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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

PRÓ- REITORIA DE PÓS- GRADUAÇÃO E PESQUISA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

SHAUANE ITAINHARA FREIRE NUNES

A mediação natureza/sociedade e as lógicas espaciais e


territoriais da luta pela água sob a dimensão dos
pressupostos teóricos lukacsianos da ontologia do trabalho

SÃO CRISTÓVÃO
FEVEREIRO/2018
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
PRÓ- REITORIA DE PÓS- GRADUAÇÃO E PESQUISA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

SHAUANE ITAINHARA FREIRE NUNES

A mediação natureza/sociedade e as lógicas espaciais e


territoriais da luta pela água sob a dimensão dos
pressupostos teóricos lukacsianos da ontologia do trabalho

SÃO CRISTÓVÃO
FEVEREIRO/2018
Shauane Itainhara Freire Nunes

A mediação natureza/sociedade e as lógicas espaciais e territoriais


da luta pela água sob a dimensão dos pressupostos teóricos
lukacsianos da ontologia do trabalho

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Geografia da Universidade Federal de Sergipe, como requisito
parcial para obtenção do título de Doutora em Geografia - (Área
de Concentração: organização e dinâmica do espaço agrário e
regional – Linha de Pesquisa: Produção e Organização do
Espaço Agrário). Prof.ª Drª. Alexandrina Luz Conceição.

SÃO CRISTÓVÃO
FEVEREIRO/2018
Shauane Itainhara Freire Nunes

A mediação natureza/sociedade e as lógicas espaciais e territoriais


da luta pela água sob a dimensão dos pressupostos teóricos
lukacsianos da ontologia do trabalho

Banca Examinadora

_________________________________________________
Orientadora Profª Dra. Alexandrina Luz Conceição (UFS)

____________________________________________________
Examinador (a) Prof.ª. Dra. Ana Consuelo Fontenele (UFS)

___________________________________________________
Examinador Prof. Dr. Cristiano Wellington Noberto Ramalho (UFPE)

___________________________________________________
Examinador (a) Prof.ª. Dra. Doralice Sátiro Maia (UFPB)

_________________________________________________
Examinador (a) Prof.ª. Dra. Marleide Maria Santos Sergio
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

Nunes, Shauane Itainhara Freire


N972m A mediação natureza/sociedade e as lógicas espaciais e
territoriais da luta pela água sob a dimensão dos pressupostos
teóricos lukacsianos da ontologia do trabalho / Shauane Itainhara
Freire Nunes ; orientadora Alexandrina Luz Conceição. – São
Cristóvão, 2018.
254 f. : il.

Tese (doutorado em Geografia) – Universidade Federal de


Sergipe, 2018.

1. Geografia humana. 2. Trabalho. 3. Pesca artesanal – Sergipe.


4. Política pesqueira – Sergipe. 5. Direito à água. 6. Comunidades. I.
Conceição, Alexandrina Luz, orient. II. Título.

CDU 911.3:639.2(813.7)
Dedico esta tese,
Aos pescadores e pescadoras artesanais de Sergipe, que
dividiram suas vivências e deram sentido a essa pesquisa
possibilitando-nos acreditar na coletividade, na cooperação
como caminho para o devir.
A Alexandrina Luz Conceição, por ser minha referência e
inspiração.
Aos meus pais por todo amor e dedicação.
Aos amigos que partiram, mas que permanecem, que
contribuíram com minha formação, me fortaleceram na luta por
uma sociedade mais humana, e aos quais os sorrisos nunca vou
esquecer: Israel e Romina, presentes!
AGRADECIMENTOS

Agradeço a Alexandrina Luz, professora, orientadora, companheira e amiga. Desde a


graduação tem sido minha referência na geografia e meu grande incentivo para estar
na pós-graduação desde o mestrado. Me ensina na AGB, no GPECT, e na militância
que está além da academia. Sua sensibilidade, generosidade e capacidade crítica me
inspira todos os dias.

Agradeço a Universidade Federal de Sergipe e aos professores e funcionários do


Programa de Pós-Graduação em Geografia. A CAPES pela bolsa durante o doutorado.

As professoras da banca de qualificação, Ana Consuelo e Ester Ferreira pelas


contribuições.

Aos professores que compõe a banca final de doutorado pela disponibilidade em


debater e contribuir com a tese, Ana Consuelo, Doralice Maia, Cristiano Ramalho e
Marleide Sérgio.

Ao GPECT serei eternamente grata por poder vivenciar à academia a partir de um olhar
crítico e da ação crítica. Pelas amizades fortalecidas e por partilhar uma geografia e
uma universidade que podem ser transformadoras mesmo nos limites. No dia a dia,
Danilo, Danilo C, Eliany, Júnior, Maria José, Lucas Lira, Marcelo, Márcio, Michelle,
Morgana, Ricardo e Vanessa. A todos que contribuem e contribuíram com o
fortalecimento do grupo, Jordana, Ronilson, Leandro, Guto, Fabrícia, Nacelice, Karla,
Áurea, entre tantos outros, meu muito obrigada.

A Associação dos Geógrafos Brasileiros e a todos que constroem o seu movimento, sou
e serei sempre agbeana.

Ao grupo Spartakus pelos momentos de crescimento e amizade no compromisso com


a crítica radical.

Aos parceiros desta jordana: Danilo pela contribuição com debates e o olhar atento aos
meus textos, além de ser meu grande parceiro em todas as situações. Jordana minha
amiga pelo apoio e cuidado. A Márcio pelos mapas e pelo carinho que só um grande
amigo nos oferece, a Vanessa e Marcelo que completam o grupo dos destrambelhados
pela amizade e pelo companheirismo. Eliany, Michelle, Ricardo, Júnior e Maria, pela
força e amizade dedicada.
A Yure Silva, pelas contribuições, paciência, generosidade, apoio, amizade e amor que
é mútuo. A duas amizades especiais que a geografia me proporcionou e que me
emocionam: Jorge Ferreira, entre debates, apoio e carinho e Cláudio Mendonça meu
maranhense forte e apaixonante.

Aos amigos geógrafos de João Pessoa, que muito contribuíram na minha formação,
Carlos Augusto, Doralice, Mara, Rafa, Vitor, Nirvana, Áurea, Luana, Lairton, Mariana,
Maria Salomé e Yure.

A Leandro Pel por ter me proporcionado um importante momento de aprendizado para


essa pesquisa. A Simone amiga geógrafa e curiosa, pelo carinho e pelo ABSTRACT.

Ao Movimento de Pescadores e Pescadoras, ao Conselho Pastoral dos Pescadores e


ao Movimento de Marisqueiras de Sergipe, por permitir que a Universidade se aproxime
através de seus pesquisadores numa troca que tem sido mais rica à academia, mas que
permite que avancemos juntos.

A Tânia, Elizana e Aroldo pela paciência e amizade. A Gandhi pelo apoio e pelo amor
compartilhado. A Telma pela amizade e torcida.

A Naiara e Doucimar pelos cafés e incentivo e a Naiane pelas correções ágeis no


português.

Ao grupo de estudos Tornar-se Negro e Negra, pelo aprendizado e pelas provocações


ainda imensuráveis no que sou e posso me tornar. Clarissa, Marcelino, Michele, Danilo
K, e a todos que estão na luta.

A meus pais Aloizio e Carminha que acreditaram nas minhas escolhas e estão sempre
ao meu lado com todo apoio e amor. As sobrinhas Júlia e Sofia pelos abraços que
acalmam. A Luquinha por me acompanhar nas pesquisas. A Isau por ter me mostrado
o caminho do Movimento na Geografia. A Shauna e demais familiares pela torcida.
RESUMO

A presente Tese de doutorado parte do pressuposto de que a mediação


natureza/sociedade – condição de existência ontológica do trabalho e de
produção de vida –, comum dos povos das terras e das águas, é subsumida por
relações capitalistas de trabalho e de produção, alterando territórios e
territorialidade. Nessa direção, analisamos a pesca-artesanal a partir da
concepção lukacsiana da ontologia e do trabalho como mediador da relação
sociedade/natureza, que tem o caráter de transição do ser biológico ao ser
social. Dessa maneira, dá sentido ao ser social e as suas sociabilidades. Com a
reprodução do capital voltada à natureza, a terra e a água são cada vez mais
apropriadas na condição de meio universal de produção sobreposto ao valor de
uso. Realizamos nossa pesquisa com o estudo da pesca-artesanal no estado de
Sergipe, nas suas lógicas espaciais e territoriais, diante da territorialização do
capital na forma do agrohidronegócio, no consumo da natureza enquanto
paisagem a ser vendida, para a especulação imobiliária, turismo, expropriação
da propriedade da terra e da água. A consolidação do avanço do sistema do
capital tem no Estado a propagação do discurso da produtividade e do controle
da natureza, na forma de investimentos e políticas, tendo a aquicultura como
solução na cadeia produtiva de pescados para garantir o país como grande
produtor mundial. Os rebatimentos para a pesca-artesanal em Sergipe são
verificados na diminuição dos pescados, nos limites impostos no acesso à água
e aos meios de vida, via políticas a nível local de incentivos à carcinicultura e à
piscicultura as quais ignoram o modo de vida das comunidades pesqueiras,
sujeitando as forças da natureza como forma de mercadoria, com o objetivo de
acumulação do capital, sendo o mercado condição ontológica para a alienação.
Concluímos na nossa Tese que a socialização da natureza como condição de
vida dos homens pode ser determinada pela relação de dominação, ou pela
produção da vida social a partir de necessidades que não representem a
destruição da condição humana. É na compreensão da relação necessidade,
qualidade e uso, em contraposição ao círculo vicioso do sistema reificado do
capital, que transforma os homens em coisas, que se garante a crescente
ampliação da riqueza de produção. Resistir significa reconstituir perspectivas
que desloquem o metabolismo do capital para um metabolismo além do capital
e, consequentemente, no devir da condição humana.

Palavras-chave: trabalho, sociedade/natureza, pesca-artesanal, comunidades


tradicionais, modo de vida, cooperação, propriedade coletiva, resistência.
ABSTRACT

The mediation between nature / society and the spatial and territorial logics of
water struggles in the theoretical Lukacsian work ontology concept.

The present PhD thesis assumes that the mediation between nature / society -
the ontological labor existence condition and life production - common to the
traditional people from the lands and water land environment, it is absorbed by
labor capitalist relations and human nature needs, then changing territories and
territoriality. In this way, we analyze the artisanal fishing from lukacsian ontology
conception and labor as mediator between society / nature relations that has the
transition character from biological to social being. In this way, it gives meaning
to social being and its sociability, once, there is a capital growth in natural
environments like land and water, it is increasingly appropriate as a universal
means of production superimposed on use of value. This research conducted
through the study of artisanal fishing in the state of Sergipe, in its spatial and
territorial logics, before the territorialization of capital in agro-hydro business form,
using nature as a landscape to be sold for real estate speculation, tourism,
expropriation of property of land and water. The advancement consolidation of
capital system in political entities has the propagation of the discourse of
productivity and natural environment control, as investments form and policies.
They use aquaculture as a solution for fish production chain to guarantee that the
country as a major world producer. The consequences for artisanal fishing in
Sergipe can be noticed in its increased reduction by the imposed restrain on
access to water and livelihoods, it has been done through local policies of
incentives to shrimp farming and fish farming that ignores the fishing communities
life style, Pushing nature as a form of commodity, accumulation of capital. A
market that is an ontological condition for alienation. We conclude in this thesis
that the socialization of nature as a condition of human life can be determined by
the relation of domination, or by the production of social life from needs that do
not represent destruction of the human condition. Understanding relation need,
quality and use, as an opposition to the vicious circle of the reified capital system,
which transforms men into things, and ensures the increasing expansion of
production wealth. In order to resist to it, we must reconstitute perspectives that
shift the metabolism of capital into a metabolism beyond capital and,
consequently, reestablish essential needs for human condition.

Keywords: work, society / nature, artisanal fishing, traditional communities, life


style, cooperation, collective property, resistance.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Lista de Mapas

MAPA 1 SERGIPE LOCALIDADES VISITADAS 2015-


2018................................................................................................................ 25
MAPA 2 BACIAS HIDROGRÁFICAS DE SERGIPE.......................................67
MAPA 3: PESCA-ARTESANAL EM SERGIPE 2016......................................70
MAPA 4: MOVIMENTO DAS MARISQUEIRAS DE SERGIPE ABRANGÊNCIA
TERRITORIAL 2018.....................................................................................195
LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1: ESTADOS BRASILEIROS PRODUTORES DE CAMARÃO


MARINHO E TILÁPIA.........................................................................................41
FIGURA 2: LOGOMARCA DO PROJETO DOM TÁVORA.................................58
FIGURA 3: TERMINAL PESQUEIRO DE SERGIPE..........................................73
FIGURA 4: REPORTAGEM SOBRE VAZAMENTO DA PETROBRAS..............78
FIGURA 5: REPORTAGEM SOBRE POLUIÇÃO DE RIOS EM SERGIPE........79
FIGURA 6: REPORTAGEM SOBRE ESTADO CRÍTICO DO DO RIO SÃO
FRANCISCO......................................................................................................79
FIGURA 7: REPORTAGEM SOBRE O PROJETO DOM TÁVORA EM
SERGIPE.........................................................................................................183
FIGURA 8: CAMPANHA EM DEFESA DO TERRITÓRIO PESQUEIRO..........198
FIGURA 9: 1° ANUÁRIO DE PESCA E AQUICULTURA 2014.........................231
FIGURA 10: 1° ANUÁRIO DE PESCA E AQUICULTURA 2014/2...................232
FIGURA 11: FIGURA 10: NOTICIA SOBRE PARCERIA DA ONU E PROJETO
DOM TÁVORA/SE...........................................................................................233
FIGURA 12: NOTÍCIA SOBRE MEDIDAS COMPENSATÓRIAS E
MITIGATÓRIAS DA PETROBRAS/SE.............................................................237
LISTA DE GRÁFICOS

GRÁFICO 1: PRODUÇÃO TOTAL DE PESCADO ESTIMADO EM SERGIPE


2007...................................................................................................................43
GRÁFICO 2: PRODUÇÃO TOTAL DE PESCADO ESTIMADO EM SERGIPE
2011...................................................................................................................43
GRÁFICO 3: PRODUÇÃO DE PESCADO ESTIMADO EM SERGIPE...............44
LISTA DE QUADROS

QUADRO 1: TOTAL DE PESCADORES PROFISSIONAIS ARTESANAIS POR


ANO DE INSCRIÇÃO EM SERGIPE..................................................................69
QUADRO 2: CONFLITOS PESCA-ARTESANAL EM SERGIPE........................83
LISTA DE FOTOS

FOTO 1: CONSTRUÇÃO DO TERMINAL PESQUEIRO DE SERGIPE.............73


FOTO 2: PESCADORES DO BAIRRO INDUSTRIAL E DE PIRAMBU...............74
FOTO 3: ARATU- POVOADO PORTO DO MATO/ESTÂNCIA........................166
FOTO 4: REUNIÃO DA ASSOCIAÇÃO DAS PESCADORAS E MARISQUEIRAS
DO POVOADO PORTO DO MATO..................................................................167
FOTO 5: PESCADOR ARTESANAL DE PORTO DO MATO...........................169
FOTO 6: BARRACA PARA TRATAR E VENDER PEIXE NA ORLA DO BAIRRO
INDUSTRIAL....................................................................................................171
FOTO 7: PESCADORES DO BAIRRO INDUSTRIAL.......................................172
FOTO 8: BARCOS DE ALTO MAR/PIRAMBU.................................................173
FOTO 9: BARCOS ANCORADOS NO RIO JAPARATUBA..............................174
FOTO 10: BARCO COM ESTRUTURA FRIGORÍFICA PARA CONSERVAÇÃO
DOS PESCADOS............................................................................................174
FOTO 11: CAMARÕES DE ALTO MAR/PIRAMBU..........................................175
FOTO 12: COMUNIDADE QUILOMBOLA E PESQUEIRA DE RESINA...........179
FOTO 13: COMUNIDADE QUILOMBOLA E PESQUEIRA DE RESINA 2........180
FOTO 14: COOPERATIVA, ASSOCIAÇÃO E COLÔNIA DE PESCA DE
PIRAMBU.........................................................................................................187
FOTO 15: DESEMBARQUE DE CAMARÃO DE ALTO-MAR/PIRAMBU.........188
FOTO 16: CATADO DE CAMARÃO/PIRAMBU...............................................190
FOTO 17: REDE DE PESCA DE PESCADORA ARTESANAL DE PORTO DO
MATO...............................................................................................................191
FOTO 18: BANDEIRA DO MMS- POVOADO MUCULANDUBA......................193
FOTO 19: ARTESANATO CONFECCIONADO POR MARISQUEIRA DO
MMS/POVOADO MUCULANDUBA.................................................................193
FOTO 20: ATIVIDADE DE FORMAÇÃO DO MPP EM RESINA-BREJO
GRANDE/SE....................................................................................................196
FOTO 21: ATIVIDADE DE FORMAÇÃO DO MPP EM PROPRIÁ/SE...............196
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABCC- Associação Brasileira de Criadores de Camarão


ADEMA- Administração Estadual do Meio Ambiente
ASPEPIPO- Associação dos Pescadores de Pirambu
BM – Banco Mundial
CELSF- Complexo Estuarino Lagunar do São Francisco
CMDS- Conselho Municipal de Desenvolvimento Sustentável
CODEVASF- Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco
CONDEPI- Conselho de Desenvolvimento Pesqueiro de Pirambu
CPP- Conselho Pastoral dos Pescadores
EMBRAPA- Empresa Brasileira de Estudos Agrícolas
FAO- Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura
FAPESE- Fundação de Apoio à Pesquisa e Extensão em Sergipe
FIDA- Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola
FMI- Fundo Monetário Internacional
FPI- Fiscalização Integrada do São Francisco
IBAMA- Instituto Brasileiro de Meio Ambiente
IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
MDA- Ministério do Desenvolvimento Agrário
MMS- Movimento de Marisqueiras de Sergipe
MPP- Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais
PEAC- Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras
PETROBRAS- Petróleo Brasileiro S/A
PRONAF- Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
RGP- Registro Geral de Pesca
SEAGRI- Secretaria de Estado da Agricultura, Desenvolvimento Agrário e da
Pesca
SEAP- Secretaria Especial de Agricultura e Pesca
SFA-SE- Superintendência Federal de Agricultura, Pecuária e Abastecimento
em Sergipe
SUDEPE- Superintendência de Desenvolvimento da Pesca
UFS- Universidade Federal de Sergipe
SUMÁRIO

Lista de Mapa.........................................................................................................
Lista de Figura........................................................................................................
Lista de Gráfico......................................................................................................
Lista de Quadro......................................................................................................
Lista de Foto...........................................................................................................

Introdução........................................................................................................17

I Capítulo- Lógicas espaciais e Territoriais da Pesca-artesanal em


Sergipe..............................................................................................................28

1.1-A pesca-artesanal........................................................................................28

1.2- Da pesca-artesanal à política das cercas em Sergipe.................................34

1.2.1- As políticas públicas no setor pesqueiro..................................................49


1.2.2- As implicações das políticas de Estado sobre a pesca-
artesanal............................................................................................................62
1.3-Do território do capital a Permanência da Pesca-Artesanal em
Sergipe...............................................................................................................66

II- Capítulo- A pesca-artesanal na mediação da tríade


sociedade/trabalho/natureza: construindo resistências..............................87
2.1-A relação sociedade/natureza na pesca-artesanal.......................................88
2.2 A mediação sociedade/natureza a partir da ontologia do
trabalho............................................................................................................107
2.3 O ser social e o processo de reificação.......................................................116

III Capítulo - A singularidade do pescador-artesanal...................................136


3.1 – Da acumulação primitiva às comunidades tradicionais............................136
3.2- Costumes, cultura e o papel da memória das comunidades pobres
tradicionais ......................................................................................................146
3.3 – O pescador artesanal em Sergipe: permanência e resistência................160
3.4- A categoria pescador artesanal - Resistência além do trabalho em
Sergipe.............................................................................................................184
IV- Capítulo - Contradição e Dialética no processo de apropriação da
natureza: a pesca-artesanal frente à destrutividade do capital..................200
4.1- Natureza e a produção do espaço na pesca..............................................214
4.2 – Natureza Atormentada: as contradições na relação
sociedade/natureza..........................................................................................226

Considerações
Finais...............................................................................................................241
Referências......................................................................................................247
.
INTRODUÇÃO

Ao construirmos nosso Projeto de Pesquisa, partimos da hipótese de


tese que, no Estado de Sergipe, os territórios da pesca estão sendo apropriados
pelo capital que objetiva alterar as relações de trabalho e de produção. Desta
forma, a mediação natureza/sociedade – condição de existência ontológica do
trabalho e de produção de vida, comum dos povos das terras e das águas – é
subsumida por relações capitalistas de trabalho e de produção, alterando
territórios e territorialidade na luta de resistência no limite estrutural das
determinações do capital.
Nossa leitura estava alicerçada no entendimento de que:
A reestruturação produtiva altera as relações de trabalho para a expansão
e acumulação do capital. Nesse processo, a relação sociedade/natureza se
altera na nova divisão social e territorial do trabalho na produção e reprodução
do espaço e, consequentemente, nos territórios da pesca-artesanal;
A pesca-artesanal é responsável por grande parte de quantidade de
pescados consumidos no país, e mesmo assim, continua sendo uma atividade
não priorizada dentro das políticas de incentivo à atividade pesqueira, em
detrimento da aquicultura, agronegócio, hidronegócio e privatização das águas.
A relação sociedade/natureza que se estabelece em territórios
camponeses e de comunidades de pescadores artesanais possibilita a
permanência e a resistência desses trabalhadores, construindo sociabilidades
outras que não a do capital, a partir do trabalho enquanto categoria ontológica e
central nas relações sociais.
A partir desses pressupostos, foi nosso Objetivo Geral: analisar a luta de
permanência e resistência nos territórios dos pescadores artesanais contra a
expansão/apropriação do capital que busca desterritorializar e subordinar as
determinações estruturais do capital, alterando as relações de trabalho e,
consequentemente, a condição ontológica dessas comunidades autônomas que
vivem do trabalho como produção de riqueza, tendo na mediação
natureza/sociedade a conformação do seu espaço vivido, percebido e
concebido.

17
A presente Tese está sustentada na reflexão dialética do conhecimento,
no que Carvalho (2008) afirma ser a totalidade a categoria fundamental de
análise, significando a realidade objetiva em suas correlações concretas (p.51)
e na análise das contradições mediante o materialismo histórico, que representa,
de acordo com Lukács (2015), o primeiro método:

[...] a desvendar a origem real e, por isso mesmo, a essência


concreta das categorias de nosso ser de nossa consciência, de
explicitar como produtos do desenvolvimento histórico-social as
formas de pensamento tomadas em sua imediaticidade como
naturais e eternas (p.120).

A metodologia proposta está alicerçada no objetivo de analisar as


contradições que permeiam a relação sociedade/natureza a partir de territórios
onde o trabalho aparece como categoria ontológica e central nas relações
sociais, produzindo espaços de resistência, não só ao modo de vida imposto pelo
capital, mas aos processos em que se configura. É de fundamental importância
a compreensão de como a atividade pesqueira artesanal permanece, mesmo
diante das imposições de reprodução do capital nos espaços de sua prática, da
prática de vida dos pescadores artesanais. Entende-se a pesca-artesanal e a
agricultura camponesa como atividades produzidas socialmente e
historicamente as quais resistem em sua manutenção a vários modos de
produção, já que se estabelece na relação direta com a natureza - condição
necessária à reprodução da vida humana.
Compreendemos que a análise das contradições históricas produzidas
pelo capital se dá no espaço de forma desigual e combinada, fruto das relações
do modo capitalista de produção, que estabelece relações sociais desiguais, de
classe, e que tem no Estado a materialização das desigualdades. Nesse
contexto, afirma-se que o Estado age através de projetos e políticas públicas
direcionadas à pesca, interferindo ou mesmo se ausentado no que se refere à
atividade em sua forma artesanal.
Para dar conta de tais reflexões, debruçamos nos estudos da obra de Karl
MARX e Gyorgy LUKÁCS, base da nossa análise teórica, na especificidade da
reflexão da ontologia do ser social e do capital. A discussão em torno da
ontologia do trabalho, presente nas obras de Lukács, foi núcleo das nossas
leituras/reflexões, objetivando compreender de que forma a ontologia do ser

18
social se faz presente nas sociabilidades desdobradas sob o julgo do capital,
entendendo que:

Somente o trabalho tem na sua essência ontológica um claro


caráter de transição: ele é essencialmente, uma inter-relação
entre homem (sociedade) e natureza, tanto inorgânica
(ferramenta, matéria prima, objeto do trabalho etc.) como
orgânica (Lukács, 2013, p. 44).

Reafirmamos que a leitura da obra de G. Lukács: Prolegômenos para


uma ontologia do ser social e Para um ontologia do ser social é fundamental por
privilegiar a categoria trabalho como essência das relações sociais, que se
originam justamente no caráter social do trabalho e permite refletir sobre a
pesca- artesanal. É na categoria trabalho que se materializa a relação direta com
a natureza inorgânica e orgânica e, portanto, conserva uma essência ontológica
em contraposição ao trabalho mercadoria.
As reflexões sobre a relação da unidade e contradições do tripé Capital-
Trabalho-Estado foram possibilitadas nas leituras de Karl MARX; István
MÉSZÀROS; Ricardo ANTUNES; Sérgio LESSA, Ivo TONET. As discussões
que envolvem o conceito de espacialização, comunidade, territorialização,
apropriações da natureza a partir do entendimento das categorias analíticas
geográficas foram aprofundadas em Henri LÉFÈBVRE, David HARVEY, Neil
SMITH, Alexandrina L. CONCEIÇÃO, Ana FANI, Gilson DANTAS, Merleau-
PONTY, Karl MARX e Friedrich ENGELS.
No debate sobre comunidades tradicionais, modo de vida, memória à
categoria singularidade na dimensão da totalidade das relações sociais de vida
das comunidades pesqueiras artesanais, tiveram como aporte as leituras de
Rosa LUXEMBRUGO, E. P. THOMPSON, Éclea BOSI, entre outros.
O desenvolvimento desigual; a relação Capital e Trabalho; e o
agrohidronegócio foram subsidiados nos textos de Alexandrina Luz
CONCEIÇÃO e nas diversas dissertações de mestrado e teses de doutorado,
tendo destaque as pesquisas desenvolvidas no âmbito do Grupo de Pesquisa
Estado, Capital, Trabalho e as políticas de reordenamento territorial/GPECT.
No que remete à compreensão da pesca-artesanal enquanto atividade
que permanece e resiste, indo de encontro ao modo de ser universalizante do

19
capital, e suas especificidades, autores como Carlos DIEGUES, Cristiano
RAMALHO, Eduardo CARDOSO e Simone MALDONADO, Catia da SILVA
fazem-se presentes nas nossas reflexões.
Temos clareza que para verificarmos as possibilidades de permanência e
resistência no lugar, na leitura ontológica do trabalho, é fundamental o
entendimento da narrativa dos usos verbais dos tempos dos sujeitos que narram,
dando-lhes o lugar dos narradores e colocando-me na condição de ouvinte para
identificar e descrever o conteúdo e sentidos das suas falas do ritmo das suas
percepções do sentido da vida, do sentido do tempo, do tempo do trabalho, do
lazer, do sentido do dinheiro, buscando pontuar as contradições do desejo e do
real.
Os sujeitos sociais aos quais nos reportamos têm, no intercâmbio com a
natureza, a constituição do seu modo de vida. A transformação da natureza pelo
trabalho, o ato de pescar como reprodução da vida social, passa por relações de
cooperação à medida que a apropriação das condições naturais para o exercício
da atividade não é mediada pela propriedade individual. Para Marx e Engels
(2007), a natureza como instrumentos de produção naturais pressupõe os
homens subsumidos à natureza. Dessa forma, o trabalho apresenta-se como
conhecimento e uso da natureza a partir de relações com base na coletividade.
A relação sociedade/natureza, nesse sentido, constitui-se unidade, sendo as
necessidades biológicas do ser social satisfeitas, ao mesmo tempo que, através
do modo de vida, constrói- se a identidade pelo trabalho.
No sociometabolismo do capital, a ordem de sua reprodução se dá, como
aponta Mészáros (2002), doravante sua incontrolabilidade, de forma que o uso
da natureza é mediado pela necessidade do valor de troca. A condição de
estranhamento da natureza e de si mesmo se estabelece ao passo que as
condições da existência humana são sujeitadas à produção da mercadoria como
indispensáveis à vida social. Nesse âmbito, a permanência de modos de vida de
comunidades pesqueiras representam resistência ao capital, na condição do não
estranhamento da natureza e da essência ontológica do trabalho.
Nossa Tese sustenta-se na concepção de trabalho de George Lukács.
Para o referente autor, o intercâmbio homem/natureza ocorre pela mediação do
trabalho que representa uma determinação ontológica e dá sentido ao ser social.
Essa determinação ontológica se dá no entendimento de que “Somente o

20
trabalho tem como sua essência ontológica, um claro caráter intermediário: ele
é essencialmente uma inter-relação entre homem (sociedade) e natureza, tanto
inorgânica (utensílios, matéria-prima, objeto de trabalho) como orgânica”
(Lukács, 1981, p.3).

Para Lukács (2012), o trabalho exerce uma dupla transformação, no


próprio ser que trabalha e na natureza exterior, o que propicia o desenvolver de
potencialidades latentes, nesse processo que pressupõe o ser da natureza
orgânica e inorgânica, de forma que não é possível conceber o ser social sem a
natureza (p.286). Essa práxis social, que se manifesta na condicionalidade do
natural, o salto, representa o pôr teleológico enquanto processo de consciência
“Desde o início, portanto, a consciência já é um produto social e continuará
sendo enquanto existirem homens” (MARX E ENGELS, 2007, p.35). A função
prático-social de determinadas formas de consciência no plano ontológico geral,
falsas ou verdadeiras, conforme Lukács, vai ter grande importância na obra de
Marx. Nesse caminho, o que determina as mediações alienantes ou as
mediações que consideram as necessidades humanas é a forma de intercâmbio
com a natureza.
O pescador artesanal na relação direta com a natureza, que exige na
prática da sua atividade o respeito aos ciclos e tempos da natureza, rompe com
a lógica de controle e dominação que constituem mediações que alienam.
As nossas pesquisas a campo nos permitiu constatar que a concretude
do modo de vida de comunidades tradicionais pesqueiras em Sergipe move-se
pela prática na coletividade, tendo o trabalho em sua essência ontológica na
mediação natureza/trabalho, como construtor de outras sociabilidades que não
a do capital. De tal modo, o valor de uso e a coletividade posta nas relações
familiares e de vizinhança permanecem como possibilidade do não
assalariamento, no entendimento de que a natureza não é algo fora de suas
vidas e sim lugar de vida, e faz com que esses trabalhadores e trabalhadoras
resistam cotidianamente vivendo da pesca frente a todas as dificuldades
impostas, nas áreas litorâneas e estuarinas.
A pesca-artesanal, atividade extrativista, depende do acesso à terra e à
água. Frente a isso, viver da pesca em sua forma artesanal, cuja capacidade de
captura dos pescados é de baixo poder predatório, apresenta-se como tarefa

21
difícil diante de toda pressão que esses ambientes estão sendo submetidos pelo
capital. Entre estas: a valorização do uso do solo, mediante processos de
expansão imobiliária e do turismo, em que a natureza passa a ser vista como
mercadoria e, consequentemente, fonte de lucro, especificamente em áreas
consideradas economicamente inexpressíveis, onde os bens naturais ainda
apresentam-se abundantes.

O que é abundante e o que passa a ser raro se redefinem sob a


lógica da acumulação capitalista enquanto necessidade de
reprodução do capital. Deixando de ser um bem livre disponível
a todos, as desigualdades sociais são reforçadas, pois passa a
ser regido por leis de propriedade. Quanto mais raro um bem, e
mais demandado for, maior o seu valor de troca, assim mais
diferenciada será a apropriação deste bem (SANTANA, 2001,
180).

O agronegócio via a intensificação da monocultura apropria-se das áreas


de mangue, destruindo e expulsando os pescadores de seus territórios de vida.
Soma-se a essas questões, a política energética de construção de barragens e
hidroelétricas, que desapropriam comunidades e transformam todo o curso e
reprodução natural das espécies de água doce. Por outro lado, as políticas
públicas direcionadas à atividade pesqueira artesanal no estado de Sergipe não
se fazem eficientes nem suficientes para a garantia da permanência das
comunidades (tradicionais), já que os espaços/ territórios – dos pescadores –
são de interesse do capital na forma de uso do recurso água, como energia, ou
das áreas circundantes, como áreas de especulação imobiliária e turística. Além
do que, a prioridade dos investimentos públicos direciona-se para a privatização
das águas, leia-se hidronegócio, aquicultura.
A atividade pesqueira artesanal produz mais da metade dos recursos
pesqueiros do país, embora o capital, sob a mediação do Estado, aproprie-se
desses recursos, direcionando para a aquicultura, ou seja, para a criação de
pescados que tem como objetivo atender as necessidades de alta produção para
o mercado. A apropriação e os modos de uso tendem a se subordinar cada vez
mais ao sistema de circulação. A circulação de valor torna-se dependente dos
produtos das comunidades que vivem de recursos não inscritos, internamente,
nas relações capitalistas. “A produção e circulação capitalista tendem a
transformar essas possibilidades num sistema geográfico integrado de produção

22
e troca, que atende ao propósito da acumulação capitalista” (HARVEY, 2005, p.
56).
A crescente tendência é a interação do modo capitalista e não capitalista
tornarem-se interdependentes. “A tendência do capitalismo, portanto, é
estabelecer um conjunto universal de valores, baseado no ‘trabalho social
abstrato’, definido numa escala global” (Ibidem, p. 63). O sistema
sociometabólico do capital, a fim de garantir crescimento, cria novos espaços de
acumulação.
A atividade pesqueira artesanal no modo de produção capitalista se
mantém como atividade subordinada ao valor de troca, em que os trabalhadores
e trabalhadoras que vivem da pesca, apesar das formas de resistência a partir
das identidades construídas, vivem no nível de pobreza e subserviência, de
modo que só uma inversão à lógica imposta nos espaços litorâneos e estuarinos
possibilitaria uma mudança de cenário, o que requer, dessa forma, uma
superação da lógica capitalista na produção do espaço. Nesse processo, a
relação sociedade/natureza altera-se em novas articulações da divisão social e
territorial do trabalho. Este é ameaçado na sua condição ontológica.
Entendemos que a essência ontológica do trabalho da atividade da pesca-
artesanal permite que permanências e resistências sejam construídas no
cotidiano das comunidades pesqueiras, contrapondo-se à forma alienante do
processo de trabalho subjugado ao capital.
As práticas de campo no resgate das experiências de vida e de trabalho
dos sujeitos que vivem da pesca-artesanal em Sergipe foi realizada,
especificamente, nas comunidades pesqueiras situadas no litoral sul de Sergipe,
no Baixo São Francisco e na Grande Aracaju ( Mapa 1), foi capturada através de
entrevistas abertas, semiestruturadas; depoimentos e relatos, como também nas
consultas a documentos produzidos por órgãos oficiais (Ministério da Pesca e
Aquicultura, IBAMA, ADEMA etc.) e pelos Movimentos Sociais ligados à pesca-
artesanal, como também as entidades institucionais de suas representações.
As comunidades visitadas foram escolhidas a partir dos conflitos
existentes entre o modo de vida das comunidades pesqueiras e a territorialização
do capital, de maneira que o urbano, a expansão do agronegócio, da aquicultura,
do turismo de consumo da natureza, e a relação com o mercado se fazem
centrais a compreensão do que se constitui permanência e resistência na

23
organização da vida e trabalho dos pescadores e pescadoras artesanais que
enquanto comunidade nos permitiu através da memória desenvolver esta
pesquisa.
No acesso as narrativas enquanto memória, passado e presente, os
entrevistados foram trabalhadores mais velhos que vivenciaram diferentes
momentos da captura de pescados na relação de apropriação da natureza. Em
torno de suas falas é que nossa análise se constitui uma leitura da realidade da
pesca-artesanal em Sergipe.
Foram transcritas as entrevistas de 18 trabalhadores da pesca-artesanal,
pescadores e pescadoras, entre eles representantes de associação, colônia e
do Movimento de Marisqueiras de Sergipe. Compõe esta pesquisa, conversas
em grupo na ASSEPIPO-Pirambu, participação de reunião da Associação de
Marisqueiras de Porto do Mato com pescadores e pescadoras, e debates
realizados durante três dias entre Resina e Propriá com pescadores e
pescadoras de todo estado, na articulação e formação organizada pela CPP e
MPP com Movimentos Sociais de Sergipe.

24
Mapa 1

O processo de observação foi desenvolvido de forma contínua,


acompanhado de leituras sistemáticas que compreendem a discussão sobre a
ontologia do trabalho, a acumulação de capital, o desenvolvimento desigual e o
movimento escalar do vaivém do capital, a centralização-concentração ligada ao
agrohidronegócio e outros processos que se contrapõem à prática da pesca-
artesanal em que se situam os sujeitos sociais em análise (o impacto em relação
aos pescadores, à proletarização, à condução do processo na relação Estado-
capital- trabalho) garantiram a base teórica e epistemológica para a descrição,
análise e resultados dessa presente Tese, que se apresenta estruturada em
quatro capítulos.
No primeiro capítulo, “Lógicas espaciais e territoriais da pesca-artesanal
em Sergipe”, apresenta-se a discussão sobre a pesca-artesanal no conflito com
o modo de produção capitalista, o fazer artesanal e de que modo se dá a
apropriação da natureza. Em seguida, contrapõe-se à atividade artesanal, as

25
relações capitalistas de produção, identificando as formas como o capital
territorializa-se através de processos que compõem a privatização, o controle e
a exploração da natureza.
No capítulo dois, “A pesca-artesanal na mediação da tríade
sociedade/trabalho/natureza: construindo resistências”, analisamos a
centralidade do trabalho nas relações sociais e sua condição ontológica na
pesca-artesanal. Destaca-se o metabolismo com a natureza nas comunidades
pesqueiras artesanais e como esse se constitui em singularidade. A análise
aprofunda-se no processo de alienação como constituinte da sociabilidade
instituída na universalidade do valor-de-troca, bem como a essência do trabalho
ontológico impõe limites ao processo de reificação do ser social.
O terceiro capítulo, “A singularidade do pescador-artesanal”, dá-se em
torno da constituição do debate sobre comunidades tradicionais em um paralelo
com comunidades comunistas primitivas e o costumes e cultura de comunidades
pobres, no sentido de apontar o reconhecimento do modo de vida tradicional a
partir de singularidades que se destacam no que é o sociometabolismo do
capital, no ponto que o debate em torno dessas comunidades se põe na
organização do trabalho, no sentido da cooperação e das relação com a
natureza. Nesse caminho, são apontadas de que forma se estabelecem a
permanência e a resistência das comunidades pesqueiras em Sergipe, a partir
do relato dos pescadores sobre o cotidiano do produzir-se na atividade
pesqueira, e de que forma se estabelece as singularidades definidas no debate
sobre comunidades tradicionais.
No quarto capítulo, “Contradição e dialética no processo de apropriação
da natureza: a pesca-artesanal frente à destrutividade do capital”, a reflexão se
dá em torno da apropriação da natureza, sua produção no modo de produção
capitalista e a forma como as comunidades pesqueiras se apropriam como
condição de vida com base no valor de uso e na unidade sociedade/natureza.
As contradições na relação sociedade/natureza finalizam a reflexão, na
compreensão do que representa uma natureza atormentada pela destrutividade
do capital na sua necessidade crescente de produção de valor.
Nas Considerações Finais, aponta-se a natureza não apenas como
conceito, mas como condição real de existência, de forma que pensar a
emancipação humana faz-se necessário a partir do que é vital ao ser social.

26
Condição irrefutável do ser, o trabalho carrega em si a condição de liberdade,
que nas comunidades tradicionais pesqueiras aparece na vida cotidiana como
resistência à sujeição completa à lógica do capital no processo de
estranhamento do que é vital à vida social.

27
I CAPÍTULO- LÓGICAS ESPACIAIS E TERRITORIAIS DA PESCA-
ARTESANAL EM SERGIPE.

1.1-A pesca-artesanal

A condição de ser pescador artesanal está diretamente relacionada ao


acesso a ambientes onde se reproduzem os pescados que historicamente fazem
parte da alimentação humana. A pesca, sendo atividade extrativista, para ser
exercida em sua forma artesanal, exige um conhecimento do que pescar, do
onde e do como capturar, o que demanda uma relação direta e de experiência
com ambientes marinhos, com o rio, com mangues, onde se dê a prática da
pesca. Essa experiência além de dar sentido à pesca-artesanal, permite uma
sociabilidade construída em torno dessa prática.
A pesca-artesanal enquanto atividade extrativa tem a natureza como
condição concreta da sua realização, a pesca na condição de trabalho media
essa relação, que em diferentes momentos do processo histórico e modos de
produção, assume papel importante enquanto atividade estratégica ligada
diretamente à navegação e ao processo de formação das cidades.
No Brasil Diegues (1983) faz uma importante leitura sobre a pesca-
artesanal, um histórico da atividade pesqueira e a análise em como se deu o
processo de proletarização do trabalhador da pesca, especialmente no litoral do
sudeste do Brasil, trazendo uma discussão paralela sobre o pescador e o
camponês que em algumas situações configuravam o mesmo trabalhador.
Para Diegues (1983), a pesca-artesanal caracteriza-se a partir do
trabalhador que resiste, já que há uma liberdade posta ligada ao domínio do
processo de trabalho. Conforme o autor, a pesca configura-se como uma fonte
importante de alimento anterior à agricultura, sendo principalmente lacustre e
fluvial nas sociedades primitivas. No entanto, grandes avanços são alcançados
na Idade Média, de forma que era comum, na Inglaterra e na França, em
propriedades feudais localizadas em zonas costeiras, a renda da terra, ser paga
com peixes ao senhor da terra pelos camponeses.
Diegues verifica que a pesca praticada em cidades medievais, exercida
com maior organização, propicia que nos séculos X e XI apareçam as primeiras

28
corporações ou confrarias de comerciantes ligadas à atividade pesqueira. Com
a pesca de longo curso, em mares mais distantes, há também a necessidade de
capital para manutenção dos barcos e tripulação.
Dentre as funções articuladas à atividade pesqueira, Cardoso (2001)
chama atenção a importância da pesca marítima para o processo de acumulação
do capital e da consolidação do capital mercantil dependente do comércio de
longas distâncias. No século XV e XVI, por sua vez, atrelados as navegações
que precedem o capital industrial no processo de acumulação.
A Revolução Industrial possibilitou o aumento da produção pesqueira.
Com o barco a vapor, permitiu centenas de toneladas de carga e a melhoria dos
meios de transporte, que permitiu a comercialização dos pescados nos centros
urbanos. No século XIX, essas mudanças tecnológicas acarretaram mudanças
profundas no processo de trabalho e na organização produtiva da pesca, o que
fez com que pescadores artesanais procurassem trabalho na pesca industrial
(DIEGUES 1983). Considera o autor que, no século XIX, na Inglaterra, havia vida
distinta, entre os pequenos pescadores e os pescadores que trabalhavam
embarcados nos barcos a vapor, proveniente da Revolução Industrial. Isso
porque já havia uma proletarização diferenciada e muito mais intensa na pesca
direcionada ao mercado, devido à intensificação do capital industrial.
Para Diegues, a proletarização na pesca, se dá com a introdução no modo
de produção capitalista, com a separação do pescador dos meios de produção,
embora esta tendência estivesse presente desde o século XIX. Foram as
transformações técnicas que permitiram a captura de pescados em grande
escala, e a concentração de capital que, inevitavelmente, levaram a uma forte
mudança na prática da atividade pesqueira, tanto na escala mundial como na
nacional.
O capital sujeita as relações no seu processo de acumulação e incide
sobre a pesca de diferentes formas. Em seu modo artesanal a pesca tanto é
sujeita ao processo de acumulação, na produção de mercadoria, ao mesmo
tempo que representa relações não inscritas no ciclo de reprodução do capital.
O pescar artesanal se dá no conflito entre diferentes estruturas produtivas, com
variados graus de inserção de capital. A condição de identidade construída na
atividade pesqueira artesanal, a condição de comunidade tradicional, está na
relação direta com a natureza como condição de vida.

29
A pesca-artesanal não é tão somente conceituar e descrever a atividade
no seu processo de trabalho, não é apenas contrapor à atividade artesanal a
industrial, na sua capacidade de captura, mas entender o movimento da pesca
em sua forma artesanal e as relações que ela possibilita construir, de maneira a
apontar para permanências e resistências na sua forma de organização.
O Brasil é um país com grande diversidade em sua formação natural, no
caso da pesca, em suas modalidades artesanal e industrial, essa diversidade é
considerada, e possui relevância de maneira que a produção da pesca em
grande escala instala-se primeiramente onde há uma possibilidade de uso da
tecnologia disponível. Sendo a pesca-artesanal uma prática marítima e
continental, nas regiões Norte, Centro-oeste e Nordeste, elas predominam,
levando em conta diversas determinações que mediam a relação
sociedade/natureza na pesca, e nesse sentido de que forma se dá a organização
da mesma:

A precariedade e a incerteza da pesca condicionam as formas


de organização de trabalho que repercutem na divisão do
produto e no perfil do pescador. O modelo de organização do
trabalho depende de um conjunto de aspectos- as artes ou
técnicas- que estão a mobilizar mão de obra, de uma certa
divisão de trabalho, das características das heranças das artes,
dos barcos, das formas de propriedade, do conhecimento dos
fundos marítimos e da disponibilidade dos recursos pesqueiros.
(SILVA, 2008, p. 18)

Atualmente, no Brasil, a pesca conserva seu caráter artesanal com


algumas diferenças entre as regiões. Enquanto no Sudeste e Sul do país, há
uma maior concentração da pesca industrial, no Nordeste a pesca-artesanal
predomina, atingindo 75% da atividade correspondente à pesca. Para Silva
(2008), alguns fatores são determinantes para entender esse processo, que vão
desde especificidades naturais “interessantes” à produtividade de mercado, aos
incentivos dados pelo Estado às empresas. Nas regiões Sudeste e Sul, há uma
plataforma continental mais larga, com fundo que permite a técnica de arrasto,
utilizada por grandes embarcações; enquanto no Norte do país, a topografia é
irregular e não favorece o arrasto.
O Nordeste é a segunda região produtora de pescados, segundo relatório
do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis-

30
IBAMA1, no entanto a plataforma continental é estreita, e o fundo formado por
corais limita a prática do arrasto. Nas regiões Sul e Sudeste há também um grau
de produtividade de espécies que interessam ao mercado devido a correntes
marinhas ricas em nutrientes e características dessas regiões. Para Silva (2008),
esses elementos naturais conjuntamente com o incentivo fiscal do governo na
década de 1960 para atrair incentivo privado para a atividade pesqueira, fizeram
com que a pesca industrial tivesse mais força nas regiões Sul e Sudeste, onde
grande parte das empresas mantinham suas sedes.
Para Diegues (1983) o fato da pesca industrial está mais articulada no
Sudeste e Sul do país, está ligada a condições naturais e históricas que
permitiram uma acumulação mais intensa de capital nessas regiões, e nesse
caso distinta do modo de ser da pesca-artesanal. Para o autor, a pesca artesanal
não desapareceu, mas passa a estar dependente e subordinada à pesca
empresarial- capitalista. No caso do Nordeste, o autor vai afirmar que apesar de
prevalecer a pesca-artesanal há uma apropriação do excedente da pesca-
artesanal por empresas presentes na região. No entanto a pesca-artesanal
extrativa, continental e de estuário ainda é responsável por 60% da produção
nacional, o que para Silva (2008) demonstra a permanência da atividade e sua
importância produtiva.
Falar da produção pesqueira nas regiões não configura uma tentativa de
delimitar modalidades de pesca a determinados espaços físicos. De acordo com
Diegues (1983), passa pela compreensão da forma como a atividade pesqueira
se organiza enquanto atividade produtiva subordinada à produção capitalista que
se espacializa. A produção de pescado em sua forma artesanal ou industrial tem
diferentes alcances:

Assim, o pequeno pescador inserido na pequena produção


mercantil simples tem condições técnicas e de conhecimento
para explorar ecossistemas limitados espacialmente tais como
lagunares. A exploração do ecossistema oceânico que implica
conhecimentos especiais de navegação, tamanho e potência
adequada de embarcações, se fez historicamente fora dos
quadros de pequena produção mercantil. (Ibidem,1983 , p. 108).

1
Segundo relatório do IBAMA-Estatística da Pesca de 2006, a região Nordeste é a segunda região em
produção de pescados por meio da pesca extrativa marinha, com o número de 155.162 toneladas.

31
A espacialização das modalidades de pesca no Brasil, submetidas a
condições naturais e históricas, compõe o desenvolvimento desigual resultante
do modo de produzir do capital. A prática da pesca-artesanal configura-se em
espaços para acumulação onde os recursos ainda não estejam esgotados.
Desse modo, contrapor a pesca-artesanal a outras modalidades de produzir
pescado implica pensar de que forma a organização da atividade pesqueira
artesanal ao longo da história representa, enquanto trabalho, uma maneira
diferenciada de se relacionar com a natureza.
Para Ramalho (2007), as mediações específicas da pesca permitem sua
leitura como arte, a arte de se fazer pescador artesanal, do conhecimento e
controle significativo do processo de trabalho, que lhes permite não estar
submetidos à plenitude do modo de produzir do capital, e, portanto, de
organização do trabalho que subverte a lógica capitalista. No entanto, o modo
de ser do capital passa pela captura do trabalho, e o ato de exercer trabalho-
pesca, passa pelo trabalho abstrato:

Concomitantemente a esse processo expansionista do capital


ao mesmo instante em que é parte dele, o trabalho reduziu-se -
em termos objetivos e subjetivos - às funções opostas da
atividade artística nos espaços atingidos pela economia
capitalista moderna. Se o trabalho do artesão havia sobrevivido
às intempéries e às tentativas efetivadas pelos adeptos das
belas-artes de retirar (ou desqualificar) o caráter de arte de seu
fazer profissional anteriormente, na era industrial o trabalho
transformou-se em inimigo do exercício criativo, de uma estética
refinada, ato mecânico e pobre, antítese da liberdade e, para
muitos, algo somente necessário para permitir a mera
sobrevivência. Desse modo, o percurso, que levou a hegemonia
do modo de vida burguês, acabou produzindo uma radical e
definitiva separação entre trabalho e arte, para muitos homens e
mulheres, por negar a noção de criatividade, liberdade e beleza
ao mundo do trabalho na era do capital, atingindo fortemente,
ademais, o fazer artesanal. (Ibidem, 2007, Pág74)

O fazer artesanal enquanto arte passa pelo domínio do processo de


trabalho, das condições disponíveis ao trabalhador, que permite exercer suas
habilidades a partir de suas necessidades e realidade. Esse fazer artesanal
permanece na atividade pesqueira não somente na condição de arte, mas como
única possibilidade de exercer seu trabalho, quando não há condições de
incorporar tecnologia.

32
Os diferentes graus de incorporação de tecnologia e capital na atividade
pesqueira converte-se em conflito entre estruturas produtivas, pois mesmo na
pesca-artesanal, há modalidades mais voltadas à subsistência e outras que
empregam técnicas de maior captura voltada ao mercado. O que para Cardoso
(2001) faz com que a identidade do pescador- artesanal emerja numa questão
territorial enquanto pauta e articulação de movimentos sociais voltados à
manutenção da atividade. Ante as diferenças existentes, trata-se da
permanência da pesca em sua modalidade artesanal, no confronto com
estruturas que afetam diretamente na organização da atividade enquanto modo
de vida:

A chamada pesca artesanal envolve uma diversidade de


modalidades de técnicas, modos de apropriação dos recursos
pesqueiros, formas de organização da produção e distribuição
dos rendimentos. Sua definição não deve apenas estar atrelada
a questão do instrumental tecnológico empregado nas capturas
e sim nas formas de organização social das pescarias. (Ibidem,
2001, p. 35).

Conforme Cardoso, trata-se da maneira como se estabelece a


apropriação da natureza, sendo que na atividade pesqueira essa apropriação,
se dá enquanto processo de conhecimento construído na prática do pescador,
pelo trabalho. O que levaria à constituição de territórios pesqueiros a partir do
uso, da prática comunitária da pesca que exerce domínio e conhecimento sobre
determinados espaços. Ao apropriar-se da natureza, há uma ampliação do
debate que municia o pescador artesanal na esfera do Direito sobre possíveis
articulações que vislumbre avanços à categoria, e permite ao pescador
compreender sua ação, que organizada, transforma-se em movimentos
representativos em torno da atividade. (CARDOSO, 2001).
A apropriação da natureza é justamente o que nos permite afirmar que
há, na pesca-artesanal, que media a forma de apropriação da natureza e dá
identidade ao trabalhador/trabalhadora, um contraponto, um conflito latente, e
permanente com o modo de produzir, guiado ao capital, enquanto forma de se
apropriar da natureza apenas na condição do lucro, do trabalho abstrato,
enquanto mediação da geração de valor.

33
O esforço não é o de conceituar, o que seria a pesca-artesanal, ou ser
pescador artesanal, mas o de compreender as relações que permitem identificar
a atividade pesqueira na modalidade artesanal como sendo um trabalho que
impõe limites à produção capitalista, na reprodução sóciometabólica do capital.
A atividade pesqueira artesanal em sua mediação sociedade/natureza
possui especificidades na forma de ser do trabalho subjugado ao capital e na
forma de produzir natureza, portanto pescadores e pescadoras como
contradição ao território do capital. A pesca é uma atividade que gera como
fruto do trabalho recursos não totalmente controlados há um tempo de
reprodução da natureza necessário, o que também é um limite à racionalidade
capitalista e que tem sido enfrentado com uma forma de produzir pescados que
permite alterar o tempo da natureza, a aquicultura.

1.2- Da pesca-artesanal à política das cercas em Sergipe

A pesca-artesanal enquanto atividade extrativista depende das condições


dos ambientes marinhos, estuarinos e lacustres, assim como da terra, enquanto
extensão das relações construídas na mediação sociedade/natureza. Diante
dessa realidade, viver da pesca em sua forma artesanal, onde a capacidade de
captura dos pescados é de baixo poder predatório, apresenta-se como tarefa
difícil frente toda pressão que a atividade é submetida nas relações sociais de
produção capitalistas.
A primeira dificuldade é a diminuição dos pescados, em todo litoral
brasileiro, e principalmente em áreas de estuário, onde a pressão da pesca
industrial predatória, a construção de barragens e hidrelétricas, a poluição e o
assoreamento dos rios, impedem consideravelmente a reprodução das espécies
marítimas, tornando-se um grave problema ambiental e uma grande barreira à
reprodução das comunidades pesqueiras. Frente a isso, esses “espaços” que
correspondem ao de reprodução da atividade pesqueira sofrem uma crescente
pressão. Entre elas a valorização do solo, mediante processos de expansão
imobiliária e do turismo, em que se dá o consumo da paisagem, pelo retorno à
natureza como fonte de lucro.

34
O agronegócio na expansão da monocultura se apropria de terras onde
estão os cursos das águas ou áreas de mangue, destruindo e expulsando
pequenos produtores e pescadores de seus territórios de vida. Soma-se a essas
questões, a política energética de construção de barragens e hidroelétricas nos
rios, que para construir os lagos reservatórios, com o impacto das inundações,
desapropriam comunidades e transformam todo o curso e reprodução natural
das espécies de água doce com o controle da vasão e mudança na força das
águas. Soma-se ainda a privatização das águas através do hidronegócio em
suas formas de mercadorização, incluindo a aquicultura que estabelece-se a
partir de cercas onde antes se tinha um ambiente considerado livre.
Para Conceição e Sousa (2012), o hidronegócio inscreve-se na
reorganização produtiva no Brasil, impulsionado por setores primário-
exportadores e transnacionais, que torna a natureza apenas uma auxiliar no
processo de produção capitalista, de forma que a terra e a água, elementos da
produção camponesa tornam-se alvo do modelo de desenvolvimento
agroexportador no campo:

O termo “hidronegócio” tem sido empregado no Brasil no final


dos anos 1990, como sinônimo da abundância e riqueza de
recursos hídricos do país e tem permitido a expansão de um
modelo de desenvolvimento especializado em utilizar a água
como negócio. (Ibidem, 2002, p. 152).

