquias rurais, permitiu
a chamada Revolução de 1930, alçando ao poder nacional Getúlio Vargas, que, por
consequência, nomeou interventores nos estados brasileiros, dentre eles, Pedro Ludovico
Teixeira, em Goiás. No contexto do surgimento da “Nova República”, Pedro Ludovico,
casado35 com Gercina Borges Teixeira, filha de proprietários rurais no Sudoeste goiano,
inclinou-se à proposta de mudança da capital do estado, localizada cidade de Goiás, com o
objetivo de romper laços de dependência com a “velha” política e o poder dos coronéis. Estava
clara a intenção do interventor em distanciar o controle político do Estado das oligarquias rurais,
principalmente de seu grande opositor à época, Totó Caiado (FERNANDES, 2013).
A mudança da capital representava um duro golpe no controle político da família
Caiado, que mantinha sua influência política na cidade de Goiás (GO) (MOYSES, 1990).
Assim: “A transferência da capital do estado de Goiás da cidade de Goiás, ou Vila Boa, para

35
Informação obtida no acervo bibliográfico da Fundação Getúlio Vargas. Disponível em: <
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/pedro-ludovico-teixeira>. Acesso em: 06 ago.
2020.
79

Goiânia36 é, antes de tudo, resultado da luta pelo poder político das oligarquias do sul e sudeste
do estado em relação à oligarquia da família Caiado.” (MOYSES, 1990, p. 99).
Portanto, a história política de Goiás está permeada pelo controle de distintas famílias
aliadas aos interesses dos grandes proprietários fundiários. Destaca-se, entre os anos de 2019 a
2022, o governador do estado de Goiás é Ronaldo Caiado (DEM), pertencente 37 a uma das
famílias hegemônicas na política do estado.
Como em Goiás, no antigo Mato Grosso (antes da divisão em 1977), o Estado era
composto e disputado pelas oligarquias rurais do Norte e do Sul, com o objetivo de legislarem
e controlarem o acesso a terras devolutas (MORENO, 1994). Ser o Estado ou ter seus interesses
representados possibilitou aos proprietários fundiários a regularização sobre posse de grandes
áreas públicas. Desta forma, o poder político e a consolidação dos latifúndios estavam atrelados:
“O processo de concentração fundiária foi, portanto, sendo facultado tanto por uma legislação
permissiva quanto pelos atos ilícitos praticados pelos proprietários, com a conivência ou não
do poder público e político” (MORENO, 1994, p. 175).
Nota-se, com o fim da Monarquia (1889) e início da República Velha, a busca pela
organização política e construção de bases sólidas de poder entre lideranças, como Generoso
Ponce, ligado à política durante o Império, e Joaquim Murtinho e sua família. Generoso Ponce
tinha grande prestígio na sociedade mato-grossense, tanto por sua atividade de comércio, como
militarmente participando da Guerra do Paraguai (1864-1870) e, contando com o apoio dos
militares, ainda durante a Monarquia, construiu sua força política e, segundo Arruda (2013, p.
105): “Portanto, foi somente depois que utilizou o confronto armado para impor seu grupo que
Ponce conseguiu a maioria do apoio dos chefes locais.”.
A família Murtinho apresentava interesses latifundiários diretos porque, apesar de
Joaquim Murtinho ser médico no Rio de Janeiro, usufruía de terras devolutas no Sul do antigo
Mato Grosso (ARRUDA, 2013). Os irmãos Joaquim e Manoel Murtinho alinharam-se a
Generoso Ponce e alcançaram o controle político do estado nas eleições em 1891. A partir de
então, a família Murtinho começou a atuar politicamente como representante do Estado
favorecendo a Cia Mate Laranjeira38. Manoel Murtinho atuou concedendo o uso de terras

36
A pedra fundamental de Goiânia foi colocada em 24 de outubro de 1930 e sua transferência inicial ocorreu em
20 de dezembro de 1932. Disponível em: <https://repositorio.bc.ufg.br/tede/bitstream/tede/4972/5/Tese%20-
%20Jales%20Guedes%20Coelho%20Mendon%c3%a7a%20-%202012.pdf>. Acesso em: 28 mar. 2021.
37
O atual governador do estado de Goiás, Ronaldo Caiado é neto de Totó Caiado, uma das principais figuras
políticas da história do estado. Informação disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-
biografico/ronaldo-ramos-caiado>. Acesso em: 16 dez. 2020.
38
Sobre o assunto consultar: OLIVEIRA, José Roberto Rodrigues de. Terras devolutas de áreas ervateiras do
sul de Mato Grosso: a difícil constituição da pequena propriedade (1916-1948). Dissertação (Mestrado em
História), Dourados, MS: UFMS, CPDO,2004. 147p.
80

devolutas no Sul do estado para a exploração da erva mate em troca de favores políticos,
demonstrando “Em outras palavras, os interesses econômicos da família Murtinho,
notadamente aqueles ligados à Mate Laranjeira, ficavam atrelados à política mato-grossense.”
(FRANCO, 2014, p. 114).
Cabe destacar a criação, em 1890, do Banco Rio e Mato Grosso (BRMT), em que a
família Murtinho era uma das proprietárias (ARRUDA, 2013), e onde eram depositados parte
do lucro da Mate Laranjeira (FRANCO, 2014), ou seja, atuando politicamente, os Murtinho se
apropriavam de parte da renda da terra extraída no Sul do estado. Joaquim Murtinho atuou ainda
na legitimação da grilagem de grandes áreas na parte Sul do Estado, elaborando, em 1893, a
Lei Nº 20, permitindo a legalização das posses feitas de 1854 até 1889 (CORREA, 2012). A
articulação política e econômica da família não se limitou ao estado de Mato Grosso, como
notou Franco (2014), pois Joaquim Murtinho foi eleito Senador da República em 1890, além
de ser ministro da Fazenda de Campos Salles, entre 1898 e 1902.
Generoso Ponce e os Murtinho disputavam o poder na capital Cuiabá em diferentes
arranjos políticos, sendo aliados e rivais na história política do estado. No entanto, a partir do
início do século XX, o interesse pela política e as diferenciações econômicas entre as
oligarquias rurais do “Norte” e as do “Sul” criaram o desejo separatista do antigo Mato Grosso.
Queiroz (2006) destaca o rápido desenvolvimento do Sul do estado por meio da intensificação
das relações comerciais com o estado de São Paulo, pela construção da Estrada de Ferro
Noroeste do Brasil (NOB) e pela navegação no Rio Paraguai.
A concentração do poder na capital, em Cuiabá, dava o controle às oligarquias rurais
“nortistas”, sempre presentes no Estado, por consequência não atendiam aos interesses das
oligarquias do Sul. Esta situação é exemplificada nos burocráticos e corruptos processos de
legalização da posse de terras, pois as oligarquias rurais do Sul tinham que submeter-se aos
agentes “nortistas” do Estado, dentre eles, cartórios e juízes, em troca da obediência política,
como posto em Queiroz (2006):
O requerente pagou o preço ao Estado e pagou, mais do que ele, muitas
vezes, ao advogado, ao intermediário, em achegos e propinas em Cuiabá,
em viagens e levou, às mais das vezes, anos para obter o seu documento
oficial. Isso carreou, do Sul, muitos milhares de contos de réis. Foi uma arma
terrível da política nortista. O funcionário, destacado por estas bandas, tinha
um gesto ameaçador: ou vota ou não obtém o título. E o pobre homem do
Sul tremia ante o título, que já lhe custava os olhos (id., p. 24; grifos do
original). (A DIVISÂO, 1934, p. 13 apud QUEIROZ, 2006, p. 170). (Grifo
nosso).
81

Como apontado por Moreno (1994), a apropriação capitalista da terra no antigo Mato
Grosso passava pelo reconhecimento dos agentes do Estado, a qual, em grande parte, pertencia
às oligarquias rurais. A força política dos latifundiários e dos burgueses “nortistas” ganharam
notoriedade e importância nos entornos de Cuiabá. Desta forma, segundo Esselin (2011, p. 146),
“[...] deu origem a uma poderosa oligarquia rural, uma nova elite, composta pelos proprietários
rurais e que, fortalecida, passou a lutar pelo poder político”.
Portanto,
O Estado confunde-se com o gado. A maioria de seus mais destacados
representantes no meio político tem estreita ligação com ele. São, geralmente,
latifundiários e pecuaristas que exercem o poder e nele se revezam a cada
eleição. (ESSELIN, 2011, p. 12).

Sendo assim, o crescimento das oligarquias do Sul do antigo Mato Grosso e o desejo
pelo controle político do Estado promoveram os ideais separatistas. Alia-se à questão
latifundiária o isolamento entre Campo Grande e Cuiabá, em que as atuais capitais de Mato
Grosso do Sul e Mato Grosso tinham relações mais efetivas com cidades de outros estados do
que dentro do antigo Mato Grosso. Nesse sentido:
Os movimentos separatistas surgiram em fins do século XIX, por volta de
1892 em Corumbá. O isolamento era real, tanto que circulavam panfletos
requerendo e incitando ideias divisionistas na população. Havia comunicação
muito maior entre Campo Grande e São Paulo, com ligação por estrada
asfaltada primeiro a São Paulo e somente depois conectou-se com Cuiabá.
Portanto, a divisão foi um ato de reconhecimento dessa realidade.
(LEONARDO, 2020, p. 120).

Na década de 1920, a força da porção Sul do estado expandiu-se como efeito econômico
positivo da ampliação da estada de ferro Noroeste do Brasil até Campo Grande (atual Mato
Grosso do Sul) (QUEIROZ, 2006). Segundo o autor, “Foi nessa década, por exemplo, que essa
cidade passou a concentrar as principais lideranças políticas do Sul, até então sediadas na cidade
de Nioaque” (QUEIROZ, 2006, p. 158). Claramente havia o interesse econômico por trás do
desejo divisionista do estado sem que houvesse mais conflitos armados, nesse sentido, de
acordo com Franco (2014, p. 14):
Os coronéis do sul, cientes de que o governo estadual estava a favor das
oligarquias cuiabanas [...], ao invés de disputarem com os cuiabanos, decidem
estimular a criação de um novo estado para seu mando político exclusivo.

As disputas políticas entre as oligarquias rurais do antigo Mato Grosso se passavam,


também, ideologicamente nos jornais, meio pelo qual tentava-se forjar uma identidade mato-
grossense ou argumentar junto à opinião pública a necessidade da separação do estado
(QUEIROZ, 2006), ocorrida em 1977, durante o Governo Militar (1964-1985). Portanto, o
82

objetivo militar em intensificar a ocupação das fronteiras acabou por atender aos interesses dos
latifundiários do Sul.
Como brevemente discutido, a construção regional dos estados de Goiás e de Mato
Grosso do Sul estiveram atrelados aos interesses de proprietários fundiários, principalmente
pelo controle do acesso à terra. Mesmo com a reabertura democrática pelo fim da Ditadura
Militar no Brasil, em 1985, as relações de classe continuaram determinando os rumos da política
do país.
Segundo Buzanello (1991), o fim da Ditadura Militar representou a vitória de um projeto
modernizador na agricultura brasileira. Contraditoriamente, a modernização também fortaleceu
a grande propriedade improdutiva mediante a assistência fiscal e financeira concedida aos
proprietários rurais. Ainda segundo o autor, com o processo de “modernização da agricultura”,
os grandes proprietários fundiários no Brasil mantiveram sua força por meio do controle
político do Estado. O autor argumenta;
La presión política que ejerce, se orienta a preservar la propiedad monopólica
de la tierra, combatiendo cualquier medida de reforma agraria, lo que es
atendido en su totalidad por los sucessivos gobiernos a partir de 1964. A su
vez, es favorecido, además, por la política de enormes subsídios e incentivos,
como el surgimento de e nuevos productos, tales como la soya, el cacao, la
naranja para jugo, la caña para la producción de alcohol, etcétera, que los
transforman, em gran parte, en empresarios rurales. (BUZANELLO, 1991.
p.66).

Porém, é preciso considerar a heterogeneidade entre proprietários fundiários e


capitalistas atuando no campo, pois, fora os interesses em comum da inviolabilidade da
propriedade privada e aumento dos subsídios, prevalecem os interesses regionais. Dentro da
representatividade dos interesses gerais, surgem diferentes organizações e representações
políticas ligadas à agricultura capitalista. De acordo Bruno (1997, p. 18), “É nessa conjuntura
que aparecem os novos porta-vozes, as novas elites agrárias; aqueles que procuram representá-
los politicamente. O seu principal objetivo é o de assegurar a permanência do patronato rural
nas estruturas de poder.”.
As novas representações buscam ideologicamente alinhar a agricultura capitalista,
incluindo o latifúndio, a um discurso de modernização (BRUNO, 1997). Estas associações de
classe representam os interesses de proprietários fundiários e capitalistas e, assumidamente, se
organizaram em defesa do monopólio da terra, como a União Democrática Ruralistas (UDR).
Nesse sentido, para a autora, a UDR é a representação não-institucionalizada dos grandes
proprietários fundiários que, por meio da força, busca reprimir as demandas sociais.
83

Sob o contexto de aumento de conflitos por terra no Brasil, envolvendo camponeses e


trabalhadores rurais, durante a década de 1980, somados às discussões promovidas pelos
movimentos socioterritorias de reinvindicação de Reforma Agrária, provocaram a união de
latifundiários e seus representantes políticos. Desta forma, “Nascia a UDR – União
Democrática Ruralista, entidade que aglutinava os latifundiários na defesa de suas propriedades
e na formação de um fundo para eleger congressistas constituintes para defenderem seus
interesses na Constituição”. (OLIVEIRA, 2001, p.192). Ainda segundo o autor, a UDR foi
criada em 1985 em um leilão de gado “[...] para arrecadar dinheiro entre os latifundiários, para
lutarem contra a Reforma Agrária do I PNRA e contra o avanço do movimento dos camponeses
sem-terra”. (Idem, 2001, p.127).
Este grupo político, composto por deputados, senadores e governadores, ao mesmo
tempo se alinhava a latifundiários, passou a atuar em favor da propriedade privada e contra os
movimentos de luta pela terra. Destaca-se a evidente luta de classes entre latifundiários e
camponeses, explicitada pelas ações da UDR:
A ampliação das ações da UDR ocorreu durante a Constituinte de 1988. Os
ruralistas conseguiram barrar no plenário do Congresso Nacional a proposta
de uma Reforma Agrária ampla, geral e irrestrita, e inscreveu na nova Carta
constitucional uma legislação mais retrógrada que o próprio Estatuto da Terra
dos militares de 1964. Seu crescimento político culminou em 1989, com a
candidatura de seu primeiro presidente e principal liderança, Ronaldo Caiado,
à presidência da República na sucessão de José Sarney, quando foi derrotado.
(OLIVEIRA, 2007, p.127).

Estas ações decorreram, também, do projeto “modernizador” da agricultura, ainda na


década de 1960, quando o Estado mediou interesses capitalistas internacionais e os interesses
hegemônicos da burguesia e dos proprietários fundiários brasileiros. De acordo com Buzanello
(1991, p. 64), no Brasil “[...] las políticas agrarias han sido uno de los instrumentos más
importantes de acumulacion y de internacionalización del capital, vinculando decisivamente la
agricultura al proceso de acumulación capitalista”. De toda forma, por trás de discursos e
campanhas midiáticas do perfil moderno da agricultura brasileira, escondia e se esconde
indicadores perversos de concentração fundiária, de violência no campo (assassinatos, trabalho
escravo) e de terras improdutivas.
Em tempos mais recentes, para Oliveira (2016), há aliança entre frações de classe nacionais
com parte da burguesia internacional por meio de empresas e negócios. Com isso: “[...] há agora
uma fatia do capitalismo mundial à disposição da burguesia brasileira, e o Estado, está colocado
como sempre esteve, a serviço dessa nova aliança. (OLIVEIRA, 2016, p.115).
84

A partir da discussão até aqui, intenciona-se compreender a construção do Estado


brasileiro por meio do desenvolvimento da força dos proprietários fundiários, bem como no
surgimento da burguesia engendrada na extração da renda da terra e da mais valia. A
manutenção do controle e do poder político dos proprietários de terras no Brasil deixa claro a
perpetuação desta classe como parte do Estado e continua reproduzindo seus interesses na
atualidade por meio de seus representantes. Atualmente, um conjunto de políticos se associa às
pautas da agricultura capitalista no Congresso brasileiro, popularmente conhecido como
Bancada Ruralista. Além dos interesses dos proprietários rurais, a representação política
brasileira também se tornou proprietária fundiária em uma simbiose, pois não se distingue quem
veio primeiro, o político ou o latifundiário. Mas é certo: a reprodução do latifúndio permanece.

2.3 REPÚBLICA LATIFUNDIÁRIA

A propriedade fundiária e os interesses da agricultura capitalista unificam a pauta de um


grande número de parlamentares brasileiros, reconhecidos, comumente, como pertencentes à
Bancada Ruralista. A bancada não existe formalmente, mas parte dos políticos que a compõe
fazem parte da Frente Parlamentar de Apoio a Agropecuária (FPA), reconhecida por propagar
e defender, por dentro do Estado brasileiro, interesses das classes sociais (proprietários
fundiários e capitalistas) ligadas à agricultura capitalista e seus negócios derivados. Esta frente
é comumente confundida como sinônimo da Bancada Ruralista, por reunir políticos
proprietários de terras ou representantes do setor agropecuário.
Todavia, a relação entre políticos brasileiros e a posse/propriedade da terra vai além da
Bancada Ruralista ou da FPA. Segundo Castilho (2012), foram eleitos, entre os anos de 2008 e
2012, 12.992 políticos que, juntos, possuíam 2,03 milhões de hectares de terras declarados ao
Tribunal Superior Eleitoral. Estas informações demonstram como, independentemente dos
interesses partidários, a terra é o elo de classes na política brasileira.
Em análise semelhante sobre a Bancada Ruralista, Costa (2012) apresenta números
significativos do controle destes políticos sobre imóveis rurais. Analisando os dados de imóveis
do INCRA, de 2003, dos membros da bancada ruralista, entre os anos de 1998 a 2010, a autora
afirma:
[...] podemos constatar a partir da declaração feita pelos próprios
parlamentares ao INCRA que, 42,38% de suas terras são grandes propriedades
improdutivas. A soma destas áreas corresponde a cento e setenta e três mil,
trezentos e quarenta e nove (173.349) hectares. De um total de quatrocentos e
oito mil, novecentos e oitenta e dois (408.982) hectares, dos quais trinta e um
85

mil, oitocentos e dezoito (31.818) hectares, foram declarados como posse, mas
a rigor são grilagem de terras declaradas. (COSTA, 2012, p.234).

De um modo geral, destacam-se na bancada políticos ligados ao agronegócio, como a


latifundiária Senadora Kátia Abreu, do Partido Progressista (PP), eleita em 2007 pelo estado de
Tocantins, noticiada em matérias sobre suposta grilagem de terras neste estado39, além de
desmatamento ilegal40 e trabalho escravo41, bem como membros de sua família de proprietários
rurais. Kátia Abreu foi Ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, no Governo Dilma,
entre 2015 e 2016. Sucedendo a Senadora para o mesmo ministério, no Governo de Michael
Temer (PMDB), o Senador Blário Maggi, do Partido Progressista (PP), pelo estado de Mato
Grosso, foi nomeado e atuou entre os anos de 2016 até o fim de 2018, também latifundiário em
Mato Grosso e com várias notícias denunciando os mesmos problemas vividos pela sua
antecessora42.
Como afirmado, dentre os objetivos, a Bancada Ruralista se articula valendo-se do
Estado para se apropriar cada vez mais de terras e dos fundos públicos, via financiamentos
agropecuários. Como exemplo, segundo Oliveira (2008), os membros da bancada buscaram se
apropriar das terras devolutas por meio da “[...] Medida Provisória 422, que dispensa de
licitação a venda de terras públicas do INCRA até 1.500 hectares. E, por de trás dela, está a
estratégia de ação do agrobanditismo em sua sanha de se apropriar das terras públicas griladas
daquela região” (OLIVEIRA, 2008, s/p).
As ações da bancada ruralista se intensificaram pós-golpe, em 2016. De acordo com
Paulino (2018), o apoio da classe dos proprietários fundiários e capitalistas do agronegócio ao
impeachment da Presidente Dilma (PT) vislumbraram ações mais incisivas para viabilizarem o
aumento da apropriação terras, como os Decretos 9.309, 9.310 e 9.311/2018 que, segundo a
pesquisadora, permitiram outros retrocessos, como a regularização fundiária de grandes áreas
griladas no país. Segundo a autora:
A desordem fundiária no Brasil não resulta da incapacidade do Estado em
assumir a gestão territorial como tarefa primordial, muito pelo contrário. Ela
expressa o eficiente projeto de classe para o qual a aplicação discricionária

39
Disponível em: <http://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/2014/02/suposto-esquema-de-grilagem-compromete-
80-familias-do-tocantins.html>. Acesso em: 25 ago. 2020.
40
Disponível em: < https://reporterbrasil.org.br/2018/03/deputado-campeao-de-desmatamento-filho-de-katia-
abreu-legisla-em-defesa-dos-negocios-da-familia/>. Acesso em: 25 ago. 2020.
41
Disponível em: < https://reporterbrasil.org.br/2013/10/fiscalizacao-flagra-trabalho-escravo-em-fazenda-de-
irmao-da-senadora-katia-abreu/>. Acesso em: 25 ago. 2020.
42
Disponível em: < https://www.brasildefato.com.br/2017/07/25/fazenda-do-ministro-da-agricultura-em-
rondonopolis-mt-e-ocupada-pelo-mst>. Disponível em: <
https://valor.globo.com/politica/noticia/2016/08/04/empresa-do-ministro-blairo-maggi-e-investigada-por-
desmatamento.ghtml>. Disponível em:<https://deolhonosruralistas.com.br/2020/01/12/pai-de-blairo-maggi-
escravizou-trabalhadores-nos-anos-80-diz-relatorio-da-pf/>. Acesso em: 25 ago. 2020.
86

dos instrumentos legais do ordenamento público pode ser conduzido segundo


a dinâmica das contradições geradas em seu bojo. (PAULINO, 2018, p. 283).

Sob a tutela de Michel Temer, foi elaborada a Medida Provisória 759, em 2016,
legitimando a apropriação de áreas públicas na Amazônia Legal e por todo o país. Segundo
Sauer e Leite (2017, p. 29):
A MP 759 realiza uma série de mudanças na Lei nº 11.952, de 2009, ou
Programa Terra Legal de regularização das terras. Em primeiro lugar, a
referida lei e o Terra Legal passam ter validade para todo o território
nacional,pois ‘as disposições desta Lei à regularização fundiária das
ocupações fora da Amazônia Legal em áreas urbanas e rurais e do Incra’ (Art.
40-A). Associado a essa nacionalização do Programa Terra Legal, o texto
aprovado do PLV ampliou o limite máximo de áreas ocupadas que podem
ser legalizadas de 1500 para 2500 hectares (Art. 6o. §1o). Ainda mais, nos
casos de ocupações de áreas maiores que 2500 hectares, o pretenso
proprietário poderá regularizar até este limite (Art. 14), sem haver
previsão para a destinação do restante da área pública ocupada
irregularmente. (Grifo nosso).

A MP 759, de 2016, foi posteriormente convertida em Lei (13.465/2017), nela ficou


estabelecido a possibilidade de regularização de áreas com tamanho até 2.500 hectares para
pessoas físicas e jurídicas. Além disso, a referida lei representa um verdadeiro assalto ao
patrimônio público. Segundo o Caderno de Estudos43 elaborado em conjunto44 pela
CPT/ABRA/GRAIN/AATR:
A regularização para pessoas físicas dispensa licitação e é realizada mediante
pagamentos muito abaixo do valor de mercado, com subsídios
governamentais que chegam a ofertar descontos de 90% a 50% do valor
mínimo da pauta de valores da terra nua fixado pelo Instituto Nacional de
Terras (INCRA). (2020, p. 5)

Como se não bastasse a intensificação do ataque às terras públicas, a Lei 13.465/2017


prevê a titulação dos lotes em assentamentos de Reforma Agrária após 10 anos de sua
implementação independentemente de estarem estruturados (CPT/ABRA/GRAIN/AATR,
2020). Essa mudança permite a venda de lotes da Reforma Agrária, fenômeno comum
principalmente em casos de assentamentos abandonados pelo Estado.
A hegemonia de determinadas classes sociais no interior do Estado possibilita a
organização política para sua expansão e manutenção de poder. Nesse sentido, destaca-se o uso
de meios legais, principalmente da legislação para validar os interesses de classe. No Brasil,

43
Disponível em:<https://www.cptnacional.org.br/publicacao/download/78-publicacoes-juridicas/14212-
caderno-de-estudos-mudancas-atuais-das-leis-de-terras-do-golpe-politico-ao-golpe-fundiario>. Acesso em: 18
dez. 2020.
44
A análise foi construída em conjunto pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), GRAIN, Associação de
Advogada/os de Trabalhadores Rurais (AATR) e da Associação Brasileira de Reforma (ABRA).
87

observam-se ações de políticos da Bancada Ruralista objetivando a acumulação, como exemplo


a expansão geográfica da agricultura capitalista em sentido à Amazônia Legal, e os recentes
casos de desmatamento e queimadas em 201945.
Antes mesmo da MP 759, a Senadora Kátia Abreu (PP), Presidente da Confederação da
Agricultura e Pecuária (CNA), entre outras ações em favor da agricultura capitalista, foi relatora
da Medida Provisória Nº 458/2009, dispondo sobre a regularização fundiária das ocupações de
terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal. Esta MP, convertida em lei,
permitiu a regularização fundiária de terras devolutas griladas na Amazônia Legal, pois em seu
texto “Autoriza a transferência sem licitação de terrenos da União, com até 1,5 mil hectares, na
Amazônia Legal, a quem esteja em sua posse antes de dezembro de 2004.” (BRASIL, 2009,
s/p).
O mencionado Ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento no Governo Temer,
Blário Maggi, junto com sua família, é um dos maiores produtores de soja do mundo46 e
representa grandes empreendimentos de produção, processamento e comercialização de grãos
no Brasil. Além disto, o ex-ministro e sua família possuem grandes extensões de terras no
Centro-Oeste brasileiro. Segundo Costa (2012, p 263), “[...] o senador Blairo Maggi e sua
família concentram terras em quarenta e cinco mil, cento e quinze (45.115) hectares em vinte e
nove (29) propriedades rurais de acordo com o INCRA (2003) dentre estas foram declaradas
onze (11) propriedades improdutivas”.
Castilho (2012) relata o processo de elaboração e votação do novo Código Florestal
Brasileiro, no qual participaram diretamente deputados e senadores multados por diferentes
crimes pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(IBAMA). Como resultado, foi aprovado um novo código, mais brando, anistiando multas
aplicadas pelo Ibama até julho de 2008. Um prêmio para quem desrespeitou a lei (CASTILHO,
2012).
A Bancada Ruralista e todos os políticos ligados à agricultura capitalista atuaram e
atuam em outros processos e projetos em favor de seus interesses. O Senador Nilson Leitão
(PSDB-MT) elaborou, em 2016, o Projeto de Lei nº6442, tramitando no Congresso, e tem como

45
Noticia reproduzida pelo portal Globo sobre o aumento do desmatamento e queimadas na Amazônia em 2019
quem repercutiram mundialmente. Disponível em: <https://g1.globo.com/natureza/noticia/2019/09/08/um-a-cada-
tres-focos-de-queimada-na-amazonia-esta-relacionado-com-desmatamento-diz-wwf.ghtml>. Acesso em: 08 fev.
2020.
46
Segundo a revista FORBES (2017): “Os Maggi chegaram a ser líderes mundiais na produção de soja no início
dos anos 1990 e 2000, o que rendeu a Blairo o epíteto de ‘rei da soja’. Embora o grão dourado tenha dado fama à
família e seja sua principal commodity, o gigante do agronegócio também produz milho e algodão”. Disponível
em: <https://forbes.com.br/negocios/2017/03/de-rei-da-soja-a-ministro-conheca-a-trajetoria-de-blairo-maggi/>.
Acesso em: 08 fev. 2020.
88

objetivo flexibilizar a legislação sobre o trabalho no campo e não enquadrar a superexploração


do trabalho como análogo à escravidão. Essa “flexibilização” das leis trabalhistas proporcionará
a intensificação na acumulação do capital.
Segundo o Projeto,
Art. 3.º Empregado rural é toda pessoa física que, em propriedade rural ou
prédio rústico, presta serviços de natureza não eventual a empregador rural ou
agroindustrial, sob a dependência e subordinação deste e mediante salário ou
remuneração de qualquer espécie. (LEITÂO, 2016, p.01). (Grifo do autor).

O Projeto de Lei ainda prevê ao trabalhador rural receber até 45% do seu salário em
alimentação e moradia;
Art. 16. Salvo as hipóteses de autorização legal ou decisão judiciária, só
poderão ser descontadas do empregado rural as seguintes parcelas, calculadas
sobre o salário mínimo:
I - até o limite de 20% (vinte por cento) pela ocupação da morada;
II – até o limite de 25% (vinte e cinco por cento) pelo fornecimento de
alimentação sadia e farta, atendidos os preços vigentes na região; (LEITÂO,
2016, p.06).

De fato, a força dos latifundiários e da burguesia, expressas no Estado, atuam como


sustentáculo de manutenção e expansão da agricultura do Brasil ao longo da história brasileira.
Teixeira (2020) é taxativo ao apresentar a quantidade de artifícios legais e econômicos que
possibilitam o fictício sucesso do chamado agronegócio. O autor destaca algumas das ações do
Estado permitindo a sustentação e competitividade em escala mundial da agricultura capitalista:
processo de renegociação e remissão de dívidas junto ao crédito rural e à Previdência Social;
passivos ambientais com a “inimputabilidade” pelos crimes correspondentes. Também:
Subvenções de toda ordem, em especial os chamados gastos tributários que
incluem desonerações bilionárias sobre os insumos químicos. Acrescente-se
os estímulos dos estados/União às exportações como a Lei Kandir; e, ainda, o
Convênio 100 do Confaz, que desonera do ICMS os produtos agrotóxicos.
(TEIXEIRA, 2020, p .272).

O autor complementa afirmando a constante expansão do crédito oficial por meio do


Tesouro Nacional, no qual os valores passaram de R$ 8,5 bilhões, em 2000, para R$17 bilhões,
em 2018 (TEIXEIRA, 2020). De acordo com Paulino (2008), a eficiência e sustentação do
agronegócio brasileiro é baseada no financiamento público que, por muitas vezes, além de
subsidiar a produção, concede calotes bilionários. A autora destaca: “No início de 2008, ela
estava calculada em 140 bilhões de reais, resultado de uma situação em que ano após ano,
governo após governo, assiste-se a uma mobilização do setor ruralista para adiar o pagamento
[...]” (PAULINO, 2008, p.230).
89

A eleição de Jair Bolsonaro (sem partido), em 2018, para Presidência da República,


trouxe consigo o endurecimento da pauta conservadora que, como visto, nunca deixou o Estado
brasileiro, mas agora é livremente defendida por grande parte dos políticos eleitos no mesmo
pleito. São 1.783 políticos, entre senadores, governadores, deputados federais e estaduais,
eleitos para o mandato 2019-2022, somados a outros 51 senadores eleitos, em 2014, com
mandato até 2022. Desta maneira, um conjunto de 1.834 políticos estão encarregados de gerir
o país, e parte destes estão associados à Bancada Ruralista, mesmo sem, necessariamente,
possuírem imóveis rurais. Por outro lado, há um conjunto de políticos eleitos proprietários
fundiários em seus estados de origem.
Proprietários fundiários ou não, há no Brasil um conjunto de políticos representando os
interesses classistas relacionados à agricultura capitalista por dentro do Estado em suas mais
variadas escalas (municipal, estadual e federal). Por meio dos dados do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE), sobre as declarações de bens feitas pelos próprios políticos, é possível observar
como a relação de grandes proprietários rurais no Brasil com o Estado se perpetuou. Além das
declarações de bens feitas ao TSE, os ainda candidatos informam sua profissão e, a partir dela,
constatam-se alguns políticos “sem-terra”, mas que declararam serem agricultores ou
pecuaristas, característica observada por Costa (2012) em períodos anteriores.
Desta maneira, dos 1.834 políticos com mandato entre 2019 e 2022, apenas 20 declaram
profissões associadas à agricultura, sendo 13 agricultores e 7 pecuaristas. Estes agricultores e
pecuaristas “sem-terra” são todos deputados federais e estaduais e, em grande parte (7), foram
eleitos no estado do Rio Grande do Sul. Os números se ampliam ao analisar a quantidade de
políticos associados à Frente Parlamentar de Apoio à Agropecuária, como apresentou a
reportagem do site De Olho nos Ruralistas47. Segundo a reportagem, o crescimento da FPA, em
2019, ocorreu no contexto de ampliação e apoio buscado pelo governo de Bolsonaro na mais
forte estrutura representativa de poder classista no Estado.
Assim, um grande número de políticos pertencentes à base aliada ao Governo Bolsonaro
se alinha às pautas da agricultura capitalista, mesmo não sendo proprietários fundiários ou
representantes do mesmo. Segundo o repórter;
O partido [Foi eleito pelo PSL] do presidente é, disparado, o que mais
engordou as fileiras da FPA. Na sequência, vêm os demais membros da base
governista: PSD (16), DEM (15), PP (14), PSDB (11), MDB (10), PRB (9) e
PR (7). Os nanicos PSC, PTB e PMN entram com mais cinco parlamentares.
Considerando também os deputados e senadores que mantiveram seus cargos

47
De Olho nos Ruralistas. Disponível em: <https://deolhonosruralistas.com.br/2019/03/22/nova-frente-
parlamentar-da-agropecuaria-reune-257-deputados-e-senadores-com-25-psl-de-bolsonaro-so-fica-atras-de-pp-e-
psd/>. Acesso em: 25 jul. 2020.
90

na última eleição, que compõem 90 parlamentares, o bloco de sustentação ao


governo Bolsonaro corresponde a 71% da nova bancada ruralista.
(BASSI, 2019, s/p).

Este fato simboliza o reconhecimento do Governo Bolsonaro da importância e força


política da agricultura capitalista no Estado, mas também, na troca de favores políticos para sua
sustentação no poder por meio da barganha com a Bancada Ruralista. A aproximação da base
governista com a FPA amplia o poder político dos proprietários fundiários e capitalistas ligados
à terra. Com isso, se observa a intensificação de pautas favoráveis ao comumente chamado
agronegócio, dentre elas, o número recorde de autorizações de uso de agrotóxicos no país. De
acordo com o site Globo.com48, “O Brasil aprovou o registro de 474 agrotóxicos em 2019,
maior número documentado pelo Ministério da Agricultura, que divulga esses dados desde
2005.”.
Os retrocessos constitucionais também caminharam sobre as terras públicas no Governo
Bolsonaro. O Decreto 10.165 de 2019 facilita a regularização de áreas até 15 módulos fiscais,
permitindo a autodeclaração pelo proprietário dispensando a vistoria do INCRA. Segundo a
CPT/ABRA/GRAIN/AATR:
O alcance deste procedimento que facilita a transferência de
terras e orçamento público para médios e grandes proprietários e de
ocupações cada vez mais novas, com dispensa de vistoria e flexibilização
de exigências ambientais está no centro das discordâncias no Congresso
Nacional com relação a MP 910/2019 e ao PL 2633/20, demonstrando a
completa ilegalidade em se regulamentar a matéria via Decreto e
normas infra legais. (2020, p. 7).

Além do apoio direto ao agronegócio e aos proprietários fundiários, criando condições


como leis e medidas provisórias respaldando o seu desenvolvimento, o governo fomenta ainda
mais a ideologia latifundiária contra a política de Reforma Agrária e mais ríspido contra
movimentos socioterritoriais e povos indígenas e quilombolas. Este comportamento é
semelhante ao da UDR no passado, porém, o atual Presidente da República amplifica o discurso
por meio das redes sociais. Como exemplifica uma postagem 49 em sua página oficial na rede
social Twitter, em 11 de dezembro de 2019, na qual o Presidente se vangloria pela redução no
número de “invasões” no primeiro ano de mandato e ao final afirma: “A propriedade privada é
SAGRADA. O Estado tem o dever de preservá-la”.

48
Noticia disponível em: <https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2019/12/28/numero-de-
agrotoxicos-registrados-em-2019-e-o-maior-da-serie-historica-945percent-sao-genericos-diz-governo.ghtml>.
Acesso em: 25 jul. 2020.
49
Postagem disponível em: <https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1204813394353807360?>. Acesso em: 25
jul. 2020.
91

É importante lembrar que Bolsonaro já acenava aos interesses do agronegócio antes


mesmo de sua ascensão à Presidência da República. Ainda em 2017, o então Deputado Federal
Jair Bolsonaro (PSC-RJ) atacara50 indígenas e quilombolas em uma palestra no clube Hebraica
no Rio de Janeiro. Na ocasião, o Deputado prometeu não demarcar terras para indígenas e
quilombolas, “[...] não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para
quilombola", e ainda realizou afirmações racistas contra os povos quilombolas: "Eu fui num
quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que
nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com eles.”.
Além disso, soma-se ao discurso reacionário, o desmonte de políticas referentes ao
campesinato, indígenas e quilombolas do Brasil, colocando-os sob controle de ruralistas no
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Segundo Teixeira (2020,
p.285):
A política de desconstrução do governo Bolsonaro na temática agrária
teve início no seu primeiro dia de governo. Por meio da Medida
Provisória 870 de primeiro de janeiro (lei 13.844, de 2019) Bolsonaro
extinguiu a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e transferiu as
suas atribuições na reforma agrária, agricultura familiar e na
regularização das terras indígenas e quilombolas, justamente ao
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).

Com isso, o Presidente afaga o outro lado ruralista presente no Estado, lado realmente
proprietário fundiário e todo o interesse desta classe. Segundo dados do TSE, são 297 políticos
com mandato entre 2019-2022 possuindo imóveis rurais. Estes políticos declararam 964
imóveis, porém, em 337 não foi informado suas dimensões. Desse modo, dos 627 imóveis rurais
com seus respectivos tamanhos declarados por políticos ao TSE, somam-se 254.110,00
hectares, número inferior ao encontrado em 2010 por Castilho (2012).
Do ponto de vista geral, políticos eleitos pelas regiões Nordeste e Sul declararam mais
propridades rurais, 283 e 197, respectivamente. Todavia, quando analisada a área dos imóveis,
como apresentado na figura 4, é evidente que políticos eleitos nas regiões Centro-Oeste e Norte
possuem maiores áreas, 98.702 ha e 71.679,72 ha, respectivamente. Constatam-se, nestas duas
regiões com maiores áreas pertencentes a políticos, são também onde se reúnem as maiores
concentrações fundiárias e as atividades da agricultura capitalista em expansão nas últimas
décadas e que avançam sentido à Amazônia Legal.

50
Informação noticiada pelo jornal Estadão. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,nao-
podemos-abrir-as-portas-para-todo-mundo-diz-bolsonaro-em-palestra-na-hebraica,70001725522>. Acesso em:
16 dez. 2020.
92

Brasil: Área dos imóveis rurais de políticos declaradas ao TSE, por região
brasileira – 2018
120.000,00

98.702
100.000,00
Área em Hectares

80.000,00 71.679,72
57.819,21
60.000,00

40.000,00

20.748,00
20.000,00
5.060,52
0,00
Norte Nordeste Centro-Oeste Sudeste Sul
Regiões brasileiras

Fonte: Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 2020.

Destes dados, destaca-se na região Norte o Senador Acir Marcos Gurgacz (PDT), eleito
pelo estado de Rondônia, proprietário de 15 fazendas, totalizando 31.594,04 hectares.
Os números de imóveis no Nordeste são relativiamente menores, lá o Senador Marcelo
Costa e Castro (MDB), eleito pelo estado do Piauí, declarou 38 imóveis rurais, totalizando
17.281,60 hectares. Na mesma região, o Deputado Federal Sérgio Toledo de Albuquerque (PR)
declarou a maior área (5.053,68 hectares), dividida em quatro imóveis rurais. O Deputado
Federal Ronaldo Carleto (PP) declarou 4.850 hectares, resultantes da soma de seus quatro
imóveis rurais. Na região Centro-Oeste, o Senador pelo estado de Mato Grosso, Jayme
Verissimo de Campos (DEM), com 58 imóveis rurais, totalizando 55.821 hectares, é o maior
politico/proprietário de terras do Brasil, com mandato entre 2019-2022. No mesmo estado,
Carlos Gomes Bezerra (MDB), eleito Deputado Federal, é o segundo maior prorpietário de
terras, com 6 imóveis rurais, totalizando 8.953,25 hectares.
Detentor de 3.589,99 hectares, em seis imóveis rurais, o Deputado Estadual em Minas
Gerais, Inácio Franco (PV), é o maior proprietário da região Suldeste. Merece destaque o
Deputado Estadual em São Paulo, Carlos Eduardo Pignatari (PSDB), daclarando ao TSE 15
imóveis rurais que totalizam 1.021,78 hectares. No Sul, o Deputado Federal eleito pelo estado
do Paraná, Ricardo José Magalhães Barro (PP), é proprietário de 5.298 hectares, divididos em
três imóveis. No mesmo estado, Plauto Miro Guimarães Filho (DEM) declarou seis imóveis
rurais, totalizando 2.967,88 hectares.
93

Em sintese, dos 10 políticos maiores proprietários rurais, com mandato entre 2019 e
2022, apresentados, apenas quatro são filiados à FPA. Pode-se compreender a força dos
latifundiários capitalistas e dos capitalistas latifundiários na política brasileira, além da Frente
Parlamentar de Apoio a Agropecuária. Buscando mapear estas informações, utilizou-se no
Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF), um banco de dados georreferenciados sobre os imóveis
rurais no Brasil, estes, quando sistematizados, permitem a compreensão da dimensão do
domínio territorial dos políticos brasileiros.
Pesquisando junto ao SIGEF o nome completo51 dos políticos eleitos e o nome de seus
imóveis declarados, foram encontrandos dados georreferenciados, até mesmo de áreas sem as
dimensões declaradas ao TSE. Cabe relembrar que a base de dados do SIGEF é gradativamente
construída52, assim não foram encontrados parte dos imóveis dos políticos.
Desta forma, o mapa 3 apresenta a distribuição e a dimensão dos imóveis rurais
pertencentes a políticos brasileiros com mandatos de 2019 a 2022. Esta informação foi
sobreposta aos dados generalizados do Mapbiomas53 sobre o uso do solo no Brasil no ano de
2018. Com isso, é possivel observar a localização dos imóveis rurais de políticos e compará-las
com as principais áreas de agricultura capitalista por todo o país.
No mapa 3 há a presença de imóveis rurais de políticos nas principais áreas da
agricultura vinculada ao agronegócio. Na região Centro-Oeste, destacam-se imóveis em áreas
de soja e de pecuária bovina nos estados de Mato Grosso do Sul e de Goiás. Ressalta-se ainda
o predomínio de imóveis com dimensão superior a dois mil hectares.
Diferentemte dos dados do TSE, os dados da região Nordeste no SIGEF apontam grande
número de imóveis e suas áreas pertencentes a políticos. Cabe destacar, a localização dos
imóveis no Nordeste em uma região produtiva que abrenge parte dos estados de Maranhão,
Tocantins (pertence à região Norte), Piauí e Bahia, denomidada de Matopiba.
Possuindo o Cerrado como bioma predomimante, o Matopiba é a região do rápido
avanço da agricultura capitalista nos últimos anos, sobretudo a especializada na produção de
soja. A terra é o principal ativo na região, onde atuam empresas especializadas neste mercado,
porém constata-se a intensa participação do capital financeiro na compra de terras como
apontou Frederico e Almeida (2019). O exponencial aumento no preço da terra atrai

51
Houve o cuidado em evitar homônimos, assim foram confrontados o nome completo do político, nome do imóvel
e, quando possível, sua área declarada ao TSE.
52
Como afirmado no capítulo anterior, o processo de georreferenciamento dos imóveis rurais pelo INCRA é
gradativo, logo uma parte das propriedades ainda não pode ser localizada.
53
O projeto Mapbiomas realiza o levantamento e a análise sistemática do uso e ocupação do solo no Brasil.
Disponível em: <https://mapbiomas.org>. Acesso em: 03 jul. 2020.
94

investidores do mundo todo que objetivam, a grosso modo, auferir renda futuramente com
arendamentos ou vendas. Segundo Frederico e Almeida (2019), o capital financeiro controlava,
em 2015, mais de 1,5 milhão de hectares. Os autores destacam grandes agentes do mercado
financeiro envolvidos na compra de terra no Matopiba, como George Soros e Eduardo Elztain,
assim como fundos de pensão de difrentes locais do mundo e até o fundo patrimonial de umas
das maiores universidades do mundo, Harvard.
Desta forma, a renda da terra explica a presença de imóveis pertencentes a políticos no
Matopiba e a sua aproximação ao agronegócio. Esta relação se materializa com a criação na
Câmara dos Deputados da “Frente Parlamentar em Defesa do Desenvolvimento da Região do
MATOPIBA” e sua aprovação no Senado, em 2019. Este movimento político busca dar
sustentação ao desenvolvimento capitalista, criando condições favoráveis, por meio da infra-
estrutura, e da legitimação das ações capitalistas. Como exemplefica Bezerra e Gonzaga (2019),
o projeto de Lei Complementar 279/16 objetivou “[...] articular e desenvolver programas,
projetos e ações destinados ao fortalecimento da infraestrutura agrícola da região do
Matopiba, à inovação tecnológica no campo da agricultura sustentável [...]” (p.53). Estes são
indícios claros sobre o papel dos agentes do Estado na expansão e na reprodução capitalista,
como indicaram Harvey (2009) e Smith (1984).
No mapa 3, observam-se ainda propridades rurais de políticos na região Norte,
principalmente nos estados do Acre, Roraima e Pará, para onde se direcionam as atividades do
agronegócio. No ano de 2019, uma série de queimadas na região chamou a atenção mundial. O
“dia do fogo”54, como ficou conhecido, reuniu grandes fazendeiros, madereiros e capitalistas
do agronegócio que, propositalmente, no dia 10 de agosto aceleraram a destruição da
biodiversidade e o ataque aos povos indígenas da Amazônia, objetivando ampliar seus domínios
fundiários.

54
Informação disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2019/10/23/responsaveis-pelo-dia-do-fogo-na-
amazonia-fizeram-vaquinha-para-ampliar-queimadas>. Acesso em: 10 ago. 2020.
95

Mapa 3 – Brasil: Imóveis rurais de políticos (2019-2022)


96

Como observado, a política e a propriedade capitalista da terra estão intrinsicamente


ligadas no Brasil, pois proprietários se tornam políticos ou financiam suas campanhas, com o
intuito de representarem seus interesses privados nas ações públicas, como apresentado em
outros momentos por Martins (1994) e Leal (1976). Outro possível caminho está no político
que adquire imóveis rurais os compreendendo como reserva de valor. Desta forma, além de ser
a base fundamental no processo de desenvolvimento da agricultura capitalista, a propriedade
capitalista da terra concede ao seu proprietário relativo poder político, de acordo com seu
monopólio da terra. Este poder está enraizado em todas as escalas políticas, passando pelo
Governo Federal e se expressando claramente na política local.

2.4 RURALISMO E POLÍTICA NO PARQUE DAS EMAS (GO) E NO BOLSÃO


(MS)

O poder político local historicamente se apoiou na propriedade da terra, consolidando a


figura emblemática do coronel. No entanto, para Leal (1976), os políticos no início do século
XX nem sempre eram autênticos “coronéis”, mas sujeitos formados, “doutores” que mantinham
relações de parentesco ou eram representantes dos verdadeiros proprietários de terras. Como
visto anteriormente, em determinados casos, proprietários de terras se aproveitam de seu
prestígio econômico e lançam-se na política ou, financiam campanhas eleitorais objetivando
eleger representantes de seus interesses.
Questiona-se se essa estrutura se manteve no século XXI, e qual seria sua importância
na escala local do Parque das Emas (GO) e do Bolsão (MS). Primeiramente, faz-se necessário
reconhecer o perfil da política local, compreendendo se há políticos, como observou Leal
(1976), seriam legítimos “coronéis” ou se na atualidade a elite latifundiária é representada por
políticos sem relação direta com a terra, mas que mantêm relações clientelistas com os sujeitos
no campo. Na tentativa de responder ao questionamento, a análise é aprofundada, investigando
quem são os proprietários de terras, sejam pessoas físicas ou jurídicas, como as agroindústrias
financiaram nas eleições gerais em 2014.
Considerando a última eleição municipal, ocorrida em 2016, nas áreas estudadas, foram
levantados os dados declarados ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O quadro 1 apresenta os
candidatos eleitos às prefeituras e suas respectivas ocupações declaradas ao TSE. Como
demonstrado no, dos 17 prefeitos eleitos em 2016, apenas cinco declaram ter atividade anterior
97

ligada à agricultura; destes, três se declararam pecuaristas: Agenor Rodrigues de Rezende


(PMDB), em Mineiros (GO); Manoel Rodrigues de Resende (PMDB), em Portelândia (GO); e
José Arnaldo Ferreira de Melo (PSDB), em Inocência (MS). Rogerio Pianezzola (PP), de
Chapadão do Céu (GO), declarou-se agricultor e João Carlos Krug (PSDB), eleito em Chapadão
do Sul (MS), declarou-se agrônomo. Os demais prefeitos declararam outras profissões, como
advogado, comerciário, engenheiro, psicóloga e odontólogo.

Quadro 1- Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS): Candidatos a prefeito eleitos em 2016 e suas
ocupações
Parque das Emas (GO)
Município Candidato Eleito Ocupação
Aporé Renato Sirotto Carvalho (PSB) Advogado
Chapadão do Céu Rogerio Pianezzola (PP) Agricultor
Jataí Vinícius De Cecílio Luz (PSDB) Vereador/Comerciário
Mineiros Agenor Rodrigues de Rezende (PMDB) Prefeito/Pecuarista
Perolândia Jhonatta Cortez da Silva (PSDB) Servidor Público
Municipal
Portelândia Manoel Rodrigues de Resende (PMDB) Pecuarista
Santa Rita do Tania Maria Toledo Salgueiro (PSD) Psicóloga
Araguaia
Serranópolis Lidevam Ludio de Lima (PSDB) Comerciante
Bolsão (MS)
Município Candidato Eleito Ocupação
Água Clara Silas José da Silva (PSDB) Prefeito
Aparecida do Jose Robson Samara Rodrigues de Almeida (PSB) Prefeito/Engenheiro
Taboado
Cassilândia Jair Boni Cogo (PSDB) Outros
Chapadão do Sul João Carlos Krug (PSDB) Agrônomo
Inocência José Arnaldo Ferreira de Melo (PSDB) Pecuarista
Paranaíba Ronaldo José Severino de Lima (PSDB) Engenheiro
Selvíria José Fernando Barbosa dos Santos (PSB) Odontólogo
Três Lagoas Angelo Chaves Guerreiro (PSDB) Deputado/Artesão
Fonte: Tribunal Superior Eleitoral, 2019. Organizado pelo autor.

Levando em consideração as declarações feitas ao TSE, buscou-se no sistema os bens


declarados pelos prefeitos e vice-prefeitos. Dos 17 prefeitos e vice-prefeitos eleitos, nove são
proprietários de imóveis rurais e, juntos, possuem 5.298,9 hectares. Desse montante, o prefeito
de Mineiros (GO), Agenor Rodrigues de Rezende (PMDB), é quem mais concentra terras, com
4.473,9 hectares declarados. O prefeito ainda possuía, à época, equipamentos agrícolas e
participação na Cooperativa Comiva, especializada na armazenagem, compra e venda de grãos,
especialmente milho, soja e sorgo.
Por outro lado, o prefeito de Chapadão do Sul (MS), João Carlos Krug (PSDB), não
declarou nenhum imóvel rural, porém, registrou diversos tratores, pulverizadores,
98

colheitadeiras, carretas e outros veículos. O prefeito ainda declarou possuir participação em


cotas de capital nas cooperativas Coopegrasul e Cottonsul, além de possuir ações na Empresa
Armazenadora de Chapadão do Sul, especializada em armazenar grãos e sementes.
Mesmo que grande parte dos prefeitos eleitos nos municípios no Parque das Emas (GO)
e no Bolsão (MS) sejam proprietários rurais, pelas pequenas áreas sob seus domínios, não se
pode classifica-los como latifundiários. Contudo, neste caso, é preciso reconhecer a
representatividade destes políticos, como apontou Leal (1976), sobre “coronéis” atuando como
intermediários entre o poder privado e o púbico. Com isso, das campanhas municipais
analisadas no Parque das Emas (GO), quatro tiveram como principais doadores proprietários
fundiários, mesmo número no Bolsão (MS). Analisando prefeitos, vice-prefeitos e
financiadores, constatam-se que 11, das 17 campanhas eleitas nas áreas estudadas, possuem
relações com a propriedade capitalista da terra.
Evidentemente, os proprietários fundiários e as empresas do agronegócio não limitam
suas influências econômicas e políticas apenas a candidatos das prefeituras dos municípios no
Parque das Emas (GO) e no Bolsão (MS). A influência na política local garante interesses
privados específicos, porém são nos níveis estadual e federal que os grandes interesses de
latifundiários e burgueses são representados.
Para demonstrar essas relações é preciso retornar às declarações feitas ao TSE nas
eleições gerais de 2014, último sufrágio quando se permitia doações de empresas para custear
a candidatura de políticos. Com isso, é observado a capilaridade do poder político exercido
pelos proprietários fundiários, especialmente nos estados de Goiás e de Mato Grosso do Sul,
onde ocorre esta pesquisa. Para tanto, foi realizado o caminho inverso, ao invés de localizar os
políticos latifundiários, buscou-se localizar empresas proprietárias de terras nas áreas estudadas
e financiadoras de campanhas eleitorais em 2014.
Foram identificadas doações de R$83.420,00 (Oitenta e três mil, quatrocentos e vinte
reais) oriundos de empresas do agronegócio localizadas no Parque das Emas (GO) para
candidatos de diferentes partidos políticos. A agroindústria Cerradinho S.A, produtora de
açúcar e etanol, com sede no município de Chapadão do Céu (GO), financiou, em 2014, o então
candidato ao Senado, Ronaldo Caiado (DEM), e para a seu adversário na disputa, Vilmar Rocha
(PSD). A empresa também destinou recursos a outros candidatos ao governo de Goiás, como
Iris Rezende Machado (MDB); ao Deputado Federal Alexandre Baldy de Sant'anna Braga (PP)
e ao Deputado Estadual Henrique Rogério da Paixão (PMN). Com estratégia semelhante, a
Usina Ipojuca, pertencente ao grupo Energética Serranópolis, especializado na produção de
açúcar e etanol, territorializada em Serranópolis (GO), também destinou recursos para os
99

candidatos Álvaro Soares Guimarães (DEM) e Iris Rezende Machado (MDB). Embora estejam
territorializadas no Parque das Emas (GO), estas empresas não apresentam registros de imóveis
rurais junto ao INCRA, levantando a possibilidade de que a produção destas usinas ocorra em
terras arrendadas.
Duas empresas territorializadas no Bolsão (MS) doaram R$5.262.844,00 (Cinco
milhões, duzentos e sessenta e dois mil oitocentos e quarenta e quatro reais) para campanhas
eleitorais em 2014. Foram 18 candidaturas apoiadas em 2014, das quais se destacam a do
governador eleito Reinaldo Azambuja (PSDB), da Deputada Federal Tereza Cristina (DEM),
do Deputado Federal Carlos Marun (MDB) e da Senadora Simone Tebet (MDB). As empresas
responsáveis por este montante de recursos são a Fibria S.A (Atual Suzano), produtora de
eucalipto, celulose e papel, territorializada em Três Lagoas (MS), e a Iaco Agrícola, produtora
de açúcar e etanol, territorializada em Chapadão do Sul (MS). Estas empresas, segundo os dados
do INCRA (2019), tem a titulação sob seu domínio de 93.133,5 hectares de terras no Bolsão
(MS), mas a área arrendada é muito superior.
O financiamento de campanhas eleitorais por empresas do agronegócio, territorializadas
no Parque das Emas (GO) e no Bolsão (MS), e a transformação dos “coronéis” em políticos
locais, indicam que o Estado é uma instituição de grande interesse de proprietários fundiários e
de empresários da agricultura capitalista ainda na atualidade. Entende-se que o financiamento
de campanhas é, na realidade, investimento do agronegócio em eleger sujeitos alinhados ao
setor e esperando ações em prol aos seus interesses. A relação entre terra, agronegócio e Estado
no Brasil converge na interpretação de Martins (1994): “No Brasil o atraso é um sistema de
poder.” (p.13). O autor complementa:
A propriedade da terra é o centro histórico de um sistema político persistente.
Associada ao capital moderno, deu a esse sistema político uma força renovada,
que bloqueia tanto a constituição da verdadeira sociedade civil, quanto da
cidadania de seus membros [...] E Estado baseado em relações políticas
extremamente atrasadas, como as do clientelismo e da dominação tradicional
de base patrimonial, do oligarquismo. (MARTINS, 1994, p.13).

Além disso, parte dos candidatos eleitos em 2014, analisados aqui, também são
proprietários fundiários, como indica as declarações de bens feitas ao Tribunal Superior
Eleitoral. Eleito governador (2015-2018) em Mato Grosso do Sul, Reinaldo Azambuja, também
é reconhecido como grande pecuarista, declarando55, em 2014, ao Tribunal Superior Eleitoral,
R$ 23.800.800,00 (Vinte e três milhões, oitocentos mil e oitocentos reais) em imóveis rurais. O

55
Disponível em: <http://www.asclaras.org.br/partes/candidato/@bens.php?id=1162854&orig=exc>. Acesso
em: 07 set. 2019.
100

governador é membro da FPA e, historicamente, defendeu o agronegócio no estado de Mato


Grosso do Sul, participando do chamado “Leilão da Resistencia”56, em 2013, quando grandes
proprietários arrecadaram dinheiro para “defender” seus imóveis rurais de possíveis ações de
indígenas e de camponeses. Além da contribuição de empresas territorializadas no Bolsão (MS),
a campanha de Azambuja contou, também, com o financiamento de grandes empresas nacionais
de ação global, dentre elas, a JBS, do setor de carnes, autointitulada57 “uma das líderes globais
da indústria de alimentos”.
A então Deputada Federal, eleita em 2014, Tereza Cristina (DEM), reeleita em 2018
(Mandato de 2019 a 2022) e, atualmente, Ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
não possuía imóveis declarados durante a campanha de 2014, porém os dados do SIGEF
indicam, em 2019, dois imóveis rurais em seu nome nos estados de Mato Grosso do Sul e Mato
Grosso. A Deputada Federal recebeu na campanha para as eleições de 2014, de empresas do
agronegócio, grande parte das doações eleitorais, compreendendo R$ 2.689.800,00 (Dois
milhões, seiscentos e oitenta e nove mil reais) (CIMI, 2018). Ex-presidente da Frente
Parlamentar Agropecuária, a Ministra Tereza Cristina apresenta grande relação com a
agricultura capitalista, defendendo os interesses deste setor, recebendo a nomeação de “Musa
do Veneno” (CIMI, 2018). Esta alcunha ocorreu devido aos esforços de Tereza Cristina em
defender a ampliação do uso de agrotóxicos no país e suas liberações. Segundo o CIMI (2018,
p. 100):
Em festa promovida pela FPA devido a aprovação do projeto ‘PL do Veneno’,
que facilita o uso de agrotóxicos, a parlamentar recebeu o apelido de ‘Musa
do Veneno’. Em 2017 apresentou requerimento (478) para audiência pública
que fazia lobby para implementar agronegócio em terras indígenas.

Segundo reportagem do site De Olho nos Ruralistas, Tereza Cristina recebeu doações
para sua campanha, em 2014, da empresa Coplana, especializada na comercialização de
agrotóxicos. Com isso, demonstra-se a permanente relação da Deputada e atual Ministra da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento com o agronegócio em suas mais variadas escalas.
Em Goiás, o atual governador, na época (2014) candidato ao Senado, Ronaldo Caiado,
mesmo sendo médico, declarou R$1.897.956,70 (Um milhão, oitocentos e noventa e sete mil,
novecentos e cinquenta e seis reais e setenta centavos) divididos em 12 imóveis rurais. Cabe
relembrar que a família Caiado permeia a história política do estado de Goiás, associando-se,

56
Noticia disponível em: <https://deolhonosruralistas.com.br/2016/09/28/algozes-de-indigenas-no-ms-tentam-
eleicao-no-dia-2-de-outubro/> Acesso em: 01 ago. 2020.
57
Informação retirada da página oficial da empresa. Disponível em: <https://jbs.com.br> Acesso em: 01 ago.
2020.
101

inicialmente à família Bulhões, para a eleição de presidente do estado, em 1892, e representando


os interesses das oligarquias rurais do estado. Segundo Campos (2003), “Essa representação
dos setores agrários se fortalecia pela presença do Coronel Antônio José Caiado, antigo
fazendeiro, membro do Centro ligado aos Bulhões” (p.84). Em sua página58 na internet,
Ronaldo Caiado ressalta sua história como “Senador da República pelo estado de Goiás, foi
Deputado federal por cinco mandatos; médico ortopedista e especialista na área de cirurgia da
coluna vertebral e produtor rural. Fundador da União Democrática Ruralista (UDR)”.
Outro político, Marconi Perillo, governador eleito em 2014, declarou R$ 306.666,3
(Trezentos e seis mil, seiscentos e sessenta e seis reais e trinta centavos) investidos em fazendas,
além de mais de R$ 1 milhão em bovinos, bufalinos e equinos. Em sua proposta de governo59,
Marconi Perillo ressaltava seu compromisso, indicando a perspectiva de melhorias com o
objetivo de “fortalecer as cadeias produtivas do agronegócio fomentando a pesquisa, a
tecnologia, a qualidade, a defesa sanitária e a sustentabilidade da produção agrícola, pecuária e
aquícola” (2014, p. 22).
Pela análise feita até aqui, compreende-se a hegemonia no poder político exercido por
latifundiários e burgueses do agronegócio. Não obstante, é preciso considerar a disputa interior
do Estado brasileiro entre frações capitalistas ligadas a outros setores da economia, como as
indústrias automotivas e de construção civil, e até mesmo ligadas à produção de armas de fogo,
representadas pela Bancada da Bala. Ainda nessa perspectiva, é preciso lembrar que o Estado é
uma instituição constituída por sujeitos pertencentes a classes sociais, mesmo havendo grande
domínio da burguesia e de proprietários fundiários, há também a disputa desigual travada por
trabalhadores e camponeses. Além disso, é preciso reconhecer novamente que o Estado não se
resume ao poder político, dividindo-se entre o legislativo, executivo e judiciário onde ponde
haver também uma relação direta com o latifúndio.
A luta de classes dentro do Estado, sobretudo entre políticos, resulta na construção de
políticas e programas de governo. A clara tendência de apoio ao agronegócio foi apresentada
aqui e analisada dentro da perspectiva da representatividade do poder de grandes latifundiários
e burgueses da agricultura capitalista. Logo, questiona-se se há representatividade dos
interesses do campesinato no Estado brasileiro e como esta classe social é pensada nas políticas
públicas.