A expansão desse modelo de desenvolvimento que integra terra e água


como negócio é ratificado nos moldes do agronegócio, hidronegócio, ou
agrohidronegócio, que representa processos de mercadorização da água e que
estão diretamente ligadas ao debate da pesca-artesanal - atividade que
representa condição de vida- e possibilita uma sociabilidade que leva a um modo
de vida pautado no trabalho, pesca.
O agronegócio, consolidado no processo de modernização da agricultura,
monopoliza o território, extraindo a renda da terra, sujeitando o trabalho que se
dá na terra, o que inclui o uso da água para irrigação. O agrohidronegócio
representa o conflito na disputa da demanda por água destinada ao agronegócio
enquanto grande projeto de desenvolvimento para o país, e que não inclui outros
usos nessa demanda. O hidronegócio, seguindo o modelo de produtividade do

35
agronegócio, expande-se a partir dos cultivos nas águas, e é a racionalização do
capital, integrando completamente terra e água.
Com a expansão da reprodução do capital no território onde comunidades
praticam e vivem da pesca-artesanal, há um conflito iminente na forma de
organização do trabalho, no viver da natureza como extensão de vida ou como
meio de produção.
A atividade pesqueira artesanal produz mais da metade dos recursos
pesqueiros do país, segundo o Ministério de Pesca e Aquicultura 2 e o Relatório
descritivo da I Conferência Nacional de Pesca artesanal 3, em 2009, mesmo
assim o capital por intermédio do Estado, como faz com a produção camponesa,
apropria-se desses recursos no momento da circulação/mercado, sem que esse
faça os devidos investimentos na atividade em sua forma artesanal.
Não apenas os números4 revelam a relevância da atividade no Brasil,
mas as próprias relações sociais, construídas a partir da atividade pesqueira, e
que fazem parte da concepção de comunidades tradicionais enquanto conceito
que permeia políticas públicas. No Decreto que institui a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável para comunidades tradicionais, em seu artigo 3º,
inciso I, povos e comunidades tradicionais são definidos como:

Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como


tais, que possuem formas próprias de organização social, que
ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição
para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e
econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas
gerados e transmitidos pela tradição. (Decreto N° 6.040 de 7 de
fevereiro de 2007).

2
O Ministério da Pesca e Aquicultura foi criado em 2009 e extinto em outubro de 2015, sendo incorporado
como secretaria no Ministério da Agricultura, em alguns estados, a incorporação final deu-se de forma
gradativa, em Sergipe, a incorporação completou-se em meados de 2016.

3
A Conferência da Pesca Artesanal tem o objetivo de discutir políticas públicas para a atividade pesqueira
artesanal, sendo esta organizada por movimentos de pescadores e pescadoras, entre eles, associações,
colônias, sindicatos e federações de pescadores. A proposta da Conferência Nacional resultou em um
relatório da mesma em que retrata a situação e as demandas da pesca- artesanal no Brasil, de forma que
esses movimentos, juntos, somem forças para atuar perante o Governo Federal e os Estaduais.
4
Segundo documento produzido na I Conferência da Pesca Artesanal, os pescadores e pescadoras
artesanais são responsáveis, por 65% da produção pesqueira, o que representa 500 mil toneladas por ano,
no entanto grande parte da pesca desembarcada não é contada, pois a forma de recolhimento de dados
ainda é muito precária, o que leva a um subdimensionamento da real produção da pesca-artesanal.

36
Apesar de haver políticas direcionadas às comunidades tradicionais e
nesse sentido a pesca-artesanal não se inviabiliza que os maiores incentivos por
parte do governo estejam direcionados para a aquicultura, ou seja, a criação de
pescados, que tem como intuito atender às necessidades de mercado. No
Estado de Sergipe a pesca-artesanal vem sendo pressionada, sendo postos
obstáculos reais à manutenção das comunidades pesqueiras artesanais. Para
Silva (2015), a atividade pesqueira passa por um processo de especialização e
de divisão social do trabalho desde a implementação da industrialização
brasileira, criando a pesca industrial, a aquicultura, a pesca amadora e a pesca-
artesanal, que são previstas em lei como modalidades da atividade pesqueira.
A pesca é regulamentada pela Lei n°11.959, de 29 de junho de 2009 que
dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura
e da Pesca, a qual define a pesca como toda operação, ação ou ato tendente a
extrair, colher, apanhar, apreender ou capturar recursos pesqueiros. Destaca-se
alguns artigos e parágrafos importantes da lei que vão definir e delinear a pesca
e a política pública e de incentivos à atividade em várias dimensões:

Artigo 2° parágrafo I- recursos pesqueiros: os animais e os


vegetais hidróbios passíveis de exploração, estudo ou pesquisa
pela pesca amadora, de subsistência, científica, comercial e pela
aquicultura.

Artigo 4º A atividade pesqueira compreende todos os processos


de pesca, explotação e exploração, cultivo, conservação,
processamento, transporte, comercialização e pesquisa dos
recursos pesqueiros.
Parágrafo único. Consideram-se atividade pesqueira artesanal,
para os efeitos desta Lei, os trabalhos de confecção e de reparos
de artes e petrechos de pesca, os reparos realizados em
embarcações de pequeno porte e o processamento do produto
da pesca artesanal.

O reconhecimento de todo processo ligado à atividade pesqueira como


pesca, passível de direito e acesso a direitos sociais e trabalhistas, possibilitou
um cadastramento em maior número de pescadores e pescadoras por todo
Brasil. Segundo Documentos do Ministério da Pesca em Sergipe, no ano de 2015
no estado, foram contabilizados mais de 38.000 pescadores cadastrados, e 44
organizações de pescadores, destas, sendo vinte e cinco Colônias, Dezessete
associações, um Conselho e uma Federação.

37
Para ter acesso a direitos provenientes da prática da atividade pesqueira
é necessário ser registrado juntos aos órgãos que regulamentam a pesca. O
registro geral da Atividade Pesqueira- RGP foi instituído pelo Decreto de Lei
n°221 de 28 de fevereiro de 1967, e ratificado pela lei que regulamenta a pesca
em 2009. De acordo com Documentos do Ministério da Pesca, a Instrução
Normativa de 6 de junho de 2012 regulamenta procedimentos para obter o
registro geral de pesca necessário ao exercício da atividade.
Para obtenção do registro são consideradas duas categorias, pescador
profissional industrial e pescador profissional artesanal, sendo considerado
profissional da modalidade artesanal:

Aquele que exerce a atividade de pesca profissional de forma


autônoma ou em regime de economia familiar, com meios de
produção próprios ou mediante contrato de parceria, podendo
atuar de forma desembarcada ou utilizar embarcação de pesca
com Arqueação Bruta (AB) menor ou igual a 20 (vinte) (Artigo 2°
parágrafo II).

Essa conceituação do pescador- artesanal pauta-se na diferenciação dos


limites de captura. Por isso a arqueação bruta relacionada ao volume do navio é
usada como um dos definidores das categorias da atividade pesqueira. O
entendimento da pesca-artesanal se dá como de baixo poder predatório, daí a
delimitação do volume da embarcação, já que a partir das normativas legais
estabelecidas, direciona-se a Política Pública, a depender das demandas
identificadas, diferenciadas para cada categoria. Para o Ministério da Pesca e
Aquicultura no Brasil, conforme documento produzido do balanço das atividades
de 2013, há aproximadamente um milhão de pescadores, trabalhadores simples,
que dependem da pesca para sobreviver, mas é na aquicultura que o país pode
desenvolver a produção em escala, tornando-se competitivo mundialmente.
O Relatório da I Conferência Nacional da Pesca Artesanal 5 em Brasília
(2009) já apontava de forma crítica o direcionamento das políticas para a pesca.
Mesmo com a criação do Ministério da Pesca e da Secretaria de Pesca e
Aquicultura, em 2003, o que poderia representar um avanço para a atividade.
Segundo o referente Relatório, viu-se que:

5
Disponível em: www.cppnac.org.br/site_antigorelatoriodescritivo.doc. Acesso em 13/02/2015.

38
A maioria dos atuais investimentos e políticas públicas está
voltada para o fortalecimento do hidronegócio, com exclusivo
interessado de privatizar as águas para instalação de fazendas
de cultivos. Dessa forma suprimem os territórios das
comunidades pesqueiras e promovem a desregulamentação da
legislação ambiental, conquistada historicamente pelas lutas e
mobilizações populares. (p. 2).

De forma que, questões centrais à garantia da pesca-artesanal, enquanto


atividade produtiva e pautada pelas organizações em torno da pesca-artesanal -
como reservas extrativistas, políticas que considerem a realidade local - são
desconsideradas, em detrimento de políticas específicas para atividades como
a carcinicultura, por exemplo, que isentam os pescadores industriais de crimes
ambientais, consequentes de suas atividades produtivas. A carcinicultura e a
piscicultura, inclusive, tomaram grande força no Brasil impulsionando a prática
do cultivo de espécies marinhas.
Em Sergipe, a aquicultura só começa a apresentar dados mais
consistentes a partir da década de 1990. Para Menezes (2014), a falta de um
histórico da produção pesqueira e aquícola no estado, dificulta as análises e a
formulação de políticas voltadas ao setor. Estudos da Empresa Brasileira de
Estudos Agrícolas- EMBRAPA em Sergipe por Lima e Silva (2014), apontam a
aquicultura estuarina com importante papel para alguns municípios no estado,
destacando São Cristóvão que faz limite6 com a capital Aracaju, um dos
primeiros municípios a apresentar tanques de criação de pescados localizados
nas proximidades do estuário do Rio Vaza Barris.
A referida publicação da EMBRAPA (2014), em conjunto com Grupo de
Pesquisa sobre Aquicultura e Sustentabilidade da Universidade Federal de
Sergipe, sobre a carcinicultura marinha em Sergipe, mostra que na década de
1990 a carcinicultura se espalhou no estado, principalmente o cultivo da espécie
de camarão Penaeus vannamei devido ao seu alto preço de mercado, o que fez
com que viveiros que anteriormente cultivavam peixes e outras espécies
estuarinas passassem a exercer a carcinicultura.
Para Lima e Silva (2014), a atividade de aquicultura praticada no Rio Vaza
Barris tem raízes históricas do período colonial, com o cultivo de peixes

6
O Rio Vaza Barris é limite a Zona de Expansão Urbana de Aracaju-ZEU, definida pela Lei Municipal de no
873 de 1 de outubro de 1982, com os municípios de São Cristóvão e Itaporanga D’Ajuda.

39
estuarinos de forma extensiva, nesse sentido, a prática da aquicultura não seria
um problema em si. É o monocultivo que vai apresentar riscos ambientais
comprovados provenientes da criação de uma espécie exótica no caso do
camarão, e a forma de manejo que no modelo vigente foca em elevada
produção, o que leva a uma utilização maior de insumos prejudiciais à dinâmica
estuarina, e que se estende no curso do rio.
A aquicultura de base familiar, identificada em Sergipe por Lima e Silva
(2014), depreende que na organização da atividade fez-se necessário adaptar a
tecnologia utilizada nos viveiros à capacidade de investimento, produzindo de
forma semi-intensiva, coexistindo com a produção intensiva empresarial. No
entanto, na modalidade extensiva, como na semi-intensiva a forma de produzir,
considerando suas diferentes proporções, leva ao: desmatamento das áreas de
mangue e ocupação de faixa de praia; lançamento de efluente dos viveiros no
rio; percolação de água salina e rica em nutrientes dos viveiros; escape de
espécie exótica; consumo de grande volume de água e alteração do regime
hidrológico dos estuários e rios. O que aponta para a produção voltada ao
mercado como essencialmente desvinculada de uma possível sustentabilidade.
Sergipe soma-se a todos os outros estados do Nordeste, mais Rio de
Janeiro e Santa Catarina, e integra o mapa dos produtores de camarão marinho
no Brasil, que identifica o potencial brasileiro na pesca e aquicultura. O mapa
(Figura 1) é parte do 1° Anuário de Pesca e Aquicultura do Brasil, de 2014, que
reúne dados sobre a atividade pesqueira para apresentar ao mundo. Além de
produtor de camarão, Sergipe compõe o quadro dos estados produtores de
tilápia, que é produzida na maior parte do território brasileiro, com exceção do
Amapá. A espécie tilápia e tambaqui compõe o quadro de espécies de grande
produtividade para integrar os investimentos em aquicultura, junto ao
agronegócio, como indústria de riqueza no Brasil, são espécies comparadas a
frangos da água pelo alto nível de produtividade. O Anuário aponta para a
necessidade da cadeia produtiva de pescados no Brasil se estruturar, nos
moldes do agronegócio, o que remete a um investimento cada vez maior nas
atividades correspondentes a aquicultura.

40
FIGURA 1: ESTADOS BRASILEIROS PRODUTORES DE CAMARÃO MARINHO E
TILÁPIA

Fonte: 1° Anuário Brasileira da Pesca e Aquicultura/2014.7

Em Sergipe, alguns dados da atividade pesqueira sob a responsabilidade


de um convênio feito em 2010 entre a Petrobrás, a Fundação de Apoio à
Pesquisa e Extensão de Sergipe- FAPESE, e a Universidade Federal de Sergipe,
possibilitou uma regularidade na produção de dados que corresponde à
Estatística Pesqueira da Costa do Estado de Sergipe e Extremo Norte da Bahia.
Anteriormente a elaboração desses dados ficava sob responsabilidade do
IBAMA, e, posteriormente, com o advento do Ministério da Pesca, sob a
responsabilidade desse em cooperação com o IBGE. Com a extinção do
Ministério da Pesca, a pasta da atividade pesqueira passou para o Ministério da
Agricultura em 2016. Essas mudanças na gestão da atividade pesqueira no país,
somada à falta de interesse em produzir dados consistentes para a atividade
com regularidade, resultou em diferentes documentos produzidos, e representou
a ausência de dados a nível nacional em alguns anos.
A necessidade do cadastro de registro geral da pesca, o RGP, que
legaliza o exercício da atividade pesqueira, com sua ratificação em 2009,

7
BRASIL, Ministério da Pesca e Aquicultura. 1° Anuário Brasileiro da Pesca e Aquicultura, 2014, p.38.

41
conhecida como a nova Lei da Pesca, elevou o número de cadastros, o que
permitiu a obtenção do número de trabalhadores da pesca por munícipio. O
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento abriga esses dados, sendo
que no ano de 2016, devido às mudanças de competência dos órgãos que
abrigam as políticas voltadas à atividade pesqueira, alguns dados se mantiveram
em migração e não disponibilizados.
Os documentos produzidos pela Universidade Federal de Sergipe em
convênio com a Petrobras são referentes, a medidas compensatórias que a
empresa é obrigada a fazer, devido a sua presença com a produção de petróleo
e gás no estado. Esses dados ajudam a detectar os possíveis impactos nas
comunidades litorâneas presentes em Sergipe, e nas atividades que essas
exercem, nesse caso, a pesca, que é diretamente afetada pela presença da
empresa. É necessário ressaltar que no estado não há registro de pesca
industrial, então todos os dados se referem à pesca-artesanal, ou a aquicultura.
Em Sergipe, a pesca-artesanal é responsável pela maior parte da
produção de pescados, no entanto, a aquicultura aproxima-se em produtividade.
Segundo o último Boletim de Pesca e Aquicultura, divulgado em 2011, a
produção de pescados teve aumento significativo comparada ao ano de 2007:
de 6082,00 toneladas, saltou para 7026,10. A aquicultura continental em Sergipe
produz a maioria dos pescados, correspondentes à atividade, com uma menor
participação da aquicultura marinha, apesar disso, apresentou queda na
produção entre 2007 e 2011, de 5.191,50 toneladas, para 4.653, 60.
A diminuição em números na produtividade dos pescados cultivados
pode ser explicada por uma análise feita pela ABCC- Associação Brasileira de
Criadores de Camarão, em 2011, que atrela a queda de produtividade do
camarão no Nordeste a partir de 2004, maior região produtora, o que inclui
Sergipe, a uma série de fatores, entre eles a dificuldade de obtenção de licença
ambiental entre 2004 e 2009, enchentes, e a disputa de mercado. Somada toda
a produção de pescados em Sergipe, de 1998 a 2007, a produção mais que
duplica, o que pode ser lido junto ao aumento do consumo de pescados no
mercado internacional, bem como o crescente estímulo à aquicultura junto à
produtividade da pesca-artesanal.

42
GRÁFICO 1

Produção Total de Pescado Estimado


em Sergipe 2007 (T)
0

5.191,50
6.082,00

Pesca Artesanal Aquicultura Pesca Industrial

Organização e elaboração: Shauane Itainhara Freire Nunes


Dados: Boletim Estatístico de Pesca e Aquicultura, 2007.

GRÁFICO 2

Produção Total de Pescado Estimado


em Sergipe 2011 (T)

4.653,60

7.026,10

Pesca Extrativa Aquicultura

Organização e elaboração: Shauane Itainhara Freire Nunes


Dados: Boletim Estatístico de Pesca e Aquicultura, 2011.

43
GRÁFICO 3

Produção de Pescado Estimado em


Sergipe (T)
14.000,00
12.279,50
12.000,00 11.273,50
9.985,00
10.000,00 9.442,50

7.498,00
8.000,00
6.459,50
6.000,00 4.635,00
4.017,004.282,00
4.000,00

2.000,00
0
0,00
1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007

Organização e elaboração: Shauane Itainhara Freire Nunes.


Dados: Ministério da Pesca e Aquicultura, 2016.

Para Sousa (2007), o processo de transformação que se deu no litoral


brasileiro a partir do cultivo do camarão, tem como base o alto valor de mercado
e uma demanda internacional do produto, estando à produção do camarão no
Nordeste Brasileiro durante os anos de 2001, 2002 e 2003, nas primeiras
colocações de divisa do agronegócio. Sergipe se inscreve nesse processo, do
que a autora denomina como CELSF- Complexo Estuarino Lagunar do São
Francisco, baseado em um novo modelo de desenvolvimento a partir da
carcinicultura. A carcinicultura, assim como a piscicultura, segundo Sousa
(2007), dentro do que representa a aquicultura, são consideradas na
institucionalidade dos órgãos ambientais de Estado, como atividades de alto
potencial de degradação ambiental, e, no entanto, a criação de camarão é uma
das atividades que mais cresce no Nordeste, devido à demanda por exportação.
Segundo a autora, a carcinicultura leva ao processo de proletarização de
antigos pescadores, correlato à especulação da terra, onde viveiros antes
regulados pelo fluxo da maré passam a funcionar de forma intensiva pela
impossibilidade de acesso das comunidades à terra e aos mangues, meio de
produção e áreas antes de acesso da comunidade até o rio. Grande parte das
famílias que vivem em comunidades pesqueiras não possuem a propriedade da
terra onde vivem ou produzem, e a absorção de parte dessas comunidades,
como assalariados agora dos viveiros de camarão, faz com que a lógica deixe

44
de ser a da produção simples de mercadorias presentes em comunidades
camponesas e comunidades pesqueiras artesanais:

Assim como os produtores rurais modernos, os carcinicultores


construíram uma lógica territorial, atrelada a setores industriais,
financeiros, de transporte, de comércio, de pesquisa e
assistência técnica, planejamento e políticas. O vertiginoso
crescimento dessa atividade nos últimos anos, estimulado,
sobretudo, pela demanda externa e pela incapacidade da pesca
extrativa em alto-mar de abastecê-la, fez com que os
carcinicultores nordestinos buscasse, a alta produtividade nos
cultivos (...). (SOUZA, 2007, p. 54)

Segundo levantamentos da ADEMA e trabalhos realizados sobre a


atividade da carcinicultura no estado, por Wanderley e Santos (2007) e Santos
P. (2009), a atividade da carcinicultura estende-se no estado de Sergipe, no Sul
Sergipano, que compreende área litorânea e a de estuário das bacias do Rio
Vaza-Barris e do Rio Piauí nas cidades de Indiaroba, Santa Luzia e Estância. Na
Grande Aracaju, nos municípios de Maruim, Santo Amaro das Brotas,
Laranjeiras, Nossa Senhora do Socorro, Barra dos Coqueiros, São Cristóvão e
Itaporanga d’Ajuda, municípios caracterizados por áreas litorâneas, ou/e bacias
hidrográficas e áreas de mangue.
De acordo com dados da ADEMA8, de agosto de 2013 a novembro de
2014 foram identificados duzentos e cinquenta e três donos de tanques de
criação, denominados empreendedores de tanques de carcinicultura no estado,
o que não inclui a quantidade de tanques por empreendedor, sendo que o
número de tanques mapeados, entre atividades de cultivo de peixe, camarão ou
arroz chegam a aproximadamente, dois mil, estando sua maioria ainda não
regularizada e com licenças ambientais liberadas. Esse aumento da atividade é
avaliado, por Santos e Costa (2010), com preocupação, consideram esses que
há um conflito posto na prática da atividade, pelos impactos ambientais e pela
privatização de áreas da União:

Com relação ao meio ambiente, a carcinicultura no litoral


sergipano contribuiu para uma redução e extinção de habitats de
numerosas espécies, o desmatamento de extensas áreas de

8
Informações obtidas em visita ao órgão em março de 2015, no entanto o estudo está incompleto, são
dados preliminares.

45
manguezal causando interferência direta na produção e
distribuição de nutrientes para o estuário e plataforma
continental; extinção de setores de reprodução e alimento de
moluscos, aves e peixes e diminuição da biodiversidade ao
longo das bacias hidrográficas. Isso gera a expulsão de
marisqueiras, pescadores e catadores de caranguejo de suas
áreas de trabalho, ou tornam-se obstáculos a seu acesso, aos
espaços produtivos do território, ao estuário e ao manguezal
com a privatização de terras da União, tradicionalmente
utilizadas para o extrativismo animal e vegetal. (SANTOS E
COSTA, 2010, p.9).

De acordo com informações contidas nos Documentos divulgados pelo


Ministério da Pesca, os incentivos à aquicultura são para ambas as categorias
de pescadores (industriais e artesanais), proposta de ações de política públicas.
Entretanto, ao visualizar a atividade na modalidade de carcinicultura já praticada
e consolidada no Brasil e em Sergipe, enquanto atividade do agrohidronegócio,
organizada através da ABCC, que contabiliza produções, riscos, lucros,
incentivos, concorrência, a partir do mercado internacional, identifica-se uma
estrutura forte em torno da atividade de cultivo:

Atualmente a carcinicultura marinha brasileira, embora se situe


na 7° posição do ranking mundial dos produtores de camarão
cultivado, já se destaca pelos altos índices de desempenho
técnico, econômico e social, ocupando a liderança mundial em
termos de produtividade. (ROCHA, 2013, p.1)

O presidente da ABCC, em 2013, Itamar de Paiva Rocha, divulgou um


estudo de sua autoria, que apresenta dados da indústria do camarão no Brasil,
que data o cultivo de camarão como atividade comercial no país, a partir da
década de 1980 com maior crescimento somente em meados da década de
1990. Esse estudo tem como objetivo mostrar o dinamismo do setor e apontar a
potencialidade brasileira a nível mundial como um dos maiores produtores de
camarão do mundo, assumindo, em 2002, a liderança de produção no hemisfério
ocidental. Assim, o que se verifica é uma total inserção e produção para o
mercado, que exclui a possibilidade do que representa o pescador artesanal.

46
O Presidente do Conselho Nacional de Meio Ambiente de Estância- SE9
afirma que a carcinicultura no seu município é atualmente praticada por grandes
empresas, como o grupo Bompreço e Paes Mendonça, fortes no Nordeste, de
forma que não há mais pequenos produtores atuando no município. Essa
informação corresponde ao que já apontava o documento construído pela
Conferência de Pesca Artesanal, em 2009, que afirmara justamente que os
direcionamentos das ações do governo não estavam pensando a realidade da
pesca-artesanal, sendo que a competitividade de grandes empresas e pequenos
produtores é desproporcional.
Silva (2015), ao analisar a organização político-institucional pesqueira no
Brasil, vai apontar, no período de 1989 até os dias atuais, eventos históricos
importantes ligados à pesca, e vai destacar duas fases, a primeira que vai de
1989 a 1998, e a segunda fase, de 1999 a 2015. A primeira fase, segundo a
autora, é marcada pela política nacional voltada a questões ambientais, período
que o IBAMA administra o setor, e é marcado por ser muito ruim para economia
da pesca. Toma força o debate ideológico sobre a pesca como atividade
predatória, de um lado, e a importância das comunidades ligadas à pesca-
artesanal, de outro.
A fase de 1999 a 2015 tem início com o retorno da regulamentação da
atividade pesqueira ao Ministério da Agricultura e, posteriormente a criação do
Departamento de Pesca e Aquicultura, o que representa a busca por maior
produtividade no setor pesqueiro. A autora enfatiza que entre 2003 e 2009 foi
criada a Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca- SEAP, vinculada à
Presidência da República, e em 26 de junho de 2009 foi criado o Ministério da
Pesca e Aquicultura. Faz-se necessário ressaltar o papel de gestão desses
órgãos, voltado a uma política de desenvolvimento da pesca que tem a
aquicultura como projeto de modernização, o que exige dos trabalhadores da
pesca capacidade de reação:

A luta para os pescadores se torna multifacetada: a luta pelo


reconhecimento ao trabalho, e portanto, aos direitos sociais e
melhoria de sua cadeia produtiva, e a luta pelo respeito perante
as ações ditadas pelos órgãos federais e estaduais de proteção

9
O presidente do Conselho Nacional de Meio Ambiente de Estância, entrevistado em 2015 é pescador
artesanal do município e assumiu o cargo junto ao governo municipal.

47
ambiental. É nesse bojo que surge a política de definição dos
períodos de permissão de pesca, o seguro defeso, que consiste
num auxílio de salário mínimo pago até 2014 pelo Ministério do
trabalho e Renda aos pescadores e marisqueiros, no período em
que a espécie por eles coletada está proibida de captura. (SILVA
2015, p. 50)

Cardoso (2001) aponta três processos que configuram o modelo de


gestão da pesca no Brasil. O primeiro corresponde à organização da pesca por
meio de Colônias, Federações e Confederação Nacional, atreladas à Marinha;
O segundo processo condiz com a modernização da pesca a partir de 1960,
através da Superintendência de Desenvolvimento da Pesca- SUDEPE, no intuito
de criar uma estrutura industrial para a atividade, por via do acesso a barcos,
equipamentos e unidades de beneficiamento; E o terceiro processo está ligado
à definição de zonas econômicas marinhas, exclusivas ao nacionalismo marinho.
Nesse sentido:

Esses três processos podem ser interpretados como


possuidores de uma mesma lógica, uma mesma racionalidade,
uma mesma ideologia: a da pesca racional, moderna, baseada
na tecnologia, com pescadores comportados, valorizando a
pátria. Discurso presente até os dias de hoje, à mercê dos
escândalos, desperdícios, depredações e limites naturais de
expansão desse modelo, que a história das últimas três décadas
do setor pesqueiro revelou abertamente. (CARDOSO, 2001,
p.80)

Na análise do autor, esses três processos fazem parte de uma mesma


racionalidade e ideologia, que objetiva o modelo de uma pesca racional,
moderna e baseada em tecnologia, o que levou a crise do modelo proposto.
Crise que se dá na forma da pesca predatória, que proporcionou à destruição de
ecossistemas de alta produtividade, tendo como consequência a diminuição dos
pescados.
Esse modelo de pesca apostou no camarão para a exportação sem
preocupação nenhuma em alimentar as populações mais pobres no que afirma
Cardoso (2001), a crise do modelo de gestão refere-se à pesca com base no uso
intensivo de capital e tecnologia. O modelo de gestão apontado está diretamente
ligado a um modelo de desenvolvimento e comércio, voltado à exportação e ao
uso intensivo dos pescados. Se por um lado há um esgotamento desse modelo,
quando se analisa o esgotamento dos pescados devido a um metabolismo com

48
a natureza que se dá na racionalidade do capital, não está, no entanto, esgotada
as possibilidades da reprodução do capital via a atividade pesqueira.

1.2.1- As políticas públicas no setor pesqueiro

Analisar algumas políticas do Estado no setor pesqueiro, convertidas em


estrutura para o hidronegócio através da aquicultura em seus vários
desdobramentos, situa tais ações na garantia do modelo de pesca exportadora
industrial, do controle da força de trabalho pesqueira e de suas áreas de
reprodução. O que impõe limites ao metabolismo com a natureza, existente nas
relações mediadas pela pesca-artesanal, em detrimento da garantia da
expansão do capital no setor.
A aquicultura é colocada por órgãos do governo a nível mundial e
nacional, como de grande importância para garantir a produção de pescados,
por meio do cultivo, que possibilita uma pesca sustentável, a viabilidade
econômica de comunidades que vivem da pesca, a segurança alimentar
mundial, e as necessidades de mercado. O Ministério da Pesca e Aquicultura
define essa atividade como:

[...] cultivo de organismos cujo ciclo de vida em condições


naturais se dá total ou parcialmente em meio aquático. Assim
como o homem aprendeu a criar aves, suínos e bovinos, bem
como a plantar milho e trigo, também aprendeu a cultivar
pescado. Dessa forma, assegurou produtos para o consumo
com mais controle e regularidade. A aquicultura é praticada pelo
ser humano há milhares de anos. Existem registros de que os
chineses já tinham conhecimentos sobre essas técnicas há
muitos séculos e de que os egípcios criavam a tilápia há cerca
de quatro mil anos.

A FAO- Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura


(2013) destaca a sua importância enquanto atividade produtiva:

Espera-se que a produção aquícola atinja cerca de 67 milhões


de toneladas em 2012 e as projeções para 2013 sugerem que
os aquicultores tenham produzido 70 milhões de toneladas, o
que representa 44 % da produção total de peixes e 49% do peixe
destinado ao consumo humano direto. "A porcentagem da
produção pesqueira que é comercializada internacionalmente é

49
significativa, cerca de 37% 2013. Isso faz com que o setor
pesqueiro seja uma das indústrias alimentares do mundo mais
globalizadas e dinâmicas".

Para a FAO (2013), a pesca-artesanal no Brasil corresponde a 60% da


captura de pescados, e a 90% do emprego no setor. No entanto, pontua os
conflitos pelos recursos e a pesca excessiva, principalmente quando se pensa
na pesca industrial concentrada na região sudeste e sul do país, assim assinala
na aquicultura um enorme potencial, que depende apenas de uma boa gestão
direcionada a atividade como alternativa a produção de recursos pesqueiros:

No Brasil, a aquicultura oferece potencial para aumentar o


abastecimento de peixe. O setor da aquicultura no Brasil tem tido
um crescimento muito estável a longo prazo. O Brasil é o
segundo maior produtor de aquicultura na região da América
Latina e do Caribe, com o rápido crescimento na produção de
peixes de viveiro, contra 172 000 toneladas em 2000 para 629
300 toneladas em 2011. Aquicultura de água doce (tilápia,
carpas e algumas espécies indígenas) representaram 87% (545
300 toneladas) da produção total da aquicultura em 2011.
Maricultura contribuiu 13%, para o total cultivado, a produção foi
dominada por camarão, mexilhões e ostras. A contribuição da
aquicultura na produção total de peixes em 2011 foi de 44%,
acima dos 21% em 2000. Além disso, estima-se que o Brasil
também colhe cerca de 750 toneladas (peso vivo) de algas
cultivadas por comunidades costeiras. O setor privado tem
demonstrado interesse em investir na cultura da gaiola de outras
espécies marinhas, e o governo está a apoiar este tipo de
iniciativas para diversificar o setor.

O Ministério da Pesca e Aquicultura define o que representa a aquicultura,


situando historicamente essa atividade, justificando não ser uma atividade nova
que se contrapõe à pesca-artesanal. Porém, quando a FAO apresenta números
de produção da atividade, articulada às maiores indústrias alimentares do mundo
e, consequentemente, ao interesse da inciativa privada, há questões
relacionadas à forma de ser da pesca-artesanal que não estão colocadas. Em
tempo que as políticas a nível nacional são articuladas às demandas
apresentadas pela própria FAO, como organismo internacional que representa
interesses de órgãos como o BM e o FMI que gerenciam o capitalismo mundial.
“A pesca artesanal não é somente o viver da pesca, mas é sobretudo a

50
apropriação real dos meios de produção; o controle do como pescar e do que
pescar, em suma, o controle da arte da pesca”. (DIEGUES, 1983, p. 198).
As propostas institucionalizadas mediantes os órgãos que “pensam”
políticas para a pesca vão exatamente de encontro ao que nos aponta Diegues
(1983). A aquicultura e a pesca vão ter em comum somente a produção de
pescados, entretanto, para a institucionalidade que pensa o mercado, é a
aquicultura que vai responder:

Apesar do discurso ideológico de que a aquicultura é vista


diferente, ou seja “melhor que a pesca”, pois não produziria a
sobrepesca, observamos ao logo dos tempos recentes e
sobretudo nos anos de 2000 e 2010, maiores investimentos do
Estado na atividade de aquicultura por meio de várias ações, tais
como subsídios financeiros, créditos atrativos, com recursos do
PRONAF e concessão do Estado para áreas de realização de
cultivos marinhos, além de vários estímulos em pesquisa e
desenvolvimento de estudos científicos de espécies tanto
nacionais quanto exóticas. Nesse quadro, veem-se crescer
também as páreas de aquicultura, sobretudo no Nordeste do
Brasil. (SILVA, 2015, p. 55)

As políticas e critérios apontados pela FAO como norteador da gestão da


pesca no país passam por objetivos como, sustentabilidade, inclusão social,
estruturação adequada da cadeia de produção, fortalecimento do mercado
interno, as abordagens territoriais para programas de gestão e desenvolvimento,
o aumento da competitividade, organização do setor e consolidação das políticas
estatais. Nessa direção, é lançado, em 2008, o Plano Mais Pesca e Aquicultura,
com o objetivo de implantar um plano de gestão que visa incentivar a
produtividade dos recursos pesqueiros no país.
Em 2009, ano que sucede o lançamento do Plano Mais Pesca e
Aquicultura, ocorre, a 3° Conferência Nacional de Aquicultura e Pesca, em
Brasília, tendo como tema, A Consolidação de uma Política de Estado para o
Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e Pesca, que em seu texto de
apresentação aponta objetivos do que é essa política de Estado: Aumento de
emprego e renda para pescadores e pescadoras; Produzir alimento saudável;
Tornar o Brasil um dos maiores produtores de pescados do mundo; Recuperar
estosques pesqueiros; Desenvolver a pesca oceânica e o grande potencial de

51
aquicutura brasileira em água da União e em estabelecimentos rurais; Estruturar
a cadeia produtiva e garantir a regularidade da oferta do pescados.
O Documento resultado dessa Conferência Governamental, apresenta o
setor produtivo da pesca como sendo representado por Movimentos Sociais e
Empresários, o que demonstra a intenção de conciliar diferentes formas de
produzir no caminho da produtividade a ser seguido para o setor pesqueiro. Os
interesses representados pelos Movimentos Sociais e Empresários somente são
concíliaveis se o modo de produzir e ser do primeiro subjulgar-se ao segundo no
compromisso com o mercado, aprofundando contradições que vão de encontro
à permanência da pesca-artesanal.
O que representam o modelo presente nas políticas propostas é a pesca
como recurso e a gestão como solução para os problemas ambientais e para o
aumento da produtividade, articuladas ao discurso da sustentabilidade. Há uma
clareza no modelo de desenvolvimento “pensado” para a pesca.
O Plano Safra da Pesca e Aquicultura 2012/2013/2014, em consonância
à Política de Estado direcionada à produção de pescados apresentadas nos
documentos disponibilizados pelo Governo, propõe ser uma política de acesso
à crédito e incentivo à construção de Parque Aquícolas, de forma que se torne
possível modernizar equipamentos, garantir assistência técnica e garantir
produtividade para que pequenos produtores e pescadores insiram-se no
mercado, sendo assim:

É um instrumento para tornar mais efetivas as políticas


econômicas e sociais do Governo Federal voltadas à cadeia
produtiva da pesca e aquicultura. O objetivo é ampliar as ações
governamentais e o desenvolvimento sustentável por meio de
medidas de estímulo à competitividade e ao empreendedorismo.
(Plano Safra da Pesca e Aquicultura 2012/2013/2014, p.7,
BRASIL, Ministério da Pesca e Aquicultura)

De forma que a pesca e a aquicultura estejam no mesmo Projeto de


Desenvolvimento como atividades complementares:

A pesca e a aquicultura são atividades fundamentais para a


inclusão social. Hoje, cerca de 1 milhão de trabalhadores tiram
sua renda do pescado. E dentro da cadeia produtiva o setor gera
3 milhões de empregos indiretos. Mas, para que o setor seja
ainda mais produtivo, competitivo, inclusivo e sustentável é

52
preciso aprimorar técnicas de cultivo e manuseio, ampliar a
assistência técnica, modernizar equipamentos, investir em
pesquisa e garantir mais estrutura à cadeia produtiva. (Plano
Safra da Pesca e Aquicultura 2012/2013/2014, p.4 BRASIL,
Ministério da Pesca e Aquicultura,)

Como continuidade dos Planos anteriores, o Plano Safra para a Pesca e


Aquicultura 2015 e 2016, visando consolidar a proposta de desenvolvimento
para o setor pesqueiro, apresenta como objetivos de governo garantir estimular,
acesso ao crédito, assistência técnica e comercialização, pilares já conhecidos
e articulados enquanto política na produção da monocultura do agronegócio. A
aquicultura é a grande promessa de salvação para o setor de pescados em
detrimento da pesca-artesanal, o Plano de Desenvolvimento da Aquicultura
Brasileira, para 2015-2020, executado pelo Ministério da Pesca e Aquicultura,
em sua apresentação, mostra como o setor de pescados representa o próprio
agronegócio:

Os negócios envolvendo o pescado movimentam cerca de US$


600 bilhões todos os anos. Um volume que torna os negócios
com pescado sete vezes maiores que os de carne bovina e nove
vezes maiores que os de carne de frango em nível mundial. E,
neste cenário, a aquicultura é a que apresenta melhores
condições de aumentar a participação brasileira. O Brasil é hoje
o 12º maior produtor mundial em aquicultura, mas os 8.500 km
de costa marítima e a maior reserva de água doce, entre outras
características, colocam-nos em posição privilegiada para
avançar muito nesse ranking. A meta é ficar entre os maiores
produtores do mundo. A aquicultura representa nova fronteira
para o crescimento do nosso agronegócio. E o Plano de
Desenvolvimento da Aquicultura Brasileira (PDA) é justamente o
instrumento do Ministério da Pesca e Aquicultura criado para
ampliar e efetivar as ações que vão orientar o desenvolvimento
sustentável da aquicultura no Brasil. (Plano de Desenvolvimento
da Aquicultura Brasileira, 2015, BRASIL, Ministério da Pesca e
Aquicultura).

Ambos os documentos Plano Safra e Plano de Desenvolvimento da


Aquicultura, enquanto complementares, têm como teor a pesca como produção.
Nesse sentindo, apesar dos números de produtividade da pesca ainda serem
maiores que de aquicultura, o que se aponta é a capacidade de crescimento da
segunda. É a lógica da produtividade enquanto desenvolvimento, o agronegócio.
Há uma discrepancia no número de documentos produzidos e disponíveis
no se que refere à aquicultura e à pesca-artesanal, há um claro interesse
53
impresso nos dados produzidos. O Plano de Desenvolvimento da Aquicultura
Brasileira 2015/2020 se soma ao Plano Safra e ao Plano de Desenvolvimento da
Aquicultura, mapeando a atividade no Brasil e apresentando um panorama e
projeções da atividade para os próximos anos. Mesmo apresentando a pesca
como maior produtora de pescados, não há o mesmo interesse em produzir
material sobre a atividade. Os documentos apontam para a aquicultura enquanto
crescimento, e, nesse sentido como prioridade de investimentos.
Conceição (2013), ao analisar a farsa da expansão do agronegócio,
demonstra como a política de Estado assume o papel de neutralidade na
mediação capital versus trabalho, e como o conceito de agronegócio compõe o
paradigma do desenvolvimento sustentável. As ações passam pelas parcerias
público/privada materializadas a partir de pesquisas governamentais e
instituições de ensino que passam a se responsabilizar e dar respaldo à
tecnologia necessária ao agronegócio. Para a autora, o agronegócio estrutura-
se como paradigma, pois há uma somátoria de ações cujo o Estado é o
mediador:

Funcional ao interesse do capital o Estado viabiliza a ordem


reprodutiva sociometabólica do capital, gerenciando o controle
dos antagonismos, a partir da lógica fetichista do mercado que
se cristaliza na ideia da individualização. A estrutura institucional
Estado, Capital e a farsa da expansão do Agronegócio anuncia
o espaço da possibilidade, como inerente ao mundo das ideias
e das vontades humanas, independentes do sistema econômico,
mas que dizem respeito à capacidade e ou incapacidade
empreendedora do poder da vontade do indivíduo. Sob esta
lógica anuncia políticas de gestão que devem ser regidas no
âmbito local, na perspectiva do desenvolvimento sustentável.
Neste viés, o processo de “realização do capital” via formas de
acumulação intensiva e de formas de gestão e fluxo, consumo e
destruição são equivalentes funcionais. (CONCEIÇÃO, 2013, p.
92).

Para Conceição (2013), é a partir da década de 1990, no contexto do Novo


Mundo Rural, que o Governo direciona o modelo dominante do agronegócio para
a classe dominante e para as classes subalternas em nome de uma segurança
alimentar posta como necessária ao desenvolvimento do país. Esse modelo
consolida-se com as políticas de crédito, e como resultado, o que se tem é a
expropriação da produção familiar, o assalariamento nas areas do agronegócio,
intensificação do desemprego e da precarização do trabalho.

54
No entanto, essa mesma fórmula vem sendo empregada para pensar a
pesca e a produção de pescados, tendo como proposta a aquicultura como
possibilidade e garantia de produtividade, emprego e renda. Emcontra-se
envolta no discurso da sustentabilidade e da segurança alimentar, amparada
por pesquisas governamentais e de instituições de ensino, e viabilizada por
políticas de crédito que beneficiam grandes empresas e passam a determinar a
produção familiar:

A qualquer custo busca-se o lucro sob o pretexto da


utilidade/consumo destruindo os recursos humanos e materiais.
Nesse processo o sistema do capital se articula em uma rede de
contradições, para a sua realização, via formas de acumulação
intensiva e de formas de gestão e fluxo. O sistema
sociometabólico do capital funciona induzindo sempre em maior
intensidade à ampliação da produção de valores de troca. A
tendência expansionista intrínseca do sistema produtivo é a
garantia de maior lucro. (CONCEIÇÃO, 2013, p. 93).

O modelo de produção para a pesca é direcionado aos ditames do


mercado, e à lógica da produção de mercadoria, que vai de encontro à forma
artesanal, que para Ramalho, está diretamente ligada à condição de ser, uma
atividade, que ainda não está completamente configurada à lógica da
reprodução do capital:

[...] o mundo do trabalho pesqueiro não foi capturado e


interferido, na mesma medida, como foram outros setores
econômicos, outras artes, devido ao modo peculiar que assumiu
o desenvolvimento capitalista nas regiões costeiras de muitas
localidades e às mediações societárias (políticas, culturais,
ambientais) presentes no cotidiano dos trabalhadores
pesqueiros. Ao não ser capturada em igual medida ou
plenamente, a sociabilidade do trabalho ainda continua
assumindo eixo central no fazer desses profissionais.
(RAMALHO, 2007, p. 77).

A sociabilidade construída a partir do trabalho diz respeito ao viver da


pesca, enquanto materialidade das relações construídas entre os trabalhadores
da pesca. As ações no formato de políticas para a atividade pesqueira são
realizadas pelo Estado como garantia de reprodução do sóciometabolismo do
capital, desde os órgãos responsáveis por pensar e direcionar a atividade

55
pesqueira, aos projetos que representam em sua essência a garantia da
reprodução de mercadorias.
O Ministério da Pesca e Aquicultura no Brasil foi responsável por gestar
políticas para a atividade pesqueira nos anos que correspondem ao Governo
Lula e Dilma, de 2003 a 2016. Políticas essas não desvinculadas de órgãos
internacionais, como no caso da FAO, que articula e apresenta estratégias
mundiais de ação para a pesca nos países que fazem parte do seu Fórum. Em
Sergipe, o desdobramento dessa articulação através do Ministério da Pesca deu-
se inicialmente através do Projeto de Parques Aquícolas nas cidades de
Estância, Pacatuba, Santa Luzia do Itanhy e Indiaroba.
Segundo representante do Ministério da Pesca, o secretário adjunto 10, em
15 de dezembro de 2014, o projeto de Parque Aquícola prevê sua
implementação também no Baixo São Francisco, sendo que em algumas das
cidades selecionadas para receber os Parques, já existem atividades como a
carcinicultura. O Projeto dos Parques aquícolas 11, iniciado com audiências
públicas, prevê oitocentos e oitenta e cinco áreas aquícolas em Sergipe. A
proposta é o cultivo de ostras em águas marinhas da União, que chamadas de
fazendas de criação, destinada em sua maioria segundo matéria veiculada no
site oficial do Ministério, para a aquicultura familiar.
Em conversa, com Djalma Presidente do CMDS- Conselho Municipal de
Desenvolvimento Sustentável- do município de Estância, em 2016, e também
Presidente da Associação de Pescadores do Povoado Massadiço, que faz parte
das comunidades elencadas para participar do Projeto do Parque, afirmou que
o Projeto prevê dois tipos de licitações, a onerosa e a não onerosa.
A licitação onerosa prevê o pagamento pela licença do cultivo destinada
à pesca industrial; e a não onerosa sem custos de acesso à licitação de cultivo,
aos pescadores-artesanais. A onerosa com proposta em sua metragem de área
de cultivo, de cem por cem metros, e a não onerosa para os pescadores
artesanais de dez por cem metros. A proposta corresponde à implementação de

10
Os cargos de Superintendência da Pesca e de Secretaria Adjunta é de livre nomeação da presidência da
república, e durante o processo de pesquisa houve mudanças nos cargos e nas funções quando o
Ministério é incorporado como secretaria ao Ministério da Agricultura.
11
Com a extinção do Ministério da Pesca em 2015, os projetos de parque aquícolas estão
temporariamente suspensos de acordo informações obtidas na Superintendência Federal de Agricultura,
Pecuária e Abastecimento em Sergipe que assumiu a pasta da pesca.

56
três Parques no município de Estância. O primeiro nos Povoados Massadiço,
Miranga, Miranguinha e Ouricuri; o segundo no Povoado Porto do Mato, e o
terceiro próximo à Praia do Saco.
Apesar dos pescadores artesanais não precisarem pagar pela licitação de
uso da área de cultivo, o Projeto segundo o Presidente do CMDS de Estância,
está atrelado à obrigatoriedade de contrair empréstimos junto ao Banco do Brasil
e ao Banco do Nordeste, para garantir a compra de material importado para a
montagem das fazendas de cultivo e sementes das ostras, estando sob
assistência técnica já definida pela proposta do Projeto da empresa chamada
AQUATRIX, presente em todo litoral brasileiro, desconsiderando o conhecimento
de formas de cultivo que utilizam tecnologia que pode ser feita pela própria
comunidade.
O Projeto do Parque Aquícola12 é colocado como uma oportunidade de
desenvolvimento e renda para os pescadores-artesanais, ao mesmo tempo em
que propõe garantia de uma renda fixa, já que, com o cultivo de pescados, a
atividade não mais dependeria da reprodução natural das espécies na natureza.
Portanto, o projeto apresentado pronto e articulado com uma empresa de
assessoria técnica e atrelado ao financiamento bancário para a compra de
materiais.
Em nível estadual, as políticas em Sergipe são gestadas pela Secretaria
de Estado da Agricultura, Desenvolvimento Agrário e da Pesca- SEAGRI, que
possui entre seus projetos para comunidades que vivem da pesca, o incentivo à
piscicultura. O grande investimento apresentado é o projeto Dom Távora em
parceria com o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola-FIDA, que, em
2017, via edital, anunciou o valor total de 28,6 milhões de dólares a serem
investidos em pequenos negócios rurais em 15 municípios do estado, prevendo
o desenvolvimento de atividades como avicultura, caprinocultura, fruticultura
rizicultura, mandiocultura, e a piscicultura.

12
Os Projetos de Parques Aquícolas foram barrados em todo Brasil devido a problemas ambientais
identificados pelos órgãos competentes, os projetos estão parados e segundo a Superintendência Federal
de Agricultura que abriga a pasta da pesca, a implementação das políticas federais com a extinção do
Ministério da pesca em 2016, serão revistas em sua efetivação e prazos.

57
FIGURA 2: LOGOMARCA DO PROJETO DOM TÁVORA

Fonte: A Secom-Secretaria do Estado de Comunicação Social13.

Em alguns Municípios e Povoados, Gracho Cardoso, Santana dos Frades


e Betume, a implementação da piscicultura é com o cultivo nos rios. Em Gracho
Cardoso, a implementação da piscicultura via o projeto, foi firmada em dezembro
de 2016, no Povoado Três Barras. Para a SEAGRI, alguns municípios como
Santana do São Francisco e Ilha das Flores têm potencial para receber o projeto,
pois possui associações e documentação organizada, o que é critério para
receber o projeto. Parte desses investimentos na piscicultura é em
assentamentos de reforma agrária, como no caso do assentamento de Santana
dos Frades, que prevê a produção de 76 toneladas por ano em lagoas
escavadas. Grande parte dos investimentos do projeto são voltados à
piscicultura:

O Projeto Dom Távora, cofinanciado pela FIDA, tem por objetivo


promover o desenvolvimento de negócios agropecuários e não
agropecuários, por meio de financiamento de planos de

13
Disponível: http://www.agencia.se.gov.br/noticias/agricultura/secretaria-da-agricultura-e-pnud-
lancam-edital-para-contratacao-de-especialistas-e-tecnicos-para-o-dom-tavora. Acesso em 21.10.2017.

58
negócios para associações e cooperativas de agricultores
familiares. Contratado em 2013, com investimento previsto de
US$ 28 milhões, sendo contrapartida estadual de US$ 12,3
milhões, o projeto Dom Távora beneficiará 10 mil famílias de
pequenos produtores rurais, beneficiando 40 mil pessoas,
através da implementação de 300 planos de negócios. O Projeto
atua em 15 municípios dos territórios Agreste Central, Centro
Sul, Baixo São Francisco e Médio Sertão Sergipano. (Disponível
em: http://www.agencia.se.gov.br/noticias/governo/governo-
implanta-projeto-dom-tavora-em-carira. Acesso: 05/03/2017)

Entre os municípios beneficiados estão Nossa Senhora


Aparecida, Carira e Pinhão (Agreste Central); Tobias Barreto,
Poço Verde e Simão Dias (Centro Sul); Graccho Cardoso e
Aquidabã (Médio Sertão); e Pacatuba, Brejo Grande, Ilha das
Flores, Neópolis, Santana do São Francisco, Japoatã e Canhoba
(Baixo São Francisco). (Disponível em:
http://www.agencia.se.gov.br/noticias/governo/governo-
implanta-projeto-dom-tavora-em-carira. Acesso: 05/03/2017)

A piscicultura, em Sergipe, assim como a carcinicultura, aparece como


grande possibilidade para comunidades que vivem da pesca, há incentivo via
órgãos de governo como possibilidade de renda em assentamentos. O Projeto
prevê a compra de alevinos e subprodutos agrícolas necessários à alimentação
dos peixes, treinamento e assistência técnica para monitorar a qualidade da
água, e manusear os equipamentos. A visão da pesca como cultivo passa a estar
completamente integrada ao que representa a agricultura de mercado,
reproduzindo o modelo do agronegócio de pacotes tecnológicos e insumos, vista
como negócio, investimento e produtividade.
O que está em questão é a finalidade deste tipo de Projeto, que parte de
uma demanda imposta às comunidades pesqueiras, como Política Pública,
sendo que as comunidades apesar de terem suas demandas próprias a partir do
conhecimento das áreas onde se pretende implantar tais Projetos, são-lhes
apresentadas a Nova Política, da qual devem abraçar como garantia do viver da
pesca. Garantia a partir de uma atividade controlada enquanto cultivo, com a
licença para a prática, e o financiamento dos Órgãos Públicos mediante crédito
bancário.
Há vários estudos e pesquisas no âmbito da Questão Agrária sobre os
desdobramentos da Política de Crédito no campo, que vão do endividamento ao
controle da produção, que sujeitam o pequeno produtor à uma competição
desleal com os grandes produtores que recebem os maiores investimentos, e
59
que dominam a tecnologia disponível, tendo toda sua lógica de reprodução
voltada ao mercado.
Para Rodrigues (2014), pensar a Política Pública é pensar as ações do
Estado na garantia da preservação das relações capitalistas, o que no campo,
em meados da década de 1990, articulado com órgãos internacionais-Banco
Mundial, FAO, sindicatos, grupos empresariais, vai representar um avanço do
capital no campo. O mercado passa a ser o objetivo através de Políticas de
Desenvolvimento Rural como possibilidade de transformação social. Políticas
que negam uma Questão Agrária ou conflitos provenientes do acesso à terra, da
concentração fundiária à prioridade dos investimentos onde há mais capital. A
estratégia de modernização do campo brasileiro visando promover a
produtividade para exportação, concentrou ainda mais a terra e renda, e
promoveu mais desigualdade, precarizando as condições de vida e trabalho, no
Brasil e em Sergipe (RODRIGUES, 2014).
O que se apresenta é a funcionalidade do Estado capitalista, de forma que
na atividade pesqueira artesanal, para que haja uma total subsunção do trabalho
ao capital, é necessário ter controle da atividade, não somente no momento da
circulação da mercadoria apropriada pelo mercado, mas da atividade em sim em
seu processo produtivo. Conceição (2012) chama-nos atenção para o sistema
sóciometabólico do capital, em sua estrutura poderosa, que se constitui, a partir
do tripé Estado- capital- trabalho, de forma que o trabalho torna-se cada vez mais
objetivado e funcional ao capital e não às necessidades humanas:

A estrutura institucional anuncia o espaço da possibilidade como


inerente ao mundo das ideias e das vontades humanas
independentes do sistema econômico, mas que dizem respeito
à capacidade e ou incapacidade empreendedora do poder da
vontade do indivíduo. Sob essa lógica anuncia políticas de
gestões, que devem ser regidas no âmbito local, na perspectiva
do desenvolvimento sustentável. (CONCEIÇÃO, 2012, p. 143).

Dois discursos predominam, como imprescindíveis à atividade pesqueira:


o desenvolvimento sustentável como resposta às dificuldades encontradas na
prática da pesca, diante do ciclo reprodutivo da natureza, que não mais responde
de forma a garantir uma grande quantidade de pescados. Sendo assim,
responsabilidade do trabalhador pescador promover a sustentabilidade. No

60
discurso do empreendedorismo, a atividade pesqueira precisaria modernizar-se,
aproveitar todos os recursos possíveis para inserir-se de forma mais incisiva no
mercado. Um trecho do Documento de 2012 da consultoria legislativa da
Câmara dos Deputados do Brasil aponta sobre a pesca e aquicultura:

Entre as políticas preconizadas por aquele Ministério para o


desenvolvimento do setor, destaca-se o Plano-Safra da Pesca e
Aquicultura, lançado em outubro de 2012 e aplicável até 2014,
com o objetivo de aumentar a produção e a produtividade do
setor e torná-lo mais inclusivo e sustentável, por meio de
medidas de estímulo à competitividade e ao empreendedorismo.
Entre as medidas previstas no Plano-Safra da Pesca e
Aquicultura destacam-se: aprimoramento das técnicas de
captura, cultivo e manuseio do pescado; formação e capacitação
de pescadores e aquicultores; ampliação da assistência técnica;
fortalecimento de cooperativas e associações de pesca e
aquicultura; modernização de equipamentos; investimento em
pesquisa, desenvolvimento e inovação e em infraestrutura para
a cadeia produtiva; etc. Prevê-se a implantação de novos
parques aquícolas em lagos e represas de várias regiões do
Brasil. (GOMES, 2012, p. 20).

As Políticas de Pesca e Aquicultura no Brasil são influenciadas


diretamente pela FAO, já que o país integra o Fórum, dentro de uma política
maior, pensada a partir do Banco Mundial, do FMI como parte das agências
multilaterais que institucionalizaram as relações entre Estados, dada a
mundialização do capital. Para a FAO, é necessário que os Governos
compreendam a importância das comunidades pesqueiras artesanais
marginalizadas e desprovidas de direito, de forma que estejam inseridas no
plano de gestão promovido pelo Estado.
Nos seus documentos, a FAO, apresenta a pesca e a aquicultura, e
aponta para a importância de pensar as atividades dentro do debate do
desenvolvimento sustentável, do combate à fome, da segurança alimentar, a
partir de um plano de gestão que garanta um aumento da produção e,
consequentemente, a inserção no comércio mundial que demanda os pescados.
Os impactos ambientais promovidos pela criação de pescados e da maior
produtividade no setor pesqueiro, segundo esta, seria resolvido com uma boa
gestão dos recursos:

61
A destruição da natureza é tratada como crise ambiental com
base nas concepções que defendem a possibilidade da criação
de práticas econômicas e sociais alternativas capazes de operar
transformações expressivas nas relações entre sociedade e
meio ambiente, à luza do paradigma da sustentabilidade, o qual
propõe a internalização de uma nova ética, mediante o
surgimento de uma consciência ecológica, por meio de
mecanismos de mercado como ecoeficiência, certificações e
licenciamento ambiental, ICMS verdes, compensação
ambiental, acordos internacionais, protocolos diplomáticos,
dentre outros. (FONTENELE, 2016, p. 131).

A sustentabilidade diante da mundialização do capital onde “o uso da


terra, bem como de todos os recursos naturais, renováveis ou não, foi submetido
ainda mais estreitamente às leis do mercado e do lucro capitalista” (CHESNAIS,
1996, p. 42), de maneira que a produtividade toma a centralidade dos discursos,
e torna-se apenas uma estratégia de mercado para apaziguar conflitos, a
sustentabilidade insustentável passa a ser gerida e vendida juntamente com a
mercadoria produzida.
Esse é o plano de gestão possível para o Estado. Para Noma (2012), a
Política Pública seria o Estado em ação, implantando um projeto de Governo, de
forma que a implementação dessas não envolvesse somente órgãos públicos,
não podendo ser consideradas apenas políticas estatais, já que são planejadas
por diferentes organismos e agentes da sociedade.
A Política Pública se inscreve enquanto ação do processo do capital
mundializado, o que não nos permite pensar apenas localmente a forma como
essas são materializadas. Para Chesnais (1996), o conceito de mundialização
passa pelo entendimento de um sistema de integração de mercadorias,
principalmente no que remete às tecnologias e investimentos em sua produção,
como forma de garantir essa produção.