58Disponível em: <http://www.ronaldocaiado.com.br/historia/>. Acesso em: ago. 2020.


59
A proposta está disponível em:
<http://divulgacandcontas.tse.jus.br/dados/2014/680/BR/GO/3/90000000637/proposta_governo1405013721436.
pdf>. Acesso em: 10 ago 2018.
102

2.5 QUAL O LUGAR DO CAMPESINATO NO ESTADO?

Neste trabalho, consideram-se as políticas públicas como ferramentas de ação do Estado


e este, por sua vez, entendido como expressão da relação de forças de classes (burgueses e
latifundiários) sobre as outras (trabalhadores e camponeses). No interior da desigual luta de
classes no Brasil, as políticas públicas para agricultura carregam em seu âmago os ideais de
latifundiários e da burguesia. Desta forma, os interesses de classes hegemônicas no campo
condicionam diretamente a construção de políticas para o campesinato.
Não se objetiva, nas linhas que se seguem, trazer o panorama histórico conceitual sobre
as políticas para a agricultura camponesa, mas compreender como esta classe social é pensada
pelos agentes hegemônicos do Estado. Inicialmente é preciso compreender como o campesinato
é conceitualmente delimitado como Agricultura Familiar no interior do Estado e qual corrente
teórica sustenta tal perspectiva.
Presente nos documentos oficiais e em secretarias de governo, como a Secretaria
Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário (SEAD), o termo agricultura
familiar possui como marco referencial a Lei Nº 11.326, de 2006, estabelecendo as diretrizes
para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares
Rurais. Nesta lei, pelo artigo terceiro, considera-se agricultor familiar aquele que:
I - não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais;
II - utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades
econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento; III - tenha percentual
mínimo da renda familiar originada de atividades econômicas do seu
estabelecimento ou empreendimento, na forma definida pelo Poder
Executivo;
IV - dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família.

Em síntese, esta Lei considera como agricultor familiar todo sujeito em áreas diminutas
(até quatro módulos fiscais) e com uso predominantemente de mão-de-obra familiar. A
perspectiva economicista, expressa na Lei 11.326, é parte resultante da influência das
interpretações teóricas feitas, como as de Abramovay (1992), sobre o desenvolvimento do
capitalismo no campo e seus reflexos na agricultura camponesa.
Teoricamente, o autor compreende o desenvolvimento do capitalismo como responsável
pelo desaparecimento do campesinato ou em sua transformação em agricultor familiar. Neste
contexto, o camponês no capitalismo tende a se integrar totalmente ao modo capitalista de
produção ou desaparecer. Assim:
O ambiente no qual se desenvolve a agricultura familiar contemporânea é
exatamente aquele que vai asfixiar o camponês, obriga-lo a se despojar de suas
103

características constitutivas, minar as bases objetivas e simbólicas de sua


reprodução social. (ABRAMOVAY, 1992, p. 146).

As previsões feitas por Abramovay (1992), de certa forma, não são novas, pois as
transformações ocasionadas pelo desenvolvimento do capitalismo na Rússia, nos séculos XIX
e XX, sobretudo na agricultura e no campesinato, levaram autores clássicos, como Kautsky (A
questão Agrária) e Chayanov (La organización de la unidad económica campesina), a
discutirem o destino camponês no capitalismo (ALMEIDA, 2006). Portanto,
[...] estavam lançadas as bases teóricas do entendimento do campesinato no
modo capitalista de produção que, de forma elementar, pode ser agrupada em
dois grandes paradigmas: desintegração do campesinato e
permanência/recriação camponesa. (ALMEIDA, 2006, p.71).

Em geral, as interpretações sobre o campesinato, na atualidade, indicam sua


transformação em classe trabalhadora ou na sua permanência como classe social camponesa,
resultado do desenvolvimento contraditório do capitalismo no campo. Nesta tese, considera-se,
sob a luz teórica de Oliveira (1991; 2004; 2010), o campesinato enquanto classe social
resultante do desenvolvimento desigual, combinado e contraditório do capitalismo no campo
brasileiro. O capital, ao reproduzir suas relações capitalistas, promove, ao mesmo tempo,
relações tipicamente não capitalistas (OLIVEIRA, 1991), apropriando-se de parte da sua
produção. Segundo Moura (1986), “[...] o camponês desempenha um contraditório papel que,
de um lado, expressa a sua resistência em desaparecer e, de outro lado, é resultado do próprio
capitalismo que não o extingue.” (p. 19). Dessa maneira:
[...] o capitalismo atua desenvolvendo simultaneamente, na direção da
implantação do trabalho assalariado, no campo em várias culturas e diferentes
áreas do país, como ocorre, por exemplo, na cultura da cana-de-açúcar, da
laranja, da soja etc. Por outro lado, este mesmo capital desenvolve de forma
articulada e contraditória a produção camponesa. Isto quer dizer que parto
também do pressuposto de que o camponês não é um sujeito social de fora do
capitalismo, mas um sujeito social de dentro dele. (OLIVEIRA, 2001, p. 185).

Todavia, é insuficiente responder as existências do campesinato na atualidade


entendendo este sujeito como simples parte do processo desigual e contraditório do capitalismo,
pois é mister destacar a luta, a cultura camponesa e suas ações revolucionárias por todo o mundo
(ALMEIDA, 2006). No Brasil, a identidade social camponesa sempre esteve associada a
diferentes lutas no campo, sendo protagonista em alguns conflitos históricos envolvendo
camponeses, como a Guerra de Canudos, na Bahia, e Guerra do Contestado, no Paraná e Santa
Catarina (MARTINS, 1981). Portanto:
Muitos foram seus movimentos: Canudos, Contestado, Trombas e Formoso
fazem parte destas muitas histórias das lutas pela terra e pela liberdade no
campo brasileiro. São também, memórias da capacidade de resistência e de
104

construção social desses expropriados na busca por uma parcela do território


e memórias da capacidade destruidora do capital, dos capitalistas e de seus
governos repressores. (OLIVEIRA, 2001, p 190).

Em Canudos, entre 1896 e 1897, centenas de camponeses no Sertão da Bahia, inspirados


por Antônio Conselheiro, lutaram contra o latifúndio e acabaram entrando em conflito com o
Exército brasileiro. Esta luta resultou na morte de cerca de cinco mil pessoas (MARTINS,
1981). Entre os anos de 1912 e 1916, camponeses na região de fronteira entre os estados de
Paraná e Santa Catarina protagonizaram o maior conflito armado contemporâneo brasileiro. Os
camponeses lutaram pela permanência na terra contra futuros empreendimentos de madeireiras
e de fazendeiros. Este conflito envolveu cerca de 20 mil rebeldes e metade do Exército
brasileiro, em 1914 (MARTINS,1981). Por ser região de contestação de fronteiras entre os
estados, ficou conhecida como Guerra do Contestado.
As revoltas e as guerras de camponeses no Brasil fizeram com que o Estado
compreendesse o poder de mobilização e luta dessa classe social e:
A intervenção militar em Canudos e no Contestado, em defesa da ordem e do
regime, constitui a mediação que fez, das guerras camponesas, guerras
políticas; que arrancou as rebeliões místicas dos camponeses de sua aparente
insignificância localista, municipal e pré-política, descobrindo nelas a
dimensão política profunda, o perigo para a ordem constituída, o seu poder
desagregador. (MARTINS, 1981, p. 62).

Na contemporaneidade, mais precisamente nas décadas de 1940 e 1950, outro


movimento camponês se destacou60 pela amplitude e força política. O movimento chamado de
Ligas Camponesas abrangia trabalhadores rurais, camponeses, rendeiros no Nordeste brasileiro,
na luta contra o latifúndio e pela Reforma Agrária e a posse da terra (OLIVEIRA, 2001).
As ligas camponesas61 se destacaram no cenário nacional com cerca de 70 mil membros
liderados por Francisco Julião e chamaram a atenção do Estado, principalmente por sua ligação
com o Partido Socialista Brasileiro. Desta forma:
O movimento das Ligas Camponesas tem, portanto, que ser entendido, não
como um movimento local, mas como manifestação nacional de um estado de
tensão e injustiças a que estavam submetidos os camponeses e trabalhadores
assalariados do campo e as profundas desigualdades nas condições gerais do
desenvolvimento capitalista no país. (OLIVEIRA, 2001 p. 108).

60
É preciso, contudo, destacar outros movimentos de luta pela terra que ocorreram em escala regional como:
Guerra do Contestado (1912-1916), em Santa Catarina; Revolta de Porecatu (1940-1950), no Norte do estado do
Paraná; o movimento Arranca-Capim (1950-1960), em Santa Fé do Sul (SP); Trombas e Formoso (década de
1950), no Norte de Goiás; e os Brasiguaios, na fronteira Brasil-Paraguai, na década de 1980.
61
Sobre as Ligas Camponesas e demais movimentos sociais no campo recomenda-se: MARTINS, José de Souza.
Os camponeses e a política no Brasil. 4ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1981.
105

Com o golpe militar em 1964, este movimento acabou desarticulado, no entanto,


entraram para história pela importância pela mobilização de camponeses. Durante a década de
1980, a organização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), mesmo sem
utilizar o conceito de camponês em seu nome, chamou a atenção para a importância
revolucionária destes sujeitos, possuindo como principal ação de luta a ocupação de terras.
Desse modo, a utilização do conceito de agricultura familiar, como apresentado por
Abramovay (1992), desassocia dos sujeitos o papel político do campesinato ao longo da história
e, consequentemente, enquadra-os em uma parte economicista acessória do capitalismo no
campo. Para Martins:
As diferentes palavras, que em diferentes lugares designavam o camponês,
tinham um duplo sentido [...]. Definiram-no como aquele que está em outro
lugar, no que se refere ao espaço, e como aquele que não está senão
ocasionalmente, e nas margens, nesta sociedade. Ele não é de fora, mas
também não é de dentro. [...]. A exclusão do camponês do pacto político é o
fato que cercará o entendimento da sua ação política. [...]. Essa exclusão
define justamente o lugar do camponês do processo histórico. A ausência de
um conceito, de uma categoria, que o localize socialmente e o defina de modo
completo e uniforme constitui exatamente a clara expressão da forma como
tem se dado sua participação nesse processo – alguém que participa como se
não fosse essencial. (MARTINS, 1981, p.25).

O paradigma proposto por Abramovay (1992) privilegia a análise da estrutura


econômica da produção familiar e sua integração total ao modo capitalista de produção e ignora
a força política e revolucionária da classe camponesa. “Portanto, trata-se, [...] do velho discurso
que, na aparência, fala da necessidade de um conceito mais puro, claro, mas na essência nega o
campesinato como classe como demandas conflitivas específicas.” (ALMEIDA, 2006, p.90).
Portanto, o uso do conceito de camponês ou agricultor familiar vai além da opção teórica
e se coloca como posição política. Nesse sentido, Marques (2008) indica a necessidade de uso
do conceito de camponês para análise da desigualdade no campo brasileiro:
Enquanto o campo brasileiro tiver a marca da extrema desigualdade social e a
figura do latifúndio se mantiver no centro do poder político e econômico –
esteja ele associado ou não ao capital industrial e financeiro –, o campesinato
permanece como conceito-chave para decifrar os processos sociais e políticos
que ocorrem neste espaço e suas contradições. (MARQUES, 2008, p.58).

Portanto, no debate brasileiro atual há dois conceitos com diferenças explícitas teóricas
e ideológicas. Autores, como Fernandes (2008) e Camacho (2014), compreendem as diferenças
teórico conceituais de interpretação do campo brasileiro em dois distintos paradigmas:
Paradigma da Questão Agrária e Paradigma do Capitalismo Agrário.
De acordo com Camacho (2014, p.113):
106

A escolha de um paradigma requer que elegemos autores, conceitos e teorias.


Esta é uma forma de se fazer uma classificação. Isto requer que façamos uma
opção de termos e conceitos. Cada uma dessas terminologias empregadas está
impregnada de valores, intencionalidades e ideologias. Por isso, o cerne da
questão da classificação seria, então, a opção político ideológica que fazemos,
pois é esta opção que engendra os conceitos e a teoria.

A assertiva de Camacho (2014) corrobora com a discussão feita até aqui sobre a
parcialidade do Estado brasileiro em favor oligarquias rurais que o compõem. Com isso, a partir
da década de 1990, o conceito de agricultura familiar e sua perspectiva teórica se popularizou
na academia, movimentos sociais e nas políticas públicas (FERNANDES, 2008). Desta forma,
para Gomez (2006):
[...] A agricultura familiar, nova via para o desenvolvimento rural, ‘nasce’ para
reforçar um desenvolvimento rural capitalista. A agricultura familiar que o
Banco Mundial incentiva, através de suas políticas de desenvolvimento e que
o governo de Fernando Henrique Cardoso decide incorporar, é uma
agricultura familiar apropriada aos fins de desenvolvimento capitalista que
tanto um como o outro pretendem. (GÓMEZ, 2006, p.68).

Desta forma, um conjunto de políticas foram adotadas a partir da perspectiva da


agricultura familiar ou do Paradigma do Capitalismo Agrário (FERNANDES, 2008),
objetivando promover a solução dos problemas do campo a partir da “transformação” do
camponês “atrasado” em agricultor familiar “moderno” e integrado totalmente aos circuitos
econômicos do capitalismo. O uso deste termo tem o propósito de diluir conflitos e
desigualdades no campo, colocando os camponeses como iguais e semelhantes a duas classes
sociais antagônicas: camponeses e latifundiários-capitalistas. Como resultado, ao longo da
história, nunca houve projeto para o Brasil camponês, mas um apanhado de políticas públicas
e programas liberais desconexos, esquecidos ou abandonados criados por diferentes governos.
A democratização da terra, entendido aqui como objetivo fundamental para reprodução
social do campesinato, foi alinhada a programas de Reforma Agrária no Brasil, sempre com
percalços. Estes, por sua vez, passaram por grande resistência dentro do próprio Estado (fora
também) e só se realizaram por meio da pressão popular dos movimentos socioterritoriais.
Os camponeses, trabalhadores, indígenas e quilombolas travaram e travam lutas
constantes por frações do território, seja pela expansão de posses, pela reivindicação de
Reforma Agrária, pelo reconhecimento das terras tradicionais ou mesmo para permanecerem
nelas. Por outro lado, a concentração fundiária se tornou característica marcante da estrutura
agrária no Brasil, predominando em área ocupada a grande propriedade, elemento contraditório
107

do capitalismo rentista brasileiro e consolidado pela aliança entre proprietários de terras e


capitalistas. A terra, assim, se mantém como elemento central na análise da questão agrária.
108

3 A REPRODUÇÃO DO LATIFUNDIO NOS TERRITÓRIOS RURAIS


PARQUE DAS EMAS (GO) E DO BOLSÃO (MS)

Por onde passei,


plantei
a cerca farpada,
plantei a queimada.
Por onde passei,
plantei
a morte matada.
Por onde passei,
matei
a tribo calada,
a roça suada,
a terra esperada…
Por onde passei,
tendo tudo em lei,
eu plantei o nada.

Dom Pedro Casaldáliga, Confissões do Latifúndio.

“Malditas sejam todas as cercas!” Clamou Dom Pedro Casaldáliga em um de seus mais
célebres poemas. O bispo, falecido no ano de 2020, dedicou a vida na luta ao lado de posseiros
e indígenas contra as cercas erguidas por latifundiários no Vale do Araguaia em Mato Grosso.
De mãos dadas com os pobres do campo, Casaldáliga enfrentou a violência dos proprietários
de terras e capitalistas à medida que as cercas avançaram e consolidaram a propriedade
capitalista da terra. A cerca, símbolo do aprisionamento da terra e consigo a natureza, subverte-
os a lógica do capital, privam camponeses, posseiros, indígenas e quilombolas de viver e amar,
como afirmou Dom Pedro.
Nem as transformações tecnológicas ocorridas na agricultura foram capazes de romper
com o monopólio da terra no Brasil. O latifúndio permanece no século XXI, como uma chaga,
presente no campo brasileiro, mesmo que interpretado como marca de um passado pseudo
feudal. O seu anunciado desaparecimento, por meio do desenvolvimento da agricultura
capitalista, só ocorreu no vocabulário e nas legislações brasileiras. A invisibilidade da
concentração fundiária e da violência física e simbólica se reforçaram com a modernização da
agricultura na década de 1970 que aliou proprietários de terras e capitalistas, denominado por
Martins (1994) de aliança terra-capital.
É fato que a propriedade capitalista da terra no Brasil possui centralidade na produção
e reprodução ampliada do capital. Assim, o rentismo é elemento fundamental na construção da
109

sociedade e do Estado brasileiro, além de permear as relações políticas nos mais diversos
espectros partidários. Como afirma Prieto (2016, p. 578), “O desenvolvimento rentista à
brasileira se consolidou em uma forma de desenvolvimento capitalista que reproduz o
latifúndio, econômica, social e politicamente.”.
O caráter rentista do desenvolvimento capitalista no Brasil indica a grande propriedade
não como exceção, mas como característica do campo brasileiro. Com isso, a reprodução do
latifúndio decorre da relação social existente entorno da propriedade capitalista da terra
(MARTINS, 1991), permitindo aos proprietários fundiários e capitalistas auferirem renda e
lucro às custas da exploração do trabalho e da natureza.
Não se pode perder de vista o pano de fundo das relações de produção e reprodução do
capital onde o latifúndio é reproduzido. Desta forma, a expansão do capitalismo no campo, por
meio da monopolização do território e da territorialização do capital, produz a renda da terra e
o reproduz na exploração do trabalho assalariado. Neste mecanismo, a concentração fundiária
se torna característica marcante no Brasil pela avidez do pacto de classes objetivando a renda
da terra, a aliança do atraso. Dados do IBGE e do INCRA, sobre a estrutura fundiária,
apresentados ao longo deste capitulo, demonstrarão a existência de verdadeiros impérios no
campo.
A estrutura fundiária concentrada e a aliança entre latifundiários e capitalistas na década
de 1970 proporcionaram a territorialização capital no campo nos municípios do Parque das
Emas (GO) e do Bolsão (MS). Logo, sob a estrutura concentrada, empresas transnacionais
passaram a controlar o campo nas áreas estudadas, em busca de extração de renda e lucro.
Todavia, o gigante que dá sustentáculo ao agronegócio possui “pés de barro”, a propriedade
capitalista da terra base para o desenvolvimento do capital no campo e entendida como
inviolável possui em sua origem a apropriação ilegal de terras devolutas. A estratégia secular
de falsificação de documentos, entendida como grilagem de terras, compõe parte da formação
da propriedade capitalista da terra no Brasil e nas áreas estudadas. Diante desta perspectiva,
foi proposto ao longo deste capitulo o exercício de análise de cadeia dominial de dois
latifúndios, buscando demonstrar a instabilidade jurídica da propriedade da terra no Parque das
Emas (GO) e Bolsão (MS). Pode-se, assim, compreender a trama envolvendo latifundiários e
capitalistas na formação ilegal de latifúndios por meio da grilagem e a permissividade das
estruturas do Estado brasileiro.
110

3.1 O LATIFUNDIO NO BRASIL

No Dicionário da Educação do Campo, Medeiros (2012) aponta a origem de


“latifúndio”, como uma grande propriedade pouco explorada, ou que mantinha relações
arcaicas de trabalho escravo no Império Romano. O emprego deste conceito, aparentemente
desconexo no âmbito das relações sociais no modo capitalista de produção em pleno século
XXI, contribuiu para que em 2015, a Ministra da Agricultura no Governo Dilma, Kátia Abreu,
atualmente no Partido Progressista (PP), referindo-se ao Brasil, afirmou62: “Latifúndio não
existe mais”.
Esta afirmação assenta-se na compreensão do desenvolvimento da agricultura capitalista
adjetivada de “moderna” sobre áreas supostamente com relações primitivas de agricultura.
Alberto Passos Guimarães, em sua obra clássica “Quatro Séculos de Latifúndio” (1968),
argumentava sobre a existência do latifúndio no Brasil como resultado de um passado feudal.
Segundo o autor, durante a formação do Brasil colônia, Portugal teria implantado um
feudalismo colonial. Para Oliveira (2007), os autores alinhados a esta perspectiva teórica sobre
o Brasil “Acreditam mesmo que a economia colonial (expressão da política mercantilista dos
países europeus) é caracterizada por instituições políticas e jurídicas feudais, que são os
instrumentos necessários à dominação econômica das metrópoles.” (p.10).
Portanto, a base sustentadora da ondem feudal seria o monopólio da terra.
Essas velhas relações de produção que travam o desenvolvimento de nossa
agricultura não são do tipo capitalista, mas heranças do feudalismo colonial.
A primeira e mais importante dessas relações de produção, cuja destruição se
impõe, é o monopólio feudal e colonial da terra, o latifundismo feudocolonial.
(GUIMARÃES, 1968, 32).

Observando o latifúndio como resquício feudal, Guimarães (1968) faz duas conclusões
acerca da permanência deste como entrave ao desenvolvimento capitalista no campo: “[...] a
primeira é que o latifúndio se ergue como principal empecilho ao aumento da produção
agrícola; a segunda é que a fragmentação da propriedade é condição imprescindível para o
progresso de nossa agricultura.” (1968, p. 186).

62
BERGAMO, Mônica. Não existe mais latifúndio no Brasil, diz nova ministra da Agricultura. Folha de S. Paulo,
São Paulo, 5 jan. 2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/01/1570557-nao-existe-mais-
latifundio-no-brasil-diz-nova-ministra-da-agricultura.shtml>. Acesso em 26 de ago. 2020. À época, Kátia Abreu
era filiada ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), atual MDB.
111

Nessa perspectiva Faoro (2012) apontou características feudais no Brasil como


estratégia de reprodução de uma organização social baseada no feudalismo possuindo como
característica o monopólio da terra.
O feudalismo colonial não teria, como demonstra a longa transcrição de
Martins Júnior, a pureza do sistema europeu. Não seria uma expressão legal,
mas uma tendência social, emergente contra preceitos das Ordenações. O
feudalismo teria caracteres atípicos — “sem as cores tradicionais do sistema
europeu, antes de anacronismos e arremedos e mais de tendências”. Ele teria
brotado, conservando-se vivo por muitos séculos, da organização política
e territorial das capitanias. Os donatários — os capitães-governadores —
teriam sido os troncos do sistema feudal, consolidado pela transmissão
plena e hereditária da propriedade e pela amálgama, em suas mãos, da
soberania e da propriedade. (FAORO, 2012, p. 127) (Grifo nosso).

Discordando teoricamente de Guimarães (1968) e Faoro (2012), esta pesquisa


considerada o latifúndio como elemento inerente ao capitalismo desenvolvido em países
periféricos. As conclusões sobre o monopólio da terra e a posição brasileira dentro do modo
capitalista de produção permeavam o debate sobre o desenvolvimento no Brasil na década de
1960. Caio Prado Júnior (1979), analisando a questão agrária no Brasil e divergindo da ideia de
um passado feudal, refere-se à permanência de relações primitivas no campo brasileiro como o
trabalho escravo e o latifúndio. Segundo o autor:
Se quiser considerar as relações de trabalho da agropecuária brasileira em
função de suas origens históricas, acentuando os anacronismos que nelas se
observam como parece ser o caso nas referências feitas a pseudo ‘restos
feudais’, e relações ‘semifeudais’, seria mais acertado e adequado falar em
restos escravistas ou servis, e relações semi-escravistas ou semi-servis.
(PRADO JÚNIOR, 1979, p. 67).

As indefinições e controvérsias entre estudiosos sobre o latifúndio no país “[...] faziam-


no porque viam nele um obstáculo à expansão do capitalismo no campo, isto é, das relações
capitalistas de produção.” (MARTINS, 1981, p. 170). Este debate advém das discussões
ocorridas no interior do marxismo europeu sobre os contornos a serem tomados na agricultura
no contexto de transição do feudalismo para o modo capitalista de produção, sobretudo o que
diz respeito ao latifúndio e o campesinato.
Isso porque Marx (2013), ao analisar e compreender o modo capitalista de produção,
desnudou mecanismos fundamentais ocorridos na transição do modo feudal. Dentre eles, o
ponto de partida para acumulação capitalista, ao qual o autor denominou de acumulação
primitiva e compreendeu o processo inicial de acumulação a partir da separação entre os meios
de produção e o restante da população. Portanto:
Deu-se, assim, que os primeiros acumularam riquezas e os últimos acabaram
sem ter nada para vender, a não ser sua própria pele. E desse pecado original
112

datam a pobreza da grande massa, que ainda hoje, apesar de todo seu trabalho,
continua a não possuir nada para vender a não ser a si mesma, e a riqueza dos
poucos, que cresce continuamente, embora há muito tenham deixado de
trabalhar. (MARX, 2013, p. 960).

Observando o caso da Inglaterra entre os séculos XVI e XIX, Marx (2013, p. 963)
aponta: “A expropriação da terra que antes pertencia ao produtor rural, ao camponês, constitui
a base de todo o processo. Sua história assume tonalidades distintas nos diversos países e
percorre as várias fases em sucessão diversa e em diferentes épocas históricas.”.
A apropriação de terras comunais e públicas seguidas da transformação de camponeses
em trabalhadores urbanos:
O roubo dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios estatais, o
furto da propriedade comunal, a transformação usurpatória, realizada com
inescrupuloso terrorismo, da propriedade feudal e clânica em propriedade
privada moderna, foram outros tantos métodos idílicos da acumulação
primitiva. Tais métodos conquistaram o campo para a agricultura capitalista,
incorporaram o solo ao capital e criaram para a indústria urbana a oferta
necessária de um proletariado inteiramente livre. (MARX, 2013, p. 979).

A acumulação primitiva passa pela consolidação da grande propriedade dentro do modo


capitalista de produção. Nesse sentido, o latifúndio feudal tornou-se, na Europa, latifúndio
capitalista. Assim, autores passaram a interpretar a existência ou não do latifúndio no
capitalismo. Para Luxemburg (1970), a acumulação primitiva não se limita ao estágio inicial
do capitalismo, pois entende o processo permanente de acumulação por meio do avanço do
capital sobre regiões pré-capitalistas. Sendo assim:
Sem as formações pré-capitalistas, a acumulação do capital pode realizar-se
sem as estruturas não-capitalistas nem estas podem sequer se manter. A
condição vital da acumulação do capital é a dissolução progressiva e continua
das formações pré-capitalistas. (LUXEMBURG, 1970, p. 363).

Desta maneira, há um processo continuo de apropriação de terras e transformação de


populações tradicionais em trabalhadores. Lênin (1981), analisando a questão agrária na Rússia
no início século XX, constatou a presença de resquícios do latifúndio feudal (relações
medievais) como um obstáculo ao desenvolvimento econômico do país.
Segundo o autor: “Un país en el que aumenta el intercambio y avanza el capitalismo, no
puede dejar de sufrir crisis de todo género si en la rama principal de su economía la relaciones
medievales constituyen a cada paso un freno y un obstáculo.” (LÊNIN, 1981, p. 74). Para o
autor, a continuidade de relações não capitalistas desenvolvidas no interior dos latifúndios
causaria efeitos desastrosos em toda a Rússia.
Não obstante, Kautsky (1980) analisou os rumos da agricultura e do campesinato dentro
da social democracia alemã no final do século XIX na obra conhecida como “A Questão
113

Agrária” (ALMEIDA; PAULINO, 2000). O autor identificou as transformações


proporcionadas pelo desenvolvimento do capitalismo no campo, modernizando a agricultura,
porém mantendo a concentração fundiária, também denominada de latifúndio. Para o autor:
Esta espécie de centralização do solo, a reunião de diferentes propriedades
numa única mão, não modifica a superfície das explorações particulares mais
do que a centralização por meios dos bancos hipotecários. Mas ela se distingue
desta última no que passamos a expor. A centralização da propriedade
determina também uma centralização da administração e origina assim
uma nova forma de exploração, o latifúndio. É sob esta forma, e não pelo
alargamento ao infinito de explorações particulares, que se desenvolve na
agricultura a exploração-monstro moderna. Esta modalidade não conhece
maiores limites que a centralização de capital. (KAUTSKY, 1980, p. 94)
(Grifo nosso).

A manutenção da propriedade da terra e, especialmente, do latifúndio, apresenta-se,


inicialmente, como um obstáculo à reprodução capitalista, como constatou Guimarães (1968).
No entanto, a transposição teórica e mecânica do marxismo europeu para países periféricos com
passado colonial como o Brasil foi um equívoco justamente por estes desempenharem função
diferente na divisão territorial do trabalho. Assim, nesta pesquisa, compreende-se a propriedade
da terra interpretada como obstáculo ao desenvolvimento capitalista na Europa é, no Brasil,
uma contradição interna do próprio modo capitalista de produção, com isso: “[...] a contradição
representada pela terra não é deste último, não é de “fora” do capitalismo; é contradição interna,
constitutiva do próprio modo capitalista de produção” (MARTINS, 1981, p. 172).
O obstáculo ao desenvolvimento capitalista no campo ocorre pela necessidade do
capitalista em utilizar parte do capital no pagamento da renda da terra ao proprietário fundiário.
“Por conseguinte, o proprietário estará imobilizando de forma ‘improdutiva’ uma parte de seu
capital que poderia ser usado na reprodução ampliada por meio da contratação de mão-de-obra,
por exemplo.” (ALMEIDA, 2009, p. 2). O pagamento da renda63 da terra seria um entrave à
reprodução ampliada do capital.
A terra, bem natural finito e, portanto, escasso, é compreendida no interior do modo
capitalista de produção como mercadoria, ou seja, possui preço (MARTINS, 1981). Além disso,
por ser “meio de produção” natural excepcional, a terra permite ao proprietário a cobrança de
tributo por sua utilização, a renda da terra (OLIVEIRA, 2007). Desta maneira, “A licença para
a exploração capitalista da terra depende, pois, de um pagamento ao seu proprietário. Esse
pagamento é a renda da terra.” (MARTINS, 1981, p. 161). Oliveira (2007) complementa: “A

63
O tema sobre a renda da terra não será desenvolvido, sobretudo suas modalidades, tendo em vista as abordagens
de autores clássicos sobre a temática, como Kaustsky (1980), Martins (1981) e Oliveira (2007).
114

propriedade capitalista da terra é renda capitalizada; é direito de se apoderar de uma renda, que
é uma fração da mais-valia social e, portanto, pagamento subtraído da sociedade em geral.” (p.
99).
Logo, no processo de reprodução do capital na agricultura, é necessário o pagamento
pela utilização da terra ao proprietário fundiário, a renda fundiária, como apontado por Martins
(1981). Ainda segundo o autor, essa contradição no modo capitalista de produção recria duas
classes antagônicas. Assim:
Desde o momento em que vimos que a livre circulação e reprodução do capital
encontra na propriedade da terra um obstáculo que só pode ser removido
mediante o pagamento da renda fundiária, vimos também que essa
contradição entre terra e capital cria as condições históricas de duas
classes antagônicas: os proprietários da terra e os capitalistas (MARTINS,
1981, p.165) (Grifo nosso).

No Brasil, no entanto, o capitalismo apresenta singularidades relativas ao monopólio


fundiário, como constata Paulino (2006): “[...] na forma clássica o capitalismo estruturou-se em
oposição ao poder patrimonialista da terra, o mesmo não ocorreu aqui. (p. 59). A subordinação
da terra e sua renda ao capital uniu em uma única pessoa duas classes sociais: o proprietário de
terras e o capitalista (OLIVEIRA, 2001). A lógica do capitalista ao destinar parte do seu capital
na compra de terras está na garantia de cobrar de toda a sociedade a renda e, assim, de acordo
com Martins (1981), quando o capitalista compra a terra “[...] ele converte o seu capital em
renda capitalizada, renda antecipada, em direito de extrair uma renda da terra e o mesmo tempo
direito de recobrar inteiramente e até com acréscimo o seu capital [...].” (p. 167).
Portanto, a renda da terra não advém do trabalho assalariado, pois a terra é um bem
natural, e a cobrança da renda nada mais é do que a apropriação de parte da mais-valia da
sociedade, ou seja, produção de capital. Nessa perspectiva, Martins (1981) indica que “A
produção do capital nunca é capitalista, nunca é produto de relações capitalistas de produção,
baseada pois no capital e no trabalho assalariado.” (p. 170). No Brasil, consolidou-se o
capitalismo rentista, pois se desenvolvem no campo os processos de reprodução (trabalho
assalariado) e produção (renda da terra) do capital. Sendo assim:
Para que a relação capitalista ocorra é necessário que seus dois elementos
centrais estejam constituídos, o capital produzido e os trabalhadores
despojados dos meios de produção. Isto é, a produção do capital não pode ser
entendida nos limites das relações especificamente capitalistas, pois estas são
na essência, o processo de reprodução ampliada do capital. É uma espécie de
acumulação primitiva permanente do capital, necessária ao seu
desenvolvimento. (OLIVEIRA, 2007, p. 11) (Grifo original).
115

No Brasil, a consolidação da aliança terra-capital ocorreu em meio às mudanças da base


técnica na agricultura no decorrer da década de 1970. A modernização da agricultura ou
modernização conservadora (GRAZIANO SILVA, 1982), intensificou a transformação do
proprietário de terras e capitalista em um único sujeito social. Sob o discurso
desenvolvimentista, a agricultura capitalista teria supostamente eliminado os latifúndios no
Brasil, transformando-os em empresas rurais: “Assim, é possível verificar que as propriedades
rurais latifundiárias, antes responsáveis pela miséria e pobreza porque não produziam, se
transformaram em empresas rurais altamente produtivas [...]” (FABRINI; ROSS, 2014, p. 7).
Nesse sentido, o atraso no campo, representado pelo latifúndio, seria eliminado com o
desenvolvimento da agricultura moderna. Sendo assim:
A industrialização era apresentada como a fórmula milagrosa capaz de, por si
só, gerar o desenvolvimento; e o setor agrícola, apontado como o responsável
pelo atraso desses países, deveria ceder a sua posição dominante na economia.
(GRAZIANO SILVA, 1982, p. 16).

Todavia, a modernização dos latifúndios contribuiu na aliança do atraso, unindo


capitalistas e proprietários de terras. Segundo o autor, a modernização e industrialização da
agricultura aliou o grande capital ao latifúndio e:
A industrialização tardia dos países periféricos – entre os quais se incluem os
casos de industrialização da América Latina, que ocorreram na etapa do
capitalismo monopolista – submeteu a agricultura a uma ‘modernização
conservadora’ na qual o grande capital se aliou ao latifúndio, sob a égide do
Estado. E é por isso que sobressai ainda hoje, em nossa agricultura, a
dominação do velho capital comercial e usurário ao lado do moderno capital
financeiro, reproduzindo também este muitas vezes formas arcaicas de
relações de trabalho. (GRAZIANO SILVA, 1982, p. 126).

Desta maneira, ao invés de haver o embate entre burguesia e proprietários fundiários


sobre a irracionalidade da propriedade privada da terra no desenvolvimento do capitalismo, a
aliança terra-capital atuou no sentido da manutenção da propriedade capitalista da terra no
Brasil (OLIVEIRA, 2001). A modernização da agricultura e a possibilidade de cobrar da
sociedade renda da terra transformou capitalistas industriais e urbanos em latifundiários
(OLIVEIRA, 2001). Nessa perspectiva, a terra é entendida como mercadoria, possuindo preço
(MARTINS, 1981) e, para Oliveira (2007), a propriedade da terra tem caráter de reserva de
valor, sendo apropriada, principalmente, para especulação e não para produzir. Assim: “[...] os
capitalistas, em decorrência da inflação quase permanente que durante muito tempo existiu na
economia brasileira, vêem na terra um ‘investimento seguro’, que não se ‘desvaloriza’”
(OLIVEIRA, 2007, p. 64).
116

A propriedade da terra é uma alternativa segura diante da dinâmica do capitalismo e na


variação taxa de juro. Segundo Oliveira (2007), o capitalista estrategicamente decide qual a
melhor forma de aplicar seu capital, no mercado financeiro, no setor produtivo (mais-valia) ou
na compra de terras (renda da terra). Quando a taxa de juros é alta, o capitalista aplica no
mercado de capitais, porém, quando há a tendência de queda, a compra de terras se torna a
opção de maiores ganhos pela possibilidade de extração da renda como apontou Oliveira
(2007).
Além disso, a propriedade da terra no Brasil garante ao seu proprietário o acesso a
subsídios e empréstimos, por meio de crédito rural, aumentados significativamente no decorrer
e após a década de 1970. O monopólio da terra se tornou altamente rentável no país e:
Essas grandes extensões de terras estão concentradas nas mãos de inúmeros
grupos econômicos porque, no Brasil, estas funcionam ora como reserva de
valor, ora como reserva patrimonial. Ou seja, como instrumentos de garantia
para o acesso ao sistema de financiamentos bancários, ou ao sistema de
políticas de incentivos governamentais. Assim, estamos diante de uma
estrutura fundiária violentamente concentrada e, também, diante de um
desenvolvimento capitalista que gera um enorme conjunto de miseráveis.
(OLIVEIRA, 2001, p. 187).

Logo, compreende-se a manutenção da grande propriedade no país como resultado do


desenvolvimento do capitalismo em países periféricos, pois a extração de renda compõe parte
da reprodução ampliada do capital. Nesse interim, a desigualdade no campo e os conflitos
decorrentes da posse e propriedade da terra permeiam a história do Brasil e, por meio da luta
de camponeses, trabalhadores do campo, posseiros, indígenas e quilombolas, os agentes do
Estado são forçados a pôr em pauta a questão agrária e, logicamente, a concentração fundiária
e os problemas decorrentes.
As revoltas no campo brasileiro, como as Ligas Camponesas na região Nordeste,
chamaram a atenção militar para o campo. De acordo com Martins (1994), desde a revolta
camponesa em 1957, no Sudoeste do Paraná, em uma área de fronteira com a Argentina, os
militares estavam atentos à questão agrária brasileira. Segundo o autor, documentos no arquivo
Histórico do Exército Brasileiro, na cidade do Rio de Janeiro, revelam a vigilância detalhada
sobre o que acontecia no campo, citando os termos cangaço e messianismo.
As lutas populares no campo, antes e durante a Ditadura Militar (1964-1985), estavam
em contraposição ao governo repressivo, havendo assim a necessidade de medidas estatais para
amenizar e reprimir as ações sociais. Nessa perspectiva, segundo Martins (1994), na preparação
para o golpe de estado, um grupo de pesquisa sociais do Exército em Recife, do qual participava
o General Golbery do Couto e Silva:
117

[...] tenha produzido um avantajado diagnóstico para um projeto de reforma


agrária, o qual seria, no fim, o projeto implementado logo nos primeiros meses
da ditadura, com a consequente reforma constitucional, cuja prévia
inviabilidade política bloqueara a possibilidade de uma reformulação da
legislação fundiária, de modo a estabelecer limites para o tamanho e uso
da propriedade da terra. Foi esse documento a base do Estatuto da Terra,
aprovado em 1965. (MARTINS, 1994. p. 68/69). (Grifo nosso).

Contraditoriamente, foi no Governo Militar, comandado pelo Marechal Castelo Branco,


que se promulgou o Estatuto da Terra, documento originado a partir das lutas camponesas no
Brasil (STEDILE, 2005). Considerado progressista na época, o Estatuto teve tramitação rápida,
pois não passou pelo Congresso Nacional “[...] que naquela ocasião, sob intervenção e sem
forças políticas, encontrava-se totalmente desfigurado de suas atribuições.” (STEDILE, 2005,
p. 145). A dissuasão do poder das oligarquias rurais sobre o Estado, pelo menos em parte,
durante a ditadura, possibilitou, contraditoriamente, a formulação da Lei 4.504, de 30 de
novembro de 1964 (Estatuto da Terra), atuando sobre o monopólio da terra no país,
classificando o latifúndio e estabelecendo a desapropriação para fins da Reforma Agrária.
O Estatuto da Terra foi:
Um projeto que acabou sendo aprovado por um parlamento em que as
oligarquias e os grandes proprietários de terra estavam anomalamente sobre-
representados em consequência das cassações de mandatos e de direitos
políticos dos parlamentares mais progressistas e empenhados nas reformas
sociais propostas por Goulart. (MARTINS, 1994. P. 69).

No que diz respeito à Reforma Agrária, o Estatuto da Terra não foi efetivo, servindo
apenas como ação paliativa e poucas respostas às lutas do campo. Segundo Oliveira (2007), “A
história dos 20 anos de governos militares mostrou que tudo não passou de ‘uma farsa histórica’,
pois, apenas na década de 1980, foi que o governo elaborou o Plano Nacional da Reforma
Agrária [...]” (p. 121). Afim de amenizar a pressão social, sobretudo na região Sudeste, os
governos militares passaram a orientar projetos de colonização públicas e privadas no interior
do país, sobretudo em áreas da Amazônia e do Cerrado (IANNI, 1979).
Empresas rurais receberam do Estado gigantescas áreas de terras devolutas para
realização projetos de colonização privada que, em grande, parte nunca ocorreram,
constituindo-se em diversos latifúndios. Portanto:
A maioria dos projetos privados de colonização se localizam no Mato Grosso,
principalmente na área da rodovia Cuiabá-Santarém. As áreas da Idesco e da
Sinop constituem mini-Estados sob domínio dos colonizadores, que se
assemelham a barões feudais, fiéis, contudo, ao governo federal. (BECKER,
1994, p.37).
118

Ainda sobre o Estatuto da Terra, de acordo com Mendonça (2004), apenas serviu como
instrumento dos latifundiários para assegurarem a expansão agrícola no campo brasileiro,
facilitando a apropriação de terras devolutas. Mesmo conservador, foi no Estatuto que houve
pela primeira vez a definição de latifúndio, sendo reconhecido pela Ditadura a existência de
grandes propriedades no Brasil. A Lei 4.504 estabeleceu de forma antiquada, em seu artigo 4º,
a definição de imóvel rural, minifúndio, latifúndio e empresa rural. Utilizando critérios
exorbitantes, o Estatuto definiu latifúndio pelo tamanho (600 vezes o módulo fiscal) e pelo uso
da terra, onde o imóvel com o tamanho referido anteriormente estivesse inexplorado com fins
especulativos.
Cada município possui um módulo fiscal (expresso em hectares), correspondendo ao
contexto regional. O município de Corumbá (MS), por exemplo, possui o maior módulo fiscal
do Brasil (110 hectares), enquanto em Brasília (DF) possui o menor, estabelecido em 5 hectares
(INCRA, 2013). O tamanho estabelecido como latifúndio pelo Estatuto da Terra, ou seja, 600
vezes o módulo fiscal, demonstrou o esforço do Governo Militar em esconder a existência de
imóveis rurais com grandes extensões. A intenção é evidenciada pelas legislações posteriores
que deixaram de utilizar o conceito de latifúndio.
Na Constituição pós-Governo Militar, em 1988, ao tratar da Reforma Agrária, nos
artigos 184 ao 191, não há menção a latifúndio, pelo contrário, a legislação exclui as dimensões
dos imóveis rurais como critério para desapropriação. Por conseguinte, a Lei Nº 8.629, de 1993,
que dispões sobre a Reforma Agrária e classifica os imóveis rurais, estabelece critérios para
pequeno (até 4 módulos fiscais), médio (até 15 módulos) e grande imóvel (acima de 15
módulos) deixando no passado qualquer discussão e definição dentro do Estado sobre o
latifúndio no país.
É importante refletir se a compreensão e definição de latifúndio passa apenas pela
delimitação do seu tamanho. Entende-se nesta pesquisa que o latifúndio no modo capitalista de
produção é uma relação social de monopólio da terra para além de seu tamanho definido em
lei. A exploração da terra, as relações de classe e a busca pela renda são características
essenciais na ampliação da compreensão sobre o latifúndio. Portanto, latifúndio é toda grande
propriedade capitalista baseada na exploração do trabalho ou mantida como reserva patrimonial
visando a extração e apropriação da renda da terra.
Compreendendo o latifúndio como sinônimo de grande propriedade capitalista, ou seja,
imóveis com tamanho superior a 1.000 hectares, como também utilizado Oliveira (1991),
observa-se, nos dados sobre estrutura fundiária brasileira do INCRA e do IBGE, a manutenção
119

do latifúndio. O autor, analisando os dados sobre estabelecimentos agropecuários, do IBGE, no


ano de 1985, constata:
No pólo oposto, como todos sabem, está o ‘paraíso dos latifúndios’, que
embora sejam pouco mais de 50 mil em número (estabelecimentos com mais
de 1.000 hectares), ocupam mais de 44% da superfície agrícola do país, ou
seja, mais de 165 milhões de hectares. (OLIVEIRA, 1991, p. 82) (Grifo
nosso).

O IBGE, em sua série histórica, confirma a reprodução do latifúndio no Brasil, pois a


quantidade dos estabelecimentos agropecuários com tamanho acima de 1.000 hectares
aumentou entre os anos de 1920 e 2006. Na tabela 2, demonstra-se o aumento histórico da
quantidade e área dos latifúndios brasileiros.
Em 1920, os estabelecimentos com 1.000 hectares ou mais eram 26.045,
correspondendo a 4% do total e totalizavam 110.980.624 hectares, ou seja, 63% da área total.
Esses números aumentaram em 1970, passando para 36.874 estabelecimentos (1.000 ha ou
mais) equivalendo a 1% dos estabelecimentos e área total de 116.249.591 hectares, ou 40% da
área total. No ano de 2006, o Censo Agropecuário registrou 47.578 estabelecimentos
agropecuários (considerados aqui como latifúndios) correspondendo a 45% do total, totalizando
mais de 150 milhões de hectares, ou 45% da área total.
Embora as porcentagens apresentem redução, de 63% em 1920 para 45% em 2006 é
preciso considerar o aumento da área total agricultável. Desta maneira, os latifúndios no Brasil
concentravam 110.980,624 hectares em 1920, este número saltou para 150.143,096 hectares
em 2006, correspondendo um crescimento da concentração fundiária em 35%.
Brasil: número e área dos estabelecimentos com 1.000 hectares ou mais (1920-
2006)
Ano 1920
Total Estabelecimentos Acima de 1.000 ha %
Número 648.153 26.045 4%
Área (ha) 175.104.675 110.980.624 63%
Ano 1970
Total Estabelecimentos Acima de 1.000 ha %
Número 4.924.019 36.874 1%
Área (ha) 294.145.466 116.249.591 40%
Ano 2006
Total Estabelecimentos Acima de 1.000 ha %
Número 5.175.636 47.578 1%
Área (ha) 333.680.037 150.143.096 45%
Fonte: IBGE, 1920, 1970 e 2006. Organizado pelo autor.
120

Pelo Censo Agropecuário de 2017 (Tabela 3), os dados demonstram que a estrutura
fundiária brasileira pouco se alterou, mantendo-se o monopólio da terra representado pela
grande propriedade. Na tabela 3, apresenta-se a desigualdade no campo, pois os
estabelecimentos com tamanho até 200 hectares, predominando a agricultura camponesa, são
95,1% do total no país, mas ocupam apenas 28,8 da área total. Logo, o grande número de
pequenos estabelecimentos ocupa áreas diminutas.
Em oposição, o latifúndio, constituído por estabelecimentos com tamanho igual ou
superior a 1.000 hectares, compõe apenas 1,01% do total dos estabelecimentos, porém ocupam
47,6% da área total. Comparando-se os dados de 2017 (Tabela 3) com de 2006 (Tabela 2),
verifica-se o aumento dos estabelecimentos com tamanho igual ou superior a 1.000 hectares.
Os estabelecimentos com tamanho igual ou superior a 1.000 ha totalizavam 150.143.096
hectares, mas, passados mais de dez anos, esta classe de área agora ocupa 167.227.511 hectares.
Estas informações confirmam a reprodução do latifúndio, como parte do processo atual de
desenvolvimento desigual, combinado e contraditório do capitalismo no Brasil.

Brasil: Número e área dos estabelecimentos agropecuários (2017)


Grupos de área total Número % Área (ha) %
0 a menos de 100 ha 4.601.402 90,70% 71.804.615 20,44%
100 a menos de 200 ha 218.758 4,31% 29.380.636 8,36%
200 a menos de 500 ha 147.083 2,90% 44.875.314 12,77%
500 a menos de 1.000 ha 54.878 1,08% 38.001.742 10,82%
1.000 a menos de 2.500 ha 34.338 0,68% 51.848.684 14,76%
2.500 a menos de 10.000 ha 14.415 0,28% 63.733.495 18,14%
10.000 ha e mais 2.450 0,05% 51.645.332 14,70%
Total 5.073.324 100,00% 351.289.816 100,00%
Fonte: IBGE, Censo Agropecuário, 2017. Organizado pelo autor.
Os números apresentados pelo IBGE, na tabela 3, demonstram a concentração fundiária
e predomínio do latifúndio no Brasil. Todavia, a classificação do IBGE esconde em seu maior
estrato (de 10.000 hectares e mais) os estabelecimentos com áreas muito superiores, como
aqueles com mais de 50.000 hectares. Entretanto, pelos dados do Sistema Nacional de
Certificação Rural (SNCR) do INCRA, consegue-se extrair informações da existência de
imóveis com dimensões gigantescas, ultrapassando até os limites estabelecidos pelo Estatuto
da Terra de 600 vezes o módulo fiscal do município. Em sua pesquisa, Moraes (1987) havia
identificado 27 latifúndios por extensão no Brasil, com base nos dados do INCRA do ano de
1986. Segundo a autora, a maior área privada no país estava situada no estado do Amazonas,
com área acima de quatro milhões de hectares.
121

No ano de 2018, O SNCR registrou64 424 imóveis com tamanho superior a 100.000
hectares e 887 imóveis rurais com 600 vezes o módulo fiscal de seu respectivo município.
Portanto, o latifúndio não é uma excepcionalidade no Brasil, mas característica marcante no
desenvolvimento da agricultura capitalista brasileira. Atualizados em setembro de 2020, os
dados do SNCR permitem a identificação dos maiores latifúndios do Brasil (tabela 4).
Com os dados apresentados na tabela 4, objetiva apresentar os maiores imóveis rurais,
mas, de toda forma, não dá para distinguir se capitalistas e/ou latifundiários são
proprietários/possuidores de mais de um imóvel, escamoteando-se ainda mais a concentração
fundiária, pois é comum um proprietário fundiário ter mais de um imóvel rural no Brasil.
Apesar das dimensões, grande parte dos imóveis rurais apontados na tabela 4 não possuem
georreferenciamento no SIGEF. Inicialmente essa ausência de registros pode ser associada ao
mencionado escalonamento do processo de georreferenciamento, no entanto, a consulta direta
à página do SIGEF mostra que parte dos imóveis apresentados não conseguem o registro devido
à ausência de registro em cartório. Com isso, fica o questionamento da existência de fato destes
imóveis, considerando a possibilidade de parte destes registros estarem relacionados a
documentos falsos que inflam os números do INCRA e são utilizados para a contratação de
empréstimos e créditos públicos.
Apesar das incertezas sobre os registros, a tabela 4 escancara a concentração fundiária
no país, apontando que a soma dos 20 maiores imóveis registrados no INCRA supera 7 milhões
de hectares. Este tamanho corresponde a 2% do total da estrutura fundiária brasileira registrada
pelo Censo Agropecuário de 2017. Além disso, o tamanho é superior aos estados nordestinos,
como Sergipe, Alagoas ou até mesmo países europeus, como Bélgica, Suíça e Holanda.
Na tabela 4, destaca-se o maior imóvel privado do Brasil, denominado Gleba Santa Rosa
do Tenquê, com 903 mil hectares, localizado no município de Carauari (AM). O imóvel
pertenceu à Associação dos Profissionais Liberais Universitários do Brasil (APLUB), e foi
citado65 na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Grilagem de Terras na Amazônia em
2001, com apropriação eivada de vícios. Segundo o relatório, trata-se de um caso de apropriação
indevida de terras públicas, pois os títulos e matrículas do imóvel não comprovam o processo
legal de destaque do patrimônio público para o particular. Além disso, a constituição do imóvel
não obedeceu ao limite de posse determinada pela legislação da época e:

64
Informação disponível em: <http://www.incra.gov.br/media/docs/estatisticas-imoveis-rurais/brasil-2018.pdf>.
Acesso em: 02 set. 2020.
65
Disponível em: <https://arisp.files.wordpress.com/2009/10/33421741-relatorio-final-cpi-terras-amazonas-
grilagem.pdf>. Acesso em: 02 set. 2020
122

Se hoje esse valor é grande, pode-se imaginar como o foi em 1974. Todavia,
em 1965, data da compra feita pelo Sr. Milhão Magalhães, certamente era
praticamente inacreditável, e, ainda, impensável em são juízo alguém poder
comprovar ou pleitear a posse mansa e pacífica de uma extensão tão
grandiosa, tendo em vista que de conformidade à Lei 89, de 31.12.59, que
legislou sobre as terras devolutas do Estado, a extensão máxima que se
poderia transferir era 3.000 hectares. (2001, p. 111). (Grifo nosso).

A incorporação de terras públicas66 pelos latifundiários e capitalistas é constante no


campo brasileiro, adicionando novas áreas ao mercado especulativo e ao processo produtivo,
auferindo renda e, por consequência, produzindo capital, além de acessar fundos públicos, como
foi o caso da APLUB, que amealhou financiamento para plantio e recuperação de seringais
nativos, em condições financeiras extremamente vantajosas, de prazo, juros e sem correção
monetária, segundo o Relatório da referida CPI.
Durante processo de apropriação das terras, a APLUB transferiu as propriedades
adquiridas na Amazônia para uma empresa com nome semelhante, a APLUB Agro-Florestal
Amazônia SA. Segundo a CPI, neste momento há uma supervalorização dos imóveis.
Desta forma, num prazo de 5 meses, o valor dos imóveis, que na primeira
transação foi de um milhão de cruzeiros, passou para nove milhões de
cruzeiros na segunda transação, para finalmente serem incorporados na
sociedade APLUB Agro Florestal Amazônia S.A. por duzentos e dez milhões
de cruzeiros. (2001, p. 112). (Grifo nosso).

A APLUB atuava como uma previdência complementar e o fundo arrecadado entre


profissionais de Medicina e professores era aplicado em diferentes projetos. A apropriação de
terras na Amazônia fazia parte da diversificação dos “investimentos”, ação característica de
capitalistas objetivando ampliar o lucro se apropriando da renda da terra. Destaca-se ainda que,
entre os empreendimentos, a empresa tornou-se na década de 1990 um dos principais
patrocinadores67 do clube de futebol Sport Clube Internacional de Porto Alegre, estampando o
nome da empresa nos uniformes.
APLUB declarou68 falência em 2020, ficando o imóvel Gleba Santa Rosa do Tenquê
para a empresa sócia BR Arbo Gestão Florestal S/A. A empresa e atual proprietária do imóvel
possui como presidente Nelson Wedekin, deputado federal por Santa Catarina entre 1983 e

66
Ainda neste capitulo será aprofundada a discussão sobre a grilagem no Brasil enquanto meio de apropriação de
terras públicas e de povos indígenas e quilombolas.
67
Informação disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/economia/noticia/2020/09/da-ufrgs-a-camisa-do-
inter-aplub-foi-uma-das-empresas-mais-respeitadas-do-rs-ckfacvou70000012y1y0cclpq.html>. Acesso em: 06
abr. 2021.
68
Informação disponível em:
<https://www.tjrs.jus.br/site_php/consulta/visualiza_documento.php?Numero_Processo=5061910802020821000
1&fase=4&documento=1> Acesso em: 06 Abr. 2021.
123

1987, filiado, à época, ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), e Senador


pelo mesmo partido, entre 1987 e 1995.
O imóvel Sítio Até aqui me Ajudou Deus, localizado em Caroebe (RR), é um dos que
não possuem georreferenciamento nem registro apresentado no SIGEF. Merece destaque a
denominação de “sitio” para o imóvel com mais de 600 mil hectares, costumeiramente utilizada
em minifúndios. Esta situação também é constatada com o imóvel chamado Chácara Bejui, em
Porangatu (GO), com 191.500 hectares.
Dois imóveis em Mato Grosso do Sul figuram entre os maiores do Brasil, a Fazenda
Cachoeira, com 594.484,00 hectares, em Campo Grande (MS), e Fazenda Fortuna, com
301.860,00 hectares, em Nova Alvorada do Sul (MS).
Outro caso é o imóvel denominado Fazenda São José, com registro de mais de 332 mil
hectares, no município de Formosa do Rio Preto (BA), em que sua situação de registro no
SIGEF consta como não confirmado, ou seja, não confirmação do registro do imóvel em
cartório. Situação semelhante é a do imóvel Fazenda Serra Grande, com 306 mil hectares, no
município de Pilão Arcado (BA), também em processo69 de cancelamento do registro no SIGEF
por não haver comprovação do registro em cartório nem exatidão nos limites e confrontações.
Brasil: os 20 maiores imóveis rurais (2020)
Tamanho
Nome do Imóvel Município UF
(hectares)
Gleba Santa Rosa do Tenquê 903.530,79 Carauari AM
Sitio Até Aqui Me Ajudou Deus 612.896,00 Caroebe RR
Fazenda Cachoeira 594.484,00 Campo Grande MS
Sitio Santa Rosa 537.502,00 Alto Paraguai MT
Sítio Cruzeiro-F 532.700,00 Chã Grande PE
Fazenda Riacho dos Bois 524.014,00 Mirador MA
Fazenda Tamburi 500.250,00 Fortuna MA
Província Mineral de Carajás 411.948,80 Parauapebas PA
Fazenda São José 332.890,35 Formosa do Rio Preto BA
Serra do Uruçui 307.904,00 Currais PI
Fazenda Serra Grande 306.303,62 Pilão Arcado BA
Fazenda Fortuna 301.860,00 Nova Alvorada do Sul MS
Fazenda Manicoré 281.343,46 Manicoré AM
Fazenda Larga do Botelho Gleba 12 235.568,00 Niquelãndia GO
Gleba Canadã¡ Ii 215.473,01 Feijó AC
Fazenda Só Pau 198.413,00 Apiacãs MT
Chácara Bejui 191.500,00 Porangatu GO
Fazenda Novo Macapá 190.210,00 Pauini AM
Fazenda Roncador 152.166,12 QUERÊNCIA MT
Seringal Novo Destino 151.280,60 CANUTAMA AM
Total 7.330.957,15
Fonte: SNCR, 2020. Organizado pelo autor.

69
Informação disponível em: <https://sigef.incra.gov.br/requerimentos/detalhe/113a6453-4342-4fb5-9dc6-
8ee7959b45f3/>. Acesso em: 13 jan. 2021.
124

Parte dos latifúndios podem ser mapeados por meio dos dados georreferenciados do
SIGEF e do SNCI como demonstrado no mapa 4. Classificando os imóveis rurais a partir de
suas dimensões, compreende-se a distribuição e a variação de tamanho dos latifúndios no país,
demonstrando o predomínio de imóveis rurais entre 1.000 e 5.000 hectares, principalmente na
região Centro-Oeste. Os imóveis entre 50.000 e 100.000 hectares se destacam na região do
Pantanal brasileiro (Mato Grosso e Mato Grosso do Sul) e no Norte de Mato Grosso. Destaca-
se ainda a região do Matopiba, sobretudo no Oeste da Bahia, onde se pode observar o
predomínio das grandes propriedades. Na região Norte, em especial no estado do Amazonas,
as dimensões dos imóveis chamam a atenção, ultrapassando os 50.000 hectares.
As regiões do país caracterizadas pelo latifúndio são comumente reconhecidas por
serem locais de desenvolvimento e/ou expansão da agricultura capitalista, vinculada ao
agronegócio. Desta maneira, fica claro a permanência do latifúndio no Brasil, no âmago da
questão agrária, pois carrega consigo conflitos decorrentes do processo de apropriação
capitalista de terra. A modernização da grande propriedade, observada por Kaustky (1980) na
Rússia e, também, no Brasil na década de 1970, como bem apresenta Graziano Silva (1982),
contribuiu na aliança terra-capital e ocultou da sociedade o caráter especulativo da propriedade
e do uso da terra. Desta forma, a reprodução do latifúndio ocorre sob a incorporação da renda
na terra ao processo de acumulação capitalista, os imóveis com tamanhos exorbitantes são
formados com objetivo especulativo.
Ainda no mapa, destacam-se imóveis superiores a 600 módulos fiscais de seu município
definidos pela Lei 4.504/64 como latifúndios, localizados nas regiões Norte e Centro-Oeste,
havendo ainda significativa presença nos estados da Bahia, Minas Gerais, Espirito Santo, São
Paulo e Paraná. Claramente, revela-se no mapa, que mesmo usando-se o parâmetro de
exorbitantes 600 vezes o módulo fiscal, a existência de outros imóveis com dimensões ainda
maiores, como no Pantanal.
125

Mapa 4 – Brasil: imóveis rurais por estrato de área (2020)


126

A concentração fundiária provoca diretamente a violência, promovendo conflitos com


camponeses, trabalhadores, posseiros, povos indígenas e quilombolas. A barbárie é assim uma
das faces da reprodução do latifúndio e desenvolvimento do agronegócio no Brasil no século
XXI, como bem apontou Oliveira (2003). Desta forma, a elite brasileira composta por
capitalistas, latifundiários e capitalistas/latifundiários são responsáveis pelos inúmeros
conflitos no campo em nome do desenvolvimento do capitalismo rentista no país.
Exemplo recente, o massacre do município de Pau D’Arco (PA), onde dez camponeses
foram assassinados no ano de 2017 em um acampamento na fazenda Santa Lúcia por policiais
e seguranças particulares, que supostamente pretendiam cumprir um mandado de prisão. O
massacre segue impune, e segundo o MST70, um dos sobreviventes e principal testemunha, o
camponês Fernando Araújo foi assassinado em janeiro de 2021.
O crescente número de conflitos registrados pelo CEDOC Dom Tomás Balduíno ligado
a Comissão Pastoral da Terra, apontam a violência permanente apresentadas no mapa 5. Neste
mapeamento são apresentados assassinatos no campo brasileiro entre os anos de 2010 e 2020
registrados pela CPT. Os dados apontam que grande parte dos assassinatos foram praticados
contra lideranças de lutas de camponeses, posseiros, indígenas e quilombolas. Foram 430
assassinatos no campo no período referido, estes concentram-se principalmente na região Norte,
nos estados do Pará e Rondônia. Destacam-se também os estados na região Nordeste e nos
estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, Roraima e Tocantins. Os
locais dos assassinatos quando comparados com o mapa 4 sobre a estrutura fundiária do Brasil
confirmam que a reprodução do latifúndio e a consequente concentração fundiária estão
intrinsicamente ligados a violência no campo.