1.2.2- As implicações das políticas de Estado sobre a Pesca-Artesanal

A pesca-artesanal é uma atividade que em sua forma organizacional, tem


baixo poder predatório, enquanto prática familiar ou de comunidade, onde o
trabalhador é proprietário dos seus meios de produção e do seu próprio trabalho,
representa ao mesmo tempo um obstáculo à acumulação, e um espaço da

62
acumulação do capital. A imposição da produtividade capitalista na prática
artesanal da pesca é justamente a imposição para a acumulação do capital.
Para Harvey (2010), “as relações entre o capital e o trabalho, bem como
entre o capital e a natureza, são mediadas pela escolha de tecnologias e de
formas organizacionais” (p. 104), que justamente vão mediar à realização do
fetiche da mercadoria, em sua plenitude. Na sua prática artesanal, a pesca
possibilita uma barreira à concretização do processo de reificação das relações,
e do próprio trabalhador que pesca, já que o trabalho ainda não se encontra por
completo subjugado aos imperativos das relações capitalistas.
O produto do trabalho na atividade pesqueira artesanal é retirado
diretamente da natureza. Para Marx (2013), a terra assim como a água
representam meios de subsistências prontos, porque preexiste independente do
trabalho (p. 256). Ao retirar o peixe, os mariscos - do mangue, do rio, do mar- o
trabalhador que pesca obtém objetos de trabalho também preexistentes na
natureza. Essa possibilidade objetivada na pesca-artesanal faz com que os
meios de trabalho estejam disponíveis na natureza, o que permite que a pesca-
artesanal não se dê na forma assalariada, tendo o pescador, domínio de todo o
processo de trabalho até chegar ao produto final do seu trabalho.
A atividade pesqueira-artesanal enquanto trabalho, produz natureza, mas
o que centraliza essa forma de produzir natureza não é apropriação dos meios
de trabalho disponíveis, de forma a garantir diretamente a ampliação/reprodução
do capital, mas a própria condição do pescador artesanal. Diante do que
representa o capital, para Smith (1988), posta uma necessidade social de
ampliação e dominação da natureza, sendo que:

O capitalismo herda um mercado mundial global- um sistema de


troca e circulação de mercadorias- que ele dirige e então
regurgita como sistema capitalista mundial, um sistema de
produção. Para atingir este ponto, a própria força de trabalho
humano é convertida em mercadoria, produzida como qualquer
outra mercadoria de acordo com as relações sociais
especificamente capitalistas. A meta do capital é a produção na
natureza na escala global e não somente um crescente manejo
habilidoso sobre a natureza. (SMITH, 1988, p. 103).

Produzir e dominar a natureza não é a mesma coisa, apesar de ao


produzir natureza haver de certa maneira uma dominação (Smith 1988). No

63
sistema do capital, no entanto a produção da natureza deve representar a
dominação no sentido de garantir a expansão e acumulação contínua do capital.
Enquanto a prática da pesca-artesanal impõe limites ao modelo de organização
capitalista, de modo que nem o trabalho e nem o produto do trabalho estão
submetidos completamente às necessidades do capital, às necessidades do
mercado.
Atividades como a aquicultura, ao contrário, se integra perfeitamente ao
mercado mundial, que para Mészáros (2002), é incontrolável, e participando
deste, deve- se adaptar às condições econômicas de coexistências de
mercados, cuja concorrência prevalece e os conflitos se dão na forma da
destruição, na eliminação dos rivais. O que nada tem a ver com a prática de
cooperação construída na pesca-artesanal enquanto atividade exercida em
família ou no que se define vizinhança, e que dá sentido à comunidade.
O Estado reconhece e institucionaliza a pesca-artesanal, de maneira que
se apropria do que é potencial à acumulação do capital, mas não na garantia do
modo de ser da atividade. É discurso do Estado, e de instituições como a FAO,
que a pesca é uma atividade de extrema importância na garantia da segurança
alimentar, na produção de alimentos. Números do Ministério da Pesca no Brasil,
mostram que a quantidade de alimentos produzidos pela pesca-artesanal, e pelo
cultivo através da aquicultura são muito próximos. Em 2013, a produção de
pescados no Brasil foi estimada em 2,5 milhões de toneladas, sendo que 45%
da produção anual de pescados no Brasil correspondente à pesca-artesanal, o
que equivale há um pouco mais de um milhão de pescados provenientes da
modalidade artesanal, no entanto o estimulo se dá em direção contrária à
maneira de produzir do pescador artesanal:

O Estado, responsável maior pelo fomento da atividade, vem


investindo fortemente na promoção de outras formas de
produção pesqueira em detrimento ao estímulo da pesca
artesanal. O cenário favorável a aquicultura brasileira remete ao
modelo chinês de produção (o qual se destaca, de maneira
isolada, no cenário mundial) que visa o empresariamento e a
produção em larga escala objetivando, em especial, a
exportação. (RAINHA et al., 2014, p. 88).

64
O Estado sempre esteve presente na constituição do que seria a pesca-
artesanal, já que a própria instituição dessa categoria em contraponto ao que
seria a pesca industrial é estabelecida pelo próprio Estado. Para Resende
(2014), a relação institucional da pesca com o Estado Brasileiro remete ao
período Imperial, quando o conhecimento do pescador sobre a natureza e suas
possibilidades de uso se torna funcional, assim como a possibilidade da atividade
pesqueira tornar-se parte da estratégia de controle do território, do litoral
brasileiro. O pescador passa então a está sob o controle da Marinha, mediante
as estruturas administrativas:

O decreto n° 447, de 19 de maio de 1846, tem no seu capítulo V


a primeira sistematização da atividade pesqueira e a
regulamentação das estruturas que possibilitariam o surgimento
das colônias de pescadores. Essas instituições receberam o
nome de distrito de pesca, e ficaram subordinadas diretamente
à Marinha e, por meio desta, à Capitania dos Portos,
responsável pelo controle regional de todas as atuações
territoriais da atividade pesqueira. (REZENDE, 2014, p. 58).

Mészáros (2002) considera que há três defeitos estruturais do capital, do


qual o Estado atua com o papel corretivo em suas contradições, são eles:
produção e controle, produção e consumo e produção e circulação. No primeiro
momento, referente à pesca-artesanal no Brasil, o Estado atua sobre a produção
e controle, já que passa a controlar não somente o território, mas o que se pesca,
e a própria condição de pescar, a partir de licenças concedidas. Controle que se
estende às organizações coletivas na forma de colônias, ou federações, de
forma que a Marinha apropria-se do território da atividade pesqueira e da
comercialização do pescado, pela regulamentação dos pescadores e de suas
embarcações, vinculando-as a si mesma (REZENDE, 2014, p. 47).
Em seguida, tem-se um papel corretivo mais forte sobre a circulação e o
consumo, já que as tentativas em tornar a pesca uma atividade moderna e
produtiva, capaz de atender às necessidades de um mercado mundial se fazem
presentes, enquanto políticas direcionadas a esta atividade. O filetamento dos
pescados e a produção de determinadas espécies de ostra e camarão são
demandas provenientes do mercado mundial que não considera as
especificidades locais; o Estado entra como mediador por meio de incentivos

65
que tornem os pescados atrativos ao mercado. Dessa forma, o Estado em seu
papel corretivo atua diretamente sobre a atividade pesqueira.
Apesar da atividade pesqueira artesanal perpassar pela forma de
apropriação/relação com a natureza das sociabilidades existentes, representa
um contraponto ao modo de produzir do capital. A pesca-artesanal perpassa a
institucionalidade desde o momento que é reconhecida enquanto categoria
atrelada diretamente ao Estado. A condição de exercer a pesca, enquanto
atividade econômica que permita o sustento, é a de se cadastrar junto ao
Ministério da Pesca e obter a carteira de profissional.
O Estado atua de forma a inserir a pesca no circuito produtivo do capital
mesmo em sua forma artesanal, sendo uma atividade que aponta para caminhos
que não somente o do trabalho assalariado e do consumo da natureza, enquanto
mercadoria. O esforço corretivo se dá via estratégia de controle do território, ou
do trabalho em si, para garantir a acumulação capitalista e não a acumulação do
que representa vida.

1.3-Do território do capital a Permanência da Pesca-Artesanal em Sergipe

Segundo órgãos governamentais, IBAMA, SEAGRI, SFA-SE, não há


registro de pesca industrial no estado, todo pescado é proveniente da pesca
artesanal ou de atividade relacionadas à aquicultura, como a carcinicultura e a
piscicultura. Apesar da presença da pesca empresarial, com grandes barcos de
arrasto, os trabalhadores que embarcam são pescadores artesanais, e a
modalidade não configura pesca industrial.
A prática da pesca-artesanal depende do ciclo das águas. Em Sergipe,
dá-se em sua zona costeira, nos rios e mangues que permitem a captura de
peixes, crustáceos e mariscos. Sergipe possui uma zona costeira de 163 km,
situada entre o Rio São Francisco e o rio Piauí/Real. A rede hídrica do estado é
formada por oito bacias hidrográficas (Mapa 2), são elas: Bacia do Rio São
Francisco; Rio Vaza Barris; Rio Real; Rio Japaratuba; Rio Sergipe; Rio Piauí;
Costeira Sapucaia- GC1; Costeira Caueira/Abaís-GC2 e (Comitê de Bacias
Hidrográficas de Sergipe, 2016).

66
MAPA 2: BACIAS HIDROGRÁFICAS DE SERGIPE

A atividade pesqueira se estende por todo litoral sergipano, ao longo das


bacias hidrográficas e seus afluentes, e em áreas de estuário, como no caso da
comunidade do Mosqueiro no estuário do Rio Vaza Barris; e Resina, no Baixo
São Francisco. Algumas comunidades resistem nos aglomerados urbanos, a
exemplo, os pescadores da Coroa do Meio e do Bairro Industrial, em Aracaju.
Os pescadores em Sergipe estão organizados em Colônias, Associações e

67
Federação contabilizando, em 2014, 44 organizações segundo dados do
Ministério da Pesca. Algumas comunidades, além da pesca, exercem outras
atividades e são reconhecidamente quilombolas, indígenas, e assentamentos de
reforma agrária.
De acordo com dados disponibilizados pelo Ministério da Pesca, o número
de pescadores artesanais em todo Brasil aumentou durante os governos de Lula
e Dilma, de 2002 a 2016. Esse aumento está relacionado às políticas
direcionadas para a atividade pesqueira efetivada com a criação do Ministério da
pesca, em 2009, e algumas leis e decretos direcionados a atividade. O aumento
é referente às estatísticas institucionais, devido ao cadastro necessário para o
exercício da atividade pesqueira, o que, consequentemente, possibilitou um
maior canal de comunicação com as entidades representativas dos pescadores
e com os Movimentos Sociais ligados à atividade pesqueira, que mediam a
comunicação e o acesso dos trabalhadores da pesca às Políticas Públicas e se
organizam de forma a consolidar suas pautas.
Esses avanços foram possíveis devido à luta dos Movimentos Sociais
pelo reconhecimento da atividade e dos direitos trabalhistas, investimentos para
o setor e reconhecimento das comunidades e do território que vivem. No entanto,
na pauta dos Movimentos, estão questionamentos à forma como as Políticas
foram direcionadas e articuladas. O que guia as políticas é a necessidade do
mercado internacional, articuladas a uma modernização que tem por objetivo
somente a produtividade para o mercado, o que faz com que as Políticas
Públicas sejam compensatórias em relação às reais necessidades das
comunidades que vivem da pesca.
A Lei 11.958 sancionada em 2009, dispõe sobre a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca para regular as
atividades pesqueiras. Em suas principais competências: reconhece ao Estado
a função de ordenar, fomentar e fiscalizar a atividade pesqueira; preservar e
conservar recursos pesqueiros; define a atividade pesqueira, a atividade de
aquicultura e as categorias e setores relacionados às atividades.
Essa lei foi de grande impacto, pois conjuntamente com a criação do
Ministério da Pesca, permeou toda a Política Pública e as reivindicações dos
setores articulados com o processo de captura de pescados, entre eles a pesca-
artesanal. O reconhecimento de direitos fez com que muitos trabalhadores da

68
pesca, desde os que trabalham com a captura até os que trabalham com a
comercialização, pudessem ter reconhecido direitos trabalhistas e acesso aos
benefícios, como o crédito bancário e aposentadoria especial.
Historicamente, as Colônias têm a função de representar os pescadores
artesanais enquanto órgão de classe. A lei 11.699 de 13 de junho de 2008,
dispõe sobre a livre associação e o papel de representação estadual das
Colônias. Já as Associações de pescadores fazem o papel de intermédio com
os Órgãos governamentais, tratando da burocracia necessária para acessar o
seguro defeso e a aposentadoria, mas o fazem não enquanto órgão de classe,
e sim como assessoria. Houve um aumento do número de associações nos
últimos anos14, o que mostra uma mudança na dinâmica representativa dos
pescadores, que passa por disputas políticas intensificadas com o advento das
políticas destinadas à categoria dos pescadores artesanais. (Quadro 1 e Mapa
3)

QUADRO 1: TOTAL DE PESCADORES


PROFISSIONAIS ARTESANAIS POR ANO DE
INSCRIÇÃO EM SERGIPE

Até 2009 2010 2011 2012 2013 2014 Total

22.701 3.677 204 4.514 4.092 2.899 38.087

Fonte: Ministério da Pesca 2015


Organização: Nunes, Shauane I.F. (2016)

Não houve atualização dos dados do Ministério da Pesca até o ano de 2016 por conta da extinção do
órgão. Os dados sobre a RGP são disponibilizados no site do Ministério da Agricultura e na
Superintendência Federal de Agricultura.

69
MAPA 3: PESCA ARTESANAL EM SERGIPE 2016

70
Até o ano de 2014, de acordo com os dados do Ministério da Pesca,
haviam cadastrado 38.087 pescadores profissionais artesanais ativos, em 2016,
o número de cadastrados segundo o Ministério da Agricultura é de 28.348. Essa
queda no número de cadastros pode ser explicada pelos decretos 8.424 e 8.225
de 2015, que definiu novas regras para acesso a benefícios, e dificultou a
liberação e a regularização de novas RGPs. Os decretos excluem as atividades
de apoio à pesca, do acesso a benefícios, como o seguro defeso, e dispõe sobre
novos critérios para inscrição no Registro Geral da Atividade Pesqueira. Com
isso, órgãos de controle suspenderam registros já existentes e a análise de
novos, retomando a regularização do RGP somente em julho de 2017 15.
O cadastro que se refere ao RGP, concessão de autorização, permissão
ou licença para o exercício da atividade pesqueira é também necessário para
que pescadores possam acessar benefícios relacionados à atividade pesqueira
comprovando a profissão. Os benefícios assegurados são: o seguro defeso16, o
auxilio maternidade, auxilio doença, e a aposentadoria especial a qual assegura
que o trabalhador da pesca se aposente cinco anos antes que o trabalhador
urbano, como também o acesso às políticas de crédito e de infraestrutura.
Com a extinção do Ministério da Pesca17, a competência sobre a
regulação e as Políticas Federais para a atividade pesqueira passaram para
SFA-SE, ligado ao Ministério da Agricultura. No que corresponde às políticas de
infraestrutura, em 2015, com a suspensão da liberação de novos Parques
Aquícolas em todo o Brasil, foram suspensos os previstos para Sergipe- em
Estância e no Baixo São Francisco. A suspensão deve-se a problemas com
monitoramento e atendimento de condicionantes de licenças ambientais em todo
Brasil.

15
A Secretaria de Aquicultura e Pesca do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC)
publicou em 27 de julho de 2017 a portaria 1275 que tornou válido os registros suspensos e ainda não
analisados em todo Brasil. A permissão não dá acesso imediatamente ao seguro-defeso, que depende do
preenchimento dos pré-requisitos da Lei n° 10.779/ 2003 e Decreto n° 8.424/2015
16
O seguro defeso é um benefício pago ao pescador artesanal que fica proibido de capturar determinadas
espécies em períodos determinados para a reprodução. Desde abril de 2015 a habilitação e a concessão
do seguro-defeso cabem ao INSS e a gestão ao Ministério do Trabalho e do Emprego.
17
Em consonância com a Lei 15. 502/2017 que estabelece a organização básica de órgão da Presidência
da República e dos ministérios, em 22/01/2018, a Secretaria de Aquicultura e Pesca deixa de pertencer
ao Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços e passa a estar vinculada diretamente a
Presidência da República, o que lhe garante novamente o status de Ministério.

71
As políticas de infraestrutura presentes em Sergipe correspondem a
fábricas de gelo, caminhões frigoríficos, escavadeiras e computadores de acordo
com informações da SFA-SE em 2016. São duas fábricas de gelo no estado,
uma funciona no município de Brejo Grande e a segunda está ociosa no
município de Santa Luzia do Itanhy. Conforme a SFA-SE, as políticas de infra-
estrutura estão sendo repensadas para que as prefeituras desses municípios
assumam a gestão. As escavadeiras estão cedidas para construção de tanques
nos municípios de Carira, Itabaiana e Nossa Senhora das Dores. Um Telecentro
funciona em Brejo Grande, com computadores e acesso à internet voltado para
a formação dos pescadores. Em relação à assistência técnica para a criação de
pescados, ela existe a nível federal como política do MDA, mas não tem atuado
em Sergipe.
A grande aposta de infraestrutura é o terminal pesqueiro iniciada sua
construção em dezembro de 2015 e com 75% de suas obras finalizadas em
fevereiro de 2017, com pendências técnicas ainda em 2018. O terminal
construído pelo Governo do Estado em Convênio com o Governo Federal tem
como meta atingir mais de 12 mil pescadores, e o objetivo de facilitar a
comercialização de pescados, atendendo exigências de mercado como
conservação e limpeza. A intenção é profissionalizar a atividade:

Os mais de 12 mil profissionais da Grande Aracaju e região Sul


do estado desenvolverão suas atividades com melhorias na
estrutura, serviços profissionalizados e aprimoramento na
qualidade dos produtos oferecidos, o que resultará não apenas
na redução de custos, mas, principalmente no amplio das
vendas dos peixes e pescados para grandes varejistas dentro e
até fora de Sergipe. (Fonte: SEAGRI/SE. Disponível em:
www.seagrise.se.gov.br)

72
FIGURA 3- TERMINAL PESQUEIRO DE SERGIPE

FONTE: SEAGRI, Disponível em: seagri.se.gov.br. Acesso em 30/10/2016.

FOTO 1 – CONSTRUÇÃO DO TERMINAL PESQUEIRO DE SERGIPE

FONTE: NUNES, S.I.F, pesquisa de campo, Aracaju 2016

No estado de Sergipe, a política de infraestrutura, desde a proposta dos


Parques Aquícolas à construção do terminal pesqueiro tem como objetivo
modernizar e garantir a produtividade e a capacidade de comercialização dos
pescados, em consonância com a indicação de órgãos internacionais e
nacionais de que é preciso profissionalizar a captura de pescados no Brasil.

73
Pensar a profissionalização da captura e a comercialização de pescados
em Sergipe, quando se tem como política de infraestrutura apenas dois
frigoríficos que não correspondem à demanda de pescados do estado, enquanto
que o terminal pesqueiro localiza-se, onde aportam grandes embarcações,
remete a intencionalidade do papel do pescador-artesanal nesse modelo de
desenvolvimento. Não há como o pescador artesanal acessar o mercado em
disputa com a estrutura de grandes empresas de comercialização de pescados,
o que fortalece a presença de atravessadores nas comunidades.
Não há nas políticas de infraestrutura identificadas com qualquer
referência ao acesso a instrumentos de pesca, como redes, barcos e motores,
que permitem uma maior autonomia dos pescadores, que é o acesso aos seus
instrumentos de trabalho. A única política destinada à compra desse material
passa pelo crédito individual que leva ao endividamento de uma categoria já
fragilizada. Como estratégia de permanência, muitos pescadores (Foto 2)
desenvolvem habilidades na fabricação de redes e barcos e estabelecem preços
entre si, que passam pela renda disponível da comunidade e não por valores de
mercado.

FOTO 2- PESCADORES DO BAIRRO INDUSTRIAL E DE PIRAMBU.

FONTE: NUNES, S.I.F, pesquisa de campo, Aracaju 2016

74
Outro ponto de disputa nas políticas conquistadas ao longo dos últimos
anos tem a ver com o RGP. Um dos problemas apontados na Superintendência
Federal de Agricultura em Sergipe- SFA-SE, refere-se ao número real de
pescadores no estado que não condiz com o número de registros. A alegação é
que muitos fazem o registro para acessar benefícios, o seguro- defeso e a
aposentadoria especial, discurso esse, que ao desqualificar os pescadores
enquanto categoria, fragiliza o acesso à política pública.
O dirigente da Colônia Z118 que abrange Aracaju e municípios próximos
como Maruim e Laranjeiras, afirma que o papel da Colônia é fazer o cadastro
inicial, sendo necessário além da documentação dos pescadores, duas
testemunhas que atestem que a pessoa em questão exerce a pesca-artesanal.
Dessa forma, não é competência de entidades representativas fiscalizar quem
de fato pratica ou não a atividade pesqueira artesanal, a comprovação se dá pelo
reconhecimento de outros pescadores.
Com as novas regras de acesso aos benefícios para novos cadastrados
por meio dos decretos n°8424 e n°8425 de abril de 2015, o governo federal alega
diminuição de distorções:

Desse modo, de acordo com o Decreto nº 8.424, o seguro-


desemprego pago ao pescador profissional artesanal será
destinado ao interessado que exerça a função
ininterruptamente, de modo individual ou em regime de
economia familiar. O benefício será devido ao pescador inscrito
no Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP), com licença de
pesca concedida pelo Ministério da Pesca e Aquicultura e que
tenha realizado o pagamento da contribuição previdenciária nos
últimos doze meses imediatamente anteriores ao requerimento
do benefício, ou desde o último período de defeso. Estão
excluídos de receber o benefício, os trabalhadores de apoio à
pesca artesanal e os componentes do grupo familiar do
pescador profissional artesanal. Além disso, também não será
possível acumular esse benefício com outro vínculo de emprego,
ou relação de trabalho; outra fonte de renda diversa da
decorrente da pesca; ou com mais de um benefício social no
mesmo ano. Mesmo no caso do Bolsa Família, o beneficiário
deixará de receber o benefício do programa Bolsa Família
temporariamente, enquanto estiver coberto pelo Seguro Defeso,
informa o Ministério da Pesca e Aquicultura. (Portal Brasil19).

18
A visita a Colônia Z1 foi feita em 2016.
19
Disponível em: http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2015/04/pescador-recebera-seguro-
desemprego-durante-defeso. (Acesso em 03/11/2015)

75
Para os dirigentes20 das Colônias Z1 e Z2, das regiões de Aracaju e São
Cristóvão, respectivamente, com maior número de pescadores registrados em
Sergipe, muitos pescadores são prejudicados com a suspensão do cadastro
inicial, as colônias desde 2015, não recebem a carteira de pescador de alguns
associados já cadastrados, o que as impede de efetuar novos cadastros iniciais.
O Decreto n°8.424, com as novas regras para acesso ao seguro defeso e registro
de pescador, à medida que legisla sobre o acesso aos benefícios de direito do
pescador- artesanal ignora a realidade do mesmo.
O Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais em Intercâmbio 21
realizado em Sergipe, com pescadores e pescadoras do estado, defende a
pesca como captura, beneficiamento e comercialização. Esse reconhecimento
fortalece a atividade pesqueira em detrimento da figura do atravessador
comumente apontado por comunidades que vivem da pesca como uns dos
grandes problemas, obrigando-as a entregar o pescado por um valor que não
lhes garante o sustento.
Para o Movimento, a leitura da pesca ininterrupta é uma negação da
realidade das pescadoras e pescadores que enfrentam diversas dificuldades
para viver da pesca. Nesse sentido, esses decretos representam um
enfraquecimento e um recuo a direitos conquistados. Após os decretos o MPP
contabiliza o indeferimento e não entrega de mais de 200 mil carteiras em 2015
e 2016, a resposta se dá na forma de mobilização, em novembro de 2016, em
Brasília, para afirmar entre outras pautas, a necessidade de revogação desses
decretos.
O emprego em outras atividades durante o ano, ou o exercício da
atividade pesqueira associada a outras atividades, faz-se necessário devido às
dificuldades e à impossibilidade em muitos casos de viver somente da pesca. A
renda de outras atividades permite o acesso não somente a itens de consumo,
como a manutenção dos instrumentos de trabalho, rede, barco, motor. As
atividades de apoio à pesca, que envolvem tratar o pescado, ou comercializar,

20
Conversa realizada em 2017 na colônia Z1 em reunião com os dirigentes da colônia Z1 e Z2.
21
De 28 de outubro a 1 de novembro de 2016 foi realizado em Sergipe um Intercâmbio das Pastorais
Sociais do Campo, Movimentos Sociais, Povos e Comunidades Tradicionais, onde foi possível a nossa
participação.

76
são feitas por familiares ou por pessoas da comunidade, e constituem o viver da
pesca.
A construção da Política Pública descolada da realidade do pescador, ou
a partir de uma visão romantizada e útil de comunidades tradicionais que liga a
relação com a natureza a uma condição de pobreza, tem como papel negar-lhes
não só o acesso ao consumo, mas fragilizar-lhes em seus direitos conquistados:

Neste contexto, supera-se também pensar a pesca como


atividade puramente tradicional. Sim, existem as tradições do
fazer, das técnicas, de formas societais, repassadas por
gerações, mas o pescador é ser, é presente, vive e experimenta
a modernidade do capitalismo, como qualquer pessoa que
experimenta a experiência do presente, a experiência da
modernidade como ambiente efêmero e fugidio no que se refere
a sociedade de consumo e à parceria público-empresa e a
experiência da vida coletiva urbana ou rural (SILVA, 2014, apud
Harvey 2011, p. 23.)
As características que permeiam a pesca-artesanal como uma categoria
de Estado, para Silva (2014), referem-se à forma de realizar trabalho, na
extração de pescados, maricultura, às técnicas, à confecção dos instrumentos
de trabalho, assim como à qualificação profissional que se realiza a partir da
tradição familiar ou comunitária. Para a autora, a pesca-artesanal se inscreve no
circuito produtivo nacional e se fortalece como economia local, não como ação
do Estado, mas em sua forma econômica pautada nas relações de parceria e
familiares, possíveis pela produção social do espaço em que a natureza é
elemento fundamental de produção/extração, o que leva à necessidade de
disputar território.
A relação direta da atividade pesqueira artesanal com a natureza, à
medida que se configura como uma atividade extrativa, é uma disputa no modo
de organizar-se enquanto trabalho, diante da lógica do trabalho abstrato, como
mediação necessária à reprodução do capital. É uma disputa enquanto a
permanência da atividade representa não só o reconhecimento pelo Estado
dessa categoria, mas à medida que representa uma disputa por terra e água,
como condição de vida- o que se torna um impedimento, muitas vezes, a
materialização de relações de mercadorização da natureza e da vida.
Fragilizar a pesca-artesanal enquanto categoria reconhecida pelo Estado
é útil, à medida que o reconhecimento é também o delimitar pela política pública.

77
O reconhecimento não leva a uma leitura da atividade em sua realidade. Há o
risco dos trabalhadores da pesca organizarem-se em torno de políticas públicas
que lhe são de direito, mas que representam a essência do Estado, enquanto
que a materialização do sentido de ser pescador/pescadora artesanal se dá na
continuidade do viver da/na natureza.
Em Sergipe os relatos dos pescadores artesanais e das pesquisas
institucionais sobre os vários usos dados, as águas das bacias, estuários, e
marítimas e sua relação com as dificuldades do viver da pesca-artesanal passam
pelo despejo de produtos químicos, o represamento e o não acesso pelos
pescadores a áreas historicamente de uso da atividade pesqueira. Alguns dos
problemas identificados, como, o despejo de produtos poluentes diretamente nas
águas, é notícia recorrente em Sergipe, (Figura, 3, 4 e 5), matérias sobre
manchas de óleo encontradas na praia, referentes a vazamentos da Petrobrás.
Os resíduos das usinas de cana de açúcar e de tanques de criação de pescados
despejados diretamente nas águas dos rios também são identificados como
problemas ambientais no estado.

FIGURA 4: REPORTAGEM SOBRE VAZAMENTO DA PETROBRÁS

Fonte: Folha de São Paulo.22

22
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/09/1809316-ibama-multa-petrobras-
em-r-125-milhoes-por-vazamento-em-sergipe.shtml. Acesso em: 10/10/2016.

78
FIGURA 5: REPORTAGEM SOBRE POLUIÇÃO DE RIOS EM SERGIPE

Fonte: Destaque comunicação.23

FIGURA 6: REPORTAGEM SOBRE ESTADO CRÍTICO DO DO RIO SÃO FRANCISCO

Fonte: G1 Sergipe.24

23
Disponível em: https://www.destaquenoticias.com.br/leia-poluicao-e-descaso-estao-matando-os-
rios-sergipe-e-poxim/. Acesso em: 10/01/2017.
24
Disponível em: https://g1.globo.com/se/sergipe/noticia/fpi-conclui-que-a-foz-do-rio-sao-francisco-
esta-em-estado-critico.ghtml. Acesso em: 20/10/2017.

79
Relatórios tem sido produzidos no sentido de identificar os problemas que
impactam diretamente a atividade pesqueira visando dar visibilidade às
comunidades que vivem da pesca, fortalecer a identidade construída a partir da
pesca-artesanal e subsidiar políticas na garantia dos territórios das comunidades
tradicionais, o que representa material importante em nível nacional em
contraponto à visão da produção de pescados como possível expansão do
agronegócio que não revela os problemas já enfrentados pelos pescadores
artesanais .
O Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, que disponibiliza
material produzido em diversos estados do Brasil junto a comunidades
tradicionais e está ligado à Universidade Federal da Amazônia e à Publicação
Conflitos Socioambientais e Violações de Direitos Humanos em Comunidades
Tradicionais Pesqueiras no Brasil, produzido pelo Conselho Pastoral dos
Pescadores, ambos a nível nacional, identificam e mapeiam alguns dos conflitos
que afetam diretamente a pesca-artesanal no Brasil incluindo Sergipe, e que vão
de encontro à garantia da permanência das comunidades que vivem da pesca.
No Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia25, nas séries referentes
às comunidades do São Francisco, é possível encontrar depoimentos dos
pescadores sobre os conflitos presentes no estado de Sergipe. Nos relatos dos
pescadores dos Cânions do São Francisco, há denúncia de sumiço dos peixes
após a construção da barragem. A Usina Hidrelétrica de Xingó afetou diversas
comunidades desde sua construção, e os tanques de aquicultura devido ao
volume de água consumido, representam o represamento das águas em maior
e menor escala respectivamente. Outro problema relatado é a dificuldade no
acesso ao rio devido à presença de fazendeiros que avançam com suas
propriedades sobre caminhos de acesso as margens do rio. Os pescadores dos
Cânions identificaram o lugar da piscicultura presente no Baixo São Francisco,
o lugar dos turistas, mas não veem o lugar do pescador.

25
Projeto iniciado na UFAM que reuniu pesquisadores em Antropologia, Direito, Geografia, História,
Biologia e Sociologia, para através de oficinas junto a comunidades tradicionais e movimentos sociais,
produzir material com manifestações de identidades coletivas através de relatos e da cartografia para dar
força ao processo de luta e territorialização dessas comunidades.

80
No Baixo São Francisco os relatos são sobre a pesca predatória e a
piscicultura. A prática da pesca predatória como atividade dos pescantes 26 que
capturam toneladas de peixe nos cânions do São Francisco sem que haja
interferência dos órgãos fiscalizadores, sobre alegação de não ter recursos para
efetivar a fiscalização, no entanto há fiscalização na prática da pesca-artesanal.
A piscicultura apresentada na região do São Francisco em conflito com a pesca-
artesanal é caracterizada pelo cultivo em gaiolas que impedem a passagem dos
barcos utilizados pelos pescadores. A NETUNO é uma das empresas presentes
no Baixo São Francisco - líder na comercialização de pescados no Brasil,
produtora de pescados através do cultivo, possui fazendas de criação e estrutura
de beneficiamento de pescados na região que compreende o São Francisco, de
Pernambuco a Sergipe. Além do impedimento de passagem de barcos dos
pescadores locais onde são colocadas mais gaiolas que o permitido na extensão
do rio, sem a devida licença ambiental, conforme denúncia dos pescadores.
A piscicultura é denunciada como um dos empecilhos à prática da pesca
artesanal, entretanto ao mesmo tempo esta é adotada por alguns pescadores a
partir do incentivo da CODEVASF e das Prefeituras locais as quais financiam
tanques redes e doam alevinos e parte da ração. Ao assumirem os tanques, os
pescadores ficam reféns das empresas que vendem ração, o que consome 60%
dos custos. Muitos acabam vendendo os peixes cultivados para a Netuno,
enquanto outros desistem por conta das dificuldades no cultivo. (Pescadores e
Pescadoras artesanais do Cânion do Rio São Francisco, 2009).
Pescadores e pescadoras da Foz do São Francisco relatam problemas
com a carcinicultura, responsável pelo desmatamento do mangue e pelo
envenenamento de vários peixes e do caranguejo, ao longo dos riachos que
desaguam no São Francisco. Outro problema relatado é o não acesso a lagoas
naturais que se encontram cercadas em terras de fazendeiros, historicamente
de acesso dos pescadores. A comunidade Resina 27 de Pescadores na Foz do

26
Os pescantes refere-se aos que praticam a pesca predatória no Baixo São Francisco, enquanto os
pescadores artesanais, pescam quilos, os pescantes pescam em grandes quantidades para comercializar,
o que para os pescadores representa diminuição dos pescados para os pescadores locais que sobrevivem
da pesca artesanal em regime de consumo e pequena comercialização.
27
O conflito existente em Resina se deu pela tentativa de fazendeiros de venderem as terras onde hoje
se encontra a comunidade quilombola para empresários locais com o objetivo de construir um complexo
turístico. Com o apoio de setores da igreja católica, a comunidade quilombola de pescadoras conseguiu
dar entrada na documentação para o reconhecimento do território quilombola.

81
São Francisco, em Sergipe, lutou pelo reconhecimento do território quilombola
que passou pelo conflito com fazendeiros, construtoras e o judiciário local.
No Saramém, comunidade de pescadores também da Foz do São
Francisco, antigo povoado Cabeço em Sergipe, os relatos, passam pela recusa
da CHESF em assumir qualquer responsabilidade sobre o avanço do mar na
comunidade com a construção da Hidrelétrica de Xingó, a diminuição dos
pescados, conflito por terras com fazendeiros e com a NORCON- Grande
Empresa Construtora- que atua em Sergipe, Alagoas, Bahia e Pernambuco, e
envolvida no conflito com a comunidade Resina na disputa pela posse de terras.
O interesse da empresa é a construção de um complexo turístico na foz do São
Francisco, projeto que não se consolidou devido à luta das comunidades
pesqueiras pelo reconhecimento e direito de permanência.
Alguns dos depoimentos e denúncia dos pescadores da Foz do São
Francisco reunidos no material do Projeto Nova Cartografia Social, coincide com
o estudo feito pela Fiscalização Integrada do São Francisco- FPI, em Sergipe,
divulgado em outubro de 2017, que identificou a situação do rio como crítica
devido ao desmatamento de mangues e mata atlântica das margens dos rios e
a poluição. A presença de viveiros de camarão de forma irregular, e atividades
de mineração, são responsáveis pelo desmatamento ilegal. Já a poluição, é
agravada pelo não tratamento de esgoto e lixões presentes nas cidades que
abrigam cursos de água que desaguam no rio, assim como pelo uso
indiscriminado de agrotóxico que afetam a água e a saúde da população. “A
ausência do Estado tem propiciado muitos ilícitos ambientais, grilagem das terras da
União e violência contra as comunidades tradicionais do Velho Chico”, (Procuradora da
República e coordenadora da FPI Lívia Nascimento Tinôco).
O estudo feito pelo FPI e amplamente divulgado no estado foi encaminhado ao
Ministério Público enquanto denúncia para que sejam cobrados dos órgãos
responsáveis ações de solução aos problemas identificados. No entanto, o esforço de
outros movimentos diretamente ligados aos pescadores e pescadores, tem um papel
fundamental, no sentido de trazer os conflitos à tona a partir não somente do impacto
ambiental, ou de irregularidades legais. Mas a partir das contradições existentes entre
lógicas diferenciadas no relacionar-se com a natureza.
O Documento produzido pelo Conselho Pastoral da Pesca detalha os
conflitos em Sergipe (Quadro 2) a partir das cidades e comunidades que fazem

82
parte da Bacia do São Francisco, identifica os causadores dos conflitos, as
atitudes de enfrentamento por parte das comunidades pesqueiras e o que se
espera do poder público. O intuito é ter um Documento como instrumento de
formação e reflexão junto à sociedade brasileira na luta pela Campanha da
Regularização dos Territórios Pesqueiros, promovido pelo Movimento de
Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil em parceria com igrejas,
pastorais e movimentos sociais (Conselho Pastoral dos Pescadores, 2016).

QUADRO 2: CONFLITOS PESCA-ARTESANAL EM SERGIPE

Turismo, Piscicultura, Privatização das Terras


públicas, Especulação Imobiliária, Complexo
Hidrelétrico de Paulo Afonso e Barragem de
Xingó, Degradação Ambiental- altos níveis de
poluição, muitas espécies nativas
Cânion São Francisco/AL, BA, SE desapareceram, o pescado gradativamente se
apresentando em quantidades pequenas.
Especulação imobiliária impede acesso ao rio,
Turismo de Catamarã- espécies somem e os
pesqueiros são comprometidos. Gaiolas de
piscicultura impedem o acesso ao rio.

Degradação Ambiental- a diminuição do


pescado em função da baixa vazão vem
Poço Redondo/SE/Comunidade
impedindo a sobrevivência das famílias
Bom-sucesso
pesqueiras que dependem exclusivamente da
pesca.

Ameaças Contra Famílias, Especulação


Brejo Grande e
Imobiliária, Degradação dos Mangues com
Pacatuba/SE/Quilombo Brejão dos
Fazendas de Carcinicultura, Privatização das
Negros
Ilhas e Terras Públicas.

Organização: Nunes, Shauane I. F.


Quadro adaptado de Detalhamento de Conflitos publicado pelo Conselho Pastoral da Pesca

Os relatos das comunidades do Baixo São Francisco, em Sergipe,


possibilitam a leitura dos conflitos presentes e enfrentados na luta por terra e

83
água. A permanência dessas comunidades perpassa pelo enfrentamento que
está atrelado à luta e acesso de política pública, tanto de reconhecimento de
identidade, quando no reconhecimento de território e de investimentos para o
exercício da atividade pesqueira. A organização dos pescadores em Sergipe é
articulada por Colônias e Associações, sendo mais recente a presença e a
estruturação de Movimentos Sociais, a exemplo do Movimentos das
Marisqueiras de Sergipe. O trabalho enquanto categoria de analise, a pesca-
artesanal, é condição de entender de que forma se organiza e permanece a
atividade pesqueira em Sergipe dentro de um Movimento que se dá em escala
nacional e mundial.
A forma de organizar o trabalho na atividade pesqueira artesanal é
diversa. Há os pescadores de água doce, de água marinha e de ambas, no caso
de comunidades que vivem próximas aos estuários de rios. Há situações que se
enquadram em uma modalidade de pesca, que apesar de não ser industrial, tem
estrutura que possibilita maior captura de pescados e representa uma maior
pressão sobre a espécies, o que configura relações de trabalho de maneira
correlata a forma capitalista de organização do trabalho.
Pensar a permanência da pesca-artesanal diante da expansão do capital
em todas as esferas da vida, passa por identificar de que maneira essas
diferentes formas de se apropriar do trabalho na atividade pesqueira se dão, e
como se permanece pescador-artesanal, diante das terras e das águas cada vez
mais submetidas ao processo da privatização e controle do capital.
Resistir diante à aquicultura, ao agronegócio, como modelo de
desenvolvimento para os que vivem da terra e das águas, diante das barragens
ao longo dos rios, das cercas, dentro e fora das águas; permanecer diante da
diminuição dos pescados, dos venenos e da poluição presente nas águas, da
pesca predatória. Remete ao significado do trabalho ontológico que representa,
condição de permanência e resistência enquanto a pesca-artesanal representar
e materializar o trabalho concreto que dá sentido ao ser, ao ser pescador
artesanal.
Nesse sentido, permanecer é conflito, entre as determinações que levam
as relações produzidas na pesca-artesanal, e as determinações postas e
impostas na “forma de ser” do capital. Para Ramalho (2013) “ Pode-se dizer que
a feitura de um pescador é um processo artesanal, assim como seu próprio

84
trabalho (p.121). ” Justamente pelas relações que levam a identidade de
pescador, o aprendizado entre gerações, na família ou na comunidade, o
domínio que é preciso ter das técnicas de pesca, o conhecimento da natureza,
é um aprender que não se estabelece no ritmo do capital e sim da natureza.
O autor aponta liberdades e autonomias possíveis a partir da
pesca/trabalho, a partir das particularidades na organização da pesca-artesanal,
que leva à compreensão da pesca como trabalho que ao mesmo tempo que
perpassa o mundo da mercadoria, não pode ser compreendido na lógica apenas
do capital. Dessa forma o “estado” de conflito não se dá somente na “resistência”,
mas na permanência apenas pelo conflito de sua existência na contramão da
lógica dominante.
A expansão e a acumulação do capital, para Mészáros, é meta
fundamental da atividade econômica (2002, p. 209), no caso da pesca-artesanal
ainda que o trabalho não seja a mediação somente para o acesso ao mundo das
mercadorias. Para o autor, o que se impõe é a garantia ampliada do sistema do
capital, e quaisquer obstáculo deve ser superado na garantia da produtividade.
O obstáculo representado pela permanência de comunidades e trabalhadores
que vivem da pesca é, nesse sentido conflituoso. A estratégia constituída
institucionalmente é da produtividade como caminho para a atividade pesqueira,
os que permanecem. Resistir na garantia da relação que a pesca-artesanal
propicia dá-se no enfrentamento a esse sistema sóciometabólico que
homogeneíza as relações possíveis de intercambio social enquanto princípio
econômico.
Para Mészáros (2011), a homogeneização das relações produtivas e
distributivas completa o círculo vicioso do capital. Separado das condições
materiais e instrumentos de trabalho fica impossível para o trabalhador produzir
para seu próprio uso. O pescador artesanal está cada vez mais sujeito a essa
homogeneização pela ofensiva do modelo de desenvolvimento proposto para as
águas, que é o modelo do agronegócio como processo homogeneizador:

Desse modo, o sistema do capital é capaz de operar -com


grande dinamismo e eficácia ao longo da fase histórica de sua
ascensão- graças à separação do trabalho vivo de suas
condições objetivas de exercício, complementada pela
subjugação de necessidade e valor de uso às determinações
reificantes do valor de troca. (MÉSZÁROS 2011, p. 625).

85
A pesca-artesanal está continuamente sujeita à força do capital em suas
estratégias de expandir seu modelo de produção. Pensar a permanência
enquanto uma qualidade do sujeito que permanece, como condição de
continuidade enquanto pescador, no caso da pesca-artesanal é a relação do
sujeito que trabalha, o exercer a pesca. Sua condição de continuidade é
representada pelas condições de produção pertencentes a ele. A produtividade
na pesca-artesanal – intercambio com a natureza- não é a produtividade do
capital/lucro, é qualitativo presente no conhecimento dos pescadores que
permanecem enquanto houver condições materiais para o exercício da pesca,
condições essas dada no acesso à terra e água.
As estratégias de permanência das Comunidades Pesqueiras em Sergipe
se constitui no exercício da atividade pesqueira em si, nas organizações
coletivas, no acesso à política pública, na autonomia da relação que se constitui
diretamente com a natureza. Na forma como a pesca-artesanal se organiza.
Nesse sentido a permanência da atividade pesqueira artesanal em Sergipe se
dá enquanto local, mas no movimento em escala nacional e mundial. A pesca-
artesanal que permanece na relação sociedade/natureza que reconhece o ser
como natureza e não como externalidade. Trabalho que não está completamente
submetido à lógica do capital, mas que permanece na condição de classe
subserviente.

86
II- CAPÍTULO- A PESCA-ARTESANAL NA MEDIAÇÃO DA TRÍADE
SOCIEDADE/TRABALHO/NATUREZA: CONSTRUINDO RESISTÊNCIAS

Entendemos a pesca no universo do trabalho enquanto condição


ontológica e central na mediação sociedade/natureza. Trabalho que é produção
social, que media as relações necessárias ao ser social, de maneira que as
formas variadas de trabalho modificam-se ao longo do processo histórico. No
sistema do capital, o trabalho é apropriado para extração de mais-valor, no
entanto alguns sujeitos sociais, os povos do campo, das águas, das florestas,
em sua relação sociedade/natureza, têm a terra e a água como garantia de vida,
construindo relações não capitalistas em territórios a partir da produção do
espaço e de si mesmos. Assim sendo, o trabalho representa possibilidade de
resistência ao capital, possuindo os princípios fundamentais:

(...) enquanto formador de valores de uso, enquanto trabalho útil,


é uma condição de existência do homem, independente de todas
as formas de sociedade; é uma necessidade natural eterna, que
tem a função de mediatizar o intercâmbio orgânico entre o
homem e a natureza, ou seja, a vida dos homens (LUKÁCS,
1981, p.61).

Os homens e mulheres sujeitos do campo e da cidade – que vivem da


terra, da água, dos mangues – têm o produto do seu trabalho como valor de uso,
fruto da natureza que lhes é condição de vida, e não como algo exterior a si
próprio. O trabalho condição de vida que, em qualquer sociedade, apresenta-se
também como condição de produção, reprodução do capital em sua forma de
expropriação, no processo de produção do espaço/território nas práticas de vida
baseadas no valor-de-uso, na coletividade e no trabalho não estranhado, permite
compreender e apreender que há outras formas possíveis de produzir espaço,
de estabelecer a relação sociedade/natureza.

O ser social pressupõe, em seu conjunto e em cada um dos seus


processos singulares, o ser da natureza inorgânica e da
natureza orgânica. Não se pode considerar o ser social como
independente do ser da natureza, como antítese que o exclui, o
que é feito por grande parte da filosofia burguesa quando se
refere aos chamados “domínios do espírito” (LUKÁCS, 2012, p.
286).

87
A singularidade presente na atividade pesqueira artesanal não se dá na
perspectiva de uma volta à natureza, mas no entendimento de que na produção
material, enquanto produção social, há formas outras de produzir trabalho que
não o trabalho completamente subjugado ao sociometabolismo do capital. A
partir dessa singularidade, é possível estabelecer de que forma a atividade
pesqueira, enquanto ramo particular da produção material da vida e apropriada
pelo capital, faz-se contraditoriamente resistência à forma universalizante do
capital.

2.1-A relação sociedade/natureza na pesca-artesanal

A pesca-artesanal se apresenta como uma atividade que persiste e resiste


em sua manutenção, já que nos moldes de pequena produção mercantil
caminha, em parte, no sentido contrário das relações de produção capitalistas.
Não somente no que diz respeito a uma atividade produtiva, mas nas relações
reproduzidas, enquanto ser pescador artesanal. A relação homem/natureza é de
extrema importância para o entendimento do porquê a pesca-artesanal se
apresenta enquanto resistência ao modo da produção capitalista.
Enquanto ser social que realiza suas atividades vitais conscientemente, a
relação sociedade/natureza diferencia-se da forma como os animais relacionam-
se com a natureza, no entanto, em ambas situações, a natureza é condição vital.
Para Marx (2004, p.84), a natureza compõe o corpo inorgânico do homem, ao
viver aquela, torna-se seu corpo; o homem conectado como parte da natureza.
A relação que estranha o homem da natureza, estranha o homem de si mesmo,
de modo que na pesca-artesanal o viver diretamente da natureza compreende a
natureza como vital na relação que estabelece o ser social.
O indivíduo é produto da história que só pode ser fruto de uma sociedade.
A produção de determinados estágios sociais se dá por diferentes
determinações, “por isso quando se fala de produção, sempre se está falando
de produção em um determinado estágio de desenvolvimento social da produção
de indivíduos sociais” (MARX, 2011, p. 41). A relação do indivíduo com a
natureza na pesca-artesanal é singular enquanto social, não há singularidade
fora da produção em geral, o que para Marx (2011) é uma abstração que nos

88
permite compreender o que há de comum nas múltiplas determinações que
definem o modo de produção capitalista.
Para Lessa e Tonet (2009), a compreensão do pensamento de Marx se
baseia na premissa de que é condição indispensável para entender a relação
homem/natureza, o ato de transformação constante da natureza pelo homem. A
partir dessa transformação (a sociedade) é possível existir, reproduzir. É o
trabalho que media essa transformação. O ato pelo qual o homem se faz ser
social, diferente das leis que regem a natureza, já que o ato de exercer trabalho
é antes idealizado no processo de consciência antes de ser objetivado.
Esse processo de idealizar o ato antes de exercê-lo, é o que Lukács
(1981) apresenta como teleologia, processo não presente na natureza, já que se
dá justamente na consciência que então estabelece um fim, que se materializa
a partir do trabalho. Nesse caminho, o homem se transforma juntamente com a
natureza cada vez que constrói o mundo material e adquire novas habilidades:

Com o ato do pôr teleológico no trabalho, está presente o ser


social em si. O processo histórico do seu desdobramento,
contudo, implica a importantíssima transformação desse ser- em
si num ser-para-si e, portanto, a superação tendencial das
formas e dos conteúdos de ser meramente naturais em formas
e conteúdos sociais cada vez mais puros, mais próprios.
(LUKÁCS, 2012, p. 287).

Marx e Engels (2007), no livro Ideologia Alemã, apresentam elementos


que possibilitam compreender como se dá essa relação. Para esses autores, o
primeiro ato histórico necessário à própria condição da reprodução do homem é
justamente produzir meios de satisfazer suas necessidades primeiras: comer,
beber, vestir-se. Com essas necessidades satisfeitas, são adquiridas novas, de
forma que a produção da vida e do trabalho tornam-se indissociáveis, e ao
mesmo tempo é uma relação natural, uma vez que é condição de vida.
A condição de vida é social quando a cooperação dos indivíduos se torna
necessária à reprodução de vida do próprio grupo. O que nos leva ao
entendimento que o ato de transformar a natureza e a si próprio é o que
possibilita o ser social de ser compreendido. Enquanto indivíduos, somos
dependentes da natureza e dessa forma do produto do trabalho necessário à
nossa sobrevivência. Nessa relação, a água aparece como um dos primeiros
instrumentos de produção natural, assim como a terra (Ibidem). Nessa primeira

89
etapa da vida social, em que a relação direta com a natureza e a cooperação
dos indivíduos faz-se necessária como forma imediata de garantir a
sobrevivência, evidencia-se a forma de apropriação da natureza mediada pelo
trabalho:

Aqui aparece, portanto, a diferença entre os instrumentos de


produção naturais e aqueles criados pela civilização. O campo
(a água etc.) pode ser considerado como instrumento de
produção natural. No primeiro caso, o dos instrumentos de
produção naturais, os indivíduos são subsumidos à natureza; no
segundo caso, são subsumidos a um produto do trabalho.
(MARX E ENGELS, 2007, p. 51)

Para o pescador artesanal, a natureza permanece sendo meio de trabalho


e extensão direta de sua corporeidade, já que é condição de ser pescador o estar
na terra, na água. O produto do seu trabalho depende da apropriação, captura
de elementos que já estão prontos na natureza. Mesmo que seja necessário um
conhecimento prévio e o desenvolvimento de técnicas para exercer a pesca, o
meio de trabalho é a própria natureza:

A terra (que, do ponto de vista econômico, também inclui a


água), que é para o homem uma fonte originária de provisões,
de meios de subsistência prontos, preexiste,
independentemente de sua interferência, como objeto universal
do trabalho humano. Todas as coisas que o trabalho apenas
separa de sua conexão imediata com a totalidade da terra são,
por natureza, objetos de trabalho preexistentes. Assim é o peixe,
quando pescado e separado da água, seu elemento vital, ou a
madeira que se derruba na floresta virgem, ou o minério
arrancado de seus veios (MARX, 2013, p. 256).

Com efeito, é por meio da natureza como meio de trabalho que se tem o
primeiro momento do trabalho orientado a um fim. Natureza essa que garante os
meios de subsistência de comunidades que, mesmo nas sociedades mais
desenvolvidas, continuam a exercer trabalho diretamente desta. “O trabalhador
e seus meios de produção colados um ao outro como o caracol e sua concha”
(MARX 2013, p. 433).
Os meios de trabalho disponíveis na natureza, terra e água, para Marx
(2004), não são capital e sim uma forma particular de existência do mesmo,
tratam-se de elementos universais-naturais, de forma que o trabalho que se dá
na relação direta com esses meios universais-naturais não representam trabalho

90
abstrato inicialmente:

Assim, o trabalho não é ainda apreendido em sua universalidade


e abstração, ainda está ligado a um elemento natural particular
como [sendo] sua matéria, portanto ele também ainda é
reconhecido apenas num modo de existência particular
determinado pela natureza (MARX, 2004, p. 101).

A singularidade de determinadas atividades produtivas na sua relação


com a natureza possibilita que, em uma sociedade unida por valores-de-uso,
estabeleçam-se laços que podem ser familiar, tribal, territorial. Algo em comum
que os mantenham unidos, e onde a troca estabelece-se na relação
homem/natureza, na qual o homem trabalha e a transforma ao mesmo tempo,
em que essa natureza fornece produtos de vida para ele.
Segundo Marx e Engels (2007), “ao produzir seus meios de vida, os
homens produzem, indiretamente, sua própria vida material” (p. 87). No entanto,
a produção de sua vida material depende diretamente dos meios que esses se
inserem; e esse meio, juntamente com o modo como se reproduzem e como
exteriorizam, é que define o modo de vida, o que se produz e a forma como se
produz dentro das condições materiais que se têm.
As condições materiais para produzir em qualquer estágio social, para
Marx (2011) depende de condições universais, entre elas a apropriação da
natureza. Não são as condições naturais que vão definir a forma de produzir, e
sim de que maneira a apropriação dessas condições naturais se dão a partir do
trabalho que vão definir a forma de ser da sociedade e da produção em geral
enquanto totalidade social. As múltiplas determinações presentes no modo de
produzir vão definir formas particulares na expressão dessa produção, e na
particularidade, possíveis singularidades.
Nessa premissa, é possível estabelecer a leitura de como se constrói o
modo de vida ligado à pesca-artesanal, na relação direta com a natureza, que
proporciona o ato de pescar, a partir do mar, do rio, do mangue. É em sua
necessidade de subsistir que os pescadores desenvolvem técnicas próprias para
a atividade extrativista. É a partir dessa atividade que estabelecem relações que
definem seu estilo de vida e lhes dá identidade individual junto às comunidades
pesqueiras. Sobre os aspectos da vida, para Marx e Engels (2007), há uma
conexão materialista dos homens entre si que depende de suas necessidades e

91
do modo de produção:

A produção da vida, tanto da própria, no trabalho, quanto da


alheia, na procriação, aparece desde já como uma relação dupla
- de um lado, como relação natural; de outro, como social -,
social no sentido de que por ela se entende a cooperação entre
indivíduos, sejam quais forem as condições, o modo e finalidade
(Ibidem, p. 34).