70
Disponível em:< https://mst.org.br/2021/02/03/comissao-de-direitos-humanos-repudia-assassinato-de-
sobrevivente-do-massacre-de-pau-darco/> Acesso em 15 jul. 2021.
127

Mapa 5 – Brasil: assassinatos no campo (2010-2020)


128

Aproximando a escala de análise para as áreas de estudo, é possível compreender e


identificar a reprodução do latifúndio no Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS), pois a
territorialização do capital no campo não rompeu com a estrutura arcaica da grande propriedade
e do rentismo, pelo contrário: reforçou-os. Em suma, é a produção e a reprodução ampliada do
capital em escala local.

3.2 A TERRITORIALIZAÇÃO E MONOPOLIZAÇÃO DO CAPITAL NO


CAMPO NOS TERRITÓRIOS RURAIS PARQUE DAS EMAS (GO) E DO
BOLSÃO (MS)

A agricultura adjetivada de moderna, desde o século XIX, apresentava grande


racionalidade, somada ao incremento de maquinários e inovações cientificas, com o objetivo
de aumentar sua produção. Kaustky é ilustrativo ao retratar:
[...] o processo da transformação moderna da agricultura atinge uma altura
particular quando as conquistas da ciência moderna, a mecânica, a química, a
fisiologia vegetal e animal, se transferem das cidades, onde foram elaboradas,
para os campos. (KAUSTKY, 1980, p.29).

Esta agricultura consolidou-se no mundo, adquirindo pequenas especificidades locais,


mas mantendo sua lógica capitalista. No Brasil, o desenvolvimento da agricultura capitalista,
contraditoriamente, reproduziu o latifundio e a concentração de terras, diferentemente dos
países europeus.
Como visto anteriormente, a agricultura capitalista brasileira assenta-se na grande
propriedade, nas práticas podutivas conservadoras e desenvolveu-se tardiamente devido ao
papel periférico do país na estrutura econômica mundial (GRAZIANO SILVA, 1982). A
agricultura capitalista brasileira, na atualidade, comumente ligada às atividades derivadas do
agronegócio, ganhou a roupagem de modernidade a partir de mudanças no contexto do
capitalismo mundial, no entanto, manteve sua estrutura baseada na concentração fundiária.
As mudanças ocorridas no modo capitalista de produção em escala mundial no final do
século XX acabaram por consolidar o capital monopolista no mundo e as alianças burguesas
permitiram grandes fusões empresariais, originando às empresas mundiais (OLIVEIRA, 2012).
Assim:
A mundialização assumiu portanto, as características básicas do capitalismo
monopolista no final do século XX, integrando o capital na escala mundial,
criando as empresas mundiais. Ou seja, a ordem é produzir em ‘qualquer lugar
do mundo’ onde as possibilidades de redução de custo e acesso ao patamar
tecnológico vigente seja possível. Sua hegemonia se deu pelo processo de
consolidação dos oligopólios internacionais denominados empresas
129

multinacionais, sejam elas cartéis, trustes ou monopólios industriais e/ou


financeiros. (OLIVEIRA, 2012, p.3).

A mundialização, segundo Oliveira (2012), permitiu às empresas transnacionais


atuarem por todo o planeta, encontrando geralmente em países periféricos a oportunidade de
aumentarem seus ganhos. Com a modernização da agricultura, o incentivo ao uso de
maquinários e defensivos agrícolas provocaram transformações significaticas no campo
brasileiro, privilegiando a agricultura capitalista em detrimento da camponesa:
Dessa forma, a agricultura sob o capitalismo monopolista
mundializado, passou a estruturar-se sobre três pilares: na produção de
commodities, nas bolsas de mercadorias e de futuro e nos monopólios
mundiais. (OLIVEIRA, 2012, p.6).

Em análise pertinente sobre a chamada modernização da agricultura, Paulino (2008),


valendo-se da contribuição teórica de Harvey (2005), compreende o cerne deste processo como
parte da expansão geográfica capitalista em busca de acumulação.
Mecanização e agrotóxicos constituem-se o fundamento de um paradigma
produtivo em que a tônica é a ampliação progressiva de mercados, [...] a
tecnificação agrícola ocorrida no país, assim como nos demais países
periféricos, inscreve-se num ciclo em que o excedente de capitais ameaça as
taxas de acumulação, e o consumo produtivo na agricultura, composto por
máquinas, agrotóxicos e fertilizantes, surge como alternativa de ajuste.
(PAULINO, 2008, p.221).

Portanto, a expansão geográfica capitalista neste período promoveu o surgimento e


consolidação de grandes corporações ligadas à agricultura no Brasil e entre outros países. A
velha estrutura da agricultura capitalista, baseada no latifundio, passou a receber novas
tecnolgias interligando grandes impérios, mercados financeiros, exploração do trabalho e
produção de commodities. A adição de novas tecnologias e a relação estreita com o mercado
mundial fez com que a agricultura capitalista brasileira transfigurasse-se. mascarando a
reprodução do latifundio e a violência, resultando na manutenção da desigualdade no campo.
A industrialização e a mundialização da agricultura brasileira resultaram de uma nova
ordem mundial (OLIVEIRA, 2016), estbalecendo a associação entre a burguesia nacional e
internacional, transformando empresas nacionais em multinacionais que se territorializam
estrategicamente em diferentes países em busca de lucro e renda. Assim: “[...] o mercado da
mundial não é somente o dos países industrializados; a mundialização do capitalismo uniu
dialeticamente, o mercado dos países altamente industrializados com todos os demais de média
ou pequena presença industrial.” (OLIVEIRA, 2016, p. 102).
Desta forma, empresas transnacionais passaram a atuar no campo brasileiro tanto
diretamente no processo produtivo como também na circulação das mercadorias. Como escrito
130

anteriormente, o processo de expansão e desenvolvimento do capitalismo no Brasil, além de


sujeitar a agricultura à industria, ocorre sob a perspectiva de cobrar um tributo social, a renda
da terra. A mundialização da agricultura brasileira consolidou a reprodução ampliada do capital
articulando a exploração do trabalho assalariado e a apropriação da renda da terra.
Analisando o desenvolvimento do capital no campo e sua relação com a renda da terra,
Oliveira (2012) compreende a ocorrência de duas formas distintas de atuação do capital no
campo: territorialização dos monopolios e monopolização do território pelo capital. Quando a
possibilidade futura de extrair renda da sociedade é alta, o capital opta estrategicamente em
adiantar o pagamento da renda ao proprietário fundiário, territorializando-se. Sendo assim:
A territorialização dos monopólios atua simultaneamente, no controle da
propriedade privada da terra, do processo produtivo no campo e do
processamento industrial da produção agropecuária e florestal (silvicultura).
Ou seja, o proprietário da terra, do capital agrícola e do capital industrial é
mesma pessoa física ou jurídica. (OLIVEIRA, 2016, p. 127).

Quando o custo produtivo é alto e a possibilidade de renda é baixa, o capital monopolista


subordina a produção de latifundiários e/ou capitalistas produtores e camponeses. Sendo a renda
baixa, como no caso dos setores de alimentos de consumo interno generalizado, “[...] o capital
não se torna proprietário da terra, mas cria condições para extrair o excedente econômico, ou
seja, especificamene renda aonde ela aparentemtente não existe.” (MARTINS, 1981, p. 175).
A subordinação ocorre no monopolio de mercadorias necessárias à produção no campo
ou no controle da comercialização dos produtos. Portanto:
As empresas monopolistas atuam como players no mercado futuro das bolsas
de mercadorias do mundo, e, às vezes controlam a produção dos agrotóxicos
e fertilizantes. Este processo gera o controle monopolístico do território
(monopolistic control of the territory), ou seja, as empresas monopolizam a
circulação das mercadorias sem precisarem territorializar os monopólios.
(OLIVEIRA, 2016, p. 233).

Estas duas estratégias não ocorrem separadamente e, assim, simultaneamente, empresas


se territorializam no campo e outro conjunto especializado domina o mercado por meio de
venda de insumos e máquinas agrícolas e até mesmo na comercialização do campo. Em
determindos cultivos exemplificam-se as estratégias de atuação do capital no campo. Oliveira
(2016) aponta, como exemplos, os setores sucroenergético e o de silvicultura. Estes setores
passaram, a partir da crise de 2008, a se reorganizar por meio de fusões, unindo capital,
indústrias e propriedades rurais, realizando a fusão territorial monopolística (OLIVEIRA,
2016). Sendo assim:
131

Neles ocorrem as soldagens das alianças de classes e frações de classes entre


os capitalistas industriais, que podem ser também, capitalistas agrícolas e
proprietários de terra, e os demais proprietários de terra que podem ser
também, capitalistas agrícolas fornecedores de matéria prima das unidades
industriais, ou mesmo simples proprietários de terra rentistas que as cedem
sob contratos de arrendamentos, ativando ou desativando unidades industriais,
visando simultaneamente o uso. (OLIVEIRA, 2016, p.157).

Na monopolização do território, o autor indica a apropriação da renda da terra do setor


de grãos, pois os produtores capitalistas subordinam sua produção às empresas
comercializadoras mundiais e nacionais. Assim, “No Brasil, monopolizam o setor de grãos, as
empresas mundiais Cargill, ADM, Bunge, LDC Commodities; Cofco, Los Globos, El Tejar e
Enrique Bañuelos; as empresas nacionais Caramuru, Amaggi, Granol e etc.” (OLIVEIRA,
2016, p.233). Neste processo, a renda da terra é apropriada na circulação da produção,
ocorrendo também na produção camponesa de leite, hortifruti e outros.
Portanto, diante destas ações, a questão agrária tem como “centro” o desenvolvimento
desigual, contraditório e combinado do capitalismo no campo, reproduzindo o latifundio
(concentração fundiária) e o campesinato como classe social: “Assim, o desenvolvimento
contraditório do modo capitalista de produção, particularmente em sua etapa monopolista, cria,
recria, domina relações não-capitalistas de produção como, por exemplo, o campesinato e a
propriedade capitalista da terra.” (OLIVEIRA, 2007, p.11). Conforme Paulino (2008), é nestes
meandros que a renda camponesa é apropriada pelo capital e, assim, frações do território, onde
ocorrem relações tipicamente não-capitalistas, têm sua lógica subordinada à produção do
capital. Martins (1991) exemplifica a monopolização do territorio pelo capital: “[...] os
lavradores passam a trabalhar pra essas empresas nos chamados sistemas integrados, embora
consevando a propriedade nominal da terra. Só que, nesse caso a parcela principal dos ganhos
fica com os capitalistas”. (p.51).
Por essa razão, no Brasil a renda da terra é parte importante dentro do modo capitalista
de produção, pois o capitalista objetiva apropria-la, seja tornando-se proprietário fundiário ou
na circulação das mercadorias produzidas por relações tipicamente não capitalistas.
Ao abrir mão do controle fundiário e concentrar-se na monopolizção do território, o
capital permite que outras relações tipicamente não capitalistas, como o campesinato, se
reproduzam no interior de seu desenvolvimento. Assim, em áreas relativamente diminutas, a
agricultura camponesa, em que os sujeitos são donos de sua força de trabalho e ao mesmo tempo
da terra, se desenvolve, não em busca do lucro, mas da reprodução familiar. Esta interpretação,
fundanda nas contribuições de Martins (1981) e Oliveira (1991), explica como o campesinato
132

permanece como classe social dentro do capitalismo. Assim, “[...] o processo contraditório de
reprodução ampliada do capital além de redefinir antigas relações de produção, subordinando-
as à sua reprodução, engendra relações não capitalistas igual e contraditoriamente necessárias
à sua reprodução.” (OLIVEIRA, 2007, p. 11).
No Centro-Oeste brasileiro houve amplo processo monopolização do território por
diferentes empresas capitalistas no campo, como as vinculadas a grãos (soja e milho), aos
frigoríficos, e a territorialização de empresas de agrocombustíveis derivados da cana e, mais
recente, as de eucalipto para a produção de celulose. Essa expansão acelerou o processo de
crescimento da população urbana nesta região e dotação de infraestrutura básica para o
desenvolvimento da agricultura capitalista integrada ao mercado internacional (BERNARDES,
2007). O caminho trilhado para a territorialização do agronegócio da soja no Centro-Oeste
possui como figura central o Estado brasileiro que, objetivando amenizar as desigualdades
decorrentes do capitalismo, induziu o desenvolvimento da agricultura capitalista nesta região
por meio de infraestrutura e oferecimento de subsídios fiscais (PEIXINHO, SOUSA, SCOPEL,
2009).
A incorporação do Cerrado brasiliero pela agricultura modernizada se fez sob o discurso
do Estado brasileiro de ocupação de “vazios demográficos” na década de 1970, mascarando a
expropriação de camponeses, posseiro,s indígenas e quilombolas. Sobre o desenvolvimento do
capital no Cerrado brasileiro, Mendonça (2004, p.198) afirma que “A noção de ocupação
significava que não havia nada nem ninguém, portanto, não havia história nesses territórios,
podendo ser açambarcados conforme os interesses do capital, escudado no aparato político e
financeiro do Estado brasileiro.”.
O avanço sobre este bioma, ocorreu a partir de diferentes fatores, dentre eles, o baixo
preço da terra, motivado pela pouca fertilidade do solo para a agricultura, predominando o uso
da terra para pastagem. Por conseguinte, a adptação do Cerrado por meio de novas tecnologias
possibilitou a expansão da agricultura (DINIZ, 2006) e a territorialização de proprietários
fundiários e capitalistas integrados às estratégias do agronegócio. Portanto:
De outro, os sulistas que, com experiência na agricultura moderna, já iniciada
no Sul, com o cultivo de trigo e de soja e pela disponibilidade de recursos
técnicos e tecnológicos, adquirem as terras, a um preço muito barato, e iniciam
o processo de transformação das paisagens de Cerrado em grandes campos de
cultivo e de criação. (MENDONÇA, 2004, p. 196).

Neste contexto, ocorreu a territorialização de agroindústrias no Cerrado, especialmente


empresas ligadas ao processamento de soja, algodão, frigoríficos e usinas sucroalcoleiras
(DINIZ, 2006). Segundo o autor, há também a consolidação de infraestrutura: “As grande
133

empresas, principalmente as multinacionais, implataram uma rede estratégica de silos e


armazéns, desde o início acompanhando e, ao mesmo tempo, estimulando o avanço das frentes
de agricultura comercial” (2006, p. 171).
No Parque das Emas (GO), as transformações ocorridas no período foram ocasionadas
pela territorialização de empresas e capitalistas produtores de soja e cana-de-açúcar. Deste
modo, o Sudoeste Goiano, caracterizado pelo latifundio e pecuária de corte, passou, a partir das
décadas de 1970 e 1980, a receber sob uma roupagem de moderna a agricultura capitalista
centrada na produção de soja, favorecida também pelas condições topográficas plana e
climáticas (verões quentes e chuvosos) para tal cultivo (RIBEIRO, 2003).
O aumento exponencial dos plantios de soja no Sudoeste goiano ocorreram em sintonia
com a melhoria de infraestrutura e incentivos fiscais atraindo grandes produtores, empresas
processadoras e comercializadoras, além de fornecedores de implementos e maquinários
agrícolas e insumos de empresas nacionais e multinacionais. Assim, “A dinamicidade da
economia regional e local é modificada uma vez que a cultura da soja é dotada da capacidade
de movimentação de grandes somas de capital, colocando a região em relação estreita com o
mundo.” (RIBEIRO, 2003, p.58).
Na mesma perspectiva, em Mato Grosso do Sul, o cultivo de soja iniciou-se a partir da
década de 1970 e se expandiu, principalmente na região Centro-Sul do estado, sobre áreas
anteriormente destinadas a pastagens e vegetação nativa (FACCIN, 2017). Este processo se
acentuou no início do século XXI:
Ao analisarmos a distribuição espacial da evolução da quantidade produzida
de soja em Mato Grosso do Sul [...], podemos perceber o destaque do ano de
2005, especialmente a grande produção verificada na região de Dourados
(Dourados, Maracaju, Ponta Porã, Sidrolândia e Rio Brilhante) e alguns
municípios da região norte (com destaque para São Gabriel d’Oeste,
Chapadão do Sul e Costa Rica). Pode-se determinar que a expansão da
quantidade produzida se dá de maneira horizontal e vertical, ou seja, através
do aumento da área plantada e também pela intensificação tecnológica, que
possibilita aumento da quantidade produzida por unidade de área
(produtividade da terra, do trabalho e do capital). (FACCIN, 2017,p.41).

A consolidação do cultivo da leguminosa em ambos os estados (Goiás e Mato Grosso


do Sul) tem como pilares centrais o mercado internacional e o permanente incentivo creditício
do Estado. A conjuntura ideal permitiu a instalação de grandes empresas comercializadoras e
processadoras, como os grupos Maggi, Bunge e Bom Futuro, monopolizando parte dos
territórios rurais.
Portanto, no início da década dos anos 2000, incentivos fiscais e creditícios propiciaram,
também, a ampliação do cultivo de cana-de-açúcar e, consequentemente, a instação de usinas
134

sucroenergéticas nos estados de Goiás e Mato Grosso do Sul. Teixeira (2015), analisando a
expansão da cana-de-açúcar, apresenta parcialmente o contexto econômico deste processo:
Em meados da década de 2000, houve o fechamento de parte das exportações
de carne bovina devido a focos de aftosa encontrados e a queda do preço da
carne. Além disso, as seguidas frustrações de safra e a queda nos preços da
soja também fizeram com que os produtores optassem pela cana-de-açúcar.
(TEIXEIRA, 2015, p.108).

A expansão do cultivo de cana-de-açúcar ocorreu, principalmente, na porção Sul do


estado de Goiás (SILVA, 2016) e o aumento do plantio seguiu a lógica de localizar-se próximo
às unidades fabris, afim de facilitar e diminuir os custos de produção. Assim, as empresas
apropriaram e/ou controlam as terras em seu entorno por meio de compra ou arrendamento.
Destaca-se:
[...] a capacidade de investimento do setor e a disponibilidade dos
proprietários em colocar no mercado as terras localizadas nas imediações das
unidades. Assim, o quadro que se desenha é o de redução da participação de
terras próprias e a priorização do arrendamento/parceria como estratégia de
controle sobre a terra. Não significa dizer que o setor sucroenergético está
abandonando a sua histórica característica de verticalização, mas utilizando
estratégias de territorialização que garantam, ao mesmo tempo: o controle
sobre a terra e o território, a apropriação da renda da terra e a capacidade de
reorientar investimentos e usos de diferentes parcelas do território. (SILVA,
2016, p.178).

Em Mato Grosso do Sul, limites foram impostos aos produtores de cana-de-açúcar na


expansão de seus cultivos devido ao zoneamento agroecológico71 do estado, o qual proibiu tal
cultivo em municipios da Bacia Hidrográfica do Paraguai, no Pantanal. Desta forma, seu cultivo
avançou sobre áreas de pastagens, concentrando-se na região Centro-Sul do estado
(TEIXEIRA, 2015) e de forma mais rarefeita na região Leste.
Mais recentemente, em Mato Grosso do Sul, sobretudo na região Leste, houve a
territorialização do complexo de eucalipto-celulose-papel (KUDLAVICZ, 2011) com a
construção do complexo fabril (Projeto Horizonte), em 2006, resultante de troca de ativos entre
as empresas Votorantim Celulose e Papel e International Paper, dando origem a empresa Fibria
Celulose S/A (PERPETUA, 2012). Concluída em 2009, a Fibria se tornou a maior produtora
de celusose de fibra curta do mundo (PERPETUA, 2012), sendo responsável pela ampliação
do plantio de eucalipto na região Leste, expandindo novamente devido a construção de nova
fábrica no ano seguinte.

71
O documento está disponível em: <http://www.mma.gov.br/estruturas/182/_arquivos/zaecana_doc_182.pdf>.
Acesso em: 27 out 2020.
135

Outra empresa territorializou-se em Três Lagoas (MS), instalando a planta fabril para
produção de celulose, além de compra e arrendamentos de terras para o plantio da matéria-
prima, o eucalipto. Assim:
Em 2010, a empresa Eldorado Brasil, controlada pelo grupo JBS e pela MCL
Empreendimentos, e sediada em Três Lagoas, também lançou a pedra
fundamental de sua fábrica de celulose no município, um projeto ainda mais
audacioso orçado em cerca de R$ 5,1 bilhões, R$ 2,7 dos quais financiados
com aportes públicos via BNDES. (PERPETUA, 2012, p. 34).

Posteriormente, a Eldorado Brasil foi comprada pela Papper Ecxelence em 2017, sendo
atualmente dona marjoritaria desta agroindustria.
A territorialização das duas fábricas e o controle territorial via compra ou
arrendamentamento de terras em municípios vizinhos, foram os motivos para o jogo midiático72
dar o “título” para Três Lagoas (MS) de “Capital Mundial da Celulose” (PERPETUA, 2012).
Este movimento também teve a participação das empresas capitalistas e do Estado, pois, em
abril de 2013 foi promulgada a Lei estadual 4.336 que instituía oficialmente o título à Três
Lagoas (MS). Ressalta-se a continua expansão deste complexo com a construção e ampliação
de suas fábricas e a recente aquisição, em 2019, da Fibria pela empresa Suzano, gigante mundial
neste setor.
As transformações no campo, ocorridas no Centro-Oeste brasileiro, sobretudo no Parque
das Emas (GO) e no Bolsão (MS), não causaram rupturas com a agricultura capitalista e suas
caracteristas anteriormente existentes de propriedade fundiária e de seu uso. As diferentes
formas da agricultura capitalista se apresentam territorializadas e disputam, de acordo com suas
estratégias, o controle da terra. No mapa 6, demonstra-se a presença da agricultura capitalista
no Parque das Emas (GO) e no Bolsão (MS), no ano de 2018, por meio dos dados/imagens do
satélite LandSat 8.
Diante do processo histórico de territorialização da agricultura capitalista e de empresas
no campo, diferentes cultivos foram desenvolvidos nas áreas estudadas, destacando-se a soja, a
silvicultura de eucalipto e a cana-de açúcar. A presença de pastagens, remanecesnte da pecuária
extensiva de periodos anteriores, ainda possui significativa presença nas duas áreas. No mapa
6 ainda se demonstra a localização das agroindustrias instaladas: as usinas sucroenergéticas no
Parque das Emas e no Bolsão e as empresas de celulose e papel no municpio de Três Lagoas
(MS), próximas aos plantios de cana-de açúcar e de eucalpito, respectivamente.

72
Exemplo deste movimento, a revista Época dedicou um editorial à cidade. Disponível
em:<http://epocanegocios.globo.com/Revista/Common/0,,ERT177058-16642,00.html>. Acesso em: 09 fev 2020.
136

A área total do Parque das Emas (GO) e do Bolsão (MS) é de 76.322,37 Km² e, em
2018, as áreas de pastagens ocupavam 47,24%, o que totaliza mais de 3,5 milhões hectares
destinados à pecuária bovina, sobretudo de corte. O controle destas áreas, como reserva de
valor, pode ser interpretado como estratégico no contexto de ascenção e predomínio do cultivo
de soja e de eucalipto nas duas áreas estudadas. Assim, capitalistas latifundiários aguardam o
momento ideal para a venda ou o arrendamento de suas terras e a realização da renda.
De acordo com os dados georreferenciados, a soja ocupa 34,83% da área estudada, nos
dois estados, correspondendo a 2,6 milhões de hectares. Este cultivo se concentra no Parque
das Emas (GO), especialmente nos muncipios de Jataí (GO) e Chapadão do Céu (GO). A
silvicultura está presente em 5,93% da área estudada, sobretudo em Mato Grosso do Sul,
equivalendo a 452 mil hectares. O cultivo de eucalipto localiza-se nos municipios de Três
Lagoas (MS), Selvíria (MS) e expande-se para os municipios vizinhos, como Água Clara (MS)
e Brasilândia (MS). Por fim, o cultivo de cana-de-açúcar está presente em 2,41% das duas áreas
estudadas e localiza-se, principalmente, em torno das plantas industriais em Mineiros (GO),
Serranópolis (GO) e Aparecida do Taboado (MS).
137

Mapa 6 - Territórios rurais Parque das e Emas e do Bolsão: Uso e ocupação do solo 2018
138

Associado à territorialização do capital no campo e o avanço da agricultura capitalista,


um conjunto de empresas mundiais ligadas à venda de insumos, processamento,
comercialização e prestação de serviços passaram a atuar sem, necessariamente, comprar ou
arrendar terras agricultáveis. Sendo assim:

A monopolização do território é desenvolvida pelas empresas de


comercialização e/ou processamento industrial da produção agropecuária, que
sem produzir no campo, controlam através de mecanismos de subordinação,
camponeses e capitalistas produtores do campo. As empresas monopolistas
atuam como players no mercado futuro das bolsas de mercadorias do mundo,
e, as vezes controlam a produção dos agrotóxicos e fertilizantes. (OLIVEIRA,
2012, p.10).

Nessa estratégia, o monopólio permite que parte da renda da agricultura seja apropriada
por empresas mundiais, pois a necessidade de se manter dentro de um ciclo produtivo cada vez
mais competitivo exige constante renovação das tecnologias. Nesse processo, empresas
mundiais monopolizam significativas áreas dos territórios rurais Parque das Emas (GO) e do
Bolsão (MS).
A figura 5 demonstra a presença de empresas mundiais do ramo de comercialização de
maquinários para a agricultura, pincipalmente a capitalista. Outras empresas, como a Syngenta
e a Monsanto, também estão presentes no Centro-Oeste brasileiro e na área estudada,
responsáveis pela revenda de insumos químicos e sementes.

Chapadão do Sul (MS): Revendedoras John Deere e Case Agriculture

Fonte: Trabalho de campo, 2019.

Além da apropriação da renda da terra na comercialização de insumos agrícolas e


máquinas, a agricultura capitalista, além da camponesa, também tem parte de sua renda
apropriada na circulação, principalmente por empresas responsáveis pela armazenagem e pela
comercialização de soja. Empresas mundiais, como a Cargill S/A, Bunge S/A e Louis Dreyfus
Company estão presentes nas áreas estudadas, monopolizando a comercialização de grãos.
139

A Cooperativa Agroindustrial dos Produtores Rurais do Sudoeste Goiano (COMIGO) é


uma das mais expressivas na compra de soja e revenda de insumos agrícolas para médios e
grandes produtores no Parque das Emas (GO). Esta empresa intermedia a comercialização entre
as empresas mundiais citadas e os capitalistas produtores e até mesmo camponeses.
A Comigo realiza anualmente uma das maiores feiras agropecuárias do Centro-Oeste, a
“Tecnoshow” (figura 6), e expõe os mais diversos tipos de insumos e novas tecnologias, além
de movimentar73 R$ 3,4 bilhões (três bilhões e quatrocentos mil reais) em negociações em sua
edição de 2019. Na mesma edição, a organização do evento registrou a presença de 118 mil
pessoas entre visitantes, palestrantes e funcionários da feira.

Rio Verde (GO): Vista panorâmica da Feira Tecnoshow Comigo - 2019

Fonte: tecnoshowcomigo.com.br.

Com a “Tecnoshow”, o agronegócio demonstra sua força no Centro-Oeste brasileiro e


no Parque das Emas (GO). Realizando shows sertanejos com entrada gratuita, a feira se
popularizou e consolidou no ideário da população o sucesso da agricultura capitalista. Essa
estratégia, evidencia a hegemonia das classes dominantes nos territórios estudados. Sobre
ideologia, Rago Filho (2015) aponta como as classes hegemônicas agem na elaboração da
representação de seus interesses como ideais universais, uma ideologia.
No âmbito da sociedade classista, a classe que controla os meios de produção
material também controla os meios espirituais. Assim, as ideias dominantes
são a expressão ideal da dominação burguesa. O Estado dos proprietários se
apresenta, então, como comunidade ilusória, que necessita das representações
ideológicas para impor às maiorias seus interesses particulares como
‘universalidade’. (RAGO FILHO, 2015, p. 47).

73
Informação obtida pela reportagem do Jornal Globo. Disponível em:
<https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2019/04/12/tecnoshow-chega-ao-fim-movimentando-r-34-bilhoes-em-
rio-verde-segundo-organizadores.ghtml>. Acesso em: 09 fev. 2020.
140

A construção no imaginário popular de um setor moderno, sustentável e altamente


produtivo no Parque das Emas (GO), é desdobramento de uma estratégia de marketing adotada
por empresários do setor em todo o Brasil a partir da década de 2010.
De acordo com Bruno (2012):
Ao mesmo tempo, essa ‘fabricação’ imagética contribui para legitimar o
agronegócio – retratado como responsável pela produção de alimentos para
um ‘planeta faminto’ – perante a sociedade e fortalecer os laços de
sociabilidade e de poder existentes no interior das cadeias produtivas
agroindustriais. (p. 03).

Na mesma perspectiva, em Três Lagoas (MS), onde territorializaram-se duas grandes


plantas industriais para a fabricação de celulose e papel, também se busca por meio de eventos
a construção de uma imagem positiva do setor. Iniciado em 2011, o evento “Três Lagoas
Florestal” objetiva atrair o apoio popular para o “desenvolvimento” no campo. Segundo a
prefeitura74 de Três Lagoas (MS), a realização do evento “[...] têm alguns pontos chaves que
devem ser trabalhados com maior ênfase durante toda a programação, entre eles a apresentação
dos benefícios sociais, econômicos e ambientais do desenvolvimento sustentável florestal”.
Por trás do discurso desenvolvimentista, há a clara intencionalidade em apresentar a
população uma suposta modernidade produtiva na agricultura, diferente da tradicional pecuária
presente em todo o Bolsão (MS), marcada pela baixa geração de empregos e também pela
degradação ambiental. Kudlavicz (2011), analisando a territorialização das empresas de
eucalipto-celulose-papel em Três Lagoas (MS), observa a estratégia da empresa Fibria (atual
Suzano) em propagandas expostas nos vagões que exportam a celulose produzida. Nos vagões,
a empresa, por meio de frases curtas, como “Preserve os recursos naturais”, transfere a
responsabilidade ambiental para toda a população. Sendo assim:
Mas o que intriga pela ousadia e agride pela falta de ética é que essas
mensagens partem de uma empresa cuja atividade industrial está assentada
num dos processos mais poluidores do ambiente no mundo. Os processos
industriais de produção de celulose e papel são aqueles que mais eliminam
produtos químicos extremamente nocivos à atmosfera, as águas, ao solo e aos
seres vivos. (KUDLAVICZ, 2011, p. 129).

Assim, apesar da ideologia do agronegócio tentar apresentar uma roupagem moderna


junto com o discurso desenvolvimentista, a territorialização do capital ocorre sobre bases
arcaicas de exploração da natureza e de concentração fundiária. O monopólio da terra continua

74
Disponível em:<http://www.treslagoas.ms.gov.br/feira-florestal-sera-realizada-em-tres-lagoas/>. Acesso em:
25 set. 2020.
141

sendo elemento central da produção e da reprodução ampliada do capital e, neste sentido, o


latifúndio continua sendo reproduzido, contraditoriamente, pelas relações capitalistas.

3.3 A REPRODUÇÃO DO LATIFÚNDIO NO PARQUE DAS EMAS (GO) E


BOLSÃO (MS)

A reprodução do latifúndio e a concentração fundiária são características consolidadas


no Brasil devido ao caráter rentista que a terra possui no país, assim “[...] é o monopólio
fundiário que potencializa o tributo, pois quanto menos proprietários, maior a possibilidade de
uso produtivo condicionado a elevadas taxas da renda da terra.” (PAULINO e ALMEIDA,
2010, p.83). A territorialização do agronegócio, na aliança terra-capital, possibilitou a
reprodução da grande propriedade no Brasil:
Portanto, agronegócio e latifúndio estão unidos pela acumulação capitalista
rentista, e a produção agropecuária (mercadorias) não está colocada no centro
do processo para ambos os segmentos, enfim, o Brasil é mais latifundiário do
que se pensa. (FABRINI e ROOS, 2014, p. 27).

Além da renda, a terra funciona como reserva de valor e/ou reserva patrimonial,
garantindo a latifundiários, capitalistas e grupos econômicos a possibilidade de acesso a
financiamentos e incentivos governamentais (OLIVEIRA, 2001), como no caso da APLUB
apresentado no início deste capítulo. Assim:
[…] a chamada modernização da agricultura não vai atuar no sentido da
transformação dos latifundiários em empresários capitalistas, mas, ao
contrário, transformou os capitalistas industriais e urbanos – sobretudo do
Centro-Sul do país – em proprietários de terra, em latifundiários. A política de
incentivos fiscais da Sudene e da Sudam foram os instrumentos de política
econômica que viabilizaram esta fusão. Dessa forma, os capitalistas urbanos
tornaram-se os maiores proprietários de terra no Brasil, possuindo áreas com
dimensões nunca registradas na história da humanidade. (OLIVEIRA, 2001,
p.186).

No Parque das Emas (GO) e no Bolsão (MS), a propriedade capitalista da terra também
se mantém concentrada, como demonstrado nas tabelas 5 e 6, sobre a estrutura fundiária entre
os anos 2006 e 2017. A territorialização de grandes empreendimentos no campo, como
apresentado no mapa 6, não promoveu mudanças na estrutura fundiária após mais de dez anos,
ao contrário, fez com que a propriedade privada da terra se mantivesse imprescindível para
quem objetiva a extração de renda da terra e o lucro.
Portanto, no Parque das Emas (GO), as grandes propriedades, compreendidas como
latifúndios, ocupam a maior parte da área rural, e se mantiveram praticamente inalterável entre
142

os censos agropecuários de 2006 e 2017, como demonstrado na tabela 5. No ano de 2006,


poucos estabelecimentos, 12,9%, no estrato acima de 1.000 hectares (ha), ocupavam 58,3% da
área total e, 10 anos depois, o censo de 2017 indica que a área ocupada pelos estabelecimentos,
no mesmo estrato de área (acima de 1.000 ha), permaneceu praticamente inalterada,
compreendendo 57,46% do Parque das Emas (GO).
Em números absolutos, são 592 estabelecimentos, com dimensões superiores a 1.000
hectares, controlando 1.351.303 de hectares, em 2006 e, em 2017, foram registrados 487
estabelecimentos concentrando 1.114.459 hectares. Portanto, houve maior concentração
fundiária no período, pois o tamanho médio dos estabelecimentos saltou de 2.282,6 hectares,
em 2005, para 2.288,41 hectares em 2017.
Em contrapartida, os estabelecimentos de até 200 hectares, considerados como
pequenos, são maioria no Parque das Emas (GO) e, no período analisado (2006-2017), a área
ocupada é pequena quando comparada aos outros estratos de área. Em 2006, foram registrados
2.311 estabelecimentos agropecuários de até 200 ha, representando 50,36% do total de
estabelecimentos. No entanto, ocupavam apenas 6,47% da área, correspondendo a 149.920
hectares. Em 2017 houve o aumento no número de estabelecimentos até 200 hectares, 3.146,
ou 62,24% do total, ocupando 162.754 hectares da área total. Portanto, a variação do tamanho
médio neste estrato é evidência, também, da concentração fundiária nos municípios do Parque
das Emas, pois era de 64,87 hectares, em 2006, e diminuiu para 51,73 hectares, em 2017.

Parque das Emas (GO): Número e área dos estabelecimentos agropecuários (2006 -
2017)
2006 2017
Grupos de área
Total Estab. Estab Área Área Estab. Estab Área Área
Nº (%) (ha) (%) Nº (%) (ha) (%)
Até menos de 10
223 4,86% 967 0,04% 593 11,73% 2.438 0,13%
ha
10 a menos de 200
2.088 45,50% 148.953 6,43% 2553 50,50% 160.316 8,27%
ha
200 a menos de
1.023 22,29% 338.617 14,62% 903 17,86% 297.406 15,33%
500 ha
500 a menos de
663 14,45% 476.684 20,58% 519 10,27% 364.912 18,81%
1.000 ha
1.000 a menos de
461 10,05% 688.686 29,73% 355 7,02% 588.635 30,35%
2500 ha
2.500 ha e mais 131 2,85% 662.617 28,60% 132 2,61% 525.824 27,11%

Total 4.589 100,00% 2.316.524 100,00% 5.055 100,00% 1.939.531 100,00%


Fonte: IBGE - Censo Agropecuário 2006 e 2017. Organizado pelo autor .

A dinâmica da estrutura fundiária analisada, entre os anos de 2006 e 2017, também


indica o aumento de concentração de terras no Bolsão (MS), como demonstrada na tabela 6.
143

Em 2006, os estabelecimentos no estrato superior a 1.000 ha eram apenas 997, 16,6% do total
de estabelecimentos, mas concentravam 69,74% do total da área. Em 2017, o IBGE registrou o
aumento da área ocupada pelos estabelecimentos com tamanho superior a 1.000 ha. Assim,
houve uma redução na quantidade de grandes estabelecimentos, 879 (14,15%), porém, a área
total ocupada por estes aumentou para 70,44% em um evidente processo de aumento da
concentração fundiária.
Os números absolutos indicam o aumento da concentração fundiária, pois, em 2006,
havia 997 estabelecimentos com tamanho igual ou superior a 1.000 hectares, concentrando
2.785.251. Enquanto que, em 2017, havia 879 estabelecimentos no mesmo estrato de área,
controlando 2.705.763 hectares. Assim, a área média dos estabelecimentos saltou de 2.793,631
hectares, em 2006, para 3.078,228 hectares, em 2017.
Os pequenos estabelecimentos, com área até 200 ha, em 2006, eram 2.918,
representando 48,6% do total de estabelecimentos e ocupavam 4,45% do total da área, o que
correspondia a 177.612 hectares. Comparando com o censo de 2017, os pequenos
estabelecimentos aumentaram em quantidade, passando para 3.402, correspondendo a 54,75%
do total, no entanto a área ocupada se manteve praticamente inalterada com 189.641 hectares
correspondendo a 4,94% do total de área ocupada. Quando observado o tamanho médio dos
estabelecimentos, evidencia que este diminuiu, saindo, em 2006, de 60,867 hectares, para
55,743 hectares, em 2017.

Bolsão (MS): Número e área dos estabelecimentos agropecuários (2006-2017)


2006 2017
Grupos de área Total Estab. Estab Área Área Estab. Estab Área Área
Nº (%) (ha) (%) Nº (%) (ha) (%)
Até menos de 10 ha 499 8,3% 1.981 0,05% 501 8,06% 1442 0,04%
10 a menos de 200 ha 2.419 40,2% 175.631 4,40% 2901 46,68% 188.199 4,90%
200 a menos de 500 ha 1.234 20,5% 410.678 10,28% 1130 18,18% 369.665 9,62%
500 a menos de 1.000
861 14,3% 620.392 15,53% 803 12,92% 576.001 15,00%
ha
1000 a menos de 2.500
690 11,5% 1.072.124 26,84% 599 9,64% 911.157 23,72%
ha
2.500 ha e mais 307 5,1% 1.713.127 42,89% 280 4,51% 1.794.606 46,72%
Total 6.010 100,0% 3.993.933 100,00% 6.214 100,00% 3.841.070 100,00%
Fonte: IBGE - Censo Agropecuário 2006 e 2017. Organizado pelo autor .

Mesmo com procedimentos de pesquisa diferentes, os dados do Instituto Nacional de


Colonização e Reforma Agrária (INCRA) revelam a manutenção da estrutura fundiária
concentrada no ano de 2020. Por possuírem informações georreferenciadas, os dados do
INCRA possibilitam a representação cartográfica da estrutura fundiária no Parque das Emas e
144

no Bolsão em um nível maior de detalhamento. Desta maneira, o mapa 7 apresenta a estrutura


fundiária nas duas áreas estudadas no ano de 2020.
O contraste apresentado pelo mapa 7 indica a concentração fundiária, destacando-se o
predomínio das propriedades superiores a 1.000 hectares. Acentua-se a este quadro a grande
quantidade de propriedades superiores a 10.000 hectares nas duas áreas estudadas. Como
exemplo, nos municípios de Aporé (GO) e Jataí (GO), constata-se a existência de propriedades
com dimensões superiores a 18.000 hectares. No lado Sul-mato-grossense, mais
especificamente nos municípios de Água Clara (MS) e Chapadão do Sul (MS), há a presença
de propriedades com áreas superiores a 20.000 hectares.
Em contrapartida, as pequenas propriedades, com tamanho até 200 ha, ocupam áreas
menores. Os municípios de Jataí (GO), Mineiros (GO), Aparecida do Taboado (MS) e
Paranaíba (MS) possuem as maiores quantidades de pequenas propriedades, geralmente no
entorno de pequenas vilas ou comunidades rurais.
Assim, mesmo com diferenças metodológicas, os dados do IBGE e do INCRA indicam
a manutenção da grande propriedade entre os anos de 2006 e 2019 diante da territorialização e
da monopolização do território pelo capital. Estes dados comprovam a manutenção e
reprodução do latifúndio como resultado do processo de desenvolvimento desigual,
contraditório e combinado do capitalismo no campo brasileiro.
145

Mapa 7 - Parque das e Emas(GO) e Bolsão (MS): Estrutura Fundiária 2020


146

A manutenção da grande propriedade no Brasil e nas áreas estudadas, como


representado no mapa 7, e, teoricamente explicada por Martins (1994), na aliança terra-capital,
explicita-se pelos dados publicados pelo INCRA no Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF),
indicados nas tabelas 5 e 6. Constituídas por dados do INCRA relativos ao ano de 2020, as
tabelas evidenciam os sujeitos, os maiores proprietários fundiários no Parque das Emas (GO) e
no Bolsão (MS), concentrando parte das terras agricultáveis, objetivando a extração do lucro e
da renda territorial.
Um restrito grupo formado por empresas e pessoas físicas detém 126.487,33 hectares
no Parque das Emas (GO), como demonstra-se na tabela 7. Ildeu de Castro Alvarenga, com
duas propriedades no município de Serranópolis (GO), totaliza 39.998,00 hectares, sendo o
maior proprietário fundiário do Parque das Emas (GO).
A empresa RCL Agropecuária Ltda., com apenas uma propriedade em Chapadão do
Céu (GO), controla 31.186,33 hectares. Esta empresa pertence à família Reichert, ligada ao
cultivo de soja, também é proprietária de 12 mil hectares no município de Chapadão do Sul
(MS), no Bolsão. Segundo sua discriminação75 de CNPJ, a empresa também atua no
fornecimento e aluguel de equipamentos agrícolas e atividades de pós colheita.
A terceira maior proprietária, a Damha Agronegócios Ltda, é um exemplo da aliança
terra-capital, pois é proprietária de mais de 20 mil hectares distribuídos em três propriedades
no município de Serranópolis (GO). Liderada por Maria Stella Damha, a empresa com sede em
São Paulo, especializada em engenharia civil e empreendimentos imobiliários em várias
cidades do interior paulista, encontrou na propriedade fundiária e na agropecuária capitalista a
possibilidade de ampliar seus ganhos por meio da renda territorial. Em entrevista76 à revista
eletrônica Dinheiro Rural, em 2016, a capitalista explica o investimento na compra de terras e
na produção de gado de corte e grãos: “É como uma carteira de ações. Você diversifica e,
quando uma coisa vai mal, tem outra que vai bem para equilibrar”. Esta afirmação demonstra
como a aliança terra-capital é a conciliação lucro-renda, resultante da associação de capitalistas
de setores eminentemente urbanos, como bancos e grandes empresas transnacionais, para o
pacto fundiário monopolista (PAULINO; ALMEIDA, 2010).
O empresário e político, Victor Cezar Priori (DEM), é o quinto maior proprietário de terras no
Parque das Emas (GO), com 22 imóveis distribuídos entre Jataí (GO), Serranópolis (GO), Mineiros

75
Disponível em:<https://cnpj.biz/89844294000141> Acesso em: 06 out 2020.
76
Disponível em:<https://www.dinheirorural.com.br/secao/agronegocios/uma-damha-na-pecuaria>. Acesso em:
29 jun. 2019.
147

(GO) e Perolândia (GO), totalizando mais de 15 mil hectares. Priori já foi suplente de deputado estadual
e, por várias vezes, disputou o pleito para prefeito do município de Jataí (GO).

Parque das Emas (GO): Maiores proprietários fundiários (2020)


Proprietário Nº de imóveis Área total (ha) Municípios
Ildeu de Castro Alvarenga 2 39.998,00 Serranópolis

RCL Agropecuária LTDA 1 31.186,33 Chapadão do Céu


Damha Agronegócios LTDA 3 20.601,50 Serranópolis
JM Bros Participações S/A 1 18.923,86 Aporé
Jataí, Serranópolis,
Victor Cezar Priori 22 15.777,64
Mineiros, Perolândia
Total 72 126.487,33
Fonte: INCRA, 2020. Organizado pelo autor.

No lado sul-mato-grossense (tabela 8), a Mahal Empreendimentos e Participações S/A


soma 60.869,29 ha distribuídos pelos municípios de Aparecida do Taboado (MS) Inocência
(MS), Paranaíba (MS), Água Clara (MS), Chapadão do Sul (MS) e Três Lagoas (MS). A Novo
Oeste Gestão de Ativos Florestais possui 33.710,75 hectares em imóveis localizados nos
municípios de Água Clara (MS), Chapadão do Sul (MS), Inocência (MS) e Três Lagoas (MS).
Mahal Empreendimentos e Novo Oeste são subsidiárias da Arauco Indústria de Painéis Ltda.,
com sede no Chile. Assim, a empresa chilena possui 94.580,04 hectares no Bolsão (MS),
tornando-se a principal proprietária de terras de toda a área estudada. Especializada na produção
de painéis de madeira, a empresa tem em suas terras o cultivo de eucalipto para venda às
indústrias de papel e celulose próximas.
Especializada no plantio de eucalipto integrado à agropecuária, a Colpar participações
S/A concentra 56.682,67 hectares em 13 imóveis no município de Água Clara (MS). A empresa
possui outros imóveis rurais nos municípios de Naviraí (MS) Paraiso das Águas (MS) e Nova
Xavantida (MT).
A Agropecuária Oriente Ltda. também se destaca por possuir 54.267,90 ha em imóveis
rurais no município de Água Clara (MS). A empresa possui como principal sócio o grupo
Gerdau do setor siderúrgico e com sede em São Paulo (SP), exemplificando mais uma vez a
busca de outros setores em deter o monopólio sobre a propriedade fundiária e se apropriar
também da renda da terra.
Como resultado de sua territorialização, a indústria de celulose e papel, a Fibria, atual
Suzano, é proprietária de 43.005,20 hectares no Bolsão (MS), divididos entre 10 propriedades
que fazem parte de seus hortos florestais77 nos municípios de Aparecida do Taboado (MS),

77
Denominação dada ao conjunto propriedades formando uma área contígua para plantio de eucalipto.
148

Selvíria (MS) e Três Lagoas (MS). A empresa possui ainda mais 33 mil hectares no município
de Brasilândia (MS) e 9 mil hectares no estado do Rio Grande do Sul.

Bolsão (MS): Maiores proprietários fundiários (2020)


Nº de
Proprietário Área total (ha) Municípios
propriedades
Água Clara,
Aparecida do
Taboado,
Mahal Empreendimentos e Participações
38 60.869,29 Chapadão do Sul,
S.A.
Paranaíba,
Inocência e Três
Lagoas
Colpar Participações S/A 56.682,67
13 Água Clara
54.267,90
Agropecuária Oriente LTDA 2 Água Clara
Aparecida do
FIBRIA/MS Celulose Sul Mato -Grossense 43.005,20
10 Taboado, Selvíria,
LTDA
Três Lagoas
Água Clara,
Chapadão do Sul,
Novo Oeste Gestão De Ativos Florestais S/A 8 33.710,75
Inocência e Três
Lagoas
Total 72 248.562,80
Fonte: INCRA, 2020. Organizado pelo autor.

Desta forma, nas áreas estudadas, a reprodução do latifúndio ocorre por meio da ação
de proprietários fundiários e capitalistas, como os apresentados aqui. A busca pela renda e as
variações de mercado provocam a disputa entre e latifundiários e capitalistas, intensificando a
dinâmica fundiária no Parque das Emas e no Bolsão.

3.4 DINÂMICA FUNDIÁRIA: DISPUTA PELA RENDA DA TERRA PELOS


AGENTES DO AGRONEGÓCIO

A variação nos preços da terra no Parque das Emas e no Bolsão ajudam a compreender
a dinâmica da agricultura capitalista no que se refere à disputa entre empresas, proprietários
capitalistas individuais e latifundiários pelo monopólio de terras para desenvolvimento de suas
atividades e a barreira imposta, por meio do rentismo, pelos proprietários fundiários. O baixo
preço da terra no Centro-Oeste brasileiro, comparado ao de outras regiões (Sul e Sudeste,
sobretudo), entre as décadas de 1950 e 1970, atraiu proprietários fundiários e capitalistas e
alterou-se diante da consolidação da agricultura capitalista na região.
A busca por condições melhores no desenvolvimento e aumento do lucro médio do
agronegócio se baseou, segundo Rezende (2002), em vários fatores, entre eles o baixo preço da
149

terra considerada de qualidade inferior, mas com possibilidade de melhora por meio de
mecanização. Segundo o autor:
Assim, a abundância de terras de qualidade inferior (‘terra de segunda’)
traduzia-se, mediante ‘construção do solo’, em abundância de terra de
qualidade superior (‘terra de primeira’). Embora requerendo tempo para se
materializar, esse aumento da quantidade de terra de primeira não poderia
senão fazer cair o seu preço relativo no plano nacional, com conseqüente
aumento da competitividade agrícola regional. (REZENDE, 2002, p.9).

A territorialização de diferentes segmentos do agronegócio no Centro-Oeste, e


consequentemente no Parque das Emas (GO) e No Bolsão (MS), provocou o aumento das
buscas pelas melhores terras e logisticamente mais rentáveis. O agronegócio da cana-de-açúcar
e da soja, no estado de Goiás, acirram a disputa por terra, como apresenta Silva (2016):

A busca por terrenos com baixa declividade, em Goiás, colocou a atividade


canavieira em rota de colisão com os interesses dos atores da cadeia produtiva
de grãos e desencadeou uma disputa territorial entre diferentes segmentos do
agronegócio, na qual o elemento central é a terra. (SILVA, 2016, p.2015).

O acirramento das disputas entre produtores de soja, usineiros do setor sucroenergético


e empresários do setor de celulose-papel para expansão das atividades agrícolas, observados no
Parque das Emas (GO) e no Bolsão (MS), contribuíram para a elevação dos preços da terra.
Para Marques (2018), a financeirização da economia e a crise financeira mundial de 2008
contribuíram para o aumento das buscas pela terra na fronteira agrícola brasileira.
Essa disputa pode ser observada de forma mais acentuada no Parque das Emas (GO),
onde capitalistas e latifundiários produtores de soja enfrentaram78 a territorialização de
empresas ligadas à cana-de-açúcar, pressionando proprietários fundiários e até mesmo o Estado.
Nesse sentido, foi aprovada pela Câmara Municipal de Jataí (GO) a Lei Ordinária nº 3119, de
29 de dezembro de 2010, que instituiu o Plano Diretor Rural do Município. O plano passou a
exigir a Certidão de Uso do Solo Rural para qualquer empreendimento econômico na área rural,
e, em seu 9º artigo, parágrafo único, alínea b, determina:
b) – a) Quando do cultivo de lavoura canavieira em escala comercial e cuja
produção se destinar à Empresa Processadora já em operação na data de
publicação desta lei e que teve o projeto industrial/lavoura aprovado em
audiência pública realizada na sede do município de Jataí, porém, no prazo de
até 90 (noventa) dias, contados do início da vigência desta, sem prejuízo desta
isenção, a empresa deverá assinar pacto socioeconômico com o município de
Jataí, comprometendo-se apenas em limitar sua área de plantação em até
50.000 (cinqüenta mil) hectares. (Grifo nosso).

78
Informação obtida com fazendeiros produtores de soja durante trabalho de campo em maio de 2017 no município
de Jataí (GO).
150

O plano afetou diretamente a expansão do cultivo de cana-de-açúcar no município e


revelou a força dos sojicultores. Esta disputa foi noticiada em diversos meios de comunicação,
inclusive pelo jornal O Estado de São Paulo, em janeiro de 2011 (figura 7).

Jornal Estadão: manchete

Fonte: O Estado de São Paulo online79.

Como resultado, as usinas de cana-de-açúcar em Jataí (GO) e municípios vizinhos


apresentam dificuldades em arrendar ou comprar áreas próximas às suas plantas industriais.
Cabe ressaltar que, no contexto desta disputa, o setor sucroenergético estava em crise enquanto
o preço da soja se mantinha em alta e, desta forma, a renda da terra obtida com a soja dificultou
a expansão da cana.
Entre os anos de 2008 e 2015, o setor sucroenergético passou por uma intensa crise
fundada no endividamento de empresas, aumento do custo produtivo e prejuízos com
intempéries (SANTOS et al. 2015). Os autores ainda ressaltam que, entre 2013 e 2014, houve
o fechamento/paralisação de plantas industriais: “Das 439 instaladas, 55 se encontravam em
recuperação judicial (das quais 22 em operação e 33 paradas) e dez usinas tiveram falência
decretada.” (p. 33). De acordo com Manoel et al. (2018), a crise no setor não foi ocasionada
apenas por fatores climáticos, mas também pela ação do Governo Federal em reduzir o preço
dos derivados do petróleo como tentativa de controlar a inflação. Sendo assim:
In addition to the problems related to climate factors and the entire context of
the recession of the Brazilian economy, the sugarcane industry has faced one
of its worst crises in recent years due to the control of gasoline prices by the
Brazilian federal government, according to Santos et al. (2015) and Sant’Anna
et al. (2016) and lower international sugar prices, mainly caused by Brazil,
that due to the low prices of gasoline and the difficulties for ethanol to
compete, converted more cane to sugar, flooding the sugar market. (2018, p.
206).

Neste contexto, a produção de soja aumentou exponencialmente, alcançando recordes a


cada safra. O aumento produtivo culminou com a disputa entre os setores de grãos e

79
Disponível em:<https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,produtores-de-soja-boicotam-cana-em-go-imp-
,663814> Acesso em: 06 fev. 2020.
151

sucroenergético por terras e determinando a expansão do cultivo de soja por todo o país. Sobre
a produção de soja, Câmara (2015) afirma:
Se na safra 2012/13 o Brasil superou pela 1ª vez a marca dos 80 milhões de
toneladas de grãos, na safra 2013/14 superou ‘pela primeira vez’ o valor de
30,0 milhões de hectares para a área cultivada com soja [...] Na última safra,
2014/2015 o ano climático foi favorável em, praticamente, todo o território
nacional que produz soja, resultando em recordes de volume de grãos, de área
colhida e de produtividade. Novamente, pela 1ª vez o Brasil superou a marca
de 95,0 milhões de t de grãos, 32,0 milhões de hectares colhidos e a
produtividade de, praticamente, 3.000 kg de grãos por hectare. (CÂMARA,
2015, p. 26).

Situação semelhante em Mato Grosso do Sul, como observou Teixeira (2015), pois
houve avanço do cultivo da cana-de-açúcar sobre as terras de pastagens e a competição com os
produtores de soja. No Bolsão (MS), as empresas e os proprietários fundiários ligados ao
agronegócio da soja, do algodão e da cana-de-açúcar competem pelas terras de pastagem,
sobretudo, no município de Chapadão do Sul (MS).
Em Três Lagoas (MS) e municípios vizinhos, como Brasilândia, Água Clara (MS) e
Selvíria (MS), as empresas de celulose e papel encontraram terras propícias para sua
territorialização no que se refere o preço da terra e ao arrendamento. A baixa renda da terra
extraída pela pecuária extensiva fez os proprietários de terras encontrarem no arrendamento
para as empresas de celulose a possibilidade de maior rentabilidade.
Com a expansão das plantas industriais destas agroindústrias e, consequentemente, do
cultivo de eucalipto, houve também o aquecimento do mercado de terras como demonstrado na
figura 8. Assim como a Fibria/Suzano é proprietária de mais de 40 mil hectares (Este número
não se contabiliza a área arrendada), a Eldorado Brasil, articula-se, no contexto de queda na
taxa de juro em 2020, para ampliar seu controle sobre o território. A disputa entre capitalistas
elava o preço da terra nos municípios estudados, contribuindo na manutenção do rentismo já
existente.

Três Lagoas (MS): anuncio de compra de terras feito pela Eldorado Brasil
152

Fonte: Acervo Mieceslau Kudlavicz, 2020.

A majoração do preço da terra nos municípios de Jataí (GO), de Chapadão do Sul (MS)
e de Três Lagoas (MS), entre os anos de 2003 e 2017, apresentada na figura 9, por meio dos
dados do Instituto FNP, demonstra como a territorialização de empresas vinculadas ao
agronegócio afetou a dinâmica dos preços da terra, agravando a questão agrária, principalmente
pela inviabilização da política de obtenção de terras, pela compra/desapropriação de terras para
Reforma Agrária ou políticas de crédito fundiário. O aumento da renda da terra, via
territorialização de empresas do agronegócio, contribui ainda na dissimulação da
improdutividade e não cumprimento da função social da terra, como apresentado do mapa sobre
uso e ocupação do solo em 2018 (página 134).
Em Jataí (GO), no ano de 2008, o preço médio por hectare era de R$ 3.837,00 (Três mil
oitocentos e trinta e sete reais), mas com a implantação da usina de açúcar e álcool da empresa
Cosan S/A no município e de outras nos municípios vizinhos, os preços da terra dispararam,
sendo registrado, em 2017, a média de R$37.500,00 (Trinta e sete mil e quinhentos reais) por
ha. Os preços da terra em Chapadão do Sul (MS) têm dinâmica semelhante aos de Jataí (GO),
saindo de R$9.903,00 (Nove mil novecentos e três reais) por ha, em 2003, período de
predomínio da produção de soja, e, a partir de 2008, com a construção da usina de cana-de-
açúcar IACO Agrícola, os preços por hectare dispararam, chegando a R$37.500,00 (Trinta e
sete mil e quinhentos reais, no ano de 2017.
Com a territorilização do complexo de eucalipto-celulose-papel, em 2009, grandes
proprietários fundiários encontraram a oportunidade de extrair renda de suas terras de baixa
fertilidade e de produtividade na pecuária, no Bolsão. Desta forma, muitas propriedades rurais
foram vendidas ou arrendadas para implantação dos hortos florestais em Três Lagoas (MS),
153

Selvíria (MS), além de outros municípios na região. Este processo representou o aumento do
preço médio por hectare, saltando de R$3.279,00 (Três mil duzentos e setenta e nove reais) por
ha, em 2003, para R$11.250,00 (Onze mil duzentos e cinquenta reais), em 2017, como
demonstrado na figura 9.

Três Lagoas (MS), Chapadão do Sul (MS) e Jataí (GO): evolução dos preços da
terra (2003 – 2017)

40.000
38.000 37.500
36.000 35.000 37.500
34.000
32.000 33.000
PREÇO DA TERRA (R$)

30.000
28.000
26.000
24.000
22.000
20.000
18.000
16.000
14.000
12.000 9.903 11.000 11.250
10.000 8.835
8.000 5.723
6.000 3.279
4.000
2.000 - 3.837
-
2003 2008 2014 2017
Três Lagoas Chapadão do Sul Jataí
Fonte: FNP, 2018. Organizado pelo autor.

O gráfico (figura 9) representa a média de preços elaborada pelo Instituto FNP, mas é
possível encontrar variações em corretoras de imóveis rurais nos municípios. Toda a variação
apresentada indica como o monopólio da terra oportuniza aos proprietários fundiários maiores
ganhos com a extração da renda. Como apresentado anteriormente, a disputa na territorialização
entre os segmentos do agronegócio, demonstrada pela força política dos sojicultores no
município de Jataí (GO), conseguiu bloquear o avanço do plantio de cana-de-açúcar por meio
da força legal (FRANCO; ASSUNÇÃO, 2011).
O poder político dos sojicultores em Jataí (GO), demonstrado pelo movimento contra a
expansão da cana no município, não garantiu que a procura por terras aumentasse seu preço,
contribuindo para o pleno desenvolvimento do rentismo. O aumento dos preços e o rentismo
afetam diretamente os camponeses nas áreas estudadas, inviabilizando a política de obtenção
de terras pelo Estado para criação de novos assentamentos rurais.
154

3.5 O GIGANTE DE PÉS DE BARRO: A INSEGURANÇA JURÍDICA DA


PROPRIEDADE CAPITALISTA PRIVADA

Apesar da volumosa participação na política e na economia nas áreas estudadas, o


“gigante” agronegócio possui “pés de barro” para além da sua dependência do capital
monopolista de insumos, como assinalou Teixeira (2013)80, além de fundos públicos. A
insegurança jurídica da propriedade capitalista privada, secularmente estabelecida no Brasil,
comprometem diretamente as bases do desenvolvimento da agricultura capitalista e da
reprodução do latifúndio com base na segurança jurídica. A “sagrada” propriedade capitalista
da terra foi fundada na grilagem, estratégia pelo qual o capital submeteu a terra a sua lógica
(OLIVEIRA, 2018).
Portanto, analisar a origem da formação da propriedade capitalista da terra, sobretudo
do latifúndio, atinge diretamente a centralidade da produção ampliada do capital. O pecado
original, a famigerada grilagem de terras, não ocorreu por caminho único, tampouco ficou presa
no passado como parte do folclore popular. Modernizada, ela se constitui como estratégia atual
de apropriação de terras devolutas e suas incorporações no mercado em busca de renda, de lucro
e de acesso a fundos públicos por meio de crédito rural. Assim, compreender o grilo é caminhar
no entendimento da formação e reprodução do latifúndio, assim como das desigualdades e
conflitos existentes no campo brasileiro.
O latifúndio no Brasil tem sua origem, salvo raras exceções, na apropriação ilegal e
privada de terras públicas. Assim:
Enfatiza-se que no Brasil as terras são de origem pública e que o processo de
formação territorial se constitui fundamentado na apropriação privada de
terras devolutas, isto é, a grilagem é mediação central da formação da
propriedade privada capitalista da terra, produzindo um rentismo à brasileira.
(PRIETO, 2016, p. 28).

Desde a sua colonização, a formação da propriedade capitalista da terra apresentava seu


objetivo rentista. A estratégia de concessão de terras, via Sesmarias, feita pela Coroa
Portuguesa, entre os anos de 1530 e 1822, assentava-se na condição de pagamento do chamado
dízimo e, segundo Stefanini (1978, p. 37):
Nesse panorama, a deferência pela outorga das terras a estes ditos apatacados
senhores era uma conexão de interesses, o público e o privado. Isto porque,
pelo regime do quinto, tinha a Coroa 10% - o chamado dízimo – de tudo
quanto se produzisse nas terras da Colônia [...] no qual todo o açúcar

80
Artigo disponível em: <https://www.ecodebate.com.br/2013/03/27/o-agronegocio-e-negocio-para-o-brasil-
artigo-de-gerson-teixeira/>. Acesso em: 20 out. 2019.
155

produzido no Brasil só poderia ser vendido por Lisboa, resultando ao erário


português polpudas divisas, em vista da grande procura europeia do produto.

Stefanini (1978) observa que, no decorrer das Sesmarias, o descontrole fundiário


beneficiava latifundiários produtores de cana-de-açúcar, sendo necessário a elaboração da Carta
Régia em 1695 para estabelecer critérios para a concessão de terras. A desobediência e burla
fizeram com que a Carta Régia fosse atualizada, limitando o tamanho da área, estabelecendo a
necessidade de registro da concessão e aproveitamento (produtividade) das terras. O desrespeito
às leis, aliás, é comum na história brasileira, e os relatos da então colônia preocuparam até
mesmo a Rainha Carlota Joaquina de Bragança, em 1795, como na passagem:
EU A RAINHA. Faço saber aos que esse Alvará virem: Que sendo-Me
presentes em Consulta do Conselho Ultramarino os abusos, irregularidades,
e desordens, que têm grafado, estão, e vão grafando em todo o Estado do
Brasil, sobre o melindroso Objeto das suas Sesmarias [...]. (OLIVEIRA,
2018, p.183) (Grifo nosso).

Entre o fim do regime de Sesmarias, em 1822, e a promulgação de uma nova lei, em


1850, o Brasil passou por um período de 28 anos sem uma lei agrária destinada ao controle
fundiário. A ausência de uma legislação específica possibilitou a expansão dos latifúndios, bem
como o estabelecimento de pequenas posses:
Não se tinha mais acesso algum à propriedade de direto, supervindo uma
vacância legislativa no que tange a matéria de alienações de terras públicas,
bem como à normatividade do processo de transladação do patrimônio público
para o particular e suas formas de aquisição, abrindo-se, assim, as portas à
livre ocupação de terras. (STEFANINI, 1978, p. 50).

A Lei 601, de 1850, conhecida como Lei de Terras, é entendida como marco legal de
instituição da propriedade capitalista da terra no Brasil. A partir da Lei de Terras, todo acesso
à terra deveria ocorrer por meio da compra e venda. As posses existentes, anteriores à Lei,
deveriam ser regularizadas e as terras não ocupadas retornariam ao domínio do Estado como
devolutas. Por meio do Decreto lei 1.318, de 1854, a Lei de Terras foi instrumentalizada,
principalmente o processo de regularização e, assim, as posses existentes deveriam ser
registradas na paróquia local (CAVALCANTE, 2013), reconhecido também como registro do
vigário.
Pouco tempo depois, em 1864, foi promulgada a Lei 1.237, instituindo o Registro da
propriedade Imobiliária (STEFANINI, 1978). De acordo com a Lei e sua regulamentação, em
1865, o registro de imóveis ficaria a cargo do oficial de registro nos cartórios de imóveis
(GONÇALVES, 2017).
Regulamentando a propriedade capitalista da terra e seu acesso por meio da compra, a
legislação consolidou a terra como mercadoria, ou seja, equivalente de capital. Instituiu-se os
156

marcos da propriedade capitalista, pois juntou-se posse e domínio para se se considerar o seu
valor jurídico. Desta maneira, aquele que possuísse vasta extensão de terras tinha sob seu
domínio determinada fortuna. A necessidade do registro da propriedade faria surgir uma nova
estratégia de produção de capital por meio da falsificação dos registros de propriedade, a
grilagem. Assim:
A base do mecanismo da grilagem consiste na falsificação de documentos,
sejam eles títulos de propriedade sejam provas de legitimidade ao acesso a
terras. Em alguns casos, os grileiros não recorriam à Repartição Especial de
Terras Públicas para a obtenção de um título de propriedade. Eles se valiam
da sua influência para inscreverem, nos registros de transmissão de
tabelionato, os seus contratos de venda de terras, sem a apresentação de títulos
que comprovassem a sua propriedade sobre a área vendida. (CHRISTILLINO,
2010, p. 230).

Com a Constituição em 1891, cada estado ficou responsável por gerir suas terras
devolutas que, por consequência, ampliou a relação direta entre proprietários fundiários e a
política, como demonstrado por Moreno (1994). Naquela conjuntura, as oligarquias rurais
interferiram no Estado para expandirem suas posses sobre as terras devolutas por meio de leis
que regularizassem o processo de apropriação privada.
Os descumprimentos de leis de regulamentação do acesso à terra sempre ocorreram sob
a expectativa de perdão e de novas normas/leis que legitimassem a apropriação indevida
(OLIVEIRA, 2010). Esta estratégia foi sustentada pela relação intrínseca entre proprietários
fundiários e representantes do Estado, como apontado anteriormente. Com isso, a grilagem de
terras no Brasil se constituiu como instrumento das elites brasileiras para ampliarem seu poder
e controle do território nacional (OLIVEIRA, 2013).
Cabe destacar que a apropriação de terras devolutas não é o fim em si, pois os sujeitos,
latifundiários e capitalistas, não utilizam a grilagem para se tornarem apenas proprietários.
Como afirmou Martins (1979), a terra se tornou equivalente de capital e o que está no centro
do processo é a renda territorial. Desta forma:
O que em 1880 era apenas especulação teórica, tendo em vista um substituto
para as hipotecas feitas sobre os escravos, vinte anos depois era realidade: a
terra havia alcançado alto preço, assumindo plenamente a equivalência de
capital, sob a forma de renda territorial capitalizada. (MARTINS, 1979, p.68).

A produção de capital, via grilagem, se tornou estratégia comum entre latifundiários,


que deixaram de investir em pessoas escravizadas para formar novas propriedades por meio da
falsificação. A figura do grileiro, personificada por advogados, engenheiros81, entre outros,

81
Nardoque (2002) pesquisou o processo de grilagem da Fazenda Ponte Pensa feitas pelo engenheiro Euphly Jalles
e suas estratégias de comercialização de suas terras em busca da extração de renda da terra.
157

atuava na expropriação de posseiros, indígenas e quilombolas e apropriação de terras devolutas


por meio da falsificação de documentos. Sendo assim:
O capital que antes era pago aos traficantes de escravos passou a ser pago
às companhias imobiliárias e aos grileiros que, com base em documentos
falsos, depois de 1854, apossaram-se de extensas áreas devolutas ou
ocupadas por posseiros, revendendo-as a novos e potenciais fazendeiros.
A principal fonte de lucro do fazendeiro da frente pioneira, como a de Ribeirão
Preto e da Mogiana, foi, nos anos da expansão, a renda diferencial da terra
produzida pela maior fertilidade natural das terras novas, algo que não
dependia de investimentos de capital. (MARTINS, 1979, p.) (Grifo nosso).

Este problema conta com a corrupção espalhada por cartórios de todo o país. É o que
confirma Oliveira (2013), ao afirmar82 que pelo menos “[...] metade dos documentos de posse
de terra no Brasil é ilegal”. No mesmo contexto, cabe lembrar que, em 1999, o Ministro de
Política Fundiária e do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann, anunciou o cancelamento
de matrículas de 3.065 imóveis rurais, contabilizando 93,6 milhões de hectares (FOLHA, 1999).
Estes documentos se referiam a terras devolutas, ou mesmo a nenhuma área, sendo os papéis
falsos utilizados como garantia para empréstimos. Ao final de 1999, o Ministério da Política
Fundiária e do Desenvolvimento Agrário e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária publicaram “O livro branco da grilagem de terras no Brasil”, colocando sob suspeita,
aproximadamente, 100 milhões de hectares distribuídos por todo o país, inclusive nos estados
de Goiás e de Mato Grosso do Sul.
Posteriormente, em 2001, foi realizada a Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a
grilagem de terras públicas na região Amazônica. O relatório da CPI indicou 18.384.251
hectares envolvidos em ações de grilagens de terras públicas por meio de fraudes de sentenças
de juízes em ações demarcatórias e de usucapião. De acordo com a CPI, eram utilizadas ações
judiciais em sintonia com a corrupção de cartórios de registro de imóveis para o registro e
legalização de terras griladas. A tese de Schwade (2019) é precisa na demonstração como terras
públicas são incorporadas à reprodução do capital no processo de avanço da fronteira agrícola
no Amazonas. O autor desvenda como a apropriação privada da terra, naquele estado, não
respeitou os limites legais, indicando vícios de origem na formação de latifúndios. O interesse
na renda terra e não na terra em si, fez com que grande parte dos latifúndios analisados por
Schwade (2019) não fossem ocupados por seus pretensos proprietários, permitindo a ocupação
por camponeses e posseiros. Portanto:

82
Entrevista concedida ao site Carta Capital em 2013, disponível em:
<https://envolverde.cartacapital.com.br/metade-dos-documentos-de-posse-de-terra-no-brasil-e-ilegal/>. Acesso
em: 17 mai. 2019.
158

Ainda que existam posses que se sobrepõem a terras devolutas da União, a


maioria dos camponeses ocupa terras no interior de latifúndios da Grilagem
Paulista e, muitos, sequer sabiam da existência de tais imóveis. Os
documentos referentes às propriedades, por sua vez, ficaram esquecidos nas
gavetas dos cartórios e órgãos públicos. Os grileiros, em raros momentos,
realizaram algum contato com os posseiros, e a ocupação ocorreu sem
qualquer resistência. (SCHWADE, 2019, p. 204).

Além da apropriação das terras devolutas, a grilagem também corresponde a produção


de títulos falsos de propriedade que, sem verificação devida, permitem sua venda para terceiros
ou utilização para contrair empréstimos. Segundo Torres (2018, p. 295), “Em 2009, o município
de São Félix do Xingu (PA), que possui uma extensão de 8,4 milhões de hectares, contabilizava
registros de títulos mais de 28,5 milhões de hectares de propriedades. Por essa conta, São Félix
do Xingu teria três ‘andares’.”.
No Oeste do Estado de São Paulo, a região do Pontal do Paranapanema, marcada pelo
histórico de conflitos por terra envolvendo latifundiários e camponeses, foi no início do século
XX local de expansão da agricultura cafeeira sobre terras devolutas. Nesta região, Feliciano
(2009) analisou a apropriação de terras devolutas por latifundiários, e o pesquisador aponta que
49,6% são terras com titulação questionável. “Em outras palavras, 507.831 hectares de terras
foram grilados, são devolutos. Porém, grande parte dessas áreas griladas foi legalizada integral
ou parcialmente pelo poder público.”. (FELICIANO, 2009, p. 324). Assim como em outros
casos no país, a grilagem de terras envolve diferentes setores da sociedade, entre políticos,
juízes, cartórios de registro de imóveis e órgãos públicos, como foi a grilagem da Fazenda Ponte
Pensa, no extremo Noroeste de São Paulo, na região de Jales, de acordo com os estudos de
Nardoque (2002 e 2007).
De maneira similar, terras de comunidades geraizeiras no Oeste da Bahia foram griladas
por latifundiários, como apontou a pesquisa de Sobrinho (2012). Segundo a pesquisa, nesta
região onde se desenvolvem atividade de produção de grãos (soja e milho), a venda de terras se
tornou a principal fonte de enriquecimento. Nesse sentido, a investida de latifundiários sobre
áreas tradicionalmente ocupadas por posseiros na Bahia objetiva a renda da terra, gerando
conflitos com as populações ali presentes. Segundo a pesquisa;
A mensuração primeira da terra a ser grilada, geralmente se faz através de
sobrevoos sobre imensas áreas constituídas de dezenas de milhares de
hectares. A segunda etapa dessa ação se faz a partir da equipe de gabinete
constituída de advogados, políticos influentes na localidade, contribuição das
indústrias de escrituras falsas, assim chamados nas localidades os cartórios, e
do judiciário local, o qual, quando pouco faz, ‘fecha os olhos’ para tais
desmandos. Concomitante a essa etapa, também se fazem operações em
campo, por meio das equipes de ‘segurança’, na verdade bandos de jagunços,
que cometem todo tipo de violência contra os antigos ocupantes das terras, nas
159

suas ações de ‘limpeza’ das áreas pretendidas pelas empresas ditas modernas.
(SOBRINHO, 2012, p. 61).

Na tentativa de contenção das grilagens, a Associação de Advogados de Trabalhadores


Rurais no Estado da Bahia (AATR) publicou em 2017 estudos sobre casos dessas ações na
Bahia, demonstrando a prática ilegal enraizada no Brasil e as estratégias “modernas” adotadas,
como o uso de georreferenciamento. Como exemplo, a AATR apresenta o caso em área no
município de Barra (BA), no qual os documentos iniciais do imóvel registravam “uma e meia
légua de terras” (aproximadamente 800 hectares) e que com seu desmembramento e medição
georreferenciada transformou-se em mais de 70 mil hectares de terras (AATER, 2017).
Portanto, parte da formação dos latifúndios no Brasil, assim como nas áreas estudadas
nesta pesquisa, originaram-se na apropriação indevida de terras devolutas. Mesmo com a
possibilidade da falsificação de documentos, a legitimidade da propriedade privada deve ser
comprovada por meio da análise da sequência dos títulos de domínio, comprovando, em sua
origem, o destacamento legal do patrimônio público passando para o privado. A cadeia
dominial pode, dessa maneira, indicar irregularidades na formação da propriedade capitalista
da terra.

3.5.1 GRILAGEM NO PARQUE DAS EMAS (GO) E NO BOLSÃO (MS)

Não obstante, a consolidação da agricultura capitalista no Parque das Emas (GO) e no


Bolsão (MS) também ocorreu por meio da apropriação de terras devolutas no século XIX
promovido por famílias mineiras e paulistas. A formação da Freguesia do Divino Espírito Santo
de Jataí, no lado goiano, e da Freguesia de Santana do Paranaíba, na porção sul-mato-grossense,
transcorreram em territórios tradicionalmente ocupados por povos indígenas, os Cayapó. Os
conflitos entre a frente pioneira e as populações tradicionais foram inevitáveis, e, entre flechas
e balas (PINTO JÚNIOR, 2015), formaram-se as primeiras fazendas e os Cayapó foram
dizimados da região. Assim:
Contra os índios só havia um recurso: um tiro certeiro. Além disto, a urgência
da posse e a manutenção da ocupação dispensaram mediadores além das
flechas e balas. Os colonos não estavam de passagem e não cogitavam voltar
às suas terras de origem em Minas Gerais ou São Paulo. (PINTO JÚNIOR,
2015, p. 55).

Segundo o autor, os conflitos eram constantes, seguidos por tentativas inócuas de


aprisionamento dos indígenas por meio de “reservas”. A força contra os Cayapó era constituída
160

pela organização das famílias pioneiras de Goiás e antigo Mato Grosso que “A iniciativa de
Vilella foi apoiada pelos principais proprietários, como Serafim de Barros, José Carvalho
Bastos e os Garcia no Mato Grosso, garantindo ajuda material e recursos financeiros ao
empreendimento.” (PINTO JÚNIOR, 2015, p. 53). Portanto, é preciso reconhecer a presença
de povos indígenas antes das migrações mineiras e paulistas para as áreas estudadas. De acordo
com Borges (2017), em Santana do Paranaíba (Bolsão), os povos indígenas, sobretudo os
Cayapó, ocupavam a área, e, com o contato conflituoso com os não-indígenas, deslocaram-se
para o interior do país.
A ausência de ouro e outros minérios explicam chegada tardia das famílias pioneiras
no Sudoeste Goiano, só no século XIX (PINTO JÚNIOR, 2015). Segundo Campos (1998),
famílias oriundas de Minas Gerais e de São Paulo iniciaram, a partir dos anos de 1830, a
formação das primeiras fazendas. Como mencionado, esse processo foi conflituoso por ocorrer
em área tradicionalmente ocupada, mas também havia as disputas entre fazendeiros decorrentes
da demarcação e manutenção de suas propriedades. Nesse sentido, pequenos posseiros
responsáveis pela formação das fazendas eram expulsos, posteriormente, por grandes
proprietários que caminhavam para estas novas áreas consolidadas
Sobre a Freguesia de Jataí, Silva (2000) afirma:
Na lógica, o que deveria valer seria a posse com cultura efetiva, mas na prática
prevaleceu a força de quem tinha mais poder. Antes da Lei de Terras, o
pequeno posseiro era expulso pela ação de capangas, de jagunços, a mando do
patrão. Bastava o fazendeiro interessar-se pelo local onde se encontrava o
camponês. Expulsá-lo não era difícil. Diante de um possuidor de influência
política e/ou jurídica, de milícia particular e de dinheiro, o camponês não tinha
outra saída, senão procurar outras terras mais distantes. (SILVA, 2000, p.
139).

Ainda segundo a autora, na região onde atualmente é Jataí (GO), duas famílias oriundas
de Minas Gerais e de São Paulo se instalaram sobre grandes extensões de terras:
Os Vilela e os Carvalho Bastos vieram por volta de 1830 e em 1840 já eram
ricos, possuindo grandes fazendas de gado. A pecuária foi a atividade
economicamente dominante em Goiás até a década de 50, do século XX. A
Fazenda Bom Jardim, dos paulistas desbravadores, José Carvalho Bastos e
Ana Cândida Morais Carvalho, chegou a ter ‘6.000 alqueires de boas terras’.
(SILVA, 2000, p. 138).

Situação registrada pelo livro clássico “Pioneiros”, de Bartolomeu França, no qual o


autor afirma:
Ainda em 1837, enquanto os Vilellas iniciaram pequenas plantações de milho
e mandioca para garantir a posse, José de Carvalho Bastos chegou à região
com o mesmo objetivo: tomar posse de terras na região. O mineiro José
Manuel Vilella havia chegado ao sudoeste após passar pelo Desemboque e o
161

sul de Goiás. O paulista Carvalho Bastos chegou à região passando por


Sant’Ana do Paranaíba, atualmente no Mato Grosso do Sul. Os dois
fazendeiros apossaram uma larga extensão de terras entre os vales dos rios
Claro e Verde. Acertando entre si que todas as terras banhadas por águas
afluentes do Ariranha pertenceriam aos Vilellas e as percorridas por tributários
do Bom Jardim seriam dos Carvalhos. Na topografia levemente ondulada do
Sudoeste, isto representava um espigão mestre de consideráveis doze léguas.
(FRANÇA, 1995 p. 71-72 apud PINTO JÚNIOR, 2015, p. 46).

Para Campos (1998), a consolidação de grandes grilos ocorria por meio da violência e
da influência política e econômica dos interessados, valendo-se de legislações imprecisas
garantiram a manutenção e legalização da grilagem. O autor cita um relatório da Secretaria de
Obras Públicas de Goiás, observando que “As terras do Estado são em grande parte usufruídas
por verdadeiros usurpadores que não se preocupam de legalizar os seus títulos” (CAMPOS,
1998, p. 78). Em outra perspectiva analítica, Grande Júnior (2012) afirma que os grileiros que
não gozavam do apoio político local tornaram-se reféns do coronelismo, assim as terras
devolutas:
Em outros Estados, dentre os quais se pode incluir o de Goiás, era uma questão
mais primitiva de controle do acesso à terra como forma de poder,
concedendo-se a propriedade inquestionável apenas aos muito próximos
dos donos do poder local e deixando os demais apenas com posses ou
títulos de propriedade duvidosos, para poder-lhes sempre cobrar apoio
político em contrapartida da manutenção dessas posses. Assim, as terras
devolutas compunham o tabuleiro sobre o qual as peças do coronelismo se
movimentavam, no xadrez da ‘política dos governadores’. (GRANDE
JÚNIOR, 2012, p. 48/49).

Consequentemente, proprietários de posses após a Lei de Terras de 1850, buscavam sua


regularização quando usufruíam de algum prestígio ou valiam-se de estratégias de falsificação
documental. Em vista disso, o caso do imóvel Rio Paraíso, em Jataí (GO), é exemplo a ser
compreendido na insegurança jurídica dos latifúndios no Parque das Emas. O imóvel, com
tamanho superior a 26 mil hectares, de acordo com o SIGEF, pertence a um grupo de sócios
cadastrados no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), com endereço na província de
Treviso na Itália. Parte da Fazenda Rio Paraiso foi transformada em assentamento de Reforma
Agrária, em 1989, após anos de disputa envolvendo a empresa produtora de soja, trabalhadores
e camponeses. Segundo Machado e Silva (2016, p. 9):
Um grupo de trabalhadores rurais, arrendatários, assalariados, formado por
318 famílias, liderado pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Jataí, ligado
ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), ocupou 11.910 hectares
improdutivos, no dia 19 de novembro de 1985.
162

A desapropriação foi pautada em torno de denúncias de improdutividade do imóvel,


que, após o desenrolo judicial, a empresa vendeu ao INCRA pouco mais de cinco mil hectares
(SIEB, 2015). Contudo, quando observada a sequência das matrículas de registro deste imóvel
(figura 10), percebe-se graves ausências na transferência do domínio público para o privado, na
origem desta propriedade rural.
Os registros e escrituras da Fazenda Rio Paraíso indicam que a propriedade se originou
a partir de outras 29 propriedades registradas entre os anos de 1900 e 1910, totalizando
55.556,70 hectares, como demonstrado na figura 10. Não há informações sobre seus
proprietários anteriores em seus documentos, muito menos a origem do título junto ao Estado,
comprometendo juridicamente a validade das transações e documentos posteriores, exigência
para transcrições e validações de títulos de terras desde 1850.
Nas décadas de 1950 e de 1960, as propriedades passaram pelo processo de
anexão/aglutinação, totalizando tamanho menor do que a soma dos registros iniciais. Assim, a
mesma área, supostamente com mais de 50 mil hectares, passou a ter 34.206 ha nos documentos
posteriores. Com o passar de 50 anos (1910-1960), as propriedades foram unificadas em uma
fazenda, com tamanho ainda menor, 26.324 hectares. A significativa redução do tamanho da
propriedade pode ser respondida em duas hipóteses. Na primeira, a Fazenda Rio Paraíso se
originou de terras de posses, das quais os poucos documentos existentes nunca registraram
precisamente a área real das propriedades, e, ao longo das transferências, os tamanhos foram
corrigidos, mesmo por conta das técnicas arcaicas de medições de terras. Na segunda hipótese,
parte dos documentos é falsa e não se refere a nenhuma quantidade de terra, sendo usada para
aumentar o tamanho das fazendas e, consequentemente, seu preço, podendo ser utilizadas como
garantia em financiamentos e empréstimos.
163

Fazenda Rio Paraíso: Cadeia dominial


164

Independentemente de seu tamanho ou produtividade, as terras desta fazenda, não


possuem documentos de comprovação de transferência original da União para particulares e os
títulos deveriam ser anulados e as terras retornarem ao domínio do Estado brasileiro. A
legislação estadual, mais precisamente, a lei Nº 18.826, de 2015, em seu artigo 40, estabelece
a possibilidade de regularização fundiária de áreas sobre terras devolutas com tamanho de até
1.000 hectares, não sendo, portanto, o caso do imóvel Rio Paraíso.
Logo, a Fazenda Rio Paraíso deveria ser destinada por completa à Reforma Agrária,
sem indenizações ao proprietário, uma vez que se trata de terra pública apropriada
indevidamente. Porém, não é o que ocorre na realidade e grande parte do imóvel continua sendo
utilizada83 na produção de grãos, cana-de-açúcar e a pecuária. Com este caso, pode-se observar
a produção e reprodução ampliada do capital com a adição da renda da terra devoluta em seu
processo.
Há, assim, uma questão importante a ser apontada no âmbito da política de Reforma
Agrária, na forma de obtenção/desapropriação das terras destinadas para tal política. Assim, é
preciso compreender o pagamento da renda da terra via Reforma Agrária. No caso da Fazenda
Rio Paraíso, Machado (2009) indica a disputa judicial durante quatro anos (1986-1989) contra
a desapropriação, no qual os proprietários saíram vencedores, vendendo ao INCRA uma parte
do imóvel para a criação do assentamento. Segundo os dados cartoriais, foram pagos NCz$
3.344.152,00 (Três milhões, trezentos e quarenta e quatro mil, centro e cinquenta e dois
cruzados novos) correspondendo, em valores atualizados, de acordo com a inflação, a R$
11.840.795,95 (Onze milhões, oitocentos e quarenta mil, setecentos e noventa e cinco reais e
noventa e cinco centavos) 84.
Desta forma, o Estado brasileiro, ao comprar parte da Fazenda Rio Paraiso, pagou por
terras que lhe pertenciam. É o pagamento da renda da terra no interior da política de Reforma
Agrária, mas caracterizado pela dupla ilegalidade: na origem dos títulos e na compra de terras
com títulos ilegais.
Em 1999, o Ministro de Política Fundiária e Agricultura Familiar, Raul Jugmann,
publica85 o “Livro Branco das Superindenizações”, escancarando casos de pagamentos de

83
Informação obtida no site oficial da empresa. Disponível em:<http://rioparaiso.com.br/site/sobre-a-fazenda/>.
Acesso em: 18 out 2020.
84
Informação obtida na Calculadora do Cidadão do Banco Central. Disponível em:
<https://www3.bcb.gov.br/CALCIDADAO/publico/exibirFormCorrecaoValores.do?method=exibirFormCorreca
oValores>. Acesso em: 27 jan. 2021.
85
Publicação pode ser acessa em:
<https://direito.mppr.mp.br/arquivos/File/Politica_Agraria/7incraLivroBrancodasSuperindenizacoes.pdf>.
Acesso em: 29 out 2020.
165

superindenizações a fazendeiros durante processos de desapropriação para reforma agrária. No


livro, fica claro como a compra/desapropriação se tornou um ótimo negócio para fazendeiros,
capitalistas e grileiros de terras.
A contradição do rentismo na própria política de Reforma Agrária se constitui como
inconstitucionalidade, de acordo com Fidelis (2014). Para o autor, não há razoabilidade no
pagamento por um imóvel em desacordo com a função social porque, neste caso, não é aplicado
sanção ao proprietário descumpridor, agravando-se no caso de indenização de terras com títulos
duvidosos.
É preciso reconhecer a grilagem ainda como processo atual de apropriação ilegal de
terras públicas objetivando a renda. Este processo envolve tramas políticas e disputas de poder,
no qual camponeses, posseiros e trabalhadores são expropriados. Em seu discurso no Senado,
em 1981, Henrique Santillo (MDB) acusou políticos, em específico o governador indicado
durante a ditadura militar, Ary Ribeiro Valadão (ARENA), de utilizar sua influência e poder
para grilarem terras no estado de Goiás. Segundo o Senador, extensas áreas (aproximadamente
40 mil alqueires)86 foram griladas e legalizadas pelo governador por meio de laranjas e uso do
Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás (IDAGO) para expedição de matrículas e
legalização das terras. Para o Senador:
Necessário se faz esclarecer que o Governador do Estado, na aquisição dessa
terra, usou vinte e uma pessoas figurantes como posseiros, entre os quais,
como já foi dito, filhos, genros e parentes mais próximos. [...]
Por outro lado, temos informação que no IDAGO correm ainda cerca de 50
processos de legalização de terras devolutas no Estado de Goiás, todos de
interesse de familiares do Governador. (SANTILLO, 1981, p. 29).

O Senador ainda aponta que a apropriação feita por Ary Valadão também expropriou de
forma violenta os verdadeiros posseiros das terras griladas em Goiás, assim “O problema atinge
as raias do inconcebível, onde ainda se queimam ranchos, onde ainda se expulsam posseiros de
suas terras, onde ainda posseiros são esmagados, assassinados e trucidados e enterrados nas
matas do cerrado.” (SANTILLO, 1981, p. 30).
No Bolsão (MS) a apropriação da terra não foi muito diferente, pois a origem e
reprodução do latifúndio também permeia a ilegalidade e reprodução ampliada do capital sobre
terras públicas. As primeiras explorações na capitania de Mato Grosso foram feitas no início
do século XIX, também por mineiros e paulistas, utilizando hidrovias, saindo de Porto Feliz em
direção ao rio Tietê e Paraná, chegando até o rio Pardo (GOMES, 1953). Foi o mineiro Capitão

86
Sabendo que o alqueire goiano equivale a 4,84 hectares, o tamanho da área apropriada convertido corresponde
a 193.600,00 hectares.
166

José Garcia Leal um dos primeiros exploradores a se estabelecer em terras do sertão 87. Garcia
Leal e sua família migrou para Franca (SP) e depois para Mato Grosso devido a “perseguições
políticas”, tomando posse do vale do rio Santana (GOMES, 1953). Segundo Campestrini
(2002), a família Garcia se envolvera em conflitos por terras em Minas Gerais e a morte do
patriarca João Garcia Leal, em 1802, teria motivado a migração para Mato Grosso. O autor
afirma:
Na verdade, segundo Marcos Paulo de Souza Miranda, a tradição oral,
amparada por várias evidências históricas, afirma que João Garcia Leal foi
morto covardemente em decorrência de desinteligências a respeito de divisas
de terras. (CAMPESTRINI, 2002 p. 115) (Grifo nosso).

A chegada de famílias do interior paulista e do Triangulo Mineiro, iniciou o processo


de ocupação88 privada das terras banhadas pelos rios Paraná, Paranaíba e Pardo, provocando,
em 1850, o estabelecimento por lei da Freguesia de Paranaíba (CAMARGO, BATISTA, 2010)
e, posteriormente, em 1857, elevada a município. Com o poder político e controle sobre as
terras, José Garcia Leal atraiu/convidou pessoas próximas a sua família, principalmente do
interior paulista, para também se estabelecerem nas terras mato-grossenses. De acordo com
Silva (2013):
No ano de 1829 os irmãos Lopes – Gabriel, José, Manuel, João, Romualdo
e Joaquim receberam o convite por parte dos fazendeiros Garcia Leal para
deixarem a região de Franca e ocuparem terras no sudeste de Mato
Grosso. Os Lopes, acompanhado de familiares, agregados e escravizados
partiram de Franca e se estabeleceram no sertão de Santana do Paranaíba,
já ocupado pelos Garcia Leal. (SILVA, 2013, p. 73).

Na primeira exploração do mineiro Joaquim Francisco Lopes, em 1829, no antigo Mato


Grosso, o então capitão Joaquim Garcia Leal, autoridade na região, lhe garantiu a posse sobre
áreas devolutas na margem direita do Rio Paraná. Joaquim Lopes, como de costume na época,
relata a “demarcação” das terras “no olho”, demonstrando a imprecisão na delimitação das
posses:
1° de setembro. Segui escoteiro para Paranaíba e cheguei no Monte Alto à
casa do sr. capitão José Garcia Leal, o qual há pouco tinha chegado do
sertão, e me fez ver boas fazendas que achou, e o sertão que seguia, e
demarcou de olho uma fazenda para mim nas margens do rio Paraná,
e me ofereceu mantimentos e a sua fazenda para morar, até cultivar a

87
Neste período, regiões que não vivenciavam prósperos ciclos econômicos, como o do ouro, eram denominados
de sertões.
88
É preciso reconhecer que antes das migrações mineiras e paulistas para região de Santana do Paranaíba povos
indígenas sobretudo os Cayapó ocupavam a área, e com o contato conflituoso com os não-indígenas se deslocaram
para outras regiões do estado e país. Para compreender melhor sugere-se a leitura: BORGES, Maria C. Os Cayapó
e a propriedade da terra em Sant’anna do Paranahyba, Sul de Mato Grosso. Outros Tempos, vol. 14, n. 23, 2017
p. 105 -128.
167

minha. Voltei a casa, cheguei em fins de outubro com despesa de ....


97$500. (IHGMS, 2007, p. 16). (Grifo nosso).

Joaquim Lopes continuou a explorar e a se apropriar de terras no Mato Grosso,


juntamente com membros de sua família, garantindo suas posses com roçados e criações. As
expedições, custeadas em parte pelo Barão de Antonina, objetivavam a formação de uma via
de comunicação entre as províncias de São Paulo e Mato Grosso (ALMEIDA, 2014). A
amistosa e política relação com os Garcia garantia a Joaquim Lopes a manutenção e apropriação
de novas áreas. Assim:
Em abril o dito Garcia enviou-me a fazer-lhe fazendas no Sucuriú, que fiz
cinco para o dito e duas para dois companheiros; gastei nesta viagem de ida e
volta quarenta e três dias; em agosto deste mesmo ano fui à Vila Franca, à casa
de meu pai, ver meios para conduzir a minha família. (IHGMS, 2007, p. 20).

Segundo Camargo (2011), durante o período de posses livres entre a revogação da lei
das Sesmarias, em 1822, e a Lei de Terras, em 1850, os Garcia e Lopes ocuparam extensas
áreas em Santana do Paranaíba. Posteriormente, membros das mesmas famílias continuaram se
apropriando de terras e formando novos municípios, como é o caso de Protázio Garcia Leal,
um dos fundadores de Três Lagoas (MS) (CAMARGO, 2011).
Sendo uma das autoridades locais e desfrutando do apoio político do governo de Mato
Grosso, José Garcia Leal não ateve as amarras legais para expandir suas posses em Santana do
Paranaíba. O controle das terras pela família Garcia abrangera parte das antigas capitanias de
Mato Grosso e de Goiás, sendo objeto de discussão, em 1878, sobre os limites das recém
províncias (GOMES, 1953). Os limites estabelecidos determinaram a maior perda de território
de Goiás, aproximadamente 170 mil quilômetros quadrados (NETO, BUCCI, 1983). A
proximidade dos Garcia junto ao governo de Mato Grosso foi determinante para que suas posses
fossem consideradas como referência na delimitação: “Assim, ao cabo de tanta luta, parece que
já se acham definitivamente integradas no território mato-grossense as terras que, conhecidas
outr’ora como Sertão dos Garcias, constituem, hoje, o florescente Município de Paranaíba.”
(GOMES, 1953, p. 130).
Entretanto, Camargo (2011) constata pertinentemente a ilegalidade do apossamento de
terras públicas pela família Garcia de acordo com a legislação de terras vigente na época:
Se a terra era devoluta eles deveriam tê-la comprado do Estado, pois após 1850
já estava em vigor a Lei de Terras, conforme já descrito, a qual regulamentava
a aquisição de terras. Não consta dos inventários analisados a compra dessas
terras. (CAMARGO, 2011, p. 61).
168

Nessa perspectiva, indaga-se a legalidade das inúmeras fazendas formadas por José
Garcia Leal e família, posteriormente à Lei de Terras de 1850. Com isso, a região compreendida
pelo atual Bolsão (MS), na época reconhecida como Santana do Paranaíba, foi alvo de
sucessivas tentativas de apropriação por meio de documentos de sesmarias como indica o
estudo de Camargo e Batista (2017). Não obstante, os autores também constatam que os
proprietários procuravam não delimitar as terras em documentos como inventários ou contratos
de compra e venda, objetivando no futuro expandir suas posses.
Campestrini (2002) afirma que José Garcia Leal registrou em seu testamento diversas
fazendas sob sua posse, no qual, por meio daquele documento, transferia para familiares e até
realizava doações dos imóveis. Todavia, nos documentos também não havia citação ao
documento de origem e muito menos os limites de suas fazendas.
A legitimação das propriedades também gerou disputas entre fazendeiros e
representantes do poder público. Apesar de, em grande parte, fazendeiros/grileiros fossem
também parte do Estado, em determinadas situações, sobretudo em ações de titulação dos grilos,
os agentes públicos eram coagidos a atender aos interesses da elite agrária local. Como no caso
do Juiz Honorato de Barros Paim, da comarca de Santana do Paranaíba (MS), coagido e forçado
a deixar o município por cobrar altas taxas nos processos divisórios e de inventários,
documentos utilizados para “legitimar” o grilo.
O Juiz publicou89 no jornal O Matto-Grosso, em 1916, uma carta aberta ao Presidente
do Estado de Mato Grosso, General Caetano. Em determinado trecho, o Juiz relata que a
violência e a coerção dos fazendeiros eram realizadas pelo próprio Estado, sobretudo por forças
policiais. Assim relatou:
O Commandante Sampaio, o Dr. Promotor Público, Generoso de Siqueira e o
Collector José Marques da Silva Fontes, levaram em sua companhia para Sant’
Anna o famigerado campanga Eunapio Rondon, e, o que é mais grave estava
o mesmo processado naquella localidade, como tal era ele um criminoso e
ainda mais o autor de uma covarde e miserável tentativa de morte; o fim era
de me desacatar. Ahi chegando começaram as tropelias. Eunapio ameaçava a
todo o mundo com as costas quentes da polícia e afagado pela satisfação do
Commandante Sampaio. A minha casa foi alvejada com suas porcas
represálias e até excremento foi atirado às dez horas pela minha janella.
Eu acreditei ainda em um pouco de moralidade do Capitão e mandei chamar
o Collector Marques Fontes para pedir-lhe que comunicasse o ocorrido àquella
autoridade. O interlocutor respondeu-me que era baldado esse aviso. Que o
Commandante Sampaio era um inimigo e portanto deixaria de tomar qualquer
providencia e se me acontecesse alguma desgraça q’procurasse o homem da

89
Artigo intitulado “As Tropelias de Sant’Anna” publicado originalmente em 1914 no Jornal O Matto-Grosso e
digitalizado pela Biblioteca Nacional. Disponível
em:<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=716189&pesq=Morro%20vermelho&pagfis=2045>.
Acesso em: 21 de out de 2020.
169

capa preta. Palavras textuaes do Sr. Collector. E ainda mais accressentou


que eu era intimado a deixar Sant’Anna com prazo escasso, pena de ser
assassinado.
Entre as fazendas inventariadas citadas pelo juiz, está a Morro Vermelho, objeto de
análise nesta pesquisa. De acordo com a descrição publicada no jornal, a fazenda possuía 83
mil hectares, com custas processuais em dois mil e duzentos e cinquenta contos de réis. A
história da fazenda, atualmente destinada ao cultivo de eucalipto e que, desde 1978, foi
administrada pela Cisalpina Agropecuária LTDA, apresenta diversas incongruências sobre sua
origem, tamanho e transferência de domínio. A cadeia dominial, representada na figura 11,
indica que os registros oficiais da Morro Vermelho surgiram em 1914 em decorrência do
inventário de Olivia Garcia Dias, mencionado na publicação do Juiz Honorato de Barros Paim.
No inventário, acessado no acervo do Tribunal de Justiça de Campo Grande (TJMS),
Olivia Garcia Dias herdou de seu marido, Silvério Garcia Dias, a chamada Fazenda Morro
Vermelho, entretanto, sem apresentar qualquer matrícula ou registro oficial das terras. Em nome
de Silvério há, ainda, no acervo do TJMS, outro inventário com data de 24 de abril de 1894,
cujo teor indica a transição de parte da Fazenda Morangas via partilha dos bens de sua mãe
Lucinda Garcia Leal.
A ausência ou nenhuma informação a respeito da Fazenda Morro Vermelho no
inventário de Silvério indica que a fazenda “surgiu” na virada dos séculos XIX para o XX.
Segundo Stefanini (1978), a criação de títulos de propriedades a partir de inventários foi uma
prática comum e ilegal na Amazônia e região Centro-Oeste, de acordo com o autor: “A
estranheza destas praxes não acompanha a raridades de sua superveniência, havendo, no Estado
de Goiás, principalmente, inúmeros títulos de ‘propriedade’ que foram paridos em autos de
inventários e arrolamentos” (p. 209).
A utilização de inventários ou partilhas de bens não é uma estratégia única no antigo
Mato Grosso, pois os estudos realizados pela AATR (2017) na Bahia também identificaram o
uso de sentenças de inventários como técnica de falsificação na origem de registro de imóveis.
Portanto, “A utilização de sentenças de inventário como base para a abertura do primeiro
registro ou matrícula significa transformar ilegalmente títulos de posse em propriedade.”
(AATR, 2017, p. 60). Torres (2018) também identifica o mesmo artifício no Oeste da Bahia:
Por desconhecimento ou má-fé, são muitos os títulos derivados de matrículas
abertas sem origem, ou seja, sem que seja apontada de onde veio esse imóvel.
Muitos limitam-se à declaração do pretenso proprietário, o que é de todo
descabido. Outros surgem por meio das partilhas, em inventários,
dissoluções de empresas e separações matrimoniais, de bens que, embora
arrolados, não apresentavam os correspondentes títulos de domínio.
(TORRES, 2018, p. 295) (Grifo nosso).
170

A possibilidade de a Fazenda Morangas ter sido renomeada de Morro Vermelho não


elimina a ilegalidade na origem dos documentos, pois, em 1894, já estava em vigência a
primeira Lei de Terras do Estado, o Decreto Estadual n. 38 de 15 de fevereiro de 1893. Mesmo
sendo considerada por Moreno (1999) uma lei permissiva e que beneficiava a regularização de
grilagens de terras devolutas após 1854, o decreto 38/1983 também limitava a área a ser
regularizada. Para a autora:
Por outro lado, a regularização das terras que se encontravam em situação
ilegal até 1889, bastava a apresentação do registro feito nas intendências
Municipais pelos juízes comissários. Os registros efetuados até 1854
garantiam o tamanho das áreas constantes dos títulos. Já as posses efetuadas
entre 1854 e 1889, portanto, no interregno das proibições impostas pelas
Leis Imperial e Estadual, tiveram seus tamanhos limitados pela Lei
estadual em 450 ha para indústria extrativa, 900 ha para a lavoura e 3.600
ha para a pecuária. (MORENO, 1999, p. 69) (Grifo nosso).

Com isso, os 83 mil hectares da Morro Vermelho, apontados pelo Juiz Honorato de
Barros Paim, não se enquadrariam ao limite imposto pelo Decreto 38/1893. Moreno (1999)
ressalta, nesse sentido, que os juízes comissários responsáveis em Mato Grosso por aplicar a
regulamentação fundiária sofriam com a pressão e violência das oligarquias rurais locais,
semelhante ao caso ocorrido em Santana do Paranaíba.
O tamanho do imóvel Morro Vermelho gera questionamentos, assim como ocorreu no
caso da Fazenda Rio Paraíso, em Jataí (GO), pois os registros indicam que a propriedade saiu
dos 83 mil hectares em 1911, tendo sua primeira matrícula em 1942 o tamanho reduzido para
15.342 hectares até ser registrada, em 2015, com área de 8.879,75 hectares.
171

Fazenda Morro Vermelho: Cadeia dominial


172

As suspeitas sobre a Fazenda Morro Vermelho levaram trabalhadores, em 1985, a


denunciarem a ilegalidade da propriedade da terra, entre outras, ao INCRA como latifúndios
inexplorados. Dutra (2019, p. 326) afirma:

A correspondência do senhor Raimundo Gomes da Silva, menciona ainda a


Fazenda Morro Vermelho e a Fazenda Pantano, no município de Selvíria, com
11.849,18,00 hectares que estariam em igual situação de abandono. E conclui
sua missiva anexando documentos referentes às propriedades acima
caracterizadas. (DUTRA, 2019, p.326).

As denúncias não avançaram na época e o imóvel continuou sendo local de mobilização


de camponeses e trabalhadores. No início do ano de 2000, aproximadamente 170 famílias
camponesas acampam em frente à Morro Vermelho e resistiram até a desapropriação de outro
imóvel e criação do assentamento Alecrim, em Selvíria (MS) (SILVA, ALMEIDA, 2013).
Em 2001, a regularização de um imóvel rural de 300 hectares, próximo à Fazenda Morro
Vermelho, apontou novamente a insegurança jurídica e fundiária no Bolsão (MS). Os
argumentos apresentados pela advogada dos proprietários ao Juiz da Comarca de Três Lagoas,
no Processo90 021.01.003931-8, apontam a imprecisão da delimitação dos imóveis e, ao mesmo
tempo, na análise da cadeia dominial, a advogada dos proprietários afirma: “Ocorre, Excelência,
que dita transferência não pode ser considerada legal para os fins que se destinam, pois houve
uma ‘montagem’ de título em referida gleba [...]” (p.03).
Ainda na argumentação, a advogada reafirma:
Excelência, do cotejo da certidão [nome do proprietário] constata-se que a área
encontra-se posseada, entretanto, o título de sua transferência é falho, já que
em nenhum momento as certidões mencionam a área, comprovando assim
que realmente foi feita uma ‘montagem’ de título sobre aquela terra.
(p.05). (Grifo nosso).

No desenvolvimento do processo, concluiu-se que a área se originou do mesmo


inventário utilizado no registro inicial da Fazenda Morro Vermelho. Como alternativa, a
advogada evoca o artigo 550 da Lei 3.071, de 1916, popularmente conhecida como usucapião.
Para tanto, admite novamente a inconsistência da cadeia dominial:
Tanto acreditavam ser os legítimos proprietários, até a presente data que
realizaram benfeitorias no imóvel em questão [...] e quando constaram a falha
de seu título, que diga-se de passagem foi registrado em Cartório,
demonstrando a fragilidade de nosso sistema notarial, ficaram e estão em
estado de incredulidade, haja vista ter sido o negócio realizado após uma
consulta ao Cartório de Registro de Imóveis desta comarca, onde constatou-
se que a área pertencia ao [nome do antigo proprietário]. (p. 07).

90
Processo acessado no acervo público do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul em Campo Grande (MS).
173

Nessa perspectiva, é preciso compreender que a origem e reprodução dos latifúndios no


Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS) é no mínimo questionável, necessitando ampla varredura
nos cartórios de imóveis dos municípios estudados.
Ressalta-se a grilagem como um processo atual e contínuo de apropriação ilegal de
terras devolutas por todo o país. São novas técnicas, novos arranjos, mas em sua essência está
a busca pela sua apropriação e a extração da renda da terra. O uso do poder político para alienar
as funções do Estado, incluindo leis e órgãos regulatórios, para benefício particular de
apropriação de terras devolutas, foi constante no século XX.

3.5.2 CERCAS VIRTUAIS: O GEORREFERENCIAMENTO COMO


INSTRUMENTO DE GRILAGEM

A evolução da grilagem na formação dos latifúndios, no decorrer do século XXI, aporta-


se em legislações permissivas e no uso de geotecnologias. Neste sentido, cabe lembrar que, por
meio do legislativo, sobretudo da mencionada MP 422, foi estabelecido a possibilidade de
regularização de posses na Amazônia Legal até 1.500 hectares, e os Decretos 9.309, 9.310 e
9.311/2018 expandiram o tamanho a ser legalizado para 2.500 ha. Novamente a hegemonia
latifundiária no Estado possibilitará a acumulação capitalista com a apropriação e regularização
de latifúndios. Soma-se a legislação favorável, o uso de tecnologias de georreferenciamento
como instrumento de legitimação de posses em áreas da união.
Embora seja uma ferramenta ambiental, o Cadastro Ambiental Rural (CAR), criado pela
Lei nº 12.651, de 2012, com o objetivo de fiscalizar e regularizar reservas legais e áreas de
proteção permanente (APP), tem sido utilizado na atualidade como instrumento de validação
de posses sobre terras devolutas ou outras áreas públicas. Como o CAR não é uma ferramenta
fundiária, não se exige do proprietário documentos que garantam a legitimidade da propriedade,
apenas um título registrado em cartório. Aliás, o CAR é auto declaratório, logo, a extensão e
limites da propriedade são feitos pelo próprio declarante.
Contraditoriamente, a geotecnologia do CAR se aproxima dos registros paroquiais do
século XIX, pois os limites das propriedades eram imprecisos e limitados por meio de marcos
naturais, como rios, córregos, morros e árvores. Situação alarmante, comprovada pelo
excessivo número de sobreposições de CAR’s, como apresentada por Tupiassu et al. no estado
do Pará:
Estudo sobre os registros do CAR demonstra igualmente que, em 150 mil
registros analisados, 108 mil contêm sobreposições, sendo que destes, 48 mil
174

preenchem mais de 100% do imóvel rural, incidindo completamente entre


eles. São, geograficamente, registros dentro de registros. (2017, p.197).

Mesmo havendo erros de uso das geotecnologias, há no centro das sobreposições a


intencionalidade de regularização de posses indevidas sobre terras públicas ou pertencentes a
povos indígenas e quilombolas. As sobreposições atingem terras indígenas, como aponta91 a
análise feita por Dellabrida e Fernandes (2020): “Ao todo, 7.739 imóveis rurais inseridos no
CAR estão em terras indígenas, totalizando 12.310.790 hectares sobrepostos, área maior que a
da Coreia do Norte. O Brasil tem 850 milhões de hectares.” (s/p).
Portanto, houve a alienação de uma geotecnologia por latifundiários para legitimar a
grilagem. Tupiassu et al.(2017) ressaltam que o CAR é utilizado no Pará como base documental
para concessão de financiamentos públicos municipais e regularização fundiária, mesmo o
declarante não apresentando nenhum registro de matrícula do imóvel. É neste contexto que a
grilagem permanece na atualidade como estratégia de formação e legitimação dos latifúndios
sobre terras públicas.
Nessa perspectiva, Sparovek et al (2019) também apontam sobreposições de CAR entre
propriedades públicas e privadas por todo o Brasil, totalizando 176 milhões de hectares: “[...]
while overlaps between public and private land tenureclasses sum 176 million ha (50%) and
overlaps between differentclasses of private land sum 7 million ha (2%).” (Sparovek et al, 2019,
p. 3). As sobreposições fazem os autores chegarem ao centro da discussão deste capitulo, a
ilegitimidade da propriedade fundiária no Brasil e o caos fundiário causado pela grilagem que
provocam inúmeros conflitos por terra e território:
However, regardless of the explanation suchwidespread uncertainties in land
tenure clearly illustrate the large ex-tent of Brazilian land that either under
legal dispute or at risk of beingunder legal dispute in different levels of policy
and decision making,from the municipal to federal one. (SPAROVEK et al.,
2019, p. 3).

O georreferenciamento, por meio do CAR, também produz documentos de propriedades


inexistentes, utilizados posteriormente como garantia para empréstimos ou acesso a
financiamentos públicos. São latifúndios criados virtualmente que lesam a sociedade e, segundo
o relatório da CPT/ABRA/GRAIN/AATR (2020), existe uma incongruência entre os números
do CAR e área cadastrável no território brasileiro (figura 12), pois há “excesso” de imóveis
cadastrados a mais (27,7%) do que realmente pode ser georreferenciado.

91
Disponível em:<https://deolhonosruralistas.com.br/2020/10/27/terras-em-297-areas-indigenas-estao-
cadastradas-em-nome-de-milhares-de-fazendeiros/?fbclid=IwAR1-
dfKy9qt7oAF4TksdIQRGaZggnycVZowK5F5hxSYgQEU9gned03_bO3c>. Acesso em: 02 nov. 2020.
175

Cadastro Ambiental Rural: Brasil Real X Brasil Virtual

Fonte: CPT/ABRA/GRAIN/AATR, 2020.


O Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF), gerenciado pelo INCRA e utilizado nesta
pesquisa como fonte de dados também não escapa às críticas. Mesmo sendo o meio de
georreferenciamento mais seguro por exigir a cópia do título de registro do imóvel, o SIGEF
também possui falhas. O corte no orçamento geral do INCRA também afetou o setor
responsável pelo sistema, assim há evidente déficit na estrutura do SIGEF limitando sua
operacionalização e, até mesmo a disponibilização dos dados92. Em meio a escassez de recursos,
as mudanças na Legislação por meio de Decretos e Medidas Provisórias alteraram
constantemente os critérios sobre a regularização e georreferenciamento. Como exemplo, a
Instrução Normativa93 09/2020 da Funai que abriu a possibilidade de georreferenciamento de
imóveis particulares no SIGEF mesmo estando sobre terras indígenas em processo de
demarcação:
A IN 3/2012, revogada pela IN 9/2020, permitia que propriedades privadas
incidentes em terras sob estudo de identificação e delimitação (fase do rito
demarcatório que pode durar décadas) fossem inscritas no Sistema de Gestão
Fundiária (Sigef), o que impedia a emissão de atestados administrativos aos
respectivos proprietários, desrespeitando o direito constitucional de posse e
propriedade. A IN 9/2020 sanou esta inconstitucionalidade, trazendo solução
a um longo impasse. (FUNAI, S/P, 2020).

O Ministério Público Federal (MPF) suspendeu94 a Instrução Normativa diante da alta


possibilidade de grilagem de terras indígenas e de conflitos decorrentes. Segundo o relatório da

92
Constantemente a página do SIGEF apresenta problemas de funcionamento. Disponível
em:<https://sigef.incra.gov.br/>. Acesso em: 28 dez. 2020.
93
Disponível em:<http://www.funai.gov.br/index.php/comunicacao/noticias/6399-instrucao-normativa-n-9-
2020-da-funai-promove-seguranca-juridica-e-pacificacao-de-conflitos>. Acesso em: 28 dez. 2020.
94
Disponível em:<http://www.mpf.mp.br/am/sala-de-imprensa/noticias-am/justica-federal-atende-mpf-e-
determina-medidas-para-evitar-grilagem-de-terras-indigenas-no-am>. Acesso em: 28 dez. 2020.
176

CPT/ABRA/GRAIN/AATR (2020, p. 10), a auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU),


publicada em 2020, via Acórdão nº 727, apontou sérios indícios de tentativas de grilagem na
Amazônia Legal utilizando-se do SIGEF: “[...] com a inscrição de pelo menos 657,9 mil
hectares de áreas não passíveis de regularização fundiária na Amazônia Legal para utilização
posterior por grileiros como documentação precária para a comercialização destas áreas.” (p.
10).
Dentro do processo de cadastro e georreferenciamento no SIGEF há caminhos possíveis
de um imóvel ser cadastrado sem a confirmação do seu registro em cartório. O Incra permite a
certificação do imóvel sem apresentar documentação do registro de imóveis desde que seu
georreferenciamento não sobreponha aos imóveis vizinhos. Neste caso, o imóvel aparece na
página do SIGEF como certificado, mas pendente de confirmação de registro em cartório:
“Certificada – Sem Confirmação de Registro em Cartório Parcela certificada pelo SIGEF de
acordo com a Lei 6.015/73 e pendente de confirmação do registro da certificação em cartório.”
(FONTES, 2018, p. 212).
No SIGEF, até novembro de 2020, havia o registro de 312.392 imóveis sem confirmação
de registro em cartórios. O grande número de imóveis sem comprovação cartorial aponta a
insegurança jurídica da propriedade capitalista da terra no Brasil. Estes imóveis totalizam
85.672.095 de hectares e estão localizados por todo o Brasil, como demonstrado no mapa 8.
Desta forma, há a dúvida sobre a legitimidade de 85 milhões de hectares registrados no
SIGEF, pois a certificação feita pelo INCRA aponta que estes imóveis existem e foram
georreferenciados, todavia sua classificação como “Sem Confirmação de Registro em Cartório”
indica a fragilidade da propriedade da terra no Brasil e a possível existência de milhares de
grilos.
Destaca-se o estado de Mato Grosso, com mais de 19 milhões de hectares em imóveis
sem confirmação de registro em cartório, seguido pelos estados da Bahia, com 9.247.754 ha e
Goiás, com 7.131.320 ha. Mato Grosso do Sul também apresenta elevado número de imóveis
certificados no SIGEF sem documento de confirmação em cartório, totalizando 6.669.246
hectares próximos, principalmente, ao bioma Pantanal.
177

Mapa 8 – Brasil: Status dos imóveis certificados no SIGEF (2020)


178

A obrigatoriedade de georreferenciamento no SIGEF, quando o imóvel é vendido,


imposta pela Lei 10.267/01, atingiu o cerne da propriedade capitalista da terra no Brasil, a
renda. Assim, mesmo que a documentação do imóvel seja falha, o vendedor/proprietário tem
que registrá-lo no SIGEF. Nesse sentido, o INCRA tem uma poderosa base de informações para
fiscalização da grilagem, restando-lhe condições técnicas e de pessoal, além do respaldo
político para combatê-la.
O uso de ferramentas de georreferenciamento para “cercar” terras públicas ou
tradicionalmente ocupadas por povos indígenas e quilombolas não é uma exclusividade do
Brasil. Este movimento tem se intensificado na América do Sul como sinal da busca de adição
de mais terras à dinâmica fundiária promovida pelo agronegócio.
Segundo o relatório Grain (2020 95), há na América do Sul cinco zonas de expansão de
atividades relacionadas à titulação e georreferenciamento de terras que colocam no circuito
produtivo novas áreas para exploração. Assim:
[...] o processo de digitalização, titulação e financeirização das terras nas
cinco zonas de expansão e investimento do agronegócio identificadas para a
América do Sul: a Orinoquia ou os Llanos Orientais na Colômbia; o Matopiba
no Cerrado brasileiro; e as regiões no curso da rota de escoamento da Hidrovia
Paraná-Paraguai: os departamentos de Santa Cruz de la Sierra e Beni nos
bosques secos chiquitanos na Bolívia; o Chaco Seco Paraguaio e o Chago
Argentino. (2020, p. 1).

A regularização fundiária e o georreferenciamento promovidos pelos países citados


contam com investimentos internacionais, especialmente do Banco Mundial. No caso
brasileiro, “Cerca de U$ 45,5 milhões com recursos destinados às mudanças climáticas (Climate
Change Mitigation Trust Fund) foi contratado em empréstimos apenas para a inscrição dos
imóveis rurais no Cadastro Ambiental Rural (CAR).” (GRAIN, 2020, p. 9).
Trata-se da renovação da histórica estratégia de grilagem para apropriação de terras
públicas utilizando-se de “cercas digitais” construídas inicialmente sem conflitos, mas que
promovem a expropriação de camponeses, posseiros indígenas e quilombolas de suas terras.
Nessa perspectiva, são construídas técnicas, normas que, além de promoverem a grilagem,
negam a existência e legitimidade da propriedade dos povos do campo:
Bancos e órgãos públicos vem negando a legalidade da inscrição dos
territórios coletivos no CAR, exigindo a inscrição individual como imóvel
rural particular para conferir acesso a crédito e a políticas públicas, o que vem
gerando um verdadeiro apagamento dos territórios coletivos do mapa. Apenas
6 % do território cadastrável ou 34,5 milhões de hectares foram declarados
como Terras Indígenas, Territórios Quilombolas e territórios de povos e

95
Disponível em:<https://www.grain.org/en/article/6531-cercas-digitais-cercamento-financeiro-das-terras-
agricolas-na-america-do-sul> Acesso em: 17 dez. 2020.
179

comunidades tradicionais, embora dados oficiais indiquem que apenas de


territórios indígenas há 117 milhões de ha ou 13,7% do território nacional.
(FUNAI/2020). (GRAIN, 2020, p. 11).

Assim como ocorreu com os registros do século XX, em especial os paroquiais e os


cartoriais, o georreferenciamento também se tornou a estratégia de apropriação capitalista da
terra. Cabe ao Estado brasileiro e autarquias responsáveis, como o INCRA, repensarem a
importância do SIGEF tornando-o ferramenta de fiscalização da grilagem no país.
Contudo, ao invés de combater a grilagem, Governo Federal instituiu o programa
denominado Titula Brasil por meio da Portaria Conjunta nº 1 de 2 de dezembro de 2020. O
programa é coordenado pelo secretário Especial de Assuntos Fundiários do Mapa, Nabhan
Garcia, já mencionado nesta pesquisa por sua participação na UDR representando os interesses
latifundiários.
A Portaria96 estabelece o objetivo do programa:
Art. 1º Instituir o Programa Titula Brasil com o objetivo de aumentar a
capacidade operacional dos procedimentos de titulação e regularização
fundiária das áreas rurais sob domínio da União ou do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária. (BRASIL, 2020).

O programa objetiva a regularização de imóveis sobre terras públicas com tamanho até
2.500 hectares em todo o país. Além disso, o Titula Brasil objetiva também a concessão dos
títulos de propriedade para os assentados de Reforma Agrária. Desta forma, o Governo Federal
mascara os interesses de latifundiários e capitalistas somando-os às questões ligadas à política
de Reforma Agrária. Por outro lado, a titulação dos lotes de Reforma Agrária pode recolocar
no mercado de terras estas áreas reformadas.
A possibilidade de anistia à grilagem pelo Titula Brasil se torna mais eminente pela
transferência da responsabilidade do processo de regularização para os municípios: “Art. 2º O
Programa será executado diretamente pelo Núcleo Municipal de Regularização Fundiária –
NMRF” (BRASIL, 2020). Assim, as relações locais de poder entre latifundiários e política,
evidenciadas nesta pesquisa, ganham mais força, com a possibilidade de controle das elites
rurais sobre a estrutura fundiária. A descentralização da fiscalização e da regularização
fundiária, que deveria estar sob os cuidados do INCRA, e agora sob responsabilidade dos
municípios, acaba por minar os poderes da autarquia.