Na pesca-artesanal, o modo de cooperação se constrói na relação direta


com a natureza, o que possibilita estabelecer relações outras que não a de
produção capitalista. O pescador-artesanal não vê a natureza como algo externo
a si próprio, e sim como uma dimensão de si mesmo, à medida que é da relação
direta com a natureza que ele vive. É somente a partir dela que ele pode se sentir
livre, além de não precisar vender sua força de trabalho. O pescador artesanal
trabalha para si mesmo, o seu tempo passa pelo tempo da natureza, não é a
hora do relógio que define seu trabalho.
É possível observar, porém, que o modo de vida ligado à pesca-artesanal
torna-se cada vez mais difícil, frente às dificuldades produzidas pelo modelo de
desenvolvimento imposto às áreas litorâneas, entre elas o próprio processo de
fragmentação resultante do aprofundamento da divisão social e territorial postos
pela urbanização. A própria proximidade do centro favorece e aprofunda o
processo de fragmentação, cujas relações sociais são cada vez mais mediadas
pela mercadoria. A fragmentação aprofunda e divide o espaço. “Esta
fragmentação que se aprofunda divide o espaço em parcelas cada vez menores,
que são compradas e vendidas no mercado como produtos de atividades cada
vez mais parceladas” (CARLOS, 1996, p. 36).
Ao analisar a condição espacial, Carlos (2011) aponta para a produção do
espaço no momento em que o homem, a partir do trabalho, transforma
efetivamente a natureza, “o espaço como produção emerge na história da
relação do homem com a natureza, processos no qual o homem se produz
enquanto ser genérico numa natureza apropriada e condição de nova produção”
(p. 64). Para a autora, é no capitalismo que uma forma determinada de produzir
o espaço se amplia, penetrando toda a sociedade na forma da valorização do
capital, que inevitavelmente transforma o espaço de maneira que esse assume
a condição de mercadoria. Sendo a produção do espaço dada a partir da

92
transformação da natureza pelo trabalho, o que temos é a própria natureza na
condição de mercadoria.
Sob essa lógica, a “imagem natural intocada” propicia a venda do espaço
como mercadoria ecológica, e serve ao mesmo tempo de estratégia para o
aumento do preço do uso do solo. A acumulação capitalista se realiza a partir da
venda do tempo livre para o consumo. “O espaço aparece como mercadoria,
apesar de suas especificidades, produzido e vendido enquanto solo urbano, [...]
submissos à troca e à especulação” (CARLOS, 1996, p.36).
A natureza intocada é, conforme explicita Diegues (1996), um mito que
serve a uma política de conservação da natureza o qual representa uma visão
de mundo em que a relação homem/natureza não é tratada enquanto uma
simbiose, o mundo natural e o mundo industrial são vistos como dicotômicos,
portanto, exclui a mediação sociedade/natureza pelo trabalho como base para
compreender as relações sociais.
Essa visão da natureza representa na sociedade moderna um conjunto
de mitos com base de sustentação na ciência que solidifica a natureza como
elemento fora do homem, passível de ser recurso. A venda da natureza
preservada como paraíso faz sentido à medida que a dicotomia homem/natureza
é posta. O turismo apropria-se dessa natureza como venda da paisagem nas
áreas preservadas, que estão justamente onde se encontram as comunidades
que vivem diretamente da natureza. É o espaço da acumulação capitalista que
se impõe a uma lógica de reprodução diferenciada das comunidades lidas como
tradicionais. Quanto a isso, Diegues (1996) exige a leitura das diversas relações
da sociedade com a natureza:

Muitas delas ainda não foram totalmente incorporadas à lógica


do lucro e do mercado, organizando parcela considerável de sua
produção em torno da auto-subsistência. Sua relação com a
natureza, em muitos casos, é de verdadeira simbiose, e o uso
dos recursos naturais só pode ser entendido dentro de uma
lógica mais ampla de reprodução social e cultural, distinta da
existente na sociedade capitalista (Ibidem, p.79).

Ao criticar e economia política do espaço, Martins (2001) chama atenção


para a necessidade de investigar e compreender as contradições, rupturas e
descontinuidades do espaço, não como uma ciência do espaço, não como uma

93
política do espaço travestida de planejamento, e sim da forma em que se
engendra a reprodução social. Diante disto, “não se pode esquecer que o capital
como modo historicamente específico de produzir a própria vida impõe o seu
domínio às fontes originais de riqueza, que inclui além do trabalho, a natureza”
(p. 24).
Dessa maneira, é necessário extrapolar os limites locacionais para
evidenciar e verificar como as contradições no espaço são produzidas, e como
os diversos usos e abusos da natureza reforçam a necessidade de compreender
o caráter dinâmico contido no movimento das contradições do/e no espaço
(BORZACCHIELLO, 2001).
Para Scarim (2001), novas contradições são suscitadas como
consequência do processo de reprodução do capitalismo, entre elas o próprio
espaço fragmentado, e nele, o conceito de raridades que se espacializa a partir
de uma natureza finita diante das necessidades produzidas no capitalismo.
A subordinação da produção do espaço, na lógica do capital, altera os
ritmos de vida dos sujeitos reais historicamente habitantes do lugar, que aos
poucos vão perdendo a autonomia dos usos, obrigados ou a se inserirem no
mundo das mercadorias, ou expulsos tornam-se invisíveis, enquanto sujeitos das
relações de produção, embora submetidos a todos os tipos da lógica perversa
da acumulação capitalista. A coletividade que se encontra nessa atividade busca
assumir, muitas vezes sem consciência, uma forma de resistência para a própria
sobrevivência na estrutura social da divisão desigual do trabalho.
A dependência mutual presente entre os trabalhadores da pesca-
artesanal é expressa no exercer trabalho na relação direta com a natureza. O
apropriar-se dessa natureza enquanto atividade produtiva tem como resultado
uma determinada forma de exercer trabalho, e um determinado produto desse
trabalho. À medida que o valor de troca se impõe nessa mediação, a forma de
produzir e o produto do trabalho enquanto mercadoria transformam-se numa
relação em que:

A atividade, qualquer que seja sua forma de manifestação


individual, e o produto da atividade, qualquer que seja sua
qualidade particular, é o valor de troca, um universal em que toda
individualidade, peculiaridade, é negada e apagada (MARX,
2011, p.105).

94
A liberdade do pescador-artesanal está sob constante ameaça, à
proporção em que a forma de exercer trabalho na pesca-artesanal encontra
dificuldades para subsistir. É necessário complementar a sua renda com outras
atividades, uma vez que quando não se possui os instrumentos de trabalho,
submete-se a trabalhar em outras embarcações, ou embarcar não mais nos rios
e mares, mas nas políticas públicas que apresentam a produtividade de mercado
a partir dos cultivos como solução para os problemas enfrentados pela atividade
pesqueira.
A pesca-artesanal se dá no trabalho familiar e na cooperação com a
vizinhança. O pescador artesanal não sai sozinho para pescar e não o aprende
sozinho, há uma relação de respeito aos saberes dos mais velhos, no sentido do
aprender a fazer, assim como no próprio ato de pescar, em que é preciso
conquistar o respeito através da sabedoria da arte da pesca para ser mestre. O
barco então tem a sua tripulação guiada pela mestrança. Segundo Maldonado
(1994), a mestrança constitui-se pela construção simbólica de um mestre que
representa a hierarquia da embarcação, a partir do saber pescar, da experiência
adquirida na atividade pesqueira, do conhecer o mar, os riscos, os pontos de
pesca; é o mestre que tem o papel de guiar a pescaria com base na experiência
coletiva, e não somente guiar o barco, mas garantir que as relações
experimentadas durante a pescaria se deem de tal maneira que a cooperação
permita melhores resultados.
No final da pescaria ocorre a divisão baseada nos costumes da
comunidade; é o que Diegues (1983) identifica como relação de respeito, ao
mostrar como se definem as relações de trabalho e de sociabilidade dentro e
fora do mar. Respeito à sabedoria adquirida a partir da experiência, uma relação
de ajuda mútua dentro da comunidade pesqueira. Se um pescador fica doente
ou se já está mais velho, há uma divisão do pescado com esses pescadores. A
coletividade é a forma que essa atividade encontrou, ao longo de sua existência,
para manter-se. “É essencial ver que o mar enquanto espaço produtivo e
também como referencial ideológico e espacial dos pescadores é considerado
de posse comum - o que repercute nas suas práticas sociais” (SILVA, 2008, p.
47).
Para Maldonado (1994), o contexto da pesca constrói relações
igualitárias, na medida em que, para os pescadores, há uma relação entre dois

95
meios: a terra e o mar. No mar, os pescadores estão distantes e mais suscetíveis
aos perigos e à imprevisibilidade do ambiente marítimo, o que os coloca numa
situação de igualdade, em que todos, juntos, estão em sintonia para exercer sua
atividade e proteger uns aos outros.
Ao mesmo tempo que se tem a construção de uma igualdade dentro do
mar, existe também o elo entre o mar e a terra, é a figura do mestre que
representa justamente o respeito à sabedoria e a experiência adquirida durante
anos de pescaria. Esse respeito é que define a relação hierárquica dentro da
pesca:

Essa forma de autoridade não tem como expectativa o medo, a


submissão ou sequer a obediência dos pescadores. O que ela
objetiva para que a produção possa se realizar é a cooperação
voluntária e a fidelidade atenta dos pescadores, que assim
coadjuvam a pessoa do mestre com seu próprio comportamento
(Ibidem, p. 46).

Apesar dessa estrutura de relações construídas na atividade pesqueira


permearem a igualdade dos sujeitos envolvidos, segundo Maldonado (1994), há
a conflitualidade das relações que se passa nos dois meios, a terra e o mar. Se
no mar há uma possibilidade de construção de relações baseadas na
coletividade, na terra há a tendência ao individualismo, que é o que permeia as
relações e o modo de vida baseada na produção capitalista.
A atividade pesqueira artesanal não representa o trabalho produtor de
mais valor, no entanto as estratégias para enfrentamento das dificuldades
encontradas no viver da pesca passam pelo controle da produtividade, nesse
caso o cultivo de pescados, que é justamente o que, mesmo não sendo trabalho
assalariado, converte o pescador em uma força produtiva do capital. “O capital
desenvolveu-se, ademais, numa relação coercitiva, que obriga a classe
trabalhadora a executar mais trabalho do que o exigido pelo círculo estreito de
suas próprias necessidades vitais” (MARX 2013, p.381).
Ao tratar da acumulação capitalista, Marx constata que em determinado
momento é justamente a produtividade do trabalho social que impulsiona o
processo de acumulação, produtividade que só é garantida com o controle dos
meios de produção na garantia da quantidade do produto do trabalho. Na pesca-
artesanal, para além da quantidade, há uma importância qualitativa no que

96
resulta o trabalho, o conhecimento dos pescados e das espécies é parte do
processo de trabalho.
A especificidade de cada comunidade, a depender das condições
naturais, define se há uma espécie considerada de maior qualidade ou várias
espécies que permeiam hábitos culturais alimentares em diversos momentos da
vida cotidiana. No tempo em que o cultivo homogeneíza a produção, quando as
espécies a serem produzidas são demandadas pelo mercado, de forma que
possam se reproduzir rapidamente e garantir a produtividade enquanto objetivo
do trabalho voltado ao capital.
Na pesca-artesanal, o produto do trabalho depende do ciclo da natureza,
a organização do trabalho nesse sentido encontra limites para atuar na garantia
da produtividade como necessária à acumulação capitalista. A atividade que
interessa ao capital está sob controle, todo tempo de trabalho é produtivo, não
há interrupção do fluxo de trabalho sob determinado controle da produção, o que
não é possível na natureza, nos moldes da produção pesqueira artesanal.
Sendo a organização do trabalho na atividade pesqueira artesanal
pautada em relações que contrariam a organização do trabalho totalmente
sujeitado ao capital, ainda assim o produto do trabalho precisa ser trocado de
maneira que seja possível para os trabalhadores da pesca adquirirem outras
mercadorias. Para Marx (2013), a independência das pessoas umas das outras
se consuma num sistema de dependência material universal, e a divisão social
do trabalho inevitavelmente converte o produto do trabalho em mercadoria
(p.182). O relacionar-se com a natureza na pesca-artesanal não dissolve a forma
mercadoria do sistema do capital, mas impõe a essência do trabalho que dá
sentido ao ser social, ainda que compondo a circulação simples de mercadorias:
a venda para a compra.
Os trabalhadores da pesca, ao se relacionar com a natureza, produzem e
se reproduzem não somente na esfera biológica, mas enquanto ser social, que
produz cultura, que transforma e se transforma enquanto natureza. Segundo
Smith (1988), “antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a
natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e
controla seu metabolismo com a Natureza” (p.71). Em conformidade com o autor,
existe um processo de produção da natureza, e essa produção se dá de maneira
diferenciada, nos diversos espaços, de acordo com os interesses postos pela

97
sociedade de classes, que têm como base a acumulação que sustenta o capital,
o que resulta então em um desenvolvimento desigual. Falar então de dominar a
natureza, para Smith, é um jogo ideológico para justificar o uso desigual dessa
natureza. Produzi-la, pelo contrário, dá-nos a perspectiva de produzir de outra
forma.
Conforme Antunes (2007), “o sistema de metabolismo social do capital
nasceu como resultado da divisão social que operou a subordinação estrutural
do trabalho ao capital” (p.19). Dessa forma, os seres sociais mediados entre si e
dentro de uma totalidade social que se dá sobre determinado modo de produção
passa a subordinar as mediações de primeira ordem e de segunda ordem, que
são justamente as mediações que permitem a reprodução do sistema do capital.
As mediações de primeira ordem suprem as necessidades básicas e vitais da
reprodução individual e societal.
Considera o referido autor que, dentro de uma totalidade social, é preciso
a compreensão de como se dá esse sistema de mediações. As mediações de
primeira ordem passam pela leitura que compreende o homem como natureza,
fazendo parte dela numa relação direta de intercâmbio, cujas necessidades são
supridas de acordo com os recursos disponíveis. As mediações de primeira
ordem, enquanto relações da comunidade com a natureza, apresentam-se como
ações necessárias à própria reprodução social do grupo, como a regulação do
processo de trabalho, assim como instrumentos necessários ao mesmo, e outros
bens também necessários à comunidade.
O sistema de trocas existente nessa mediação se apresenta como forma
de suprir necessidades do grupo, necessidades essas que podem mudar, já que
o próprio ser, ao se reproduzir cotidianamente, transforma-se continuamente,
assim como a própria natureza. As mediações de primeira ordem, por se
basearem nas necessidades reais do ser, do grupo, levariam então à
organização de recursos destinados aos seres em sua totalidade social
(ANTUNES, 1999).
As mediações de segunda ordem, por sua vez, acrescentam elementos
às mediações de primeira ordem. Elementos estes que são correspondentes à
reprodução sociometabólica do capital, por isso são de ordem fetichizante e
alienante, de forma que as mediações de primeira ordem são subordinadas às
de segunda ordem, na medida em que o valor-de-uso se subordina ao valor-de-

98
troca, e tem que ser constantemente expandido. É o que, para Mészáros (2007),
representa o círculo vicioso do capital, já que entre essas mediações há relações
de dominação que se manifestam na sociedade de classes. Sociedade esta que,
ao sujeitar mediações necessárias à reprodução social, ignora a necessidade de
garantir que os recursos sejam otimizados para a reprodução sociometabólica
das gerações que estão por vir. O capitalismo é um marco da submissão das
mediações de primeira e segunda ordem:

Comparando as mediações de primeira ordem com as


mediações de segunda ordem do capital, se percebe que tudo
se altera com o surgimento do capitalismo. Pois todas as
demandas mediadoras primárias devem ser modificadas de
modo a adequar-se às necessidades auto-expansivas de um
sistema de controle reprodutivo social fetichista e alienante, que
subordina tudo ao imperativo da acumulação de capital (Ibidem,
p. 41).

Uma das condições para que as mediações de segunda ordem sejam


possíveis de realizar-se é a separação do trabalhador dos seus meios de
produção, condição de alienação. O trabalhador que não reconhece o produto
do seu trabalho, mediante fragmentação deste, não domina todo o processo de
produção. Destarte, o trabalhador dentro das mediações de segunda ordem:
produção/reprodução do capital é apenas um fator de produção.
Ramalho (2007), ao tratar das mediações, demonstra que a condição de
subordinação das necessidades reais do ser é construída no processo histórico
de desenvolvimento da sociedade.

Assim, quando o trabalho deixou de ser uma relação apenas


com o objeto e passou a encarnar, durante o desenvolvimento
sócio-histórico da humanidade, mediações mais complexas, que
atingiram e interferiram no atendimento das necessidades
individuais e sociais, emergiram daí teleologias secundárias, que
determinaram as primárias sem nunca abolir estas (contato
imediato com a natureza, domínio sobre a esfera biológica e do
objeto ao qual volta sua ação produtiva, tornando-o útil) (Ibidem,
p.85).

A atividade pesqueira artesanal se aproxima das mediações de primeira-


ordem. Os trabalhadores da pesca dominam todo o processo de trabalho e em
sua maioria são donos de seus instrumentos de trabalho ou ao menos de parte,
como também têm acesso direto aos meios de produção: mar, rio, mangue, o
que proporciona à comunidade uma negação de determinadas formas alienantes

99
das mediações de segunda ordem. A relação direta com a natureza proporciona
um modo de vida diferenciado do imposto pelo capital.
A partir da compreensão das mediações de primeira e segunda ordem, é
possível afirmar: a condição de resistência presente em comunidades mantém
uma relação direta com a natureza. Essa resistência está presente na relação
de subsistência que se estabelece diretamente com a natureza, na
transformação do ser e do grupo a partir do trabalho, no intercâmbio com os
recursos disponíveis e que possibilita a vida e identidade da comunidade na
pesca.
Marx no Grundisse explica e exemplifica a força da comunidade enquanto
ligação dos indivíduos uns aos outros a partir da relação direta com a natureza
nas antigas comunidades feudais, e de trabalhadores livres, na comunidade
oriental e germânica, como formas de organização do trabalho que precederam
a produção capitalista. O trabalho assalariado, a separação do trabalhador das
condições objetivas de realizar trabalho, pressupostos para criar as condições
históricas do capital são elementos que vão de encontro à noção de comunidade.
A singularidade (força) da comunidade está na forma como o trabalho se
apresenta, assim como o sentido de propriedade. O acesso aos meios naturais
de produção não se dá enquanto apropriação individual, “o indivíduo relaciona-
se consigo mesmo como proprietário, como senhor das condições de sua
realidade” (p.388). Para Marx (2011), a comunidade ou as famílias singulares
relacionam-se como proprietária comum das condições naturais de trabalho, a
terra, no caso da produção das comunidades em questão, e somente como parte
da comunidade há a apropriação pelo processo de trabalho.
Ao tratar das tribos asiáticas, Marx (2011) exemplifica como o indivíduo
singular e seu caráter comunitário, à medida que se afasta das condições de
trabalho, dão o caráter de comunidade, acabando por desenvolver condições de
trabalho essencialmente novas, voltadas para o exterior da comunidade. O
conceito de comunidade presente em Marx, enquanto produto histórico, passa
pela apropriação das condições naturais para exercer o trabalho, ocorre pela
propriedade. A relação do sujeito que trabalha com os pressupostos naturais do
trabalho são pertencentes a ele.
A permanência do caráter de comunidade consiste na autonomia e na
relação recíproca com membros da comunidade, no entanto Marx deixa claro

100
que esse pertencer à comunidade não deixa de ser mediado por um determinado
modo de produção e organização social:

A propriedade do indivíduo singular não aparece mediada pela


comunidade, mas é a existência da comunidade e da
propriedade comunitária que aparece como mediada, como
relação recíproca dos sujeitos autônomos. A totalidade
econômica, no fundo, está contida em cada caso singular, que
constitui por si mesma um centro autônomo de produção
(Ibidem, p.396).

Esta leitura de comunidade pautada nas relações de antigas comunidades


tribais permite observar e apreender de que forma se dá as determinações
presentes nas diferentes formações societárias a partir das diferentes formas de
produzir. Nas comunidades recuperadas no debate por Marx (2011), é possível
identificar a essência do trabalho que se contrapõe ao mundo moderno, mediado
pelo capital:

[...] a antiga visão, em que o ser humano aparece sempre como


a finalidade da produção, por estreita que seja sua determinação
nacional, religiosa ou política, mostra ser bem superior ao mundo
moderno, em que a produção aparece como finalidade do ser
humano e a riqueza, como finalidade da produção. De fato,
porém se despojada da estreita forma burguesa, o que é a
riqueza senão a universalidade das necessidades, capacidades,
fruições, forças produtivas etc. dos indivíduos, gerada pela troca
universal? [O que é senão o] pleno desenvolvimento do domínio
humano sobre as forças naturais, sobre as forças da assim
chamada natureza, bem como sobre as forças de sua própria
natureza? [O que é senão] elaboração absoluta de seus talentos
criativos, sem qualquer outro pressuposto além do
desenvolvimento histórico precedente, que faz dessa totalidade
do desenvolvimento um fim em si mesmo (Ibidem, p. 399).

Para Marx (2011), em todas as formas em que o valor de uso aparece


como finalidade, na reprodução do indivíduo ligado à comunidade são
pressupostos: apropriação da condição natural do trabalho como instrumento
original de trabalho; o indivíduo relaciona-se às condições objetivas do trabalho
como sendo suas próprias condições, relaciona-se a elas como a natureza
inorgânica de sua subjetividade, em que esta realiza si própria; a principal
condição objetiva do trabalho não aparece ela própria como produto do trabalho,
mas está dada como natureza. De um lado, o indivíduo vivo; de outro, a terra
como a condição objetiva de sua reprodução. Não aparece apenas como

101
indivíduo trabalhador, mas tem na propriedade da terra um modo de existência
objetivo, que está pressuposto à sua atividade da mesma maneira que sua pele,
seus órgãos sensoriais, os quais ele também desenvolve no processo vital –
mediado pela existência original, natural e espontânea, e historicamente
desenvolvida ou modificada do indivíduo como membro de uma comunidade.
Esses pressupostos estão presentes nas comunidades antigas em
questão, e se conservam com as devidas mediações nas comunidades que
continuam a reproduzir a vida na relação direta com a natureza. Dessa maneira,
o modo de vida constituído nessa relação permite, com as limitações de uma
sociedade voltada à reprodução do capital, realizar trabalho a partir do controle
do processo das condições objetivas postas.
Pensar o sentido de comunidade que permeia as relações de
comunidades pesqueiras é pensar o sentido e a forma da organização do
trabalho para compreender as condições de sua permanência e resistência
como comunidades tradicionais, justamente pelo modo de vida que remete a um
tempo que não o presente, do tempo do capital, em sua forma de ser, de expandir
e reproduzir.
Compreende-se que o papel do trabalho no intercâmbio com a natureza
representa determinação ontológica e dá sentido ao ser social. Essa dimensão
do trabalho nos permite avançar na própria dimensão do que é humano, e dessa
forma, nas relações construídas ao longo do processo social. A determinação
ontológica, para Lukács (1981), está no entendimento de que só a partir do
trabalho é que podemos entender o ser social:

Somente o trabalho tem como sua essência ontológica um claro


caráter intermediário: ele é essencialmente uma inter-relação
entre homem (sociedade) e natureza, tanto inorgânica
(utensílios, matéria-prima, objeto de trabalho) como orgânica
(Ibidem, p.3).

Para entender o ser social em sua ontologia, na compreensão da sua


natureza, é necessário partir da leitura do trabalho como mediação da relação
homem/natureza, trabalho esse que nasce da necessidade e da luta do homem
pela existência. Nesse primeiro momento o trabalho tem o caráter intermediário
de mediação da transformação da natureza pelo homem, o que implica na
transformação do próprio homem e caracteriza o momento do salto, o homem

102
que se torna ser social.
Lukács (1981) afirma que esse salto representa um processo longo, em
que não se pode caracterizar o momento exato no qual essa transformação
acontece, mas onde se tem claro que o salto representa uma mudança estrutural
e qualitativa do ser, do ser orgânico em ser social. “A essência do salto é
constituída por esta ruptura com a continuidade normal do desenvolvimento e
não pelo nascimento, de forma imediata ou gradual, no tempo, da nova forma do
ser” (Ibidem, p. 05).

O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a


satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida
material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição
fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como há
milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora,
simplesmente para manter os homens vivos (MARX E ENGELS,
2007, p. 33).

O primeiro ato histórico é precisamente o trabalho como mediador da


relação homem/natureza, e representa a ontologia do ser social determinante
para Lukács. É o que faz com que ocorra o “salto”, a transformação do homem
inorgânico em ser orgânico dotado de capacidades que se complexificam e criam
outras necessidades, que serão supridas socialmente. No primeiro momento
essas necessidades do ser social são regidas pelo “[...] valor-de-uso, que está
ineliminavelmente ligado à existência natural. Este se torna valor de uso na
medida em que é útil à vida do homem (Lukács, 2013, p. 107).
O valor-de-uso compreendido como necessidades básicas inerentes ao
próprio ser social não se materializa de uma única forma, e depende do
intercâmbio dado com a própria natureza. Para Lukács (2012), o valor-de-uso,
mesmo quando parece permanecer “natural”, já representa algo qualitativamente
novo em relação à natureza, e não se apresenta de maneira uniforme. O autor
nos chama atenção nesse sentido:

Os valores de uso, os bens representam uma forma de


objetividade social que se distingue das outras categorias
econômicas somente porque, sendo objetivação do intercâmbio
orgânico da sociedade com a natureza e constituindo um dado
característico de todas as formações sociais e de todos os
sistemas econômicos, não está sujeito, considerada na sua
universalidade, a nenhuma mudança histórica; no entanto, as
suas formas concretas de aparecer, até mesmo no interior da

103
mesma formação, mudam continuamente (Ibidem, p.65).

Para o autor, é impossível entender o ser a não ser pelo trabalho, que se
torna modelo de toda práxis social, e tem no valor de uso inevitavelmente
condição básica do existir. O trabalho responsável pela transformação do
homem inorgânico em ser social, por ter caráter ontológico, nunca deixará de ser
central nas relações sociais.
O homem enquanto ser social vai se complexificando a partir de novas
necessidades, e passa a criar outras mediações para as realizações dos fins,
antes construído no processo de consciência. Primeiramente, para Lukács
(1981), é no processo de consciência que se desenvolve, com o trabalho, a
própria consciência, que se torna autônoma na medida em que se autorreproduz
a partir do que capta, tanto no mundo exterior, quanto no interior, fazendo assim
com que o trabalho surja e se desenvolva, determinando seus vários fins.
Dessa forma, o meio natural ganha a forma, a qual o homem enquanto
ser social define a partir de suas necessidades. É o que Lukács (1981) chama
de posição teleológica, o trabalho, como modelo de toda práxis social formado
não somente na ação, mas também na subjetividade do pensamento, de forma
que pensar e agir trabalho são categorias indissociáveis. Para Lukács, a
teleologia é algo que não existe na natureza, de forma que esta tem uma
finalidade consciente que só é possível na materialidade do ser, quando este em
sua ação de exercer trabalho, torna-a real. “Somente sobre a base real de um
conhecimento ao menos imediatamente correto das propriedades reais das
coisas e dos processos é que o pôr teleológico do trabalho pode cumprir sua
função transformadora” (LUKÁCS, 2012, p.288).
O entendimento do ser social só se torna possível quando o homem em
suas ações adquire autonomia no trabalho que se efetiva partindo de contínuas
posições teleológicas. Pensar a realidade permite então transformar a ação.
Criar a realidade, ao mesmo tempo em que cria a si próprio na consciência do
seu gênero. Produzir natureza e trabalho, assim como o produto do seu trabalho,
é o que permite a definição e a compreensão do ser social, que ao buscar os
meios de se produzir e reproduzir, adquire então um conhecimento da natureza,
necessário aos fins que se projetam na mente.
Por conseguinte, têm-se o que Lukács (1981) observa como processo de

104
consciência, a realidade que é apenas reproduzida nesta. Logo, existiria dois
momentos distintos, o próprio ser e o seu reflexo, sendo que a reprodução da
realidade na mente se estabelece a partir da subjetividade do próprio ser,
mediante suas necessidades e de como essas são postas e materializadas a
partir do trabalho:

Desde o início, portanto, a consciência já é um produto social e


continuará sendo enquanto existirem homens. A consciência é,
naturalmente, antes de tudo a mera consciência do meio
sensível mais imediato e consciência do vínculo limitado com
outras pessoas e coisas exteriores ao indivíduo que se torna
consciente, ela é, ao mesmo tempo, consciência da natureza
que, inicialmente, se apresenta aos homens como um poder
totalmente estranho, onipotente e inabalável, com o qual os
homens se relacionam de um modo puramente animal e diante
do qual se deixam impressionar como o gado; é desse modo,
uma consciência puramente animal da natureza (religião natural)
- e por outro lado a consciência da necessidade de firmar
relações com os indivíduos que o cercam constitui o começo da
consciência de que o homem definitivamente vive numa
sociedade (MARX E ENGELS, 2007, p.35).

O processo de formação de consciência é o processo de produção da


vida, desde o momento do salto ao seu desenvolvimento em conjunto com o
desenvolvimento da vida social. “A consciência não pode jamais ser outra coisa
do que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real”
(MARX E ENGELS, 2007, p. 94).
Compreende-se o ato de exercer trabalho, antes de ser materializado,
pensado, planejado na subjetividade da mente humana (LUKÁCS,1981). Nesse
sentido, a pesca enquanto atividade artesanal, exercida por pescadores, passa
por esse processo. Sendo a pesca uma atividade exercida diretamente na
natureza, é preciso total conhecimento dessa natureza, que é adquirido no
produzir da vida em comunidade. O ambiente estuarino e marítimo como
imprevisíveis, requer destreza, planejamento e escolhas definidas dentro do
grupo que pesca, ou do pescador, que se arrisca a ir sozinho. Nesse caminho,
após pensar e definir a alternativa, é que a finalidade teleológica na mente se
torna real na ação de pescar. Ramalho (2009) analisa o pôr teleológico na
mediação de suas reflexões sobre a pesca artesanal e o processo de
transformação da natureza pelo trabalho:

105
O trabalho de pescaria, como qualquer outro, é uma obra
teleológica, isto é, orientada para atingir certa meta, que busca
capturar o ser – precisamente - assim (a natureza - o mar e os
peixes) a partir da consciência, da subjetividade. Ao fazer isso o
pescador transforma os peixes e o mar em utilidades humanas
(valor de uso como suportes do valor de troca) e opera, por conta
disso, mudanças em seu próprio mundo, pondo-os em
movimento (Ibidem, p. 82).

O movimento do mundo da pesca apontado por Ramalho (2009) perpassa


pelo que ele define da arte como trabalho e o trabalho como liberdade, que se
constitui na especificidade das relações socioculturais possíveis a partir da
relação homem/natureza, em que o pescador se efetiva enquanto tal. O domínio
do trabalho artesanal, da construção dos instrumentos de trabalho, a arte do
saber- fazer intrinsecamente ligado ao conhecimento e apropriação da natureza.
O pescador artesanal, por exercer uma atividade extrativista, depende
diretamente da natureza para viver, da lua, dos ciclos das marés, da quantidade
de peixes disponíveis, diferentemente de outras atividades que de tantas
mediações alienam o trabalhador na relação com o produto do seu trabalho, o
pescador artesanal, nessa relação de dependência e de transformação da
natureza, vai, ele mesmo, transformando-se a cada pescaria, adquirindo novos
saberes sobre o mar e habilidades sobre a pesca:

Em todo lugar, os ciclos lunares e de marés regulam grande


parte da periodicidade da vida animal. A vida do pescador
também se regula pelas marés, pela lua e pelas chuvas, num
ritmo que corresponde ao comportamento dos animais e à vida
e aos ciclos sazonais de plantas e animais (VANNUCCI, 1999,
p.123).

Dada a natureza como meio de vida imediato do homem em sua


generidade, “o homem vive da natureza significa: a natureza é o seu corpo, com
o qual ele tem de ficar num processo contínuo para não morrer” (MARX, 2004,
p.84). Evidencia-se na atividade pesqueira artesanal essa imediaticidade, que
assume, no movimento da vida humana e no produzir da história, um potencial
movimento de resistência, à medida que é uma atividade que permanece diante
de diferentes modos de produção.
No sistema capitalista, a atividade é sujeitada e apropriada na lógica
produtiva do capital. Na direção da produção para o capital está a pesca

106
industrial, que de forma indiscriminada é regulada para a captura de pescados,
com objetivo de abastecer o mercado em escala ampliada para além do local,
assim como a aquicultura, que no controle da criação de pescados apresenta-se
enquanto produtividade necessária à garantia do lucro. Ainda assim, a pesca-
artesanal, inserida nesse processo global de reprodução ampliada do capital,
representa o trabalho que define o modo de vida e a possibilidade de
permanência e resistência de comunidades pesqueiras, no garantir da
humanidade possível no trabalho.

2.2 - A mediação sociedade/natureza a partir da ontologia do trabalho

A essência humana da natureza está, em primeiro lugar, para o homem


social; pois é primeiro aqui que ela existe para ele na condição de elo
com o homem, na condição de existência sua para o outro e do outro
para ele; é primeiro aqui que ela existe como fundamento da sua própria
existência humana, assim como também na condição de elemento vital
da efetividade humana. É primeiro aqui que a sua existência natural se
lhe tornou a sua existência humana e natureza [se tornou] para ele o
homem. Portanto, a sociedade é a unidade essencial completada
(vollendete) do homem com a natureza, a verdadeira ressureição da
natureza, o naturalismo realizado do homem e o humanismo da
natureza levado a efeito (Manuscritos Econômicos- Filosóficos- MARX,
2004, p. 106).

Para Lukács (2013), a essência do trabalho humano está na luta pela


existência, e todos os seus estágios são produtos de sua autoatividade, de sua
condição histórica, o trabalho como modelo da práxis social, do viver
socialmente. É o trabalho que tem como essência ontológica o caráter de
transição da relação homem/natureza, para sociedade/natureza na luta por
existência:

O trabalho realiza materialmente a relação radicalmente nova do


metabolismo com a natureza, ao passo que as outras formas
mais complexas da práxis social, na sua grandíssima maioria,
tem como pressuposto insuperável esse metabolismo com a
natureza, esse fundamento da reprodução do homem na
sociedade (Ibidem, 2013, p.93).

É o que o Lukács (2013) aponta como lugar privilegiado do trabalho. Na


socialidade do ser, outras categorias já teriam um caráter puramente social,

107
enquanto o trabalho é a condição de existência do homem. Trabalho que na
necessidade do ser de existir, vai mediar a produção de valores de uso a partir
do sóciometabolismo com a natureza, levando a uma mudança qualitativa e
estrutural do ser. O “salto” entendido como processo de transição possível
através do trabalho rompe com a condição apenas biológica do ser. “A primeira
consequência disso é que o trabalho torna-se protoforma de toda a práxis social
(...) sua forma originária desde que o ser se constitui. ” (ANTUNES, 1999 p. 137).
O trabalho materializado é valor de uso, sendo o determinante na
mudança qualitativa do ser. Na relação com a natureza, o ser que trabalha
exerce essa atividade orientada por um objetivo, “no final do processo de
trabalho, chega- se a um resultado que já estava presente na representação do
trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que já existia
idealmente" (MARX, 2013, p. 256).
Para Marx (2013), o que esse novo ser dotado da capacidade de exercer
trabalho vai fazer é se apropriar de uma forma útil da natureza, agindo sobre
suas potencialidades, de forma que, ao modificar a natureza, também modifica
a sua própria natureza, em que se têm a ontologia do trabalho, a condição do
ser social:

O trabalho é, antes de tudo, um processo entre homem e


natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação,
medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele
se confronta com a matéria natural como uma potência natural
[Naturmacht]. A fim de se apropriar da matéria natural de forma
útil para sua própria vida, ele põe em movimento as forças
naturais pertencentes a sua corporeidade: seus braços, e
pernas, cabeça e mãos (Ibidem, p.255).

Em relação à capacidade de exercer trabalho orientado a um fim, Lukács


(2013) analisa como pôr teleológico, que precede o trabalho em si e que, por
conseguinte, só se realiza enquanto materialidade do trabalho, capacidade de
planejar na mente a ação. O pôr nasce da necessidade do próprio ser social e
necessita do conhecimento da natureza, da própria relação homem/natureza
para que ele se realize. A teleologia como parte do processo de trabalho:

No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que


já estava presente na representação do trabalhador no início do
processo, portanto, um resultado que já existia idealmente. Isso

108
não significa que ele se limite a uma alteração da forma do
elemento natural; ele realiza neste último, ao mesmo tempo, seu
objetivo, que sabe que determina, como lei, o tipo e o modo e
sua atividade e ao qual ele tem de subordinar sua vontade
(MARX, 2013, p.256).

Nesse processo de conhecimento da natureza, Lukács (2013) evidencia


a categoria da causalidade, nesse sentido, as potencialidades dessa natureza,
a partir da qual a teleologia se apresenta como categoria posta ou o pôr do fim.
Para Antunes (1999), a causalidade se dá pelo movimento desencadeado pelo
ato teleológico, existe uma reciprocidade entre teleologia e causalidade, como
constituintes da ontologia do ser social. A forma como o pôr teleológico se
materializa, sua realização material, depende da relação estabelecida -
sociedade/natureza - que possibilita estabelecer novas funções à natureza como
resultado do produto do trabalho:

Por mais relevantes que sejam os efeitos transformadores do pôr


teleológico das causalidades no processo de trabalho, a barreira
natural só pode retroceder, jamais desaparecer inteiramente; e
isso é válido tanto para o machado de pedra quanto para o reator
atômico (LUKÁCS, 2013, p.73).

Na reprodução do ser social, apesar das mediações possíveis que


possam existir na relação homem/natureza, há uma irreversibilidade do caráter
histórico do ser social, o caráter ontológico do trabalho, não há ser social sem
natureza (Ibidem). Essa indissociabilidade do ser social, do trabalho e da
natureza, para Antunes (1999), representa o processo laborativo, que é em si
homogêneo, produzido e resultado da natureza e do trabalho, que tem como fim
o produto do trabalho.
No processo de construir mediações na relação sociedade/natureza, há
alternativas postas a partir do trabalho para satisfazer as necessidades do ser
social, o caminho que se segue é definido pelo ser social, não pelo sujeito fora
de uma socialidade. O trabalho, por ter um caráter social, torna social também
as alternativas e, nesse sentido, os pores teleológicos que passam a ser
induzidos socialmente. A escolha por uma alternativa, do ser que trabalha, trata-
se então de um ato da consciência, como resultantes das materialidades e
mediações que constituem a realidade do ser em sua particularidade.

109
A alternativa se configura como resultado do metabolismo entre a
sociedade e a natureza. Satisfeitas as necessidades imediatas do ser que
trabalha, há um desenvolvimento da consciência no sentido do pôr teleológico.
As necessidades sociais avançam e a alternativa se apresenta como resultado
da práxis humana no processo de tomada de decisões entre as alternativas
possíveis. Em um primeiro momento, o pôr teleológico se define a partir de uma
atividade que se dá entre o ser que trabalha e a natureza. Em seguida, na
reprodução da vida social, o pôr será um fim posto por outros homens:

O pôr do fim já não visa a transformar diretamente um objeto


natural, mas, em vez disso, a fazer surgir um pôr teleológico que
já está, porém, orientado a objetos naturais; da mesma maneira,
os meios já não são intervenções imediatas sobre objetos
naturais, mas pretendem provocar essas intervenções por parte
de outros homens (LUKÁCS, 2013, p. 84).

Sendo o pôr do fim, em dado momento do desenvolvimento social,


determinado por uma socialidade já posta. O modo de exercer trabalho pode
passar a ser determinado por outros fins que não o da condição humana. Ou
seja, as alternativas induzidas por determinados interesses já objetivados, na
forma como determinada sociedade se relaciona com a natureza. As escolhas,
a própria condição do ser social que se segue, é determinada por uma
socialidade anterior.
Se o determinante é a produção de mercadorias, estando a natureza e os
meios de produção apropriados por determinada parte da sociedade, a ontologia
do ser social continua posta, mas muito distante da consciência do ser que está
envolvido, cada vez mais, em relações de caráter social, que tem como fim não
a reprodução do ser social em sua condição humana.
Para Lukács (2013), o homem sai do mundo animal no momento em que
há uma dualidade do ser e o seu espelhamento na consciência. Ao estabelecer
o pôr no processo de trabalho, há o processo na consciência, e o processo em
si que se materializa, sendo espelhamento e não o próprio ser. É a partir desse
espelhamento que se dá novas objetividades do ser social, novas possibilidades
e alternativas que fazem parte do ato da consciência, enquanto parte do
processo do pôr do fim.

110
Alcântara (2014) ressalta a leitura de Marx no que tange à relação
sujeito/objeto, que passa por compreender a natureza como uma objetividade
independente do homem. Objetividade necessária ao homem enquanto ser
social, mas que representa na sua consciência, enquanto reflexo, um momento
ontologicamente diferente da ontologia do ser social. Essa compreensão da
objetividade da natureza, que assim apenas pode ser compreendida porque a
objetividade só faz sentido na relação com um outro ser, no caso, da relação
homem/natureza, torna-se necessária à medida que é preciso decifrar a
construção do pensamento que se dá a partir da objetividade posta:

O ser tem existência real graças ao seu caráter objetivo; seja


natural, seja social, sua existência tem por referência um outro
ser também objetivo e externo a ele. Os seres não objetivos e
que não têm nenhum outro ser como seu objeto não são
efetivamente existentes, não têm estatuo ontológico. O estatuo
ontológico confere o verdadeiro significado às coisas como base
na existência dos fenômenos refletidos na consciência
(ALCÂNTARA, 2014, p. 36).

Segundo Lukács (2013), o espelhamento é condição para que surja a


relação sujeito-objeto, momento que o ser consegue se distanciar da realidade
mediante a expressão da realidade e da linguagem enquanto conceitos
formados nessa relação sujeito-objeto, de forma que:

É obviamente indiscutível que, tendo a linguagem e o


pensamento conceitual surgido para as necessidades do
trabalho, seu desenvolvimento se apresenta como uma
ininterrupta e ineliminável ação recíproca, e o fato de que o
trabalho continue a ser o momento predominante não só não
suprime a permanência dessas interações, mas, ao contrário, as
reforça e as intensifica (Ibidem, p. 85).

A linguagem e o pensamento conceitual estão ligados à forma de ser do


ser social, ou seja, a relação estabelecida a partir do trabalho com a natureza. É
o trabalho então que vai mediar a relação sujeito-objeto, de forma que o vir a ser
reflete de que forma se dá essa relação, que é a própria relação
homem/natureza. Se essa relação do ser dá-se a partir de um desenvolvimento
desigual, o pôr teleológico, o espelhamento da realidade se dará a partir de uma
práxis caracterizada com base no desenvolvimento posto, o modo de produzir, a

111
relação sociedade/natureza em que se encontra o próprio ser - o trabalho:

O trabalho, portanto, é a forma fundamental, mais simples e


elementar daqueles complexos cuja interação dinâmica
constitui-se na especificidade do ser social. “Precisamente por
essa razão, é necessário enfatizar continuamente que as
características específicas do trabalho não podem ser
transpostas de modo direto para as mais complexas formas de
práxis social (ANTUNES, 1999, p. 141).

O trabalho como momento predominante no constituir do ser social, é o


constituir também de formas mais complexas de interação social. As categorias
que proporcionam a compreensão dessas relações não se reduzem ao momento
predominante, ao mesmo tempo não podem ser compreendidas sem entender o
que é ontológico na constituição do ser. Nessa perspectiva é que Lukács (2013)
chama atenção para o deve-ser que a práxis determina, em que somente um
espelhamento correto da realidade levaria a um deve-ser correto, a partir do
processo de trabalho:

A essência ontológica do deve-ser no trabalho dirige-se,


certamente, ao sujeito que trabalha e determina não apenas seu
comportamento no trabalho, mas também seu comportamento
em relação a si mesmo enquanto sujeito do processo de trabalho
(Ibidem, p. 104).

O modo de produção, dessa maneira, o modo como se estrutura o


trabalho determina a práxis do ser social. De maneira que as mediações que
levam a práxis econômica determinada por um desenvolvimento desigual,
determinam também uma socialidade que ultrapassa a condição de cada homem
singular. Dessa forma, o deve-ser social se perde da essência ontológica do ser
social, que é a garantia da condição humana.
Os pores teleológicos, estando cada vez mais determinados por uma
práxis voltada ao trabalho como produtor de mercadorias, em consequência,
conduzem as finalidades postas na consciência, que na efetividade das relações
sociais, o social se distancia da essência ontológica do trabalho. Se a produção
de mercadoria torna-se predominante na práxis social, o que temos a seguir é o
processo de reificação. O ser se perde de sua essência à medida que sua própria
força de trabalho é mercadoria, que ao relacionar-se com o outro ser, que

112
também é mercadoria, tem-se uma relação coisificada, a reificação representa o
aprofundamento de relações desumanizantes.
Além disso, a exteriorização apresenta-se como categoria que representa
a subjetividade do sujeito, o resultado do trabalho e como o trabalhador se
relaciona com o objeto que representa o ser enquanto objetividade de si ao
passo que é uma realização de sua corporeidade enquanto gênero humano. À
proporção que essa subjetividade se dá, tendo a mercadoria como mediação das
relações humanas, a exteriorização passa a representar não sujeitos singulares
que na causalidade possui e opta por alternativas que vão ao encontro da
essência ontológica, mas, antes, sujeitos que possuem alternativas que vão de
encontro a essa essência.
O trabalho enquanto atividade produtiva passa a mediar uma relação
coisificada e, nesse sentido, alienada, apartada de sua condição ontológica a
qual transforma o homem em ser social, que leva à condição humana. Para
Mészáros (2006), a condição da realização humana não se trata de um retorno
à natureza, e sim de uma plena realização da natureza do homem, que é
perturbada pelas mediações de segunda ordem e subordinam a atividade
produtiva, “às exigências da produção de mercadorias destinada a assegurar a
reprodução do indivíduo isolado e reificado, que não é mais do que um apêndice
desse sistema de “determinações econômicas” (Ibidem, p. 81).
No processo de trabalho e na construção de alternativas sociais,
encontra-se a potencialidade da liberdade e também da alienação. Por isso que,
para Lukács (2013), o conceito de liberdade real está no trabalho, em sua
essência ontológica, sendo assim o trabalho, o modelo de práxis social e de
liberdade. “Se o homem não tivesse criado a si mesmo, no trabalho, como ente
genérico social, se a liberdade não fosse fruto da sua atividade, do seu
autocontrole sobre a sua própria constituição orgânica, não poderia haver
nenhuma liberdade real” (Ibidem, p. 156).

Numa primeira aproximação, podemos dizer que a liberdade é o


ato de consciência que (...)consiste numa decisão concreta entre
diferentes possibilidades concretas. Se a questão de escolha é
feita em um alto nível de abstração, estando completamente
divorciada do concreto, perdendo toda conexão com a realidade,
ela se torna uma especulação vazia. Em segundo lugar a
liberdade é, em última instância, um desejo de alterar a realidade

113
(que é claro, inclui em certas circunstâncias, o desejo de manter
a situação existente) (ANTUNES, 1999, p. 144).

Sendo o trabalho o modelo da práxis social e da própria liberdade, e


estando esse trabalho apropriado por um modo de produção em que a
mercadoria é centro de uma relação social-capital que se dá a partir de uma
incontrolabilidade necessária, a sua reprodução, é preciso analisar até que ponto
a essência ontológica do trabalho permanece como possibilidade de um resgate
da essência do trabalho, como condição humana que rompe com a coisificação
que o processo de alienação remete ao desenvolvimento social. Sendo o homem
um ser social, não se pode negar sua essência ontológica, nem seu caráter
social e as mediações constituídas por ser esse ser social.
Para Mészáros (2006), não pode haver teoria histórica consistente sem o
marco de referência ontológico, ao mesmo tempo que não se deve confundir
continuidade ontológica com fixidez antropológica imaginária (p.47). A ontologia,
nesse viés, seria dinâmica e sob o capitalismo limitada, de maneira que as
contradições que permeiam o ser social em sua universalidade são próprias
dessa condição ontológica, que enquanto limitada, é contraditória. O trabalho
base da condição ontológica é, dessa maneira, também a base para superar
essas limitações, é no trabalho que se constitui a existência humana.
Ao analisar antigas comunidade tribais, Marx aponta não um modelo de
sociedade a ser seguida a partir do modo de vida destas, mas uma essência do
trabalho presente que remete ao controle do processo de trabalho relacionado à
propriedade enquanto relação direta com a natureza dos meios para exercer
trabalho. É o que Antunes, ao analisar Lukács, também aponta a partir de uma
liberdade presente no trabalho primitivo, como modelo de liberdade, uma práxis
social voltada à essência do que é humano, suas necessidades reais e não o
fetiche criado a partir do valor de troca, da mercadoria.
As comunidades que têm como atividade a pesca-artesanal, que media a
relação sociedade/natureza, ao viver diretamente da natureza, conservam
pressupostos que lhes possibilitam construir alternativas que vão de encontro
aos pressupostos da sociedade organizada através do sóciometabolismo do
capital.
Ao viver diretamente da natureza, há um controle do processo de trabalho,
no sentido de que é preciso ter o conhecimento da natureza como parte do

114
processo de trabalho, a consciência que se desenvolve na produção da vida
material. O pôr teleológico, nesse sentido, espelha alternativas que se
aproximam da essência ontológica do trabalho. As mediações necessárias à
reprodução da vida passa pela apropriação da natureza de maneira que não há
estranhamento entre o ser que trabalha e o produto do seu trabalho.
Diante do modo de produção do capital, o viver da atividade pesqueira
artesanal rompe com alguns pressupostos da lógica capitalista: o trabalho
assalariado, a separação do trabalhador dos meios para produzir. Como
atividade extrativista, o pescado se encontra pronto na natureza, o pescador
precisa desenvolver técnicas de captura, e mesmo os instrumentos de trabalho,
como barcos e redes, são produzidos pelos trabalhadores. Sendo assim, a
atividade artesanal não se propõe a produtividade capitalista, portanto os
instrumentos são possíveis de serem confeccionados também de forma
artesanal.
Diante do mar e do rio ainda limitado no sentido de propriedade privada,
a atividade pesqueira artesanal se dá em um ambiente que leva a uma prática
coletiva, por isso a pesca está atrelada a comunidades que dominam a prática,
a arte da pesca. O sentido de comunidade está na forma de organizar trabalho
e na forma de estar na natureza, sem a completa mediação da propriedade
privada.
O que as comunidades antigas tribais, que se aproximam do trabalho
primitivo, têm em comum com as comunidades pesqueiras é a essência
ontológica do trabalho que permanece na organização social destas
comunidades, posto que a relação direta com a natureza garante dentro do limite
possível dos estágios de produção de dados momentos históricos, uma forma
de organizar trabalho que rompe com a lógica do trabalho abstrato, o trabalho
alienante do capital.
Isso não nos permite dizer que não há alienação nas comunidades que
vivem da relação direta com a natureza, há outras mediações que perpassam e
sobrepõem ao modo de vida destas comunidades, que determinam uma
consciência reificada. Mas, a forma que se dá o intercâmbio com a natureza
permite uma maior ou menor capacidade de realização da autoatividade, e essa
essência ontológica nos permite compreender o papel do trabalho na
humanização do ser, homem, social.

115
2.3- O ser social e o processo de reificação

É na relação sociedade/natureza – mediada pelo trabalho – que se


compreende o ser social, a sociedade em si. Portanto, não há trabalho sem
natureza, a existência do trabalhador está condicionada à existência da
natureza. Marx (2004, p. 84) afirma que “a natureza oferece os meios de vida,
no sentido de que o trabalho não pode viver sem objetos no quais se exerça,
assim também oferece, por outro lado, os meios de vida no sentido mais estrito
[...]”, ao mesmo tempo que há um duplo sentido no trabalho, à medida que é na
natureza que o trabalho se efetiva, garantido a existência física do trabalhador.
É a apropriação da natureza pelo trabalho que possibilita a relação de
estranhamento do mesmo, tornando o objeto do trabalho algo estranho ao
trabalhador.
A separação do trabalhador dos meios para exercer trabalho é a condição
de existência do capital. O trabalho produtor de mercadorias, conforme Marx
(2004), produz o próprio homem como mercadoria, e dessa forma a relação de
estranhamento entre o trabalhador e o produto do trabalho, o que consiste na
exteriorização do trabalhador – quando o trabalho se torna algo externo ao
trabalhador, fora do trabalhador – a relação sociedade/natureza é escamoteada.
A natureza como natureza, enquanto externalidade, para Marx (2004),
não possui sentido à medida que se torna uma abstração. O homem enquanto
ser consciente de sua autoatividade e das condições vitais de sua existência é
natural enquanto humano, de forma que a natureza não possui sentido em si
mesma. As relações que estabelecem a natureza e, por conseguinte, o trabalho
como externalidade impedem que as potencialidades humanas se desenvolvam
para além de finalidades outras, que passam a mediar a sociedade em suas
atividades produtivas. A externalidade torna-se relevante por que ocorre de
forma inumana (Mészáros 2006).
À vista disso, o estranhamento do trabalhador sobre o trabalho não se dá
somente na relação com o produto do trabalho, mas no ato de produção. Marx
(2004) parte da questão: como poderia, na própria atividade produtiva, o
trabalhador exercer esse estranhamento se ele próprio não estranhasse a si

116
mesmo. Nesse sentido, o estranhamento se dá tanto na relação do trabalhador
com o produto do trabalho que passa a ser exterior, e na atividade produtiva que
também não pertence ao trabalhador. O trabalho estranhado, segundo Marx
(2004), estranha do homem a natureza da qual ele vive e que faz parte, da qual
depende sua vida física e mental:

Na medida em que o trabalho estranhado 1) estranha do homem


a natureza, 2 [e o homem] de si mesmo, de sua própria função
ativa, de sua atividade vital; ela estranha do homem o gênero
[humano]. Faz-lhe da vida genérica apenas um meio de vida
individual. Segundo, faz da última em sua abstração um fim da
primeira, igualmente em sua forma abstrata e estranhada
(Ibidem, p. 84).

A vida genérica representa o homem enquanto gênero humano que,


irreversivelmente, vive da relação metabólica com a natureza, é o homem
universal que no ato de exercer trabalho produz sua existência de forma
consciente. Se o estranhamento do trabalho representa uma relação que
obscurece a essência ontológica do ser na sua relação com a natureza, o viver
diretamente da natureza representa um produzir da vida imediata consciente
dessa relação com a natureza da qual depende, ainda que as relações sociais
de produção em suas múltiplas determinações tenham um papel determinante
no papel do trabalho, na vida social mediada pelo valor de troca que guia o
estranhar do ser de sua condição humana:

A igualdade dos trabalhos humanos assume a forma material da


igual objetividade de valor dos produtos do trabalho; a medida
do dispêndio de força humana de trabalho por meio de sua
duração assume a forma da grandeza do valor dos produtos do
trabalho; finalmente, as relações entre os produtores, nas quais
se efetivam aquelas determinações sociais de seu trabalho,
assumem a forma de uma relação social entre os produtos do
trabalho (Marx, 2013, p.147).

A relação de estranhamento compõe a base da teoria da alienação em


Marx, o momento do estranhamento entre o trabalhador e o produto do trabalho,
referente às mediações de primeira ordem. Mészáros (2006) chama atenção
para as mediações de segunda ordem que compõem conjuntamente o processo

117
de alienação e não se resumem à identidade entre sujeito e objeto:

O que Marx combate como alienação não é a mediação em


geral, mas uma série de mediações de segunda ordem
(propriedade privada – intercâmbio - divisão do trabalho),
uma “mediação da mediação”, isto é, uma mediação
historicamente específica da automediação ontologicamente
fundamental do homem com a natureza. Essa “mediação de
segunda” ordem só pode nascer com base na ontologicamente
necessária “mediação de primeira ordem” - como a forma
específica, alienada, desta última (MÉSZÁROS, 2006, pág. 78).

Entende-se que o trabalho, ao mesmo tempo em que media a relação


homem/natureza, a partir da necessidade de produzir valores de uso, também
possibilita a produção de valores de troca, de maneira que o modo de produzir
permite a produção, em uma quantidade maior do que o necessário para
subsistir. Ao falarmos de modo de produzir, estamos falando do produzir
socialmente, em que a divisão do trabalho ou a incorporação de mediações
técnicas são base para uma sociedade cujo valor de troca se estabelece como
o valor que media as relações sociais.
A condição de existência do valor que dá sentido à mercadoria enquanto
valor de troca está no trabalho abstrato voltado à reprodução de mercadorias.
No entanto, não há valor de troca sem valor de uso, mesmo o trabalho que não
está voltado à produção imediata da mercadoria, ao produzir valor de uso, à
medida que o produto do seu trabalho torna-se necessário para obter outros
produtos no mundo das mercadorias, torna-se valor. O valor de troca estabelece
o que há de comum entre as mercadorias e dilui a singularidade presente na
forma do trabalho concreto, tornando-o uma atividade produtiva com o fim de
produzir valor:

O produto do trabalho é, em todas as condições sociais, objeto


de uso, mas o produto do trabalho só é transformado em
mercadoria numa época historicamente determinada de
desenvolvimento: uma época em que o trabalho despendido na
produção de uma coisa útil se apresenta como sua qualidade
“objetiva”, isto é, como seu valor (MARX 2013, pág.137).

O valor se apresenta no sistema do capital como resultado do produto do

118
trabalho, o que leva a mercadoria a ser a forma universal nas relações, mesmo
no ato laboral que se dá diretamente na natureza produzindo valor de uso, o
valor de troca se impõe como forma de sociabilidade. Para estabelecer valor de
troca, é preciso estabelecer o tempo socialmente necessário de produção,
baseado na própria produção já existente. O trabalho necessário em qualquer
sociedade produtor de valores de uso é justamente o resultado da mediação que
o trabalho exerce na relação homem/natureza. Aumentar a produtividade do
trabalho não muda o valor do produto em si, mas ao aumentar a quantidade do
que se produz, e tendo mais valores de uso, tem-se a condição do valor de troca.
Ao estabelecer a partir do valor de uso o valor de troca, tendo a
mercadoria como finalidade do produzir, faz-se necessário que o trabalho esteja
guiado para esse fim, ao passo que a própria força de trabalho torna-se
mercadoria no processo de trabalho. Para Marx (2010, p. 80), quanto mais
mercadorias cria-se, mais barato torna-se o próprio trabalhador enquanto
mercadoria, quanto mais valorização do mundo das coisas, proporcionalmente
há uma desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somente
mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e
isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral.
Para se tornar mercadoria, Marx (2013) afirma que é preciso haver a
troca, apesar do capital não ter origem na circulação; sem a circulação, tão pouco
não há capital. A força de trabalho constitui-se enquanto valor de troca, quando
vendida ao detentor dos meios de produção, portanto, torna-se mercadoria.

Por força de trabalho ou capacidade de trabalho, entendemos o


complexo das capacidades físicas e mentais que existem na
corporeidade, na personalidade viva de um homem e que ele
põe em movimento sempre que produz valores de uso de
qualquer tipo (MARX, 2013, p. 242).

Para Marx (2013), a definição de força de trabalho se dá enquanto


corporeidade capaz de produzir valores de uso. Para que essa se torne
mercadoria, é necessário que o sujeito que trabalha venda sua própria força de
trabalho em vez de mercadorias em que seu trabalho esteja objetivado. A
condição de não ter meios de produção é que dispõe a força de trabalho
enquanto mercadoria como valor de troca. Marx, nos Manuscritos Econômicos,
evidencia essa relação como mortal para o trabalhador, à medida que “A
119
existência do trabalhador é, portanto, reduzida à condição de existência de
qualquer outra mercadoria” (Marx, 2004, p.24).
A força de trabalho consumida é a garantia da produção de mercadoria e
do mais valor, ao possuidor apenas da sua força de trabalho resta ser
mercadoria, e produzir mercadoria, de modo que essa relação não se reduz à
necessidade de se reproduzir, enquanto ser biológico, mas enquanto ser social.
Os pores da vida passam a ser determinados por essa relação de venda e
consumo da mercadoria. Ao realizar o valor de troca de sua força de trabalho, o
trabalhador aliena seu valor de uso, já que o resultado do seu trabalho produz
valor de uso incorporado na mercadoria, que não lhe pertence, já que não é o
produto do seu trabalho e sim algo que pertence ao comprador da sua força de
trabalho.
Sendo a mercadoria produzida pelo trabalho, teriam os homens
autodomínio sobre o que se produz no processo de trabalho, porém, o que está
posto é a mercadoria permear as relações, de maneira que estas tornem-se
relações entre mercadorias. O ser que exerce trabalho passa a ser mercadoria
enquanto força de trabalho. Para manter o ciclo do capital, é necessário que o
mesmo se expanda e se reproduza enquanto relação que estabelece valor de
troca entre coisas-mercadoria.
A relação capital/trabalho leva à objetivação do trabalho no produto do
trabalho, e faz com que o trabalhador se depare com um poder independente,
um ser estranho. Em consonância a Marx (2010), a apropriação como
estranhamento, como alienação; é a exteriorização do trabalhador em seu
produto, mas de forma autônoma, coisal, exterior a si, o trabalhador, o seu
produto sob o domínio do capital (p. 81).

A troca universal de atividades e produtos, que deveio condição


vital para todo o indivíduo singular, sua conexão recíproca
aparece para eles mesmos como algo estranho, autônomo,
como uma coisa. No valor de troca, a conexão social entre as
pessoas é transformada em um comportamento social das
coisas; o poder pessoal, em um poder coisificado (MARX, 2011,
pág.105).

A forma fantasmagórica que a mercadoria assume, transformando a


relação entre homens entre relação entre coisas, é definida por Marx, no

120
fetichismo da mercadoria, poder alheio ao próprio homem. Netto28 (1981, p.35),
ao debater a tematização da alienação da sociedade mercantil, a sociedade de
capitalismo universal, destaca a forte determinação econômica-social na
construção da socialidade, com a formação de estruturas de comportamento
resistentes, que se objetivam enquanto automização dos fenômenos. Assim, a
alienação traz em si o problema do fetichismo e da reificação.
Marx trata da problemática do fetichismo em sua obra mais acabada, O
Capital, ao se dedicar ao estudo da mercadoria no capitalismo, em sua forma
concreta histórica-social (Ibidem). No que traz à tona a complexidade da forma
mercadoria que carrega a duplicidade do trabalho e, por conseguinte, a
compreensão do trabalho como formação de valor, ao mesmo tempo, a categoria
trabalho, em sua dimensão ontológica constitutiva do ser. De tal modo, a
natureza da sociedade burguesa perpassa a duplicidade do trabalho cristalizado
na mercadoria.
Teorizar esse movimento torna-se então o desvelar do fetichismo, o papel
místico que a mercadoria exerce à medida que torna valor o que é humano, e
que o é possível, com a universalização da produção mercantil. O fetichismo
então se dá na mediação das relações humanas pela mercadoria, que em sua
universalidade, faz parecer natural a dimensão das relações sociais como
relação entre coisas. Dessa maneira, a concretização do fetichismo na
especificidade do capitalismo enquanto sociometabolismo do capital se dá
enquanto reificação - o tornar das relações sociais em relação entre coisas.
Netto (1981) evidencia que fetichismo e alienação não são idênticos,
sendo o problema da alienação mais amplo. Enquanto o fetichismo é um dos
seus aspectos, a reificação emerge na especificidade do modo de ser da
produção capitalista, e ainda assim nem toda forma de alienação é reificada.
Nesse sentido, o estudo da mercadoria presente no Capital torna-se essencial,
ao passo que a mercadoria e seu papel ao longo da história não é o mesmo.
Processos que constituem a alienação se dão antes mesmo da consolidação da
sociedade burguesa em sua particularidade - do capitalismo e a produção de

28
José Paulo Netto no livro Capitalismo e Reificação contextualiza e traz o debate da reificação diante da
problemática do fetichismo e da alienação, como fenômeno do capitalismo tardio, recuperando debates
de autores e da esquerda marxista, apontando a necessidade da leitura de Marx e o lugar da alienação
em sua obra.

121
mercadorias em sua forma universal. Nestes termos, as relações reificadas
apresentam-se como momento em que a organização da vida social se dá a
partir da necessidade de reprodução do capital num dado momento histórico do
capitalismo:

Na idade avançada do monopólio, a organização capitalista da


vida social preenche todos os espaços e permeia todos os
interstícios da existência individual: a manipulação desborda a
esfera da produção, domina a circulação e o consumo e articula
uma indução comportamental que penetra a totalidade da
existência dos agentes sociais particulares - é o inteiro cotidiano
dos indivíduos que se torna administrado (Ibidem, p. 81).

O processo de reificação estabelece-se nas relações sociais, de modo


que o próprio homem torna-se coisa, com valor de troca, com valor medido em
mercadorias. A humanidade possível a partir do trabalho em sua esfera
ontológica que dá sentido ao ser social passa a ser cada vez mais mediada por
uma relação social - capital/trabalho – em que a relação sociedade/natureza
ontologicamente posta é condição indissolúvel, mas mediada por uma
socialidade coisificada.
A alienação como reificação se dá justamente no capitalismo, em
dimensões nunca antes existentes, a alienação a toda parte, como resultado do
modo de produzir industrial, da apropriação do trabalho de forma a ignorar as
capacidades qualitativas e individuais do ser que realiza trabalho (Konder, 2009).
As capacidades humanas completamente sujeitadas à produção de
mercadorias, da racionalidade do mercado e da produção industrial. Essa
sujeição da atividade produtiva sem precedentes às necessidades metabólicas
do capital passam a exercer um efeito cada vez mais paralisante e, portanto, a
necessidade de supressão da reificação (Mészáros, 2006, p.107), a
transcendência positiva da alienação:

O “verdadeiro homem” – a “verdadeira pessoa humana” – não


existe realmente na sociedade capitalista salvo em uma forma
alienada e reificada na qual encontraremos ele como “trabalho”
e “capital” (propriedade privada) opondo-se antagonicamente
(Ibidem, p. 106).

Essa oposição é apontada por Mészáros (2006) e reconhecida por Marx

122
como necessária à vida humana, à medida que a mediação da propriedade
privada tornou-se base para o desenvolvimento da indústria, de forma que a
alienação e reificação tornam-se aspectos positivos tanto quanto necessários.
No entanto, ao aprofundar-se essa oposição antagônica, há uma supressão da
condição humana no limite que perde “ sua justificação histórica relativa se torna
um anacronismo social indefensável” (Ibidem, p. 107).
A relação entre homem e natureza mediada pelo trabalho trata-se de uma
interação dialética, desse modo a atividade produtiva é parte constitutiva do ser
social, que ao realizar trabalho, produz-se, recriando a própria natureza, que é
condição necessária à realização da atividade produtiva e, deste modo, à
existência humana. As mediações de segunda ordem nessa relação sustentam
a alienação do trabalho conforme mascaram a unidade dialética do homem,
trabalho, natureza. Por isso, as relações sociais de produção engendradas com
base na alienação do trabalho é a autoalienação do trabalho, na medida em que
é a atividade produtiva exercida por esse ser social que o limita em sua condição
humana, o que Mészáros (2006) define como a relação alienada entre o homem
e sua essência objetiva, a auto-alienação-humana (p.92).
A pesca-artesanal como uma forma particular de atividade produtiva
assume dado os momentos históricos, a universalidade do metabolismo que a
sociedade estabelece com a natureza e, por conseguinte, as formas de
alienação sócio-histórica concretas. No entanto, ao exercer uma atividade que
demanda uma forma particular de organização, conhecimento da natureza,
apropriação coletiva, o pescador não pode alienar-se da natureza, se é essa
natureza extensão de si próprio na condição de pescador. A forma de alienação
que condiciona o pescador passa então pela auto-alienação-humana, perpassa
não só pela alienação do trabalho, mas por outras mediações necessárias ao
ser, que, enquanto social, insere-se em dadas sociabilidades.
O sociometabolismo do capital em sua necessidade de expansão torna-
se universal, organiza o trabalho e a vida, apropria-se do trabalho e da natureza,
e para as comunidades que vivem da pesca. Esse sociometabolismo não se dá
apenas no momento que o produto do trabalho, o pescado, assume a forma de
mercadoria. Por mais que o produto do trabalho represente uma troca simples,
no sentido que a troca se dá na condição de permanência do pescador, a
possibilidade de consumir apresenta-se como uma necessidade que vai além do

123
intercâmbio direto com a natureza, e para tal, a produtividade capitalista é posta
como solução.
O Estado, por vezes, é o mediador dessa inserção do pescador numa
sociabilidade que necessariamente precisa transformar a relação que se tem de
comunidade e de compreensão da natureza, em relações cada vez mais sociais,
na qual a natureza deve ser vista como barreira a ser superada, na garantia da
inserção do pescador na lógica capitalista de produção de mercadorias, e de
autoalienar-se a partir de relações reificadas.
A ontologia constituinte do ser social, na pesca-artesanal, dada como
condição de permanência e possibilidade de resistência, em sua prática social,
opõe-se à forma dada ao desenvolvimento capitalista, pois o trabalho ao estar
condicionado à relação direta com a natureza em sua “forma natural” em seus
ciclos, resguarda a dimensão ontológica do trabalho. Mas não há impedimento
da alienação como constituinte das relações na atividade pesqueira artesanal,
pois não há isolamento, e é característica do capital subjugar o trabalho de todas
as maneiras possíveis.
O pescador passa a estar cada vez mais pressionado por uma
sociabilidade que se dá a partir do fetiche, do poder da mercadoria, até ao ponto
que o próprio se torna mercadoria. Evidencia-se que “as tendências econômicas
se impõe de uma maneira tal que propõe tarefas aos homens singulares que
estes, sob pena de ruína, só podem solucionar de modos bem determinados,
economicamente prescritos” (LUKÁCS, 2013, p. 618). A alienação se põe em
diversas dimensões e representa que a alienação universal (econômica) implica
na alienação parcial, que assim deve ser antes de se tornar universal
(MÉSZÁROS, 2006, p. 129).
As dimensões da alienação em sua concretude para Alcântara 29 (2017)
passam pela esfera da vida cotidiana, em que a sociedade e indivíduo
reproduzem-se. A vida cotidiana, em sua heterogeneidade, que carrega a
particularidade das atividades humanas e, com isso sua base ontológica, aos
complexos sociais que surgem dessa esfera, entre eles a alienação. Para a
autora, a vida cotidiana “diz respeito ao lugar otológico onde as categorias
sociais adquirem formas e conteúdo específicos, não podendo ser desprezado

29
A autora debate a ontologia e alienação em Lukács.

124
quando se busca examinar um fenômeno ideológico na sua essência e
atualidade” (p. 184).
Para Lukács (2012), a vida cotidiana frequentemente oculta a essência do
ser, ao invés de iluminá-la:

Mas, dado que o agir interessado representa um componente


ontológico essencial, irrevogável, do ser social, seu efeito
deformante sobre os fatos, a deformação do caráter ontológico
deles, adquire aqui um acento qualitativamente novo, e isso sem
levar em conta que tais deformações não afetam o ser-em-si da
própria natureza em geral, como no ser social podem - enquanto
deformações - tornar-se momentos dinâmicos e ativos da
totalidade existente em si (p. 294).

A deformação do caráter ontológico faz parte do que o autor denomina


como esfera fenomênica que em determinada sociabilidade encobre a essência
do ser social. No entanto, a sociedade coisificada não é condição natural, é
produto histórico, e dada a universalidade do valor de troca, há a
indissolubilidade da essência ontológica. É nesse sentido que Lukács
compreende o estranhamento como fenômeno exclusivamente social e que vai
assumir diversas formas ao longo do processo histórico, o que para ele torna
necessário a reconstituição do ser como ele é em si, e de que forma se espelha.
Determinar o lugar ontológico do estranhamento, para Lukács, permite a
compreensão da alienação como real a partir de processos reais, e não só do
pensamento, como a contar de concepções idealistas que dão base para uma
compreensão da superação da alienação, iniciando pelo pensamento. A
suprassunção do estranhamento só se torna possível ao decifrar todo processo
que leva ao estranhamento e, consequentemente, à alienação.
Para Lukács (2013), o estranhamento traçado por Marx, enquanto
fenômeno, apresenta-se na contradição, [...]“o desenvolvimento das forças
produtivas é necessariamente ao mesmo tempo o desenvolvimento das
capacidades humanas” [...] (p.581), mas [...]“ o desenvolvimento das
capacidades humanas não acarreta necessariamente um desenvolvimento da
personalidade humana”[...] (p. 581). O que afirma (Ibidem) a necessidade da
compreensão da personalidade como categoria social para se chegar ao
surgimento e à superação do estranhamento, de maneira que as alienações
individuais representam:

125
[...]Vislumbramos no homem singular um dos polos ontológicos,
um dos polos reais de todo e qualquer processo social, visto que
o estranhamento é um dos fenômenos que mais decididamente
está centrado no indivíduo, torna-se importante relembrar que,
também, nesse caso, não se trata de uma liberdade abstrata
individual, à qual se contraporia no outro polo, no da totalidade
social, uma “necessidade” igualmente abstrata, só que abstrata
social, mas que não é possível eliminar totalmente a alternativa
de nenhum processo social (Ibidem, p. 585).

A alternativa apresenta-se como categoria que carrega em si a


possibilidade do resgate da essência ontológica, mesmo diante de bases sociais
determinadas, pois é impossível afastar-se completamente do que configura o
homem enquanto ser social. De modo que o homem singular torna-se esse polo
real ontológico, para o autor, mesmo na condição de decisões individuais, pesa
o que é histórico, social, o ser enquanto acontecimento social. Na vida cotidiana
tem a expressão dessas decisões a qual permite, ao ser investigado, a
compreensão do estranhamento não como uma condição humana supra-
histórica, mas como um fenômeno social real, histórico, que se manifesta na
prática da vida estranhada, ao mesmo tempo que a rejeição de homens
singulares à prática estranhada também se manifesta como condição:

A despeito de toda a sua importância, a contradição dialética


entre desenvolvimento da capacidade e desenvolvimento da
personalidade, ou seja, o estranhamento, jamais abrange inteira
totalidade do ser social do homem, mas em contrapartida, ela
nunca se deixará reduzir (a não ser, quando muito, numa
deformação subjetivista) a uma contraposição abstrata de
subjetividade e objetividade, a uma contraposição do homem
singular e sociedade, de individualidade e socialidade (LUKÁCS,
2013, p. 588).

A contradição é justificada no que autor afirma enquanto afastamento,


mas jamais desaparecimento da barreira natural como característica essencial,
não só do processo inteiro de reprodução da sociedade, mas, inseparável dele,
também da vida individual, o que nos processos de vida singulares vão tornando-
se cada vez mais individuais. Cadeias causais que se põe a partir dos pores
teleológicos, no que constitui alternativas que caminham no sentido da
alienação, estabelecem o estranhamento como conflito parte das relações
sociais.

126
Para Marx (2011), as relações sociais não são um produto da natureza,
mas da história, a universalidade que se dá do estranhamento na sociedade não
se dá antes que indivíduos singulares desenvolvam suas relações e habilidades
próprias e comunitárias (p.110). A existência de comunidades que não estão
completamente subordinadas ao processo de estranhamento representa a
singularidade na universalidade do trabalho abstrato que em qualquer estágio da
sociedade representa a relação homem/natureza inerente ao trabalho. Mas, a
transcendência positiva da alienação 30 não se efetiva, pois ainda o trabalho é
confrontado com o trabalho abstrato em sua forma universal e dominante na
forma de ser da sociedade.
O modo de existir do capital é em expansão, mesmo nas comunidades
que vivem diretamente da natureza e que exercem um determinado controle
sobre o processo de trabalho. As mediações necessárias ao capital
permanecem, no caso das comunidades pesqueiras, há uma estrutura de
organização social na especificidade da atividade ao qual o Estado é garantidor.
Essa mediação Estado/pesca passa pela prática da atividade pesqueira e
a necessidade de registro do pescador artesanal, pelo papel das colônias e
outras instancias formais de representação coletiva, e políticas públicas voltadas
à atividade que perpetua as necessidades expansivas do capital. Nas
comunidades pesqueiras há uma série de políticas sendo intermediadas no
sentido de inserir o pescador artesanal na produtividade do capital, a exemplo
da aquicultura. Mesmo que esse trabalhador domine o processo de trabalho, há
toda uma sociabilidade voltada à mercadorização do trabalho, da natureza e da
vida.
Para fins de acumulação do capital, o trabalho produtivo garante sua
valorização, portanto a inserção da atividade pesqueira na produtividade do
capital através do agronegócio se coloca como um ramo de expansão do capital,
a subsunção do trabalho ao capital enfim se realiza como um modo de produzir
especificamente capitalista, o cultivo de pescados como controle da natureza
com fins de produzir mercadoria. “É a necessidade de controlar socialmente uma
força natural, de poupá-la, de apropriar-se dela ou dominá-la em grande escala

30
Conceito de Mészáros ao tratar da teoria da alienação em Marx, que representa a superação do trabalho
alienado enquanto emancipação completa de todas as qualidades e sentidos humanos, passando pela
esfera da produção como condição, mas também pela esfera política, moral e estética.

127
mediante obras feitas pela mão do homem o que desempenha o papel mais
decisivo na história da indústria” (MARX, 2013, p.582).
O pescador que exerce a atividade em sua forma artesanal, mesmo que
não produza mais-valor, está inserido na lógica capitalista. O produto do seu
trabalho, quando não comercializado diretamente pela família, é usurpado por
atravessadores que representam grandes empresas, ou mesmo atravessadores
da comunidade que possuem uma estrutura de comercialização. Nesse
movimento, a produção da pesca-artesanal em algumas comunidades volta-se
completamente para o mercado e extrapola o comércio em escala local e
nacional.
O processo de alienação passa pelo controle do trabalho, mas também
por todas as esferas da vida atreladas à condição de ser social, o viver
sociedade. Se o pescador artesanal devido às condições de trabalho que
remetem ser pescador, não submete sua força de trabalho ao assalariamento, a
maneira como ele é obrigado a inserir o produto do trabalho no mercado, ainda
assim é determinada pela força do capital. É o que Mészáros (2002) afirma ser
um modo peculiar de controle, as exigências fetichistas do sistema do capital
tornam-se inevitáveis devido à separação entre produção e controle no âmago
do sistema:

O sistema do capital se baseia na alienação do controle dos


produtores. Neste processo de alienação, o capital degrada o
trabalho, sujeito real da reprodução social à condição de
objetividade reificada - mero “fator material de produção” - e com
isso derruba, não somente na teoria, mas na prática social
palpável, o verdadeiro relacionamento entre sujeito e objeto.
Para o capital, entretanto, o problema é que o “fator material de
produção” não pode deixar de ser o sujeito real da produção
(Ibidem, p. 126).

O pescador artesanal insere-se na sociabilidade do capital, no processo


de circulação, no processo de consumo e na relação de dependência com o
próprio Estado. As políticas de seguridade social representam uma garantia de
sua reprodução enquanto pescador, diante da condição de pobreza inerente ao
modo de produção e notadamente presente na atividade pesqueira artesanal,
diante de todos os processos que dificultam o viver da pesca resultantes também
da territorialização do capital.
Sobremodo, faz-se necessário ressaltar que há um controle dos
128
produtores, no caso dos pescadores em relação ao trabalho, sujeitos reais da
produção, o que nos permite ir além das relações mediadas pelo modo de ser
do capital. Contudo, esse pescador em sua singularidade não deixa de ser parte
e contraditoriamente está inserido na lógica capitalista, o que resulta em relações
reificantes no mundo da pesca-artesanal, de acordo com o grau de inserção das
comunidades no mundo da mercadoria:

O comportamento meramente atomístico dos homens em seu


processo social de produção, independentes de seu controle e
de sua ação individual consciente, manifestam-se, de início, no
fato de que os produtos de seu trabalho assumem
universalmente a forma de mercadoria (MARX, 2013, p.167).

O trabalho na sociedade moderna constitui a alienação total do homem


(MARCUSE, 1978), o modo de produzir se dá a partir de leis capitalistas cuja
mercadoria é que define o fim da atividade humana, o pôr do fim que dá sentido
à objetivação capitalista. O processo de alienação presente na relação do
trabalhador com seu próprio trabalho e, consequentemente, no produto do seu
trabalho. Quanto mais mercadorias ele produz, mais barato ele próprio se torna.
Empobrece a partir do seu próprio trabalho (Ibidem).
A função do processo de trabalho passa pela produção de mercadoria e
do lucro. Marcuse (1978) analisa o trabalho alienado a partir da leitura de Marx,
entendendo a divisão do trabalho como característica da sociedade de classes
que aliena o trabalhador ao impedir que ele tenha consciência real do produto
do seu trabalho:

O trabalho separado do seu objeto é, em última análise, “uma


alienação do homem pelo homem”; os indivíduos são isolados
uns dos outros e atirados uns contra os outros. Eles estão mais
ligados pelas mercadorias que trocam do que por suas pessoas.
Ao alienar-se de sim mesmo o homem se afasta dos seus
semelhantes (Ibidem, p.257).

Ao ligar-se pela mercadoria a relação humana perde- se; é a mercadoria


que passa a definir as relações objetivas. É aí que para Marcuse (1978) está
apontado o processo de reificação, consequência da sociedade capitalista, na
qual as relações sociais tornam-se antes relações entre coisas. Enfim, a
verdadeira história só se dará com indivíduos livres, não moldados pela produção

129
de mercadoria que contradiz a sua essência (Ibidem); faz-se necessário então
abolir o trabalho em sua organização negativa, a do capital, do capitalismo.
Para nós, em consonância com a compreensão da leitura de Lukács
(2013), o pescador artesanal representa a singularidade enquanto polo
ontológico e que constitui momentos não reificados. A singularidade forma a
totalidade dinâmica, mas só a consciência e a intenção de alcançar a generidade
humana fará com que esse homem consiga “apropriar-se de sua própria
elevação acima de seu ser-homem meramente particular - pelo menos como
obrigação perante a si mesmo, o que pode gerar conflitos” (Ibidem, p.601) -
entretanto, não necessariamente um processo revolucionário, pois a generidade
está aí apenas como possibilidade dentro de um processo global almejado por
um homem singular. Lukács, ao recorrer a Marx, aponta:

É preciso dizer à guisa de síntese: em primeiro lugar, todo


estranhamento é um fenômeno socieoeconomicamente
fundado; sem uma mudança decisiva de estrutura econômica,
nada de essencial poderá ser modificado nesses fundamentos
por meio de alguma ação individual (Ibidem, 2013, p. 632).

A possibilidade do alcance da generidade humana enquanto exercício dos


poderes humanos passa pela construção de alternativas enquanto sociais, não
apenas no nível do indivíduo. Mészáros (2006), ao tratar da liberdade humana,
considera que a liberdade não significa a negação do que há de natural no
homem. A condição do homem sendo parte da natureza é trabalhar para garantir
sua condição humana, dessa forma também a própria realização da liberdade
humana. Chama também atenção para a negação das mudanças sociais,
quando na prática ou teoricamente se recorre à sujeição de uma naturalidade
crua, sendo esta também em dada medida, alienação, de forma que:

A sociedade é a “segunda natureza” do homem, no sentido de


que as necessidades naturais originais são transformadas por
ela e, ao mesmo tempo, integradas numa rede muito mais ampla
de necessidades, que são, no conjunto, o produto do homem
socialmente ativo (Ibidem, p.160).

O homem socialmente ativo, que Mészáros (2006) destaca a partir do


conceito de alienação em Marx, é o reconhecer da condição humana posta a

130
partir do sociometabolismo com a natureza, não significa um retorno à condição
primitiva. A condição humana se dá enquanto ser social. Romper com o processo
de alienação significaria uma atividade humana autoconsciente. “A figura do
processo social de vida, isto é, do processo material de produção, só se livra do
seu místico mar de névoa quando, como produto de homens livremente
socializados, encontrasse sob seu controle consciente planejado” (MARX 2013,
p.156).
O grau de liberdade positiva possível de ser alcançada na socialidade
capitalista está relacionada ao caráter das relações de propriedade existentes,
ainda que a superação da alienação não se restrinja à superação da propriedade
enquanto mediação na sociedade. Mészáros aponta a transcendência positiva
da propriedade privada como parte argumentativa da alienação em Marx,
correspondente ao momento em que o homem exerce sua humanidade
plenamente, sem ignorar a liberdade relativa em relação a necessidade da
natureza.
A análise da relação de propriedade privada e liberdade evidenciada por
Mészáros31 passa pelo avanço das forças produtivas, que torna o homem menos
dependente das necessidades naturais que vão mediar sua relação com a
natureza. Esse aumento da capacidade produtiva é desperdiçado à medida que
o governo dessas forças resulta, no que aponta Lukács (2013) como contradição
da forma social capitalista - o desenvolvimento das capacidades produtivas
representa o desenvolvimento das capacidades humanas, mas não representa
o avanço da personalidade humana - a condição do estranhamento, nesse
sentido, permanece e se amplia no sentido negativo da liberdade.
A questão posta por Mészáros (2006) quanto ao papel da propriedade, e
ao que ela representa no que tange à plenitude do exercício das capacidades
humanas, convergem no que é a própria socialidade. A resposta se dá à medida
que a propriedade privada constitui a alienação, o trabalho como externo ao
trabalhador. O que Lukács (2013) vai afirmar é a necessidade de entender a
personalidade como categoria social para compreender o estranhamento, o que
perpassa por mediações que levam mesmo na esfera da individualidade, que
não está desligada da totalidade social:

31
A teoria da Alienação em Marx, pág. 143.

131
A objetivação sob condições em que o trabalho se torna exterior
ao homem assume a forma de um poder alheio que confronta o
homem de uma maneira hostil. Esse poder exterior, a
propriedade privada, é “o produto, o resultado, a consequência
necessária, do trabalho exteriorizado [alienado], da relação
externa do trabalhador com a natureza e consigo mesmo
(MÉSZÁROS, 2006 p. 146).

Transcender a propriedade privada é parte do caminho para a liberdade


positiva, para Mészáros, a partir da leitura de Marx, a liberdade humana é a
afirmação do que há de natural no homem, não cabe a transcendência da
natureza. A liberdade está posta no próprio homem e na natureza que o compõe
enquanto ser social que pode por si mesmo promover a liberdade enquanto
social. O limite da liberdade está no reino da necessidade satisfeita pelo trabalho,
as potencialidades humanas, nesse sentido, para serem objetivadas devem se
afirmar a partir do trabalho. O ato autotranscendente do vir-a-ser passa pela
automediação, não apenas pela autoconsciência, “a superação da atividade
alienada por meio da iniciativa autoconsciente, só pode ser concebido como um
processo complexo de interação que produz mudanças estruturas em todas as
partes da totalidade humana” (MÉSZÁROS, 2006, p. 167).
Partindo desses argumentos, o processo de alienação não é uma
totalidade homogênea se há uma consciência de ser alienado, mesmo estando
sobre o processo de alienação, não há então uma totalidade alienada. Há uma
consciência prática que mesmo sendo parte da alienação, torna autoconsciência
desta, que é o que distingue, para Mészáros (2006), o homem do animal. A
alienação se expressa de forma contraditória, no caminho contrário do que
significa ser humano, pois representa a relação entre coisas, o homem como
objeto.
O capital em sua expressão concreta na vida social, é contradição. Um
sistema de controle incontrolável que carrega em sua essência sua
autodestruição, à medida que o processo de produção que compõe o seu
sociometabolismo se dá na separação da produção e do controle da produção.
Essa separação materializada na forma de organizar trabalho, não pode destruir
o sujeito dessa relação, que é o ser que trabalha e que tem em si uma essência
ontológica.

132
Como a “alienação é a produção do capital realizada pelo
trabalho”, ela deve ser entendida “como atividade, estando
sempre em disputa. Em outras palavras, a alienação é a luta do
capital para sobreviver, a luta do capital para subordinar o
trabalho (...), é a luta incessante do capital pelo poder. A
alienação não é um aspecto da luta de classes: é a luta do capital
para existir” (ANTUNES, 1999, p. 132).

Sendo a alienação a luta do capital para sobreviver, há um movimento que


vai de encontro à alienação, que se dá a partir da generidade humana apontada
por Lukács (2013), enquanto impossível de retroceder totalmente, e que se
manifesta nas singularidades dos fenômenos sociais. O estranhamento se
manifesta de forma diversa, de tal modo que se torna possível em alguns
momentos homens singulares combaterem o estranhamento, ao mesmo tempo
em que não oferece resistência a outras formas de manifestação da alienação
(Ibidem, p. 608). Não há libertação de forma isolada, mesmo que na práxis da
vida cotidiana de homens singulares, a generidade humana a ser alcançada não
se torna possível fora da totalidade.
A ontologia lukacsiana permite compreender a essência do ser social, o
trabalho como resultado da luta por existência na relação homem/natureza, e
passa a ser como o próprio Lukács afirma, o modelo de toda práxis social,
mesmo estando sob mediações cada vez mais sociais e complexas. Marx, no
Capital, analisa essas mediações a partir do processo de produção do capital, o
que evidencia o processo de alienação como necessário a continuidade dessa
reprodução, é nesse sentido que Mészáros e outros autores apreendem a
alienação e suas manifestações em diversas dimensões.
As inquietações do presente debate vão ao sentido de que até que ponto
a essência ontológica está posta sob uma socialidade que se faz a partir das
necessidades de reprodução do capital e não do ser social? Marx, Lukács e
Mészáros apresentam-nos alguns caminhos ao analisarem o processo de
alienação, estranhamento e reificação, de maneira que se aponta para uma
liberdade humana que só se dará no processo de trabalho. O trabalho enquanto
autodomínio dos pores teleológicos, que em sua essência ontológica media a
condição humana enquanto condição do ser social.
O autodomínio dos pores teleológicos na condição camponesa, na

133
condição de pescador artesanal remete a uma ontologia e liberdade possível,
através do trabalho, o que não quer dizer que estas representem o modelo de
trabalho ou sociedade a ser alcançado. Mas constituem-se atividades onde o ser
que trabalha no seu metabolismo com a natureza, de alguma forma domina o
processo de trabalho, e nessa relação direta com a natureza constroem relações
que fogem à algumas mediações da lógica do capital:

Em relação a um futuro qualitativamente diferente, o que se tem


de privar é que a ontologia do trabalho (historicamente
construída e ainda em andamento), em seu significado
fundamental de agência e atividade da reprodução
sociometabólica, pode se sustentar melhor, com um grau
superior de produtividade, quando livre da camisa de força do
modo ampliado de extração do excedente do que quando seu
movimento é restrito pelo imperativo perverso de acumulação do
capital característico deste modo (MÉSZÁROS, 2002, p. 201).

O modo de ser do capital, a realidade econômica na forma capitalista


determina a maneira como a sociedade em sua totalidade está posta a serviço
dá acumulação e do lucro. Lukács (2013) chama atenção para a compreensão
do homem e da sociedade de modo ontologicamente simultâneos, no entanto
esse homem não deverá ser considerado apenas um simples objeto da
legalidade econômica, assim como não se deve supor que as determinações
essenciais do seu ser homem poderiam ser ontologicamente independentes da
existência da sociedade (p. 280).
Verifica- se a singularidade do ser em sua complexidade concreta como
resultado, de sua reprodução, de sua interação concreta com seu meio ambiente
concreto. No entanto, há mediações sociais na relação entre o homem singular
em sua concretude que é o ser social, que acaba por encarar esse social de
maneira a não encarar outras possibilidades fora da sociabilidade do capital
(Ibidem).
Por isso que Lukács afirma não se poder fetichizar a substância humana
em uma entidade mecânica e nem fazer do ser um objeto que não oferece
resistência a quaisquer manipulações:

Assim como o ser social se constrói de encadeamentos dessas


decisões alternativas que se cruzam de muitas maneiras, assim
também a vida humana singular se constrói de sua sequência e

134
de sua separação. Desde o primeiro trabalho enquanto gênero
do devir homem do homem até as resoluções psíquico-
espirituais mais sutis, o homem confere fora ao seu meio
ambiente, contribui para construí-lo e aprimorá-lo e,
concomitantemente com essas suas ações bem próprias
partindo da condição de singularidade meramente natural,
confere a si mesmo a forma de individualidade dentro de uma
sociedade (LUKÁCS, 2013, p.284).

Há, na discussão apresentada por Lukács na ontologia do ser social,


pores teleológicos, causalidades, alternativas que precisam ser compreendidos
na complexidade desse ser social. É nesse caminho que compreendemos a
pesca artesanal, que não deixa de estar posta no determinante social, mas em
sua singularidade.

135
III- CAPÍTULO - A SINGULARIDADE DO PESCADOR ARTESANAL

Ao tratar de comunidades que vivem da atividade pesqueira artesanal,


identificam-se pontos comuns nas comunidades tradicionais, tanto a nível
conceitual quanto a nível político, na construção de identidade, enquanto
categoria que vive da pesca, na resistência que perpassa pelo trabalho e pela
organização política. Dentre esses pontos, destaca-se a singularidade na forma
como o trabalho, a pesca-artesanal, estabelece na relação sociedade/natureza
que não se inscreve na condição sociometabólica do capital.

O valor nas comunidades pesqueiras artesanais não está na


produtividade capitalista, à medida que a organização do trabalho e da vida
perpassa pelo tempo da natureza que consiste na apropriação da mesma
enquanto coletiva, pelo acesso a ambientes comuns não mediados pela
propriedade privada individual. Esse modo de ser é compreendido na sua
particularidade em contraposição ao determinante universal do desenvolvimento
da lógica capitalista.

3.1 – Da acumulação primitiva às comunidades tradicionais

O tradicional enquanto resquício de um modo de vida que resiste a outra


forma de organização social passa pela compreensão não só do momento em
que a vida passa a ser mediada pelo capital enquanto relação dominante, mas
também no que se compreende como modo de vida das comunidades
tradicionais anterior ao domínio sociometabólico do capital como valor
predominante.
Em seu estudo sobre A sociedade comunista primitiva e sua dissolução,
Luxemburgo (2015) permite-nos aproximar nossa análise do que compõe as
comunidades tradicionais enquanto resistência. A propriedade coletiva dos
meios de produção e a cooperação integram a base para pensar as

136
comunidades comunistas primitivas. Luxemburgo examina e discorre a partir das
relações de trabalho e meios de produção como questão central para
compreender as diferentes formas sociais de produção, apontando o comunismo
primitivo anterior ao capitalismo, como forma social predominante na história do
homem social.
A relação com a natureza, constituinte dessa organização social, em que
parte dos campos, das florestas e das águas é território indivisível, tem o valor
de uso e não o valor de troca determinante na exploração do trabalho, como
condição central para sua permanência. A relação metabólica com a natureza
engendrada na sociedade comunista primitiva para o avanço do capitalismo
torna-se necessária a dissolução dessas comunidades. Neste processo,
identificam-se semelhanças que ligam as comunidades tradicionais às
comunidades comunistas primitivas, possibilitando estabelecer relações sobre a
permanência e resistência das comunidades pesqueiras atuais.
Os estudos sobre as sociedades comunistas primitivas tratam de
organizações, tribos, clãs que tinham a terra enquanto propriedade comum.
Luxemburgo (2015) vai resgatar esses estudos e concluir que a propriedade
comum não surge com a Idade Média sobre o sistema feudal, mas
anteriormente. Ao investigar clãs e tribos na Europa, comunidades rurais na
Índia, o comunismo agrário no Peru, entre outras descobertas e relatos,
reconhece a forma de organização social predominante como sendo o
comunismo primitivo.
A forma de organização dessas comunidades, conforme a referente
autora, é marcada pelo comunismo agrário, visto que o trabalho se compunha
em torno do cultivo da terra, criação de animais, coleta, pesca e caça. De
comunidades nômades a comunidades sedentárias que têm como característica
a apropriação da natureza enquanto coletiva, não há distinção entre ricos e
pobres sem acumulação de riqueza, ou regras no formato de leis implementadas
por uma institucionalidade, na forma do Estado.
Entre os primeiros estudos sobre as sociedades comunistas primitivas
destaca-se, no século XIX, a obra de Von Maurer que compreende estas como
particularidades restritas à Alemanha, por tratar de propriedades comuns
existentes no território germânico. No entanto, outras investigações e estudos
apontados por Luxemburgo (2015) somam-se à obra de Von Maurer, entre estas,

137
sobre o campesinato russo organizado a partir do comunismo agrário, enquanto
comunidade familiar primitiva no formato de aldeias.
Esses estudos, a princípio concentrados na Europa, onde a expansão do
capitalismo assume sua feição colonial mediante, a apropriação de terras no
formato da propriedade privada, exploração de povos autóctones e da natureza
para matéria-prima ampliam-se diante à constatação da organização social
encontrada nos territórios de interesse da expansão colonialista, nas
comunidades estruturadas a partir da apropriação coletiva da natureza. Desse
modo, no caso da Índia, são encontradas diversas comunidades rurais:

Todos os membros destas comunas que englobavam por vezes


grandes famílias inteiras e por vezes algumas pequenas famílias
descendentes de uma maior, estavam obstinada e fielmente
ligados uns aos outros e os laços de sangue eram tudo para
elas. Em contrapartida, a propriedade individual não tinha
significados para eles. (Ibidem, p.22)

Não havendo propriedade individual a ser tomada ou comprada, não


havendo um dono a negociar, populações inteiras são tomadas e subjugadas
aos interesses e lógica da colonização inglesa, que desencadeia conflitos na
disputa pelo modo de vida e apropriação da natureza. Luxemburgo (2015)
aponta que foram décadas de luta e resistência dos povos hindus, na Índia,
diante de toda violência utilizada para quebrar o formato comunista das suas
comunidades pautadas na propriedade comum e nos laços de parentesco:

Os antigos laços foram quebrados, o tranquilo isolamento do


comunismo foi aniquilado e substituído por querelas, discórdia,
desigualdade e exploração. Daí resultou por um lado, enormes
latifúndios, por outro, milhões de arrendatários sem recursos. A
propriedade privada fez a sua entrada na Índia e com ela o tifo,
a fome, e o escorbuto tornaram-se os hóspedes permanentes
das planícies do Ganges. (Ibidem, p.25)

No século XIX, documentos que dão conta da administração da Espanha


sobre territórios da América comprovam a forma de organização do Império Inca
no Peru, na sua singularidade como parte de um comunismo rural primitivo da
sociedade que [...] “chega-se forçosamente à conclusão que este comunismo de

138
aldeia não era uma “particularidade atávica” de uma raça ou de um continente,
mas a forma geral da sociedade humana” [...] (Ibidem, p.29).

Luxemburgo (2015) afirma que os limites da economia política burguesa,


de um modo geral, estavam voltados para a manutenção da justificativa da
exploração e expansão capitalista, enquanto forma dominante de organização
social ao longo da história da humanidade, e tinha como objetivo tentar
naturalizar a sociedade de classes, a exploração do trabalho e a propriedade
privada. O que não foi possível diante de diversos estudos sobre o comunismo
agrário, sua particularidade circunscrita a uma comunidade ou a um território.

Estudos sobre o comunismo primitivo comprovam a existência da forma


de organização social não restrita a um período curto da história da humanidade
ou a uma determinada sociedade. Luxemburgo (2015) destaca a obra de
Morgan, Sociedade Primitiva, como pioneira na sistematização que permite
estabelecer elementos do que compõe o comunismo primitivo, negando ser a
sociedade capitalista como único modelo possível de civilização.

Na sistematização do que seria essa sociedade primitiva, a pesca, a caça


e a agricultura aparecem como atividades que caracterizam diferentes etapas do
desenvolvimento do comunismo primitivo. O que é importante destacar, neste
sentido, é que essas atividades remetem a uma relação direta com a natureza.
O trabalho e a produção social são articulados como forma de apropriação da
natureza sem mediações próprias do capitalismo.

Outro ponto dessa sistematização se dá na ênfase das relações


familiares, relações de parentesco pautadas não somente na relação
consanguínea direta, mas de acordo com a as relações comunitárias
prevalecentes. O que ressalta o papel da comunidade, tribo, unidade familiar,
reguladas pela forma como se autogovernavam, no sentido de organizar o
trabalho e outras demandas advindas da vida comunitária. Obviamente, toda
forma de ser das sociedades comunistas primitivas representavam um
empecilho à expansão capitalista.

Luxemburgo (2015) levanta esse debate contra estudiosos que afirmam a


inexistência do comunismo predominante em determinado período da história

139
social. Entre estes, Grosse32, que vai se opor à teoria do comunismo, tentando
afirmar que é na verdade a propriedade privada que dá sentido à cultura, sendo
o comunismo apenas uma etapa da vida social de alguns povos (p.49). Para
justificar sua teoria, o mesmo dá ênfase à produção como alimentação, como
sendo esta a determinante na forma de organização social, e não a caça, a
pesca, a criação de gado e a agricultura, que definiriam o comunismo.

O ponto chave desse debate nos permite pensar hoje as comunidades


pesqueiras artesanais em torno da discussão destas sobre a atividade pesqueira
como determinante na sua forma artesanal. Não é a pesca em si, mas a forma
como se organiza a produção pesqueira, e como se dá a apropriação da
natureza. O que nos leva a questionar quais os limites para a apropriação
individual da água, já que a terra no sentido do parcelamento da propriedade
privada, encontra-se numa dimensão mais aprofundada da mercadorização. E
nesse caminho, qual o lugar do trabalho nessas comunidades, quais as formas
de mediações que se põem na produção do ser social e suas relações:

No entanto, se queremos estudar especialmente as formas de


produção na sociedade, então as relações do homem com a
natureza não nos bastam, o que nos interessa em primeiro lugar
é outro aspecto do trabalho humano: são as relações dos
homens entre si no trabalho, isto é, a organização social da
produção e a técnica da produção. (LUXEMBURGO, 2015, p.87)

A questão essencial está para Luxemburgo (2015) nas relações de


trabalho e nos meios de produção. Quem são esses homens e como exercem e
organizam o trabalho, de que forma produzem, onde e o que, de quem são os
meios para produzir. Respondidas essas questões é que se poderá confirmar se
“teremos uma economia comunista, uma economia de pequenos camponeses e
artesãos, uma economia escravagista, uma economia feudal ou, finalmente, uma
economia capitalista baseada no trabalho assalariado” (ibidem, p.90).
A escala internacional é utilizada para demonstrar diversas comunidades
que viviam sobre o comunismo agrário, tendo como pontos em comum a

32
Grosse autor de As formas da família e as formas da economia, de 1896, é um dos adversários da teoria
do comunismo primitivo em seus esforços em negar que o desenvolvimento histórico da humanidade
começa pela propriedade comum. Rosa Luxemburgo se utiliza de suas análises para compor a crítica aos
estudiosos que tentam eternizar as formas do capitalismo.

140
propriedade coletiva dos meios de produção, no caso, a relação direta com a
natureza e a apropriação coletiva. Desde a comunidade germânica da marka ao
antigo Império Inca da América do Sul, Luxemburgo (2015) descreve a
organização dessas comunidades e identifica os elementos que vão constituir a
base do que se considera o comunismo primitivo. Ao elucidar o sistema de
organização da marka germânica, também a aproxima do que foi a organização
de outras comunidades comunistas primitivas:

As necessidades imediatas da vida cotidiana e sua igual


satisfação para todos, eis o ponto de partida e o resultado desta
organização. Todos trabalham em comum para todos e decidem
em conjunto sobre tudo. Mas de onde deriva e em que se
fundamenta esta organização e o poder da coletividade sobre os
indivíduos? Vem da relação comunista com a aterra, isto é, a
propriedade comum do mais importante meio de produção.
(Ibidem, p.107)

É necessário ressaltar que Luxemburgo (2015), para entender as relações


que vão constituir este comunismo, analisa a sociedade comunista primitiva a
partir de como se dão as relações de trabalho, a apropriação do fruto desse
trabalho e o acesso aos meios de produção. Nesse sentido, ao retratar a
organização do Império Inca, reconhece que há relações de dominação
presentes na organização da comunidade, mas não está presente a relação de
exploração, no sentido da apropriação individual do trabalho e do fruto do
trabalho de outra pessoa, estando o costume baseado no exercício do trabalho
enquanto tarefa coletiva.
As relações de dominação existentes nas comunidades comunistas
primitivas não são ignoradas no que vai compor a dissolução das relações que
caracterizam o comunismo primitivo. Luxemburgo (2015) remete ao aumento
das trocas, as relações cujas comunidades passam a dominar outras, como
momentos que vão resultar no rompimento de “laços comunistas tradicionais”
até o momento da composição de uma sociedade pautada na exploração do
trabalho, na propriedade privada e, consequentemente, na desigualdade (p.119).
Essas relações de dominação no contexto de um capitalismo em
expansão vão resultar na desagregação de diversas comunidade agrárias,
submetidas ao pagamento de impostos, servidão, escravidão, roubo e

141
parcelamento de terras. Ainda assim, muitas comunidades permanecem
enquanto clãs e aldeias em um determinado processo de isolamento, mantendo
as relações que as caracterizam como comunidades primitivas, a exemplo de
comunidades hindus na Índia:

A maior parte do produto é destinada ao consumo imediato da


comunidade; ela não se torna de modo algum mercadoria,
porque, a produção é independente da divisão do trabalho
ocasionado pela troca no conjunto da sociedade indiana.
Somente o excedente dos produtos se transforma em
mercadoria e vai em primeiro lugar para as mãos do Estado ao
qual, desde os tempos mais recuados, pertencem uma certa
parte a título de renda em produtos agrícolas. (Ibidem, p.139)

O processo de dissolução de comunidades comunistas primitivas é


conhecido no que tange à expansão capitalista e à forma do Estado-nação no
que representou o colonialismo a partir do extermínio, dominação, expropriação
e subordinação de povos indígenas, aldeias, clãs e a escravidão do povo negro;
consequentemente, nas suas formas de organização enquanto comunidades
agrárias, camponesas, na relação direta e de apropriação coletiva da natureza.
Na relação sociedade/natureza contida no comunismo primitivo, “os campos
eram distribuídos enquanto a floresta, os prados e águas constituíam o território
comum indivisível” (Ibidem, p.145), diante da lógica capitalista, deveras a ser
destruída.
Essa forma de ser e de viver para Luxemburgo (2015) esbarra e se
dissolve justamente com a expansão capitalista no modelo da civilização
europeia, que no primeiro momento representa a lógica formante do capital. No
entanto, fica claro que o comunismo primitivo e o que o constitui não está
relegado a um momento ou a um lugar na história da humanidade, e mesmo com
a imposição da força de elementos de uma outra organização social, a destacar
a propriedade privada, mesmo assim tem elementos da organização comunista
primitiva que não são dissolvidos:

A propriedade privada das parcelas de terra arável não elimina,


no entanto, a organização coletiva da economia, que se mantém
durante muito tempo pelo entrelaçamento das parcelas e a
comunidade das florestas e das pastagens. Com isso, a
igualdade econômica e social não é eliminada na antiga
sociedade. Constitui-se inicialmente uma massa de pequenos
camponeses que têm as mesmas condições de vida e podem

142
viver e trabalhar durante séculos segundos as antigas tradições.
A porta está, no entanto, aberta à desigualdade, pelo caráter
hereditário dos bens e pela possibilidade de alienar os bens dos
camponeses. (Ibidem, p.157).

Em seus estudos, Marx (2013), ao tratar da acumulação primitiva, refere-


se justamente ao momento em que se inicia o modo de produção capitalista,
tendo a acumulação como momento crucial, o que só se torna possível com a
separação do trabalhador dos seus meios de trabalho. Meios esses usurpados,
expropriados, cercados através do estabelecimento da propriedade privada, ou
seja, atividades que se davam diretamente na relação com a natureza como
meio de subsistência e que ao serem tomadas as condições de realizar trabalho,
tem-se a possibilidade então de explorar o trabalho. Para tanto, é necessário
retirar o acesso à terra, às florestas, às águas, ou limitar esse acesso
Em suma, a formação do proletariado se dá na subjugação do
trabalhador, impossibilitando-o de produzir. No que se refere às comunidades
agrárias, o próprio campesinato, que antes dispõe de terras comunais, passa a
ser expulso de suas terras. Essa forma de violência será a base para a formação
da propriedade privada nos moldes capitalistas, apoiada em legislações que vão
beneficiar os proprietários fundiários, que Marx (2013) vai definir como forma
parlamentar do roubo, beneficiando a classe burguesa que nasce junto aos
proprietários fundiários:

Os capitalistas burgueses favoreceram a operação, entre outros


motivos, para transformar o solo em artigo puramente comercial,
ampliar a superfície de exploração agrícola, aumentar a oferta
de proletários absolutamente livres proveniente do campo etc.
(Ibidem, p.796).

Os cercamentos das terras comuns vão resultar na apropriação de meios


de trabalho, a natureza em si, por alguns poucos, na qual anteriormente
subsistiam diversas famílias e comunidades. O monopólio da produção vai levar
ao aumento dos preços, retirando ainda mais a condição de subsistência de uma
classe pobre que passa a existir, marginalizada. Ao relatar a expropriação de
terras na Escócia, Marx (2013) remete a essência do modo de produção que
começa a tomar forma, quando a população é inicialmente retirada de suas
terras e levada a ocupar uma orla marítima. Como forma de subsistência,

143
passam a viver da pesca, que logo é identificada como outra forma de gerar
lucros, de maneira que a orla então passa a ser arrendada para grandes
comerciantes.
Em suma, o que está posto é a apropriação da natureza como meio de
produção, para garantir a acumulação primitiva. Nesse processo, a produção
capitalista encontra o caminho para se realizar e expandir, e os meios de
subsistência que supriam a necessidade de uma massa de trabalhadores, torna-
se, segundo Marx (2013), capital constante diante de um capitalismo industrial
que toma forma. Além disso, os meios de subsistência antes produzidos pelo
próprio trabalhador precisaram ser adquiridos de alguma maneira, o que além
de criar um mercado interno, impossibilita a formação de uma indústria rural, e
vai contribuir no que se torna a divisão campo-cidade, no que concerne à divisão
do trabalho e a centralização de determinadas estruturas de produção.
Todo esse processo faz parte de um sistema colonial, que tem a violência
como modus operandi do processo de expansão capitalista, “a propriedade
privada, como antítese da propriedade social, coletiva, só existe onde os meios
e as condições externas do trabalho pertencem a pessoas privadas” (Ibidem,
p.830). A expropriação dos meios de subsistência, de diversas comunidades
comunistas primitivas, a impossibilidade através do cercamento e do pagamento
de impostos de manter seu modo de vida, na relação de apropriação coletiva da
natureza, impõe a essas comunidades a lógica capitalista:

Esse modo de produção pressupõe o parcelamento do solo e


dos demais meios de produção. Assim como a concentração
destes últimos, ele também exclui a cooperação, a divisão do
trabalho no interior dos mesmos processos de produção, a
dominação e a regulação sociais da natureza, o livre
desenvolvimento das forças produtivas sociais. (Ibidem, p.831).