96
Disponível em:<https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-conjunta-n-1-de-2-de-dezembro-de-2020-
291801586>. Acesso em: 10 abr 2021.
180

4 A (RE)CRIAÇÃO DO CAMPESINATO NO PARQUE DAS EMAS (GO)


E NO BOLSÃO (MS)

Segundo Cardoso (1997, p.17), “A história da reforma agrária, no Brasil, é uma história
de oportunidades perdidas”, e foi, provavelmente, no Governo Lula a grande oportunidade
perdida do início do século XXI de Reforma Agrária popular ampla, combatendo os latifúndios
e promovendo justiça social. A morosidade na criação de assentamentos rurais, a inflação dos
números, adicionando dados de reconhecimento de terras de períodos anteriores e a lentidão
para criação de infraestrutura e implantação de políticas públicas, marcaram os governos
petistas de 2003 a 2016.
Entre as poucas conquistas, as frações do território, nelas, o campesinato desdobra-se
diante das condições desfavoráveis para conservar sua condição enquanto classe social,
mantendo sua base, entendidas aqui pela tríade família, trabalho e terra (SHANIN,1983)
(PAULINO, ALMEIDA, 2010). Estas condições acabam forçando os camponeses a optarem
por diferentes relações econômicas, sociais e políticas, muitas delas contraditórias ao
campesinato.
A ordem moral do campesinato (WOORTMANN, 1990), principalmente do patriarca
em garantir as condições mínimas de reprodução da sua família, o faz aceitar relações
conscientemente desiguais ou contraditórias. Diferentemente de uma empresa agrícola, o
objetivo do campesinato não é o lucro, mas satisfazer as necessidades básicas da sua família.
Sendo assim:
La unidad doméstica campesina se caracteriza por uma casi total integraciónde
la vida de la família y su explotación agrícola. La família suministra el trabajo
necessário mientras que las atividades agrícolas se orientan, principalmente, a
la producción suficiente para satisfacer sus necessidades básicas y los tributos
impuestos por los poseedores del poder económico y político. (SHANIN,
1983, p.54).

Assim, o campesinato dos séculos XX e XXI apresenta a habilidade de se ajustar a novas


condições e também de encontrar novas formas de se reproduzir enquanto classe, adotando
estratégias que abrangem desde o turismo até a combinação do trabalho camponês com o
trabalho não-camponês (SHANIN, 2008). Portanto:
Ao mesmo tempo, podemos concluir que a resposta do campesinato às
situações de crise nas quais eles são submetidos é sobretudo complexa e eles
não ficam esperando que alguém traga a solução. As soluções encontradas
para o problema de como permanecer camponês e assegurar a subsistência da
família costumam ser muito flexíveis, inventivas e criativas. Camponeses
têm provado ser extremamente resilientes e criativos em situações de crise
181

e não há uma forma simplista para descrever isso. (SHANIN, 2008, p. 25).
(Grifo nosso).

De fato, como afirma o autor, é impossível determinar ou generalizar as respostas do


campesinato diante de situações de crise. Por essa razão, ao longo deste capítulo serão
apresentadas as estratégias percebidas e compreendidas durante os trabalhos de campo
realizados em assentamentos de Reforma Agrária no Parque das Emas e no Bolsão. Certamente,
outras maneiras e formas mais específicas e singulares passaram despercebidas, no entanto, as
estratégias evidenciadas aqui demonstram a criatividade camponesa e, ao mesmo tempo,
situações limitantes e contraditórias que garantem mesmo temporariamente, a manutenção da
família na terra.
Portanto, este capítulo dedica-se a compreender e discutir como a relação dialética do
campesinato com o capital e Estado brasileiro possibilita sua recriação. Diferentes práticas
elucidarão a recriação camponesa no Parque das Emas (GO) e no Bolsão (MS), algumas
colocando em risco por vezes a sua terra, a autonomia de seu trabalho e a permanência da
família no campo. A adaptação camponesa aos momentos de crise (SHANIN, 1980) na
atualidade permeia sua associação a políticas públicas neoliberais e até mesmo a relações
ambíguas com políticos ou parcerias com empresas capitalistas. Sendo assim:
Isso significa compreender que sua reprodução e sua luta diária são feitas
tendo como base a manutenção de valores considerados tradicionais: família,
terra e trabalho. Esse parece ser o limite, mas também o seu possível, uma vez
que tem sido capaz, nessa luta, de (re)inventar novas formas de enfrentamento,
um novo jeito de lutar o que tem garantido sua reprodução para muito além
das determinações do capital. (ALMEIDA, 2006, p.108).
A consciência camponesa sobre este processo não pode ser ignorada, ou seja, não há
passividade, mas sim compreensão das questões objetivas fazendo com que os camponeses e
em momentos de crise cedam parte da sua autonomia ao capital. Por outro lado, há ainda
estratégias que buscam a autonomia e emancipação dos camponeses, revelando a participação
política, sobretudo das mulheres como via para a recriação.
O capítulo será desenvolvido a partir das informações obtidas nos trabalhos de campo
nos assentamentos rurais da área estudada, considerando as entrevistas concedidas pelos
camponeses. Pontualmente, dados de fonte secundárias serão utilizados para complementar as
informações apresentadas. Todas as informações serão interpretadas a luz teórica de Shanin
(1980), sobre estrutura do campesinato dentro do capitalismo; Almeida (2006), no habitus de
classe camponês; Paulino (2003), sobre a (re)criação camponesa e o papel do Estado brasileiro;
Chayanov (1974), como ponto de partida na organização da unidade/lote camponês e
Woortmann (1990), com a análise do modo de vida camponês.
182

Nesta pesquisa, não se objetiva apresentar de maneira absoluta a recriação camponesa,


pelo risco de a generalização excluir as especificidades locais diversas observadas no Parque
das Emas (GO) e no Bolsão (MS). No entanto, serão aduzidas questões estruturais à recriação
agricultura camponesa, sobretudo, o que diz respeito a sua relação com Estado e agricultura
capitalista.

4.1 REFORMA AGRÁRIA E CONTRADIÇÃO NO BRASIL

A luta pela terra no Brasil precede a formulação da política de Reforma Agrária. Isso
porque o campesinato brasileiro origina-se historicamente na exclusão do acesso à terra no
processo reprodutivo dos latifúndios desde o período colonial. Segundo Almeida (2006),
diferentemente do que ocorreu na Europa, o campesinato brasileiro se originou dentro da
exploração colonial latifundiária, no qual os brancos livres e pobres se dedicavam à produção
de alimentos (ALMEIDA, 2006). Segundo a autora:
Assim, diferentemente do camponês europeu, o campesinato brasileiro
tradicional foi concebido às margens do sistema escravista-latifundiário-
exportador. A ele não foi dado o direito à terra, restando a posse como
alternativa. No entanto, a concessão da sesmaria tinha precedência legal sobre
a terra dos posseiros, cabendo ao fazendeiro decidir sobre sua permanência ou
não na situação de agregado. (ALMEIDA, 2006, p. 104).

De acordo com Martins (1981), o camponês era duplamente excluído, pois não era
proprietário de terras, mas também não estava na condição de escravo. Desta maneira, o
trabalhador livre e produtor de alimentos em pequenas posses ou mesmo no interior do
latifúndio, com a anuência do proprietário, possibilitaram a formação do camponês brasileiro.
Portanto, o campesinato brasileiro se originou da contradição da reprodução do latifúndio, de
acordo com Martins (1981, p. 35), “Com isso, os direitos que viviam como agregados só eram
reconhecidos como extensão dos direitos do fazendeiro, como concessão deste, como questão
privada e não como questão pública”. A reprodução camponesa ocorre sem o domínio da terra.
Martins acrescenta:
Mas não somente os agregados constituíam o campesinato da época. Também
havia os posseiros e os sitiantes. Ambos às vezes se confundiam, porque a
condição de posseiro dizia respeito à relação jurídica com a terra, quando o
camponês tinha a posse, mas não tinha o domínio. (MARTINS, 1981, p. 35).
183

Para o autor, o trabalho cativo amenizava as contradições eminentes entre fazendeiros e


camponeses e, com o fim da escravidão, o antagonismo em torno da propriedade da terra e seu
monopólio passou a evidenciar a conflitualidade entre os sujeitos.
Assim como na Europa, as interpretações sobre o campesinato passaram pela sua
compreensão como obstáculo ao desenvolvimento da sociedade, pela barbárie de sua condição
como classe e até profecias de seu desaparecimento com a intensificação das relações
capitalistas (FABRINI, 2004). Contrariando as previsões, a permanência do campesinato nos
dias atuais no Brasil é compreendida pela sua consolidação no capitalismo como agricultor
familiar (ABRAMOVAY, 1992) ou explicada como classe social resultante da contradição
gerada pelo desenvolvimento do capitalismo no campo (OLIVEIRA, 1991). Assim:
Vamos encontrar no campo brasileiro, junto com o processo geral de
desenvolvimento capitalista que se caracteriza pela implantação das relações
de trabalho assalariado (bóias-frias, por exemplo), a presença das relações de
trabalho não-capitalistas como, por exemplo, a parceria, o trabalho familiar
camponês, etc. (OLIVEIRA, 1991, p.18).

Considerando a contribuição sobre o campesinato apresentada por Oliveira (1991), o


processo de sua recriação deve ser analisado considerando-se as contradições, problemáticas e
os contextos das políticas públicas nas quais estão inseridos, rompendo com qualquer ideia
mecanicista de reprodução social. Portanto:
O exemplo clássico de existência camponesa garantida mais pela luta e
resistência do que a possibilidade que capitalismo cria ou abre para os
camponeses é o dos sem-terra. A contradição e desigualdade das relações
capitalistas estão no enfrentamento e na recusa à proletarização e pagamento
da renda da terra que surge em descompasso ao desenvolvimento das forças
produtivas. Se o capitalismo fecha seu futuro, os camponeses abrem
possibilidade de existência por meio de lutas e resistência. (FABRINI,
2004, p,128). (Grifo nosso).

Desta maneira, a recriação do campesinato ocorre no interior do desenvolvimento


desigual, contraditório e combinado do capitalismo no campo (OLIVEIRA, 1991). A renda da
terra é chave para a compreensão dessa contradição, pois em determinadas produções de
cultivos, especificamente quando a renda é baixa, o capital cede frações do território para a
produção camponesa se apropriando, posteriormente, da renda na circulação da produção
(OLIVEIRA, 2007). Almeida (2006) complementa afirmando que “[...] o crescimento das
explorações familiares camponesas tem representado o seguro fornecimento de alimentos à
mesa do trabalhador e a transferência de renda para o capital, que passa a ser auferida na
circulação.” (p. 96).
184

Logo, o campesinato é uma classe social entendida na contradição do desenvolvimento


desigual do capital e não como exterior a este modo de produção (PAULINO, ALMEIDA,
2010). O capitalismo, ao se apropriar da renda gerada pela produção camponesa, permite, ao
mesmo tempo, que esta classe social se reproduza minimamente.
Todavia, as explicações teóricas sobre o campesinato como classe social no capitalismo
não podem reduzir sua recriação como simples processo mecânico, pelo contrário, grande parte
do campesinato brasileiro tem se recriado por meio da luta pela terra, como apresenta Martins
(1981) as lutas camponesas até meados do século XX, apontando a importância de movimentos
messiânicos, como Canudos, Cangaço, Contestado e, posteriormente, nas décadas de 1940 e
1950, as Ligas Camponesas.
Só a partir das Ligas Camponesas que o acesso à terra se tornou objeto de formulação
de políticas públicas. Stedile (2005) aponta o discurso do Senador Luiz Carlos Prestes, do
Partido Comunista Brasileiro (PCB), como a primeira proposta de Reforma Agrária na
Constituinte de 1946. Outras propostas surgiram após a fala de Prestes, dentre elas da Igreja
Católica, em 1950; do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), em 1954 e do Deputado Federal
Leonel Brizola, em 1963 (STEDILE, 2005).
O debate sobre a Reforma Agrária ganhou força no Governo de João Goulart (1961-
1964), no qual o Presidente propôs o Decreto 53.700, de 1964, que não chegou a ser analisado
devido ao golpe em abril de 1964 (STEDILE, 2005). De acordo com Oliveira (2007), “Com o
golpe militar de 1.964 o projeto de reforma agrária de Goulart foi liquidado e procedeu-se a
uma verdadeira caçada às lideranças sindicais que militavam nas Ligas Camponesas.” (p. 120).
O Decreto de Goulart previa a criação de assentamentos, principalmente em terras
públicas, ao longo das rodovias ou de grandes obras. Gourlat se mostrava contrário aos
interesses latifundiários nos projetos de Reforma Agrária e, em seu comício, em março de 1964,
apresentou posicionamento contrário ao pagamento para a desapropriação dos latifúndios
improdutivos. Para tanto, considerava:
Reforma agrária com pagamento prévio do latifúndio improdutivo, à vista e
em dinheiro, não é reforma agrária. Reforma agrária como consagrado na
Constituição, com pagamento prévio e em dinheiro, é negócio agrário,
que interessa apenas ao latifundiário, radicalmente oposto aos interesses do
povo brasileiro. (STEDILE, 2005, p. 103) (Grifo nosso).

A primeira legislação de Reforma Agrária foi promulgada em 1964, por meio da Lei
4.504, do Estatuto da Terra, em um contexto de forte pressão popular, sobretudo externa
(OLIVEIRA, 2007). Sob a égide da Reforma Agrária, o Estatuto da Terra atendeu aos interesses
185

de latifundiários e capitalistas orientando projetos de colonização na Amazônia e no Centro-


Oeste brasileiro, permitindo-se a apropriação de extensas áreas pertencentes à União.
Com o início do processo da “Transição Democrática”, em 1985, formulou-se um novo
projeto de Reforma Agrária, anunciado durante o IV Congresso Nacional dos Trabalhadores
Rurais (OLIVEIRA, 2007). A nova proposta, intitulada I Plano Nacional de Reforma Agrária
(IPNRA), apresentava metas para a criação de assentamentos, objetivando assentar 1.400.000
famílias. Mas, no entanto, o I PNRA não alcançou os objetivos propostos, principalmente por
conta da disputa no interior do Estado brasileiro pelas oligarquias rurais representadas pela
UDR (OLIVEIRA, 2007). Desta forma:
O governo Sarney, passou a investir na propaganda governamental para
alimentar a ilusão de que um dia a Reforma viria. Foi por isso, que na região
Norte apenas 18% das terras previstas foram desapropriadas; no Nordeste,
6%; no Sudeste, 4%; no Sul, 10%, e no Centro-Oeste, 12%. Depois de dois
anos, menos de 10% das metas do I PNRA tinham sido implantadas. O
motivo: a falta de vontade política e a prevalência da defesa dos interesses dos
latifundiários organizados na UDR – União Democrática Ruralista.
(OLIVEIRA, 2007, p.127).

Contudo, “Em 1985 com a implantação do plano, passou a ocorrer forte luta entre a
UDR (União Democrática Ruralista), o governo Sarney e os camponeses sem-terra, posseiros,
etc. O objetivo da UDR foi a inviabilização da implantação do I PNRA.” (OLIVEIRA, 2007,
p.124). Portanto, a UDR atuou diretamente na não efetivação da Reforma Agrária e, de acordo
com (STEDILE, 2005), na Constituinte em 1987, a temática sofreu retrocessos em relação ao
Estatuto da Terra, consolidando a aliança terra-capital.
A força política da UDR inviabilizou a efetivação do I PNRA e acabou por ser extinto
com a eleição do Governo Collor (PRN), em 1990. Graziano Neto (1991), relata a política como
principal adversária na execução do PNRA: “Argumenta-se que a composição de forças que
elegeu Tancredo/Sarney não permitia jamais uma profunda revisão da estrutura agrária”. (p.18).
É mister reconhecer na década de 1980, a organização dos camponeses materializada
no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), ampliando a luta pela terra no país
por meio de novas estratégias. A ocupação de terra se tornou a principal ação dos movimentos
socioterritoriais atuais na luta pela conquista de frações do território. Como defende Fernandes
(1999), a ocupação é uma forma de materialização da luta de classes. Portanto, “A ocupação é
um processo socioespacial e político complexo que precisa ser entendido como forma de luta
popular de resistência do campesinato, para sua recriação e criação.” (FERNANDES, 1999, p.
270). Assim a figura 13, demonstra-se o número de ocupações de terras por ano e ao longo dos
mandatos dos últimos governos federais no Brasil.
186

Na década de 1990, principalmente durante o Governo de Fernando Henrique Cardoso


(FHC) (PSDB), as lutas camponesas, sob a bandeira do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST), se acirraram por todo o país, culminando com o massacre de Eldorado dos
Carajás, em 1996, e diversos outros conflitos. Reagindo à pressão social, o Governo FHC, de
forma tímida, assentou famílias, mas, ao mesmo tempo, criminalizou as ações dos movimentos
sociais por meio das medidas provisórias 2.027-38, de 4 de maio de 2000, e 2.109-52, de 24 de
maio de 2001, paralisando o processo de desapropriação do imóvel ocupado e excluindo da lista
do benefício da Reforma Agrária o indivíduo envolvido em ocupações de terra (MELO, 2017).
Ainda naquele período, foram criados outros projetos para acesso à terra, objetivando
esvaziar o conteúdo político do PNRA e a luta camponesa, entre eles:
[...] criou o Projeto Cédula da Terra e o Banco da Terra visando implantar uma
autêntica contra reforma agrária via mercado como gostam de afirmar as
lideranças dos movimentos sociais. [...] a inscrição para assentamentos da
reforma agrária pelo correio, veiculada com propaganda televisiva e impressa
afirmando que a ‘porteira está aberta para a reforma agrária, é só entrar e
inscrever-se’, foi outro estelionato das políticas do PSDB de FHC.
(OLIVEIRA, 2007, p.144).

Com a eleição de Luís Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), em
2003, a perspectiva de avanço nas pautas sociais e populares e o possível diálogo com os
movimentos socioterritoriais refletiram na redução das ocupações de terras (NARDOQUE;
MELO; KUDLAVICZ, 2018). A expectativa da conquista da terra e a implementação de
políticas sociais de combate à pobreza, como Fome Zero e Bolsa Escola transformados em
Bolsa Família, também refletiram na redução das ações dos movimentos.
Naquele contexto, iniciou-se a elaboração do II Plano Nacional de Reforma Agrária (II
PNRA) com o auxílio de intelectuais, como Plínio de Arruda Sampaio (OLIVEIRA, 2007).
Segundo Ramos Filho (2008), “A proposta ficou conhecida como Plano Plínio e estipulou,
dentre outras metas, o assentamento de um milhão de novas famílias em áreas de reforma
agrária”. (p.226).
A participação dos movimentos socioterritoriais, em especial o MST, foi fundamental
na pressão pela Reforma Agrária. O arrefecimento da luta direta por meio das ocupações, nos
últimos anos, explica-se, em parte, pelo alinhamento político do MST aos governos do PT e
pelo mencionado aumento da qualidade vida resultante das políticas sociais implantadas
naquele período (NARDOQUE, KUDLAVICZ, MELO, 2018). Portanto, a luta de classes e a
questão agrária brasileira saíram do âmbito das políticas reformistas do país e foram realocadas
idelogicamente e dentro do Estado como questões sociais de combate à pobreza.
187

No gráfico (figura 13), apresenta-se o número de ocupações de terras realizadas no


Brasil entre os anos de 1988 e 2019. Principal ação dos camponeses e movimentos
socioterritoriais para a realização da Reforma Agrária, as ocupações de terra atingem
diretamente o que é considerado sagrado pelos latifundiários e burgueses no Brasil, a
propriedade privada e denunciam a grilagem e o não cumprimento da função da terra. Nesse
sentido, as ocupações apresentaram redução a partir de 2005 quando se compara aos anos
anteriores. Nesse sentido, é evidente a opção política do MST em apoiar os governos petistas,
paralisando as ações de ocupação do próprio movimento. Esta estratégia custa caro aos
camponeses uma vez que este é considerado o maior movimento de luta pela terra na atualidade.
Apesar do declínio das ações do MST, os dados do DATALUTA revelam o surgimento
de novos movimentos no campo realizando ocupações de terras, com destaque para a luta
indígena em Mato Grosso do Sul (MELO, 2017).

Brasil ocupações de terra (1988-2019)

Fonte: CEDOC Dom Tomás Balduíno 2020, DATALUTA 2020. (Organização do autor).

Os anseios dos camponeses e movimentos socioterritoriais pelo acesso à terra, por meio
de uma política pública de Reforma Agrária efetiva, não se concretizaram durante os governos
de Lula. Entretanto, apesar da cumplicidade do MST em não realizar ocupações diante da não
reforma agrária do Partido dos Trabalhadores, a luta pela terra, em especial os conflitos por
188

terra continuam a crescer como aponta os dados97 do CEDOC Dom Tomás Balduíno (2021),
onde mesmo diante da pandemia de Covid-19 houveram 1.608 conflitos por terra envolvendo
17.1968 famílias. Desta maneira, a luta pela terra e o engajamento dos camponeses em
movimentos socioterritoriais continuam sendo a principal estratégia de pressão política dentro
do Estado brasileiro para realização da Reforma Agrária.
Isso decorre porque a meta estabelecida no II Plano Nacional Reforma Agrária (II
PNRA), criado em 2003, de assentar 400 mil famílias não foi alcançada (OLIVEIRA, 2007). O
autor ainda desnuda os dados apresentados pelo governo naquele período, indicando que fora
acrescentado aos números de famílias assentadas, dados sobre a regularização fundiária de
assentamentos criados em anos anteriores. Portanto:
Em 2004, o procedimento não foi diferente, foram divulgados no total 81.254
famílias assentadas. Novamente, o número total escondia, portanto, a
incapacidade do MDA/INCRA em cumprir as metas que eles mesmos
colocaram no II PNRA. Desagregando o dado total, foram realizados 26.130
novos assentamentos – Meta 01; 9.657 regularizações fundiárias, Meta 02; e
45.467 referentes às demais Metas, as reordenações fundiárias. Logo, o
governo deixou de cumprir novamente a Meta de 2004, que era de 115 mil
famílias, e a diferença foi de 105.343 famílias, ou seja, cumpriu apenas 8,4%
dela. (OLIVEIRA, 2007, p. 165).

Compreender a tímida Reforma Agrária do Governo Lula, diante da forte expectativa,


exige entender que apesar de ter sido um governo progressista eleito com bases populares, o
contexto do Estado latifundiário brasileiro, como apontado no capítulo 2, gerou grandes
contradições. Deste modo, ao passo que a agricultura capitalista, as indústrias à montante e à
jusante e o capital financeiro se beneficiavam da aproximação com Governo Lula, importantes
políticas e programas sociais amenizavam a conflitualidade entre as classes no Brasil,
colocando a Reforma Agrária em segundo plano. Sendo assim:
As razões dessa parcialidade encontram-se na difícil e contraditória
convivência da hegemonia do capital financeiro com políticas sociais
redistributivistas estabelecidas no governo Lula. Essa condição permitiu que
somente as políticas sociais fossem guiadas pelos critérios da assistência
social, como o Bolsa Família. A reforma não é uma política social
redistributivista, porque a propriedade fundiária no Brasil sempre esteve
concentrada, e tampouco é uma política de assistência social. (FERNANDES,
2013, p. 193).

Além de uma política não efetiva, nos dois mandatos do Governo Lula (2003-2006;
2007-2010), deu continuidade a estratégia de acesso à terra por meio da compra, criando-se o
Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF). Este governo foi marcado pelo forte apoio

97
Conflitos no campo: Brasil 2020. Centro de documentação Dom Tomás Balduíno, Goiânia: CPT Nacional
2021.
189

financeiro ao chamado agronegócio com recordes de investimento dos planos safras. Segundo
Nardoque (2018), o Governo Lula (PT) tentou promover a “paz” no campo realizando uma
Reforma Agrária sem conflitos de classe. Sendo assim:
No Governo Lula, partindo-se da premissa de o Partido dos Trabalhadores não
vislumbrar na reforma agrária um projeto nacional de distribuição de riqueza
e na tentativa de se estabelecer a governabilidade, fez-se o ‘pacto de
coalização’ com os capitalistas e latifundiários, além de cooptação dos
movimentos socioterritoriais, sobretudo o MST. (NARDOQUE, 2018, p.256).

No Governo Dilma (2011-2014; 2015-2016) também não se realizou a Reforma Agrária


tão esperada pelos camponeses, e ainda manteve o apoio financeiro e político ao agronegócio.
Como exemplo, não Plano Safra 2016/2017 destinou cerca de R$190,25 bilhões de reais em
crédito para a agricultura capitalista. Ironicamente, as oligarquias rurais, beneficiadas com
grande parte dos investimentos do MAPA e outras políticas, foram grandes apoiadoras do
impeachment contra a Presidente Dilma em 2016.
Além da benevolência creditícia, o Estado latifundiário e burguês brasileiro não tem
como prioridade a democratização do acesso à terra, como apresentado no gráfico (figura 14)
e, nos dizeres de Paulino (2008, p. 236), o Estado vem atuando como mediador de conflitos
entre as classes sociais, desta maneira tem realizado ações em favor da agricultura camponesa
devido ao poder de pressão do campesinato sobre a gestão pública.
Os números de assentamentos rurais criados no Brasil, entre os anos de 1985 e 2016,
mostram como as metas do IPNERA e do IIPNERA não chegaram perto de serem alcançadas,
reduzindo ainda mais durante o Governo Dilma. Assim:
Os denominados programas de reforma agrária do governo federal, neste
passado recente da história do Brasil, tornaram-se, quando muito, políticas de
caráter compensatório e populista. E, sequer foram implantados conforme o
previsto ou, quando o foram, rapidamente se esvaíram pela pressão política a
favor dos interesses de classe das classes dominantes. Mesmo assim, sempre
permaneceram à reboque das ocupações de terras pelos trabalhadores rurais
sem terra. (CARVALHO, 2004, p.121).

O gráfico (figura 14) demonstra, entre os anos de 1995 e 2006, os assentamentos criados
justamente pela ação dos movimentos socioterritoriais em evidenciar a necessidade do acesso
à terra e pressionarem os representantes do Estado brasileiro. Pode-se considerar o pequeno
avanço da Reforma Agrária no Brasil como resultado da intensa luta popular.
Entretanto, a partir de 2007, houve redução significativa, chegando a apenas 28
assentamentos criados em 2016. Esta paralisação explica-se, segundo Nardoque (2008), pela
conjuntura nacional do alinhamento dos governos petistas em tentar conciliar latifundiários,
burgueses e camponeses, interrompendo a criação de assentamentos, mas aumentando políticas
190

e programas sociais para a cidade e o campo. Nota-se, a partir do segundo mandato do Governo
Lula, a intensificação ou criação de programas destinados à agricultura camponesa, dentre eles:
Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e Programa de Aquisição de Alimentos
(PAA) (NARDOQUE; MELO; KUDLAVICZ, 2018) e (NARDOQUE, 2018).
Em síntese, os números apresentados no gráfico revelam que a Reforma Agrária no
Brasil nunca foi um projeto do Estado, mas sim produto da mediação de classes necessária entre
ruralistas e a luta dos camponeses e da luta popular. Nesta mediação, ocorrem por dentro do
Estado tentativas de esvaziar esta política, como a implantação da Reforma Agrária de Mercado
(Programa Nacional de Crédito Fundiário, por exemplo) e a escassez de recursos para os
assentamentos.

Brasil assentamentos rurais criados (1985-2019)

Fonte: INCRA, 2020, DATALUTA 2020. (Organização do autor).

A política pública de Reforma Agrária, gestada sob a perspectiva de um Estado burguês-


latifundiário, também exprime as contradições do desenvolvimento desigual, contraditório e
combinado do capitalismo. Isto porque a política, ao promover o acesso à terra às famílias
camponesas, também reafirma o rentismo no Brasil pagando pelas desapropriações de
latifúndios e, até mesmo, comprando-os. Soma-se a este contexto, o aumento exponencial os
recursos públicos viabilizados pelo Governo Federal em relação ao financiamento para a
191

agropecuária (Plano Safra). Segundo os dados apresentado pelo MAPA98, o volume de recursos
disponíveis para financiar a agricultura capitalista saltou de 27,1 bilhões, no Plano Safra
2013/2014, para 187,7 bilhões de reais, no Plano Safra de 2015/2016.
Os dados obtidos junto ao INCRA e organizados pelo DATALUTA (tabela 9), apontam
a realização da renda da terra na Reforma Agrária. Dos 4.131 assentamentos criados entre 2003
e 2017, 48% (1.998) foram de áreas obtidas por meio da desapropriação e 6% (255) por meio
da compra. Além disso, os dados da tabela 9 confirmam a crítica de Oliveira (2007) sobre a
inflação dos números da Reforma Agrária no Governo Lula, revelando que 21% dos
assentamentos “criados” foram na realidade apenas reconhecidos pelo Governo Federal.

Brasil: formas de obtenção de terras para reforma agrária (2003-2017)


Forma de Obtenção Nº (%)
Arrecadação 374 9%
Compra 255 6%
Desapropriação 1.998 48%
Doação 109 3%
Reconhecimento 855 21%
Transferência 116 3%
Outros* 424 10%
Total 4.131 100%
*Outros: Adjudicação, Cessão, confisco, Desafetação, Incorporação, Reversão de domínio.
Fonte: INCRA, 2019; DATALUTA; 2020. Organizado pelo autor.
Há, assim, uma questão importante a ser apresentada no âmbito da política de Reforma
Agrária, que é a forma de obtenção das terras destinadas para tal política. O Livro Branco das
Super Indenizações99, de 1999, demonstra como a Reforma Agrária tornou-se um grande
negócio para os proprietários fundiários. Escancarando casos de pagamentos de
superindenizações a fazendeiros durante processos de desapropriação, o livro aponta como a
compra/desapropriação se tornou um ótimo negócio para fazendeiros, capitalistas e grileiros de
terras.
Segundo a publicação, ações judiciais contra o INCRA reclamando o valor pago nas
desapropriações rendiam aos proprietários boas correções no preço pago pelas terras. Sendo
assim:
Todos os estudos demonstram que a desapropriação, em vez de punir o
latifúndio improdutivo, tem trazido benefícios a seus proprietários que, ao

98
Informações disponíveis em:<https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/politica-agricola/todas-
publicacoes-de-politica-agricola/plano-agricola-pecuario>. Acesso em: 8 nov. 2020.
99
Publicação pode ser acessada
em:<https://direito.mppr.mp.br/arquivos/File/Politica_Agraria/7incraLivroBrancodasSuperindenizacoes.pdf>.
Acesso em: 29 out 2020.
192

contestar na Justiça os valores definidos pelo Incra, são quase sempre


indenizados com valores significativamente mais altos do que os
praticados no mercado. (1999, p. 02) (Grifo nosso).

A inviolabilidade do latifúndio, da propriedade privada e do caráter rentista da terra, é


reafirmada por uma política pública criada e realizada a partir dos anseios do campesinato e do
proletariado. Assim, como discorre Prieto (2016), o descumprimento da função social da terra,
estabelecido pela Constituição federal, rende ao proprietário a troca de um patrimônio
improdutivo por um patrimônio líquido de igual magnitude. Para a autora:
Dessa maneira, o proprietário de terra não cumpre a obrigação constitucional
da função social da propriedade e é premiado com o recebimento da renda da
terra em títulos da dívida agrária e o pagamento justo, prévio e em dinheiro
das benfeitorias do latifúndio. (PRIETO, 2016, p. 577).

A contradição do rentismo dentro da própria política de Reforma Agrária se constitui


como inconstitucionalidade, de acordo com Fidelis (2014). Para o autor, não há razoabilidade
no pagamento por um imóvel em desacordo com a função social porque, neste caso, não é
aplicado sanção ao proprietário descumpridor. A desapropriação e compra de terras para a
política pública acaba por realizar a renda fundiária e ao mesmo tempo amenizar a pressão
social por terras, numa clara tentativa de conciliação de classes. Portanto, a Reforma Agrária
no Brasil não questiona o latifúndio, apesar da intensa e penosa luta de camponeses e
trabalhadores sem-terra.
Ainda mais, a diminuição da criação de assentamentos no Governo Dilma (PT) e,
posteriormente, de Michel Temer (MDB), confirma o abandono à política, incluindo
contingenciamento de recursos para seu principal órgão, o INCRA. A paralisação completa
dessa política aumenta a longa espera de camponeses e trabalhadores pela conquista da terra.
Em 2016, pós-Governo Dilma, a Medida Provisória n°759, convertida na Lei Nº 13.465,
de 11de julho de 2017, decretou o processo de regularização fundiária rural e urbana e
regularização das posses na Amazônia Legal. Esta MP e a Lei impactam diretamente a Reforma
Agrária, pois “[...] não apresenta uma ação de criação ou reconhecimento de novas áreas, mas
ao contrário, facilita a mercantilização das áreas destinadas aos projetos de assentamento já
criados” (SAUER, LEITE, 2017, p.16). Os autores ainda entendem que a Lei Nº 13.465 prevê:
A regularização de latifúndios não só na Amazônia, mas em todo o território
nacional, juntamente com os critérios de ‘consolidação’ de ofício dos projetos
de assentamento como previsto no texto legal, para além de colocar
massivamente um enorme quantitativo de terras no mercado, apontam para
um esvaziamento na política de reforma agrária no Brasil, priorizando
destinações para as terras públicas que enfraquecem a criação de projetos de
assentamento e regularização das posses de comunidades tradicionais.
(SAUER, LEITE, 2017, p.32).
193

Portanto, além da não realização da Reforma Agrária, o governo pós-Dilma transformou


o INCRA em um grande balcão de compra e venda de terras (TEIXEIRA, 2016); (SAUER,
LEITE, 2017). Na análise sobre a política de Reforma Agrária, nota-se o decréscimo do número
de assentamentos criados e do número de ocupações de terras no mesmo período de implantação
das políticas públicas sob a perspectiva de desenvolvimento territorial. Estas informações
reforçam a crítica sobre o impacto das políticas públicas para a (re)criação camponesa, no qual
as soluções para as desigualdades sociais no campo deixaram de ser a Reforma Agrária, em seu
sentido amplo, para dar lugar a concessões de crédito e a integração ao mercado.
Nesse sentido, cabe destacar as novas políticas públicas, em especial às ligadas ao
“desenvolvimento rural sustentável” e ao “desenvolvimento territorial”, instituídas a partir de
2003 pelo Governo Lula (PT), implantadas a partir da influência da burguesia internacional. O
Banco Mundial, criado em 1944, que, em pouco tempo, teve importância na implementação de
políticas territoriais como principal agente financiador de países periféricos, como o Brasil
(PEREIRA, 2009). Além dos empréstimos, o Banco Mundial (BIRD) tornou-se referência
intelectual para a formulação de políticas públicas, alavancando a perspectiva neoliberal de
“desenvolvimento” no mundo. Assim:
O Banco aplicava esse ‘capital intelectual’ por meio do seu considerável
programa de empréstimos e da sua posição única como mediador entre
governos, agências bilaterais e multilaterais e o universo empresarial,
traduzindo-o em políticas e negócios. Quanto mais afinada com a agenda do
Banco e mais insulada das pressões do sistema político local fosse a equipe de
governo dos Estados-membros, mais eficaz era o trabalho de persuasão do
banco. (WOODS, 2006, p.5 apud PEREIRA, 2009, p.330).

A estratégia do BIRD influenciou diversas políticas no Brasil, parte delas iniciadas por
meio desta “nova” perspectiva foi direcionada às classes, dentre elas, os camponeses. Como
consequência, as políticas voltadas para o campo mascaram a extrema desigualdade de acesso
à terra por meio de políticas compensatórias de geração de renda. Dentro desta estratégia, houve
o esvaziamento da Reforma Agrária e a tentativa de sua substituição por programas de acesso
à terra por meio da compra, reafirmando a perspectiva burguesa e latifundiária do Estado
brasileiro, protegendo a propriedade capitalista da terra.
Como observou Carvalho (2003), durante o governo FHC a contra-Reforma Agrária
no Brasil não representou a ruptura com os grandes proprietários de terras, mas, sim, a criação,
mesmo que por pressão social, de assentamentos rurais. Segundo o autor, “A contra-reforma
agrária tem como objetivo estratégico submeter os desejos e aspirações de reforma agrária dos
194

trabalhadores rurais sem terra aos interesses de classe dos setores dominantes no campo.”
(CARVALHO, 2003, p. 14).
O ataque à Reforma Agrária, nos sucessivos governos, foi acompanhado do irrestrito
apoio à agricultura capitalista com aumento do financiamento público e à regularização, por
meio de medidas provisórias, das grandes áreas devolutas apropriadas pelo agronegócio. Desta
forma, é preciso reconhecer no interior do Estado brasileiro os interesses classistas que
controlam o desejo popular pela Reforma Agrária e promovem a reprodução ampliada do
capital e do latifúndio
A situação geral tornou-se mais problemática com a eleição de Jair Bolsonaro (Eleito
pelo PSL e, atualmente, sem partido), pois a Reforma Agrária sofreu a maior retração da
história, com apenas 3 assentamentos criados em todo o país no ano de 2019 (FERNANDES et
al., 2020).
Contrário à política de Reforma Agrária, o Governo Bolsonaro avançou no seu
desmonte, minguando os recursos para seu funcionamento. Desta maneira:
O desmantelamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA) tem ocorrido por meio de atos normativos com interrupções de
processos desapropriatórios, redução do orçamento e diversas medidas
administrativas como a nomeação de pessoas que são contra a reforma agrária.
(FERNANDES et al., 2020, p. 7).

A agenda política desse governo, sobre o campo brasileiro, propõe em diversas vertentes
e ações a hegemonia do agronegócio e o avanço da grilagem sobre terras públicas e, ao mesmo
tempo, paralisa a Reforma Agrária e a demarcação de terras indígenas (SAUER, LEITE,
TUBINO, 2020). Nesse sentido, como afirma alentejano (2020), o Governo Bolsonaro
representa a contra-Reforma Agrária em marcha acelerada priorizando o agronegócio e
estimulando a violência contra os movimentos e povos indígenas e quilombolas.
O gráfico (figura 15), elaborado pela organização não governamental (ONG) Terra de
Direitos para Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), sobre a
paralisação da Reforma Agrária e protocolado junto ao Superior Tribunal Federal (STF),
explicita a queda de recursos empenhados para a aquisição de terras para tal política, entre 2014
e outubro de 2020. A redução orçamentária e intensa dinâmica fundiária no país, como
apresentada no capítulo 3, acabam por inviabilizar da política no país.
Respondendo ADPF, a alta cúpula do INCRA apresentou ao STF informações que
confirmam a completa redução do orçamento da autarquia para aquisição de terras. Além disso,
195

segundo a reportagem100 do jornal Folha, o Governo Bolsonaro não decretou nenhuma


desapropriação para Reforma Agrária nos anos de 2019 e 2020.

Brasil: Despesa empenhada na Ação de Aquisição de Terras - 211B, 2014 a 2020


(valores em R$)
R$ 800.000.000
740.181.241
R$ 700.000.000

R$ 600.000.000

R$ 500.000.000
423.893.109
R$ 400.000.000

R$ 300.000.000
220.613.903
R$ 200.000.000
140.420.560

R$ 100.000.000
38.669.896
21.105.291 2.200.500
R$ 0
2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020

Despesa Empenhada

Fonte: Portal Transparência e Ipea. Elaboração: Terra de Direitos

No interior da paralisação, acumulam-se terras não destinadas à Reforma Agrária pela


falta de recursos e comprometimento com a justiça social no campo. Situação comprovada pelos
requerimentos101 nº320/2019 e nº344/2019, elaborados pelos deputados Patrus Ananias (PT) e
Assis Carvalho (PT), respectivamente, protocolados na Câmara dos Deputados e encaminhados
ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), dirigido pela Ministra Tereza
Cristina (DEM). A resposta do INCRA aos requerimentos dos deputados revela o completo
descaso do Governo Federal com a Reforma Agrária.
Segundo o INCRA, dos R$8.000.000,00 (Oito milhões de reais) previstos pelo
orçamento para vistorias de terras, com destino à desapropriação, foram cortados
R$7.000.000,00 (Sete milhões reais), impossibilitando a tramitação de desapropriações. São

100
Informação disponível em:<https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/02/governo-bolsonaro-admite-ao-stf-
paralisia-da-reforma-agraria-com-acumulo-de-diferentes-recordes-negativos.shtml>. Acesso em: 08 mai 2021.
101
Informação disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=1E6A2925CBDB010144508B8A3
D9E3115.proposicoesWebExterno2?codteor=1764681&filename=Tramitacao-RIC+344/2019>. Acesso em: 10
nov. 2020.
196

426 processos, totalizando 897,4 mil hectares paralisados pela falta de recursos. Há ainda casos
mais absurdos apresentados pelo INCRA, segundo o requerimento, existem 187 processos com
ações ajuizadas e com valores indenizatórios depositados, mas que ainda não houve a imissão
da posse do imóvel. Assim, são 187 imóveis vistoriados e com indenização102 paga (renda da
terra) aos proprietários, mas que a criação dos assentamentos foi paralisada. São 321 mil
hectares distribuídos por todo o país (mapa 9)103 parados durante anos aguardando a imissão de
posse ao INCRA para serem destinados à Reforma Agrária.
O entrave ocorre, sobretudo, por ações judiciais impetradas pelos proprietários
reivindicando revisão do valor de indenização pela terra ou pelas benfeitorias feitas no imóvel
e até mesmo a desapropriação em si. Segundo Feliciano (2009), “O processo de ação
reivindicatória gira em torno exclusivamente quanto a eventual direito de indenização por
benfeitorias, por parte dos fazendeiros-grileiros.” (p.447). Se arrastando por anos, os litígios
entre INCRA e proprietários travam a criação de assentamentos. De acordo com Cirne (2012),
mesmo a Lei Complementar 76/1993, garantindo a imissão de posse obedecendo ao rito
processual e ainda respeitando o direito ao contraditório, a interpretação jurídica não a
contempla. Portanto:
Apesar do artigo 6°, inciso I, da Lei Complementar nº 76, de1993, ser
categórico quanto ao deferimento da imissão na posse no bojo da ação de
desapropriação para fins de reforma agrária, como se verá, não é essa a posição
albergada pela doutrina e pela jurisprudência do STJ. Em ambos há a
formação de um entendimento que nega o deferimento da imissão liminar da
posse ou imputa o dispositivo como inconstitucional. (CIRNE, 2012, p. 155).

Assim, como apresentado no mapa 9, há 321 mil hectares distribuídos em 187 imóveis
localizados, principalmente, nas regiões Centro-Oeste, Nordeste e Sudeste aguardando o fim da
disputa judicial para se tornarem assentamentos rurais.

102
Títulos da Dívida Agrária
103
Este mapa foi elaborado em parceria com a Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), pelos movimentos socioterritoriais do campo junto ao
Superior Tribunal Federal (STF), em Brasília em dezembro de 2020.
197

Mapa 9 – Brasil: Imóveis rurais aguardando imissão da posse


198

Nas contradições da política de Reforma Agrária e sua não efetiva realização no Brasil,
os camponeses persistem na luta pela terra engajados ou não em movimentos socioterritoriais.
Por conta disso, há o constante estado de confronto com proprietários fundiários, como
demonstram os dados da CEDOC Dom Tomás Balduino (CPT), sobre os conflitos por terra,
abrangendo camponeses, trabalhadores, posseiros, indígenas e quilombolas. Os números
apontam o crescimento de conflitos por terra nos últimos 10 anos (2009-2018), saindo de 854
conflitos, em 2009, e atingindo 1.124, no ano de 2018. Assim, a luta camponesa continua por
uma política pública ampla.
Diante do contexto geral, o campesinato brasileiro, originado a partir da exclusão do
acesso à terra, é combativo e protagonista das principais lutas políticas no país. A persistência
em lutar por meio de ocupações e manifestações tem sido, na atualidade, as principais ações
políticas em pressionar o Estado a realizar desapropriações para instalação de assentamentos
rurais. Como resultado, frações do território são conquistadas.

4.2 A FRAÇÃO CAMPONESA DO TERRÍTÓRIO NO INTERIOR DO


LATIFÚNDIO NO PARQUE DAS EMAS (GO) E BOLSÃO (MS)

Resultado de anos de luta dos camponeses, a conquista de frações do território diante da


hegemonia da agricultura capitalista e sua estrutura latifundiária, seja pela política de Reforma
Agrária ou por outros meios, são partes de sua recriação. A terra é elemento central para tanto,
e o seu sentido para o campesinato é contrário a lógica capitalista, embora considerada como
propriedade privada. Sendo assim:
Aqui se impõe a necessidade de resgatar uma importante distinção que estes
termos implicam; enquanto a terra de trabalho remete à propriedade familiar,
a terra de negócio faz referência à propriedade capitalista. Ainda que
estejamos diante da propriedade privada da terra em ambos os casos, há que
se atentar para conteúdos distintos: enquanto que o sentido desta é a
exploração do trabalho alheio e ou a apropriação da mais-valia social, a
primeira tem por princípio a reprodução da família a partir de seu próprio
trabalho. (PAULINO, 2003, p. 411).

A luta pela terra de trabalho e vida, nos municípios estudados, possui ações distintas,
pois parte está engajada em movimentos socioterritoriais e outras são fruto da necessidade
individual ou coletiva quase que instintiva.
A ocupação de terra, como ação fundamental no processo de territorialização
camponesa, é registrada pelo do Banco de Dados da Luta pela Terra (DATALUTA). Em seus
dados históricos (1988-2018), há registros, no Parque das Emas (GO), de 34 ocupações de
199

terras, entre os anos que se desdobraram, em, aproximadamente104, seis acampamentos. A


mencionada lentidão e a realização de poucos assentamentos de Reforma Agrária fazem com
que os acampados passem anos (12 anos em média) de penúria ao longo das rodovias. O
acampamento, como local de luta, mas temporário, do ponto de vista do objetivo almejado,
acaba se tornando a única e permanente fração de terra para os camponeses.
Espremidos entre o latifúndio e as rodovias, os camponeses produzem alimentos e
tentam garantir condições mínimas para sua reprodução social. A pesquisa de Françozi (2020)
é pertinente ao destacar a presença camponesa nas faixas de domínio da BR-364, entre Jataí
(GO) e Mineiros (GO), onde no contexto de contra reforma agrária, os camponeses persistem
nos acampamentos transformando-os em sua fração do território conquistada. A transformação
do acampamento em lote precarizado demonstra como há uma baixa expectativa dos
camponeses sobre a atual política de Reforma Agrária.
Produzindo alimentos nas margens da rodovia, estes sujeitos garantem seu autoconsumo
para permanecerem na terra e ainda destinam parte da produção para a venda nas cidades, como
indica Françozi (2020, p. 155):
Em ambos os casos, os ocupantes declararam obter renda líquida de
aproximadamente R$2.000,00 por mês, exclusivamente do local onde
produzem. Em Mineiros, a produção é irrigada com a água de um poço que,
por gravidade, abastece duas caixas d’água de 5.000 litros e rende, segundo o
entrevistado (Entrevistado Y. 2019), 1.500 pés de hortaliça mensalmente, os
quais vende para pequenos mercados e de porta em porta nos bairros de
Mineiros.

Este tipo de condição não pode ser romantizado ou compreendido como apenas uma
estratégia de recriação camponesa oriunda da criatividade dos sujeitos. O uso das faixas de
domínio, como local de produção camponesa, é o retrato da questão agrária brasileira e da
necessidade de democratização do acesso à terra. Portanto:
Produzir a margem da estrada evidenciou uma faceta concreta da questão
agrária brasileira que é a concentração fundiária, a qual deixa a margem uma
população ansiosa por terra e trabalho. O domínio do capital representado pelo
latifúndio improdutivo ou pela grande fazenda do agronegócio exportador
produziu feições geográficas no território que também podem ser
exemplificadas pelas ações políticas dos movimentos sociais
(ocupações/acampamentos, marchas e romarias), bem como por uma
população pobre que produz a beiradas rodovias. Essa produção de beira de
estrada é uma forma de ser e estar no território, de reproduzir-se
socialmente a partir daquilo que faz parte da sua tradição, que é produzir
alimento, culminando em uma forma de resistência a expropriação e uma
estratégia de sobrevivência, mesmo se esses sujeitos não estejam

104
Informação obtida por meio de trabalho de campo. No entanto, os dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT)
contabilizam apenas três acampamentos.
200

organizados em movimentos sociais. (MITIDIERO JUNIOR, 2013, p. 45)


(Grifo nosso).

A figura 16 demonstra a fachada de um dos barracos do acampamento Terra Livre, no


município de Mineiros (GO), com faixa em protesto ao rebaixamento do Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA) para uma secretaria no Ministério da Casa Civil no Governo
Temer. Na faixa (figura 16), protesta-se: “Temer sai, MDA volta: reforma agrária, mais feijão
menos soja e cana”.

Mineiros (GO): acampamento Terra Livre

Fonte: Françozi, 2019.

Historicamente, os municípios do Bolsão (MS) não possuem relatos de conflitos entre


latifundiários e movimentos socioterritoriais. A ocorrência de ocupações e manifestações de
camponeses foi pontual e organizada por sindicatos de trabalhadores rurais e pela CPT, como
indica o próprio documento da CPT-MS, em 1987, registrando a presença de 127 famílias
classificadas como “boias frias e arrendatários”.
A conjuntura de predomínio de latifúndios nos municípios do Bolsão (MS) garantiu,
contraditoriamente, a presença de trabalhadores rurais e de camponeses como arrendatários que
conquistaram frações do território por meio da compra ou em lutas específicas por Reforma
Agrária. Em um caso emblemático para esta pesquisa, no município de Paranaíba (MS),
aproximadamente 60 famílias ocupam há 10 anos de forma “não-organizada” a área onde se
instalaria a agroindústria Usina Paranaíba.
Com construção iniciada em 2007, o fracasso da instalação da indústria ocorreu no ano
seguinte, em 2008, por conta da crise do setor sucroenergético. Os proprietários do projeto,
201

Marcello Bassan, falecido em 2008, e Araúna Agroindustrial acumularam dívidas com


funcionários e fornecedores inviabilizando qualquer retomada das atividades e alienando as
terras. Neste interim, camponeses ocuparam a área da planta industrial de aproximadamente
500 hectares dividindo-a em parcelas diminutas para contemplar todas as famílias.
Segundo o entrevistado A 105, camponês, e morador do local:
Isso aqui era pra ser usina, e depois ficou tudo abandonado, nós juntamos uma
turma e vamos pra lá. Nós fomos em Campo Grande [INCRA] umas três vezes
E não dá pra assentar pelo tamanho da terra. Então corta pequenininho que
cabe vocês lá, e dá para plantar horta e vocês venderem na cidade. E nós
dividiu isso aqui umas quatro vezes até caber todo mundo. E ficou nisso até
hoje. (Entrevistado A).

O tamanho da área e as dívidas dos proprietários inviabilizam a instalação de um projeto


de Reforma Agrária e, dessa maneira, a ocupação permanece de forma irregular,
impossibilitando aos camponeses o acesso à energia elétrica e água. Como estratégia, as
famílias obtêm água por meio de uma roda d’água em um córrego próximo e, atualmente, estão
adquirindo painéis solares para geração de energia.
Na teimosia camponesa, as famílias permanecem no local, plantando hortas, criando
galinhas e porcos para venderem na cidade, como demonstra-se na figura 17, o roçado com a
usina abandonada ao fundo. Em campo, constatou-se ainda a presença de camponeses com
idade acima dos 60 anos e muitos já aposentados.

Paranaíba (MS): Lote dentro da área da Usina Paranaíba

Fonte: Trabalho de campo. Foto: do autor. 25 de fevereiro de 2020.

105
Entrevista concedida em 25 de fevereiro de 2020, na casa do camponês em Paranaíba (MS).
202

É exemplo literal de recriação camponesa no interior do latifúndio, pois mesmo sem o


acesso à terra, por meio da política pública, os camponeses conquistaram por meio da luta pela
fração do território, como conta o entrevistado:
Eu toda vida eu fui invocado, é plantar roça na terra dos outros. Meu serviço
toda vida, foi serviço de fazenda, de uns anos pra cá vai ficando ruim de
empreita. E fui indo, fui indo e falei eu precisava era de uma terra pra mim.
Eu paguei quase uns quarenta anos [Sindicato Rural] e não saía terra, e se não
pinta essa desse jeito, não ganhava terra não. Aí não trabalhei mais pra
ninguém. (Entrevistado A).

A recriação camponesa na hegemonia do latifúndio reafirma a identidade do camponês


brasileiro como um sem-terra, combativo e persistente no cerne da reprodução capitalista no
campo. Portanto:
É por isso que a luta pela terra desenvolvida pelos camponeses no Brasil, é
uma luta específica, moderna, característica particular do século XX. Dessa
forma, o século XX, foi um século por excelência na formação e consolidação
do campesinato brasileiro enquanto classe social. É por isso, que este
camponês não é um camponês que na terra, entrava o desenvolvimento das
forças produtivas impedindo, portanto, o desenvolvimento do capitalismo no
campo. Ao contrário, ele praticamente nunca teve acesso a terra, é, pois,
um desterrado, um sem terra que luta para conseguir o acesso a terra.
São no interior destas contradições que tem surgido muitos movimentos
sociais de luta pela terra, e com eles os conflitos, a violência tem também,
aumentado. (OLIVEIRA, 2007, p. 151) (Grifo nosso).

Com política de Reforma Agrária, a luta camponesa conquistou a criação106 de 14


assentamentos, com 771 famílias no Parque das Emas (GO); no Bolsão (MS), foram sete
assentamentos, contemplando 741 famílias, resultantes da ação dos sindicatos dos trabalhadores
rurais. Os municípios com mais assentamentos são: Jataí (GO), no Parque das Emas, com seis,
e Selvíria (MS), no Bolsão, com três assentamentos, como se demonstrado na tabela 10.
O PA Rio Paraíso, no município de Jataí (GO), é o mais antigo107 na área estudada,
criado em 1989. O mesmo também possui a maior área dos assentamentos, com 5.565,0930
hectares. Outros dois assentamentos foram criados ao final da década de 1990 nos municípios
de Jataí (GO) e Perolândia (GO) e na década de 2000, durante o Governo Lula (PT) (2003 a

106
Cumpre elucidar o erro crasso do INCRA ao criar o Assentamento Chico Moleque no município de Santa Rita
do Araguaia (GO) quando deveria ser realizado o reconhecimento da terra tradicionalmente quilombola. Este erro
altera os números reais da Reforma Agrária. Sobre o assunto, Oliveira (2007) afirma que, contraditoriamente, o
governo com apelo popular não avançou na política de reforma agrária, inflando os números por meio de
reconhecimento e limitando as ações do INCRA passando a ser denominada de “Não Reforma Agrária”.
107
Adiante será apresentado o contexto de criação do PA Rio Paraiso em Jataí (GO) e do PA Serra em Paranaíba
(MS), assentamentos da política de Reforma Agrária mais antigos no Parque das Emas (GO) e no Bolsão (MS)
respectivamente.
203

2006 e 2007 a 2010), no Parque das Emas (GO), teve o maior número de assentamentos rurais
instalados, nove.
O PA Serra foi o primeiro assentamento a ser criado no Bolsão (MS), no ano de 1997.
Os demais assentamentos foram instituídos a partir da década de 2000. Durante o Governo Lula
(PT), foram instalados quatro assentamentos, destacando-se os PAs Canoas e São Joaquim, com
capacidade para mais de 180 famílias cada.

Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS): Assentamentos rurais criados (1989 a
2019)
Capacidade
Município Nome Área de Famílias Ano de Criação
Território Rural Parque das Emas (GO)
Chapadao do Céu PA Pratinha 1.477,44 40 1998
PA Rio Paraíso 5.565,09 176 1989
PA Santa Rita 961,201 23 1998
PA Rio Claro 639,6084 17 2001
PA Terra e Liberdade 2.926,80 162 2007
PA Nossa Senhora de
Guadalupe 1.367,33 85 2007
PA Romulos Souza
Jatai Pereira 2.041,36 61 2007
PA Serra das Araras 1.342,60 45 2005
PA Formiguinha 1.414,74 20 2005
Mineiros PA Pouso Alegre 375,409 17 2006
PA Lagoa Do Bonfim 2.139,62 63 1998
Perolândia PA Três Pontes 1.873,95 43 2000
Santa Rita do Araguaia PA Dois Saltos 968,0804 19 2007
Total 13 23.093,24 771

Território Rural Do Bolsão (MS)


Chapadão do Sul PA Aroeira 2.648,87 59 2000
Paranaíba PA Serra 2.986,03 116 1997
PA Alecrim 1.530,06 87 2006
PA Canoas 4.773,91 184 2007
Selvíria PA São Joaquim 3.514,26 181 2008
PA Pontal Do Faia 1.485,00 45 2000
Três Lagoas PA Vinte De Março 1.480,21 69 2008
Total 7 18.418,32 741
Fonte: INCRA, 2019. Organizado pelo autor.

Os municípios de Aparecida do Rio Doce (GO), Aporé (GO), Portelândia (GO),


Serranópolis (GO), Água Clara (MS), Aparecida do Taboado (MS), Cassilândia (MS) e
Inocência (MS) não possuem nenhum assentamento de Reforma Agrária. Todavia, seria um
equívoco afirmar a não presença de camponeses nestes municípios, pois, como mencionado
anteriormente, e, com o respaldo teórico de Martins (1981) e Oliveira (1991), o campesinato
possui diferentes origens além da Reforma Agrária, pois se apresenta por meio do
arrendamento, da posse, de pequenos sitiantes, políticas de crédito fundiário e outros.
204

O arrefecimento da criação de assentamentos de Reforma Agrária nos últimos anos,


sobretudo a partir do Governo Dilma (PT) (2011 a 2014 e 2014 a maio2016), criando-se apenas
um assentamento em Mato Grosso do Sul e nenhum no Parque das Emas, possibilitou a
ampliação do Programa de Crédito Fundiário108, possibilitando a parte dos camponeses o acesso
à terra. No Parque das Emas (GO), até 2019, foram instalados nove projetos de assentamentos
via crédito fundiário; no Bolsão (MS), três projetos.
São inúmeras as críticas (RAMOS FILHO, 2006 e LUIZ, 2017 e 2020) aos programas
federais e estaduais de crédito fundiário no Brasil, principalmente sobre o endividamento dos
camponeses e as péssimas condições do local onde os projetos foram instalados. Essas situações
são observadas no Bolsão (MS), mais especificamente no município de Três Lagoas onde foram
implantados os assentamentos Palmeiras e Paulistinha. Nesses assentamentos, Luiz (2017)
identificou as dificuldades dos camponeses em permanecerem no lote devido à falta de
assistência do Estado, principalmente na produção e na construção das moradias, além das
dificuldades de pagamento das parcelas anuais do financiamento para a aquisição da terra.
Demonstrou-se, pelo trabalho de campo no local, camponeses resistindo, mas com
significativas dificuldades, sobretudo na comercialização da produção, pela falta de apoio do
poder público, da dependência dos atravessadores e das distâncias dos assentamentos até à
cidade. O estado de abandono observado indica as dificuldades da reforma agrária de mercado,
pois “O endividamento, seguido da saída (expulsão, na verdade) do lote, configuram-se como
regra e não exceção, constatada pela quantidade de famílias que acessaram a terra pelo
programa [PNCF] e a quantidade atual de famílias residentes nos lotes.”. (LUIZ, 2017, p.74).
A paisagem dos assentamentos Palmeiras e Paulistinha é de abandono, abrigando
poucos camponeses e trabalhadores aposentados, o restante dos lotes foi transferido a terceiros
ou simplesmente abandonados. A figura 18 retrata parte das dificuldades encontradas pelos
camponeses do crédito fundiário em Três Lagoas (MS), pela quantidade de desistências e casas
abandonadas tomadas completamente pelo mato, como no caso do assentamento Paulistinha.

108
Para saber mais sobre o assunto, indica-se: LUIZ, Luana Fernanda. Questão Agrária, Programa Nacional de
Crédito Fundiário e Desdobramentos para o Campesinato na Microrregião de Três Lagoas (MS). Três Lagoas:
2020. 341 f. Dissertação (Mestrado)- Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Três Lagoas, 2020.
205

Assentamento Paulistinha/Três Lagoas (MS): Lote e casa abandonados

Fonte: Trabalho de campo. Foto: do autor. 18 de fevereiro de 2019.

No entanto, o campesinato não se resume apenas às políticas públicas, pois é diverso no


que se refere à forma de acesso (ou não) à terra, como afirmou Oliveira (1991, p.87): “Os
estudos sobre os camponeses no Brasil têm revelado pelo menos quatro tipos distintos: os
camponeses-proprietários, os camponeses-rendeiros, os camponeses-parceiros e os
camponeses-posseiros”. Assim, nas áreas estudadas, verifica-se a existência de diversidade
camponesa no que se refere a sua origem e forma de acesso à terra.
Considerado como um campesinato tradicional, pois sua origem está em processos de
compra de pequenos sítios ou ainda camponeses que estabeleceram pequenas posses no interior
do país, estes sujeitos fazem parte do contexto deste trabalho. Localizam-se, geralmente, em
torno das chamas “comunidades rurais” ou distritos, pontos de acesso à parte de serviços
públicos, como postos de saúde e, principalmente, educação. Assim, a Figura 19 apresenta a
vista parcial de parte109 dos distritos rurais do Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS).
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2017, a população
rural nos municípios do Parque das Emas (GO) e do Bolsão (MS) era de 11.433 pessoas,
concentrando-se nas vilas. Somam-se 10 pequenos núcleos onde o campesinato tradicional se
concentra e divide a fração do território com trabalhadores rurais. Nestas vilas, pequenas
atividades comerciais são desenvolvidas, sobretudo vendas ou mercearias (secos e molhados)
e até mesmo alguns de comercialização de artesanatos. As vilas possuem algum valor histórico

109
Não foi possível registrar ou localizar fotografias dos distritos de Indaiá do Sul em Cassilândia (MS) e Alto
Santana em Paranaíba (MS).
206

local, como no caso de São Pedro, em Inocência (MS), com mais de 120 anos, onde,
tradicionalmente, é celebrada a “Festa de Nossa Senhora da Abadia”.

Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS): Vista parcial dos distritos rurais

Fonte: NEDET, 2016; Google, 2020.


207

A dinâmica destas vilas tem sido alterada por mudanças na agricultura capitalista que
as circundam, pois, os pequenos sítios estão sendo incorporados por grandes propriedades
rurais, reduzindo a população residente. Contraditoriamente, as mesmas empresas que cercam
as vilas são fonte de renda para parte da população, pois geram algum tipo de emprego
assalariado.
As mudanças implicam diretamente no número de alunos nas escolas no campo,
sobretudo de assentamentos de Reforma Agrária, de sitiantes e, também, filhos de trabalhadores
rurais de fazendas próximas. Nesse contexto, a evasão dos alunos é alta devido à mudança dos
trabalhadores para outras fazendas e da migração dos camponeses para a cidade. Como indica
o trabalho de Lemes (2014), analisando a evasão escolar no distrito de Garcias, em Três Lagoas
(MS), o seu entrevistado afirma:
Porque é o seguinte, a região toda era gado, aí com essa fase do eucalipto as
fazendas foram vendidas ou arrendadas pro eucalipto. Então não teve a
necessidade de os pais terem as famílias nas fazendas mais, e foram embora
pra cidade, então diminuiu as crianças e as famílias nas fazendas. (LEMES,
2014, p.141).