A atividade pesqueira nesse processo de transição para a economia


capitalista aparece para Diegues (1983) como uma importante fonte de
subsistência, no que nos debruçamos a entender a partir da relação
sociedade/natureza. Nesse sentido, o autor destaca momentos cruciais na
organização da atividade pesqueira no que se refere aos avanços na forma e
possibilidade de captura, ao realizar trabalho. O período medieval, nesse ponto,
destaca-se pela organização da pesca voltada para abastecer as cidades

144
medievais, evidencia-se a pesca no mar que com o avanço na tecnologia das
embarcações, estas podiam afastar-se e garantir a captura de mais pescados.
Esses avanços foram cruciais no momento da consolidação da produção
capitalista, no aumento da produtividade que garante a acumulação através de
maiores lucros, isso tudo em meio à Revolução Industrial, tendo o barco a vapor
como símbolo dessa revolução para a garantia da pesca voltada à produção
capitalista. Nesse contexto, há uma proletarização do pescador que não mais
domina os meios de produção. “A introdução de relações sociais de produção
capitalista na pesca se dá com a separação efetiva do pescador e os meios de
produção e pela introdução da máquina a bordo” (Ibidem, p.71).
Há na atividade pesqueira, com a produção capitalista, uma dissolução
também do modo de vida baseado na relação direta com a natureza enquanto
meios de produção do próprio trabalhador. Para Diegues (1983), isso se dá
inclusive pela destruição da própria natureza enquanto força produtiva,
principalmente em ambientes lagunares e estuarinos, com atividades predatórias
diante da produtividade capitalista.
Diegues (1983) retrata as contradições que permeiam a atividade
pesqueira, nesse sentido, seus estudos referem-se às comunidades pesqueiras
artesanais que permanecem, de forma a caracterizar sua existência, pautada na
pequena produção mercantil e em elementos que as diferencia da produção
capitalista. O modo de cooperação do trabalho familiar e a produção voltada para
subsistência, de maneira que o metabolismo do pescador com a natureza é
mediado por essas relações, que levam a um modo de vida baseado na
coletividade e o produto do trabalho prioritariamente como valor de uso.
A caracterização dos pescadores, camponeses e trabalhadores do mar,
para Diegues (1983), passa pela produção desses trabalhadores, enquanto
independentes, no sentido do não assalariamento, que só é possível com a
apropriação da natureza, o acesso que se dá de forma coletiva a essa natureza
enquanto meio de subsistência e de produção pesqueira. Vínculo esse presente
na terra e na água enquanto conjunto. Nesse sentido, indica um particularismo
na própria relação desses trabalhadores que estão inseridos na lógica capitalista
de diversas maneiras, mas que mantêm elementos de mediação que não os
permite ser compreendidos apenas a partir da lógica de reprodução capitalista.
A apreensão do que seja os pescadores que se opõem à completa inserção na

145
lógica capitalista está assinalada justamente na atividade que exercem, na forma
de ser do trabalho, possível na relação direta com a natureza

3.2- Costumes, cultura e o papel da memória das comunidades pobres


tradicionais

A condição de ser pescador artesanal na relação direta com a natureza


constitui-se enquanto modo de vida que torna possível estabelecer relações que
representam permanência e resistência na sociedade mediada pela mercadoria,
voltada à reprodução do capital. A apropriação da natureza pelo trabalho se dá
a partir de relações baseadas na coletividade, comunidades pesqueiras que têm
na terra, no mangue, no rio e no mar a extensão de suas vidas no sentido que o
trabalho é também identidade.
A atividade pesqueira artesanal, enquanto modo de produzir não
direcionado a uma produtividade capitalista, tem a comunidade como mediação
necessária na relação familiar e de vizinhança, e ao apropriar-se da natureza de
forma artesanal, o faz de modo que o exercer da atividade é um aprendizado e
a constituição de saberes construídos na vivência do ciclo e do tempo da
natureza. Conhecimento que é passado pela família e pela comunidade, e que
perdura pela continuidade da prática da atividade e pela oralidade, narrativa e
memória coletiva das comunidades pesqueiras. “Há, portanto, uma memória
coletiva produzida no interior de uma classe, mas como poder de difusão, que
se alimenta de imagens, sentimento, ideias e valores que dão identidade àquela
classe” (BOSI, 2003, p.18).
A memória como intermediação informal da cultura é tratada por Bosi
(2003), que ressalta a história contida na memória de populações excluídas da
história formal, institucional, de forma que as contradições também estão postas
na memória oral, que traz consigo preconceitos ou mesmo legitima relações de
poder, mas que significa a memória do trabalho, familiar, política, e que nos
permite adentrar na história não apenas a partir de documentos oficiais que não
dão conta do movimento e da totalidade das relações.
A memória é atingida pelo processo de alienação que acarreta danos na
própria formação de identidades e são submetidas à sociedade industrial, ao

146
tempo e percursos da cidade, do urbano, e funcional a determinado modo de
organização social e sua preservação (Ibidem, p.24). Ainda assim, a memória
tem papel determinante na preservação de costumes, de maneira que a memória
do trabalho a qual nos debruçamos, enquanto atividade pesqueira, dá
continuidade a um modo de vida ligado a um conhecimento da natureza possível
através do vivido e da memória:

A memória teria uma função prática de limitar a indeterminação


(do pensamento e da ação) e de levar o sujeito a reproduzir
formas de comportamento que já deram certo. Mais uma vez: a
percepção concreta precisa valer-se do passado que de algum
modo se compõe totalidade da nossa experiência adquirida
(Ibidem, p.37)

O modo de vida da atividade pesqueira artesanal só pode estar ligado à


forma como as comunidades que vivem da pesca se organizam e produzem suas
vidas, no uso da natureza, de maneira que ao longo do processo histórico, o
lugar social que as representa é a condição de subalternidade. A materialidade
das relações nas comunidades que vivem da pesca constitui de forma singular,
costumes ligados à pesca como mediação da relação com a natureza, mas
também a esse lugar social destinado aos que não estão totalmente integrados
a determinado modo de produzir.
Nesse caminho é possível estabelecer alguns debates que perpassam,
pelas mediações que fazem parte do mundo da pesca em seu modo artesanal,
que ao estabelecer singularidades, não deixa de estar inserida numa totalidade
social que implica em múltiplas determinações. A materialização do
sociometabolismo do capital é a espacialização do mesmo, de modo que o
território da pesca-artesanal é o território do capital. O sentido da permanência
de comunidades tradicionais passa pela forma de organizar o trabalho, que é
caminho para alienação e também para liberdade em seu caráter ontológico.
Ao analisar a cultura popular tradicional, Thompson (1991) trata da
diferença entre o costume das classes dominantes e dominadas, de forma que
a cultura tradicional dos “pobres” é relegada de maneira pejorativa. Para esse
autor, a não importância dada à cultura dos pobres impede que se apreenda a
intensidade do costume no singular, no que é particular diante de determinada
organização social. Dada a condição de pobreza, e do não acesso à educação
147
formal, o autor evidencia o papel da transmissão oral desses costumes e sua
ligação a rotina de trabalho.
Dessa forma, pensar cultura é pensar relação sociedade/natureza, no que
Eagleton (2000) destaca como o conceito de cultura está incialmente ligado à
materialidade da vida e à transformação da natureza, através do trabalho, da
agricultura. No entanto, o conceito é tomado a partir de um idealismo que resulta
no reducionismo do que seja cultura, no sentido de desconsiderar a realidade
enquanto totalidade. Para o autor, é preciso ir além do naturalismo e do idealismo
ao tratar de cultura, de modo que o agir humano não se dá a partir de um
determinismo natural, e tão pouco de uma autonomia do espírito:

Se somos seres culturais, também somos parte da natureza que


trabalhamos. Com efeito, faz parte do que caracteriza a palavra
“natureza” o lembrar-nos da continuidade entre nós mesmos e
nosso ambiente, assim como a palavra “cultura” serve para
realçar a diferença (Ibidem, p.15)

A cultura, dessa forma, está intrinsicamente ligada à transformação da


natureza, “mas cultura também é uma questão de seguir regras, e isso também
envolve uma interação entre o regulado e o não regulado” (Ibidem, p.13). E é
justamente no que tange essas regras que se remete a uma cultura dominante,
um modo dominante de organizar a vida, no entanto, “regras, como culturas não
são nem puramente aleatórias nem rigidamente determinadas - o que quer dizer
que ambas envolvem a idéia de liberdade” (Ibidem, p.13).
A existência de uma cultura dominante diante de um metabolismo com a
natureza que leve a uma sociedade hierarquizada e desigual, desse modo não
significa a abolição de outras formas de relacionar-se com essa natureza. O que
permite pensar nessas outras formas existentes do processo de construção de
regras, enquanto cultura e costumes a partir do metabolismo,
sociedade/natureza e no que lhes dá sentido. Deve-se ressaltar que a cultura
dominante, nesse caso, enquanto sociedade capitalista, de classes e com base
na propriedade privada, menospreza o que não esteja dentro de sua lógica de
reprodução.
A força de costumes que não correspondem em sua totalidade à lógica
capitalista, e sua preservação e transmissão ao longo dos tempos, para
Thompson (1991), é fruto justamente da não inserção destes na dita civilidade
148
burguesa, o que se impõe na forma de resistência, enquanto direito
consuetudinário, a fazer parte de todo debate e delimitação das propriedades no
século XVIII. O conflito pelo uso da natureza, de diferentes formas de apropriar-
se, a disputa pelo acesso aos recursos naturais e os cercamentos que
constituem a propriedade na formação das cidades urbanas na Inglaterra vão
representar um modo de vida necessário ao desenvolvimento do capitalismo, e
o antagonismo de classe representado na gentry na plebe do século XVIII.
No entanto, a cultura da plebe, no conflito com a cultura dominante, não
necessariamente se compõe a partir da negação. Conforme Thompson (1991),
há contradições no movimento do instituir-se uma cultura dominante e uma
cultura dominada, que as fazem dependentes uma da outra. No sentido de que
o movimento dos indivíduos que compõe ambas as classes, compõe relações
sociais que perpassam um dado contexto histórico como necessárias a um
determinado modo de produção:

Temos assim um paradoxo característico daquele século: uma


cultura tradicional que é, ao mesmo tempo, rebelde. A cultura
conservadora da plebe quase sempre resiste, em nome do
costume, às racionalizações e inovações da economia (tais
como os cercamentos, a disciplina de trabalho, os “livres”
mercados não regulamentados de cereais) que os governantes,
os comerciantes ou os empregadores querem impor. A inovação
é mais evidente na camada superior da sociedade, mas com ela
não é um processo tecnológico/social neutro e sem normas
(“modernização”, “racionalização”), mas sim a inovação do
processo capitalista, é quase sempre experimentado pela plebe
como uma exploração, a expropriação dos direitos de uso
costumeiros, ou a destruição violenta de padrões valorizados de
trabalho e lazer. (Ibidem, p. 19)

Esse debate no contexto histórico da análise apresentada nessa Tese,


apresentam-se questões que continuam constituintes nas comunidades
tradicionais subordinadas na sociedade de classes. Ao mesmo tempo que a
rebeldia compõe o modo de ser dessas comunidades por representarem uma
contraposição à lógica dominante, há nelas elementos da totalidade social que
não podem ser ignorados.
A rebeldia não necessariamente significa um romper de paradigmas no
sentido de transformação social. Nesse aspecto, o costume apontado como
cerne para entender a relação gentry/plebe, se dá na identidade constituída, na

149
forma de relacionar-se com a natureza e de organizar o trabalho da classe tida
como subalterna, que passa a relacionar-se de modo a produzir uma cultura
diversa e ao mesmo tempo singular em relação à cultura que se produz como
dominante e universal.
O costume trata-se de um modo de vida que está arraigado a uma
realidade que é material e social, e enquanto estudo de uma cultura tradicional
popular, remete às diferenças postas no que é o mundo moderno e no que é
tradicional. Tanto o cercamento quanto o mercado representam nos estudos de
Thompson (1991) aspectos centrais para compreender o capitalismo que se
estrutura no século XVIII, ao mesmo tempo que permanece o tradicional como
contraponto e pressionando determinadas ações do Estado e da classe
dominante:

Como o capitalismo (ou seja, o “mercado”) recriou a natureza


humana e as necessidades humanas, a economia política e seu
antagonista revolucionário passaram a supor que esse homem
econômico fosse eterno. Vivemos o fim de um século em que
essa ideia precisa ser posta em dúvida. Nunca retornaremos à
natureza humana pré-capitalista; mas lembrar como eram seus
códigos, expectativas, necessidades e alternativas pode renovar
nossa percepção da gama de possibilidades implícita no ser
humano. (Ibidem, p.23)

As necessidades humanas aludidas pelo autor passam a ser cada vez


mais mediadas pelo dinheiro, pelo mercado, “de modo, em que as liberdades se
tornam propriedades e os direitos de uso são reificados” (Ibidem, p.32). O
conjunto das relações do século XVIII vão constituir e solidificar estruturas
capitalistas necessárias à reprodução do capital. Nesse contexto, Thompson
(1991), apesar de reconhecer os limites do termo, retrata o paternalismo
enquanto uma possível leitura das relações de poder existentes entre os
patrícios e os plebeus, que para além de representar a relação dominantes e
dominados, constitui-se como uma relação de dependência na qual mesmo a
classe pobre dominada, reproduz ações de não rompimento, mas de uma
continuidade das relações de dominação.
O que é importante ressaltar no que se compreende como relação
paternalista é como se dá essa relação entre as diferentes classes e o que dela
permanece. As comunidades pobres tradicionais, que ao mesmo tempo limitam

150
a expansão dos cercamentos ou impunham a força do costume na forma de lei,
enquanto direitos consuetudinários, estão submetidas à passividade da condição
de dominados, de forma que a transição do trabalho servil para o trabalho
assalariado mantém a condição de subalternidade da classe pobre, mesmo que
sob a denominação de trabalhador livre.
Para Thompson (1991), a hegemonia cultural tinha um papel primordial
para o controle da classe pobre, de modo que determinados rituais tinham como
objetivo induzir a construção de um imaginário social de papeis determinados e
de comportamentos, naturalizados como constituinte da sociedade em questão.
Poder e autoridade como princípios a serem respeitados diante de uma classe
trabalhadora, que por vezes se rebelava ou era tida como indisciplinada, mesmo
que não enquanto grande classe organizada de trabalhadores, mas que por
vezes questionavam regras sociais ou poderes e decisões locais.
A cultura como hegemonia se põe, para Eagleton (2000), como sujeito
universal, assim como o papel que o Estado assume enquanto instituição
mediadora das relações sociais. Essa universalidade representa o não conflito,
a humanidade como “deve ser”, o modelar do que seja humano descolado do
real no sentido de escamotear o conflito existente entre o que se propõe
universal e a realidade que não se põe a partir da ideia de civilização, costumes
e moral, dentro do espírito iluminista o qual trata da cultura como civilização, a
partir do desenvolvimento como progresso.
Mesmo quando cultura passa a representar formas de vida em suas
especificidades, na contraposição a um modo de vida universal, persiste a
manutenção de uma cultura superior diante de uma sociedade que se estrutura
em classes:

A origem da ideia de cultura como um modo de vida


característico, então está estreitamente ligada a um pendor
romântico anticolonialista por sociedades exóticas subjugadas.
O exotismo ressurgirá no século XX nos aspectos primitivistas
do modernismo, um primitivismo que segue de mãos dadas com
o crescimento da moderna antropologia cultural. Ele aflorará
bem mais tarde, dessa vez numa roupagem pós-moderna, numa
romantização da cultura popular, que agora assume o papel
expressivo, espontâneo e quase utópico que tinham
desempenhado anteriormente as culturas primitivas (Ibidem,
p.24)

151
A cultura popular como primitiva, ou como uma nova forma de barbarismo,
passa ao status de cultura particular (Ibidem. p.81). Enquanto particular, há uma
cultura universal que se naturaliza como o modo de ser do que é humano, na
qual o capital se põe como relação universal. Nesse sentido, reconhecer modos
de vida diferenciados não significa que a cultura assuma uma roupagem crítica
no sentido da contraposição à cultura como civilização, sendo esta representada
pelo modo de vida de uma classe dominante, burguesa.
Modos de vida a partir do discurso do que se propõe universal assume,
elucida Eagleton (2000), o oposto de civilidade, da vida como selvagem. Admitir
a diversidade de modos de organizar a vida não faz com que represente uma
contraposição de fato à ideia de civilidade, se o primitivo representa apenas um
estágio de desenvolvimento ou o diferente dado como isolado, o descrever da
pluralidade. “É preciso lembrar, também, que nenhuma cultura humana é mais
heterogênea do que o capitalismo” (Ibidem, p.29).
A cultura de uma classe dominante e de uma classe dominada
representam modos de vida diferenciados, não necessariamente excludentes.
Para Thompson (1991), uma cultura plebeia não se manifesta revolucionária
apenas por ser dominada diante da hegemonia cultural de outra classe, muitas
vezes incorporando valores culturais da classe dominante. No entanto, estando
em polos diferentes, o contexto de dominação revela através da organização do
trabalho e da vida, as forças sociais e a dinâmica da qual fazem parte enquanto
estrutura de sociedade:

E seguindo cada uma dessas pistas até o ponto em que se


cruzam, torna-se possível reconstruir uma cultura popular
costumeira alimentada por experiências bem distintas daquelas
da cultura da elite, transmitida por tradições orais, reproduzida
pelo exemplo (talvez, com o transcorrer do século, cada vez
mais por meios letrados), expressa pelo simbolismo e pelos
rituais, e situada a uma distância muito grande da cultura dos
governantes da Inglaterra. (Ibidem, p.69)

Trata-se de pistas que demonstram o conflito de dois modos de vida


através dos costumes. A resistência atrelada à plebe, a multidão 33 pobre, quando
há resistência através do contraponto enquanto comportamentos sociais

33
O autor conceitua multidão a partir da experiência história de revoltas sociais da plebe no século XVII.

152
distintos, resiste em ser dominada à medida que mantém uma cultura popular
tradicional não condizente com a necessidade de uma classe trabalhadora
integrada à mudança qualitativa do trabalho imposta por uma revolução industrial
e pelo ritmo das cidades urbanas em formação.
O sentido no debate de hegemonia cultural perpassa pelo controle que
não se constitui apenas enquanto físico, ou a força da multidão constituiria uma
força revolucionária. O que se propõe enquanto reflexão é pensar a estrutura
social que começa a se montar no século XVIII, Estado, leis e ideologias que vão
fortalecer um modo de controle necessário à sociedade de classes. Thompson
(1991) chama atenção para o cuidado com a leitura do que representa a
hegemonia cultural, que enquanto conceito faz-se necessário ao entendimento
das relações de dominação, mas que ao mesmo tempo não deve engessar a
classe dominada na sua capacidade de reação ou de construção de modos
próprios de organização da vida e trabalho (p.78).
É nas práxis da vida que os diferentes modos de vida são produzidos,
tendo como sustentáculo a escala local no sentido da particularidade e o
costume que se constitui para Thompson (1991), no uso comum e no tempo
imemorial. O que traz a importância da tradição oral enquanto permanência
desses costumes e também na regulação da propriedade, que se instituía no
século XVIII enquanto herança na garantia da propriedade privada e no direito
de uso coletivo determinado justamente pela oralidade dos que ali estavam e
que se constituiu resistência. No centro, o vínculo à terra como materialidade dos
costumes se dá a partir do trabalho, da relação sociedade/natureza como
condição si ne qua non dos costumes.
A oralidade, através da memória, é justamente o tempo vivido. Para BOSI
(2003), construção social do grupo, da comunidade familiar ou grupal, à medida
que há uma coletividade necessária à memória que se dá através do processo
de socialização, passa pelo trabalho, pela vivencia de classe. A partir da
memória, é possível reconstituir, retomar o que é marginal diante de uma
sociedade mercantil capitalista que engole singularidades, pois se faz necessário
ter um padrão de organização da vida e do trabalho, do próprio tempo, para
justificar uma socialização voltada a uma demanda que é do capital.
A memória dos mais velhos apresenta-se nesse momento como essencial
ao direito de uso da terra, dos rios, das florestas, como barreira aos cercamentos

153
de uma classe com poder de instituir propriedade, enquanto uso individual. O
uso comum de uma coletividade é que se impunha como obstáculo ao processo
em expansão dos cercamentos, “dada a pressão da vizinhança”, do “costume
agrário”. “No século XVIII, as florestas, as áreas de caça, os grandes parques e
algumas áreas de pesca eram arenas notáveis de reinvindicações (e
apropriações) conflitantes de direito comum” (THOMPSON 1991, p.90).
Os cercamentos enquanto parte do conflito somava-se à formação das
cidades e todos os problemas oriundos da concentração de pessoas e da
demanda por recursos no contexto do século XVII. Surge então argumentos no
sentido da superexploração dos recursos devido ao uso comum, o que justificaria
o sentido da propriedade e da restrição a esses recursos, como centro de um
debate legal que tomava força. No entanto, para Thompson (1991), estava sendo
ignorado de que forma realmente se dava o uso comum, “ao longo do tempo e
do espaço, os usuários das terras comunais desenvolveram uma rica variedade
de instituições e sanções comunitárias que impôs restrições e limites ao uso”
(p.93).
O costume apresenta-se como lugar de conflito na medida que há uma
práxis fundada no uso da terra. Um costume agrário que vai de encontro ao
interesse dominante referente à instituição da propriedade e do uso dos
recursos, com o objetivo de alimentar um mercado em expansão, parte do
capitalismo que se erguia como modo de produção a ser universal. O costume
na força da tradição, do uso, da prática, passa a contrapor leis, a forçar o direito
enquanto instituição de poder a negociação com o direito de uso, enquanto
materialidade da vida dos pobres que representava uma força social de
contraponto.
O direito de uso deste conflito está posto no direito de propriedade e sua
consolidação enquanto mercadoria, “[...] da noção de propriedade rural, bem
como uma reificação dos usos em propriedades que podiam ser alugadas,
vendidas ou legadas” (Ibidem, p.112). A propriedade capitalista que se encontra
como cerne das transformações, no sentido da transição de propriedades
feudais, de práticas agrárias comunais para um modo de ser capitalista, “a
reificação – e a venda – de usos como propriedades sempre chegava ao clímax
no momento do cercamento” (Ibidem, p.113).

154
A propriedade privada e, consequentemente, o não acesso de
comunidades pobres e tradicionais à terra e à água como forma de reprodução
diretamente da natureza, imediatamente libera mão de obra, trabalhadores aos
quais só reste a força de trabalho. Ao mesmo tempo que a manutenção dessas
comunidades desobriga maiores custos desses trabalhadores, a nível de
assistência, outros trabalhadores consomem o que é produzido pelos pobres do
campo a custos mais baixos, o que permite a continuidade de salários
rebaixados, a manutenção de uma classe pobre.
Bosi (2003), ao apontar sobre a cultura das classes pobres, compreende
a mesma ligada à sobrevivência, e o papel da oralidade como externalidade da
memória, que retrata “[...] participação no mundo através do suor e da fadiga: o
sabor dos alimentos, o convívio da família e vizinhança, o trabalho em grupo, as
horas de descanso” (p.154). De maneira que a cultura da classe pobre se dá na
oposição à cultura dominante socialmente reconhecida como valor universal, e
nesse caminho, a cultura almejada, o que leva a autora ao questionamento sobre
ser a cultura um objeto de consumo ou o desenrolar da vida social:

A concepção de cultura como necessidade satisfeita pelo


trabalho da instrução leva a atitudes que reificam, ou melhor
condenam à morte os objetos e as significações da cultura do
povo porque impedem ao sujeito a expressão de sua própria
classe. (Ibidem, p.156).

Há na forma de ser das classes consideradas pobres uma cultura e


costume próprios da forma como se experiencia a vida. No caso das
comunidades que vivem diretamente da natureza, a expressão dessa relação
está limitada pelo modo de vida organizado na lógica que se expande e se
apropria da natureza enquanto mercadoria. Essa singularidade aponta a
constituição de uma resistência no trabalho, ao mesmo tempo que a alienação
se faz presente. E é justamente o valor de um outro modo de vida, em que o
consumo se estabelece como forma de ser ter acesso a tudo que representa
desenvolvimento, que faz com que essa singularidade esteja o tempo todo
ameaçada pela inserção de outras formas de compreender e organizar a vida.
Resistir na condição de pobreza perpassa pela constante tentativa de sair
da pobreza, que acaba por se dar na inserção de uma lógica contrária ao que se
constitui singular em determinados modos de vida. Toda essa rede de
155
manutenção da pobreza e as formas de produzir que se devem são possíveis a
partir de uma organização do trabalho comunitária, que se dá na vizinhança sem
a mediação do dinheiro. Para Thompson (1991), diante desse contexto, há uma
complexidade de relações que envolvem o direito comum, na disputa entre as
classes dominantes e dos pobres, mas também entre os pequenos produtores e
trabalhadores que não têm acesso à terra como meio de produção (p.124).
O que se tem no contexto da solidificação da propriedade privada
capitalista como mediação necessária à expansão do modo de produção
capitalista é a destruição dos direitos comuns diretamente ligados à forma de
organização do trabalho, que vai constituir a camada pobre da sociedade. Tudo
isso em prol de direitos individuais, da propriedade individual; o que seria a
propriedade comunal aparece como um problema dentro de uma explicativa a
partir das categorias capitalistas (THOMPSON, 1991, p.131).
A propriedade privada aparece como condição de proteção e produção de
riqueza social, então a lei não abarca a propriedade comunal, “a caça, a pesca,
e até mesmo a plantação de milho estavam certamente muito longe de “sujeitar”
a terra” (Ibidem, p.135). As comunidades que viviam e vivem das atividades
ligadas ao direito comum dos recursos, no sentido da propriedade comunal, são
lidas como anteriores ao desenvolvimento capitalista, de forma que não
representam desenvolvimento. Leitura que permanece na maneira como se
encara as necessidades dessas comunidades, que para progredir necessitam
estar inseridas na lógica capitalista.
A condição dos direitos comunais no uso da terra não se apresentava
como uma revolução. A prática agrária enquanto condição de subsistência não
perpassava por uma transformação do lugar de pobreza destinado a essas
comunidades, “[...], mas os indivíduos não estavam sujeitos a uma disciplina
alienada de trabalho desde a juventude até a morte” (Ibidem, p.144), havia um
sentido de liberdade presente no poder de determinar, de certo modo, suas
vidas:

Além disso, mesmo nos lugares onde as formas comunais da


aldeia não cercada eram apenas uma casca vazia, a própria
forma ainda valia alguma coisa. A forma sancionava o costume,
esse habitus, ou campo de ação e possibilidade, em que os
interesses sabiam coexistir e brigar. E ela reproduzia uma
tradição oral, uma consciência costumeira, nas quais os direitos

156
eram reivindicados como “nossos”, e não como meus ou seus.
(THOMPSOM, 1991, p.145)

O cercamento enquanto configuração da propriedade privada assume o


papel de enfraquecimento das relações pautadas na cooperação, ao restringir o
uso comum dos recursos e ao impelir a propriedade como mediação necessária.
Para Thompson (1991), o cercamento aparece como instrutivo no sentido de
trazer à tona a diferença entre os grandes e pequenos proprietários, e as
relações de poder constituintes dessa sociedade. Conforme o autor, as práticas
costumeiras das aldeias e as terras comunais que foram reduzidas a costumes
de almanaques e resíduos coligidos por folcloristas, assim seu objetivo, é trazer
à tona os costumes de comunidades que se sustentavam com os recursos e
usos existentes (p.147). Recorre assim aos escritos de John Clare34, que retratou
em seus poemas episódios de apropriação privada dos recursos comuns
contrários aos costumes da comunidade:

A apropriação privada do mundo natural que o cercamento


simbolizava, era (para Clare) uma ofensa à natureza e à
comunidade humana, e ele identificava como inimiga de ambas
uma lógica que ainda existe entre nós na agricultura
industrializada e na privatização da água (Ibidem, p.148)

Ainda sobre os escritos de Clare, que expunha episódios que retratam os


conflitos existentes nas disputas por propriedade, a partir do sentimento
camponês e sua vivencia do que seja a relação sociedade/natureza, sentencia:

Vistas de sua perspectiva, as formas comunais expressavam


uma noção alternativa de posse, por meio de direitos e usos
triviais e particulares que eram transmitidos pelo costume como
propriedades dos pobres. O direito comum, em que termos
vagos era vizinho de residência, era direito local. Por isso, era
igualmente um poder para excluir estranhos. Ao tirar as terras
comunais dos pobres, os cercamentos os transformaram em
estranhos em sua própria terra. (Ibidem, p. 149)

34
Thompson utiliza trechos dos textos do jovem poeta John Clare, que mediante consciência costumeira
de sua comunidade, expunha em seus poemas a indignação da plebe sobre cercamentos aos bens
comuns.

157
Diante das circunstâncias dos cercamentos como restrição às condições
de subsistência, o mercado fortalece-se através do comércio de alimentos, de
transações e manipulações voltadas à manutenção dos lucros da classe
proprietária de terras e de poder político. Nessa perspectiva, apreende-se a
formação de instituições mediadoras da sociedade capitalista, o mercado e o
Estado, a se expressar no capitalismo inglês no século XVIII. Os estudos de
Adam Smith subsidiam o debate da regulação do mercado como necessário ao
desenvolvimento social, substanciando o movimento que leva à naturalização da
exploração como modelo de sociedade:

O que a economia política proibia era qualquer “interferência


violenta no curso do mercado”, inclusive a instauração de
processos contra os exploradores ou açambarcadores, o
estabelecimento de preços máximos e a intervenção do governo
no comércio de grãos ou arroz. As práticas assistenciais deviam
assumir a forma de distribuir uma mesada insignificante para
compras (qualquer que fosse a altura a que os preços tivessem
chegado pela “ordem da natureza”) a todos aqueles cuja miséria
era comprovada no exame para trabalhar em obras de
assistência pública. (Ibidem, p.219).

O Estado, ao assumir as práticas assistenciais, diante da fome da


população, na garantia do mínimo, explicita um conflito latente, entre os
interesses que guiam as relações de mercado, na garantia da manutenção do
sistema capitalista de poder. Tendo como representantes grandes produtores e
proprietários de terra que, ao garantir seus lucros, vão de encontro às
necessidades de subsistência de grande parte da população. O conflito que se
dá no mercado pelo acesso ao alimento passa antes pelo não acesso às formas
de produzir, impedidas pelo cercamento e pela força da lei que se constitui na
proteção de classes dominantes.
Ao tratar das crises de fome, e da reação dos pobres, enquanto multidão,
Thompson (1991) é categórico ao afirmar que mesmo parte de um sistema
capitalista de poder que se fortalece, a assistência institucional aos pobres, não
poderia ser descartada diante da necessidade de subsistência da população, ao
mesmo tempo em que as ações coletivas dos trabalhadores representavam
soluções a essas crises. A reação ou modo de vida dos pobres posta como
contraponto é, ao mesmo tempo, parte do sistema de dominação capitalista.

158
A transição para uma sociedade industrial acarretou uma mudança
qualitativa na forma de ser do trabalho, a multidão composta por pobres,
camponeses, pescadores, caçadores, mineradores, ao produzir costumes com
base no trabalho que se dá na relação direta com a natureza, têm como o tempo
de suas vidas o próprio tempo da natureza. Mas, para constituir classe
trabalhadora assalariada na cidade, torna-se preciso disciplinar esse trabalho,
tendo no relógio o simbolismo de controle, do tempo e do trabalho. A força do
relógio no século XVII se expande ao lado de costumes que não passam pela
contagem do tempo:

Sem dúvida, esse descaso pelo tempo do relógio só é possível


numa comunidade de pequenos agricultores e pescadores, cuja
estrutura de mercado e administração é mínima, e na qual as
tarefas diárias (que podem variar da pesca ao plantio,
construção de casas, remendo das redes, feitura dos telhados,
de um berço ou de um caixão) parecem se desenrolar, pela
lógica da necessidade, diante dos olhos do pequeno lavrador.
(Ibidem, p.271)

A regulação do tempo do trabalho através do relógio se dá necessária a


uma sociedade que caminha para relações de trabalho industriais. A força da
manufatura exige o controle e a divisão do trabalho, de forma diferenciada das
comunidades agricultoras e pescadoras, que tem o tempo da natureza como
tempo da regulação do trabalho. O tempo da mercadoria determina novos
hábitos de trabalho. O sentido do desenvolvimento econômico posto na
sociedade industrial capitalista implica em mudanças apontadas no trabalho e
na própria cultura, o que para Thompson (1991) não revela todas as possíveis
manifestações da vida, enquanto consciência social, que está para além do
tempo do relógio e do controle da vida pela mercadoria.
A sociabilidade posta na rede de parentesco e vizinhança, os resquícios
de um modo de vida contrário à individualidade como compreensão do que seja
relacionar-se, contrasta com a quebra do ritmo natural pelo ritmo da máquina, do
relógio. Relações consideradas tradicionais substituídas no transformar do ser
que trabalha em mão de obra, esvazia o trabalho de significado humano. Para
Bosi (2003), esse contraste se dá enquanto unidade sem excluir movimentos de
diferenciação, e interessam no sentido que:

159
Combinam sob forma novas os fragmentos de matéria de um
meio que é anômico, os detritos e migalhas da sociedade
industrial, imprimindo a esses conjuntos o encanto que só
poderia emanar da classe voltada como nenhuma outra para os
valores de uso. (p.158)

Esse encanto presente nas comunidades que preservam o valor de uso


como mediação em suas relações, é abordado por Bosi, na crítica a veia
romântica que encara esse sujeitos como não corrompidos, como base de uma
revolução (p.188). Dessa forma, não se trata de uma substituição do sistema
industrial pelo que é artesanal, manual, mas do significado de resistência
imprimidos em determinadas formas de organização do trabalho.
O significado de resistência, na interlocução do comunismo primitivo com
as comunidades pobres tradicionais, na relação direta com a natureza,
apresenta elementos divergentes do que compõe o sociometabolismo do capital.
É significativa a resistência de comunidades tradicionais pesqueiras à medida
que, se mantém o trabalho ontológico como mediação que sustenta o significado
da pesca-artesanal atrelada a apropriação coletiva da natureza, a cooperação,
e ao valor de uso.

3.3 – O pescador artesanal em Sergipe: permanência e resistência

Havia um velho, um jovem e o mar. O velho narrava suas memórias do


mar ao jovem, sobre os peixes, sobre a vida. Nas suas memórias, ele falava dos
detalhes dos instrumentos de trabalho, sobre o barco, sobre as iscas e
armadilhas. Nas suas memórias, ele também falava sobre alguém que ele
admirava, um grande atleta que pudera o pai ter sido pescador, e sendo assim
talvez tivesse sido pobre como o velho e o jovem.
Para pescar, o velho dizia: é preciso conhecer o mar, e por onde seguem
os peixes. Coisa que o velho, o jovem e todos os pescadores sabem, onde
encontrar os cardumes, deixar o cheiro da terra e ir ao encontro do cheiro do
oceano. Para alguns, o mar é antagonista, dizia o velho, esses são os mais

160
jovens, os de barco a motor, que vão atrás do que em algum momento significava
mais dinheiro. Para o velho o mar fazia o que não podia deixar de fazer.
O tempo no mar para o velho se conta ao olhar o sol e a lua, ao saber do
vento, para então continuar a pescaria. Suas companhias são outros peixes e as
aves, e ao navegar todo conhecimento do tempo da natureza se faz presente,
do pôr do sol a lua que brilha. A beleza do peixe capturado é o que faz o velho
admirar-se e também perguntar: o que fizera ele com o peixe? Se valia tamanha
luta? E o mesmo responde “ “Mas você não matou o peixe apenas para
conserva-se vivo e o vender para alimento”, pensou ele. “Matou-o por orgulho e
porque é um pescador. Amava o peixe quando estava vivo, afinal ainda o ama
morto. Se o ama, com certeza que não foi pecado matá-lo. Ou será ainda pior?”
” (Hemingway, 2017, p.104)35.
Para voltar da pescaria, fez do vento seu amigo diante do mar tão largo
com amigos e inimigos. E ao estar em terra, ao estar em casa, o jovem lhe vem
cuidar, e outros pescadores, a cuidar do seu barco e de sua pescaria. O jovem
então lhe cobra a parceria para pescaria, tinha muito o que aprender com o
velho.
Hemingway (2017) ao escrever O Velho e o Mar, nos leva para o mundo
da pesca, a cada memória e a cada detalhe da vida do seu personagem - o velho
pescador de Havana, aproximando-nos da realidade das atuais comunidades
pesqueiras e de seu modo de vida; do conhecimento que estabelece a relação
do pescador com a natureza, que é aprendido com os mais velhos, com a
comunidade. A natureza que se apresenta como condição de vida e não somente
a partir do valor de troca. Do tempo na e da natureza não medido pelo relógio e
sim através, do mar do sol e da lua, a determinar o caminho da pescaria.
De Hemingway para Caymmi, temos a descrição do pescador na sua
relação com a terra e com o mar. O pescador do autor e do compositor tem em
comum o mar, a natureza como extensão de suas vidas, condição de ser
pescador. O sentido em ser pescador é dado pela atividade pesqueira, mas
apreendida na literatura do Velho e o Mar e na canção de O bem do mar, é antes
a pesca, o trabalho, que dá sentido ao homem pescador, na relação direta com

35
Original de 1952

161
a natureza, condição de vida material, mas também do ser em suas
potencialidades:
O bem do mar

O pescador tem dois amor


Um bem na terra, um bem no mar
O bem da terra é aquela que fica
Na beira da praia quando a gente sai
O bem da terra é aquela que chora
Mas faz que não chora quando a gente sai
O bem do mar é o mar, é o mar
Que carrega com a gente
Pra gente pescar

A peculiaridade da pesca-artesanal faz-se possibilidade de pensar o


trabalho e a vida, para além de um sistema desigual, que se expande destruindo
a natureza e o próprio homem em sua condição humana. As comunidades
pesqueiras em Sergipe têm suas especificidades dadas na forma do organizar
trabalho, que perpassa também pela organização em colônias, associações e
pela construção enquanto movimento social. A atividade pesqueira artesanal em
Sergipe permanece e resiste de diferentes maneiras. A forma de relacionar-se
com a natureza e o tempo da pesca-artesanal permanecem enquanto dimensão
do produzir vida e espaço, em contraponto à lógica produtivista mercadorizada
da vida sob o domínio sociometabólico do capital, que funciona a partir da
necessidade do controle da natureza para a realização de sua reprodução, ou
seja, a produção cada vez maior de mercadorias.
Nessas comunidades pesqueiras, o trabalho se constitui como mediação
da socialização da natureza, o que vai de encontro ao modo de vida voltado à
produtividade. Ao socializarem, estes se apropriam da natureza, no produzir
espaço:

Mas há ainda um outro sentido no espaciar, no gerar espaços


humanos tomados da natureza e socializados: tomados partes
do mundo natural e incorporados a dimensões de tempos e de
espaços da cultura. Uma visão bastante pragmática enfatiza na
atividade criadora humana um feixe de ações de conquista.
Ações regidas pelo intervalor entre o labor e o trabalho e
dirigidas a criar condições para ampliar o poder humano de
domínio do mundo natural (BRANDÃO, 2009, p.20)

162
Ao tratar do habitar enquanto experiência histórica, o autor reflete a visão
instrumental do que seja o domínio da natureza enquanto necessidade material
à reprodução humana. Mas, para além dessa visão instrumental, o trabalho não
se dá somente no suprir do necessário à reprodução material da vida. Nesse
sentido, o habitar e o lugar de pessoas, famílias, comunidades que convivem na
coletividade em torno de uma dada prática, carrega mais do que uma visão
utilitária do trabalho. O que submete o valor de troca ao valor de uso, porque há
uma dimensão do trabalho nestas relações que tornam essa coletividade dotada
de sentido e que, tornando-se o trabalho ou o fruto do trabalho apenas
mercadoria, também se põe na dimensão utilitária desse trabalho.
Esse sentido do habitar coletivo, a noção de comunidade, trazidas à
reflexão, por ser singular, enquanto realização do trabalho na relação
sociedade/natureza, é contraponto da sociedade organizada da reprodução do
capital. Ainda que estando integradas a essa forma dominante do reproduzir da
vida social, e em constante transformação, continuam a ser lidas a partir do que
é tradicional ou primitivo, de forma que há um reconhecimento desses modos de
vida:

Fácil observar como mesmo entre escalas pequenas de ciclos


de tempo, afora o raro “primitivo” ou o “ tradicional”, quase tudo
o que temos diante de nós é o que muda, o que se transforma,
o que em pouco tempo- e este tempo breve é cada vez mais
acelerado- deixa de ser como era e se transforma nos espaços
em que está e, assim transforma a ordem e a substância de seus
próprios espaços (Ibidem, p.23).

Com efeito, para Brandão (2009), há uma colisão entre a lógica racional-
instrumental da apropriação da natureza para o lucro, e o produzir da vida, desde
as sociedades primitivas às mais complexas. No que a condição de ser social
implica em relações várias que nos levam além do imediatismo dessa lógica
instrumental, e que se faz presente nos espaços e tempos do mundo rural.
Comunidades que, na garantia do sustento familiar, ou da reprodução da vida
comunal, a partir da natureza, através de atividades, de coleta, caça, pesca e a
agricultura camponesa, tem a natureza como espaço de vida e trabalho.
Compreender e refletir a partir do que seja o modo de vida das
comunidades pesqueiras artesanais em Sergipe, dado o seu relacionar-se com
163
a natureza, perpassa, pelo relato dessas comunidades, que nos permite articular
suas vivências. A oralidade e a memória nesse sentido se fazem presentes nos
depoimentos de vida e trabalho, e a linguagem pauta-se no que seja a prática
social dessas comunidades. Reflexão que Ribeiro (2011) faz ao tratar em seu
estudo sobre os sentidos da pesca, no que a comunicação é dada a partir de
quem é o interlocutor, de maneira que a forma como a linguagem se apresentará
em pesquisa, tem um sentido de ser que não se configura nunca em
neutralidade. “É neste sentido que toda enunciação é considerada um ato de
fala, ou seja, o que falamos ou escrevemos está direcionado para uma ação,
queremos fazer algo com essas palavras” (Ibidem, p.80). Neste caso, que as
palavras dos pescadores artesanais permitam-nos ir à realidade a partir de suas
experiências de vida e trabalho.
Vemos, assim, a necessidade da narrativa dos pescadores, não por si só,
como uma constituição da realidade, mas na possibilidade da análise. “A
memória oral, longe da unilateralidade para a qual tendem certas instituições,
faz intervir pontos de vista contraditórios, pelo menos distintos entre eles, e aí se
encontra sua maior riqueza” (BOSI, 2003, p.15). O que é e por onde caminha a
atividade pesqueira artesanal em Sergipe, apreende-se no depoimento de quem
entre o mar, o rio, o mangue e a terra, faz-se pescador-artesanal:

A pesca-artesanal, ela nas, minhas palavras eu sempre costumo


dizer o seguinte, que ela sempre foi pioneira, desde a época da
multiplicação dos pães que já existia o peixe, que o peixe foi
pescado, e que de lá para cá todas as classes sociais mudaram,
se modernizaram, cresceram, o pescador não. O pescador
continua aquilo que era, e talvez até nas condições de hoje pior.
Porque o progresso chegou, e quando o progresso chega, você
se adapta ou você fica para trás, e bem para trás, é um rolo
compressor. (D. – 55 anos pescador artesanal - pesquisa de
campo, Estância/2016)

A pesca enquanto tradicional trata-se de um modo de vida anterior, ao


que se tem como modo de organização social predominante. Neste sentido, a
forma como o pescador artesanal se insere na sociedade organizada a partir do
progresso enquanto desenvolvimento capitalista, caracteriza-se, para Da Silva
(2014), por um trabalho “[...] que se relaciona diretamente às técnicas artesãs e
históricas, ao uso de técnicas modernas que atingem a base material do trabalho

164
do pescador [..]” (p.32). Ainda que inserido numa economia de mercado global,
em determinados momentos de sua atividade, essa inserção se dá a partir de
um metabolismo com a natureza que não corresponde à produtividade do capital.
Desse modo, o trabalho na mediação sociedade/natureza não lhes é estranho,
mas configura o próprio ser à medida que dá sentido à identidade construída
enquanto pescador artesanal:

Só vou parar de pescar quando eu morrer, aí as meninas diz,


mãe para que a senhora vai, não minha fia, quando eu me
aposentei, fui para o juiz, foi a primeira coisa que eu perguntei
quando ele disse olhe, a partir do dia de hoje a senhora tá
aposentada. E eu disse sim, e aí doutor, eu posso trabaiar? Aí
ele disse, pode. Pode porque a senhora tá aposentada é por
validez, não é encostada, enquanto a senhora puder trabalhar.
Aí eu disse eu quero é isso mesmo. Todo dia eu tô em meu
mangue, mas homi, e fico doente o dia em que não vou. Eu
vendo na porta, eu pesco aratu e camarão, só que o camarão
agora não tá dando, o camarão agora não tá dando não mode o
sol, a água fica quente e o camarão não encosta, agora tô só
pescado aratu, e pesco peixe também, tainha, mas a tainha é
pela noite, de redinha. (Dona T- 73 anos- pescadora artesanal e
marisqueira, Povoado Porto do Mato-Estância/2016)

Em Porto do Mato, povoado do município de Estância/SE, que compõe o


litoral sul do estado, a comunidade que vive da pesca é marcada pela captura
do aratu36, de onde sai grande parte do que é consumido em Sergipe. Além do
consumo de subsistência, o aratu (Foto 3) é comercializado no próprio povoado,
em feiras, e passado para atravessadores. Porto do Mato fica próximo à Praia
do Saco, em Sergipe, e é local de travessia para a praia de Mangue Seco/BA.
Caracteriza-se, dessa forma, pela comunidade pesqueira, e ao mesmo tempo
por casas de veraneio e intensa atividade turística, com movimentação no
povoado de atividades e interesses ligados ao turismo enquanto atividade a
promover desenvolvimento capitalista.

36
Conhecido popularmente como aratu e de nome científico Goniopsis cruentata, é uma espécie de
caranguejo menor e avermelhado.

165
FOTO3: ARATU- POVOADO PORTO DO MATO/ESTÂNCIA

FONTE: NUNES, S.I.F. Pesquisa de campo/2015

A pesca praticada pela comunidade se dá no mangue, no rio e no mar,


pelo fato de ser área litorânea e estuarina dos rios Real e Piauí. A comunidade
possui 346 famílias37, tendo como atividade central a pesca. A organização dos
pescadores se dá através da Associação das Pescadoras e Marisqueiras (Foto
4), que tem realizado o papel de mediação dos pescadores com os órgãos
públicos, na regulamentação dos cadastros e políticas públicas relacionadas aos
trabalhadores da pesca.

37
Dados de pesquisa junto a comunidades pesqueiras realizado pelo PEAC - Programa de Educação
Ambiental com Comunidades Costeiras. Disponível em: http://programapeac.com.br/wp-
content/uploads/2010/11/O-PROCESSO-DE-TRABALHO-DA-MARISCAGEM.pdf.

166
FOTO 4: REUNIÃO DA ASSOCIAÇÃO DAS PESCADORAS E
MARISQUEIRAS DO POVOADO PORTO DO MATO

FONTE: NUNES, S.I.F. Pesquisa de campo/2016

O povoado tem um papel importante no abastecimento do mercado de


aratu em Sergipe, no relato das marisqueiras é possível identificar problemas
enfrentados pela diminuição dos pescados, trazidos pela narração de vida nas
lembranças do passado na quantidade que se pescava há décadas ou anos
atrás, como também devido à mortandade do caranguejo. O que influi
diretamente na possibilidade do viver da pesca:

Aprendi com minha sogra a pescar, quando eu fui pescar tava


com quinze anos, eu tinha o menino, o menino eu tive com
quinze anos, ai foi quando ela me ensinou a pescar, pescava
aratu, peixe camarão. O camarão era em pesca de mão, naquele
tempo era de muitão mesmo, naquele tempo você dizia hoje eu
vou pegar dez quilos, quinze quilos de camarão, no instantinho
você enchia uma lata de gás, mas hoje em dia você passa o dia
todo pra pegar dois quilos, três quilos, quando pega muito ainda
pega três quilos, e agora mesmo não tá dando é de jeito nenhum
o camarão, se quiser viver tem que ir para o aratu, porque para
o camarão.( Dona T- 69 anos- pescadora artesanal, Povoado
Porto do Mato-Estância/2016)
Na mortalidade que teve dos caranguejos, também afetou uma
parte do aratu, então não é como antigamente, não é como 30
anos atrás, porque a gente ia e pegava por dia cinco, seis quilos,
hoje você vai um dia para pegar meio quilo as vezes, 200
gramas, as vezes vai a semana toda para conseguir dar um
quilo. E a maioria das pessoas sobrevive disso aqui ainda, dessa

167
forma, da pesca artesanal, pegar sururu, massunim, ostra. (A.
43 anos- pescadora artesanal e marisqueira, Povoado Porto do
Mato-Estância/2016)

Nesse sentido, o que se pesca tanto para consumo, quanto para


comercializar, perpassa pela disponibilidade da espécie na natureza. O viver da
pesca encontra sentido na reprodução da vida enquanto necessidade básica de
subsistência, e dá sentido à vida dos que vivem da pesca:

A pesca tá pior, de primeiro era bom, mas agora? Antes você


chegava na beirada do mangue, você no instantinho enchia uma
lata de aratu, agora você caminha que nem uma beleza para
pegar um quilo, dois quilos, mais eu tô lá todo dia. (Dona T- 69
anos- pescadora artesanal, Povoado Porto do Mato-
Estância/2016
E também não é como antigamente que tinha sim como
sobreviver da pesca, quando eu ainda alcancei meu pai, eu
encontrava com ele para trazer os sacos, os bogós de peixe, e
hoje não. Quando pega pouco, consumimos e vendemos,
quando tem uma pessoa mais necessidade que a gente
conhece, a gente dá, diz vá lá em casa pegar que tem, graças a
Deus para isso o povo aqui é mais solidário, não deixa ninguém
com fome não. (A. 43 anos- pescadora artesanal, Povoado Porto
do Mato-Estância/2016)

Nos relatos, é possível identificar de que forma está organizada a pesca,


que envolve a família; os filhos que são levados ao mangue e ao rio desde cedo,
como também relatos da atividade pesqueira praticada desde cedo pelos pais
que aprenderam com seus pais.
O horário de trabalho é definido pela maré, pela condição do mar, e os
instrumentos de trabalho, parte deles é fabricada pelo próprio pescador (Foto 5)
ou marisqueira.

168
FOTO 5: PESCADOR-ARTESANAL DE PORTO DO MATO

FONTE: NUNES, S.I. Pesquisa de Campo/2015

O que se tem em Porto do Mato, como em grande parte da literatura,


que dá conta de comunidades pesqueiras artesanais, é a organização do
trabalho a partir do domínio do processo de trabalho, do conhecimento
necessário da natureza em seus ciclos e do envolvimento familiar:

Quando eu acho uma pessoa para ir mais eu pescar, eu levo as


meninas, minhas filhas, mas filho homem? Pois, eles querem
pescar? Não querem essa profissão não. Aí foi indo, criei minhas
fias toda, da pescaria, minhas fias pescam, todas elas. Eu sou
aposentada pela pesca, agora eu sou da associação, o defeso
eu não recebo mais não, quem recebe é minhas meninas. (Dona
T- 69 anos- pescadora artesanal, Povoado Porto do Mato-
Estância/2016)
Pesco desde os dez anos, aqui tem uns 18 anos ou mais que
tamo aqui. Eu pesco de rede, malha caceira, de linha, tarrafa,
minha pescaria é essa, pesco aqui dentro do rio e lá no alto mar.
Tem vezes que a gente vai de manhã, sai daqui seis horas e
chega à tarde, quatro horas, e tem dia que eu vou passo a noite
né, também quando tem barco grande, passo três, quatro, cinco,
seis dias, com o meu pequeno mesmo, meu menino que vai
comigo. O barco eu que fiz, eu que fabriquei o barco. Quando o
mar tá violento tem que respeitar se não se esbagaça, ai eu
chamo a mulher a gente joga a rede, a tarrafa. (W- 53 anos-
pescador artesanal- Porto do Mato-Estância/2016)

Desse modo, a caracterização da pesca-artesanal se põe justamente na


singularidade de sua organização. Compreendendo a produtividade em pequena

169
escala. Cardoso (2009) destaca a forma que se realiza a pesca-artesanal,
enquanto economia de subsistência e de troca atrelada ao mercado de
pescados, o que representa a alimentação de “populações rurais pauperizadas
ao longo dos rios, mares, lagos e demais corpos d’água brasileiros” (Ibidem,
p.38); como também atrelada ao baixo investimento nos instrumentos de
trabalho e da não propriedade da água. Destarte, a caracterização da pesca-
artesanal se dá de forma diversa, mas com pontos comuns identificáveis, ao
longo dos estudos sobre essa atividade:

A pesca artesanal é um importante posto de trabalho e de


economia no Brasil; destaca-se como circuito produtivo em que,
na maioria das vezes o trabalhador é dono dos meios de
produção, que são em geral o barco, a rede, os petrechos e a
técnica de pescar. Faz parte dos circuitos produtivos que
engloba a coleta de pescado e a maricultura, o beneficiamento,
a venda em atacado e varejo, a produção de redes, a compra e
venda de embarcações, o conserto de rede e de embarcações
dentre outras atividades similares. (SILVA, 2015, p.19)

Mesmo em comunidades pesqueiras, que permanecem não mais em


espaços identificados a partir do rural, esse circuito produtivo apontado
possibilita o viver da pesca a substituir o assalariamento, diante dos limites do
viver da pesca-artesanal.
Em Aracaju, no Bairro Industrial, nas margens do Rio Sergipe, concentram
pescadores artesanais, que mesmo diante do processo de urbanização,
continuam a viver da pesca. Seus barcos ficam ancorados ao longo da orla, no
bairro onde estão localizados bares no incentivo ao turismo.
Os pescadores consertam suas redes e tratam e vendem os pescados,
quase como um contraste ao que se espera de um bairro da capital (Foto 6 e 7).
Quem não possui embarcação pesca com quem tem, e a divisão dos pescados
segue a partilha que se estabelece em diversas comunidades pesqueiras, cujo
dinheiro é resultado da venda do que não seja destinado ao consumo. O fruto do
trabalho, os pescados, são divididos entre os que foram pescar, sendo destinada
uma parte ao barco, de tal modo, se o dono do barco estava na pescaria, ele
recebe sua parte e a do barco; caso contrário, recebe somente a parte do barco.

170
FOTO 6: BARRACA PARA TRATAR E VENDER PEIXE NA ORLA DO BAIRRO
INDUSTRIAL

FONTE: NUNES, S.I.F. Pesquisa de Campo/2017

171
FOTO 7: PESCADORES DO BAIRRO INDUSTRIAL

FONTE: NUNES, S.I.F. Pesquisa de Campo/2017

Os relatos sobre a pesca remetem às dificuldades na sua comercialização


que, em sua maior parte, dá-se através dos cambistas, devido à falta de apoio
governamental e à própria diminuição dos pescados. Diante dos obstáculos do
viver da pesca, o permanecer na atividade continua sendo possível a partir da
cooperação existente entre os pescadores:

Não tenho barco, pesco com a rede dos outros, é como eu falei
se você tiver precisando do peixe você divide, e se não tiver você
vende, porque tem cambista aí. (G- 68 anos- pescador artesanal
do Bairro Industrial Aracaju/2017)
Aprendi a consertar rede vendo os outros, passo uns quinze dias
para consertar setenta braços de rede. O pescador ele não pode
pagar, se eu for cobrar um dia ai de servente, o pescador vai
comer o que? (G- 68 anos- pescador artesanal do Bairro
Industrial/Aracaju/2017)

A relação de camaradagem existente na atividade pesqueira, conforme


descrição de Maldonado (1994), existe a partir da forma de como são
organizadas as pescarias, diante dos riscos da atividade. Há uma relação de
confiança que se estabelece a medida que o resultado da pescaria e de suas
próprias vidas depende da cooperação. Essa relação se estabelece incialmente

172
na condição da apropriação dos recursos pesqueiros. No rio ou no mar, não há
uma relação de propriedade, enquanto cercamentos, como na terra. A condição
de ser pescador é ter o conhecimento da natureza, em que o aprendizado se dá
na relação de comunidade. Há uma coletividade que perpassa o ser pescador,
dessa maneira, há elementos que estruturam a pesca-artesanal, mesmo na
especificidade da captura, diante do mangue, do rio ou do mar.
Há situações em que a pesca está estruturada, de forma a garantir maior
produtividade ao mercado, os elementos que estruturam a atividade em sua
forma artesanal permanecem, à medida que a organização do trabalho não se
configura ainda a mercê da lógica capitalista. Como é o caso de parte
representativa da atividade em Pirambu, município litorâneo ao leste de Sergipe,
com uma população estimada de 8.369, segundo o IBGE (censo de 2010), com
o registro de 2.028 pescadores, de acordo com a colônia Z-5. A pesca é marcada
pela captura do camarão em alto-mar e a formação do município está vinculada
à atividade pesqueira, que permanece sendo uma de suas principais atividades,
o que é possibilitado por ser área litorânea e ao mesmo tempo estuarina do rio
Japaratuba. (Fotos 8,9,10 e 11).

FOTO 8: BARCOS DE ALTO MAR/PIRAMBU

Fonte: NUNES. S.I. Pesquisa de Campo/2016

173
FOTO 9- BARCOS ANCORADOS NO RIO JAPARATUBA

FONTE: NUNES, S.I. Pesquisa de Campo 2016

FOTO 10: BARCO COM ESTRUTURA FRIGORIFICA PARA CONSEVAÇÃO DOS


PESCADOS

FONTE: NUNES, S.I. Pesquisa de Campo 2016

174
FOTO 11: CAMARÕES DE ALTO-MAR/PIRAMBU

FONTE: NUNES, S.I. Pesquisa de Campo/2016

A pesca de alto-mar requer barcos maiores e mais bem equipados, assim


como uma estrutura para receber o pescado, que se dá em maior quantidade,
mas ainda assim é caracterizada como artesanal. O que se confirma, de acordo
com as informações da SEAGRI, que em todo o estado são contabilizados em
torno de 70 barcos de alto mar os quais caracterizam-se como atividade
pesqueira artesanal:

Os barcos de Sergipe é tudo compatível, é tudo artesanal, não


tem empresa com barco grande, barcos maiores não, é tudo
barco compatível da região mesmo, daqui de Pirambu, de
Aracaju, do Castro, o maior é doze metros. (J. -53 anos-
pescador artesanal Pirambu/2016)
Pescador e dono de barco, nasci e me criei aqui, a pesca do
camarão há mais de 30 anos, é uma pesca artesanal, assim uns
barcos pequenos, né aqueles barcos industrial, que passa um
mês, dois meses, seis meses. Aqui trabalha com gelo,
abastecendo os barcos de gelo, óleo diesel, tem a ponte, tem
água, tem energia, tem balança, tem estacionamento, um galpão
de beneficiamento, funciona assim em prol da comunidade. O
pessoal não paga nada, mantém como? Do gelo, nós vendemos
o gelo e do dinheiro do gelo, nós pagamos energia, água, os
encargos sociais, reforma do prédio, reforma das máquinas.
Aqui há mais de 30 anos, iniciativa dos donos de barco, do
pescado do camarão, do peixe que vem do alto mar. Porque
aqui, é pesca, prefeitura, Estado, comércio e o turismo,

175
agricultura, mas eu acho que é 60% a pesca, porque graças a
Deus nós temos esse mar aí grandão, é só a gente saber lhe dar
com ele (A.-54 anos-pescador artesanal Pirambu/2016)
Pirambu só tem duas fábricas, a pesca e a prefeitura. Tem o
royalty da Petrobrás que deveria ser destinado uma verba para
a pesca e não é, porque o petróleo é tirado de dentro do mar,
ocupou um espaço que o pescador pesca e esse espaço ele não
tem retorno nenhum, ele não tem uma cesta básica do governo,
ele não tem nada, só um seguro defeso e mesmo assim
complicado para o pescador adquirir. O Pescador ele tem que
se virar nos 30 para conseguir botar o peixe e o camarão na
mesa ou para vender para sobreviver (M. -47 anos-pescador
artesanal Pirambu/2016)

A dificuldade do viver da pesca materializa-se de diferentes maneiras, na


terra e nas águas. Para Cardoso (2009), a modernização do setor pesqueiro
enquanto projeto de Estado leva à crise do setor, ao mesmo tempo em que os
pescadores se organizam. A crise se dá justamente pela diminuição dos recursos
pesqueiros diante de atividades predatórias, pela expropriação do pescador, que
é obrigado proletarizar-se.
No estado de Sergipe não há registro da pesca-industrial, entretanto há
um conjunto de atividades predatórias à natureza, que atinge os recursos
pesqueiros, conforme relatos dos pescadores, entre estas, a destruição dos
manguezais, o despejo de produtos químicos oriundos de indústrias e de
atividades agrícolas, como também a construção de barragens. A consciência
dos problemas enfrentados pela atividade pesqueira é relatada, no vivenciar da
pesca enquanto atividade que lhes dá a identidade, e ao organizar-se, apresenta
demandas à sociedade que se institucionaliza e da qual constroem a partir da
atividade pesqueira.
Entre as dificuldades encontradas em Sergipe, em várias comunidades,
estão desde a exploração, no valor do repasse dos pescados - que é
determinado pelos cambistas -, como também o interesse sobre as áreas onde
as comunidades pesqueiras estão localizadas, de alto nível de especulação
imobiliária e turística, além dos diferentes níveis de poder de captura dentro das
águas, embora sem haver a identificação da pesca industrial no estado:

Tá mais difícil, porque tem esses arrastões, os arrastões acaba


também, porque pega pequeno um peixe que cresce de cinco,
seis quilos. Empresa grande, para fazer um serviço daquele tem

176
que ter muito dinheiro. Tem muito, agora que tá acabando mais,
de primeiro era muito, e ai eles esbagaçam a rede da gente, a
gente não tem direito a falar nada. A gente vai lá eles dizem você
tem que pescar beradeiro, mas quando é a noite e tem camarão
eles vêm para beirada, aí pegas as da gente. A gente se livra
deles mas, não tem jeito. Nesses tempos eu não tenho nem
pescando, a gente pesca mais pela noite quando eles param.
(W. -53 anos-pescador artesanal Porto do Mato/2015)
Cambista quando você pega hoje 50 quilos de peixe, ele te paga,
se for de seis ele paga de seis, se for de oito ele paga de oito,
mas se você for amanhã pegar 80, 100 quilos ele já quer outro
preço, porque diz que tá ruim. (W. -53 anos-pescador artesanal
Porto do Mato/2015)
A especulação imobiliária está expulsando os pescadores,
breve vamos ser um Mosqueiro da vida, porque no passado o
Mosqueiro era uma área de pescadores, hoje não é mais.
Estância se não tomar cuidado breve não tem mais pesca em
Estância, é especulação imobiliária que tá mandando todo
mundo embora. Porque o rico chega lá, compra a terra do
pescador, faz uma mansão, expulsa a família dele e contrata um
como caseiro. O pessoal está migrando para o extrativismo da
mangaba, hoje em dia todo pescador coleta mangaba também
porque é uma alternativa de renda. É por isso que eu sou favor
de uma formação diferente, porque você pode extrair do mangue
o sururu, tem a moréia, tem o bagre, tem uma série de coisas
que você tem como fazer, mas que normalmente, a nova
geração, minha vó fazia de um jeito, eu aprendi com a minha vó
e teve umas modificações, a nova geração já faz diferente. Mas
por exemplo, o jovem sai para pescar não lembra de botar uma
rede para pegar um bagre, é uma fonte de renda, no mínimo
para botar comida em casa. (D. pescador artesanal e Presidente
do Conselho de Meio Ambiente de Estância/2015)
Na nossa região não dá para viver só da pesca, porque aqui é
como se fosse mais do que uma cidade, é para turista, eles
esquecem das pessoas daqui, aqui tudo é caro, as vezes até
mais caro do que na própria cidade. É por isso que o pessoal as
vezes sai daqui para fazer compras lá, porque lá sai mais em
conta, porque aqui tudo é no gogó, então elas têm que se
virarem, o que é que elas fazem, são 30 dias, a maré boa é mais
ou menos 15, 12 dias, aqueles dias de maré ruim, aqueles dias
que elas não podem porque a maré está cheia, ai elas vão dar
faxina na casa de vizinho, dar faxina na casa dos ricos, lavar
roupa. Os homens arrumam como servente, limpar terreno do
povo, mas, de todo jeito eles se viram, ficar com fome é que não
pode né? (A. 43 anos- pescadora artesanal, Povoado Porto do
Mato-Estância/2016)

Há, em Sergipe, um modelo de desenvolvimento em curso para fomentar


o turismo em todo estado, e o aumento do valor do uso do solo a partir da
natureza enquanto atração turística nas áreas litorâneas. Nos últimos anos, esta

177
condição tem sido marcada pela construção de resorts e condomínios de luxo.
Gesteira e Cavalcante (2016), ao analisar o processo de especulação imobiliária
na grande Aracaju, apontam para a expansão da urbanização como forma de
acelerar o tempo de rotação do capital em sua necessidade de acumulação.
Nesse caminho, o Estado, ao fomentar a estrutura necessária para a
especulação da terra como mercadoria ao interesse de grandes construtoras,
tem investido em Conjuntos Residenciais de luxo no formato de Condomínios
fechados e de complexos turísticos, quem têm se espalhado pelo estado com
grandes consequências para as comunidades ali presentes:

[...] o que se observa é que a lógica na qual esses condomínios


são construídos, os autossegrega, excluindo por completo o
entorno. Como mercadoria, a paisagem costeira é
comercializada, alheia às comunidades tradicionais. Vários
imóveis são de segunda residência, e certos empreendimentos
tentam mesclar perfil de hotelaria com o residencial, com alguns
espaços destinados exclusivamente à locação (Ibidem, p.9).

O papel do Estado tem sido o de viabilizar a infraestrutura e garantir as


devidas licenças ambientais para a construção desses empreendimentos,
entretanto, este não apresenta na mesma velocidade a obrigação de atender as
necessidades das comunidades que vivem nessas áreas nas atividades
relacionadas diretamente com a natureza:

Sob a intervenção do Estado e de empresários, os espaços de


vida e de trabalho de muitas comunidades tornaram-se objeto
de acirradas disputas. Apesar da determinação na legislação
brasileira sobre o gerenciamento costeiro, não existe a
demarcação de terrenos da marinha e nem ordenamento
territorial que assegure aos moradores a permanência em seus
territórios e a proteção dos patrimônios locais. A situação de
insegurança em relação à inexistência de titularidade da terra
pelas comunidades que não se diferencia, da realidade
brasileira, agrava-se diante do poder dos grileiros, dos
especuladores e empreendedores turísticos ( interessados em
enseadas, falésias, campos de dunas e praias para abrigar a
laurear resorts e hotéis) que agem para garantir a posse de
terras, mediante o registro de falsas escrituras, de indevida
cessão de usucapião, de avanços de marcos e cercamentos de
áreas de uso em comum e de compro de posses por valores
irrisórios. (LIMA, 2008, p.205).

178
Na região do Baixo São Francisco/SE, as comunidades tradicionais que
vivem da pesca vivem o conflito/disputa pelo acesso à terra e água, quanto na
degradação do rio e de suas espécies devido à presença das barragens ao longo
do seu curso. A comunidade Quilombola de Resina tem resistido na luta pelo
acesso à terra e água e no viver da pesca, na foz do Rio São Francisco. (Foto
12 e 13)

FOTO 12: COMUNIDADE QUILOMBOLA E PESQUEIRA DE RESINA

FONTE: NUNES, S.I. Pesquisa de Campo/2016

179
FOTO 13: COMUNIDADE QUILOMBOLA E PESQUEIRA DE RESINA 2

FONTE: NUNES, S.I. Pesquisa de Campo/2016

Os problemas relatados pela comunidade perpassam pelo avanço das


águas do mar sobre o rio, o que impede o consumo da água e influi nas espécies,
antes fonte de subsistência da comunidade, além do conflito envolvendo o
reconhecimento da terra quilombola diante da ofensiva de fazendeiros da região
e de empresas imobiliárias:

Aqui a gente vivemos, antigamente tinha uma água barrenta de


seis em seis mês, e agora não tem mais enchente, água barrenta
é a que se chama que atrai o peixe, esse período não tem mais,
que se chama o período paradeiro. A água barrenta desde que
veio essas barragens, quando tinha só uma lá para cima ainda
vinha, mas de agora por diante, com essa continuação do tempo
que eles fizeram mais aí, por aqui não existe mais. Cada vez
mais piorando. Nós tomava água doce por aqui, hoje mais
ninguém toma, vai buscar de Piaçabuçu que é cidade mais
próxima para lá, a não ser que cave um poço. (J- 40- pescador
artesanal- Povoado Resina- Brejo Grande/2016)
Mudou porque depois que fizeram essas barragens aí para cima,
aí o peixe aqui foi diminuindo, e agora nesse momento aqui
nosso por conta dessa água do mar que tá avançado nesse rio
aqui nosso, aí a produção de peixe agora tá diminuindo muito,
de acabar não, a natureza de Deus não acaba, mais diminuiu
muito (C. 46 anos - pescador artesanal e quilombola- Povoado
Resina-Brejo Grande/2016)
Mas nós era para ser expulso daqui pelo fazendeiro, depois
quando nós começemos a luta em 2003 para 2004.

180
Começemos, chegou Padre Isaías aí ele veio fazer as visitas as
comunidades, aí veio aqui a Resina, o pessoal daqui era a
pobreza mesmo, era uma tristeza, porque tinha o peixe, mas
você não conhecia dos seus direitos, você vivia aqui que eles
diziam que a terra era deles. Nós trabalhava aqui era para o
fazendeiro, não apanhava porque eles não batiam, mas era um
cativeiro, porque se você plantasse um coqueiro, você plantava
era para ele, você plantava uma roça, plantava todinho o mato,
o cajueiro tudo derrubava, depois largava o fogo, depois fazia a
roça, para plantar a macaxeira, aí ele dizia agora pegue o
coqueiro e plante, você plantava mais era para ele, o dono, o
fazendeiro. Era muita gente que vivia aqui, morava muita gente,
agora só para trabalhar para ele. Acharam pouco pegaram uma
empresa chamada Norcon, aí jogaram, chegou um véio e disse
que comprou essa terra aqui da resina para cá, aí foi todo
mundo, ele disse: Comprei essa área aqui é minha já, aí ele
disse que comprou a doutor Josan, que era outro herdeiro.
Pediram os documentos, ele disse que da resina até o gato preto
era dele, e disse que não ia querer ninguém lá. O véio disso que
ali era bonito, e não queria nenhum pescador ali, ali ia fazer
campo de golfe, resort, disse que as meninas dava para
aproveitar para trabalhar (C. -46 anos- pescador artesanal e
quilombola, Povoado Resina- Brejo Grande/2016)

Os depoimentos dos pescadores de Resina relatam a luta pela


permanência, enquanto comunidade quilombola e pesqueira, para a garantia da
terra e ao acesso da água. Parte dos pescadores é levada a pescar no mar,
numa comunidade marcada pela pesca no estuário, devido à diminuição dos
pescados no rio. Para garantir a subsistência familiar, recorrem à criação de
animais e da agricultura, presente na comunidade através do plantio de arroz
inundado, que devido à mudança das cheias no rio, tem impedido essa prática,
além de outras atividades complementares:

Associação é quilombola e de pescador também, aqui vive da


pesca e é agricultor também, a pesca não tem mais condição de
sobreviver, nós planta macaxeira, cá tem o coco, que cada três
mês dá também algum real. Tem tomate, tem pimentão, coentro,
e agora essas mulé tem o projeto do óleo de coco que dá outro
rendozinho. Mas se for pelo rio mesmo, se pescador for viver de
dentro do rio, ele não vai ter condição não. Se o rio desse o
peixe, como antigamente é bom, a gente se criou no rio, é uma
pescaria que você come, você vende, antigamente você comia,
dava, e fazia o dinheiro, porque o peixe era aí, até de linha de
mão nessa praia aí, porque isso era longe, o mar que veio
comendo, tinha uma croa aí. (C. -46 anos- pescador artesanal e
quilombola, Povoado Resina- Brejo Grande/2016)

181
Em frente às adversidades impostas ao viver da pesca-artesanal, o que
se apresenta como solução é a noção de progresso e desenvolvimento voltado
à produtividade de mercado. Objetiva-se a substituição do aprendizado
comunitário na relação direta com a natureza, condição necessária de pescador
para sua relação com o mercado enquanto empreendedor, indo de encontro à
lógica de organização da pesca-artesanal. Em visita a SEAGRI, em outubro de
2016, foram apresentados projetos voltados à atividade pesqueira que envolvem
o incentivo à aquicultura. A fonte de financiamento propagada tem sido garantida
pelo projeto Dom Távora, parceria entre o FIDA e o Estado de Sergipe, com o
orçamento de 28,3 milhões para todo estado, sendo 2,6 milhões só para o Baixo
São Francisco.
Entre as atividades financiadas pelo projeto, além da rizicultura e do
beneficiamento do coco, está a piscicultura (Figura 6). De acordo com o assessor
da SEAGRI Jean Paolo Costa, os projetos oriundos da Secretaria são de ordem
coletiva, entretanto os benefícios são apenas para as comunidades que
assumem os investimentos em aquicultura. Desse modo, seria necessário
facilitar licenças ambientais para carcinicultores e piscicultores de menor porte,
além de pleitear um selo de comercialização, para que os pescados oriundos da
atividade adquiram maior força no mercado através de programas do governo
federal.

182
FIGURA 7: REPORTAGEM SOBRE O PROJETO DOM TÁVORA EM SERGIPE.

FONTE: GOVERNO DE SERGIPE. Disponível em: http://www.seagri.se.gov.br/projeto/2/projeto-


dom-tavora. Acesso em 24/01/2017.

As soluções apresentadas por órgãos do governo a atividade pesqueira


vão na contramão das demandas apresentadas pelos movimentos organizados
em torno da pesca-artesanal. Em Publicação do Conselho Pastoral dos
Pescadores com apoio do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais,
são analisados os conflitos socioambientais em territórios Pesqueiros de todo
Brasil, incluindo Sergipe. Este documento reflete e identifica a base desses
conflitos no controle da natureza enquanto recurso, pautada na produtividade
para o capital. Nesse sentido, terra e água são submetidos à lógica, que
representa o agronegócio:

Enquanto modelo de controle direto sobre os ambientes


naturais, o agronegócio é um dos principais exemplos da lógica
do domínio que avança desastrosamente sobre os territórios
pesqueiros por meio da produção de soja, cana, frutas para
exportação, eucaliptos e bambus irrigados e da criação de gado,
além de avançar sobre os territórios aquáticos com a
carcinicultura e a piscicultura. (Conselho Pastoral dos
Pescadores, 2016, p.10)

183
A percepção dos movimentos de resistência em torno da pesca-artesanal
tem não só identificado os conflitos existentes nos territórios pesqueiros, como
tem feito análises sobre a apropriação da natureza enquanto mercadoria, em
uma lógica contrária à presente nas comunidades pesqueiras. Nessa direção,
reivindicam o direito não só a sua identidade, a nível institucional, como também
o direito à terra e a água, referente aos conflitos socioambientais que estão
vinculados ao modo de produção capitalista.
Em suma, a natureza constantemente vinculada a uma questão ambiental
é também a natureza apropriada como recurso em uma ofensiva da expansão
capitalista que não é passível de recuo. A terra e a água, para os pescadores
artesanais, são condições de vida, em conflito permanente diante de um modelo
de desenvolvimento que as mercadoriza.

Partindo do espaço, do mundo para o pescador artesanal,


esbarramos com uma complexa teia de julgamentos de valores,
de cisões e fragmentações engendradas pela força acelerada da
modernidade e das formas de modernização. Para essa força, o
pescador precisa desaparecer ou não aparecer, apesar de que
o “ camarão e o peixe fresco são gostosos, muitos saborosos e
apreciados”. Num processo profundo de alienação e de fetiche
da mercadoria, o pescador vira uma metáfora- um ser poético,
uma pintura, um nome bonito de restaurante à beira-mar.
(SILVA, 2014, p.20)

No entanto, os pescadores-artesanais em seu modo de vida nas


comunidades pesqueiras, não cabem nos ideais românticos ideológicos dos
escritos, das imagens, das músicas, que os veem apenas como resquícios de
uma natureza a ser admirada. De um tempo passado a ser apreciado. O conflito
está presente nas comunidades pesqueiras artesanais e a permanência e
resistência que se estabelece nessas comunidades, dão a dimensão do que seja
a relação sociedade/natureza não mediada pelo capital.

3.4- A categoria pescador artesanal - Resistência além do trabalho em


Sergipe

Diante dos enfrentamentos da realidade imposta ao viver da pesca, as


reivindicações que perpassam pela atividade artesanal têm sido articuladas a

184
partir de diferentes institucionalidades, através das colônias e associações de
pescadores. O pescador artesanal enquanto categoria reconhecida pelo Estado
exerce sua atividade a partir de determinado controle, no momento que a
atividade da pesca está associada ao registro de pescador. Garantir as
reivindicações no setor da política pública torna-se alvo de disputa dentro das
ações governamentais.
Para Cardoso (2001), a especificidade da atividade pesqueira reside na
articulação terra e água necessária à condição de ser pescador, e no produzir
espaço. A forma de relacionar-se dos pescadores artesanais com a natureza
também é mediada por relações que atingem diretamente a possibilidade do
viver da pesca, por processos que se apropriam da natureza para a expansão
da produção capitalista, nesse viés, o pescador é levado ao embate que suscita
a luta política como forma de garantir sua permanência.
A politização do movimento dos pescadores tem alguns marcos a serem
sublinhados. Entre estes, a Constituinte da Pesca de 1988, que equipara os
direitos sociais das colônias aos dos sindicatos de trabalhadores rurais, e que
mobilizou e movimentou pescadores a nível nacional, a destacar o papel de
articulação da Comissão Pastoral de Pescadores. Segundo Cardoso (2001),
apesar de carregar uma forte intervenção do Estado através da instituição das
colônias, a mobilização da Constituinte representa um salto na articulação do
movimento de pescadores, mesmo com as contradições presentes no processo
de disputa das representações:

Do papel à realidade, o caminho da conquista e gestão


democrática das Colônias de pescadores é mais tortuoso. Ao
passo que pescadores de algumas localidades conquistaram
suas colônias e Federações, democratizando os processos
eletivos e gerindo-as de acordo com interesses legítimos da
categoria, em outras situações predomina o poder do atraso,
com interventores nomeados administrando esses organismos e
interesses alheios à categoria indicando seus representantes
legais. (Ibidem, p.106)

O caminho para a organização dos pescadores artesanais é apontado por


Cardoso (2001), no papel das colônias, e outras organizações, na forma de
associações e sindicatos. A mobilização dos pescadores para reunir-se e decidir
sobre suas demandas, no entanto enfrenta justamente as contradições da

185
institucionalidade representativa, que por vezes é tomada por interesses que vão
de encontro às necessidades do que seja a pesca-artesanal, utilizando-se
apenas da mediação, trabalhador da pesca/Estado.
Nesse trajeto, outras frentes se abrem, seja em escala local, ou nacional,
para que as pautas da pesca-artesanal tornem-se pautas políticas de
enfretamento pela garantia da terra e água enquanto reprodução da vida. Em
Sergipe, o depoimento dos pescadores revela o reconhecimento das
representações na garantia de direitos da categoria, mas também a angústia
diante dos limites das colônias e associações ou da inexistência de uma
mobilização maior em torno de suas demandas:

A colônia funciona no auxilio maternidade para a pescadora,


doença e aposentadoria e para o pescador, doença,
aposentadoria e defeso. A colônia é o órgão original da pesca, a
colônia vai fazer 105 anos. (M. Pescador artesanal e Presidente
da Colônia de Pirambu, Pesquisa de Campo /2016)
A associação de pescadores aqui é mais organização para
benefício, agora para esse negócio de seguro desemprego, de
defeso, para beneficiar quase ninguém, existe a associação para
você está organizado para receber o defeso, agora para ser
beneficiado fora isso em nada mais (J- 53 anos- pescador
artesanal- Pirambu/2016)
Por enquanto o que ajudaria era ter uma associação e o povo se
reunir para ter alguma coisa mais organizada, umas coisas que
chegasse para o pescador mais fácil, aqui na comunidade
precisa de tanta besteira. Ajuda só do governo mesmo com esse
seguro, que o sujeito saí tapeando para ter uma rede nova (J. -
40 anos- pescador artesanal- Povoado Resina- Brejo
Grande/2016)
O único bairro que não tem associação é aqui, todo canto tem,
na coroa do meio tem, nos interior tem, colônia nós somos da
Z1, mas aqui não tem nada, a colônia nunca se interessou por
aqui, capitania nunca se interessou por aqui, porque naquele
tempo a gente pagava dizimo, um tal de um dizimo para pescar,
aí era a licença a cada três mês, seis mês aí quando vencia
tirava de novo, era o IBAMA. (G. -68 anos-pescador artesanal,
Bairro Industrial- Aracaju/2017)

Quanto à demanda das representações e da articulação das


necessidades advindas da atividade pesqueira, as comunidades do município de
Pirambu/SE têm suas pautas distribuídas entre a Colônia de Pescadores Z5, a
Associação dos Pescadores de Pirambu- ASPEPIPO, e a CONDEPI, que

186
funciona enquanto associação comunitária para receber, armazenar, tratar e
comercializar os pescados, além do apoio a nível de estrutura dos barcos, como
consertos e óleo diesel. No caso da Colônia Z5 e da ASPEPIPO, em conversa
com seus presidentes, estes informaram que ambas têm o papel de reunir a
documentação necessária para garantir aos pescadores e pescadoras o RGP, o
seguro defeso, a licença maternidade e a aposentadoria, em mediação com os
órgãos públicos responsáveis. (Foto 14 e 15).

FOTO 14: COOPERATIVA, ASSOCIAÇÃO E COLÔNIA DE PESCA DE PIRAMBU.

FONTE: NUNES, S.I. Pesquisa de Campo/2016

187
FOTO 15: DESEMBARQUE DE CAMARÃO DE ALTO-MAR/PIRAMBU

FONTE: NUNES, S.I. Pesquisa de Campo/2016

188
A CONDEPI, antiga Pirambu Pesca, nos moldes de uma cooperativa,
reúne as demandas mais imediatas diretamente ligadas à atividade pesqueira.
De acordo com o presidente da Associação, as atividades consistem na
fabricação de gelo que abastecem os barcos, e também a venda para garantir o
funcionamento de toda estrutura existente. Há o abastecimento dos barcos com
óleo diesel subsidiado pela Petrobrás a preços mais baixos, além de balanças e
beneficiamento dos pescados, de maneira que concentra quase toda
movimentação da atividade pesqueira no município, dos donos de barcos
também pescadores aos que embarcam e assumem as pescarias em grupos.
As mulheres têm papel fundamental na manutenção da atividade pesqueira ao
dedicarem-se no catado do camarão para comercialização:

A maioria das mulheres aqui trabalham na pesca, porque é o


único meio de vida que tem aqui em Pirambu, a gente cata
(camarão) e pesca também as vezes, mas não no alto mar, no
rio. A gente também tem direito ao defeso, apesar de a gente
não ir para o alto mar, mas os pescadores dependem da gente,
se a gente não tiver aqui para limpar o camarão como é que eles
vão para o alto mar se não tiver ninguém para cuidar do camarão
quando chegar? A nossa participação é essencial, porque
quando chega aqui, mesmo que vá para máquina, ainda precisa
da mulher para terminar de limpar. Aqui tem o catado desde que
minha mãe era viva, eu era pequena, aqui é antiga Pirambu
Pesca, que eu me lembre. (Z. -39 anos- pescadora artesanal-
Pirambu/2016)

As mulheres na pesca-artesanal, em Sergipe, assumem diferentes


funções (Foto 16 e 17), desde atividades consideradas de apoio à pesca,
referente ao tratamento dos pescados e comercialização, a captura, como a
atividade de mariscagem.

189
FOTO 16: CATADO DE CAMARÃO/PIRAMBU

FONTE: NUNES, S.I. Pesquisa de Campo/2016

190
FOTO 17: REDE DE PESCA DE PESCADORA ARTESANAL DE PORTO DO MATO

FONTE: NUNES, S.I. Pesquisa de Campo/2015

De acordo com Figueiredo (2011), a mariscagem é uma atividade


predominantemente feminina, o que corresponde à divisão social do trabalho por
gênero nas comunidades pesqueiras, e está associado ao fato da captura dos
mariscos serem feitas com instrumentos mais baratos e não necessitar de
embarcações, relacionado ao papel da mulher na atividade pesqueira ser
considerado de menor prestígio. No entanto, algumas mobilizações atuam no
sentido de destacar o papel da mulher nas comunidades pesqueiras que, muitas
vezes, são reconhecidas a partir da mariscagem como principal atividade.
O Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras-
PEAC funciona como medida mitigatória e compensatória sobre as comunidades
que estão na área de abrangência dos impactos ambientais da Petrobras, em
Sergipe, tem atuado e elaborado estudos junto a comunidades pesqueiras e as
mulheres marisqueiras no estado. Em uma de suas publicações sobre a
caracterização das mulheres marisqueiras na comunidade de Porto do Mato-

191
Estância38, reconhece-se a jornada exaustiva de trabalho a que as marisqueiras
estão submetidas, acumulando o trabalho doméstico com a mariscagem, de
forma que os estudos do Programa têm sido direcionados à composição de suas
ações, dentre elas a articulação para a criação do Movimento de Marisqueiras
de Sergipe- MMS.
O Movimento de Marisqueiras de Sergipe39, que surge em 2013 e se
estrutura em 2015 com as coordenações, tem atuado no sentido de dar
visibilidade e reconhecer o papel dessas mulheres na atividade pesqueira, como
também reunir as pautas de luta e mobilizar-se em torno das demandas da
pesca- artesanal no estado (Foto 18 e 19). A criação do Movimento está atrelada
à atuação do PEAC junto às comunidades. De acordo com uma das
pescadoras40 que tem atuado junto ao Movimento, nas etapas para sua
organização, tem-se, incialmente, pesquisas que definiram a área de
abrangência dos impactos da empresa, seguido da identificação da atividade de
mariscagem. Após esses estudos, uma das formas de fazer mitigação tem sido
a organização de reuniões, que estimularam a organização do movimento,
inclusive dispondo de estrutura e recursos, para que a marisqueiras do estado
encontrem-se, façam reuniões e participem de eventos a nível nacional com
outras pescadores e pescadores.

38
O processo de trabalho da mariscagem: Caracterizando a realidade de Porto do Mato Estância-SE.
Disponível em: http://programapeac.com.br/wp-content/uploads/2010/11/O-PROCESSO-DE-
TRABALHO-DA-MARISCAGEM.pdf.
39
De acordo com informações disponíveis no site do PEAC, programapeac.com.br, a criação do MMS se
dá em 2013 no 1° Encontro Inter-regional das Marisqueiras realizada pelo Programa, de onde saiu o
Primeiro Pacto de Lutas com as pautas do Movimento. Já em 2015, no 2° Encontro, há uma estruturação
do MMS para eleger sua coordenação, articular-se com outros movimentos e participar de atos políticos.
40
Pesquisa de Campo no Povoado Muculanduba.

192
FOTO 18: BANDEIRA DO MMS- POVOADO MUCULANDUBA

FONTE: NUNES, S.I. Pesquisa de Campo/2018

FOTO 19: ARTESANATO CONFECCIONADO POR MARISQUEIRA DO MMS/POVOADO


MUCULANDUBA

FONTE: NUNES, S.I. Pesquisa de Campo/2018

193
Apesar do reconhecimento do Projeto como fundamental à formação do
MMS, há discussões internas do Movimento que apontam para a necessidade
de autonomia do Movimento de Marisqueiras em relação à Petrobrás, ao mesmo
tempo que se vê uma obrigação da empresa em compensar e mitigar pelas
atividades que exerce e impactam as comunidades:

Nós somos um movimento que tem que andar com as próprias


pernas, e não vamos atrás da mitigação da Petrobrás que vem
pelo projeto do PEAC? Não, nós temos que ter. Ah não, mas
isso aí vai ter que acabar e vocês andar com suas pernas. Nós
temos que andar, mas enquanto existir cavamento de poço, nós
também quer o que é de direito nosso. Porque se fosse para a
gente chegar onde a gente chegou sozinha nós não chegaria,
nós chegamos. Hoje nós temos conhecimento de uma oficina de
medicina que que a gente foi ao Espirito Santo, foi o que? Foi
pela mitigação do projeto, passagens, despesas, essas coisas,
nós chegamos até lá, fizemos ali a oficina, passemo quase seis
dias lá, aprendemos para passar para comunidade, como
chegar até o INSS, como chegar até os nossos direitos, isso tudo
através do que eles estão oferecendo a gente. E como vamos
dizer não, eu não preciso mais? Enquanto você tirar a nossa
riqueza, nós também precisa ter o conhecimento como a gente
chegar aonde a gente deve. (V. 45 anos- pescadora artesanal e
marisqueira, Povoado Muculanduba- Estância/2018)

O Movimento de Marisqueiras está no processo de formação e de


organização interna, processo ainda atrelado aos esforços do PEAC, apesar de
reflexões existentes dentro do Movimento que apontam no sentido de se definir
uma estrutura própria. De acordo com dados PEAC, e conforme nos foi
informado em pesquisa de campo junto às marisqueiras, o Movimento está
presente em 14 comunidades do estado até o momento (Mapa 4), e possui
articulação junto ao Movimento de Pescadores e Pescadoras artesanais - MPP
que tem atuado junto a CPP no processo de organização e formação do MMS.
Há uma aproximação e caminhos sendo traçados junto a outros Movimentos
Sociais, mesmo apesar do surgimento atrelado a um Projeto Ambiental da
Petrobras.

194
Mapa 4

O reconhecimento das mulheres enquanto pescadoras, e não somente


enquanto atividades de apoio a pesca, vem sendo pauta de discussão do MPP.
A extração de mariscos, enquanto atividade principalmente vinculada às
mulheres marisqueiras, foi aprovada na Comissão do Senado no dia 09/11/217,
para ser incluída enquanto atividade da Política Nacional de Aquicultura e Pesca.
O debate que o MPP trava, no entanto, define a pesca não somente na
captura, mas no beneficiamento e comercialização. De modo que a forma como
as políticas vêm sendo encaminhadas, ignora o que é de fato a realidade dos
pescadores. Tanto enquanto atividade que não é ininterrupta, como na definição
de papéis destinados aos homens e mulheres na atividade pesqueira que não
estão restritos somente a umas das atividades listadas na Política Nacional,
sendo que a necessidade do sobreviver da pesca impõe que os homens e
mulheres assumam diversas atividades que compõem a totalidade da pesca-
artesanal.

195
FOTO 20: ATIVIDADE DE FORMAÇÃO DO MPP EM RESINA-BREJO GRANDE/SE

FONTE: NUNES, S. I. Pesquisa de Campo/2016

FOTO 21: ATIVIDADE DE FORMAÇÃO DO MPP EM PROPRIÁ/SE

FONTE: NUNES, S. I. Pesquisa de Campo/2016

196
O papel do MPP em Sergipe é recente. Uma de suas articulações e
mobilização com os pescadores artesanais de Sergipe, Alagoas e Bahia, foi
realizada em outubro de 2016, em um primeiro momento na Comunidade
Resina, em Brejo Grande e, em seguida no município de Propriá (Foto 20 e 21),
ambos em Sergipe no Baixo São Francisco cuja atividade consistiu na formação
e intercâmbio entre o Conselho Pastoral da Pesca, que atua no Baixo São
Francisco, e o MPP, junto a outros movimentos que mobilizam a atividade
pesqueira artesanal no estado.
Estando presente neste evento, pôde-se verificar que os debates
pautaram a pesca-artesanal a nível nacional e local, para o fortalecimento de
bandeiras de luta da atividade, com o objetivo de elencar os conflitos
identificados pelos representantes nos estados presentes. “A política da vida é a
luta”, afirmou uma das representantes do MPP. Entre os debates, destacaram-
se a crítica da forma como a aquicultura foi inserida junto à pesca artesanal,
enquanto política Ministerial, de concessão de águas públicas; como também a
crítica ao limite de políticas compensatórias que não são pensadas e gestadas
a partir dos anseios das comunidades e povos tradicionais.
A concepção do que sejam povos e comunidades tradicionais, trazida ao
debate pelos próprios pescadores, está na organização de vida, luta e memória
de negros e indígenas, principalmente no Nordeste, como populações que
compõem as comunidades pesqueiras. A Identidade do Território Pesqueiro,
bandeira de luta do MPP, parte da leitura dos pescadores enquanto extrativistas,
ribeirinhos, indígenas, quilombolas, sendo identidades que se relacionam na
pesca-artesanal.
A retomada das lutas a nível nacional que articula o MPP enquanto
Movimento, data do encontro de pescadores em Brasília, em 2009, onde o
debate foi construído em torno da preocupação das ameaças e perdas dos
territórios das comunidades pesqueiras, que instituiu como principal bandeira de
luta do movimento a Defesa do Território Pesqueiro (Figura 8), com a campanha
de visibilidade nacional em torno de assinaturas, para a propositura da lei de
reconhecimento dos territórios.

197
FIGURA 8: CAMPANHA EM DEFESA DO TERRITÓRIO PESQUEIRO

FONTE: MPP. Disponível em http://documentospeloterritorio.blogspot.com.br/. Acesso em


15/11/2017.

A campanha para o movimento, de acordo com os debates travados,


representa além da coleta de assinaturas, uma estratégia para envolver os
pescadores e pescadoras artesanais no reconhecimento das suas identidades
enquanto comunidades tradicionais. Consideram que o tratamento do pescador
apenas enquanto categoria profissional o desqualifica no seu modo de vida, à
medida que não reconhece o direito do território pesqueiro às comunidades que
não possuem a identidade quilombola ou indígena.
O papel da formação no fortalecimento da identidade das comunidades
pesqueiras é uma das estratégias discutidas pela CPP, pelo MPP e por outros
movimentos articulados. O debate se amplia ao passo que há um trabalho forte
198
sendo realizado na identificação dos conflitos existentes em cada comunidade,
o que se desdobra em cartas, documentos e publicações que fortalecem a luta
dos pescadores, como também em análises em torno da atividade pesqueira
artesanal. Os conflitos identificados em Sergipe são: diminuição dos pescados;
mudança da vazão do rio São Francisco com a construção das barragens ao
longo do seu curso, que impacta diretamente à pesca e à agricultura; a qualidade
da água, salobra, que impede o uso pelas comunidades; a ofensiva de
fazendeiros e grandes empresas sobre as comunidades pesqueiras, com a
finalidade da construção de complexos turísticos; e o estímulo da carcinicultura
e a piscicultura, que se apresentam com cercas nos rios que impedem os
pescadores circularem. Foram relatados ainda a existência de muros
provenientes de propriedades que limitam o acesso dos pescadores a
determinados trechos dos rios e, por último, o relato da presença de produtos
químicos jogados no rio e identificados pelos pescadores e alguns movimentos
presentes como provenientes do agronegócio e de empresas.
O que se evidencia é o modelo de desenvolvimento predatório da
natureza desassociada da vida humana. O produzir da pesca artesanal, nesse
sentido, permanece e resiste. Constitui-se modo de vida, a partir do trabalho no
metabolismo com a natureza, e se fortalece enquanto movimento, na luta que
perpassa as institucionalidades que funcionam para a garantia da expansão do
capital na relação dominante de desumanização da relação sociedade/natureza.

No rio e no Mar
Pescadores na luta
Nos Açudes e Barragens
Pescando liberdade
Hidronegócio. Resistir!
Cerca nas Águas. Derrubar!
(Grito de Ordem do MPP)

199
IV- CAPÍTULO- CONTRADIÇÃO E DIALÉTICA NO PROCESSO DE
APROPRIAÇÃO DA NATUREZA: A PESCA-ARTESANAL FRENTE A
DESTRUTIVIDADE DO CAPITAL

A concepção de natureza, na perspectiva de uma sociedade mediada pelo


capital, é concebida a partir da dominação desta enquanto recurso a se tornar
mercadoria. Dessa forma, a relação sociedade/natureza se pauta no
desenvolvimento das potencialidades humanas, que guiadas pelo exercício do
trabalho, produz cada vez mais instrumentos que possibilitam o controle da
natureza na garantia de uma sociedade de consumo.
No fixar da modernidade enquanto momento contraditório da
desumanização41, a concepção da natureza a ser dominada necessita tomar o
lugar do universal enquanto racionalidade de uma classe, mais assumida como
de toda sociedade.
Essa concepção toma força no marco dos fundamentos que colocam em
oposição o homem e a natureza, e que para Marx e Engels (2007), respalda-se
no desprezo à base real da história, que é a dimensão da produção real da vida,
mas que dada a relação do homem com a natureza em sua unidade, define-a
como processo anterior à história (p.43).
No Anti-Duhring, Engels (2015) analisa o conhecimento produzido sobre
a natureza partindo do pressuposto de que é essencial apreender a natureza em
seu movimento para compreender a própria sociedade. Preocupa-se, assim, em
propor uma leitura que rompa com o hábito de ler a natureza de forma isolada,
a partir de processos divididos. A forma que se dão os estudos sobre a natureza,
desde os seus primórdios, consolida a noção de antagonismos não mediados e
de causa e efeito que só fazem sentido quando lidos fora de uma totalidade.
A compreensão da natureza em seu movimento só poderá ser concebida,
desse modo, a partir de uma leitura dialética que rompe com o pensar metafísico.
No movimento do produzir da vida, o metabolismo que se dá entre o mundo
orgânico e inorgânico, permite a Engels (2015) construir sua crítica a noção do
sr Duhring, que reduz a vida a um processo de composição do mundo orgânico
ao inorgânico, que se encerram em si mesmos, ao que se expressa nos seus

41
Martins- sociabilidade do homem simples.

200
argumentos, “ [...] “ ademais, na natureza, todas as organizações, desde a mais
baixa até a mais alta, têm por base um tipo simples”, e esse tipo “pode ser
encontrado pleno e inteiro, em sua essência genérica [..] ” (Ibidem, p.111).
Engels (2015) refuta o pensamento de Duhring sustentando a
necessidade de compreender não só o modo de existência dos corpos, mas
também ao que se constitui natureza e sociedade, como condição de superação
do pensar que torne imóveis diante dos processos que compõe a vida, o homem,
em sua existência, que a natureza não se realiza de forma metafísica, e sob essa
ótica, a própria sociedade.
Sob a égide do capitalismo a nível global, a concepção de natureza, para
Smith (1988), está imbricada na ideia de progresso atrelado à dominação e
consumo da natureza, como necessária e inevitável à reprodução social. Mas,
ao mesmo tempo, é possível encontrar nos estudos que abordam concepções
sobre natureza, contradições que demonstram a complexidade que envolve a
tentativa de incutir a noção de natureza nas bases do pensar que sustenta a
sociedade capitalista.
Essa sustentação parte da ideia de uma natureza exterior que se apoia
na ideia de Deus que exterioriza sua racionalidade na natureza. De maneira que,
em consonância com PONTY (2000), essa afirmação recai no que seria a própria
natureza em si, que, como externalidade, carrega suas leis dentro do planejado
por Deus e, sendo infinito, automaticamente torna infinita a natureza e suas leis.
O mundo tal qual o conhecemos dependeria então das leis da natureza para
assim continuar infinita, a seguir uma ordem formada por Deus. O homem,
criação posterior à natureza, teria por finalidade dar continuidade à racionalidade
de Deus.
Nesse debate, há um dualismo que apresenta a natureza como externa
ao ser, assim sendo, numa perspectiva não dialética de sociedade/natureza,
mas sociedade e natureza. Essa concepção de natureza externa ao homem,
para Smith (1988), tem início justamente na teoria criacionista, que remete a
Deus a criação de uma natureza primeira em que só posteriormente se dá a
criação do homem. Com a criação do homem, há então uma natureza humana,
sendo essa natural, e portanto, imutável.
A contradição se apresenta na medida em que essa natureza é também
universal, já que o homem necessita dominar a natureza para reproduzir

201
sociedade, o que leva ao questionamento da própria externalidade da natureza
enquanto concepção que permeia o meio científico a sustentar estudos que se
encarregam de criar meios para sua dominação. Sendo assim, intencional ao
desenvolvimento de uma sociedade burguesa industrial em expansão, que o
conceito de externalidade da natureza se torne a concepção de toda uma
sociedade, a nortear a forma de ser e organizar o trabalho:

Os produtores põem as “artes mecânicas” entre si mesmos e os


objetos do trabalho com a finalidade de aumentar produtividade
do processo de trabalho. E se a ciência vai funcionar como um
meio de desenvolver essas “ artes mecânicas”, então ela
também deve tratar a natureza como um objeto exterior. (SMITH,
1988, p.32)

Há de se destacar, no entanto, a concepção de natureza na ciência no


decorrer do processo histórico e desenvolvimento do capitalismo, que assume a
noção de uma natureza universal e está atrelada à materialidade da natureza
enquanto física. Dessa forma, o homem não mais exterior a natureza, mas como
natureza, fazendo parte desta, no que caracteriza a natureza orgânica e
inorgânica como noção de totalidade. Nesse debate, há, no entanto, o
entendimento da dominação da natureza que em parte continua exterior, à
medida que se sustenta que a parte da natureza orgânica dotada de consciência,
enquanto parte superior ao que seja inorgânico ou orgânico, valida o discurso de
domínio, mas não com objetivos voltados às potencialidades humanas em sua
plenitude.
Além disso, parte do que dá base para a dominação da natureza como
motor para o desenvolvimento social, figura a natureza à imagem primitiva e
selvagem. Debate que Smith trava em duas direções, o momento que a
conquista da natureza representa para a expansão do capitalismo e, logo, a ideia
de natureza selvagem serve à medida que sustenta o progresso como direção.
E no outro caminho, que não nega o primeiro, a natureza como “ um lugar para
qual retornar” (Ibidem, p.37).
Em ambos os casos permanece a visão utilitarista da natureza, pois
retornar à natureza, nesse caso, significa a determinada fração da sociedade, o
desfrutar da imagem poética da natureza e, ao mesmo tempo, seu controle:

202
A exterioridade é substituída pela universalidade, pelo menos no
fim de semana. Essa viagem poética começa a partir da
exterioridade da natureza; se a viagem poética para a natureza
começa onde a viagem científica termina; se a viagem poética
começa a partir da exterioridade da natureza que ela tenta
universalizar, a viagem científica aceita a universalidade da
Natureza- como matéria ou como espaço e tempo- que ela tenta
continuamente converter em um objeto exterior ao trabalho.
(SMITH, 1988, p.44).

Vemos, assim, que o dualismo analisado por Smith corresponde às


contradições do conceito de natureza, enquanto exterior e universal, que se
expressa no processo da produção capitalista. A natureza exterior a ser
dominada corresponde ao processo produtivo, em que é matéria-prima a ser
consumida, transformada, vendida ou em que se torna diretamente mercadoria
parcelada e cercada na forma de propriedade. Ao mesmo tempo, não há
produção social sem natureza, e mesmo sob a forma do capitalismo, não é
possível negar o que é essencial à condição humana, mesmo ao transformar em
objeto antagônico essa natureza:

A relação com a natureza é um produto histórico e mesmo


colocar a natureza como sendo exterior à sociedade (um axioma
metodológico fundamental da “ciência positivista, por exemplo)
é literalmente absurdo, uma vez que o próprio ato de se colocar
a natureza exige que se entre numa relação com natureza. Por
mais ideal que esta relação pudesse ser, ela é, todavia, uma
relação com a natureza. (SMITH, 1988, p.49)

O conceito de metabolismo na relação homem/natureza mediada pelo


trabalho, em Marx, representa para Smith (1988), o salto no debate de
concepção de natureza. A produção da natureza se estabelece, portanto, na
relação metabólica, que atrelada ao capital tem como resultado o
desenvolvimento de forma desigual e combinada, possível na produção que
subordina as necessidades humanas ao valor de troca.
A apropriação da natureza na forma do capitalismo se consome no
processo produtivo, e ao mesmo tempo se constitui como força ideológica para
justificar a maneira de ser do capital como mediação social. A questão para Marx
(2011) não está na apropriação da natureza, sendo essa a condição de qualquer

203
produção social, assim sendo, o que é definidor é a forma da apropriação, que
sob o capitalismo, estabelece a propriedade privada.
A propriedade da terra ou a terra enquanto passível de valor tornada
mercadoria impede seu uso como fonte de subsistência imediata e impõe o
trabalho assalariado aos que não podem viver diretamente da relação com a
natureza. Esse é o sentido da apropriação, para Marx, enquanto propriedade
privada que dá sentido inicialmente à acumulação do capital.
A natureza valorizada a partir do processo de produção capitalista é
propriedade, é condição de produção e também matéria-prima, ainda sim, há um
limite que se impõe à forma de produzir do capital, que é o limite de reprodução
da própria natureza em seu ciclo natural. Limites que são constantemente
expandidos na tentativa de controlar a produtividade da natureza sobre circuitos
e modelos de produção intensivos.
Essa relação metabólica com a natureza, sob o capitalismo,
inevitavelmente assume a forma de alienação, sendo dada ao homem e à
natureza a condição de mercadoria. Mas o que é a natureza? Para Ponty (2000),
um objeto enigmático, um objeto que não é inteiramente objeto; ela não está
inteiramente diante de nós. É o nosso solo, não aquilo que está diante, mas o
que nos sustenta (p.4). “A natureza é ao mesmo tempo passiva e ativa, produto
e produtividade, mas uma produtividade que tem sempre necessidade de
produzir outra coisa” (Ibidem, p.59).
A natureza, segundo Ponty, não pode ser Deus, e não representa um
produto final, há um movimento na natureza, sendo assim produto e produtora.
E só movimentando nossa percepção para o que é unidade entre nós e a
natureza, é que será possível compreender o seu sentido. Assim, a superar o
idealismo que nos afasta do que seja o mundo que construímos não como seres
inertes à mercê de uma finalidade previamente determinada.
Ao analisar a natureza na perspectiva do valor de troca e do valor de uso,
Fontenele (2013) remete-se à teoria do valor em Marx, que expressa o valor
dado as coisas a partir da organização social e do trabalho voltada à produção
de mercadorias, de forma que a natureza a ser apropriada enquanto recurso e
dotada de valor, aparece como externalidade:

204
As sociedades, ao reproduzirem as condições de sua existência,
estabelecem relações vitais com a natureza, as quais, em meio
ao desenvolvimento histórico desvendam a objetividade e a
materialidade dessas relações em suas múltiplas
manifestações. É através do trabalho e do tempo histórico que
as sociedades ao produzirem e reproduzirem sua condição
material de existência fazem como unidade com dois elementos:
valor de uso e valor de troca. (Ibidem, p.36)

A natureza como externalidade materializa-se enquanto alienação, à


proporção que se consolida a organização social mediada pelo capital. As
sociedades comunais e comunidades tradicionais, ao ter sua condição de
existência dada na relação direta com a natureza, sem a finalidade imediata do
valor de troca, caminham no sentido contrário ao da natureza como
externalidade. Vemos, assim, o sentido da apropriação apontado por Marx, pois
no caso das comunidades pesqueiras, a apropriação da água não é mediada
pela propriedade privada, ela é antes coletiva, e nos moldes da atividade
artesanal coordenada pela produtividade da própria natureza, o modo de vida
que se estabelece não é controlado pelo tempo do capital.
Nas comunidades que sustentam elementos que não configuram a
produtividade capitalista, verifica-se a práxis da vida ao conceber o movimento
da natureza como condição de existência, como nas verificadas comunidades
pesqueiras pesquisadas. Nessas, a maneira de apropriar-se da natureza, na
pesca-artesanal, está articulada à captura dos pescados, ao conhecimento dos
movimentos das marés, das espécies aquáticas e da movimentação dos
cardumes, ao mangue, às técnicas de captura de mariscos crustáceos. Nesse
sentido, há uma compreensão dos que vivem da pesca, da manutenção dos
ambientes integrados terra e água, como condição do viver da pesca.
Diegues (1983) aponta os diferentes níveis de captura atrelada às
finalidades da pescaria e suas consequências para os estoques pesqueiros:

Um pescador inserido ainda numa economia natural tem por


objetivo na captura o aprisionamento dos meios de subsistência
para si e sua família. O excedente eventual é encaminhado para
o cumprimento de certas obrigações e rituais (consumo em
certas cerimônias comunitárias). No outro extremo temos o
armador de pesca que muitas vezes pode até empregar técnicas
similares de captura, mas cujo objetivo de produção é o lucro
monetário, a reprodução do capital, etc. (Ibidem, p.85).

205
Dessa diferença parte o sentido da pesca-artesanal em sua relação com
a natureza, e da atividade voltada simplesmente ao objetivo do lucro, na medida
em que atividades pesqueiras voltadas à produção capitalista, ao esgotar os
recursos pesqueiros da localidade, não encontram mais sentido de permanência.
No que se refere às comunidades pesqueiras artesanais, as dificuldades diante
da diminuição dos recursos pesqueiros são enfrentadas, no recriar-se pescador
a partir das relações de comunidade e da compreensão da natureza como
condição de suas próprias vidas, há um respeito, de tal modo, aos limites
impostos pela natureza.
A pesca-artesanal enquanto atividade condicionada aos ciclos naturais da
natureza, inevitavelmente, organiza-se em torno do tempo que se opõe à
produtividade capitalista. Os instrumentos de trabalho utilizados na pesca-
artesanal, nesse sentido, diferenciam-se da própria capacidade de captura, e a
organização do trabalho, em torno da atividade que se dá no domínio das
técnicas e na produção dos instrumentos de trabalho voltadas às especificidades
dos recursos pesqueiros disponíveis. Há um conjunto de elementos em torno da
relação trabalho/natureza na pesca que define a forma dessa relação.
A reprodução da vida, fora dos princípios da “civilização” do modo de
produção capitalista, é considerada como primitiva e se estabelece, hoje, como
tradicionais, ao se definir como modo de vida na negação da concepção
capitalista de desenvolvimento e de progresso.
Na afirmação da existência de comunidades tradicionais, reconhece-se
um modo de vida a se pôr em outra direção ao modo de vida dominante. Isso,
no entanto, não nos permite visualizar isolamento ao capital, dado seu modo de
expandir-se e reproduzir-se. Sendo assim, apontamos a forma mercadoria como
mediação nas relações que compõem o modo de vida tradicional, tendo sua
permanência e resistência atrelada ao trabalho em sua ontologia, própria da
condição humana, mas ao mesmo tempo não deixando de se inserir na
necessidade de consumo no mundo da mercadoria.
Essa inserção compromete o metabolismo das comunidades pesqueiras
com a natureza, quando dada suas especificidades possíveis no modo de
organização do trabalho e apropriação da natureza, não se tem a natureza como
exterioridade. Diegues (1983) examina essas questões e as vê como mudanças
206
que rompem com os elementos estruturantes no que define as comunidades
pesqueiras artesanais como modo de vida tradicionais:

À medida que o peixe se transforma numa mercadoria, a


percepção dos recursos se modifica. Instala-se o
comportamento de rapina; os recursos são vistos como
limitados, e o sucesso da pescaria depende da pressa com que
se processa a captura. Impossibilitados de proteger suas áreas
tradicionais de pesca, já invadidas, os pescadores locais laçar-
se-ão também na pesca predatória. (Ibidem, p.102).

Para Diegues, há um caminho ao abandono da pesca-artesanal, no que


concordamos com a leitura do comprometimento da percepção sobre a própria
natureza. A necessidade de captura em quantidade e velocidade modifica a
compreensão sobre a natureza, que passa cada vez mais a ser encarada a partir
da possibilidade de abastecer o mercado de pescados.
No entanto, mesmo ao tornar-se predatória diante das necessidades de
mercado, a pesca-artesanal, em seus níveis de captura e de tecnologia
empregada, não se configura no patamar do que represente a pesca industrial.
Como é o caso no município de Pirambu/SE na pesca de alto-mar, onde a
organização do trabalho permanece em torno da família e da comunidade. Os
donos dos instrumentos de trabalho são pescadores e há o reconhecimento da
natureza enquanto sustento, além da identidade da comunidade que configura o
próprio município:

A pesca o que mudou um pouco é que na época era mais


artesanal, era mais braçal, hoje a gente já tem um guincho, ajuda
a puxar o material que antes puxava na mão. As condições das
embarcações melhores que antes era menor, a forma de
aconchego da embarcação que hoje já tem um belichezinho,
fogão que antes era carvão hoje é gás. Empresa aqui não tem
nenhuma não, é empresa porque tem a estrutura de empresa,
tem que ter, tem funcionário, mas é o pessoal daqui. (J- 53anos-
pescador artesanal, Pirambu/2016.)

Camarão é uma cria da natureza, é por época, se inverno é bom


você tem fartura, você tem feijão, é que nem o camarão, se tiver
inverno bom, camarão é à vontade, essa época agora, mas
mesmo assim aqui depende muito do tempo, se tiver o tempo
bom o barco pesca, mas se tiver ventando, o mar brabo tal aí o
barco não pesca. A produção depende muito do inverno
também. (J- 53anos-pescador artesanal, Pirambu/2016.).

207
Chama marisqueiras, mas na verdade elas são pescadoras,
porque é família né? As vezes o marido, o pai ou o irmão tá no
mar pescando, e elas tão aí cuidando dessa parte. Sem elas ali
não existia pescaria, porque nós não tem fábrica para poder
beneficiar o camarão, é todo feito manual, é todo feito artesanal.
(M- 47 anos- pescador artesanal e Presidente da Colônia de
Pirambu/2016).

A maioria das mulheres aqui trabalham na pesca, porque é o


único meio de vida que tem aqui em Pirambu, a gente cata
(camarão) e pesca também as vezes, mas não no alto mar, no
rio. (Z- 39 anos- pescadora artesanal, Pirambu/2016)

A inserção da lógica de mercado nas comunidades tradicionais se impõe


de diversas formas, desde a propriedade privada em terra, a necessidade de
comercialização dos pescados e do consumo de outros produtos. Mas há algo
que define o trabalho como não subjugado completamente ao capital, à medida
que a atividade pesqueira artesanal se apropria coletivamente das águas. O
conhecimento dessa natureza mediado pela prática da pesca permite que se
estabeleça mesmo onde a captura tenha se tornado uma prática completamente
voltada ao mercado, relações que se reproduzem como garantia do viver da
pesca. O sentido ontológico do trabalho permanece à medida que o objetivo é
permanecer-se pescador e garantir a permanência familiar e da comunidade.
A ontologia do trabalho no nosso debate é trazida na perspectiva de
compreender a permanência do modo de vida dos pescadores artesanais e,
nesse sentido, de comunidades tradicionais. Como afirmamos anteriormente, é
o trabalho que, para Lukács (2013), estabelece a peculiaridade do ser social, e
ao mesmo tempo da natureza, que enquanto orgânica e inorgânica, teria sua
forma concreta transformada continuamente. É somente a partir do trabalho que
se produz esferas da vida qualitativamente novas e singulares.
Do ponto de vista ontológico, é a natureza orgânica que depende da
natureza inorgânica que possui existência autônoma, mas nessa relação de
dependência não há possibilidade de abolir a natureza inorgânica que
fundamenta o reproduzir da natureza orgânica. Com a práxis da vida cada vez
mais social, não se extingue o metabolismo com a natureza, condição de
existência, mesmo com a eminência de uma prioridade ontológica:

208
Do mesmo modo, o ser social pressupõe natureza orgânica e
inorgânica e, se não tiver essas duas como fundamento, não lhe
é possível desenvolver as suas próprias categorias, distintas
daquela. A partir de tudo isso, torna-se possível uma ordenação
dos níveis do ser sem pontos de vista valorativos, sem confundir
com estes a questão da prioridade ontológica, da independência
e dependência ontológicas. (LUKÁCS, 2013, p.191)

Essa relação de dependência define a natureza inorgânica como parte da


condição de existência do homem, a consciência de si e de sua atividade é o
que define a priori, o não estranhamento do que compõe sua humanidade. É por
meio da natureza que o homem se autoproduz, e é por meio da produção que o
torna singular enquanto homem. Para Marx (2010), a natureza se torna ao
mesmo tempo produto do trabalho e condição de realização do trabalho e do
próprio homem:

Praticamente a universalidade do homem aparece precisamente


na universalidade que faz da natureza inteira seu corpo
inorgânico, tanto na medida em que ela é 1) um meio de vida
imediato, quanto na medida em que ela é o objeto/matéria e o
instrumento de sua atividade vital. (Ibidem, p.84).