Como mencionado, o campesinato tradicional possui particularidades na forma de


acesso à terra, muito além da simples compra do sítio. Nesse sentido, registrou-se110, em
Paranaíba (MS), o desmembramento de uma grande propriedade em pequenos sítios por meio
de herança, quando, a cada transição de gerações na família, se fragmentou a terra destinada a
cada família herdeira.
Assim se constituiu o Simão, área rural com estrutura fundiária fragmentada devido às
sucessivas divisões das terras. Seus descendentes contam que o patriarca, Manoel Simão,
mineiro, migrou para Aparecida do Taboado (MS) para trabalhar em fazendas de gado e, ao
longo dos anos, adquiriu dinheiro para comprar dois mil hectares em Paranaíba (MS). Após sua
morte, as terras foram divididas informalmente entre seus 12 filhos e, posteriormente, entre seus
netos. Atualmente, são, aproximadamente, 21 pequenos sítios (Figura 20) distribuídos entre
filhos, netos e outros parentes e agregados à família, consolidando a localidade denominada
Simão. Dedicando-se à produção de leite, hortaliças e criação de pequenos animais, os
camponeses do Simão garantem renda comercializando a produção nas cidades, em feiras.111

110
Informações obtidas por meio de trabalho de campo no município de Paranaíba (MS), quando em entrevista
concedia, em 13 de setembro de 2016, a Miesceslau Kudlavicz, Edevaldo Aparecido Souza e Danilo Souza Melo,
o morador narrou a formação dos sítios.
111
Informações obtidas em trabalho de campo realizado no município de Paranaíba (MS) em dezembro de 2016.
208

Simão – Paranaíba (MS): Sitio camponês

Fonte: NEDET, 2016.


Portanto, há diversidade da população camponesa no Parque das Emas (GO) e no Bolsão
(MS) distribuída em assentamentos de Reforma Agrária, crédito fundiário ou nas proximidades
e nas próprias vilas rurais, como demonstrado no mapa 7 (página 145). Por meio dos dados do
INCRA e do IBGE, foi possível mapear a distribuição de parte do campesinato nas áreas
estudadas. Desta forma, fica evidente a concentração do campesinato nos municípios Jataí
(GO), Paranaíba (MS) e Três Lagoas (MS). A partir do mapa 7, deve considerar as informações
reveladas pelo mapa 6 (página 137) sobre o uso e ocupação do solo, destacando assim o
cercamento dos sítios, das vilas rurais e dos assentamentos rurais pelos monocultivos de cana-
de-açúcar, de soja e de silvicultura.
Em Jataí (GO), foram instalados seis assentamentos de Reforma Agrária e três
assentamentos de crédito fundiário, contando ainda com uma comunidade rural 112. Estes
camponeses estão literalmente cercados pela agricultura capitalista de soja e de cana-de-açúcar.
No mesmo contexto local, os dois assentamentos de Reforma Agrária no município de
Perolândia (GO) estão localizados em área hegemonicamente destinada à produção de soja.
Em Paranaíba (MS), destacam-se cinco comunidades rurais e nos seus entornos estão
estabelecidas comunidades ligadas ao campesinato tradicional. O município ainda conta com
um assentamento de Reforma Agrária, o PA Serra. Nestas localidades, o campesinato convive

112
Considerada aqui como vila rural, trata-se, neste caso, do distrito de Naveslândia em Jataí (GO).
209

com o predomínio de fazendas ocupadas por pastagens e, predominantemente, com a pecuária


de corte. No entanto, no entorno de algumas comunidades rurais há presença da cana-de-açúcar,
soja e de eucalipto.
No município de Três Lagoas (MS), há três vilas rurais, dois assentamentos de Reforma
Agrária e dois assentamentos de crédito fundiário, com seus entornos ocupados com
monocultivo de eucalipto, resultante da territorialização das indústrias de celulose e papel. De
forma geral, demonstra-se no mapa 10 a presença e a diversidade camponesa distribuída em
assentamentos de Reforma Agrária, de crédito fundiário e aos arredores de comunidades rurais
localizados em áreas com predomínio da agricultura capitalista de monocultivos e
agroindústrias territorializadas no Parque das Emas (GO) e no Bolsão (MS). Ressalta-se ainda,
a presença do campesinato tradicional em pequenas propriedades, como demonstrado no mapa
sobre estrutura fundiária (página 143).
210

Mapa 10 –Parque das e Emas (GO) e Bolsão (MS): Assentamentos de Reforma Agrária e Crédito Fundiário (2020)
211

Os dados e informações apresentados até aqui confirmam a presença e controle do


campesinato sobre frações do território monopolizado por capitalistas e latifundiários. A
permanência na terra também é um desafio para os camponeses, principalmente pela
morosidade do Estado em efetivar a política de Reforma Agrária e estruturar os assentamentos
por meio das políticas complementares previstas em lei. Também, ressalta-se a monopolização
do capital sobre a produção camponesa, apropriando-se da renda da terra, sobretudo das
indústrias de laticínios compradoras da produção de leite.
Dessa forma, o processo de recriação camponesa divide-se em dois momentos distintos,
o primeiro é a conquista da terra e o segundo está na permanência na terra, resistindo às
adversidades, produzindo alimentos e garantindo a renda familiar. Para Oliveira (2007):
[...] os camponeses lutam no Brasil em duas frentes, uma para entrar na
terra, para se tornarem camponeses proprietários, e em outra frente,
lutam para permanecerem na terra como produtores de matérias-primas
para a indústria e alimentos fundamentais à sociedade brasileira. São,
portanto uma classe em luta permanente, pois os diferentes governos não lhes
têm considerado de forma significativa em suas políticas públicas.
(OLIVEIRA, 2007, p. 151). (Grifo nosso).

Nesse sentido, é preciso conhecer as características socioeconômicas dos camponeses


analisados nesta pesquisa, observando os elementos da economia desta classe social e o
contexto de formação dos assentamentos de Reforma Agrária.

4.3 CARACTERÍSTICAS SOCIOECONÔMICAS DO CAMPESINATO NO


PARQUE DAS EMAS (GO) E BOLSÃO (MS)

A obtenção de terras, seja pela desapropriação ou compra de latifúndios e a consolidação


dos projetos de assentamentos rurais ocorreram em ritmos diferentes nas áreas estudadas e,
especialmente, na porção sul-mato-grossense os assentamentos são, relativamente, recentes e
houve morosidade do processo de implantação e oferecimento de condições mínimas de
infraestrutura aos camponeses depois de suas instalações. Estas tardias desapropriações em
Mato Grosso do Sul explicam-se em parte pela hegemonia da força política dos proprietários
de terras no Bolsão (MS) em relação à luta dos camponeses e trabalhadores engajados em
movimentos socioterritoriais e ou organizados pela ação da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
A maioria dos assentamentos foi criada no Governo Lula (PT), mas as condições
necessárias para instalação das famílias não se efetivaram deixando-as em espera durante anos
ou as obrigando a estruturar-se por conta própria, sobretudo após a saída de Lula da Presidência.
A situação se agravou no Governo Dilma (PT), pois os camponeses assentados foram,
212

relativamente, abandonados e ficaram sem ações governamentais complementares pós a entrada


das famílias nos assentamentos. Este contexto reflete diretamente na realidade socioeconômica
do campesinato estudado, pois sem a infraestrutura mínima, como água, energia elétrica e
habitação, as dificuldades para geração de renda e permanência no campo aumentam.
Nesse sentido, neste item serão apresentados os contextos dos primeiros assentamentos
de Reforma Agrária no Parque das Emas (GO) e no Bolsão (MS) e como esta política nos
governos do Partido dos Trabalhadores não foi acompanhada da infraestrutura necessária para
as famílias camponesas.
O PA Rio Paraíso, no município de Jataí (GO), foi o primeiro e maior assentamento
criado na área estudada, no ano de 1989, por meio da luta dos trabalhadores rurais, organizados
pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR), com área superior a 5 mil hectares. Com 30
anos de existência, o PA Rio Paraíso possui infraestrutura superior em relação aos
assentamentos instalados posteriormente, servido de estrada asfaltada em grande parte até à
cidade. Em um dos 175 lotes foram construídas as casas de alvenaria que deram origem à vila,
servidas de energia elétrica, água, escola municipal e posto de saúde (MACHADO, 2009).
Na fase de implantação, os assentados reivindicaram, junto ao INCRA, os créditos
iniciais relacionados à infraestrutura, liberados apenas no final do ano de 1990 (KATZER,
2005). Ainda segundo a autora, os assentados também foram contemplados com créditos
iniciais do extinto Programa Especial de Crédito para a Reforma Agrária (PROCERA), pelo
qual a maioria adquiriu suas primeiras cabeças de gado.
A pecuária leiteira, a principal atividade no PA, propiciou, no seu interior, a criação da
Cooperativa Agropecuária do Rio Paraíso (COPARPA), no ano de 1996. Sua importância está
na relação estreita com os assentados, pois contribui para a comercialização da produção e na
revenda de insumos em condições facilitadas. Seu principal entrave é a competição com
produtores médios da região e com as grandes empresas, acarretando o aceleramento da lógica
produtiva dos camponeses, inserindo-os de forma desigual na lógica do mercado.113
Ao longo dos anos, diferentes adversidades provocaram a saída de muitas famílias do
assentamento, por meio de vendas do direito de uso ou de troca por imóveis na cidade, via
contratos de gaveta. A pesquisa de Sieb (2015) revelou que, das 172 famílias assentadas em
1989, apenas 40 permaneceram no assentamento. Essas mudanças alteraram o perfil do
assentado, antes associados ao campesinato que lutou para entrar na terra passando a ser
caracterizado por um campesinato vinculado à lógica do mercado. Portanto, “Conforme a

113
Informações obtidas em trabalho de campo realizado no Assentamento Rio Paraiso em junho de 2017.
213

pesquisa realizada, foram identificados seis tipos de produtores, quais sejam: produtor de grãos;
produtor de grãos e de leite; rentista; rentista e produtor de leite; produtor de grãos e
arrendatário, e produtor de leite e de gado de corte” (MACHADO, 2009, p.7).
Influenciando e influenciada pelas mudanças dos assentados, a Coparpa passou a atuar
na negociação de grãos (soja) produzidos no PA Rio Paraiso com grandes integradoras
regionais, como a Cooperativa Agroindustrial dos Produtores Rurais do Sudoeste Goiano
(COMIGO). A expansão da soja, por meio de arrendamentos ou investimento dos novos
proprietários, simboliza a mudança dentro do assentamento, diferente do campesinato
empobrecido apresentado até aqui, pois os novos proprietários adquiriram/investiram na
compra de um lote de Reforma Agrária com objetivo de inserção no mercado a partir dos ideais
produtivos alinhados ao agronegócio.
No final da década de 1990 outros assentamentos foram criados no atual Parque das
Emas (GO). Em 1998, foram três assentamentos rurais, PA Pratinha e Santa Rita em Jataí (GO)
e Lagoa do Bonfim em Perolândia (GO). No início dos anos 2000, mais dois assentamentos
foram criados: PA Três Pontes e PA Rio Claro em Jataí (GO).
Durante os Governos Lula expandiram-se as políticas públicas para a Reforma Agrária,
promovendo a criação de sete assentamentos: PA Serra das Araras, PA Formiguinha e PA
Pouso Alegre em Mineiros (GO); PA Terra e Liberdade, PA Nossa Senhora de Guadalupe e PA
Romulos Souza Pereira em Jataí (GO); PA Dois Saltos em Santa Rita do Araguaia (GO).
No Bolsão (MS), o primeiro assentamento de Reforma Agrária a ser criado foi o PA
Serra, em Paranaíba (MS), no ano de 1997. O assentamento originou-se a partir da venda da
propriedade Planalto da Velhacaria ao INCRA (DE PAULA FERREIRA e SILVA, 2017),
confirmando o interesse latifundiário na política de Reforma Agrária como meio para realização
da renda da terra. Desta forma, foram assentadas 116 famílias, que se dedicam à produção de
hortaliças e leite. Cabe destacar, a produção de maracujá no assentamento, resultado da parceria
com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR) que capacitou 17 famílias para o
início do projeto.
Durante o trabalho de campo114, em junho de 2016, a produção de maracujá apresentava
bons resultados, a polpa da fruta era extraída e embalada pelos próprios assentados (Figura 21)
possibilitando o aumento do preço do produto final. O Projeto atraiu mais famílias e, segundo
as informações em campo, havia aproximadamente 10 mil pés de maracujá em todo o

114
Informações concedidas a Danilo Souza Melo, Mieceslau Kudlavicz, Edevaldo Aparecido Souza e Patrícia
Tozzo no PA Serra em Paranaíba (MS) no dia 1 de junho de 2016.
214

assentamento. Com o crescimento da produção, os assentados passaram a vender a polpa do


maracujá para intermediários (atravessadores) que mediavam a venda com supermercados.

PA Serra: Poupa de maracujá embalada.

Fonte: NEDET, 2016.

Em novo trabalho de campo, no ano de 2019, os assentados relataram a experiencia com


o maracujá, que, apesar do sucesso inicial, entrou em declínio pela falta de infraestrutura,
sobretudo para a irrigação e por sucessivos calotes dos atravessadores.
Os demais assentamentos do Bolsão (MS) foram criados na década de 2000. O PA
Aroeira, em Chapadão do Sul (MS); PA Alecrim, PA Canoas e PA São Joaquim, em Selvíria
(MS); PA Pontal do Faia e PA Vinte de Março, em Três Lagoas (MS).
A Reforma Agrária durante o Governo Lula (PT) ocorreu num contexto de proximidade
política do governo com o agronegócio, assim, as ações do INCRA se tornaram ainda mais
morosas e burocráticas. As sucessivas paralisações e a greve geral dos funcionários, em 2008,
indicaram o pouco investimento no órgão. Em nova paralisação, no ano de 2013, o diretor da
Confederação Nacional das Associações de Servidores do Incra (CNASI), Reginaldo Marcos
Aguiar, contou115 ao Portal Terra de notícias os sucessivos cortes orçamentários que o órgão
sofreu (25% em 2012) e a falta de reajuste nos salários dos funcionários. No âmbito regional,

115
Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/brasil/em-greve-servidores-do-incra-e-do-ministerio-do-
desenvolvimento-agrario-protestam-distribuindo-
alimentos,43dedc840f0da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>. Acesso em: 7 fev. 2020.
215

casos de esquemas de corrupção no INCRA de GO116 e de MS117 também limitaram as ações


devido às investigações.
As agências estaduais de assistência técnica, como Agência Goiana de Assistência
Técnica, Extensão Rural e Pesquisa Agropecuária (EMATER) e a Agência de Desenvolvimento
Agrário e Extensão Rural (AGRAER), em Mato Grosso do Sul, também foram afetadas pela
escassez dos recursos e casos de corrupção. No relatório de gestão de 2016, o INCRA indicou
o impacto dos sucessivos cortes orçamentários e a tentativa de manter as atividades de
assistência técnica e extensão rural sofridos no Governo Dilma (PT): “Na ATER (Assistência
Técnica e Extensão Rural) foram atendidas 323.744 famílias, 11,05% a menos que em 2015,
mesmo com redução orçamentária de 43,87% (R$154.835.113).” (INCRA, 2016, p.27). Tais
problemas contribuíram para a morosidade da implantação de condições mínimas nos
assentamentos, como luz, água e habitação.
Foi comum a espera por mais de dois anos por infraestrutura em assentamentos do
Parque das Emas (GO) e do Bolsão (MS), exemplificando o descaso do Estado, deixando à
própria sorte camponeses há quase uma década abandonados sem luz e água. No município de
Selvíria (MS), os assentados do PA São Joaquim tiveram grandes dificuldades no recebimento
dos materiais para construção das casas que são custeadas pelo INCRA. Segundo Fonseca
(2014), por diversas vezes, entre os anos de 2010 e 2014, o fornecimento de material foi
interrompido, impossibilitando a construção das casas fazendo com que as famílias
continuassem morando em barracos de lona e madeira.
O motivo da paralisação estava na corrupção envolvendo funcionários do INCRA,
dirigentes da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Mato Grosso do Sul
(FETAGRI-MS), empresários e um filho de assentados que à época da denúncia, em 2016, era
vereador pelo Partido Ecológico Nacional (PEN) (Atual Patriotas), pelo município de Selvíria
118
(MS). Segundo o Ministério Público Federal de Mato Grosso do Sul, houve o
direcionamento para a compra dos materiais em empresas envolvidas que, por sua vez,

116
O Ministério Público Federal de Goiás denunciou o então Superintendente Regional do INCRA do estado por
desvios de recursos financeiros ocorridos entre os anos de 2001 a 2003. Disponível
em:<http://www.mpf.mp.br/go/sala-de-imprensa/noticias-go/mpf-go-denuncia-desvio-de-recursos-financeiros-
do-incra>. Acesso em: 7 fev 2020.
117
Em 2010, o Ministério Público Federal em Dourados (MS) e a Polícia Federal de Naviraí realizaram a
“Operação Tellus” que desvendou esquemas de corrupção na política de Reforma Agrária do estado de MS, que
envolvia funcionários do INCRA. Disponível em:<http://www.mpf.mp.br/ms/sala-de-imprensa/noticias-
ms/operacao-201ctellus201d-quatro-servidores-do-incra-sao-condenados-por-venda-de-lotes-da-reforma-
agraria>. Acesso em: 7 fev 2020.
118
Informação disponível em:< https://mpf.jusbrasil.com.br/noticias/402398051/mpf-ms-consegue-bloqueio-de-
r-55-milhoes-de-envolvidos-em-irregularidades-em-assentamento>. Acesso em> 16 abr 2021.
216

forneciam irregularmente material de baixa qualidade. O MPF/MS descreve a situação à época:


“[...] cenário de abandono da política pública a própria sorte dos assentados” (MPF/MS, 2016).
Em situação semelhante, os assentados do PA Canoas, após mais de dez anos de sua
criação, em 2007, ainda aguardam pelos recursos e assistência do Estado, tais como residências,
energia elétrica, Contrato de Cessão de Uso (CCU) e a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP).
Enquanto isso não ocorre, os assentados persistem na terra morando sem a infraestrutura
mínima, forçados por vezes a passar parte da semana nas cidades próximas, trabalhando.
Contraditoriamente, em 2015, uma vistoria do INCRA classificou119 como irregulares os lotes
considerados “vagos”, mesmo sendo o órgão um dos principais responsáveis pela falta de
recursos e assistência para permanência dos camponeses neste assentamento.
Esta situação de abandono da política de Reforma Agrária e o conjunto de necessidades
básicas que os camponeses passaram alimentou o descrédito na agricultura camponesa
construindo dentro dos meios de comunicação, em tom pejorativo, o termo “favela rural”. Na
mesma situação do PA Canoas, a criação do assentamento Nazareth em Sidrolândia (MS) foi
noticiada pelo Jornal Correio do Estado como criação de “favela rural” pelo INCRA (figura
22).

Manchete Jornal Correio do Estado: Incra cria em Sidrolândia mais uma “favela”
rural no Estado

Fonte: Jornal Correio do Estado, 29 março de 2015.

As falhas e a descontinuidade do Estado não devem demonizar a Reforma Agrária ou


rotular os assentamentos de favelas rurais, pois a omissão deve ser combatida e denunciada em
busca da democratização do acesso para além do corte da terra. Assim:
É preciso dizer em bom tom que a Reforma Agrária não é um projeto
fracassado. Ao contrário, é fundamental para a democratização do país.
Evidência disso, é que mesmo jogadas no meio do mato, algumas famílias
resistem produzindo e enfrentando os problemas da comercialização. Mas a
Reforma Agrária não pode ser essa espécie de darwinismo em que só os
‘fortes’ resistem. Este tipo de distribuição de terra não é Reforma Agrária!
(ALMEIDA, 2011, s/p).

119
Informação noticiada pelo Jornal do Povo de Três Lagoas. Disponível
em:<https://www.jpnews.com.br/selviria/incra-encontra-irregularidades-em-976-lotes-de-assentamentos-do-
bolsao/73880/>. Acesso em: 9 fev. 2020.
217

Nessa perspectiva, Almeida (2011), ao analisar os problemas no PA Canoas, faz menção


a analogia do professor Plínio de Arruda Sampaio entre a Reforma Agrária e feijoada, pois o
feijão (terra) deve ser acompanhado de outros ingredientes necessários, como políticas públicas
para o campo. A situação de abandono nos assentamentos é seguida pela renúncia de famílias
e de retorno à cidade, abalando a política de distribuição de lotes e atribuindo às famílias
camponesas o fracasso de um processo falho.
É mister destacar que a conquista da terra, mesmo que tardia e com sérios problemas,
representa a sensação de liberdade e de autonomia da família camponesa. Como relata120 o
entrevistado B no assentamento Guadalupe em Jataí (GO): “Pra mim aqui é tudo, me sinto bem,
só de você mandar, aqui é meu, não tem patrão não tem enjoeira. Tem que saber trabalhar né,
senão você não dá conta.”. De acordo com Woortmann (1990, p. 43), “Vê-se, então, que o
significado da terra é o significado do trabalho e o trabalho é o significado da família, como o
é, igualmente, a terra enquanto patrimônio. Mais que objeto de trabalho, a terra é o espaço da
família.”
O assentado relembra a trajetória até a conquista da terra, indicando as origens
camponesas da família em terras diminutas na vila rural e quando adulto a saída da terra para o
trabalho em grandes fazendas e seu retorno via Reforma Agrária:
Eu toda vida mexi com fazenda em Jataí, meu pai tinha uma fazendinha ali no
Pombal [vila rural], então é lá pertinho então nós fomos criados lá. Plantando
roça, tirando leite, escola foi muito pouca. Eu trabalhei 12 anos no Estado, eu
trabalhei numa empresa de desmatamento, eu decidi sai e voltar pra fazenda
de novo. Eu voltei pra fazenda do meu pai de novo. Tinha uns amigos meus
que estavam acampados na Gurita [fazenda]. Lá nós arrendamos um pedaço
de terra do pião da fazenda, eu fiquei uns 6...7 anos lá. E nisso ela
[proprietária] quis vender para o INCRA, aí apareceu o acampamento eu já
estava lá, o grupo resolveu pôr eu junto, eu fiquei, ficamos 13 anos, esperando,
aí saiu. (Entrevistado B).

A fala pelo entrevistado B revela o sonho realizado pelo camponês. Portanto, não se
argumenta pelo fim da política de Reforma Agrária, mas sim por sua ampliação na criação e
estruturação dos assentamentos. Os dados do último Censo Demográfico (IBGE, 2010),
contribuem para a compreensão do contexto socioeconômico do campesinato nas áreas
estudadas, pois se pode constatar população envelhecida e com renda média de um salário
mínimo, R$510,00 (Quinhentos e dez reais)121 à época. Os microdados distribuídos por setores
censitários permitem a visualização detalhada das informações sobre o campo na área estudada.

120
Entrevista realizada em janeiro de 2018 no lote do camponês assentado no município de Jataí (MS)
121
Atualmente (2020), o valor do salário mínimo é de R$ 1.045,00 (Mil e quarenta e cinco reais).
218

No mapa 10 apresenta-se a síntese do contexto socioeconômico do campesinato, revelando


dados sobre a população e renda média por setor censitário.
Demonstra-se no mapa 10 que os assentamentos e vilas concentram em seu entorno a
média populacional de 201 a 500 pessoas. No município de Perolândia (GO), encontra-se o
destaque de maior quantidade de pessoas (acima de 500) no setor censitário onde estão os
assentamentos Três Pontes e Lagoa do Bonfim. Certamente a população não se encontra apenas
nos assentamentos ou vilas, mas estes locais contam com pequenas e médias propriedades em
seu perímetro.
A renda média dividida em salários mínimos é representada no segundo mapa, expondo
quais são as condições econômicas da população rural. A população residente nos
assentamentos, vilas e seus arredores possuem renda média entre 1 e 2 salários mínimos,
equivalente a R$ 510,00 e R$1.020,00 no ano de 2010. Como se trata de uma média, os
trabalhos de campo revelaram que parte dos assentados dispunha de renda inferior a um salário.
Por outro lado, locais com alta concentração fundiária (mapa 7, p. 145) e agricultura capitalista
(mapa 6, p. 137), apresentam maiores médias salariais, como em Jataí (GO), Chapadão do Céu
(GO) e Inocência (MS).
É preciso, no entanto, ressaltar que a economia camponesa vai além da renda convertida
em dinheiro. O campesinato se articula em sistemas de trocas de produtos e trabalho entre os
sujeitos. Além disso, parte dos alimentos produzidos é consumida pela própria família
camponesa, não sendo assim contabilizada nas estatísticas de renda. Por isso, seria um equívoco
delimitar a renda camponesa a salário mínimo.
A comida é elemento central da produção camponesa (ALMEIDA, 2008; 2010) e
quando alcançado o objetivo da alimentação familiar, o excedente é comercializado, lógica
extremamente diferente da produção tipicamente capitalista. Essa característica dificulta e
induz ao erro as análises de viabilidade econômica dos assentamentos de Reforma Agrária, no
entanto não significa que o campesinato está fora do circuito capitalista de produção e de seus
mecanismos de exploração (ALMEIDA, 2008).
Shanin (1983), ao analisar o campesinato russo, indica a importância da produção
camponesa para o autoconsumo e renda monetária objetivando atender às necessidades básicas
da família na terra. Nesse sentido, o trabalho de Chayanov (1974) também corrobora nesta
discussão, pois o autor apreendeu a dinâmica do equilíbrio familiar por meio do trabalho-
consumo no campesinato russo, pois as necessidades da família regulavam a auto exploração
do trabalho na terra.
219

Em la unidad de explotación doméstica, sin embargo, entanto siga siéndolo,


la suma de valores que sirve para renovar la fuerza de trabajo es el presupuesto
personal del campesino agricultor. Este presupuesto está determinado por el
tamaño de la família y el grado en el cual satisfacen sus necesidades, lo cual
depende de toda na serie de condiciones efectivas sintetizadas em el equilibrio
interno de la unidad de explotación que, como sabemos, determina el volumen
total de la actividad económica de la família. (CHAYANOV, 1974, p.232).

No caso brasileiro, o equilíbrio dentro do lote de Reforma Agrária conserva-se pela


satisfação das necessidades da família obtidas pelo autoconsumo e da geração de renda.
Todavia, é comum o assalariamento temporário dos camponeses na cidade ou na agricultura
capitalista, objetivando atender às necessidades da família e sua manutenção na terra, como
observado por Silva (2014) e Fonseca (2014) nos assentamentos São Joaquim e Alecrim, no
município de Selvíria (MS).
A renda em dinheiro garante a compra de mercadorias não produzidas no lote, como
ferramentas e insumos (adubos, ração e sementes) para a produção camponesa. O dinheiro
conquistado fora do lote também possibilita a compra de produtos relacionados ao bem estar da
família, como televisores, computadores e celulares. Esse fator é importante no conforto e
acesso a tecnologias e lazer, sobretudo para a juventude camponesa. Nesse sentido, a
manutenção da família na terra passa também pelo conforto e acesso à educação fazendo com
que a conquista da terra via Reforma Agrária deixe de ser sinônimo de pobreza para significar
qualidade de vida. Como exemplo, em carta elaborada durante o I Encontro122 da Juventude
Camponesa do Território Rural do Bolsão (MS), em 2016, os jovens camponeses indicaram
demandas por melhorias na educação ofertada, assim como a necessidade de mais opções de
lazer e oportunidades de emprego.

122
Evento realizado em agosto de 2016 na comunidade rural Tamandaré em Paranaíba (MS). O evento foi
organizado pelo Núcleo de Extensão e Desenvolvimento Territorial (NEDET), do Território Rural do Bolsão (MS),
vinculado à Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), campus de Três Lagoas (MS), em parceria com
a Prefeitura Municipal de Paranaíba (MS).
220

Mapa 10 –Parque das e Emas (GO) e Bolsão (MS): População residente e renda média por setor censitário (2010)
221

É certo que o campesinato estudado nesta pesquisa se caracteriza por uma população
envelhecida, pobre e cercada pelos monocultivos em grandes propriedades rurais. Além disso,
é preciso ressaltar a já indicada morosidade na implantação de programas e políticas para os
assentados de Reforma Agrária. Toda essa conjuntura é utilizada para críticas maldosas, como
a analogia de “favela rural” ou argumento advogando para o fim desta política agrária ou de
sua não necessidade. Utilizam-se do argumento que grande parte da população rural migrou
para as cidades, eliminando a necessidade de redistribuição de terras. O tom pessimista sobre
tal política pública, vem acompanhado pelo argumento e elogio da suposta alta produtividade
do agronegócio brasileiro.
No entanto, o discurso da produtividade do agronegócio versus a Reforma Agrária deixa
brechas para contra argumentar, com simples comparações entre assentamentos rurais e
agricultura capitalista. O trabalho de Mitidiero Junior et al. (2017), esmiuçando o Censo
Agropecuário de 2006, é claro em demonstrar que o campesinato brasileiro é responsável pela
produção de mais de 70% dos alimentos presentes no país. Esta comparação, aliada aos
constantes investimentos do Estado agricultura capitalista e abandono do campesinato, reafirma
a importância da Reforma Agrária no Brasil.
Nesse sentido, a tabela 11 apresenta dados do Censo Agropecuário sobre a produção
dividida entre pequenos e grandes estabelecimentos, em 2016. É importante ressaltar que a
tabela está organizada entre pequenos e grandes estabelecimentos excluindo os dados
relacionados aos com tamanho médio.
A tabela 11 evidencia que a produção de alimentos se concentra nos estabelecimentos
com tamanho até 200 hectares, como feijão preto (30%), feijão fradinho (88,9%), batata inglesa
(55,4%) e milho (57%). Por outro lado, a agricultura capitalista (acima de 1.000 ha) concentra
a produção de algodão (91,9%), soja (49,9%) e cana-de-açúcar (65,7%).

Brasil: Produção agropecuária entre pequeno e grande estabelecimentos (2006)


Agricultura Capitalista (acima de
Campesinato (até 200 ha)
1.000 ha)

Cultivo Quantidade Quantidade


Arroz em casca 8,6% 30%
Feijão-preto em grão 30,0% 3,2%

Feijão-fradinho, caupi, de corda


88,9% 3,30%
ou macáçar

Batata-inglesa 55,4% 27,7%


Algodão Herbáceo 0,5% 91,9%
222

Soja em grão 22,7% 49,9%


Cana-de-açúcar 1,5% 65,7%
Milho em grão 57% 22,9%
Fonte: Mitidiero Junior et al. (2017). Organizado pelo autor.

Mitidiero Junior et al. (2017) são categóricos ao comparar os investimentos públicos e


constatar as diferenças e injustiças entre as duas agriculturas:
[...] aqueles que detêm a maior parte das terras não são os maiores produtores
de comida, porém são eles que recebem a maior fatia dos recursos para
financiamento, e, pelo contrário, a classe que possui a menor porção das terras
rurais são os que mais produzem, contudo recebem bem menos
financiamentos para produção. (MITIDIERO JUNIOR, et al, 2017), p. 53).

Desta forma, é preciso um olhar crítico sobre o campo brasileiro, compreendo o


campesinato como agricultura fundamental na produção de alimentos. Logo a Reforma Agrária
é uma política pública necessária para garantir a segurança alimentar no Brasil.
No Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS), os camponeses dedicam-se à produção de
leite, de pequenos animais, hortaliças e outros derivados, como doces, se articulando na
comercialização em feiras e para as políticas públicas. Desta forma, mesmo com índices
socioeconômicos baixos, a agricultura camponesa na área estudada consegue produzir
alimentos e garantir renda.
É pratica comum entre os assentados a criação de gado, principalmente leiteiro (figura
23). A aquisição de cabeças de gado leiteiro ocorre por meio dos primeiros créditos, via INCRA
ou por programas de créditos e mesmo com recursos próprios. Há também casos de
empréstimos formais em instituições financeiras e informais para tal investimento. O leite
produzido é vendido in natura na cidade ou entregue para laticínios, além da produção de
queijos e requeijão.
223

Assentamento Pouso Alegre (Portelândia – GO): Camponeses apartando o gado


bovino de leite

Fonte: Trabalho de campo. Foto: Foto: do autor. 19 de março de 2018.

Além do gado bovino leiteiro, constatou-se em campo a criação de frangos e porcos que,
além do consumo familiar, são vendidos informalmente e, portanto, não aparecem nas
estatísticas de renda das famílias.
O cultivo de hortaliças também necessita de investimentos inciais dos camponeses, além
de braços para atenderem ao processo de produção. As feiras e os programas governamentais,
sobretuto o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) nacional e municipal e o Programa
Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) são os principais destinos da produção, mas há casos
de venda direta para supermercados e indústrias, como no caso da Eldorado Brasil e da Suzano
em Três Lagoas.
Os programas destinados à comercialização de produtos oriundos da agricultura
camponesa ganharam relevância no Governo Lula (PT). Destaca-se o Programa de Aquisição
de Alimentos (PAA) pela compra de produtos oriundos da agricultura familiar camponesa e
realiza a doação simultânea para pessoas em vulnerabilidade social (COCA, 2016). Criado em
2003, o PAA se tornou importante programa de combate à fome no Brasil e, ao mesmo tempo,
um canal de comercialização para a agricultura familiar camponesa. Portanto:
[...] o Programa compra alimentos produzidos pela agricultura familiar, com
dispensa de licitação, e os destina às pessoas em situação de insegurança
alimentar e nutricional e àquelas atendidas pela rede socioassistencial e pelos
equipamentos públicos de alimentação e nutrição. O PAA também contribui
para a constituição de estoques públicos de alimentos produzidos por
224

agricultores familiares e para a formação de estoques pelas organizações da


agricultura familiar. (MDA, 2012, p.3).
O PAA se divide em diferentes modalidades, fomentando a produção de determinados
produtos, como o leite no PAA-Leite. Apesar dos poucos recursos destinados, o PAA passou a
ser replicado por estados e municípios, mas com ênfase aos Territórios Rurais e da Cidadania,
onde, segundo Coca (2016), localizavam-se 48% dos agricultores familiares camponeses
participantes do programa no ano de 2014.
O PAA ganhou destaque entre os camponeses, principalmente pela garantia (mesmo que
limitada) de venda de parte de sua produção. Todavia, Coca (2016, p.135) ressalta:

[...] que desde de 2013 tem ocorrido uma diminuição nos recursos destinados
a essa política pública. Conforme a Conab (2016), nos últimos cinco anos, o
Governo Federal reservou os seguintes valores ao PAA: R$ 451.036,204,
2011; R$ 586.567,131, em 2012; R$ 224.517,124, em 2013; R$ 338.004,942,
em 2014 e R$ 287.515,216, em 2015. Dentre os fatores que contribuem para
isso, dois merecem destaque: i) a mudança nos critérios de fiscalização dessa
política pública desde 2012) o contingenciamento de gastos pelo qual o Brasil
tem passado desde 2014.
Os fatores de redução dos recursos apontados por Coca (2016), somados à ruptura
política no Brasil, via Golpe de 2016, paralisaram o PAA, como demonstrado na figura 24. O
PAA, criado em 2003, apresenta um crescimento no valor formalizado até o ano de 2014; a
partir de 2016 há uma grande queda nos valores executados pelo programa chegando a sua
quase extinção em 2019.

Brasil: Programa de Aquisição de Alimentos - Doação (2010-2020)


R$450.000.000
R$386.093.481
R$400.000.000
R$361.956.819
R$350.000.000
Valor Formalizado (R$)

R$285.683.595
R$300.000.000
R$268.632.691
R$241.079.417
R$250.000.000

R$200.000.000 R$178.676.297 R$181.835.067 R$185.368.985

R$150.000.000
R$96.568.750
R$100.000.000
R$55.431.240
R$50.000.000 R$31.254.642
R$0
2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020

Brasil

Fonte: CONAB, 2021. Organizado pelo autor.


225

Apesar de não ser um programa criado para a agricultura camponesa, o Programa


Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), com mais de 60 anos, é, atualmente, importante via
de comercialização da produção camponesa. Oriundo de discussões a respeito da necessidade
de políticas para a alimentação escolar, o PNAE é considerado o programa de governo mais
antigo na área de alimentação escolar e de Segurança Alimentar e Nutricional, sendo também
um dos maiores do mundo no que se refere ao atendimento universal aos escolares e de garantia
do direito humano à alimentação adequada e saudável (BRASIL, 2015).
Assim:
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) oferece alimentação
escolar e ações de educação alimentar e nutricional a estudantes de todas as
etapas da educação básica pública. O governo federal repassa, a estados,
municípios e escolas federais, valores financeiros de caráter suplementar
efetuados em 10 parcelas mensais (de fevereiro a novembro) para a cobertura
de 200 dias letivos, conforme o número de matriculados em cada rede de
ensino. (FNDE, 2017, p. 1).

O PNAE foi reformulado, durante o segundo mandato do Governo Lula, pela Lei
11.947/2009, estabelecendo a compra de, pelo menos, 30% da alimentação escolar pública
oriunda da agricultura familiar camponesa. Os agricultores familiares camponeses passaram a
participar deste programa por meio de chamadas públicas. No período de 2003 a 2015, houve
crescimento dos investimentos neste programa, saindo de R$ 954 milhões (Novecentos e
cinquenta e quatro milhões de reais) investidos, no ano de 2003, e chegando a R$ 3,759 bilhões
(Três bilhões, setecentos e cinquenta e nove milhões de reais), em 2015 (FNDE, 2017).
Apesar de o MDA afirmar que “O PNAE é uma importante ferramenta na garantia de
segurança alimentar e nutricional, bem como para o desenvolvimento local” (MDA, 2013, p.
27), as experiências em trabalhos de campo revelam o caráter competitivo na cotação do preço
dos alimentos instaurado pela chamada pública, provocando a disputa entre agricultores
camponeses de outras regiões com os agricultores locais.
Nas entrevistas, os camponeses relatam dificuldades com o programa, entre elas os
pedidos esporádicos e em pouco volume realizados pelas escolas, destoando completamente
dos ciclos naturais da agricultura camponesa. Nesse sentido, as hortaliças, por possuírem um
ciclo produtivo regular durante o ano, são grande parte da produção entregue ao PNAE.
No assentamento 20 de Março, em Três Lagoas (MS), há camponeses que dedicam
grande parte do lote para a produção de hortaliças, como demonstrado na figura 25.
226

Assentamento 20 de Março (Três Lagoas – MS): horta

Fonte: Trabalho de campo. Foto: do autor. 9 de janeiro de 2018.

Além do leite e das hortaliças, o campesinato no Parque das Emas (GO) e no Bolsão
(MS) produz mel, poupa de frutas e pequenos animais, como galinhas, frangos e porcos. Há
ainda a indústria doméstica de biscoitos e doces (figura 26), como no PA Rômulo Pereira, em
Jataí (GO), onde camponesas ampliam a renda familiar comercializando biscoitos de polvilho
no PNAE municipal.

Assentamento Romulo Pereira (Jataí – GO): produção de biscoitos e doces

Fonte: Trabalho de campo. Foto: do autor. 10 de maio de 2018.


227

Sobre o Programa Nacional de Alimentação Escolar, a camponesa assentada relata123


problemas relacionados ao PNAE municipal, mas que, no contexto geral, se demonstra uma
importe forma comercialização da produção e de renda:
Nas escolas municipais todas. Compensa, eu prefiro no PNAE, porque você
já tem o local, é só entregar. Embora o atual prefeito não está pagando em dia
[dois meses de atraso], mas que é bom, é. Nós só entregamos industrializado,
verdura essas coisas a gente não entrega, a gente faz biscoito, rosca e
mandioca descascada. Aqui sou eu e uma colega minha [também assentada].
A gente sempre teve vontade, desde que surgiu o PNAE, aqui já tem três
[produção de biscoitos e pães] só no assentamento. (Entrevistada O).

Portanto, apesar dos índices do IBGE registrarem baixa renda (prancha, mapa 10, pg.
220), o campesinato não deve ser mensurado apenas quantitativamente pela renda em dinheiro,
pois se observa que parte da produção nos assentamentos destina-se ao autoconsumo das
famílias em seus lotes. O consumo familiar, não calculado nas pesquisas oficiais, garante, em
parte, a reprodução social da família, sendo assim, fundamental na dinâmica da recriação
camponesa.
Por outro lado, há a geração de renda por meio de feiras, mercado informal e políticas
públicas. Créditos e apoio à circulação e comercialização da produção camponesa, mesmo que
limitados, são importantes para o campesinato na área estudada.

4.4 AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A AGRICULTURA CAMPONESA

Diferentemente da agricultura capitalista, a agricultura camponesa só passa a ser


efetivamente objeto de políticas públicas de crédito e comercialização no final dos anos de
1990. O ápice destas políticas ocorreu durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT),
entre os anos de 2003 a 2016, quando foram aplicados recursos em políticas e programas, os
quais poucos foram mantidos após a ruptura do governo, sobretudo aqueles que não se tornaram
políticas de Estado, como o PAA.
Sobre esta política em Mato Grosso do Sul, Nardoque, Melo e Kudlavicz (2018)
apontam a drástica redução dos recursos comprometendo o funcionamento do PAA. Assim:
Os recursos do PAA, nesta modalidade, foram de mais de R$ 8 milhões (Oito
milhões de reais), em 2013, com reduções anuais, com corte acentuado em

123
Entrevista realizada 11 de maio de 2018 no assentamento Rômulo Pereira, em Jataí (GO).
228

2016 e redução abrupta em 2017, com as medidas restritivas do Governo


Temer no orçamento aos recursos destinados à agricultura familiar
camponesa. Sendo assim, o Governo Temer não extinguiu esta modalidade de
compra institucional, mas a aniquilou por inanição. (NARDOQUE, MELO,
KUDLAVICZ, 2018, p. 637).

No Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS) o Programa de Aquisição de Alimentos teve
o maior volume de recursos aplicados entre 2013 e 2015, sofrendo retração a partir de 2016 no
contexto pós-golpe já argumentado anteriormente. Assim, a figura 27 revela como esta política
pública foi praticamente extinta nos últimos cinco anos.
No ano de 2020 os números apresentam um tímido crescimento proporcionado pela
reformulação desta política no Governo Bolsonaro. Segundo a Companhia Nacional de
Abastecimento (CONAB)124, o PAA em 2020 recebeu o aporte de 220 milhões de reais para
novos projetos, funcionando principalmente na modalidade Institucional onde instituições
públicas como o Exército brasileiro125 passaram a se tornar os principais compradores dentro
da política.

Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS): PAA Doação (2010-2020)


VALOR FORMALIZADO (R$)

R$1.920.109

R$2.500.000

R$2.000.000
R$1.143.947

R$1.500.000
R$669.530
R$512.992

R$490.420

R$434.700

R$1.000.000
R$372.746

R$366.467
R$288.000

R$284.561
R$263.099

R$194.275

R$152.000
R$134.700

R$115.200

R$112.000
R$91.940

R$73.352
R$72.000

R$500.000
R$0

R$0

R$0

R$0

Parque das Emas (GO) Bolsão (MS)

Fonte: CONAB, 2021. Organizado pelo autor.

124
Informação disponível em: <https://www.conab.gov.br/ultimas-noticias/3339-paa-tem-previsao-de-aporte-de-
r-220-milhoes-para-projetos-com-doacao-simultanea>. Acesso em: 28 abr. 2021.
125
Informação obtida em trabalho de campo na Superintendência Federal de Agricultura no estado de Mato Grosso
do Sul – SFA/MS no município de Campo Grande (MS) em 19 de dezembro de 2019.
229

Apesar de não ser um programa criado para a agricultura camponesa, o Programa


Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), com mais de 60 anos, foi uma importante via de
comercialização da produção camponesa durante os governos petistas. Oriundo de discussões
a respeito da necessidade de políticas para a alimentação escolar, o PNAE é considerado o
programa de governo mais antigo na área de alimentação escolar e de Segurança Alimentar e
Nutricional, sendo também um dos maiores do mundo no que se refere ao atendimento universal
aos escolares e de garantia do direito humano à alimentação adequada e saudável (BRASIL,
2015).
Assim:
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) oferece alimentação
escolar e ações de educação alimentar e nutricional a estudantes de todas as
etapas da educação básica pública. O governo federal repassa, a estados,
municípios e escolas federais, valores financeiros de caráter suplementar
efetuados em 10 parcelas mensais (de fevereiro a novembro) para a cobertura
de 200 dias letivos, conforme o número de matriculados em cada rede de
ensino. (FNDE, 2017, p. 1).

O PNAE foi reformulado durante o segundo mandato do Governo Lula pela Lei
11.947/2009, estabelecendo a compra de pelo menos 30% da alimentação escolar pública
oriunda da agricultura camponesa. Os camponeses passaram a participar deste programa por
meio de chamadas públicas. No período de 2003 a 2015, houve crescimento dos investimentos
neste programa, saindo de R$ 954 milhões (Novecentos e cinquenta e quatro milhões de reais)
investidos, no ano de 2003, e chegando a R$ 3,759 bilhões (Três bilhões, setecentos e cinquenta
e nove milhões de reais), em 2015 (FNDE, 2017).
Apesar de o MDA afirmar que “O Pnae é uma importante ferramenta na garantia de
segurança alimentar e nutricional, bem como para o desenvolvimento local” (MDA, 2013, p.
27), as experiências em trabalhos de campo revelam o caráter competitivo na cotação do preço
dos alimentos instaurado pela chamada pública, provocando a disputa entre agricultores
camponeses de outras regiões com os agricultores locais. Em campo, os camponeses relatam
dificuldades com o programa, entre elas os pedidos esporádicos e em pouco volume realizados
pelas escolas destoando completamente dos ciclos naturais da agricultura camponesa.
A figura 28 apresenta a dinâmica dos recursos empenhados no PNAE para a agricultura
camponesa no Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS) entre os anos de 2011 a 2017. Observa-se
que os recursos aumentam gradativamente até o ano de 2016, e reduzem a partir de 2017 após
os cortes governamentais. Cabe destacar, que junto a redução dos recursos para o PNAE, houve
230

também a paralisação126 da alimentação sistemática dos bancos de dados sobre as políticas


públicas.

Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS): PNAE (2011-20)


R$1.800.000,00 R$1.635.291,36

R$1.629.715,79
R$1.600.000,00

R$1.400.000,00
Valores em Reais (R$)

R$1.200.000,00

R$1.000.000,00

R$800.000,00

R$600.000,00

R$400.000,00
R$109.157,37
R$200.000,00 R$91.047,71

R$-
2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017

Parque das Emas (GO) Bolsão (MS)

Fonte: FNDE, 2021. Organizado pelo autor.

O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) é o mais


conhecido entre os camponeses estudados nesta pesquisa. Na década de 1990, os Estados
nacionais e instituições financeiras mundiais passaram a adotar novas perspectivas de
desenvolvimento, baseadas, principalmente, nas experiências europeias. No Brasil, esta nova
perspectiva foi a base para a construção do principal programa público de crédito para a
agricultura familiar camponesa, o Pronaf. Este programa, inicialmente, objetivou estimular a
organização coletiva camponesa e o combate à pobreza no campo. Sendo assim:
A partir das experiências do Programa LEADER, as instituições multilaterais,
como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID),
passaram a condicionar a concessão de financiamentos aos países periféricos
à incorporação nos seus programas de desenvolvimento rural, de pressupostos
e estratégias visando à redução da pobreza, o estímulo às formas de
organização coletiva, a conservação dos recursos naturais e a visão mais
integrada dos espaços rurais e urbanos por meio da perspectiva territorial, sem
considerar, entretanto, as particularidades que caracterizam esses países.
(HESPANHOL, 2010, p.127).

126
Atualmente para acessar informações sobre o PNAE é preciso utilizar Sistema de Gestão de Prestação de Contas
– SIGPC e filtrar todos os pagamentos realizados pelos municípios até chegar as ordens bancarias destinadas ao
programa, feito isso, novamente é preciso observar e destacar os pagamentos feitos aos camponeses ou
associações. Dessa forma, o fim da alimentação de um banco de dados exclusivos dificulta consideravelmente o
acesso à informação sobre o programa.
231

A adoção da perspectiva denominada territorial passou a ser condição necessária para


os países acessarem financiamentos/empréstimos de instituições como o Banco Mundial. De
acordo com Ortega (2007), a perspectiva irradiada pelas instituições financeiras buscava o
desenvolvimento local de forma autônoma, independente do Estado. Assim:
A hegemonia neoliberal validada pelas agências multilaterais, particularmente
o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, passou a recomendar
aos países em desenvolvimento o controle de suas contas públicas para a
geração de superávit primário como forma de resolver o endividamento
público. Nesse sentido, aquelas instituições também recomendavam o
desenvolvimento local, mediante a indução de arranjos sócio-produtivos
locais, que, de maneira autônoma e endógena, deveriam buscar o
desenvolvimento, desobrigando o Estado de ações intervencionistas.
(ORTEGA, 2007, p.280).

Baseado nesta perspectiva, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura


Familiar (PRONAF), criado em 1996, foi o primeiro programa/política pública para a
agricultura camponesa sob o novo desenvolvimento territorial. Este programa:
[...] permite acesso a recursos financeiros para o desenvolvimento da
agricultura familiar. Beneficia agricultores familiares, assentados da reforma
agrária e povos e comunidades tradicionais, que podem fazer financiamentos
de forma individual ou coletiva, com taxas de juros abaixo da inflação. Facilita
a execução das atividades agropecuárias, ajuda na compra de equipamentos
modernos e contribui no aumento da renda e melhoria da qualidade de vida no
campo. (MDA, 2013, p.11).

O Pronaf, em sua forma inicial, promovia a gestão coletiva de seus projetos por meio da
constituição de conselhos gestores (OLIVEIRA; CLEMENTE, 2012). A formação destes
conselhos proporcionava a interação e discussão do chamado desenvolvimento territorial.
Assim, para participar do PRONAF Infraestrutura e Serviços, o município deveria ser
selecionado pelo Conselho Estadual do PRONAF e suas ações deveriam ser gestadas pelo
Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural (HESPANHOL, 2010). Assim, o PRONAF
Infraestrutura e Serviços “[...] pode ser caracterizado como um primeiro ensaio de política
pública territorial rural no país”. (ORTEGA, 2017, p.32).
Atualmente, o PRONAF se divide em linhas de financiamento: Custeio, Investimento,
Microcrédito Rural, Agroecologia, Mulher, Eco, Agroindústria, Semiárido, Jovem, Floresta,
Custeio e Comercialização de Agroindústrias Familiares e Cota-Parte. Estas linhas permitem o
financiamento desde hortas agroecológicas até a construção de agroindústrias.
Todavia, apesar das linhas de crédito serem voltadas para a agricultura camponesa, o
trabalho de Paula, Montenegro Gómez e Tracz (2017) aponta para o teor neoliberal do
PRONAF que estimula a inserção dos camponeses do Estado do Paraná na produção de
232

commodities. Segundo os autores, no Paraná 82% dos financiamentos do PRONAF foram


destinados a produção de soja e milho.
A produção da soja é uma produção que subordina e deixa cada vez mais
vulneráveis os camponeses que ficam expostos às oscilações do mercado
capitalista das commodities, além da necessidade de gastos elevados para que
a produção se realize. Portanto, o PRONAF tem sido o principal mecanismo
usado pelos camponeses para conseguir comprar os insumos caríssimos, como
também pagar o maquinário necessário. (2017, p. 68).

Segundo o MDA (2017), o PRONAF concedeu cerca de R$200 bilhões (Duzentos


bilhões de reais) em crédito distribuídos em 28,5 milhões de contratos, entre os anos de 1995 e
2017 em todo o Brasil. Os números atualizados pelo Banco Central do Brasil, permitem uma
análise mais aprofundada e recente sobre o acesso ao PRONAF na área estudada. Desta
maneira, a tabela 12 apresenta a quantidade de contratos e valores totais acessados via PRONAF
nos municípios pertencentes ao Parque da Emas (GO) e Bolsão (MS), de 2015 a 2020.
Entre os anos analisados, foram realizados 1.073 contratos de créditos do PRONAF no
Parque das Emas (GO), estes totalizaram R$ 44.626.687,34 (Quarenta e quatro milhões,
seiscentos e vinte seis mil, seiscentos e oitenta e sete reais e trinta e quatro centavos). O
município de Jataí (GO) possui a maior quantidade de contratos (308) e, consequentemente, o
maior volume de créditos, R$ 13.544.985,35 (Treze milhões, quinhentos e quarenta e quatro
mil, novecentos e oitenta e cinco reais e trinta e cinco centavos). Estes números expressivos são
compostos pelo acesso de assentados ao programa de crédito, mas também dos camponeses
tradicionais do município. Nesse sentido, chamam atenção ainda, municípios sem
assentamentos de Reforma Agrária, mas que apresentam acesso ao PRONAF por meio do
campesinato tradicional, como Aparecida do Rio Doce (GO), com 30 contratos; Aporé (GO),
69 contratos; Portelândia (GO), 205 contratos; e Serranópolis (GO), 18 contratos.
O Bolsão (MS), entre os anos de 2015 a 2020, soma 1.008 contratos totalizando
R$40.985.736,50 (Quarenta milhões, novecentos e oitenta e cinco mil, setecentos e trinta e seis
reais e cinquenta centavos). Destaque para o município de Paranaíba (MS) com o maior número
de contratos (272), com valor total de R$11.920.859,71 (Onze milhões, novecentos e vinte mil,
oitocentos e cinquenta e nove reais e setenta e um centavos). O número expressivo deste
município converge com os dados sobre a grande presença camponesa de Reforma Agrária,
mas também tradicional. Em contrapartida, Três Lagoas (MS) e Selvíria (MS), mesmo
possuindo, respectivamente, dois e três assentamentos de Reforma Agrária, registraram
números baixos de acesso ao programa. Por outro lado, municípios sem assentamentos também
tiveram registro de acesso ao PRONAF, como Água Clara (MS), com 16 contratos; Aparecida
233

do Taboado (MS), 61 contratos; e destaque para Inocência (MS), com 226 contratos, totalizando
mais de 10 milhões de reais em crédito.

Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS): PRONAF - Quantidade e Valor dos
Contratos (2015 -2020)
Parque das Emas (GO)
Quantidade Valor (R$)
Aparecida do Rio Doce 30 R$ 924.709,45
Aporé 69 R$ 2.284.600,23
Chapadão do Céu 179 R$ 7.331.284,31
Jataí 308 R$13.544.985,35
Mineiros 37 R$1.315.526,43
Perolândia 132 R$6.649.656,14
Portelândia 205 R$9.231.658,12
Santa Rita do Araguaia 95 R$2.097.902,89
Serranópolis 18 R$1.246.364,42
Total 1.073 R$ 44.626.687,34
Bolsão (MS)
Quantidade Valor (R$)
Água Clara 16 R$1.294.708,42
Aparecida do Taboado 61 R$2.365.572,18
Cassilândia 168 R$6.752.162,46
Chapadão do Sul 45 R$1.445.234,08
Inocência 226 R$10.404.636,95
Paranaíba 272 R$11.920.859,71
Selvíria 53 R$1.279.199,17
Três Lagoas 167 R$5.523.363,53
Total 1.008 R$40.985.736,50
Fonte: Banco Central do Brasil, 2021. Organizado pelo autor.
Os assentamentos rurais no Parque das Emas (GO), por serem mais estruturados,
obtiveram acompanhamento maior do INCRA, como comprovado entre os assentados
entrevistados que acessaram os recursos do Pronaf ou tinham documentação necessária para
tanto. A Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), importante documento, necessário para
acesso ao programa, é o indicativo de adesão dos camponeses. Os dados do Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento, do ano de 2019, sobre o número de DAPs físicas ativas
no Parque das Emas (GO), apontam que, das 270 DAPs ativas, 100 pertencem a camponeses
234

assentados. Portanto, os camponeses de Reforma Agrária ou tradicionais utilizam o PRONAF


como um meio de acesso a créditos para investimento em seus lotes.
O camponês (Entrevistado C) assentado no PA Guadalupe, em Jataí (GO), acessou
recursos, assim como a maioria dos camponeses do mesmo assentamento. Aplicando os
recursos em gado leiteiro, o camponês fez uma análise127 do primeiro acesso e da confiança em
não ter problemas para pagar:
É tranquilo, de boa. Assim nós nem começamos a pagar ainda, porque tem
três anos de carência. Mas hoje se você parir uma vaca sua, eu comprei gado,
e você segurar um bezerro você paga. Um ano você paga. Nós pegamos vinte
e cinco mil, cada assentado, Pronaf A. Então a gente está na expectativa de
fazer isso [pagar o Pronaf] e já acessar outro [Pronaf B]. (Entrevistado C).

No Bolsão (MS), o PRONAF ainda é um objetivo a ser alcançado pelos camponeses


assentados e os números são esclarecedores. Das 173 DAPs ativas nos municípios do Bolsão
(MS), apenas 32 eram de camponeses assentados, desta maneira, grande parte dos números da
tabela 12 sobre o PRONAF pertencem ao campesinato tradicional. Situação angustiante para
os camponeses que aguardam primeiramente a DAP para depois buscar o acesso ao programa,
como aponta128 o camponês assentado no PA 20 de Março:
“[...] no primeiro ano o INCRA tem que entregar o funcional, tem que entregar
estrada, água, energia e a moradia, isso é o mínimo e o acesso ao PRONAF.
Nós temos nove anos aqui e ninguém tem acesso ao PRONAF, ninguém
acessou nenhum.” (Entrevistado D).

O entrevistado, incomodado, aponta o descontentamento com a DAP provisória,


utilizada apenas para venda em programas de comercialização, não dando direito ao PRONAF
Esse ano, se a gente conseguir e sair o Pronaf da dona [Nome da assentada].
A DAP dela saiu. É uma DAP de três anos, mas é uma DAP provisória. Eu fui
no site do MDA, no site da secretaria da agricultura familiar, em tudo que é
site que dava informação sobre o Pronaf, isso não existe, DAP provisória de
três anos.
É o que eu estava falando esses dias [...] eles fazem uma grande propaganda
do plano safra, não sei quantos milhões, mas vai tudo para o agronegócio. Não
chega um terço para quem precisa. Se você ver, a quantidade de pessoas que
acessam o Pronaf pela agricultura familiar é muito pequena. No ano passado
o secretário do extinto MDA veio falar que o Estado teve recorde de acesso
ao Pronaf. O Estado inteiro, dez mil acessos ao Pronaf. Bacana né? O Estado
tem mais de setenta mil produtores e dez mil pessoas [acenando positivamente
e ironicamente com a mão] cem por cento, estamos quase lá. (Entrevistado D).

Mesmo com grande popularidade entre os camponeses, o PRONAF se alinha à


perspectiva neoliberal e setorial promovendo a intensificação da relação entre mercado e

127
Entrevista realizada em janeiro de 2018 no lote do camponês, no município de Jataí (GO).
128
Entrevista realizada em março de 2019 no lote do camponês, no município de Três Lagoas (MS).
235

campesinato. Além disso, observou-se em campo a rigidez da política em relação à elaboração


do projeto e sua execução, pois forçam os camponeses a se especializarem em determinado
setor da agricultura, com destaque para a produção de leite. Nesse sentido, “[...] o PRONAF
demostrou durante todo esse tempo que não deu conta de abranger toda a diversidade dentro da
agricultura camponesa e privilegia apenas o grupo que se mantem integrado ao mercado do
agronegócio.” (PAULA et al, 2017, p. 71).
Um caso emblemático sobre o PRONAF e a persistência camponesa, foi registrado129
no assentamento Lagoa do Bomfim, no município de Perolândia (GO). Logo após à atividade
diária de retirar o leite, o camponês assentado (Entrevistado E) conta sua história e explica o
nome de uma de suas vacas, a chamada vaca “Sustema”. O camponês relata o trabalho em
fazendas no decorrer de parte de sua vida, e, talvez pela idade e o cansaço, decidiu se livrar do
patrão e conquistar seu pedaço de chão. Foram sete anos no acampamento até a partilha da terra.
Já no assentamento, o camponês decidiu iniciar seu projeto de produzir leite, no entanto,
relembra as dificuldades iniciais:
Aqui o sonho começa descalço, pé no chão. No INCRA tá o problema, tem
um tal de Pronaf isso tudim porque eu fui pegar o tal do Pronaf. Eu não tinha
dinheiro para fazer cerca, comprar vaca. A primeira vaca que eu comecei a
tirar leite é aquela lá (indicando com as mãos) chama Bordada, foi ganhada,
foi meu irmão que me deu. Eu não tinha nada! Eu entrei aqui ganhando cesta
básica. (Entrevistado E).

Continuando a história, o camponês lembra a chegada dos primeiros recursos por meio
do INCRA, para a construção da casa. Para adquirir mais vacas, o camponês, com 70 anos,
denominando-se analfabeto, não sabia como acessar o PRONAF. Assim, diversas tentativas de
empréstimos em bancos e compras em lojas agropecuárias eram negadas com uma resposta
padrão, o sistema está fora do ar. “Toda vez que eu ia lá [loja agropecuária], o sustema [sistema]
não tá funcionando, uai, as lojas tudo que eu ia. Hoje o sustema tá fora do ar”. (Entrevistado E).
Persistente, e com a ajuda do leite da vaca Bordada e de sua aposentadoria, o camponês
comprou à vista as primeiras vacas (Figura 28). Em homenagem a essa saga, a primeira vaca
comprada foi batizada de “Sustema”, vaca brava e rebelde e símbolo da perseverança e teimosia
camponesa. Posteriormente, o entrevistado conseguiu acessar os recursos do PRONAF e dar
continuidade ao seu sonho.
Destaca-se ainda a peculiaridade camponesa em nomear os animais, demonstrando afeto
e respeito aos mesmos, característica diferente da agricultura capitalista onde os animais

129
Entrevista realizada em maio de 2018 no lote do camponês, no município de Perolândia (GO).
236

possuem apenas identificação numérica. Sobre a campesinidade, Motta (2013) aponta a prática
cultural ligada a classe camponesa em “batizar” as vacas:
Questionado a respeito dos nomes dados às vacas, curiosa foi a resposta da
esposa de Valter: ‘as vacas tem nomes e inclusive são ‘batizadas’’.
Posteriormente foi relatado por um camponês que o ‘batismo’ deve ser feito
com um galho de erva, como a arruda (Ruta graveolens) e a guiné (Petiveria
alliacea L), ‘que não pode pôr no olho senão cega’, afastando assim ‘mal
olhado e carrapato’. (MOTTA, 2013, p. 219).

Portanto, além de retratar a persistência camponesa, o “batismo” da vaca Sustema


também revela a campesinidade na área estudada.

Assentamento Lagoa do Bomfim: Vaca Bordada e o novo rebanho

Fonte: Trabalho de campo. Foto: do autor. 11 de maio de 2018.

Sob outra perspectiva, observa-se na fala do camponês a utilização da aposentadoria de


forma estratégica para a aquisição das primeiras cabeças de gado. Esse fato chama a atenção
pela importância das políticas sociais, sobretudo para o campesinato, garantindo a renda
monetária mínima da família e possíveis investimentos no lote.

4.5 AS POLÍTICAS SOCIAIS COMO GARANTIA DE RENDA FAMILIAR

Apesar da obra de Chayanov (1974), em linhas gerais, se contrapor a Marx (GERARDI;


SALAMONI, 2014), é preciso considerar a análise minuciosa do autor sobre a unidade
econômica campesina na Rússia e sua busca pelo equilíbrio trabalho-consumo. Os
237

apontamentos do autor, relativos ao equilíbrio da família camponesa russa, no balanço entre a


autoexploração do seu trabalho e as necessidades materiais coletivas e individuais, são
importantes subsídios teóricos para a interpretação do campesinato nas áreas estudadas. Nesta
discussão, observa-se a importância das políticas sociais, especificamente a aposentadoria
como pilar da economia monetária de parte das famílias camponesas estudadas.
Também é necessário considerar a família camponesa para além da dimensão moral e
reprodução dos costumes (WOORTMAN, 1990), pois esta é um importante eixo na reprodução
do campesinato, sendo sua estrutura dividida entre a quantidade de camponeses aptos ao
trabalho e o número de camponeses não aptos ao trabalho no campo, como crianças e idosos.
Desta forma, para Chayanov (1974);
Cualquiera sea el fator determinante de la organización de la unidad
económica campesina que consideramos dominamente, por mucho valor que
atribuyamos a la influencia del mercado, a la extensíon de tierra utilizable o a
la disponibiliadad de médio de producción y a la fertilidade natural, debemos
reconocer que la mano de obra es el elemento tecnicamente organizativo de
cualqueier producción. Y puesto que em la unidad económica familiar que no
recurre a fuerza de trabajo, su composición y el grado de actividad, debemos
aceptar que el carácter de la família es uno de los fatores pincipale em la
organización de la unidad económica campesina. (p.47) (grifo nosso).

Posto isto, é importante salientar a persistente e longa luta pela Reforma Agrária em
acampamentos às margens de estradas e a morosidade em arrecadações de terras e criações de
assentamentos, culminando no encontro tardio entre o campesinato e a terra. As críticas feitas
à tal política, de certa maneira, indicam a necessidade de maior empenho do Estado, incluindo
investimentos e reformulações em sua concepção.
No mapa 12, demonstra-se a lentidão da Reforma Agrária por meio dos dados do Censo
Demográfico de 2010, demonstrando a quantidade de idosos (60 anos ou mais) por setor
censitário, ficando explícito nos assentamentos e vilas o grande número de idosos, fator que
interfere diretamente na dinâmica local. Na área goiana estudada, os municípios de Perolândia
(GO) e de Jataí (GO) apresentam números elevados de idosos (acima de 100 pessoas) nos
setores onde estão os assentamentos e a vila Naveslândia.
A mesma situação é constatada no município de Três Lagoas (MS), pois no setor
censitário do Assentamento 20 de Março e do distrito/vila Arapuá, há mais de 100 pessoas com
idade igual ou superior a 60 anos.
238

Mapa 12 –Parque das e Emas (GO) e Bolsão(MS): Número de pessoas com idade igual ou maior que 60 anos (2010)
239

Os camponeses conquistam a terra com idade avançada para desempenharem as duras


atividades do campo. Por outro lado, as aposentadorias lhes garantem renda mínima mensal,
fator importante para permanência da família no campo. A distribuição de aposentadorias rurais
por município, entre os anos de 2010 e 2019 (tabela 13), de acordo com dados da Previdência
Social, demonstra a dinâmica desse benefício nos municípios analisados. No Parque das Emas
(GO) e no Bolsão (MS), totalizam-se 12.721 aposentadorias rurais em 2019, com relevância
para os municípios de Jataí (GO) e Paranaíba (MS).
Comparando a quantidade de aposentadorias rurais com a população rural por
município, pode-se obter uma estimativa sobre a porcentagem da população no campo que é
beneficiária desta política social. Nesse sentido, nos municípios de Jataí (GO) e Mineiros (GO)
35% e 36%, respectivamente, da população rural teve acesso a aposentadoria no ano de 2019.
No mesmo período de análise, o município de Cassilândia (MS) apresenta números
surpreendentes, onde 72% da população rural teve acesso ao benefício, em seguida, Paranaíba
(MS) se destaca com 32% da população rural aposentada.

Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS): Número de aposentadorias rurais e


porcentagem por município (2010 e 2019)130

Parque das Emas (GO)


Aposentadoria Rural 2010 2019
% em Rel. a % em Rel. a
Município Qnt Qnt
Pop. Rural Pop. Rural
Aparecida do Rio Doce 38 8% 89 18%
Aporé 122 10% 154 11%
Chapadão do Céu 72 6% 113 7%
Jatai 1.835 26% 2.811 35%
Mineiros 1.627 35% 2.128 36%
Perolândia 45 4% 95 8%
Portelândia 113 16% 187 24%
Santa Rita do Araguaia 120 16% 211 21%
Serranópolis 345 18% 463 21%
Total 6.327 6.251

Bolsão (MS)
Aposentadoria Rural 2010 2019
% em Rel. a % em Rel. a
Município Qnt Qnt
Pop. Rural Pop. Rural
Água Clara 126 3% 193 4%

130
Para a realização da estimativa (%) entre o número de aposentadorias e o número da população rural em
2019, utilizou-se dados do IBGE (2020) sobre a projeção da população de cada município.
240

Aparecida do Taboado 1181 53% 857 33%


Cassilândia 1429 73% 1471 72%
Chapadão do Sul 269 9% 606 16%
Inocência 311 11% 411 15%
Paranaíba 1331 30% 1731 37%
Selvíria 188 12% 171 11%
Três Lagoas 937 20% 1030 18%

Total 7782 6470

Fonte: Previdência Social131. Organização do autor.

O número relevante de aposentadorias coloca em voga a necessidade de continuidade


da família no assentamento, dependendo assim, da permanência dos filhos, netos e outros
trabalhando na terra. No entanto, a falta de condições para a reprodução social da família não
cria perspectivas para a permanência, sobretudo, dos jovens.
A base empírica revela que a família camponesa no Parque das Emas (GO) e no Bolsão
(MS) é diversa, contendo algumas grandes, com filhos e netos, ao mesmo tempo, lotes apenas
com casal de idosos. Essa multiplicidade de estruturas familiares indica que a exploração
individual de cada lote e a força de trabalho camponesa é desigual. No plano econômico
chayanoviano da família, a produção e a renda dos lotes são menores onde a família possui
poucos “braços” e muitas bocas para alimentar, como no caso de famílias com muitos filhos
que ainda não trabalham no campo, ou ainda em famílias idosas.
No entanto, o trabalho familiar camponês é inverso à lógica capitalista de acumulação,
pois não preconiza a acumulação e o lucro. Assim, o campesinato além da produção de
alimentos, busca na venda do excedente da produção dinheiro para comprar mercadorias não
produzidas em seu lote (PAULINO, 2003); (ALMEIDA, 2006). Portanto, o trabalho familiar
não remunerado diretamente é uma das bases da manutenção e reprodução camponesa de
acordo com as necessidades da família. Portanto:
Isso porque a extração da mais-valia não se constitui no fundamento da
atividade camponesa, o que significa que a acumulação adquire sentido
diverso, retornando sempre sob a forma de aumento da produtividade do
trabalho e melhoria das condições de vida da família. (PAULINO, 2003, p.22).

Na subjetividade da família camponesa, como discutiu e analisou Woortmann (1990),


foi perceptível no decorrer do trabalho de campo entre os camponeses, pois há diferenciação e
divisão dos trabalhos dentro da estrutura familiar. O pai, o patriarca, se encarrega de realizar as
atividades agrícolas, enquanto a mãe trabalha no quintal, em hortas e na criação de pequenos

131
Informação obtida via requerimento por meio da Lei de Acesso à informação.
241

animais. Observou-se também o trabalho da mulher na cozinha, não apenas na alimentação da


família, mas também na produção de derivados do leite, como doces e, também, pães a serem
comercializados no local e em feiras.
Os filhos menores, resguardados pelo trabalho dos pais, dividem-se entre os estudos
básicos e pequenas atividades no lote onde aprendem os princípios da agricultura. Longe de ser
uma estrutura perfeita, a família camponesa de Reforma Agrária, por vezes, se encontra em
desiquilíbrio, dentro de uma conjuntura de aumento ou diminuição de seus membros, provocada
por múltiplos fatores presentes no campo.
As terras diminutas para o aumento e participação dos filhos na produção, por exemplo,
podem levar a uma situação, como Chayanov (1974) constatou, de trabalho temporário em
atividades não agrícolas com maior remuneração em comparação às atividades do lote, como
descrita pela fala132 do entrevistado C:
Aqui só eu e a mulher que mora aqui, eu tenho o filho, aí eu tenho filho que
trabalha na lavoura [soja], aí quando acaba o serviço da lavoura ele vem pra
cá e fica aqui. Na hora que começa ele sai, mas aqui mesmo só eu e a mulher.
(Entrevistado C).

O relato do entrevistado demonstra a preocupação comum nos assentamentos rurais


sobre a sucessão do lote e o destino dos jovens camponeses. A morosidade de conquista da terra
reduz o período produtivo da família envelhecida, e a falta de perspectiva dos jovens no campo,
acentuada pela busca de trabalho menos penoso na cidade ou mais rentável nas fazendas, deixa
em aberto o futuro do lote. No Assentamento 20 de março, em Três Lagoas (MS), o entrevistado
D contextualiza a questão:
E hoje a gente tem um problema muito grave, hoje a gente não temos aqui,
acho que não é só aqui não, é na agricultura. A gente não tem uma transição,
quer dizer não tem pai e filho, então fica difícil hoje. A gente tinha aqui mais
ou menos 10 jovens entre 18 e 20 e poucos anos, dos 10, sobram uns quatro
aqui dentro do assentamento, desses quatro uns três não querem saber de nada,
e os pais e avós já não dão conta mais, a maioria já está aposentado ou tem
outro rendimento, não é muito, mas dá pra viver. A gente tá com um grande
problema esse ano, tá muita gente parando. Pessoas que não aguentam mais
trabalhar, estão cansadas ou têm problema de saúde. (Entrevistado D).
Cumpre salientar que não há aqui uma perspectiva determinista de reprodução do
campesinato por meio da permanência dos jovens no campo. Deve-se respeitar as
subjetividades humanas e seus projetos de vida. No entanto, o campo deixou de ser atrativo
para a juventude nos assentamentos estudados. Outro ponto a ser considerado é de que não há
um movimento linear de saída do campo, há também o movimento contrário de retorno dos

132
Entrevista concedida na casa do assentado, no assentamento Guadalupe em Jataí (GO) em novembro de 2018.
242

filhos e netos ao lote devido a crises financeiras e a falta de emprego nas cidades, além da
sazonalidade do emprego nas fazendas, sobretudo de soja. A garantia de condições mínimas
ofertadas pela família camponesa e de sua propriedade fazem do lote um ponto seguro para
filhos e netos em momentos de crise. O desemprego ou a remuneração, semelhante às atividades
desempenhadas no campo, provocam a reunião dos familiares.
Em suma, a dinâmica familiar camponesa de aumento ou diminuição de seus membros
causa impacto direto na quantidade de trabalho e de geração de renda. Não se trata de uma visão
estritamente economicista, porém o trabalho familiar é considerado aqui um dos elementos
centrais da classe camponesa. No mesmo argumento, ressalta-se que a geração de renda para
consumo de produtos não produzidos no lote é essencial na permanência do campesinato,
sobretudo o jovem camponês.
No entanto, cabe lembrar que a lógica camponesa não pressupõe a produção em busca
do lucro, logo a autoexploração (CHAYNOV, 1974) ou produção no lote podem ser reduzidas
em contextos de pouca força de trabalho (crianças) ou envelhecimento sob o respaldo de
programas sociais de transferência de renda ou seguridade social. Tais políticas são
responsáveis, mesmo que momentaneamente, pela manutenção do equilíbrio e reprodução
social de famílias camponesas.
A aposentadoria rural e o Bolsa Família são programas não vinculados diretamente à
agricultura, mas com grande impacto na reprodução desta classe, garantindo-lhe renda mínima
em períodos de crise, bem como trunfo nas diferentes estratégias de produção e venda.
Por outro lado, para Favero (2011), ao estudar o impacto das políticas sociais,
especialmente a aposentadoria e o programa Bolsa Família, no Território de Identidade Bacia
do Jacuípe (BA), descreve que, apesar da transferência de renda garantir maior dinâmica no
Território, os programas caminham no aumento da dependência do campesinato ao Estado.
Com efeito, as atividades produtivas ficariam em segundo plano em virtude da transferência
direta de renda. Nas palavras do autor:
Em síntese, nesse novo contexto, a vida rotina do ‘homem simples’ do TIBJ
se esboça, localiza e escorre exatamente como um espaço-tempo tenso, meio
híbrido, invadindo o conjunto dos sistemas de objetos, de representações e de
ações sociais. O agricultor familiar é cada vez mais transformado em
consumidor do sistema, distanciado da sua produção e conduzido por um
dinheiro da economia pública; ele é envolvido por uma complexa rede de
abordagens que o tornam crescentemente precário, dependente nos âmbitos
econômico, político e social. (FAVERO, 2011, p.624).
As afirmações de Favero (2011), equivocadamente, ignoram a capacidade dos
camponeses de resistirem às crises e de se apropriarem de situações (neste caso políticas sociais)
243

para, estrategicamente, barganharem melhores condições de produção e circulação de suas


mercadorias em um território monopolizado pelo capital. Observando os dados apresentados na
tabela 14, no Parque das Emas (GO) e no Bolsão (MS), sobre a quantidade de famílias
beneficiadas, em 2017, pelo Programa Bolsa Família, indicam um número mínimo de acesso
ao programa social. Das 771 famílias assentadas no Parque das Emas (GO), 83 famílias, ou
seja, 10,77% foram beneficiadas. No Bolsão (MS), 125 famílias assentadas, de um total de 741,
receberam o auxílio, correspondendo a 16,87%.
Ainda na tabela 14, são demonstradas as famílias assentadas inscritas no Cadastro Único
(CAD) com renda média familiar de até R$ 77,00 (Setenta e sete reais) mensais por pessoa.
Este cadastro é um dos índices que indicam a necessidade de programas sociais, logo, as
mesmas famílias cadastradas podem também ser as beneficiadas pelo Bolsa Família. Nesta
coluna apresentam-se os assentamentos do município de Selvíria (MS) com altos índices.
Em Perolândia (GO), das 86 famílias assentadas, 29 eram beneficiárias do Bolsa Família
e 17 estavam na lista do Cad. Em Selvíria (MS), há os maiores índices de benefícios sociais da
área estudada, com 91 famílias assentadas assistidas pelo Bolsa Família, resultado das precárias
condições na criação dos assentamentos, sobretudo nos PAs São Joaquim e Canoas, onde as
condições mínimas, como água, luz e habitação, demoraram anos para serem oferecidas com
qualidade aos camponeses. Também nos assentamentos São Joaquim e Canoas encontram-se a
maior quantidade de famílias assentadas registradas no Cad com renda mensal de até R$77,00.

Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS): Número de famílias beneficiadas pelo
Bolsa Família em outubro de 2017

Famílias CAD
Município Nome
beneficiadas 77

Chapadão do Céu PA Pratinha 1


0
PA Rio Paraíso 0 2
PA Santa Rita 2 2
PA Rio Claro 0 0
Jatai
PA Terra e Liberdade 17 5
PA Nossa Senhora de Guadalupe 9 6
PA Romulo Souza Pereira 4 15
PA Serra das Araras 6 3
Mineiros PA Formiguinha 4 0
PA Pouso Alegre 2 0
Perolândia PA Lagoa do Bonfim 15 9
244

PA Três Pontes 14 8
Santa Rita do Araguaia PA Dois Saltos 9 6
Total 83 56
Chapadão do Sul PA Aroeira 3 3
Paranaíba PA Serra 20 11
PA Alecrim 13 7
Selviria PA Canoas 36 24
PA São Joaquim 42 25
PA Pontal do Faia 3 4
Três Lagoas
PA Vinte de Março 8
6
Total 125 80
Fonte: INCRA, 2017. Ministério de Desenvolvimento Social (MDS), 2017. Organização do Autor.

Apesar da importância da garantia mínima e objetiva de reprodução social, a adesão ao


programa social não significa a mudança ou desaparecimento do campesinato, mas sim a
ineficiência das políticas públicas para a agricultura no que diz respeito à geração de renda. O
valor mínimo mensal, proveniente do Bolsa Família, é parte do recurso em dinheiro que,
somado à produção para autoconsumo, possibilita a permanência dos camponeses no campo.
Portanto, há a necessidade de políticas públicas emancipatórias, que auxiliem na estruturação
dos assentamentos de Reforma Agrária e que garantam condições mínimas de reprodução do
campesinato.
O envelhecimento dos camponeses assentados e ou o encontro tardio com a terra, já
relatado nesta pesquisa, é uma realidade na Reforma Agrária nas áreas estudadas. A seguridade
social, mais especificamente, a aposentadoria rural, muitas vezes imperceptível nas análises
acadêmicas, possui muita relevância para os camponeses, dando-lhes a segurança de uma renda
mínima além da produção do lote.
A aposentadoria brasileira, apesar de ser instituída em 1923, pela Lei Eloy Chaves, só
passou a segurar os trabalhadores rurais a partir da luta das Ligas Camponesas nas décadas de
1940 a 1960, pressionando o então governo de João Goulart a criar o Fundo de Assistência e
Previdência do Trabalhador Rural (FUNRURAL), em 1963 (SCHWARZER, 2000).
Posteriormente, em 1992, houve mudanças na estrutura do benefício estendendo o direito às
mulheres e alterando idade mínima dos homens de 65 para 60 anos e 55 para as mulheres (idem,
2000).
A conquista camponesa pelo direito à Previdência representa o avanço e reconhecimento
do campesinato e dos trabalhadores rurais pelo Estado. Para Brumer (2002), a previdência
245

social significou mais avanços mesmo que tardio no reconhecimento do trabalho feminino no
campo. Portanto:

Se a inclusão dos trabalhadores rurais foi tardia em relação a outras categorias


profissionais, a inclusão das mulheres rurais trabalhadoras ocorreu ainda mais
tarde, principalmente porque, para poder receber os benefícios da previdência
social deviam, antes de mais nada, ser reconhecidas como trabalhadoras
rurais. Esse reconhecimento, por sua vez, era de difícil comprovação, tendo
em vista que grande parte do trabalho feito por elas é invisível, sendo
geralmente declarado como 'ajuda' às tarefas executadas pelos homens e, com
freqüência, restrito às atividades domésticas, mesmo que essas incluam
atividades vinculadas à produção. Assim, no início consideradas como
'dependentes', seja dos pais ou dos maridos, passam paulatinamente a serem
vistas como 'autônomas', portadoras de direitos individuais, o que lhes permite
serem incorporadas como beneficiárias da previdência social. (p.52).
O impacto da Previdência no campesinato brasileiro carece de maiores pesquisas,
ressaltando-se as dificuldades de acesso a dados referentes ao número de assentados
aposentados, restando apenas ao trabalho empírico confirmar as deduções. A importância da
aposentadoria dentro da família camponesa gravita em torno da segurança da renda mínima,
deste modo, os pais, camponeses envelhecidos e trabalhadores rurais de outrora, são a base
familiar agregando filhos e netos no mesmo lote.
A aposentadoria no campo, todavia, não significa o fim do trabalho na terra, este só se
interrompe devido a enfermidades. Nesse sentido, Schwarzer (2000), em sua análise no estado
do Pará, observou o uso de parte da aposentadoria em compra de medicamentos e tratamentos
médicos da família, indicando a ineficiência das políticas públicas de saúde no campo.
O acréscimo de renda proporcionado pela Previdência, além de garantir a compra de
bens materiais, permite o investimento em bens produtivos visando a diminuição da penosidade
do trabalho e a redução da autoexploração da família. Sugamosto (2007), realizando análise na
Sociologia sobre o benefício previdenciário entre os agricultores familiares do município de
Colombo (PR), observa o uso estratégico da aposentadoria, como:
[...] o recurso financeiro recebido da previdência rural entra no caixa geral da
família, possibilitando que as despesas domésticas e pessoais fixas e eventuais
(medicação, vestuário, energia elétrica etc.) sejam bancadas. Essa prática
acaba por liberar os excedentes resultantes da venda da produção para que
sejam reinvestidos. Assim, é possível afirmar que, de forma indireta e
dependendo do nível de estruturação das unidades produtivas familiares, o
benefício rural integra o rol das estratégias de sobrevivência adotadas pelas
famílias rurais extensas para se manterem na posse da terra. (SUGAMOSTO,
2007, p.217).

No Assentamento 20 de Março, em Três Lagoas (MS), há muitas pessoas idosas e, uma


das famílias entrevistadas, durante a pesquisa, tem sua renda baseada na aposentadoria da
246

matriarca. Por ser um casal com idade avançada, as atividades produtivas no lote não possuem
a mesma intensidade quando comparados a outros e, desta forma, há o cultivo de hortaliças e
produção do leite. Contando, em entrevista, as mudanças após a conquista da terra, afirma que
a qualidade de vida melhorou, porém a camponesa afirma:
Melhorou assim pela tranquilidade, eu fui criada em fazenda, eu gosto de ar
puro. Mas financeiramente não melhorou, porque aqui o rendimento só é o
leite, mas o leite o laticínio paga muito pouco, 80 centavos. Do que a gente
vive? Vive do meu dinheiro que sou aposentada e do dinheiro de leite só, a
vida é bem apertada aqui. (Entrevistada G).
O casal de camponeses idosos, quando questionados sobre a sucessão familiar na terra,
argumentam que os filhos possuem bons empregos na cidade, mas que os netos vislumbram
desenvolver atividades no lote. Porém, diante da baixa expectativa econômica, a camponesa
afirma que não incentiva a volta do neto para o campo, pois não possui expectativa de produção
suficiente para a permanência do neto: “Vai vir para cá para fazer o que? Ele queria colocar
tanque de peixe. Eu falo para ele não largar o emprego dele lá (na cidade), sítio aqui é para
velho [risos].” (Entrevistada G).
Apesar do tom desmotivado da fala da entrevistada, é preciso olhar com criticidade o
contexto de sua argumentação, principalmente pela liberdade mínima concedida pelo benefício
previdenciário de controlar a autoexploração do trabalho na terra. Assim, o casal com idade
avançada pode controlar e decidir quando e a intensidade que trabalharão.
Em Paranaíba (MS), no Assentamento Serra, situação semelhante foi constatada em uma
família camponesa em que o patriarca passou a receber auxílio-doença pelo Instituto Nacional
de Seguridade Social (INSS) há cinco anos, depois de diagnosticado com problemas na coluna
vertebral. Impossibilitado de trabalhar na roça e nas atividades de gado leiteiro, o patriarca
deixa a cargo da esposa e do filho mais novo as atividades laborais. A família é composta ainda
por mais dois filhos que deixaram o lote para trabalhar e estudar na cidade.
Todavia, neste lote visitado, a sucessão familiar já ocorreu, pois, o patriarca
entrevistado133 é filho do beneficiário da Reforma Agrária: “Eu trabalhava em fazenda e meu
pai pegou isso aqui. Aí, falou que só vinha pra cá (assentamento) se eu viesse, porque ele já
estava de idade. Eu pedi a conta na fazenda e vim pra cá. Ele ficou doente e faleceu e eu fiquei
aí.” (Entrevistado H).
Segundo o entrevistado, em determinado momento no lote, todos os filhos se animaram
em permanecer no campo tendo em vista o sucesso momentâneo da produção de maracujá. No
entanto, os seguidos calotes recebidos por empresas e intermediários determinaram o fim da

133
Entrevista realizada em fevereiro de 2019 no lote do camponês, no município de Paranaíba (MS).
247

produção e a saída dos filhos para a cidade. Atualmente, a renda da família no lote resulta do
cultivo de tomate, repolho e da produção leite que, segundo o entrevistado, “dá para o gasto”.
No período de chuvas, quando ocorria a entrevista, o cultivo das hortaliças e de tomate
estava paralisado e o camponês afirma que, mesmo sem trabalhar no lote, junto a esposa e filho,
é seu auxílio previdenciário que lhes garantia renda naquele momento: “Até agora era [tomate],
mas agora tá parado. Mas agora é só com o acostamento meu [auxílio-doença] que a gente está
se virando mesmo”. (Entrevistado H).
O Assentamento Formiguinha, localizado no município de Mineiros (GO), foi criado no
ano de 2005, após anos de luta dos camponeses. O campesinato por lá está envelhecido, situação
semelhante aos demais assentamentos do Parque das Emas (GO), onde a família camponesa,
em geral, é composta pelos patriarcas, filhos e netos.
O PA Formiguinha está inserido em área com potencial turístico134. O relevo acidentado,
com cachoeiras e outras formações rochosas, como a Serra das Araras, atraem pessoas para o
local. Parte dos assentados encontrou no turismo um meio de renda, servindo refeições, criando
áreas de camping, entre outras atividades. na figura 29, demonstra-se o fundo de um lote onde
o gado leiteiro pasta e ao fundo a Serra das Araras, muito procurada por turistas.

Mineiros (GO): Fundo do lote no Assentamento Formiguinha

Fonte: Trabalho de campo, 2018.


Mesmo com rendimentos proporcionados pelo turismo, a entrevistada I conta135 como
a família se mantém no lote por meio de diferentes atividades, figurando o leite como principal
produção, pela regularidade. No entanto, ao ser questionada sobre a principal renda de
manutenção da família, a entrevistada I afirma:

134
A pesquisa de Braz (2020) intitulada “Zoneamento turístico das paisagens para o município de Mineiros
(GO)” apontou o alto potencial turístico da região onde o assentamento está inserido.
135
Entrevista realizada em março de 2018 no lote da camponesa, no município de Mineiros (GO).
248

Não é só turismo, porque a gente não tem estrutura para o turismo, a gente tem
o leite, a galinha, eu faço os doces, essas coisas. Mas o produto principal aqui
é a aposentadoria do meu marido [risos], mas assim, se fosse para sobreviver
daqui, seria o turismo, a agricultura junto com o leite né, mas é muito difícil.
(Entrevistada I).
A afirmação revela como a aposentadoria garante a segurança de manutenção das
condições mínimas de reprodução da família mesmo em um contexto de desenvolvimento de
outras atividades. Essa segurança consiste na consciência do campesinato sobre as incertezas
do mercado e pelas estruturas que subordinam sua produção via monopolização do território.
A produção do leite é um exemplo conhecido de como a variação do preço imposto pelos
laticínios subordinam os camponeses e os fazem aceitar os preços baixos pagos pelo produto.
Ainda no PA Formiguinha, outra família camponesa se articula na produção de leite,
galinha, hortaliças e o trabalho com turismo. Recebendo turistas e vendendo refeições, os
assentados complementam sua renda. Outra atividade destacada é a extração e comercialização
da castanha do Baru (Dipteryx alata), espécie nativa do Cerrado. A extração do fruto no Cerrado
e a quebra da castanha é feita pelo casal de idosos assentados e vendidos em pequenas porções
na cidade de Mineiros (GO). Na figura 30, retrata-se o local de quebra do fruto para extrair a
castanha junto com o facão de lâminagasta pela repetição da atividade.

Formiguinha: Ferramentas da quebra do baru

Fonte: Trabalho de campo, 2018.


Em entrevista, a assentada reafirma136 a segurança de renda da família por meio da
aposentadoria: “Principal renda aqui é o gado, baru, galinha, carneiro e a pimenta e a farinha
que eu vendo. Mas o garantido aqui é a minha aposentadoria e o aluguel da minha casinha!”
(Entrevistada J). Complementado a resposta, a camponesa explica como utilizou a

136
Entrevista realizada em março de 2018 no lote da camponesa, no município de Mineiros (GO).
249

aposentadoria da família para reformar a pequena casa construída com recursos do INCRA e
construir outra na cidade para alugar:
Agora eu falo pra você, o dinheiro da casa saiu em 2008 (Três anos após o
assentamento) deram 15 mil para o material, mas a mão-de-obra é da gente.
Só deu para construir a casa e essa área aqui. Quando a nossa aposentadoria
saiu, ele [marido] aumentou a casa e construiu uma área maior. E eu com o
meu dinheiro [da aposentadoria] eu construí uma casinha na cidade.
(Entrevistada J).

Segundo a camponesa, da casa na cidade, o aluguel garante um adicional à renda,


juntamente com a produção no campo. De toda forma, a casa da cidade é utilizada como
moradia pelos filhos quando estão desempregados. Desta forma, os idosos aposentados passam
a assistir o restante da família camponesa com o recurso ou com frutos da articulação e
aplicação da aposentadoria em outras atividades.
Em uma família visitada no assentamento Guadalupe em Jataí (GO), a aposentadoria
conquistada há oito anos pelo casal foi, e, é utilizada criativamente para tomar empréstimos.
Produzindo leite e seus derivados, queijos, manteiga e doces, a família, em determinados
períodos de baixa produtividade, recorre a empréstimos para pequenos investimentos no lote e
compra de bens de consumo. Segundo a esposa, os primeiros investimentos na produção de
leite ocorreram pelo Pronaf, utilizando-se o recurso para aquisição de vacas leiteiras.
Com a necessidade de novos investimentos, mas ainda dentro do interstício de
pagamento do Pronaf, a família optou em tomar empréstimos consignados abatidos diretamente
na aposentadoria. Ressalta-se a consciência dos camponeses em compreender os problemas em
adquirir empréstimos no banco e a alta cobrança de juros considerada por eles injusta. Assim
se manifesta:
A gente tem empréstimo de aposentado, mas de banco não. Eles [banco] não
emprestam de jeito nenhum, eu acho que não. É muita burocracia para você
pegar dinheiro emprestado, e se você conseguir os juros triplica. Esse de
aposentadoria olha a altura que é. (Entrevistado K).

A pesquisa de Alcântara (2010), sobre a velhice e o impacto da aposentadoria no rural


e urbano em três municípios do estado do Ceará, também constatou a importância da política
social para a renda das famílias camponesas. Para o autor:
A renda dos velhos pertencentes à ‘família de idosos’, com exceção de uma
senhora, aposentada por tempo de serviço, e de um senhor, aposentado por
invalidez, provém da aposentadoria rural e das pensões, o que garante,
inexoravelmente, o sustento da família, independentemente de alguma
contribuição dos filhos, de maneira muito mais notória do que em Fortaleza.
(ALCÂNTARA, 2010, p. 196).
250

Segundo Alcântara (2010), a aposentadoria no campo não significa o fim do trabalho


dos membros mais velhos da família. Na perspectiva da autora, a continuidade do trabalho
significa a manutenção de suas identidades. Seguindo o mesmo sentido de análise,
Woortmann e Woortmann (1999, p.62) também apontam: “Paradoxalmente, também
aquele que é ‘velho’ para o Estado pode não ser velho para o trabalho: portanto, não é o velho
para a família ou a comunidade. De fato, conhecemos sitiantes que ainda trabalhavam aos
setenta ou oitenta anos de idade.” (WOORTMANN; WOORTMANN, 1999, p. 62).
Para Alcântara (2010):
A aposentadoria apresenta-se como um marcador importante em suas vidas,
indistintamente, entre homens e mulheres, os quais trazem em seus relatos um
forte enfoque no trabalho. Assim, adianto que inexiste uma relação direta entre
aposentadoria e interrupção do trabalho no roçado; percebo, a partir das falas
dos interlocutores, a importância de continuarem suas atividades na terra,
condição preponderante para o favorecimento da manutenção de suas
identidades. (ALCÂNTARA, 2010, p. 201). (Grifo do autor).

As constatações antropológicas sobre a manutenção da identidade mesmo na velhice e


a aposentadoria, são interpretadas nesta pesquisa como elementos importantes para o
campesinato em sua reprodução enquanto classe social. Ao analisar o contexto geral da
previdência rural, no final da década de 1990, no Brasil, Delgado e Cardoso Jr (1999)
observaram que a conquista, mesmo que tardia da aposentadoria pelos camponeses, garantem-
lhes um recurso mínimo, mas muito estratégico para a família. Sendo assim:
[...] a previdência rural universal para idosos e inválidos, ainda que tardia,
cumpre uma função de proteção social moderna, que é essencial à sociedade
democrática. Permite, ainda no espaço privado familiar, uma
revalorização das pessoas de idade que, ao acessarem a renda de
aposentadoria, obtêm uma espécie de salvaguarda de subsistência familiar,
invertendo o papel social de assistidos para assistentes, no contexto da
estratégia de sobrevivência das famílias pobres. (DELGADO; CARDOSO JR,
1999, p. 02).
Portanto a permanência e sucessão familiar no campo passam pela geração e garantia
de renda, e a Previdência Social no campo oferece condições mínimas ao campesinato, no
entanto, é fundamental políticas públicas emancipatórias que proporcionem maiores
perspectivas para os camponeses.

4.6 O PROGRAMA NACIONAL DE PRODUÇÃO E USO DE BIODÍSEL

O predomínio da agricultura capitalista monocultora de soja nos municípios do Parque


das Emas (GO), assim como em grande parte da região Centro-Oeste, estendeu-se para os
251

assentamentos de Reforma Agrária oficialmente, sobretudo, a partir de 2004, com a criação do


Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB). Este fato foi desencadeado pela
ampliação dos plantios de soja em áreas de agricultura familiar camponesa em decorrência de
orientações de tal política pública. Orientado pelo discurso do desenvolvimento sustentável, o
PNPB busca a produção “limpa” de agrocombustíveis, sobretudo, os derivados da soja. No
entanto, Santos (2013, p. 104) pondera:
A lógica que fundamenta a produção do biodiesel no Brasil é a utilização do
mesmo adicionado ao petróleo, como complemento, o que garante a
continuidade da utilização deste combustível fóssil, e não como elemento que
se coloca na condição de um novo caminho à utilização do petróleo.

O fomento à produção de soja, por meio do PNPB, não contempla, prioritariamente, os


latifundiários e produtores, ao contrário, o público alvo são os camponeses assentados:
“Diferentemente dos programas internacionais de estímulo à produção do biodiesel, o PNPB se
destaca pelo seu aspecto social: inserção da agricultura familiar na produção das oleaginosas,
gerando emprego e renda aos agricultores” (SILVA, 2013, p. 19). A inclusão oficial dos
camponeses assentados ao circuito produtivo da soja foi garantida pela criação de um selo
concedido às empresas que comprarem a produção. Sendo assim:
O Selo Combustível Social permite às empresas produtoras de biodiesel
melhores condições de financiamento junto ao Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), além de garantir a
participação dessas empresas nos leilões de compra do biodiesel, realizados
pela ANP. (SANTOS, 2013, p. 114).

Desta forma, parte dos assentados no Parque das Emas (GO) entraram no circuito
produtivo da soja por meio do PNPB. Mesmo em áreas diminutas dos lotes, a adesão de grande
parte dos camponeses fez com que o cultivo da soja predominasse no assentamento (figura 31).
Casos de produção de soja nos assentamentos Rio Paraiso, Nossa Senhora de Guadalupe e
Romulo Souza Pereira, em Jataí (GO), e Pratinha, em Chapadão do Céu (GO), foram registrados
em trabalho de campo. Essa alternativa, como afirmado anteriormente, demonstra que parte dos
camponeses está inserida na lógica da agricultura capitalista em busca de uma produção que
lhes garanta mais renda que a habitual e garanta sua reprodução social.
Para Ribeiro e Dias (2013), a produção de soja entre os camponeses, em Jataí (GO),
também permeou o campo da identidade dos sujeitos e, nesse sentido, na região, inúmeros
símbolos identitários e festas ligadas ao agronegócio, os camponeses passaram da denominação
popular de “Sem-Terra” para “produtores de soja”.
252

PA Nossa Senhora de Guadalupe (Jataí-GO): Produção de soja

Fonte: Trabalho de campo, 2019.

Em Chapadão do Céu (GO), no PA Pratinha, grande parte dos camponeses assentados


também passou a produzir soja em larga escala, conservando pequenos cultivos de hortaliças e
frango caipira. Convém destacar que em um dos lotes do assentamento, a criação e venda de
frango caipira se tornou a principal fonte de renda. Todavia, para o camponês assentado
entrevistado L137, o cultivo da soja é mais prático que as atividades relacionadas a hortaliças e
o leite. Segundo o entrevistado:
Aqui a gente planta só lavoura [soja], a nossa cidade é muito pequena então
não pra se envolver com muitas coisinhas [hortaliças], soja envolve
maquinário, a gente tem trator. Chegou a época de plantar, a gente manda o
trator lá, o pulverizador. O lucro é bem mais vantajoso. (Entrevistado L).

Aprofundando a explicação, o camponês assentado revela o alto rendimento dentro do


assentamento, justificando a opção pela soja, ao invés de outros cultivos. Segundo seus
cálculos, o investimento, por meio de créditos junto ao PRONAF, é compensado pelo o valor
da venda da saca da soja. Segundo o entrevistado:
Principalmente a gente que mexe com a soja e o milho, é o Pronaf, e a tua
lavoura garante. O assentamento é 1.500 hectares, hoje nós temos 1.200 de
soja, hoje a gente produz 60 a 70 mil sacos de soja por ano. Eu conheço muitos
assentamentos da região, e muda muito, e lá [outros assentamentos] não tem
como produzir soja como aqui. A soja é um negócio sem [frase interrompida].
Nós fazemos contrato com a Caramuru. Nós temos um gasto de custo de 60
mil reais por lote para plantar, cada um [lote]. Só que hoje nós fazemos um
contrato de 70 reais o saco de soja. Dois mil sacos de soja a 70 reais, dá 140
mil reais. E ai? Para tirar 70 mil de lucro de venda dessas pequenas coisas
[hortaliças e frango] não é fácil. (Entrevistado L).

137
Entrevista realizada em dezembro de 2018 no PA Pratinha, em Chapadão do Céu (GO).
253

No assentamento Guadalupe, em Jataí (GO), um dos camponeses assentados, ao


relatar138 sua experiência com a soja e o milho, contesta a lucratividade destes cultivos,
sobretudo pelo alto custo do pacote tecnológico (sementes, adubo e maquinário) necessário para
a atividade. Imerso nesse ciclo, o camponês enfrenta ainda o obstáculo da força de trabalho,
devido a sua idade, sendo necessário a parceria com vizinhos. Segundo o entrevistado:
Eu faço parceira, pago eles [camponeses vizinhos] para plantar, e, colhe eles
mesmos. Aí a gente paga a semente pra eles, chega no fim não sobra quase
nada. Pra você ver o preço da semente, adubo você não compra fiado. Esse
ano mesmo [2018], a soja tá barata né. (Entrevistado F).

A “inclusão produtiva” dos camponeses assentados estabelecida pelo PNPB também se


refere ao circuito de comercialização do pacote tecnológico. Assim, o camponês é atraído para
a lógica da agricultura capitalista, como Fabrini (2011) denominou de “agronegócio familiar”,
porém esta lógica só apresenta resultados satisfatórios quando aplicada em larga escala e com
grande respaldo creditício do Estado. Nesta perspectiva:
A cadeia produtiva do biodiesel perpassa por várias etapas. Entre elas podem-
se citar trato da terra, colheita, descasca, transporte, armazenamento, extração
de óleo e distribuição. Dentro dessa cadeia, a participação da agricultura
familiar se dá, na maioria dos casos, até a etapa da descasca. Em relação a
isso, os agricultores familiares ficam impossibilitados de absorverem as novas
vantagens oferecidas pelo mercado do biodiesel, uma vez que não participam
das etapas de produção com maior valor agregado. Esse fato acarreta, ainda,
a dependência histórica do pequeno produtor para com o grande produtor,
ficando, muitas vezes, vulnerável quanto ao valor pago pelo serviço prestado.
(SILVA, 2013, p. 25).
Portanto, a “inclusão” do camponês ao mercado possibilita que o capital se aproprie da
renda gerada no cultivo da soja por meio da venda destes pacotes tecnológicos necessários à
produção, bem como na comercialização da produção. Essa perspectiva comunga com a
construção teórica de Oliveira (2010) sobre a monopolização do território pelo capital. Assim,
não é necessário que capitalistas e latifundiários estejam na terra ou no assentamento para
auferir renda, ela é drenada pela dependência dos insumos da agricultura capitalista e replicada
nos assentamentos via PNPB.
Nesse sentido, Ribeiro e Dias (2013) constataram a apropriação da renda da terra, via
monopolização do território, por grandes empresas do setor de insumos e também, pelas
cooperativas que atuam como revendedoras de grandes marcas. Para as autoras:
Para garantir a produção de soja pelo PNPB, a COPARPA ‘avaliza’ o
empréstimo às famílias, mesmo para aquelas que estão endividadas,
fornecendo-lhes os insumos. Ainda, as famílias recebem assistência técnica e
têm a garantia de que sua produção será comprada. A responsabilidade delas
é entregar o montante contratado à empresa. Em função disso a cooperativa

138
Entrevista realizada em janeiro de 2018 no lote do camponês, no município de Jataí (GO).
254

retém 5% do valor do contrato de produção de cada família. (RIBEIRO; DIAS,


2013, p. 89).

A inserção da lógica do agronegócio na fração do território controlada pelos camponeses


permite múltiplas interpretações. Nesta pesquisa, compreende-se que este processo corresponde
a uma estratégica, mesmo que contraditória, de recriação camponesa. Como argumentou Ross
(2016), é necessário considerar o contexto dos sujeitos, principalmente a disponibilidade de
força de trabalho e a situação monetária da família camponesa.
Assim, o endividamento e a falta de força de trabalho familiar, somados à idade
elevada dos camponeses, compõem uma conjuntura que explica a opção pelo monocultivo da
soja. Contraditoriamente, essa estratégia pode acarretar a saída da família da terra devido às
oscilações do preço das commodities. Logo, as intempéries e a dinâmica do mercado podem
causar a “quebra” da economia camponesa. A dependência e constante necessidade de compra
de novos pacotes tecnológicos amarram os camponeses em um ciclo de reprodução ampliada
do capital, sobretudo de insumos produzidos por empresas multinacionais e com preços
atrelados à variação cambial.
Nesse sentido, os camponeses podem perder, mesmo que parcialmente, o controle sobre
sua terra e a liberdade e autonomia camponesa são fatores fundamentais para sua produção,
garantido por este meio de produção. Portanto, a adesão ao PNPB é uma estratégica de recriação
contraditória: “Tal situação indica diferentes graus de subalternidade da reprodução social ao
sistema capitalista, de modo que, quanto mais às incorporam maior é o nível de submissão e
igualmente incerta a manutenção do grupo familiar.” (ROSS, 2016, p. 178).
É preciso, entretanto, considerar que a inserção camponesa ao PNPB e toda lógica do
“agronegocinho” não é determinante no futuro da classe. Apesar da sujeição da renda da terra
ao capital, a rebeldia camponesa e seu controle sobre seu tempo de trabalho (PAULINO, 2004)
podem, diante de trocas injustas com o capital, significar a ruptura com o programa.

4.7 EMENDAS PARLAMENTARES E O CLIENTELISMO

A insuficiência das políticas públicas permite a atuação individual de políticos


diretamente na realidade local por meio das emendas parlamentares. Essas se configuram como
instrumento estabelecido pela Constituição Federal que possibilita aos políticos (deputados
estaduais, deputados federais e senadores) direcionarem parte do orçamento do Estado para
ações específicas em um município ou para todo o estado. Essas ações (do Estado), realizadas
255

individualmente por políticos que, obviamente, pertencem a uma classe social ou a representa,
possibilita o estabelecimento de uma perigosa relação de favores entre esses e a população,
sobretudo, os camponeses.
Essas ações explicam, em parte, a manutenção de um mesmo grupo político no Estado
na atualidade, o que sugere sua permanência por meio da relação entre as classes sociais. Assim:
Compreender o Estado como a condensação de uma relação de forças entre
classes tais como elas se expressam, sempre de maneira especifica, no seio do
Estado, significa que o Estado é constituído-dividido de lado a lado pelas
contradições de classe. Isso significa que uma instituição, o Estado, destinado
a reproduzir as divisões de classe, não é, não pode ser jamais, como nas
concepções do Estado-Coisa ou Sujeito, um bloco monolítico sem fissuras,
cuja política se instaura de qualquer maneira a despeito de suas contradições,
mas é ele mesmo dividido. (POULANTZAS, 2015, p.135).

Novamente se faz necessário pensar o Estado e seu caráter burguês e a constante disputa
com outras classes. A intepretação de Poulantzas (2015), do Estado enquanto relação social, dá
indícios para a explicação do caso brasileiro e sua contínua manutenção por meio de amarras
sociais com outras classes, especialmente no campo. Com isso, “O Estado concentra não apenas
a relação de forças entre frações do bloco no poder, mas também a relação de forças entre estas
e as classes dominadas” (POULANTZAS, 2015, p. 143).
A manutenção de oligarquias rurais no Estado ocorre, em parte, por meio da aceitação
da população. Antônio Gramsci (1984) propõe a compreensão do Estado em sua forma
ampliada. Assim, o Estado ampliado é o conjunto formado pela sociedade política e a sociedade
civil. Portanto:
Permanecemos ainda no campo da identificação entre o Estado e o governo,
identificação que é justamente uma representação da forma corporativo-
econômica, isto é, da confusão entre sociedade civil e sociedade política;
porque é preciso notar que a noção de Estado comporta elementos que devem
ser vinculados à sociedade civil (no sentido de Estado = sociedade política +
sociedade civil, isto é, hegemonia encouraçada de coerção. (GRAMSCI, 1984,
p.149).

A perspectiva de Gramsci (1984) revela a sociedade civil como parte do Estado


reproduzindo ideologias e permitindo, dentro de um consenso entre as classes governadas, a
manutenção atual de sua estrutura. Assim, “[...] Estado é todo o complexo de atividades teóricas
e práticas com as quais a classe dirigente justifica e mantém não só seu domínio, mas também
consegue obter o consenso ativo dos governados”. (GRAMSCI, 1984, p.87).
Dessa forma, além de atuar em benefício próprio, as oligarquias rurais se mantêm como
Estado a partir do consenso da sociedade civil criado e fundamentado pelas políticas públicas
e emendas parlamentares analisadas neste capítulo. Portanto, ao analisar as emendas
256

parlamentares é preciso ter como pano de fundo a reprodução ideológica da agricultura


capitalista, a manutenção da hegemonia ruralista no Estado.
Essas relações, segundo Martins (1994, p.29), “[...] sugerem que o clientelismo político
sempre foi e é, antes de tudo, preferencialmente uma relação de troca de favores políticos por
benefícios econômicos, não importa em que escala”. Assim, o clientelismo acaba por manter
no controle do Estado as velhas figuras ou seus representantes associados ao oligarquismo rural.
Portanto:
[...] o oligarquismo brasileiro se apoia em algo mais amplo [...] ele se apoia na
instituição de representação política como uma espécie de gargalo na relação
entre sociedade e o Estado. Não só os pobres, mas todos os que, de algum
modo, dependem do Estado, são induzidos a uma relação de troca de fatores
com os políticos. (MARTINS, 1994, p. 29).

Com isso, a figura do “coronel” ou “doutor” ganha força nos locais mais pobres por
meio das trocas de favores e se estabelece como representante e “benfeitor” do povo. Na
atualidade, as emendas parlamentares mantêm a velha relação do coronelismo, como apontado
por Leal (1976), principalmente pela necessidade não suprida pelas políticas públicas para
agricultura camponesa. Para o autor, analisando outro contexto, mas pouco alterado atualmente,
afirma:
A lista dos favores não se esgota com os de ordem pessoal. É sabido que os
serviços públicos do interior são deficientíssimos, porque as municipalidades
não dispõem de recursos para muitas de suas necessidades. Sem o auxílio
financeiro do Estado, dificilmente poderiam empreender as obras mais
necessárias, como estradas, pontes, escolas, hospitais, água, esgotos, energia
elétrica. Nenhum administrador municipal poderia manter por muito tempo a
liderança sem realizar qualquer benefício para sua comuna. (LEAL, 1976,
p.54).

Anualmente, as emendas de parlamentares federais são aprovadas e executadas e


direcionadas a um setor específico e uma localidade. A agricultura recebe parte destes recursos,
como demonstrado na figura 32, sobre as emendas parlamentares destinadas à agricultura em
GO e MS, entre os anos de 2010 e 2017. Verifica-se no gráfico, a volumosa quantidade de
recursos destinados ao estado de Goiás, alcançando os R$381.031.336,00 (Trezentos e oitenta
e um milhões, trinta e um mil, trezentos e trinta e três seis mil reais), em 2013. Em Mato Grosso
do Sul, os recursos chegaram a R$31.995.088,00 (Trinta e um milhões, novecentos e noventa e
cinco mil e oitenta e oito reais), em 2013.
As emendas se destinam aos mais variados tipos de aquisições ou realização de serviços
de infraestrutura. Por exemplo, o estado de Goiás recebeu em uma única emenda, em 2013, o
valor de R$ 993.750,00 (Novecentos e noventa e três mil, setecentos e cinquenta mil reais) para
a aquisição de máquinas e equipamentos para recuperação de estradas vicinais e o estado de
257

Mato Grosso do Sul recebeu, em 2010, R$14.925.000,00 (Quatorze milhões, novecentos e vinte
e cinco mil reais) para a aquisição de máquinas e equipamentos agrícolas. Ressalta-se que as
emendas podem ser elaboradas por uma bancada de políticos ou individualmente, e ainda
podem ser destinadas a um município específico ou para todo o estado.

Goiás e Mato Grosso do Sul: Emendas Parlamentares Federais para agricultura


em reais (2010 – 2017)
450.000.000

400.000.000 381.031.336
369.509.736
Valor em milhões de reais (R$)

350.000.000

300.000.000
266.023.698 266.014.178
250.000.000 233.839.225

200.000.000

150.000.000
113.710.325 119.786.939
100.000.000 83.590.426

50.000.000 21.258.750 31.995.088 30.460.593


5.597.500 14.220.000 20.743.125
1.610.000 17.172.162
0
2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017

Goiás (R$) Mato Grosso do Sul (R$)

Fonte: Portal da Transparência, 2018. Organizado pelo autor.

As emendas parlamentares se tornaram muito importantes para a campo, principalmente


pela pouca burocracia exigida. Outro fator relevante está no volume de recursos das emendas
quando comparadas a uma determinada política pública. A Ação de Apoio a Projetos de
Infraestrutura e Serviços em Territórios Rurais (PROINF), por exemplo, destinado a dotar de
infraestrutura o meio rural, sobretudo nos assentamentos de Reforma Agrária e nas
comunidades dos territórios rurais e da cidadania, ficava muito atrás das emendas parlamentares
destinadas à agricultura, como apresentado nas figuras 33 e 34.
Cabe ressaltar que o acesso a créditos do PROINF se dava por meio da participação
democrática dos camponeses, analisando e deliberando sobre os projetos construídos pelos
mesmos com o auxílio da universidade e demais instituições. Desta maneira, o PROINF
descentralizou o acesso a créditos pelos camponeses fugindo do cerco político coronelista
propiciado pelas emendas parlamentares. O PROINF foi um dos primeiros programas a ser
extinto pós-golpe, em 2016.
A proposta de gestão coletiva implementada pelo PROINF fez com que este se tornasse
uma das mais importantes discussões realizadas no âmbito dos territórios rurais.
258

O PROINF
[...] operacionalizado pela SDT/MDA, tem contribuído para a qualificação de
processos produtivos e econômicos da agricultura familiar nos Territórios
Rurais. Parcerias com estados e municípios têm apoiado a aquisição de
equipamentos e a construção de infraestrutura para a produção,
beneficiamento, escoamento e comercialização de produtos da agricultura
familiar. Estes resultados posicionam o PROINF como importante
instrumento indutor dos processos de inclusão produtiva, de geração de
trabalho e renda e de autonomia econômica de famílias e empreendimentos da
agricultura familiar nos Territórios Rurais. (MDA, 2014, p.02).

Todavia, os recursos destinados ao PROINF foram mínimos, não ultrapassando R$


500.000,00 (Quinhentos mil reais) por projeto. A situação se agravava quando havia a demora
para execução dos projetos por falta de recursos do Estado ou a sua não execução quando os
municípios participantes estavam inadimplentes com a União.
Na figura 33, sobre as emendas parlamentares destinadas à agricultura versus os
recursos destinados ao PROINF, no estado de Goiás, revela-se a extrema disparidade de
recursos concedidos. As emendas designadas à agricultura tiveram seu ápice de recursos no ano
de 2013, contabilizando R$381.031.335,80 (Trezentos e oitenta e um milhões, trinta e um mil,
trezentos e trinta e cinco reais e oitenta centavos). Por outro lado, o PROINF atingiu seu
máximo de recurso no ano de 2010, totalizando R$8.017.043,81(Oito milhões, dezessete mil,
quarenta e três reais e oitenta e um centavos). Os números do PROINF podem ser ainda menores
devido à quantidade de projetos não executados ou paralisados por diversos motivos.

Goiás: Emendas parlamentares Federais x Proinf (2010 a 2015)

2015 R$ 83.590.426,00
R$ 704.900,00
2014 R$ 369.509.736,40
R$ 3.890.501,75
2013 R$ 381.031.335,80
R$ 2.383.830,00
2012 R$ 266.023.698,00
R$ 1.703.372,59

2011 R$ 113.710.325,00
R$ 2.403.733,39

2010 R$ 8.017.043,81
R$ 233.839.225,00

GO EMENDAS GO PROINF Valor em R$

Fonte: Portal da Transparência, 2018; SDT, 2017. Organização do autor.


Do montante apresentado, destaca-se, em Goiás, o Senador Ronaldo Caiado (DEM),
com 11 emendas; o Deputado Federal Heuler Cruvinel (PSD), com 12 emendas e o Deputado
259

Federal Leonardo Vilela (PSDB), com 14 emendas parlamentares. Esses políticos destinaram,
em conjunto, cerca de R$ 291.700.316,00 (Duzentos milhões, setecentos mil, trezentos e
dezesseis reais) para o campo, definindo-os como maiores “apoiadores” da agricultura no
estado. Eles apresentam forte ligação com a agricultura capitalista e, por consequência, suas
ações na política refletem a posição de classe à qual pertencem. Assim, as emendas
parlamentares apresentam, em sua maioria, o título “Apoio ao setor agropecuário”.
A tradicional família Caiado faz parte da História de Goiás, participando do processo
de constituição do atual estado, a qual, entre conflitos com outras oligarquias, ascendeu como
forte grupo político. Amorim (2015) relata o rompimento de anos de lealdade e conchavo
político dos Caiado com a família Bulhões, tornando-se adversários: “[...] constante foi a
disputa entre as duas oligarquias. Nos seguintes processos eleitorais, expressivas foram as
conquistas dos Bulhões, mas eram inevitáveis o fortalecimento e a ascensão dos Caiado como
força política”. (AMORIN, 2015, p.125).
Constantemente presente na política, a família Caiado tem diversas passagens pela
Câmara dos Deputados e pelo Senado, ressaltando-se ainda alguns mandatos no governo de
Goiás. Ronaldo Caiado, atualmente é Governador, mas era membro da Frente Parlamentar
Agropecuária ou Bancada Ruralista, como Senador e foi um dos fundadores da UDR. A ligação
com o campo explica a grande quantidade de emendas aprovadas em nome do ex-Senador atual
Governador de Goiás. Obviamente, as emendas são utilizadas para manter cativo o eleitorado
do campo, estratégia conhecida das oligarquias e apresentada por Leal (1976) e Martins (1994).
Com um curto período na Câmara dos Deputados, 2011 a 2014 e 2015 a 2018, o
Deputado Federal Heuler Cruvinel atuou intensamente na liberação de recursos para o campo,
aprovando 12 emendas parlamentares. Natural de Rio Verde, no Sudoeste Goiano, o Deputado
formou-se em Agronomia e também participou da Frente Parlamentar da Agropecuária.
Tradicionalmente presente na política goiana, a família Vilela também está presente na
história da consolidação do estado de Goiás, em especial da região Sudoeste, participando da
fundação de diversos municípios, como Perolândia e Caiapônia. A fundação dos municípios
resulta do processo de apropriação de terras devolutas do Estado e, posteriormente, vendidas
com o intuito de se apropriar da renda da terra, como apontou o estudo de Nardoque (2006)
sobre a região de Jales (SP).
Este processo é relatado no site139 da prefeitura de Caiapônia/GO, como um ato de
coragem da família Vilela ao deixar Minas Gerais e “desbravar” Goiás. Assim:

139
Disponível em :<https://www.caiaponia.go.gov.br/sobre-o-municipio/nossa-historia/>. Acesso em: 17 ago.
2019.
260

[...] as famílias desbravadoras necessitavam documentar as terras que


ocupavam e, como já se encontrava em vigência o Decreto Imperial nº 1.318
de 1854 (Lei das Terras), que regulavam a concessão de títulos paroquiais de
terras devolutas. Com isso, o Senhor José do Carmo Goulart de Andrade e sua
esposa Maria Leopodina Junqueira Vilela, resolveram ir à Capital da
Província de Goiáz, a época Cidade de Goiás, requer 4 (quatro) lotes dessas
terras, localizadas na bacia do Rio Caiapó, Rio Claro e Rio Bonito. Os quais
foram concedidos em 1856. Por se tratar de vasta área de terras, era necessário
que alguém de confiança fizesse a distribuição dessas terras, assim trouxeram
um padre por nome de Antônio Dias Pais de Couto o qual formalizou e
distribuiu os lotes de terras às famílias colonizadoras. (Grifo nosso).

O processo resultou na apropriação de grandes extensões de terras pela família e sua


constituição em poder local. Como resultado, os Vilela passaram a ocupar cargos na política,
destacando-se os deputados Leonardo Vilela e Daniel Vilela, este último também membro da
FPA e candidato a governador pelo estado de Goiás nas eleições de 2018. Leonardo Vilela foi
o político que mais aprovou emendas parlamentares (14) para o campo em Goiás, entre os anos
de 2010 e 2017.
Este contexto demonstra como políticos ligados à agricultura capitalista mantêm seu
poder e influência sobre os camponeses utilizando as emendas parlamentares. Em Mato Grosso
do Sul, o cenário é semelhante e, mesmo com valores dos de projetos do PROINF aprovados
superiores a Goiás, as emendas parlamentares superam em quantidade de recursos. Assim, se
demonstra na figura 34), o ano de 2013 com a maior quantidade de recursos em emendas,
totalizando R$31.995.088,00. Por conseguinte, os projetos do PROINF atingiram seu valor
máximo, também, em 2013, com R$ 11.795.522,33.

Mato Grosso do Sul: Emendas parlamentares Federais x Proinf (2010 a 2015)

2015 R$ 1.610.000,00
R$ 2.517.555,54
2014 R$ 20.743.125,00
R$ 4.300.159,48
2013 R$ 31.995.088,00
R$ 11.795.522,36
2012 R$ 14.220.000,00
R$ 4.099.966,72
2011 R$ 5.597.500,00
R$ 2.893.765,41
2010 R$ 21.258.750,00
R$ 10.714.399,91

MS EMENDAS MS PROINF Valor em R$


Fonte: Portal da Transparência, 2018; SDT, 2017. Organização do autor.
261

Das emendas parlamentares apresentadas na figura 34, destaca-se o Deputado Federal


Luiz Henrique Mandetta (DEM), com cinco emendas; o atual Governador Reinaldo Azambuja,
quando Deputado Federal, com cinco emendas; e o Deputado Federal Fabio Trad (PSD), com
sete emendas. Com apenas duas emendas parlamentares aprovadas, mas não menos importante,
destaca-se a Deputada Federal Tereza Cristina (DEM), atual Ministra da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento, no Governo de Jair Bolsonaro (Sem partido), associada ao agronegócio e o
lobby pela liberação de agrotóxicos no país.
Mesmo não apresentando em sua biografia alguma relação direta com a agricultura, o
Deputado Federal Mandetta (DEM) é simpatizante dos ruralistas do estado, aprovando emendas
parlamentares e participando de eventos relacionados ao agronegócio. Segundo o Conselho
Indigenista Missionário (CIMI, 2018), foram doados cerca de R$ 243.086,00 (Duzentos e
quarenta e três mil e oitenta e seis reais) por empresas ligadas ao agronegócio para a campanha
eleitoral do referido Deputado nas eleições de 2014.
Em um caso emblemático, o Deputado participou de negociações para a retomada de
cinco fazendas em Antônio João (MS) ocupadas por indígenas desde 2015. Nesta ocasião,
fazendeiros e indígenas entraram em conflito resultando na morte de um indígena. Em 2017, o
Deputado participou como vice-presidente da relatoria da Comissão Parlamentar de Inquérito
(CPI) que objetivou investigar Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e ao Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). As conclusões dessa CPI condenaram as ações
da FUNAI, do INCRA e os laudos antropológicos. No governo recém-eleito de Jair Bolsonaro,
Mandetta foi anunciado como Ministro da Saúde, permanecendo até 16 de abril de 2020, em
decorrência da crise no Governo Federal motivada pela pandemia da Covid19.
Membro da FPA, o Governador Reinaldo Azambuja (PSDB) (2015-2018 e 2019-) é um
dos maiores representantes do agronegócio em Mato Grosso do Sul, possuindo vários imóveis
rurais no estado como apresentado no capítulo 2. Azambuja também é coautor do Projeto de
Lei Complementar, PLP 227/2012, que objetiva retirar da Constituição o uso exclusivo das
terras indígenas por estas populações. Segundo a PL:
São considerados bens de relevante interesse público da União, para fins
dessa lei, as terras de fronteira, as vias federais de comunicação, as áreas
antropizadas produtivas que atendam a função social da terra nos termos do
art. 5º, inciso XXIII da Constituição Federal de 1988, os perímetros rurais e
urbanos dos municípios, as lavras e portos em atividade, e as terras ocupadas
pelos índios desde 05 de outubro de 1988. (CONGRESSO NACIONAL,
2012, s/p). (Grifo nosso).

Assim, as terras indígenas demarcadas após a CF de 1988 deixariam de ser indisponíveis


e passariam ser consideras de relevante interesse público da União, podendo, assim, ser
262

utilizadas para outros fins não indígenas. As ações de Azambuja exemplificam a contradição
da reprodução do latifúndio e recriação camponesa, ao passo que garante a representação dos
interesses do agronegócio no Estado, utiliza-se também desta estrutura social para manter a
hegemonia latifundiária cativando eleitoralmente camponeses da Reforma Agrária por meio
das emendas parlamentares.
O Deputado Federal Fabio Trad (PSD), responsável por aprovar o maior número de
emendas parlamentares para Mato Grosso do Sul, no período estudado, não possui ligações
diretas com a agricultura. No entanto, o mesmo acompanhou a bancada ruralista na votação do
projeto 1876/1999 transformado na Lei 12651/2012, também conhecida como Novo Código
Florestal Brasileiro. Dentre as diversas críticas a essa lei, destaca-se o artigo 59 no qual
estabelece o perdão a todos os proprietários que realizaram desmatamento da vegetação em
Áreas de Preservação Permanente em período anterior ao ano de 2008. Assim:
No período entre a publicação desta Lei e a implantação do PRA em cada
Estado e no Distrito Federal, bem como após a adesão do interessado ao PRA
e enquanto estiver sendo cumprido o termo de compromisso, o proprietário
ou possuidor não poderá ser autuado por infrações cometidas antes de 22
de julho de 2008, relativas à supressão irregular de vegetação em Áreas
de Preservação Permanente, de Reserva Legal e de uso restrito (BRASIL,
2012) (Grifo nosso).

Com isso, percebe-se ainda na atualidade a intensa ligação entre proprietários fundiários
e política, definida por Leal (1976) como coronelismo. Deste modo, além do
capitalista/latifundiário fazer parte do Estado e utilizá-lo em benefício próprio (MARX, 1991),
utiliza-se da posição política privilegiada para conceder “favores” à população local com o
objetivo de estabelecer sua força eleitoral. Assim:
O critério mais lógico, sobretudo por suas consequências eleitorais, é dar
preferência aos municípios cujos governos estejam nas mãos dos amigos. É,
pois, a fraqueza financeira dos municípios um fator que contribui,
relevantemente, para manter o ‘coronelismo’, na sua expressão governista.
(LEAL, 1976, p. 35).

A análise feita até aqui, sobre as emendas parlamentares, revela como são utilizadas
para conceder “favores” à população mesmo que seu “benfeitor” faça parte de outra classe
social e suas ações, como Estado no contexto geral, privilegiem sua classe em detrimento do
restante da população. Dentro da perspectiva teórica adotada, as emendas parlamentares são
instrumentos ideológicos que mascaram a conflitualidade existente no campo e aproximam
politicamente representantes do agronegócio e camponeses. Ao mesmo tempo estas ações
consolidam dentro dos assentamentos a hegemonia política latifundiária.
263

Como exemplo, a notícia140 de 11 de agosto de 2018 divulgou a “Maior entrega de


equipamentos da história pelo Governo beneficia agricultura familiar de MS”. Esta “conquista”
se deu por meio de emendas parlamentares e, na cerimônia de entrega, destaca-se o Governador
Reinaldo Azambuja (figura 35) entregando simbolicamente a chave dos equipamentos para os
prefeitos de 62 municípios do estado. Segundo a notícia, foram entregues R$ 12 milhões em
equipamentos agropecuários destinados aos assentamentos de Reforma Agrária e aldeias
indígenas.

Mato Grosso do Sul: Reinaldo Azambuja faz entrega simbólica da chave dos
equipamentos aos prefeitos do estado

Fonte: Disponível em: http://www.ms.gov.br/. Acesso em: 09 Mar 2019.

Este fato revela quão as políticas públicas atuais são ineficientes e permitem que
capitalistas/latifundiários, transvestidos de Estado, se consolidarem no poder por meio do apoio
popular baseado no clientelismo (MARTINS, 1994), estabelecido na troca (injusta) de favores.
Para Martins (1994):
A sociedade civil não é senão esboço num sistema político em que, de muitos
modos, a sociedade está dominada pelo Estado e foi transformada em
instrumento do Estado. E Estado baseado em relações políticas extremamente
atrasadas, como as do clientelismo e da dominação tradicional de base
patrimonial, do oligarquismo. No Brasil, o atraso é um instrumento de poder.
(MARTINS, 1994, p.13).

140
Disponível em: <http://www.ms.gov.br/maior-entrega-de-equipamentos-da-historia-pelo-governo-beneficia-
agricultura-familiar-de-ms/>. Acesso em: 23 nov. 2018.
264

A participação direta de políticos, dentro do assentamento, personifica ações que


deveriam ser “neutras”, mas acabam se tornando projetos ou conquista de determinado político.
Assim, mesmo o sujeito sendo representante do agronegócio, suas ações e intermediações, via
Estado, são instrumentos de poder. Por outro lado, há, também, por parte dos camponeses, a
compreensão das intencionalidades dos políticos e o aceite desta relação de poder como um
caminho contraditório para acesso a recursos.

4.8 DIALÉTICA DA RECRIAÇÃO: AÇÕES PRIVADAS COMPENSATÓRIAS


E MITIGADORAS DO AGRONEGÓCIO

Para além das políticas públicas e programas voltados para a agricultura camponesa,
existem ações oriundas de empresas privadas do agronegócio nos assentamentos do Bolsão
(MS). Estas ações, de cunho socioambientais, estão diretamente relacionadas a critérios de
financiamento de instituições financeiras (BNDES, por exemplo), certificações para exportação
definidos pela Organização Internacional para Padronização (ISO) e pela legislação ambiental.
A legislação brasileira, por meio do Artigo 225 da Constituição Federal e de seu órgão
regulador, estabeleceram a obrigatoriedade da realização do Estudo de Impacto Ambiental
(EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) para o licenciamento ambiental de
atividades que podem modificar o meio ambiente. Mesmo sendo um instrumento ambiental, o
EIA e o RIMA estabelecem ações que contemplam a sociedade em torno do empreendimento.
Por consequência, na instalação de empreendimentos, como indústrias e agroindústrias, devem-
se realizar ações compensatórias e/ou mitigatórias em seu entorno, como, por exemplo,
comunidades rurais e assentamentos de Reforma Agrária.
Em continuidade, o Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES), principal
financiador de empreendimentos no Brasil, adota critérios para avaliar e aprovar projetos de
financiamento. Assim, em sua página141, o banco afirma:
Para cumprir seu papel como indutor do desenvolvimento sustentável, o
BNDES dispõe de uma série de mecanismos, que vão desde a análise dos
impactos sociais e ambientais de projetos apoiados financeiramente ao
financiamento a investimentos que gerem benefícios diretos sobre a qualidade
ambiental e a diminuição das desigualdades sociais e regionais no país.

141
Disponível em:<https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/quem-somos/responsabilidade-social-e-
ambiental>. Acesso em: 9 ago. 2018.
265

Os aspectos de responsabilidade socioambiental, a contribuição das empresas e o


empreendimento para a comunidade local e regional são parte dos critérios adotados pelo
BNDES em sua forma de Avaliação de Empresas (MAE) para conceder financiamentos. Assim:
Os apontamentos resultantes da MAE fornecem insumos que contribuem para
tomadas de decisão sobre operações de financiamento e de participação
acionária do BNDES, além de contribuir para um conhecimento mais
abrangente de seus clientes. Além disso, os resultados da MAE podem
influenciar a análise de risco de crédito do cliente (rating), o que se reflete na
composição da taxa de juros final do financiamento. (BNDES, Site oficial).

Logo, possuir projetos socioambientais resulta em avaliação positiva do BNDES e,


consequentemente, em menores taxas de juros e aprovações de projetos. Outro aspecto
relevante está nas exigências internacionais para importação, destacando-se os ISOs e
certificações socioambientais que estabelecem parâmetros de responsabilidade social e
ambiental para as empresas e empreendimentos agropecuários.
Entre os ISOs, o número 26000, publicado no Brasil, em 2010, pela Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), estabelece diretrizes sobre responsabilidade social. As
diretrizes, no item 6, indicam a necessidade de práticas de incentivo à produção local. Assim:
Convém que uma organização considere os possíveis impactos ou
conseqüências não intencionais de suas práticas e decisões de compra em
outras organizações, e tome o devido cuidado para evitar ou minimizar
quaisquer impactos negativos. Ela pode também estimular a demanda por
produtos e serviços socialmente responsáveis. Convém que essas ações não
sejam vistas como uma substituição do papel das autoridades de implementar
e aplicar leis e regulamentos. (ABNT, 2010. p.52).

No que concerne ao monocultivo de eucalipto, o Forest Stewardship Council (FSC) é a


principal certificação exigida para comercialização na Europa. Segundo Perpetua (2016, p.138),
“Muito mais do que mero objeto publicitário, entretanto, o cumprimento da legislação e a
estratégia de certificação estão em fina sintonia com as exigências impostas pelos mercados
consumidores do Norte (Ásia, Europa e América do Norte)”.
Essa certificação estabelece diretrizes para a denominada sustentabilidade das empresas
deste setor. Todavia, a análise de Overbeek, Kröger e Gerber (2012), sobre o FSC, aponta:
Embora pudesse, em teoria, ser uma ferramenta útil para permitir que
cooperativas e associações locais no Sul global cobrassem altos preços por
quantidades limitadas de madeira e objetos de madeira produzidos de forma
sustentável, em vez disso, a certificação foi transformada em um mecanismo
que permite que as empresas façam ‘maquiagem verde’ sobre práticas
insustentáveis. (OVERBEEK, KRÖGER, GERBER 2012, p.88).
266

Desta forma, há uma via de mão dupla nestas certificações, uma vez que os famigerados
selos garantem a idoneidade socioambiental de empreendimentos dos quais os países
desenvolvidos são parceiros. Portanto, há também o interesse do capital internacional em
legitimar a expansão destes projetos, tornando-os cumplices da reprodução do latifúndio por
meio da violência contra indígenas, quilombolas, camponeses e trabalhadores.
Segundo Overbeek (2018):
Uma tática para empresas conseguirem camuflar ilegalidades é buscar
mecanismos que possam atestar a legalidade das suas práticas. O FSC e a
RSPO parecem se encaixar nesta lógica, ainda mais quando certificadoras
acabam prestando um grande serviço à empresa ao atestar a legalidade de seus
documentos fundiários enquanto ignoram por completo denúncias das
comunidades e o trabalho de anos de investigações e ações judiciais movidas
pelas autoridades competentes.

Assim, inúmeros projetos mitigatórios são realizados no campo, especialmente em


assentamentos rurais objetivando os diversos selos apresentados, mas também, como forma de
controle social e amenização de possíveis conflitos com os sujeitos locais. Neste contexto, a
proatividade das empresas do agronegócio aliada ao fim das burocracias das políticas públicas
permitem que projetos ocorram com rapidez, alcançando o imediatismo das necessidades da
agricultura camponesa. Desta forma, os projetos mitigatórios são bem aceitos nos
assentamentos, mascarando em parte os problemas socioambientais causados pelas próprias
empresas.
A fala do camponês do Assentamento 20 de Março é precisa ao apontar a importância
dos projetos realizados pela Fibria (Atual Suzano):
Não vou dizer que sou favorável às empresas que estão em Três Lagoas.
Infelizmente Três lagoas fez uma escolha e com o tempo a gente vai pagar por
essa escolha, e o caminho que tomou agora não tem mais volta. O eucalipto tá
aí, e não vai acabar durante 20 anos, se eles pararem de plantar agora, isso aí
vai ficar por um bom tempo. A realidade é uma só, hoje se não fosse essa
ajuda, eu não digo ajuda financeira, mas se não fosse um pouco dessa
ajuda para articular venda, para articular o acesso à política pública,
para organizar a associação eu acho que esse assentamento estava na
idade da pedra ainda, estava igual a outros assentamentos, a Deus dará.
(Entrevistado D). (Grifo nosso).

O entrevistado compara a ação das empresas do agronegócio com as tímidas atividades


realizadas pelo INCRA. Na mesma argumentação, o camponês indica a compreensão sobre os
interesses das empresas, demonstrando que não há passividade do campesinato, mas sim,
questões objetivas a serem resolvidas. Assim:
Então quer dizer, a gente sabe que nada é de graça, a gente sabe que as
certificações que eles precisam ter são caras, e eles precisam ter esse
267

trabalho, a gente não é bobo. Mas é o que eu falo, é um mal preciso no


momento. Aquele entreposto, as empresas, a Cargill, investiram quinhentos
mil reais ali, quando que o governo iria investir esse valor num assentamento?
Enquanto o INCRA bate no peito que furou um poço no lado de lá, a FIBRIA
furou um outro ali e doou duas caixas [d’água] grande. Têm as coisas ruins e
têm as coisas boas. A única coisa que a gente tem que entender é até aonde
vai o nosso gosto e aonde começa o gosto deles. Se a gente manter nosso
gosto, não perdendo a autonomia eu não vejo mal nenhum. (Entrevistado
D). (Grifo nosso).

Essa consciência aponta esta “parceria” como uma via contraditória, entre outras, para
a recriação camponesa. O ingresso em projetos e aceite da participação de empresas privadas
no assentamento indica o pragmatismo em reconhecer a velocidade de acesso a recursos
privados e demora em relação aos públicos. A camponesa assentada no PA Pontal do Faia, em
Três Lagoas (MS), aponta142 os benefícios das empresas de celulose e papel (Eldorado e
Fibria/Suzano): “Bom? É ótimo, esse carro nós ganhamos e não pagamos nada, estufa não
pagamos nada, vai vir 30 toneladas de cama de frango, de esterco para as hortas nós não
pagamos nada, nós ganhamos, nós corremos atrás.” (Entrevistada M).
A camponesa continua a explicação indicando a importância dos projetos privados no
assentamento:
Pela Eldorado também, eles compram para fortalecer a gente, porque nós não
temos condições porque é caro. Mas a Fibria também tem parceria com a gente
aqui, só que ela está na outra associação, dos moradores, que engloba as 45
[famílias assentadas]. Ela está fazendo essa parte de pastagem, adubação de
terra, capim, calcarizando, ali [acenando] o piquete, a madeira lá pra fazer o
piquete, ganhamos no final do ano passado [2017]. A gente tem bastante
apoio, graças a Deus. (Entrevistada M).

Em campo foi observado a construção dos currais com materiais doados pela empresa
Fibria/Suzano (figura 36). Em alguns casos, mesmo o camponês não trabalhando com gado
leiteiro, acabou recendo o benefício da empresa. Isso ocorreu tanto pela necessidade da empresa
em realizar o projeto, ignorando as especificidades dos lotes, como também pela compreensão
dos camponeses em receber o projeto visando benefícios futuros.

PA Pontal do Faia (Três Lagoas-MS): Curral

142
Entrevista realizada em março de 2019 no lote da camponesa, no município de Três Lagoas (MS).
268

Fonte: Trabalho de campo, 2018.


O “bom relacionamento” entre empresas e os camponeses é, periodicamente,
apresentado nos relatórios de sustentabilidade, nos quais são divulgados os resultados dos
projetos mitigatórios para garantia das certificações e vendas no exterior. Contraditoriamente,
a ação da Fibria/Suzano possui características similares a de políticas públicas, como o
Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais (Pronat), utilizado
nesta pesquisa para delimitar a área de estudo. O programa privado, denominado Programa de
Desenvolvimento Rural Territorial (PDRT), atua nos assentamentos fornecendo consultoria
para as associações, assistência técnica e até mesmo auxiliando-os no acesso às políticas
públicas. Portanto:
Lançado em 2012, o PDRT tornou-se um programa amplamente reconhecido
por potencializar as atividades rurais de cada território com o apoio na forma
de assistência técnica em três eixos: gestão, produção e comercialização das
associações e das cooperativas participantes. Sendo assim, seguindo
princípios da agroecologia, o Programa incrementa a renda das famílias,
fomenta o acesso a políticas públicas e, por fim, melhora a qualidade de vida
dos produtores. (SUZANO, 2019, p. 68).

Cabe destaque, para além dos projetos produtivos e de assistência técnica, a construção
de um novo prédio (Além de sua ampliação recente) para a Escola Municipal Rural São
Joaquim, no assentamento com mesmo nome, em Selvíria (MS). A escola é muito importante
para os camponeses devido a sua localização, recebendo alunos dos assentamentos Canoas e
Alecrim, além de filhos de trabalhadores e camponeses próximos, possuindo aproximadamente
300 alunos. Até 2015, o antigo prédio (Sede da fazenda) funcionava de dia como escola e à
noite as salas de aula eram utilizadas como dormitório para os professores.
269

Construído pela Eldorado Brasil e inaugurado em 2015, o novo prédio (figura 37)
substituiu as antigas instalações da escola na casa/sede da antiga fazenda desapropriada.
Posteriormente, em 2018, o prédio foi ampliado pela mesma empresa, construindo um novo
bloco com quatro salas e banheiros.

PA São Joaquim (Selviria-MS): novo prédio da escola

Fonte: Trabalho de campo, 2018.


A relação marcada pela contradição entre empresas e camponeses é evidente nas falas
dos entrevistados. Ao mesmo tempo em que exaltam a parceria, reconhecem os problemas
oriundos da territorialização dessas empresas, desde a falta de água, até ataque de animais
silvestres à produção nos lotes. Desta maneira, os camponeses aceitam as ações sociais mesmo
que essas afetem sua autonomia nas decisões sobre projetos e até mesmo na associação como
uma via de conquistas de recursos e assistência técnica.
A aproximação da empresa com os camponeses assentados também ocorre por meio do
trabalho, como constatou Silva (2014, p. 145):
Nos projetos de assentamento São Joaquim e Alecrim, localizados no
município de Selvíria, durante o trabalho de campo foi possível verificar que
aproximadamente 40 assentados, entre eles adultos e adolescentes, homens e
mulheres, trabalhando com carteira de trabalho assinada nas empresas de
eucalipto: Eldorado, JS, Plantar, Fibria.

Mesmo sendo uma situação conflitiva, a realidade imediata impõe aos camponeses a
necessidade de trabalhar e aceitar projetos privados como uma forma de resistência diante do
contexto de abandono do Estado ou de, pelo menos, suas poucas ações.
Por outro lado, a relação com políticos fez surgir no Parque das Emas (GO) situações
singulares de participação camponesa na política local, enquanto que no Bolsão (MS) a
apropriação da política dos territórios rurais possibilitou a organização das mulheres
camponesas.
270

4.9 FLORES NO LATIFÚNDIO: A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA E


ORGANIZAÇÃO DAS MULHERES CAMPONESAS

Diferentemente das ocupações e manifestações do campesinato como ações políticas e


reivindicatórias e muitas vezes, taxada por jornais e pela opinião pública, como ilegítimas e
violentas, os camponeses no Parque das Emas (GO) estão trilhando um caminho por dentro do
Estado, como se evidenciou nas eleições municipais de 2020. No Bolsão (MS) tem se observado
a organização e protagonismo das mulheres camponesas como um movimento em torno de
encontros para discutir questões de gênero e também política. Esses acontecimentos chamam a
atenção por representarem a busca por autonomia e direitos por “dentro” do Estado. Assim,
emerge dos camponeses, analisados nesta pesquisa, o afloramento do desejo da participação
política, demonstrando que o Estado hegemonicamente latifundiário passa ser disputado em
escala local por uma classe historicamente subordinada.
As lutas camponesas e seu potencial político já foram observados e utilizados
partidariamente, como apresentou Martins (1981), sobre as Ligas Camponesas e o Partido
Comunista Brasileiro. Assim, o camponês esteve nos projetos dos outros: “A história política
do campesinato não pode ser reconstituída separadamente da história das lutas pela tutela
política do campesinato” (MARTINS, 1981, p.81).
Em tempos mais recentes, nas disputas eleitorais para Presidência da República, da
década de 1990 até 2002, o Partido dos Trabalhadores se aproximou da luta camponesa pela
Reforma Agrária. Frases atribuídas à Lula, durante as campanhas de 1994 e 2002, indicam a
apropriação da luta como compromisso de campanha:
Em oportunidades anteriores, Lula havia efetuado declarações inflamadas,
como no final da campanha de 1994, quando afirmou que ‘Numa canetada só
eu vou dar tanta terra que vocês não vão conseguir ocupar’. Mais tarde, na
campanha eleitoral de 2002, voltou a dizer que ‘Eu sou o único candidato a
presidente capaz de fazer uma reforma agrária ampla e tranquila’. (SCOLESE,
2005, p. 86 apud PEIXOTO, 2017, p. 225).

Mesmo a aproximação de Lula com os movimentos socioterritoriais, em especial o


MST, a Reforma Agrária não se concretizou como esperado. Esses apontamentos indicam a
necessidade de mudança de postura dos camponeses, deixando de ser parte do projeto dos
“outros” e colocando centralidade política na Reforma Agrária. Todavia, o caminho não é tão
simplista e passa pelo reconhecimento dos próprios camponeses como classe social. Paulino e
Almeida (2010), baseando-se nas contribuições de Thompson (1998), corroboram,
argumentando que atribuir o termo classe apenas a um grupo privado de consciência de classe
é anular a classe como categoria histórica, formada ao longo do tempo pela ação dos sujeitos
271

que no processo de luta se reconhecem como tal. Assim, “[..] a formação da classe e da
consciência de classe traduz-se em face de um mesmo processo.” (PAULINO, ALMEIDA,
2010, p. 27).
Sobre a formação política, para Fernandes (1999), na ocupação e no acampamento os
camponeses tomam consciência de seus direitos assim como de sua classe social. Cumpre
ressaltar que a pesquisa do autor se baseia nos sujeitos sociais ligados ao MST, com diversas
atividades formativas dos camponeses. Embora os acampamentos tenham durado anos, os
assentamentos do Parque das Emas (GO) e do Bolsão (MS) se originaram de lutas locais
organizadas, principalmente, por sindicatos de trabalhadores rurais e, desta maneira, não houve,
junto aos assentados, atividades diretas de formação política, comuns no MST.
Assim, a formação política dos camponeses assentados ocorre nas lutas do cotidiano.
Como flores brotando no interior do latifúndio e do Estado, a participação política local é uma
das possíveis vias encontradas pelo campesinato para sua recriação.
É importante destacar que já houve no Bolsão (MS) candidatos a vereadores de origem
camponesa ou alinhados com os interesses dos camponeses. Em Selvíra (MS), um filho de
assentados no PA São Joaquim, filiado ao Partido Ecológico Nacional (PEN), atual Patriotas,
foi eleito vereador em 2016. O mesmo teve o nome associado a uma denúncia de corrupção no
fornecimento de materiais para a construção de habitações na Reforma Agrária. Em Chapadão
do Sul (MS), um funcionário público, alinhado à agricultura camponesa e participante das
discussões envolvendo os territórios rurais, foi candidato a vereador em 2016 pelo Partido do
Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), porém sem sucesso. Em Três Lagoas (MS), uma
camponesa assentada também lançou candidatura nas eleições municipais de 2016 pelo partido
Solidariedade, mas não foi eleita.
Como fato marcante, houve uma grande representação camponesa nas eleições
municipais de 2020, no Parque das Emas (GO), demonstrando a compreensão da importância
de ser/estar no Estado. Segundo o levantamento do Núcleo de Agroecologia e Agricultura
Familiar - NEAF/UFJ, foram 13 candidatos, sete mulheres e seis homens, entre camponeses e
representantes de sindicatos de trabalhadores rurais (quadro 2). Tais candidatos, filiaram-se em
diferentes partidos: Partido Progressista (3), Cidadania (2), Patriota (2), Partido Socialista
Brasileiro (1), Partido Social Democrático (1), Democratas (1), Movimento Democrático
Brasileiro (1), Partido dos Trabalhadores (1) e Partido Social Liberal (1).
Dos 13 candidatos, apenas três foram eleitos, duas mulheres e um homem, todos
oriundos de assentamentos do município de Perolândia (GO), PA Lagoa do Bonfim e PA Três
Pontes. Dos candidatos eleitos, dois são filiados ao Cidadania e um ao Progressista, assim,
272

neste município a representação dos camponeses está associada a partidos de centro e direita143
e que no contexto nacional já se associaram à Frente Parlamentar da Agropecuária e à Bancada
Ruralista144.

Quadro 2- Parque das Emas (GO): Candidatos camponeses em 2020


Município Quantidade Situação
Jataí 2 a vereador Nenhum eleito
Mineiros 4 a vereador Nenhum eleito
Perolândia 3 a vereador 3 eleitos
Santa Rita do Araguaia 3 a vereador Nenhum eleito
Serranópolis 1 a vice-prefeita Não eleita
Fonte: NEAF/UFJ. Organizado pelo autor

Uma das vereadoras eleitas, em Perolândia, contou145 que sua participação ativa no
assentamento junto ao grupo de mulheres e em políticas públicas impulsionou sua candidatura:
Sempre lutando junto com um grupo de mulheres e com vários programas,
como exemplo PAA e PNAE, e em busca de conhecimentos para melhorar a
renda familiar, tomei a decisão em colocar o meu nome à disposição da nossa
comunidade como candidata a vereadora porque sonho que podemos
melhorar. (Entrevistada N).

A camponesa ressalta o apoio dentro do assentamento, pelas cooperativas e associação.


Além disso, politicamente, segundo a entrevistada, foi apoiada pelo prefeito eleito (DEM) e por
um Deputado Federal Zé Mario (DEM) que destinou146 ao setor agropecuário R$ 3.943.750,00
(Três milhões, novecentos e quarenta e três mil, setecentos e cinquenta reais) por meio de
emendas parlamentares. Esta possível aliança compõe a contradição da representação
camponesa na política, uma vez que o referido deputado faz parte da Bancada Ruralista e em
2021 foi indicado147 pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) como um dos líderes do
governo na câmara legislativa.
Questionada sobre a importância da participação camponesa na política local, a
entrevistada destacou a necessidade de conhecer a realidade vivenciada pelos assentados:

143
Informação disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/partido-
progressista-pp>. Acesso em: 4 mai. 2021.
144
Informação disponível em: <https://revistagloborural.globo.com/Noticias/Politica/noticia/2018/12/novo-lider-
da-bancada-ruralista-quer-eliminar-conflitos-ficticios.html>. Acesso em: 4 mai. 2021.
145
Devido à pandemia do Covid-19, a entrevista foi realizada em 09 de dezembro de 2020, via aplicativo de
mensagens.
146
Informação disponível em: <https://www.camara.leg.br/deputados/204386?ano=2020> Acesso em: 01 de
mai. 2021.
147
Informação disponível em: <https://www.camara.leg.br/deputados/204386/biografia> Acesso em: 1 mai.
2021.
273

Sim, é de grande importância onde a agricultura família luta pelos seus direitos
e busca também resolver as irregularidades que tem nos assentamentos que se
não tiver ninguém que tem conhecimentos dos problemas e vive a realidade
nada será resolvido. (Entrevistada N).

Agora, como representante dos anseios dos camponeses, a vereadora aponta problemas
que espera resolver como parte do Estado, entre os problemas estão objetivos alinhados ao
Governo Bolsonaro como a titulação dos assentamentos:
Lutarei para dar continuidade nos projetos, como por exemplo titulação dos
assentamentos, melhorar a renda familiar, principalmente das mulheres
agricultoras e jovens. Temos um grande problema, a falta de água, então
lutarei para a implantação de poços artesianos para os dois assentamentos do
nosso município e, também, dando suporte para o grupo do Território.
(Entrevistada N).

Conquistando, mesmo pequenas frações dentro do Estado, o campesinato na política


permanece imerso na contradição alinhando-se a partidos e políticos ligados ao agronegócio ou
reproduzindo parte do pensamento hegemônico. Assim, apesar de inicialmente haver questões
objetivas dentro do assentamento, a representatividade política ainda não proporciona a unidade
e identidade entre os camponeses, sendo necessário a construção de um partido camponês.
No Bolsão (MS), a organização das mulheres camponesas criou uma vertente política
dentro do Pronat. Esse movimento se impõe relevante para a pesquisa por apontar o
protagonismo das mulheres em um ambiente majoritariamente machista em que o papel da
mulher é invisibilizado. A participação política da mulher camponesa na Reforma Agrária é
limitada, como aponta Valenciano, Thomaz Júnior (2002), sobre as camponesas na luta pela
terra no Pontal do Paranapanema/SP. Para os autores:
Um dos principais entraves colocados pelas militantes, como sendo
responsável pela não entrada de novas mulheres na militância são os filhos, as
atividades desenvolvidas no seu lote [...]. No espaço compreendido pela
família, a mulher encontra muitos obstáculos à sua inserção na luta de forma
ampliada. O fato de deixar a casa, os afazeres domésticos (que são atividades
desempenhadas pelas mulheres), os filhos (cujo cuidado está sob a
responsabilidade da mulher), não são bem vistos pelos seus respectivos
companheiros e impedem a saída e a participação em eventos, reuniões e
demais atos promovidos não somente pelo coletivo, mas pelo movimento
como um todo. (VALENCIANO, THOMAZ JÚNIOR, 2002, p.9).

No contexto do Bolsão (MS), a constituição de um comitê organizativo de mulheres


camponesas ocorreu dentro do desenvolvimento do programa dos Territórios Rurais
(PRONAT). Nesse programa, e com assessoria do Núcleo de Extensão em Desenvolvimento
Territorial (NEDET) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Três Lagoas,
274

foram criadas câmaras temáticas (comitês) de mulheres e jovens em 2016, além do Comitê de
Povos Tradicionais (Pescadores), do Núcleo Diretivo e Técnico.
Inicialmente, em 2016, a criação do Comitê de Mulheres Camponesas no Território
Rural do Bolsão (MS) possibilitou a busca por recursos do Apoio a Projetos de Infraestrutura e
Serviços em Territórios Rurais (PROINF), aprovando-se o projeto de construção de um
barracão para entreposto de produtos hortifrutigranjeiros a fim de atender aos assentamentos do
município de Três Lagoas (MS) (BORZONE, 2018).
Embora o objetivo de criação do Comitê de Mulheres tenha sido inicialmente o de
acesso a recursos do PROINF, a organização das camponesas e a possibilidade de encontros
regulares garantiram a ampliação da socialização e debate entre as assentadas no Bolsão (MS).
Desde a criação do Comitê de Mulheres, em 2016, foram realizados oito eventos públicos
objetivando reunir camponesas de todo Bolsão (MS) para discutir questões relacionadas a
gênero, saúde, políticas públicas e violência. Os encontros (figura 38) tornaram-se grandes
eventos para a agricultura camponesa do Bolsão (MS) atraindo participantes ligados à
universidade e até mesmo à política local. Mesmo o fim do programa dos territórios rurais em
2016, os encontros continuaram a ser organizados pelas camponesas e com ajuda da
universidade e prefeituras locais, contraditoriamente as camponesas também buscaram apoio
financeiro com as indústrias de celulose e papel territorializadas.
O primeiro Encontro de Mulheres Camponesas, em 18 de março de 2016, teve a
participação de 400 pessoas no municipio de Paranaíba (MS). O segundo encontro ocorreu no
mesmo ano, em 26 de outrubro, no Assentamento Pontal do Faia, em Três Lagoas (MS). Em
11de março de 2017, a terceira edição do Encontro de Mulheres camponesas foi realizado no
Assentamento 20 de Março no município de Selvíria (MS). O quarto encontro aconteceu em 22
de outubro de 2017, no assentamento Canoas em Selvíria (MS). Em 2018, devido à escassez de
recursos, foi realizado apenas um Encontro de Mulheres camponesas no dia 12 de março, o
quinto, na sequência, ocorrera no PA Serra em Paranaíba (MS). No ano de 2019 foram
realizados dois encontros, o primeiro em 16 de março no PA Alecrim em Selvíria (MS), e o
segundo em 26 de outubro no PA Pontal do Faia em Três Lagoas (MS).

Bolsão (MS): Mosaico Encontro de Mulheres Camponesas


275

Fonte: NEDET, 2021.

É importante destacar que as atividades do NEDET se encerraram em 2017, com o fim


do projeto de extensão, ao mesmo tempo em que grande parte das políticas para o campesinato,
após o impeachment de Dilma Rousseff (2016), sofreu drástico corte orçamentário. Todavia, os
encontros das camponesas assentadas continuaram ocorrendo tamanha a articulação e
reconhecimento das mesmas como uma prática necessária. A cada evento, o Comitê de
Mulheres cresceu e se consolidou dentro dos assentamentos: “Hoje, o Comitê é constituído de
30 mulheres, representando seis dos sete assentamentos de Reforma Agrária, além de órgãos
parceiros da população assentada e/ou camponesa” (BORZONE, 2018, p. 144).
O protagonismo das camponesas no Bolsão (MS) e os encontros decorrentes auxiliaram-
nas no processo diário de resistência feminina. As temáticas sobre saúde, violência e política
pautadas pelas mulheres trouxeram debates necessários para dentro dos assentamentos. Nesse
sentido, as mulheres construíram um caminho de diálogo entre si e com parte da sociedade,
rompendo, em parte, com a estrutura patriarcal também reproduzida nos assentamentos, que
reduz o papel da mulher às atividades domésticas. Portanto:
O desenvolvimento da dimensão pública da sua vida pressupõe além de novos
saberes, novas informações que redefinem as relações de poder em nível
privado. O embrião dessas mudanças é a nova divisão de tarefas que se realiza
no lote. Todavia, longe da eqüidade de gênero na participação no trabalho
reprodutivo, uma das respostas da inserção das assentadas e acampadas nas
276

organizações de mulheres que observamos é que elas constituem os canais


para repensar a sua condição no seio familiar valorizando o seu papel social.
(GARCIA, 2004, p.172).

A luta e o protagonismo das mulheres camponesas em escala nacional colocaram a


discussão feminista no interior dos movimentos socioterritoriais nos últimos anos (CHEHAB,
CARVALHO, 2020). Segundo as autoras, as especificidades do campo condicionam a luta
feminista diferente da luta urbana, um feminismo camponês e popular: “Esse é um conceito que
nasce no seio dos próprios movimentos e que vem sendo forjado, de maneira conjunta, pelas
mulheres camponesas do Brasil – e da América Latina.” (CHEHAB, CARVALHO, 2020, p.
158).
De acordo com Táboas (2014), é no Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) a
origem do ideal de feminismo camponês popular. A pesquisadora aponta as origens da
organização da luta feminista no campo a partir da década de 19(80), consolidando-se como
MMC em 2014, definindo suas pautas e projeto político:
Com a formação do MMC, as mulheres camponesas passam a ter um projeto
político, um programa de atuação unificado e organizado em todo o país, que
luta pela abertura de espaços em que sejam possíveis reivindicações populares
feministas, espaços para denúncia de relações onde há excesso de poder
acumulado, espaços de luta pela transferência desse poder, espaços que
permitam construir a dignidade humana através das formas particulares de
vida das mulheres camponesas. (TÁBOAS, 2014, p. 20).

A luta feminina em escala nacional indica a necessidade das mulheres camponesas do


Bolsão (MS) em ampliar suas conquistas políticas. Ao emergir tal protagonismo, espera-se a
manutenção e ampliação da participação das mulheres camponesas dentro da política em escala
local, em comitês, conselhos, prefeituras.
Portanto a organização política das camponesas no Parque das Emas (GO) e no Bolsão
(MS) são parte do processo de recriação camponesa no contexto de predomínio e reprodução
dos latifúndios. Apesar de serem ainda passos iniciais de uma organização feminina no campo,
demonstram avanços na compreensão do campesinato local sobre a luta de classe no qual estão
imersos.

4.10 FACA AMOLADA: FRAGMENTOS DE AUTONOMIA CAMPONESA

Seria um equívoco considerar a reprodução camponesa apenas por relações


contraditórias ou subsidiadas por interesses capitalistas/latifundiários. Fugindo das armadilhas
deterministas, é preciso considerar a criatividade e busca camponesa por sua autonomia, um
277

projeto camponês de sociedade. Neste sentido, a alimentação é um dos caminhos possíveis de


rompimento com a reprodução do latifúndio sustentada ideologicamente por uma falaciosa
super produção de alimentos baseada no uso intensivo de agrotóxicos.
O controle capitalista sobre a produção, circulação e consumo dos alimentos, constitui
impérios alimentares (PLOEG, 2008), cintando o referido autor, Paulino (2008) aponta que os
impérios alimentares são ordenamentos territoriais globais sustentados por estratégias de
absorção das riquezas produzidas por outrem. Desta forma, empresas transnacionais passam a
controlar a alimentação mundial, um monopólio, decidindo inclusive sobre o que é alimento e
sua qualidade. Assim;
O Império não é apenas outra forma de colocar comida na mesa; ele
transforma profundamente os próprios alimentos na forma como foram
produzidos e como são consumidos. Ou seja, os impérios alimentares
reformulam partes consideráveis da própria vida, da mesma forma que
produzem suas próprias ciências e tecnologias para reconstruir a vida.
(PLOEG, 2008, p. 113).

Com os impérios, houve o aumento da distância entre o local da produção do alimento


e onde ele será consumido. A circulação e a destinação dos alimentos dependem diretamente
do local onde haverá maior acumulação capitalista. Assim, os alimentos passam a viajar por
todo o globo, segundo Ploeg: “Isso permite, por sua vez, a criação de um novo modelo que é
essencial ao Império: os lugares baratos de produção são diretamente ligados aos lugares ricos
de consumo.”. (2008, p. 124). A desconexão entre o local de produção e o de consumo apontada
pelo autor, implica no desaparecimento da identidade do alimento, não se sabe sua origem,
muito menos quem o produz.
A pesquisa de Valério (2019) sobre a produção e distribuição de hortifrútis no estado de
São Paulo é significativa ao demonstrar o controle territorial e expansão da indústria canavieira
e seus impactos na distribuição dos alimentos. Segundo o pesquisador:
Se o deslocamento do eixo principal de produção canavieira do Nordeste para
o Sudeste, sobretudo no estado de São Paulo, teve como objetivo aproximar a
produção (açúcar e álcool combustível) dos maiores mercados consumidores,
ao fazê-lo, a expansão da cana-de açúcar impôs, como contrapartida, cada vez
mais distâncias ao movimento dos alimentos necessário para o encontro entre
produção e consumo. (VALÉRIO, 2019, p. 298).

Ainda como conclusão, Valério (2019) entende que o movimento (circulação) dos
alimentos tempo objetivo a obtenção de lucros máximos para atravessadores e empresas, e não
a qualidade ou acessibilidade dos alimentos para as pessoas. No Parque das Emas (GO) e Bolsão
278

(MS) o contexto de expansão do cultivo da soja e eucalipto demonstrado no mapa 6 (p. 137)
podem também afetar a soberania alimentar.
Nesse sentido, a agroecologia se apresenta como modelo contra hegemônico a
agricultura capitalista imposta no Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS). Os saberes tradicionais
do campesinato relacionados a agricultura, não se baseiam no uso de agroquímicos nem formas
desiguais de trabalho. No entanto, a agroecologia, é entendida nesta pesquisa para além de
técnicas produtivas e respeito à natureza, sendo composta também por valores relativos a
relações sociais justas.
Especificamente no Bolsão (MS) marcado pelo latifúndio e pela recente territorialização
do complexo de celulose e papel, o campesinato conquista fragmentos do território por meio da
produção de alimentos saudáveis, apresentando para a sociedade um caminho alternativo, a
agroecologia:
Não obstante, esses camponeses não desistiram de produzir na terra e, mais,
produzem de forma mais equilibrada, se afastando do uso de agrotóxicos e
adubos químicos em direção à agroecologia. Atualmente, no PA Vinte de
Março há 21 pessoas trabalhando com produtos de base agroecológica.
(PAULINO; MOREIRA, ALMEIDA, 2018, p. 4).

Este caminho ainda em construção pelo campesinato do Bolsão (MS), passou a


conquistar frações do território dentro da universidade, com a criação do Núcleo de
Agroecologia do Bolsão-UFMS (NEA-BOLSÃO) em 2013, no Laboratório de Geografia
Agrária, da UFMS, campus de Três Lagoas (MS) em articulação com Instituto de Sociología e
Estudios Campesinos (ISEC), Universidade de Córdoba-Espanha. Esta aliança do campesinato
com a universidade tem gerado importantes resultados tanto no âmbito produtivo, mas
sobretudo na autonomia e identidade política dos camponeses demonstrado por diferentes
projetos.
A transição agroecológica passa pela construção de canais curtos de comercialização,
meio pelo qual camponeses produtores de alimentos e os consumidores se reconheçam no
processo, diminuindo as distâncias e dando identidade aos alimentos. Nesse sentido,
Este debate campo-cidade necessita ser considerado como parte intrínseca da
discussão da transição agroecológica no sentido da construção de uma aliança
entre os que produzem comida e aqueles que consomem via potencialização
dos canais curtos de comercialização que podem devolver autonomia aos
camponeses ao mesmo tempo em que criam práticas de desobediência aos
impérios agroalimentares que controlam a garganta da circulação.
(ALMEIDA, 2014, p. 06).
279

Objetivando aproximar camponeses e consumidores a universidade auxiliou na


formação de grupos de consumos por meio do projeto de extensão “Dinamizando a Agricultura
148
Familiar e o Consumo Agroecológico em Três Lagoas-MS” . Neste projeto, popularmente
conhecido como “Sacolas Agroecológicas”, um grupo de consumo formado por servidores,
trabalhadores terceirizados e discentes recebiam semanalmente uma sacola com diferentes
alimentos produzidos de maneira agroecológica dentro do Assentamento 20 de Março. As
sacolas respeitavam a sazonalidade da produção e pedagogicamente ensinavam os
consumidores o tempo da natureza e sua dinâmica dentro da agricultura.
O sucesso do projeto ampliou o número de consumidores e passou a contar com
participação de outro assentamento, o Pontal do Faia. Com isso, criou-se149 uma feira dentro da
universidade realizada toda quarta-feira como apresenta a figura 40. Além disto, formaram-se
feiras dentro de condomínios em Três Lagoas, aumentando a relação dos camponeses com a
população local. Por outro lado, a ampliação do canal de comercialização passou a demandar
maior participação dos camponeses, tanto na parte produtiva de hortaliças, pães, bolos, mel,
café, farinha como também na organização e venda.

UFMS – Três Lagoas (MS): Feira Agroecológica

Fonte: NEA/Geoagrária, 2019.

148
Informação obtida junto a coordenadora do projeto Prof. Dra. Rosemeire A. de Almeida.
149
Projeto nomeado de: Núcleo de Estudo em Agroecologia e Produção Orgânica: dinamização da agricultura
familiar no Território Rural do Bolsão-MS” (CNPq, 2017-2020).
280

Devido ao contexto de pandemia do Covid-19, os camponeses articularam-se na criação


de uma feira online150, onde os pedidos são feitos remotamente e as entregas são realizadas
semanalmente. A proposta camponesa de comida de qualidade e com identidade no município
de Três Lagoas (MS) vem conquistando e ensinando a população sobre a agroecologia.
Conforme Valério (2019);
Enquanto ato político, comer implica conhecer aquilo que se está consumindo:
como foi produzido, onde, por quem, sob quais condições de trabalho e,
principalmente, quais os beneficiados pelo preço pago pelo consumidor. Isso
traduz os conteúdos de uma proposta de soberania sobre os nossos hábitos
alimentares, o que implica podermos decidir ativamente sobre quais alimentos
consumimos. Sob esta perspectiva, o alimento não deixa de ser mercadoria,
entretanto, tem sua dimensão mercadológica traduzida em termos de um
“preço justo” que permite tanto a apropriação da maior parte da renda por
parte do produtor, como a redução dos preços para o consumidor final (devido
à eliminação dos atravessadores), o que contribui para a democratização do
acesso das pessoas aos alimentos. (p. 100).

A busca por autonomia camponesa em um país marcado pela contra reforma agrária e
pela hegemonia latifundiária dentro do Estado provoca a universidade a pensar sobre o
campesinato no Brasil. No Bolsão (MS), o laboratório de Geoagrária da UFMS coordenado
pela Prof. Dra. Rosemeire Almeida e pelo professor Dr. Sedeval Nardoque passou a pesquisar
e a atuar por meio de projetos de extensão sobre a temática da agroecologia. Entre os anos de
2009 e 2021 foram 29 ações em conjunto com os camponeses que perpassam projetos de
pesquisa, extensão e eventos.
Caminho semelhante é percorrido pelo campesinato no Parque das Emas (GO), que
mesmo com o fim do programa dos territórios rurais continuaram realizando plenárias para
discutir estratégias conjuntas em busca de sua recriação. A pauta das plenárias além de discutir
as políticas públicas também permeiam a valorização da produção camponesa de alimentos.
Nesse sentido, a luta pelo reconhecimento e registro do queijo cabacinha como patrimônio
cultural do estado de Goiás foi uma das principais ações do campesinato organizado como
apresenta a figura 41.

Parque das Emas (GO): colegiado territorial

150
Neste formato os camponeses contam com o auxílio técnico da universidade em organizar os pedidos. Além
disto, a feira é contemplada pelo projeto: Agroecologia e Organização do Consumo: feiras e grupos de consumos
em Três Lagoas/MS - online e presencial” (UFMS-PROECE, 2021-2023).
281

Fonte: NEAF, 2021.

O reconhecimento151 do queijo cabacinha em 2021 é uma vitória dos camponeses do


Parque das Emas (GO), pois demonstra a força destes sujeitos na valorização da identidade
camponesa por meio do alimento. Aproximando a discussão em Ploeg (2008) e Valério (2019),
a identidade da comida é um importante passo para a transição agroecológica fazendo com que
a sociedade reconheça a importância da agricultura camponesa e sua oposição à agricultura
capitalista.
Portanto, os canais curtos de comercialização construídos pelo campesinato representam
uma estratégia de resistência a monopolização do território pelo capital e a consequente
apropriação da renda da terra. Ações como as apresentadas neste item comprovam que não é
possível condicionar ou generalizar a recriação camponesa como simples produto mecânico da
reprodução desigual contraditória e combinada do capitalismo, pelo contrário, há rebeldia e
subversão as amarras impostas pelo capital.
Os camponeses tem consciência da força latifundiária nos territórios rurais estudados,
sabendo alternar momentos de luta e resistência. Da mesma forma, a luta pela terra dividida via
Reforma Agrária também consiste na teimosia camponesa em marchar e pressionar o Estado.
Assim, há um fio condutor de esperança para a luta camponesa e sua recriação, utilizando a

151
O queijo cabacinha foi declarado Patrimônio Cultural do estado de Goiás por meio da Lei 20.963. Informação
disponível em:< https://www.agricultura.go.gov.br/comunica%C3%A7%C3%A3o/not%C3%ADcias/3599-
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29 jul de 2021.
282

expressão de Milton Nascimento “Vai ser, vai ser, vai ter de ser, [...], o brilho cego de paixão e
fé, faca amolada”.
283

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegar até as considerações finais de uma pesquisa tão longa provoca inúmeros
sentimentos, dentre eles, felicidade e alívio, pelos obstáculos e desafios atravessados dentro do
campo cientifico como também no contexto político. Durante os 36 meses de doutoramento, a
pesquisa/pesquisador testemunharam a ascensão do discurso fascista no Brasil que atingiu
também os camponeses e a Reforma Agrária, a greve dos caminhoneiros e crises de
abastecimentos nos municípios e na reta final, uma pandemia.
A busca por compreender, analisar e comprovar a tese da reprodução do latifúndio e
da recriação do campesinato nos territórios rurais Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS)
como parte da contradição do desenvolvimento do capitalismo no campo revelou a
atualidade e pertinência desta discussão dentro da Geografia. Assim, ao tecer este último item
da pesquisa, tem-se a convicção que a temática sobre as contradições do desenvolvimento
desigual do capitalismo no campo não está esgotada. Portanto, apesar das conclusões
apresentadas, há um conjunto de indagações sobre a reprodução dos latifúndios e recriação
camponesa que serão levadas adiante como novas preposições de pesquisa.
Os pressupostos teóricos de desenvolvimento desigual, contraditório e combinado do
capitalismo foram fundamentais na construção da tese. Compreender latifúndio e campesinato
como par dialético potencializou a análise, possibilitando compreendê-los como elementos de
dentro do capitalismo e não como resquícios pseudo feudais. Para tanto, se fez necessário
compreender o território como uno, um território capitalista, que carrega em seu interior suas
próprias contradições, dentre elas, frações não-capitalistas. Ao mesmo tempo, o uso dos
territórios rurais como recorte de análise demonstrou como o Estado utiliza de maneira vaga do
conceito para se referir ao conjunto de municípios, que estão inseridos na lógica geral de
reprodução ampliada do capital e refletem suas contradições.
Valendo da dialética e seu materialismo histórico, dados secundários, fatos históricos e,
principalmente, os trabalhos de campo deram materialidade à pesquisa. As contradições do
desenvolvimento do capitalismo, manifestadas nos municípios do Parque das Emas (GO) e do
Bolsão (MS) revelam a trama complexa da relação dialética entre latifúndio e campesinato.
A reprodução do latifúndio passa, necessariamente, pelo desenvolvimento do
capitalismo rentista articulado em diferentes escalas com suporte do Estado. Relacionar o
Estado ao agronegócio e, consequentemente, ao latifúndio se fez necessário para demonstrar a
parcialidade de conjunto de ações classistas que criam o contexto político e jurídico para o
284

rentismo. Mas antes, foi preciso desconstruir o Estado como sujeito, apontando a correlação de
forças das classes sociais manifestadas pelos sujeitos que o compõe.
A importante contribuição de Fernandes (1976) indicou o caminho para compreender
que no Brasil a burguesia e o Estado brasileiro se originaram a partir de uma elite agrária. Nesse
sentido, não há imparcialidade nas ações Estado, e a pesquisa procurou apontar ações que
objetivaram legitimar a apropriação de terras devolutas ou sua posterior legalização
contribuindo na formação de latifúndios. Além disso, a presença latifundiária no Estado
brasileiro vai incidir diretamente na defesa da propriedade capitalista da terra e,
consequentemente, na criminalização de movimentos socioterritoriais e paralisação da política
de Reforma Agrária.
A partir das análises clássicas de Leal (1976) e de Martins (1994), sobre a origem de
uma burguesia latifundiária e o coronelismo no Brasil, foi possível compreender a formação da
política local dos estados de Goiás e Mato Grosso do Sul e as disputas entre elites agrárias para
alcançarem o poder e controle do Estado. Desta forma, famílias proprietárias de terras ou
ligadas diretamente ao agronegócio se perpetuaram na política brasileira a partir da correlação
de forças políticas e econômicas.
Os dados secundários do INCRA e TSE comprovaram a presença na atualidade de
políticos latifundiários ou seus representantes. Nas eleições gerais de 2018, foram eleitos
senadores, governadores e deputados que, segundo os dados, são proprietários de terra por todo
o país, principalmente em regiões com forte presença do agronegócio, como no Cerrado e no
MATOPIBA. A aliança política em torno da propriedade capitalista da terra ultrapassa as
delimitações partidárias, congregando diferentes siglas no que se reconhece como Bancada
Ruralista.
Na escala local, foi identificada a relação entre política e latifúndio. Primeiramente, na
contínua presença de famílias latifundiárias no Estado alternando-se entre prefeituras e governo
estadual. Por conseguinte, os dados do TSE, sobre as eleições de 2016, demonstraram que parte
dos prefeitos eleitos declaram profissões correlatas ao agronegócio, como agropecuarista,
agricultor entre outros. No aprofundamento da análise, as declarações feitas pelos candidatos
revelaram que considerável parte eram proprietários rurais.
Mais surpreendentes foram as informações sobre doações às campanhas nas eleições
gerais em 2014 e em 2016. Estes dados confirmaram o interesse de capitalistas/latifundiários
ligados a empresas do agronegócio territorializados no Parque das Emas (GO) e no Bolsão (MS)
na política estadual. Assim, foram identificadas doações de agroindústrias produtoras de açúcar
e etanol para sete políticos entre senadores, governadores e deputados, feitos no estado de
285

Goiás, enquanto em Mato Grosso do Sul foram 18 campanhas financiadas por agroindústrias
produtoras de celulose e papel e açúcar e etanol.
A estrutura política organicamente associada ao agronegócio e latifúndio representa um
dos principais entraves à recriação camponesa no Brasil. Logo, as poucas conquistas revertidas
em políticas públicas originaram-se por meio da luta direta do campesinato. Assim, indaga-se
se a partir da hegemonia latifundiária no Estado podem surgir políticas públicas efetivas e
emancipatória para os camponeses.
Do lado contrário, a formação e reprodução dos latifúndios no Brasil seguiram lógica
contrária ao desenvolvimento capitalista nos países centrais. A renda da terra é compreendida
como um elemento necessário à produção e reprodução ampliada do capital no Brasil e mundial.
Assim, o capitalismo rentista brasileiro uniu duas classes sociais distintas, capitalistas e
latifundiários em um único sujeito, colocando o latifúndio como fenômeno oriundo do próprio
capitalismo.
Desta forma, o desenvolvimento da agricultura capitalista não atuou no desaparecimento
dos latifúndios, pelo contrário, resultou em sua reprodução e, consequentemente, na
concentração fundiária. Por meio dos dados do IBGE e INCRA, foi demonstrado como o
latifúndio é característica marcante do campo brasileiro, existindo na atualidade imóveis rurais
com tamanhos próximos a um milhão de hectares. Portanto, há um processo constante de
concentração fundiária e reprodução dos latifúndios no Brasil.
Nesta perspectiva, as ações do Estado brasileiro, hegemonicamente controlado por
latifundiários e capitalistas, revelaram os interesses classistas em não coibir a existência de
imóveis com tamanhos exorbitantes e retirando do texto da legislação única definição de
latifúndio. A invisibilidade legislativa permite a plena consolidação destes imóveis e os protege
de qualquer política de democratização de acesso à terra.
Nesse sentido, o exercício de mapeamento dos imóveis rurais, por meio dos dados do
SIGEF, indicou a massiva presença de latifúndios por todo o país, especialmente nos estados
de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Amazonas e Bahia. Foi revelado ainda a existência de
imóveis com tamanho superior a 600 vezes o módulo fiscal de seus munícipios estabelecidos
pelo Estatuto da Terra para definir latifúndio por extensão e, consequentemente, área prioritária
para Reforma Agrária.
No interior da reprodução dos latifúndios nos territórios rurais estudados, foram
identificados capitalistas latifundiários, ou seja, sujeitos ligados a outros setores da economia,
mas encontraram na propriedade da terra a oportunidade de um lucro extraordinário, a renda da
terra. Capitalistas em busca de renda territorial, sojicultores, agroindústrias de cana de açúcar
286

e etanol territorializadas travam disputas internas pela ampliação do controle fundiário no


Parque das Emas (GO) e no Bolsão (MS), aumentando a dinâmica do mercado e elevando o
preço da terra.
A pesquisa também demonstrou como apropriação privada de terras devolutas foi a base
da formação e concentração da estrutura fundiária no Brasil e nas áreas estudadas. O desrespeito
às leis fundiárias vigentes somado à certeza de legitimação futura garantiu que famílias mineiras
e paulistas se apropriassem de terras devolutas nos estados de Goiás e do atual Mato Grosso do
Sul. Nesse processo, houve violência contra povos indígenas, quilombolas, posseiros e
camponeses que ocupavam as terras que formam os atuais municípios do Parque das Emas
(GO) e do Bolsão (MS).
As desconstruções das cadeias dominiais das fazendas Rio Paraíso, em Jataí (GO), e
Morro Vermelho, em Selvíria (MS), trouxeram materialidade à análise, demonstrando como
latifúndios se formaram na área estudada por meio da grilagem. No caso da Rio Paraíso, a
desapropriação para Reforma Agrária, como vitória da luta camponesa local,
contraditoriamente, concretizou a realização da renda da terra a partir de um latifúndio grilado.
A análise sobre a Morro Vermelho, além de indicar o “surgimento” a partir de inventários de
partilhas de bens sem nenhum lastro, revelou também que sua utilização pelo agronegócio
possibilita a produção e reprodução do capital sobre o latifúndio.
Constantes medidas do Estado latifundiário buscam regularização fundiária brasileira,
dentre elas, a adição de geotecnologias, como as ferramentas de georreferenciamento dos
imóveis. No entanto, como argumentado, as geotecnologias foram alienadas aos interesses
latifundiários utilizando até mesmo ferramentas ambientais, como o CAR, para validar a
apropriação indevida de terras devolutas. Assim, a grilagem é um processo permanente e
atual de apropriação terras devolutas e na formação de latifúndios no Brasil.
Dados do INCRA, em especial do SIGEF, foram reveladores quanto à insegurança
jurídica da propriedade capitalista da terra no Brasil. Os dados oficiais da autarquia responsável
pela gestão da estrutura fundiária brasileira, evidenciaram a grande quantidade de imóveis
registrados no sistema, mas que não apresentaram documento cartorial comprovando a
legitimidade dos mesmos. São 85 milhões de hectares sob suspeita de não possuírem registro
cartorial de propriedade e que poderiam ser utilizados para política de Reforma Agrária.
Enquanto a reprodução dos latifúndios e a avassaladora concentração fundiária são
características do campo, pequenas frações do território são disputadas por povos indígenas,
quilombolas, camponeses e trabalhadores. Nesse sentido, a pesquisa permeou a paralisação da
política de Reforma Agrária, principal meio de democratização de acesso à terra no país.
287

Todavia, é preciso compreender a Reforma Agrária para além de uma política redistributivista
de terras. Reforma Agrária deve ser considerada como uma política de classe de combate ao
capitalismo rentista desenvolvido no Brasil que consolidou hegemonicamente a força
econômica e política de proprietários de terras e capitalistas.
As forças latifundiárias hegemônicas no Estado promoveram a contra Reforma Agrária
a partir de medidas que bloquearam tal política pública, ao mesmo tempo que privilegiavam o
agronegócio com subsídios creditícios. Os governos do Partido dos Trabalhadores são
exemplos desta relação que, na tentativa de conciliar classes antagônicas (capitalistas
latifundiários e camponeses), beneficiaram o agronegócio e tentou amenizar a luta camponesa
por terra por meio de políticas de transferência de renda.
Os reduzidos números da Reforma Agrária, pelo não cumprimento sequer das metas,
como o II PNRA, refletem o atual contexto pessimista para os camponeses. O sucateamento do
INCRA, com a redução orçamentária, impossibilita seu pleno funcionamento bem como a
obtenção de terras para a Reforma Agrária. A desapropriação, como principal forma de
realização desta política, enfrenta longas batalhas judiciais, são 321 mil hectares em disputas
que atravessam décadas aguardando o seu desfecho final.
Pós-golpe democrático em 2016 contra Dilma Rousseff (PT), a política de Reforma
Agrária foi paralisada, sobretudo no governo de Jair Bolsonaro (sem partido) havendo assim
uma não Reforma Agraria.
Por outro lado, a dinâmica do mercado de terras, sobretudo em áreas de pleno
desenvolvimento do agronegócio, como no Cerrado, o elevado preço de terras inviabiliza a
compra para a Reforma Agrária. Contraditoriamente, a Reforma Agrária é uma grande
oportunidade para latifundiários realizarem a renda, vendendo para o Estado terras
menos produtivas.
A paralisação e o bloqueio da Reforma Agrária atualmente, como principal forma de
acesso à terra no Brasil, não impendem a conquista de pequenas frações do território às margens
dos latifúndios como constatado nas áreas estudadas. O campesinato, enquanto classe social,
encontra, por meio da luta ou estratégias não convencionais, formas de acessar à terra, como
nas faixas comuns das rodovias ou em áreas abandonadas pelo agronegócio.
Por outro lado, valendo-se de políticas públicas, as brechas, na contradição, os
camponeses encontram estratégicas de reprodução social. Uma delas vale-se do perfil etário
encontrado nos assentamentos estudados: o campesinato constituído por população idosa e de
baixa renda. Estas características são determinantes nas estratégias adotadas pelo campesinato
para sua recriação. Constatou-se, primeiramente, o uso criativo de políticas previdenciárias,
288

principalmente a aposentadoria como forma de garantir renda mínima no lote. Destacou-se,


também, a política pública do programa de incentivo à produção do biodiesel (PNPB), como
estratégia contraditória por inserir os camponeses na lógica produtiva do agronegócio, mas
garantindo-lhes maior renda.
Além de políticas e programas, os camponeses garantem acesso a recursos,
maquinários e projetos por meio de uma relação contraditória com políticos
latifundiários/capitalistas. A ausência do Estado com políticas efetivas e emancipatórias,
permite o clientelismo entre camponeses e políticos proprietários fundiários ou empresários que
enviam recursos por meio de emendas parlamentares. Assim, em busca da manutenção do poder
no Estado, latifundiários auxiliam a recriação camponesa.
A complexidade e a contradição aumentam com as relações diretas entre assentados
e empresas do agronegócio no Bolsão (MS), por meio de projetos e outras ações empresariais,
como tentativas diretas em amenizar quaisquer conflitos com os camponeses ou alcançarem as
exigências e contrapartidas cobradas pelo BNDES e/ou pelos mercados importadores. Essa
tutela ocupa o espaço deixado pelo Estado, fazendo com que o agronegócio
contraditoriamente contribua para a recriação camponesa no Bolsão (MS). Nessa
perspectiva, as entrevistas revelaram a consciência dos camponeses sobre esta relação
contraditória, descartando passividade, pelo contrário, a relação camponesa com as empresas
do agronegócio é uma estratégia de recriação.
A consciência sobre a importância de ser/estar no Estado, fez com que camponeses
tentassem alcançar cargos públicos dentro da política no Parque das Emas (GO) e Bolsão (MS).
A eleição de vereadores oriundos da Reforma Agrária aponta a necessidade do campesinato de
uma representação política verdadeira para além do clientelismo. Na mesma perspectiva, a
organização das mulheres camponesas no Bolsão (MS) também confirma o interesse do
campesinato em ocupar espaços públicos, em um caminho ainda não visto, levando a luta
pela terra por dentro do Estado latifundiário.
Por fim, conclui-se que não é possível determinar o desaparecimento do campesinato
como tão pouco a inexistência de latifúndios, pois ambos são frutos do desenvolvimento
desigual contraditório e combinado do capitalismo.
289

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