O ser social surge como uma etapa singular da atividade entre o orgânico
e o inorgânico, e com ela a consciência humana, condição do produzir relações
qualitativamente novas resultantes de um processo histórico. É nesse sentido
que Lukács define o pôr teleológico diferente da consciência animal que se
adapta ao meio ambiente, enquanto a consciência possibilita a transformação da
natureza em outro patamar que vai além de uma simples adaptação.
A consciência é produto do metabolismo com a natureza. Diante da
unidade sociedade/natureza, a alienação se estabelece, e essa unidade é
utilizada para sustentar concepções que afirmam a condição imutável do
homem, na negação do que seja social. E o devir do homem, como possível de
construir e transcender através do trabalho determinadas relações sob o modo
de produção capitalistas que emergem como naturais a condição humana.
Lukács (2015) reforça a necessidade de uma leitura crítica e dialética
sobre a natureza, já que a maneira como se constitui o nosso conhecimento
sobre esta se dá a partir das mediações que se manifestam na sociedade, nesse

209
caso, a sustentar sob o processo de alienação, o modo de produção do capital.
O ponto desse debate está na compreensão da relação sujeito e objeto enquanto
antagônicos, sendo a sociedade/natureza unidade à objetividade possível de ser
transformada e, assim, descartada sob uma leitura não dialética:

Obviamente, a sociedade surgiu da natureza. Obviamente, a


natureza e suas leis já existiam antes da sociedade (portanto,
antes dos seres humanos). Obviamente, seria impossível que a
dialética se tornasse efetiva como princípio objetivo de
desenvolvimento da sociedade se não estivesse ativa, se não
existisse objetivamente já como princípio de desenvolvimento da
natureza anterior à sociedade. Porém, disso não decorre nem
que o desenvolvimento social não pudesse produzir formas
novas, igualmente objetivas, de movimento, novos fatores
dialéticos, nem que os fatores dialéticos no desenvolvimento da
natureza pudessem ser conhecidos sem a mediação dessas
novas formas socialmente dialéticas42. (Ibidem, Grifos do autor,
p.91)

O conhecimento dialético no processo de objetividade da vida dentro do


movimento histórico constitui-se social, mas só é possível a partir de um
movimento que constitui a própria natureza. Se o nosso conhecimento é
determinado por mediações existentes em determinada estrutura de sociedade
onde a alienação é alicerce, ainda assim, não exclui o que é ontológico na
constituição do ser e, nesse sentido, o produzir de um conhecimento que nos
conecte com o ser para si.
A análise do conhecimento do metabolismo com a natureza mediado pela
estrutura social e econômica existente situa essa relação no processo histórico,
o que remete o nível de conhecimento da natureza ao desenvolvimento da
sociedade e suas capacidades humanas. No entanto, a unidade
sociedade/natureza utilizada para definir um modo de socialidade eterna, põe-
se no dualismo entre natureza e história, que consiste em justificar um
subjetivismo à história, que sendo produzida numa relação não antagônica entre
o sujeito e o objeto, não se constitui objetividade.
Por compreender o desenvolvimento da sociedade a partir do
metabolismo sociedade/natureza, é que Lukács (2015) rebate esse dualismo,
negando o mecanicismo que se estabelece nessa leitura e assim reafirma o

42
Destaque do autor

210
processo dialético existente na relação entre a estrutura econômica da
sociedade e o metabolismo entre sociedade e natureza, de forma que a
objetividade, nessa medida, passa a ser dialética (p.97). Essa objetividade, no
entanto, não necessariamente produz o conhecimento dialético dado às formas
de mediação dominantes na estrutura social, mas “Em outras palavras, a
dissolução, a superação, de uma contradição dialética é produzida pela
realidade no processo histórico real” (p.98).
É por isso que tratar da produção da natureza é falar sobre a relação
indissolúvel e dialética entre o sujeito e o objeto, que dá sentido ao ser social.
Ainda que a natureza exista sem o ser social, o contrário não é verdadeiro. A
capacidade peculiar que configura o que é humano diante da natureza, a
consciência do trabalho ao transformá-la, torna social essa natureza à medida
que o processo de desenvolvimento da sociedade o é em escala global, a
caracterizar o próprio modo de produção capitalista. Isto posto, é central o
trabalho em sua condição ontológica a estabelecer o conhecimento real do que
trate a relação sociedade/natureza.
As categorias utilizadas por Lukács na explicativa da ontologia do
trabalho, condição do ser social, sustentam-se na relação do que é natural ao
que é social, em relações que se complexificam. Das cadeias causais
imprescindíveis ao pôr teleológico, ao espelhamento que estabelece o sujeito e
o objeto, ao mesmo tempo, a relação de dependência, ao ponto que o espelhar
da realidade na consciência é que precede o trabalho que transforma natureza,
depois torna-se social como o próprio homem.
Do espelhamento surgem as peculiaridades diante de alternativas sempre
novas no movimento da práxis social, sem jamais se desassociar do
metabolismo sociedade/natureza em seu objetivo inicial e próprio da condição
humana, que é produzir valores de uso. O devir do homem está na reciprocidade
entre o homem e a natureza, no que a própria prioridade ontológica de
reprodução biológica ante a econômica confirma essa relação.
Produzir natureza, nesse sentido, trata-se da sociabilidade da vida
humana, pois mesmo a se compreender sujeito e objeto, não há reprodução do
ser social sem a transformação dessa natureza. O caráter social do ser em sua
humanidade está diretamente atrelado ao que lhe dá condição de se reproduzir.
Nesse sentido, compreender homem e natureza não passa por tratar a natureza

211
enquanto exterioridade, com o risco que se assume necessário ao capitalismo
de negar a própria humanidade:

Como o ser social surgiu da natureza orgânica, ele forçosamente


preserva características ontológicas constates de sua origem.
Esse elo- no processo real de reprodução, repetidamente
desfeito e sempre restaurado através de mudanças- entre as
duas esferas do ser é o homem enquanto essência biológica.
Sua reprodução- biológica- não é só a incontornável condição
do ser social, mas também um dos polos do próprio processo de
reprodução, cujo outro polo é formado pela própria totalidade da
sociedade (LUKÁCS, 2013, p.201)

A socialidade da vida humana é o próprio desenvolver da sociedade e do


processo de trabalho que constrói cada vez mais mediações, a relação direta
com a natureza como necessária de forma imediata à reprodução da vida. São
as totalidades complexas que Lukács (2013) se refere, mas diante da
irreversibilidade da condição ontológica. As alternativas no caminho para o que
seja essa totalidade materializam-se no metabolismo da sociedade com a
natureza. O devir do homem se expressa nesse metabolismo, sua singularidade
se objetiva a partir do trabalho na mediação dessa relação.
Essa singularidade se dá através dos pores teleológicos, de forma
diferente da reprodução da natureza, que não é guiada por nenhum tipo de
consciência, de forma que o ser social é assim identificado enquanto gênero
humano a partir da sua singularidade, ao tempo que uma segunda natureza se
apresenta como fruto do desenvolvimento da mediação
homem/trabalho/natureza. “Contudo, se fizermos uma abordagem ontológica
dessa questão, compreenderemos imediatamente que toda essa segunda
natureza representa uma transformação da primeira que foi efetuada pelo
próprio gênero humano” (Ibidem, p.255).
Ao assumir essa segunda natureza, na negação do que seja a unidade
homem/natureza, a prioridade e centro da forma de desenvolver da sociedade
torna-se garantir determinado modo de produção conforme forma de
organização social em dado período histórico. Dessa forma, a sociedade voltada
à reprodução do capital tem como objetivo a continuidade da reprodução do
modo de vida que a sustente, e ao negar essa unidade, reproduz contradições
que negam a própria condição humana.
212
A unidade que analisamos nas comunidades pesqueiras passa pela
condição do exercício do trabalho. A natureza não como barreira natural a ser
superada, mas o conhecimento da natureza como condição do ser pescador.
Isso não revela que o ser que estende sua corporeidade na unidade com a
natureza, tenha seus pores teleológicos, suas necessidades apenas voltadas à
reprodução da vida imediata. O que o torna singular em relação à natureza é o
produzir consciente, que permite justamente que novas necessidades para além
do reproduzir biológico se formem.
Uma sociedade cada vez mais social, a refletir-se sobre o modo de
produção capitalista, inclui as comunidades pesqueiras estudadas. Mesmo
diante da pesca-artesanal a realizar-se, sua produtividade está ligada à
produtividade da natureza em seus ciclos naturais. O pescador enquanto ser
social produz a si mesmo e também produz algo que não corresponde aos ciclos
naturais das marés, sua sociabilidade:

Ao tratar do trabalho já pudemos ver que, através dele, surgem


tanto subjetiva como objetivamente conexões, processos,
objetividades etc., que representam algo qualitativamente novo
em relação à natureza, sendo que, todavia, sempre se deve
considerar que todo esse novo só é possível quando ele realiza
as leis da natureza em novas combinações. (LUKÁCS, 2013,
p.402)

O qualitativamente novo produzido pelo pescador artesanal na


perspectiva de uma sociedade desigual, no que diz respeito ao acesso ao que é
qualitativamente novo produzido pelo conjunto social, coloca-o em um lugar de
subordinação diante da totalidade social. A unidade sociedade/natureza das
comunidades pesqueiras é a unidade que remete ao que é ontológico no ser.
Mas, esse ser, pescador, tem como mediações na práxis da vida, também a
produção de toda sociedade e, nesse sentido, seus pores sociais não se
restringem a garantir a unidade sociedade/natureza.
A satisfação das necessidades do pescador artesanal não se dá apenas
na relação imediata com a natureza. Faz-se necessário tirar dessa relação os
meios necessários que lhes possibilite ter acesso ao que só é possível por meio
do consumo. Nesse caso, os trabalhadores, ao viver da pesca, permanecem
entre o que é a essência do ser pela forma como se dá sua práxis no trabalho,

213
ao mesmo tempo em que se aproximam de relações que levam ao
estranhamento desse ser no outro, deste modo, da sociabilidade que define a
condição de comunidades a viver da pesca.
A relação dada na pesca-artesanal é o produzir da natureza no sentido
que essa produção passa a se afirmar em uma sociedade cada vez mais social,
em que as mediações que levam aos pôres teleológicos são cada vez mais
sociais, a pesca se dá na relação direta com a natureza a partir do ciclo produtivo
dessa natureza. As sociedades primitivas são assim determinadas a partir do
nível de domínio da natureza, sendo que, para Lukács (2013), atividades como
a caça, coleta e a pesca, praticadas por estas não transformam a natureza, ainda
que os homens ao exercerem essas atividades já tenham ido além do estado de
naturalidade de sua existência (p.473).
No entanto, essas práticas, mesmo que diretamente da natureza não
modifiquem seus ciclos reprodutivos, passam a ser cada vez mais sociais à
medida que a natureza também é socializada. A natureza que figura como objeto
do metabolismo compreende a totalidade da sociedade. A relação sujeito/objeto
entre o pescador e a natureza não se dá como exterioridade, como objetividade
alienada, está na condição da objetividade dada à natureza que é de sua própria
vida.
A possibilidade do homem de exercer todas as potencialidades humanas
depende primeiramente de sua reprodução biológica, por isso o debate da
ontologia no que constitui o ser é essencial para estabelecer o devir do homem.
Assim sendo, as sociabilidades que resguardam essa relação com a natureza
como condição primeira de sua identidade e existência representam uma
afirmação do que seja a relação sociedade/natureza na constituição do ser
social.

4.1- Natureza e a produção do espaço na pesca

Na leitura da generalidade humana e sua singularidade diante da


natureza, o trabalho ao mediar essa relação é a base para construção do espaço
geográfico e da socialização da natureza, que se dá de forma diferenciada,
mesmo diante de um modo de produção a nível global que impõe o seu

214
sociometabolismo. Mas pensar a base para diferenciação desse espaço
geográfico somente a partir da diferenciação encontrada na natureza levar-nos-
ia à teoria determinista, de forma que a relação que caracteriza comunidades
tradicionais estariam limitadas à produtividade encontrada na natureza em suas
localizações.
A relação das comunidades pesqueiras artesanais com a natureza as
caracteriza enquanto comunidades tradicionais, o acesso a ambientes que
permite a prática da pesca é premissa à atividade, mas só compreendendo os
pescadores em sua vida cotidiana, no movimento do processo histórico é que
podemos destacar suas singularidades. O trabalho na pesca produz relações e
transforma a natureza ao ponto que se identifica de forma diferenciada o modo
de vida dos pescadores, e de que forma se objetiva essa práxis enquanto relação
sociedade/natureza.
O trabalho enquanto princípio do ser social, ao transformar a natureza
e a si mesmo, produz espaço de forma diferenciada. Na medida que a sociedade
se complexifica com a divisão do trabalho em diferentes níveis em diferentes
escalas para a expansão do capital, a produção da vida social produz de forma
diferenciada a própria natureza:

A primeira presença do homem é um fator novo na diversificação


da natureza, pois ela atribui às coisas um valor, acrescentando
ao processo de mudança um dado social. Num primeiro
momento, ainda não dotado de próteses, que aumentam seu
poder transformador e sua mobilidade, o homem é criador, mas
subordinado. Depois as invenções técnicas vão aumentando o
poder de intervenção e autonomia relativa do homem, ao mesmo
tempo em que se vai ampliando a parte da “diversificação da
natureza” socialmente construída. (SANTOS, 2002, p.131)

É verdade que a diferenciação da natureza em princípio é base para


determinadas atividade produtivas. Em um primeiro momento da expansão
capitalista, o domínio e conquista da natureza inorgânica e orgânica transforma
em valor de troca, a vida e sua base de reprodução, de modo que as conquistas
territoriais do período colonial expandem também a divisão do trabalho a nível
mundial, tendo “a diversificação da natureza como processo e resultado” (p.132).
De uma diferenciação natural encontrada na forma de ser da natureza, estrutura-

215
se uma diferenciação cada vez mais social dessa natureza diante do processo
de trabalho.
O trabalho subsumido ao capital, de forma a guiar a produção capitalista
do espaço, invariavelmente produz uma sociedade de classes, da qual Smith
(1988) se ocupa a analisar apontando as contradições do modo de ser do capital
e sua tendência para diferenciação da produção do espaço e da natureza a ser
apropriados de forma a estabelecer o desenvolvimento desigual e combinado
como forma da sua lógica espacial.
A concentração de determinadas estruturas sociais compreende a divisão
do trabalho através de determinadas atividades produtivas, no que remete à
própria divisão cidade e campo como suporte à expansão do capitalismo. De
maneira que a cidade aparece como o lugar da concentração do capital, diante
do campo como lugar da produção de alimentos, de matérias-primas e do próprio
retorno à natureza. Divisão que ganha outros contornos com a própria
necessidade de acumulação e reprodução do capital, a exemplo do
agrohidronegócio como atividade que rompe com a estrutura do campo cidade
como momentos diferenciados da produção capitalista:

Numa economia mais desenvolvida, a apropriação das


vantagens naturais deixa de ser acidental. Com efeito, as
diferenças naturais são internalizadas como a base para uma
diferenciação social sistemática do processo de trabalho. As
diferenças qualitativas na natureza se traduzem em diferenças
qualitativas e quantitativas na organização social; a divisão
social do trabalho expressa-se espacialmente. (SMITH,1988,
p.153)

A expressão espacial da tendência à diferenciação do espaço funciona


junto à tendência para igualização, que se expressa na necessidade do capital
de expandir-se continuamente, e assim sua lógica de reprodução que materializa
conforme modo de produção a mercadorizar o trabalho e a natureza como
recurso. A organização social desse modo de produção, ao se expandir
enquanto lógica de reprodução social, torna-se universal em seus objetivos de
exploração do trabalho e da natureza como garantia de seu sociometabolismo.
A natureza, dessa maneira, passa a ser apenas objeto para garantir o
metabolismo do capital, de forma a ser subestimada (Ibidem, p.171).

216
A tendência do capital à acumulação define a dominação da natureza e
da produção do espaço a esses objetivos, o que amplia continuamente sua
capacidade destrutiva. Essa regulação a definir o modo fetichizado de
reprodução da sociedade, para Harvey (2010), expressa-se no processo de
globalização como anseio da classe que representa o capital a configurar a
expansão geográfica como de mercado nos moldes da dominação:

Se o desejo de conquistar o espaço e a natureza é uma


manifestação de algum anseio humano universal ou um produto
específico das paixões da classe capitalista jamais saberemos.
O que pode ser dito com certeza é que a conquista do espaço e
do tempo, assim como a busca incessante para dominar a
natureza, há muito tempo tem um papel central na psique
coletiva das sociedades capitalistas. (Ibidem, p.130)

Diante dessa força constituída do capital, sob a forma de ser da


sociedade, ao que prevalece a conquista do espaço e da natureza enquanto
racionalidade de uma relação sujeito/objeto antagônicas, as tendências
atribuídas ao capital em seu sociometabolismo remete a natureza à condição de
recursos naturais a serem explorados, de forma a serem vendidos e consumidos
conforme a estrutura de acumulação capitalista que se tenha empreendida.
A transformação da natureza aliada à acumulação capitalista é tratada por
Harvey (2010) como destruição criativa da terra, representada pela dominação
dos recursos naturais, como desenvolvimento de práticas humanas voltadas à
produção de uma segunda natureza. Mas mesmo diante de estruturas e
tecnologias voltadas à garantia dessa dominação destrutiva, aponta-se um limite
para essa acumulação que não pode ser contornado, justamente a subestimar a
natureza na relação que define a própria sociedade.
Ainda assim, modos de vida diferenciados a se relacionar com a natureza
instituem sua sociabilidade no que represente a vida cotidiana e seus
significados. O cotidiano a representar o lugar dos conflitos, a se identificar os
problemas concretos da forma de relacionar-se com a natureza, à medida que a
forma de produzir, exercer trabalho enquanto atividade criadora e também
repetitiva a definir determinada forma de organização. É no pulsar da vida
cotidiana que Lefebvre (1991) questiona se caminhamos para uma

217
homogeneidade mundial ou se as diferenças e resistências levarão a uma
desestruturação (p.76).
A vida cotidiana dos pescadores artesanais, ao reproduzir seu modo de
vida, não deixa de estar imerso na lógica capitalista, mas se põe como o não
homogêneo. As contradições que se manifestam na vida cotidiana, para Martins
(2008), emergem da reprodução social enquanto reprodução ampliada do
capital, ao modo que a repetição aludida ao cotidiano também cria o novo diante
do produzir da história, dado ao homem a capacidade de criar e de ser criatura
de si (p.57). Assim, as contradições, ao gerar conflitos com a própria condição
humana, só podem ser transformadas pelo próprio criador.
Nesse bojo, os conflitos existentes e identificados pelas próprias
comunidades pesqueiras artesanais são resultados do modelo de controle dos
recursos naturais. Tendo no agronegócio, na construção de hidrelétricas como
matriz energética, no turismo e na especulação imobiliária a concretização de
práticas que impedem a permanência de comunidades pesqueiras, no que o
arranjo produtivo é sustentado pelo capital privado e pelo Estado:

A intervenção de empresas públicas e privadas para ganhar


sustentação e gerar o desenvolvimento econômico tão falado
ocasionam impactos tão nefastos que inviabilizam o
funcionamento da natureza, assim como o funcionamento das
comunidades que ficam em situação de vulnerabilidade. Essas
intervenções geram injustiça ambiental e afetam singularmente
a saúde humana, assim como contaminam o ambiente e
esgotam a natureza- que trona incapaz de recuperar-se em seu
tempo hábil. (CONSELHO PASTORAL DOS PESCADORES,
2016, p.11)

A questão que se coloca para a pesca-artesanal passa pelo


sociometabolismo do capital como relação dominante e universal em sua lógica
de expansão. No entanto, as comunidades pesqueiras, ao se relacionarem
diretamente com a natureza como meio de vida voltada a sua existência a partir
da identidade que está no trabalho, não estabelece nesse metabolismo o objetivo
da produção capitalista. Mesmo parte das relações capitalistas de produção, a
natureza para a pesca-artesanal não se constitui objeto fora de si muito menos
subestimado, já que é condição vital de reprodução de suas vidas imediatas.

218
A definição das culturas tradicionais, para Diegues (1996), compreende o
uso da natureza enquanto recurso natural repletos de significados a essa cultura
que justamente se objetiva enquanto modo de vida. Nessa definição na relação
com a natureza, destaca-se a relação de dependência e de simbiose que institui
o modo de vida a partir do ciclo natural da natureza e, consequentemente, o
conhecimento dessa natureza e o desenvolvimento de técnicas para a
apropriação desses recursos que se caracterizam por um baixo impacto dado
seu modo artesanal (p.87).
Por isso, a produção do espaço dada à pesca-artesanal, é tida enquanto
singular, mesmo ao se configurar território do capital, que se expande, mesmo
sem monopolizar o uso da terra e das águas, lugar de vida e trabalho das
comunidades pesqueiras. O cotidiano dessas comunidades estabelece, nesse
sentido, um produzir da natureza que não parte da produção social voltada ao
capital. Santos e Almeida (2008) denominam estas de cultura desviantes, à
medida que a prática dessas comunidades se dá de forma dupla, tanto na
inserção de práticas que remetem ao modo de produção dominante, como ao
vivenciar práticas da economia capitalista.
O cotidiano como expressão do vivido das comunidades pesqueiras se dá
na apropriação da terra e da água no exercício da pesca, mas também como
lugar de moradia e de relações comunitárias, o que para Maldonado (1994), ao
tempo que esses dois meios passam a ser reivindicados como de direito dessas
comunidades, a territorialidade se estabelece como representação do espaço
que expressa a organização social das comunidades pesqueiras:

Sendo o homem um ser que interpreta e compreende


constantemente a si mesmo e aos outros na interação social,
servem-lhe o tempo e o espaço como pré-concepções para
pensar a natureza, o mundo que constituirá, no seu confronto
com ela e as relações em que entrará com outros indivíduos
nesse mesmo processo. E é nos modos como se movimentam,
se articulam e se situam em termos espaciais e temporais, que
os homens se distanciam e se aproximam, perecem ou se
excluem, construindo as organizações sociais em que vivem.
(Ibidem, p.36)

O estar na natureza que propicia a prática da pesca, sem dessa se


apropriar individualmente, nos marcos da propriedade privada, propicia,

219
conforme Maldonado (1994), relação de igualdade que se converte também na
cooperação existente entre os pescadores na realização do trabalho, como
também nas relações de comunidade. A forma de se apropriar da natureza
define o não estranhamento do outro, e da própria natureza, o que constitui um
produzir de relações que resultam nas diferenças apontadas nas reconhecidas
comunidades definidas tradicionais:

A gente pescava com seis homens, seis sete homens, só não


tinha motor, era no remo, era família, era qualquer um, quando
não tinha quem comprasse aí dividia, naquele tempo tinha muito
cambista aqui, era difícil não ter cambista, dava muito peixe
também no verão. (G- 68 anos- pescador artesanal, Bairro
Industrial/2017)

A organização maior é das marisqueiras, delas com os maridos,


porque eles trabalham juntos, é tipo uma coletividade, a mulher
vai com o marido pescar, o filho espera para quando chegarem
cozinhar mais eles ou quebrarem juntos, trabalham todos
sentados, quebram, desfiam, colocam no freezer, porque agora
nessa temporada mesmo, era chegando e vendendo. (A- 43
anos, pescadora artesanal, Porto do Mato/2016.)

A práxis social que define a singularidade descrita na pesca-artesanal,


enquanto formas de objetividade da atividade, o são sem um afastamento total
das barreiras naturais, que se tornam, na verdade, uma extensão da vida
cotidiana dos trabalhadores da pesca, nesse sentido não como barreiras, mas
como limites conhecidos e respeitados a definir seu modo de vida. No processo
histórico, o ser social se torna, cada vez mais social, seus pôres teleológicos,
diante do viver diretamente da natureza conserva o pôr que tem origem no
trabalho ontológico.
O metabolismo do pescador com a natureza implica na materialidade em
seu cotidiano, de uma identidade social que permanece e se expressa em
comunidades pesqueiras ao longo da história, enquanto processo social a se
configurar em diferente estruturas e organizações sociais. A natureza socializada
é o sustentáculo desse metabolismo, que no modo de produção capitalista
mediado pela propriedade privada, é lido como peculiaridade. O desfecho é o
conflito irremediável entre a forma de socializar natureza de comunidades
tradicionais e na sociedade voltada à reprodução do capital.

220
A prática social voltada à pesca-artesanal carrega em si a tendência à
diferenciação, enquanto expressão da divisão social do trabalho, mas também a
tendência à igualização, na medida que se articula a partir de uma sociedade
que se organiza a partir da mundialização do capital a determinar o modo de
socialidade do ser social. Sendo assim, não há uma natureza diferenciada
apropriada pelas relações provenientes da atividade pesqueira, mas um modo
diferente de se relacionar.
As mudanças efetivadas ao longo do processo social, que orientam os
pôres teleológicos do ser social, apresentam condições de existência real que
se movimentam no sentido de impor uma única lógica de apropriação da
natureza. O desenvolvimento social manifesta-se ao exprimir as relações de
consumo como única forma de estimular as potencialidades humanas criativas,
sendo assim, a produção continua e crescente de mercadorias novas, que
implica na exploração contínua e destrutiva da natureza.
A preservação da natureza atribuída às comunidades tradicionais está
ligada à forma como se inserem no circuito de produção e consumo. De qualquer
maneira, preservar porções da natureza numa leitura próxima da
conservacionista, de natureza isolada, é uma falácia desmistificada pelas
próprias comunidades que identificam as mudanças na reprodução da natureza
e as identifica como oriundas de estruturas organizadas em torno do que se
expressa como desenvolvimento:

Esse empreendimento grande, o que a gente tá pensando, onde


é que vai cair essas fossas? Com certeza dentro do rio né?
Condomínio já é uma preocupação, onde vai cair esses dejetos.
A Brama já cai dentro da maré, a Brama na pesquisa o pessoal
já viu, o esgoto da Brama dentro da maré, aí pende para o outro
lado de cá outro condomínio que tão fazendo, aí aonde vai cair
essa sujeira? Na verdade, nós tamo cercado de poluição. Já tem
esse empreendimento que fizeram agora do Recanto Verde que
já cai o dejeto dentro do rio doce. Aí daqui uns dias vamos tá
cercado de poluição, não sabe nem como é que vai viver. (V- 45
anos- pescadora artesanal, Povoado Muculanduba/2018)

Eles ajudaram a gente a formar a equipe, o grupo, criaram o


estatuto, a ata, tudo para formar a associação eles fizeram,
quando nós decidimos que queríamos dar direito ao pescador a
ter defeso e ter direito aos homens também entrar, eles
largaram, disseram que não trabalhariam mais com a gente, e
não derem nenhum benefício a gente, eles sabem que fomos
prejudicados devido as plataformas que colocaram ai, devido há

221
uns derramamentos de óleo que houve também por aqui, pela
mortalidade do caranguejo, que eles sabem disso, simplesmente
eles deixaram, só que as vezes eles chamam a gente para
cursos, para eventos do PEAC, eventos da Petrobrás (A- 43
anos, pescadora artesanal, Porto do Mato/2016)

Com isso, se tem uma interferência no modo de vida das comunidades


pesqueiras e, consequentemente, na forma de exercer a pesca. A natureza
atrelada à natureza capitalista, para Silva (2008), gera conflitos na forma de
apropriação a ser garantida, e as políticas de desenvolvimento interferem
diretamente na forma como essas comunidades lidam com a natureza:

A relação sociedade-natureza é sempre uma relação cultural,


pois envolve hábitos e práticas situados em uma escala de
valores. O valor da pesca (artesanal) para a sociedade está
diretamente ligado ao contexto histórico, político e social.
(Ibidem, p.109).

Sob o contexto de uma sociedade de classes, desigual, voltada ao


sociometabolismo do capital, a pesca-artesanal assume o papel de uma
atividade a reproduzir-se no limite da pobreza pela dependência do ciclo da
natureza. Se essa atividade assume completamente a produtividade voltada ao
mercado, transforma-se no que representa o domínio e controle dessa natureza,
adaptando-se a outra forma de produzir os pescados, com conhecimento e
tecnologia utilizados na garantia do que é o desenvolvimento social atrelado à
acumulação do capital.
As comunidades pesqueiras representam nessa medida um limite à
expansão do capital. A incontrolabilidade definida por Mészáros (2002) desse
modo de produção passa por um círculo vicioso de mediações de segunda
ordem, entre as quais “os objetivos fetichistas da produção” (p.180). A ordem do
capital se impõe de forma articulada, mesmo diante de outras formas de
expressão da vida social a apropriar-se da natureza como modo de vida. O que
para as comunidades pesqueiras, ordena limites a sua contraposição à forma de
ser do capital:

Baseada na dolorosa evidência histórica, surge a verdade


desconcertante: através das interconexões estruturais das
partes que o constituem, o sistema do capital consegue se impor
sobre os esforços emancipadores parciais que visam alvos

222
específicos limitados. Com isso, os adversários da ordem
estabelecida da reprodução sóciometabólica, incorrigivelmente
discriminatória, têm de enfrentar e superar não apenas a força
positiva autossustentada de extração do trabalho excedente do
capital, mas também a força devastadoramente negativa (a
inércia aparentemente ameaçadora) de suas ligações circulares.
(Ibidem, p.181)

A natureza para as comunidades que vivem diretamente dela e


estabelecem identidade no trabalho, na condição de não estranhamento, não
escapam as relações mediadas pelo capital, e nesse sentido a própria natureza
passa a impor limites à reprodução dessas comunidades, no caso das
comunidades pesqueiras, o impacto destrutivo do capital que leva à escassez,
quando limita a própria reprodução dessa natureza:

Tem o royallet da Petrobrás que deveria ser destinado uma


verba para a pesca e não é, porque o petróleo é tirado de dentro
do mar, ocupou um espaço que o pescador pesca e esse espaço
ele não tem retorno nenhum, ele não tem uma cesta básica do
governo, ele não tem nada, só um seguro defeso e mesmo assim
complicado para o pescador adquirir (M- 47 anos, pescador
artesanal, Pirambu/2016)

Aqui a gente vivemos, antingamente tinha uma água barrenta de


seis em seis mês, e agora não tem mais enchente, água barrenta
é a que se chama que atrai o peixe, esse período não tem mais,
que se chama o período paradeiro. A água barrenta desde que
veio essas barragens, quando tinha só uma lá para cima ainda
vinha, mas de agora por diante, com essa continuação do tempo
que eles fizeram mais aí, por aqui não existe mais. Cada vez
mais piorando, nós tomava água doce por aqui, hoje mais
ninguém toma, vai buscar de Piaçabuçu que é cidade mais
próxima para lá, a não ser que cave um poço. (J-40 anos,
pescador artesanal, Povoado Resina- Brejo Grande/2016)

No entanto, a relação sociedade/natureza permanece na condição do não


estranhamento, à medida que o trabalho em sua condição ontológica representa
pôres teleológicos a práxis dessas comunidades. A transcendência positiva do
trabalho possível numa outra forma civilizatória, apontada por Mészáros, é a
possibilidade na própria condição da existência humana, ao ponto que, para nós,
a permanência de pôres voltados ao trabalho ontológico aponta para o ser social
ao que lhe é imprescindível, irrevogável e irretroativo.

223
As necessidades humanas ao representar essa transcendência positiva
do trabalho precisam romper com o controle metabólico do capital. O que só é
possível de realizar-se para Mészáros (2002) numa relação com a natureza que
compreenda os seres humanos como parte desta a satisfazer suas
necessidades através do intercâmbio, e que não podem produzir sua existência
sem essa mediação com a natureza:

Em consequência dessas condições e determinações


ontológicas, os indivíduos humanos devem sempre atender às
inevitáveis exigências materiais e culturais de sua sobrevivência
por meios das indispensáveis funções primárias de mediação
entre si e com a natureza de modo geral. Isto significa assegurar
e salvaguardar as condições objetivas de sua reprodução
produtiva sob circunstâncias que mudam inevitável e
progressivamente, sob a influência de sua própria intervenção
através da atividade produtora- a ontologia unicamente humana
do trabalho- na ordem original da natureza, que só será possível
se envolver plenamente todas as facetas da reprodução humana
produtiva e a complexa dialética do trabalho e da história da
reprodução autoprodutiva. (Ibidem, p.202).

As condições objetivas à reconstituição do metabolismo com a natureza


sob o controle das necessidades humanas e não do capital estão presentes nas
comunidades tradicionais e pesqueiras caracterizadas no nosso debate. No
entanto, seu modo de vida não representa o controle de fato sob a mediação
sociedade/natureza em dimensões universais, no devir do homem em sua
generidade que está mediada pelo capital.
O que Mészáros nos apresenta é um caminho a partir das mediações de
primeira ordem, para que o significado da reprodução ampliada não seja a do
capital e sim das necessidades humanas, o que não significa que a condição nas
quais as comunidades pesqueiras estão submetidas em seu acesso a produção
social de forma restrita, seja o modelo para o restituir da relação
sociedade/natureza em sua plenitude como sujeita ao social enquanto humano.
O que apreendemos a partir das comunidades pesqueiras artesanais
está associada à explicação de Lukács (2015) ao tratar da necessidade do
materialismo histórico dialético para compreender a práxis social, a fim de
superar nosso conhecimento sobre o metabolismo com a natureza baseado em
inversões, que configuram a alienação. Ao tratar do processo de conhecimento

224
e remeter a compreensão das categorias superiores como movimento para
compreender as categorias simples, tem-se aí o reconhecimento da
complexidade social como essencialmente fruto do metabolismo do ser com a
natureza.
Nas comunidades pesqueiras, toda essa complexidade social não estaria
materializada, dado o modo de vida considerado tradicional, não possibilitar o
que caracteriza esse desenvolvimento mediado por categorias que remetem ao
modo de produção capitalista. No entanto, partindo dessa complexidade para o
modo de vida que nos move ao que é essencialmente humano, que é o modo
peculiar do metabolismo com a natureza determinado por porês teológicos não
submetidos completamente à reificação capitalista, produzimos o conhecimento
do em si ao para si. Mesmo que o conhecer não signifique superação,
submetemos o conhecimento às potencialidades humanas, ao que seja o devir
homem em sua capacidade total de as exercer.
A concepção de uma natureza integrada ao seu modo de vida e não
apenas como objeto, no sentido do antagonismo com o sujeito, de forma que a
natureza se torne apenas objeto de intervenção, presente nas comunidades que
vivem diretamente da natureza, permite-nos ir à questão proposta por Mészáros
(2002), da unidade dos sujeitos que trabalham com a natureza de forma
compatível ao desenvolvimento produtivo existente, pois a permanência destas
revela, diante do sociometabolismo do capital, a emergência de outra forma de
práxis humanas:

Certamente, as correlações naturais originais não podem ser


recriadas em um estágio mais avançado do desenvolvimento
social. Pois todo o sistema de necessidades humanas, junto com
suas condições de satisfação, é radicalmente alterando no curso
das transformações históricas. E enquanto permanece um
desafio aberto a questão da “unidade da humanidade ativa com
as condições naturais inorgânicas da sua troca metabólica com
a natureza”, sua realização apenas é concebível no nível mais
avançado de intercâmbio produtivo com ambas as dimensões da
natureza. Deve abarcar a natureza “externa”, confrontando o ser
humano natural (com suas múltiplas propriedades e forças
adaptáveis, assim como com suas resistências indomáveis), e a
natureza “interior”, isto é, a “própria natureza da humanidade”
que se desenvolve historicamente (a qual inclui as condições
inorgânicas, naturais, de intercâmbio humano com a natureza).
(Ibidem, p.608).

225
A realização do desafio proposto a nível de transcendência da
autoatividade humana voltada a sua realização em todas as suas
potencialidades, não é possível somente a partir dos modos de vida de
comunidades tradicionais a partir de uma proposta de bem viver. Mas nessas
comunidades, a externalidade da natureza é confrontada enquanto única
racionalidade da existência humana. O reconstituir da relação
sociedade/natureza passa pelo exercício das qualidades humanas na dimensão
de uma totalidade social que determina o processo histórico a representar o ser
social em sua plenitude.

4.2 – Natureza Atormentada43: as contradições na relação


sociedade/natureza

A oposição entre homem e natureza é fruto das relações engendradas no


capitalismo no seu sociometabolismo, que tem como fundamento a dominação
da natureza e a constante produção de mercadorias. A condição de uma
natureza atormentada é própria do modo de produção capitalista que se articula
de forma destrutiva a partir de mediações que conduzem a desumanização do
ser social.
Diante do metabolismo com a natureza, para Dantas (2011), não há
reformas possíveis na forma societal do capital, que permita estabelecer uma
relação de sustentabilidade com a natureza. Enquanto recursos naturais
voltadas a garantir a produtividade capitalista, a noção de meio ambiente passa
pela destruição e pelo objetivo primeiro de aumento do lucro. O controle da
natureza e da tecnologia empregada para sua dominação por grandes
corporações capitalistas figuram a crise ambiental como resultado concreto do
desenvolvimento capitalista.

43
Subtítulo utilizado em alusão ao livro de Gilson Dantas (2012) – ver referência bibliográfica. Estudo
fundamentado nas leituras de Karl Marx sobre a incapacidade da sociedade mediada pelo capital de
restituir o equilíbrio necessário a condição humana, apontando o papel da classe trabalhadora na luta
ecológica pela reconciliação da humanidade.

226
O discurso da crise ambiental se anuncia na perspectiva de proteger a
natureza e reduzir os seus danos com os impactos da produção industrial, do
modo de vida urbano e da agricultura de larga escala e outras atividades
atribuídas a relação do homem com a natureza. No entanto, as estratégias que
se pautam na redução de danos, ou na proteção de partes da natureza, não
enfrentam a questão central, que está na forma como a sociedade tem
transformado a natureza sob a mediação capital/trabalho.
A acumulação do capital só é possível com o crescimento dos lucros sob
uma constante exploração da natureza, que na sua tendência universalizadora
se dá sobre a “sombra da incontrolabilidade” do capital na produção do espaço
global. “A degradação da natureza ou a dor da devastação social não têm
qualquer significado para seu sistema de controle metabólico em relação ao
imperativo absoluto de sua autorreprodução numa escala cada vez maior”
(MÉSZÁROS, 2002, p.253).
A necessidade do lucro conduz a uma contradição que se aprofunda à
medida que há necessidade crescente de produtividade, o que contradiz à
possibilidade de solução para a crise ambiental no modo de produção capitalista,
situação que não é possível de ser resolvida sem subverter a lógica de produção
com a natureza na sua continuidade cada vez mais destrutiva, considerando a
natureza como recurso inesgotável.
A organização da sociedade em torno da lógica de uma inevitabilidade da
produção cada vez maior de mercadorias como promessa de desenvolvimento
e inerente ao ser que trabalha constituiu-se numa racionalidade destrutiva:
As conferências ambientais das décadas de 1990 e 2000 consolidaram o
princípio da sustentabilidade enquanto discurso ideológico, como se fosse
possível incorporar na forma de ser do capital a preservação da natureza. O
capital tem como característica determinante ser destrutivo, em sua nova fase
de acumulação, a crise lida ambiental é estrutural do capital, o que
invariavelmente agrava mais a crise entre homem e natureza (DANTAS, 2011,
p.17).

No capitalismo, a “interação” (melhor: metabolismo) dos homens


com a natureza se dará mediada pelo objetivo da acumulação
de mercadorias, acumulação do capital. A produção será um
meio para valorizar o capital. O objetivo da atividade econômica

227
será aplicar um montante de capital para valorizar esse mesmo
capital. (Ibidem, p.72)

Ao utilizar a expressão “natureza atormentada”, Dantas (2011) remete-se


à falha metabólica proveniente da subsunção da natureza ao reino das
mercadorias, o que impede qualquer proteção real à natureza. O autor é
categórico em afirmar que diante dos objetivos do capital, essa falha é resultante
das relações sociais sob determinadas mediações, que inclusive determinam a
forma da ciência e da tecnologia, mas o desenvolvimento destas por si só não
revela o problema.
A relação instituída no capitalismo do homem com a natureza, ao
mercantilizar a vida, provoca a alienação do homem com a natureza e consigo
mesmo à medida que encobre o que é a condição de existência e reprodução do
ser social. De acordo com Dantas, a crise ecológica como proposta de superação
de restabelecer a relação orgânica do ser que trabalha com a natureza, deverá
passar pela forma de controle social da natureza. A relação dialética presente
na forma sociedade/natureza faz-se necessária sob a pena da barbárie e da
destruição da condição humana:

A dissolução da natureza inteira em uma aglomeração de


recursos naturais individuais, e depois a aplicação de um
conjunto de instrumentos analíticos apoiados no individualismo
metodológico para assim guiar racionalmente o manejo de
recursos, é alheio ao conceito marxista de economia ecológica.
(ALTVATER, 2006, p.329)

O debate da racionalidade construída em torno da natureza como recurso


natural individual desconsidera a totalidade da sociedade-natureza. Nesse
sentido, para Altvater (2006), as categorias marxistas possibilitam compreender
o metabolismo que se impõe na produção voltada para a valorização do capital
e ao metabolismo que realmente representa as necessidades humanas.
O desenvolvimento do modo de produção capitalista é determinado pelo
crescimento econômico contínuo, de forma que sua valorização corresponde ao
aumento da produtividade que pressupõe a transformação da natureza de forma
ampliada enquanto recurso. O processo de trabalho e de valorização do capital

228
está assim submetido a leis da natureza que se constituem em crise ecológica à
medida que diante dos limites da natureza o capital só se realiza sem limites.
A crise ecológica é, dessa forma, uma crise global, ante o poder destrutivo
do trabalho submetido ao capital. Se a natureza é condição da realização do
trabalho na relação sociedade/natureza, e é tratada como externalidade, a
degradação dessa natureza passa a se impor cada vez mais como limite ao
capital, no sentido da disposição de sua matéria passível de se tornar valor
através do trabalho. Altvater (2006) considera a necessidade de se levar em
conta o conceito de entropia que representa a troca necessária entre matéria e
energia a determinado sistema:

[...] tanto os processos naturais de transformação de matéria e


energia como o processo natural de crescimento de seres
viventes tais como as plantas e os animais se caracterizam pela
irreversibilidade. Isso se deduz em última instância, da lei de
entropia. Ao final do processo há algo qualitativamente novo (na
racionalidade da reversibilidade, a qualidade se mantém igual,
enquanto que a quantidade da mesma qualidade muda).
(Ibidem, p.344)

O tempo da exploração é acelerado em relação aos ciclos naturais, no


que o tempo que o espaço natural é substituído pelo tempo-espaço industrial
(ALTVATER, 2006, p.335). A dimensão dessa exploração se expande
espacialmente, no que a produção capitalista do espaço converte-se na natureza
socializada enquanto degradada para compor a racionalidade da produção, em
geral, da sociedade voltada à valorização do capital.
O tempo e o espaço voltado ao capital requer um modelo de
desenvolvimento que concentra e centraliza, expropriando o ser que trabalha
subjugando e explorando a natureza. Conforme Conceição (2017), a circulação
remete o momento da acumulação. O capital, ao se expandir geograficamente,
destrói barreiras e expande limites, garantindo a taxa de lucro:

Em crise estrutural, seus constituintes destrutivos avançam com


força extrema, para o qual não conhece fronteira, ultrapassando
todos os obstáculos, redefinindo relativamente seus próprios
limites, transcendendo todas as barreiras regionais e fronteiras
nacionais, sujeitando a força de trabalho aos seus imperativos
alienantes, principalmente, nas economias periféricas, sobre a
agricultura e a economia camponesa. Diante da crise, com as

229
baixas taxas de juros, os Grandes Grupos transnacionais se
dirigem para a periferia para a aplicação em ativos fixos como
terra, minérios, matérias primas agrícolas, água, territórios de
elevada biodiversidade, investimentos em setores produtivos na
produção agrícola; controle de energia renováveis (hidrelétricas
e usinas de etanol). (Ibidem, p.20)

A natureza é gestada por políticas que demandam uma ordem


internacional pensada a partir de interesses de corporações transnacionais,
tendo o Estado o garantidor a nível local, de forma que o capital transnacional
se sobrepõe aos Estados nacionais numa hierarquia constituinte da estrutura de
dominação do capital. Para Mészáros (2002), o monopólio e a competição
através do capital transnacional e os Estados nacionais constituem contradições,
mas não antagonismos.
O ataque à natureza promovido por companhias transnacionais para
Blanco (2015) passa por políticas extrativistas que se convertem na emissão de
gases poluentes por todo planeta, no desflorestamento, com o objetivo da
implementação da monocultura e, por conseguinte, a agroindústria, atividades
mineradoras, entre elas a extração de hidrocarbonetos/petróleo, que envenenam
as águas entre outas ofensivas que recaem diretamente sobre o modo de vida
de comunidades que vivem diretamente da natureza a partir de outra lógica.
A tendência a expandir a produtividade capitalista a espaços que abrigam
atividades extrativistas e que representam o movo de vida de comunidades
camponesas, indígenas, quilombolas e de pescadores, no que se refere
diretamente à atividade pesqueira, aparece no 1° Anuário de Pesca e Aquicultura
patrocinado pelo governo federal e que tem por objetivo demonstrar a
potencialidade da atividade para o mundo. Esse documento de 2014 apresenta
estudos e previsões da instituição holandesa Habobank, principal financiadora
do agronegócio do mundo em parceria com a FAO, e sugere ações para garantir
que o Brasil esteja ranqueado como um dos principais produtores de pescados
do mundo.
A aquicultura é apresentada como última fronteira do agronegócio a ser
expandida de forma sustentável, de forma que a pesca industrial, longe da costa
e o cultivo controlado de pescados, seria a resposta ao aumento do consumo a
nível nacional e mundial através de uma cadeia produtiva estruturada com o
apoio e fiscalização do Estado. Dentre as estratégias, o benchmarking é
230
apontado como prática do mundo dos negócios que representa o fomento a
acordos de cooperação, que passa por uma rede de conhecimento técnico com
outros países e atraem os investimentos da iniciativa privadas. (Figura 9 e 10).

FIGURA 9: 1° ANUÁRIO DE PESCA E AQUICULTURA 2014

FONTE: 1° Anuário de Pesca, 2014 p.64.

231
FIGURA 10: 1° ANUÁRIO DE PESCA E AQUICULTURA 2014/2

FONTE: 1° Anuário de Pesca, 2014 p p.79

Os recortes do anuário ilustram os instrumentos utilizados pelo governo


brasileiro para implementar uma estrutura voltada à mercadorização dos
recursos pesqueiros, através de pesquisas e linhas de créditos também definidas
para a aquicultura através do PRONAF- Pesca, ainda não implementado em
Sergipe. No entanto, o Projeto Dom Távora, em andamento no estado e
executado pela SEAGRI, vem cumprindo esse papel de incentivar e financiar a
aquicultura como alternativa de renda sustentável à pobreza rural. (Figura 11).

232
FIGURA 11: NOTICIA SOBRE PARCERIA DA ONU E PROJETO DOM TÁVORA/SE

FONTE: ONU. Disponível em: https://nacoesunidas.org/fundo-da-onu-visita-sergipe-para-


avaliar-projetos-de-desenvolvimento-agricola/. Acesso em 30/10/2017.

Mesmo nas comunidades que o projeto não alcança, há uma expectativa


em torno do cultivo de pescados como solução às dificuldades ao viver da pesca.
A piscicultura e a carcinicultura apresentadas como atividades que geram renda
são apresentadas como solução para os problemas advindos da produtividade
da natureza, ao mesmo tempo em que há uma consciência dos impactos que
acompanham as atividades que constituem como parte do modelo de
desenvolvimento presente no agronegócio:

Aqui o camarão é do mar, se for pegar aqui, pega camarão do


mar aqui dentro, aí a comunidade tá com umas ideia de fazer
viveiro de camarão, mas tem uns órgão que diz que é por conta
do meio ambiente, que não quer aqui, por que essa cria de
camarão ele vem com muito veneno, é um rendo bom, com dois,
três meses você tá com dinheirinho no bolso, mas, você tem que
usar muito veneno (C. pescador artesanal Resina Brejo
Grande/2016)

233
A aquicultura apresenta-se como uma das faces que representa a gestão
das águas voltadas a sustentar atividades que possibilitem o crescimento
econômico. Di Mauro (2016) chama atenção para a água como instrumento de
dominação e de transformações na forma de recursos hídricos. A natureza é
transformada em mercadoria, e nesse sentido, a água cada vez mais é motivo
de conflitos em escala mundial. O autor pontua as agendas ambientais e os
órgãos responsáveis por pensar politicamente o uso da natureza, tendo a água
como grande preocupação.
No Brasil, há marcos legais que tratam do uso da água, a determinar seu
domínio e responsabilidades de gerenciamento, a destacar a Lei 9.433/97. “A
água é um bem de domínio público. “Nesse fundamento está contida a ideia de
que, no Brasil, não deveria haver água privada. Todas as águas, no território
nacional, são de domínio da União, dos estados e do Distrito federal [...]” (Ibidem,
p.394). Essa lei constitui o que possibilita a prática da pesca-artesanal e que
define a organização do trabalho em torno de uma apropriação que não se dá
enquanto propriedade privada.
Porém, enquanto domínio público, cabe o gerenciamento do Estado, que
define de que forma se darão os usos, no que a pesca artesanal é uma atividade
regulada através do cadastro dos pescadores; e os múltiplos usos das águas
são gerenciados através de outorgas previstas na Política Nacional de Recursos
Hídricos, orientadas para a utilização do recurso:

A outorga, dessa forma, tem efeito regulador, que objetiva


ordenar e garantir os diversos usos dos recursos hídricos,
estabelecidos como prioridades nos Planos de Recursos
Hídricos e no enquadramento em classes dos corpos de água,
respeitando a manutenção nas condições de navegabilidade ao
transporte aquaviário e preservando os múltiplos usos. (DI
MAURO, 2016, p.397)

O que se observa, entretanto, são os múltiplos usos, no que concessões


de uso da água enquanto domínio público que estabelecem a privatização das
águas. O modelo de produção energética através da construção de barragens,
o modelo de produtividade no campo através do agronegócio que utiliza um
grande volume de água para irrigação são exemplos de atividades que se

234
utilizam dessas outorgas, que são atividades identificadas pelas comunidades
pesqueiras como causadores de conflitos e de degradação da natureza.
As contradições presentes na forma do uso dado à natureza diante da
dinâmica do capital com mediação do Estado, tratadas nas agendas ambientais
no manto da sustentabilidade, são apresentadas por Paula (2013) como
“capitalismo verde”, que intensifica o processo de mercadorização da natureza,
correspondendo a sua face mais perversa:

Em termos do reordenamento da geopolítica mundial, o


“esverdeamento” do capitalismo tem sido fundamental para
orientar e legitimar as políticas e estratégias imperialistas
voltadas para o controle dos territórios dotados de bens naturais
estratégicos. Sob a suposta neutralidade da chamada “agenda
ambientalista” internacional, procurar-se uniformizar um padrão
de exploração de “las bondades de la natureza” em escala
planetária. (Ibidem, p.36)

“A ideologia do desenvolvimento sustentável tornou-se a estratégia para


o desvio da crise do capitalismo do campo da luta de classe para o da crise
ambiental. ” (CONCEIÇÃO, 2003, p.85). O direcionamento da responsabilidade
da crise ecológica passa a ser colocado de responsabilidade individual na ideia
da possibilidade de solução a partir da educação ambiental, afastando a crítica
ao modo de produção do capital e afastando a leitura das contradições entre a
expansão do desenvolvimento econômico e os limites dos recursos da natureza.
Antes de significar o fim da expropriação da natureza, políticas foram
mascaradas para justificar o bom uso da natureza. O discurso ecológico tornou-
se estratégia para o desvio dos problemas sociais e políticos:

Negando os limites do crescimento, anuncia a reintegração do


homem à natureza, à racionalidade do capital, gerando novas
formas da apropriação dos recursos naturais, frente às novas
formas de exploração do trabalho, via a desregulamentação dos
direitos do trabalho; a precarização e terceirização da força
humana que trabalha. Deslocando o eixo da problemática da
dimensão do real que move o circuito Estado-Capital e Trabalho
para o simulacro da imensurável busca do lucro, não se argúi a
incontrolabilidade do sistema de produção de mercadorias.
(CONCEIÇÃO, 2003, p. 84)

235
Ciência e tecnologia são utilizadas não só para garantir na prática a
intensificação da exploração da natureza, mas também para construir os
argumentos que vão validar a crença do desenvolvimento sustentável do
capitalismo. No que não for sustentável, prevê-se medidas de prevenção,
mitigação e remediação, previstas nos licenciamentos ambientais federais
correspondentes no Brasil. Isso quer dizer que diante dos impactos destrutivos
da natureza, as empresas são obrigadas a manter projetos que amorteçam essa
degradação.
O PEAC, em Sergipe, nesse sentido corresponde à medida mitigatória,
conduzida pelo IBAMA junto a Petrobrás, devido às atividades da empresa
correspondentes à exploração de gás e petróleo junto a comunidades costeiras
(Figura 12). No que as comunidades pesqueiras impactadas não são apenas as
que praticam a atividade no mar, mas envolvem as que exercem a pesca em
mangues e rios. As atividades do PEAC organizadas pela empresa datam seu
início em 2011, na Bacia de Sergipe-Alagoas, com um diagnóstico
socioambiental das comunidades.

236
Figura 12: Notícia sobre Medidas Compensatórias e Mitigatórias da Petrobras/SE

FONTE: Ministério Público de Sergipe.44

O programa é executado pela Universidade Federal de Sergipe,


envolvendo professores, pesquisadores e estudantes de diversos cursos. Sua
realização se dá enquanto compensação junto a comunidades atingidas pelos
impactos da Petrobrás, que não podem ser remediados em diversas
comunidades pesqueiras:

Se a Petrobras sempre vai perfurar poço, ela sempre também


vai ter o direito, de ter com a gente compensação ou mitigação,
com as marisqueiras e os pescadores, porque, se eles tão
tirando o produto, tão prejudicando a gente, porque quando eles
cavam, dá o impacto, aí pronto, o peixe mesmo some. O
pescador vão, passam a rede, as vezes pega um quilo, dois, mal
para o sustento. O sustento de dentro de casa, mas para vender,
porque tem bujão, tem energia, tem remédio, tem outras coisas,
não consegue, a ostra também fica escassa, tudo fica escasso
quando vem esse impacto. (V- Pescadora do Povoado
Muculunduba e integrante do Movimento de Marisqueiras de
Sergipe)

44
Disponível em: http://www.mpf.mp.br/se/sala-de-imprensa/noticias-se/mpf-cobra-que-petrobras-
implemente-medidas-compensatorias-pelas-atividades-em-sergipe. Acesso em 04/10/2017.

237
O relato da marisqueira trata sob o papel que a Petrobras tem tido via
PEAC, na organização do Movimento de Marisqueiras em Sergipe, já que o
projeto não só estimulou a formação do movimento, como garante sua
participação em eventos de formação e media reuniões até que o mesmo tenha
uma estrutura própria de organização. Este exemplo, entre um dos projetos
executados, mostra a parceria que estabelece entre a empresa e a comunidade
mediada pela Universidade. No que o próprio nome do projeto entrega, trata-se
de educação ambiental para solucionar os problemas oriundos de atividades que
destroem a natureza.
“La absoluta mayoría de los gobiernos favorece la acción depredadora de
las grandes empresas” (BLANCO, 2105, p.79). A Petrobras apresentou lucro
líquido de 5 bilhões nos primeiros nove meses de 2017, segundo dados próprios
divulgados, no entanto as comunidades pesqueiras em Sergipe, enquanto
grupos sociais afetados, tem como mitigação projetos de educação ambiental
que não transformam a condição de subalternidade e pobreza e não têm a
capacidade de garantir qualquer autonomia no modo de vida dessas
comunidades que passam pela manutenção da natureza e não por sua
destruição.
O modo de vida tradicional atribuído às comunidades pesqueiras
artesanais é descrito por Blanco (2015) como respeito e amor à natureza, ao
tratar de comunidades indígenas remetidas a comunidades primitivas, no que se
compreende uma ética primitiva que detém o respeito à natureza. A
sobrevivência da humanidade assim depende da recuperação dessa ética
enquanto resposta aos ataques de grandes empresas associadas a governos no
que representa o sistema capitalista, predatório à natureza e à condição humana.
“Volver a la ética primitiva no significa abandoar las venatajas de la civilización,
pues manedremos y universalizaremos todas aquellas que no afecten a la
naturaliza y por lo tanto a la supervivência de la especie” (Ibidem, p.83).
Portanto, uma luta ecológica nesse caminho só se dará à medida que se
construa uma solução que passe pelo entendimento da luta política no que
representa as mediações do capital. Se a sociedade na forma do ser social,
através dos pôres teleológicos constrói alternativas conscientes, a relação com
a natureza é através dessa relação peculiar do ser social com a natureza, que é

238
possível restabelecer um metabolismo que não seja destrutivo a sua condição
singular.
A perspectiva crítica na luta pela natureza, como resposta à dupla
alienação homem-homem, sociedade-natureza, que constitui a crise ambiental,
passa pela tomada de poder político da classe subjugada pela centralização e
monopolização das riquezas e, nesse sentido, da natureza nas mãos de uma
classe que representa os objetivos do capital. A exploração do trabalho e a
expropriação dos meios de produção que Marx revela como base do capital
torna-se assim base da crise ambiental, portanto, só é possível de ser superada
com uma mudança estrutural na organização social (DANTAS, 2011, p.101).
A dimensão da crítica que se constitui numa natureza atormentada a partir
de Marx estabelece a relação do homem com a natureza como condição
inexorável da sociedade, por isso que uma natureza que se apresente como
exterioridade na negação de uma relação que se compreende dialética,
representa uma falha metabólica na relação sociedade/natureza:

A ideia que o conceito procura refletir é a de que entre a


sociedade e a natureza se estabelece uma interação ou troca
metabólica, um tipo de relação que, sobretudo nos marcos do
modo de produção capitalista, é antiecológico e mais
diretamente é contra a classe trabalhadora; em outras palavras,
um modo de produção que, sobretudo pela via da agricultura em
larga escala, degrada o solo, rouba nutrientes sem repô-los
naturalmente em com o andar do processo de acumulação do
capital e suas crises, vai estabelecendo um hiato ou uma
contradição antagônica na relação homens-natureza. (DANTAS,
2011, p.106).

A civilização que corresponde à sujeição das forças da natureza à forma


da mercadoria nega a si própria à medida que avança em seus objetivos de
constante desenvolvimento a expandir-se com objetivos de acumulação. A
socialização da natureza como condição da vida dos homens pode ser
determinada pela relação de dominação ou pela produção da vida social a partir
de necessidades que não representem a destruição da condição humana.
O mercado é a condição ontológica para sua alienação. Na medida em
que privatiza a natureza, essa se apresenta como objeto estranho, externa, a ser
dominada e descartada, condição necessária para a garantia do próprio

239
estranhamento, da coisificação (CONCEIÇÃO, 2012, p.15). “O direito ilimitado
do uso da natureza só é possível pela sua privatização. Com a privatização da
terra, do ar e da água a natureza fica aprisionada nos braços do capitalista, que
atraído pelo lucro incomensurável, produz a própria arma que irá destruí-lo”
(Ibidem, p. 16).
Na leitura de István Mészáros (2002), para transformar a produção de
riqueza como finalidade da humanidade, foi necessária a separação do valor de
uso do valor de troca. Para o autor, é na autorrealização por meio da riqueza de
produção e não pela produção da riqueza alienante e reificada, que deve estar
sustentado todo projeto de desenvolvimento sustentável. É na compreensão da
relação necessidade, qualidade e uso, em contraposição ao círculo vicioso do
sistema reificado do capital, que transforma os homens em coisas, para sua
crescente ampliação de riqueza de produção.
Reconstituir perspectivas que desloquem o metabolismo do capital para
um metabolismo para além do capital e consequente no devir do homem, passa
por restabelecer a dimensão da relação sociedade/natureza de forma não
estranhada.

240
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da lógica da expansão e acumulação do capital, a investigação da


pesca-artesanal, enquanto concretude social na reflexão do trabalho como
processo que determina a condição humana – condição de resistência ao
sociometabolismo do capital – constitui-se singularidade na totalidade.
A singularidade, enquanto peculiaridades do indivíduo, é apagada na
universalidade do valor de troca à medida que a conexão existente na relação
social entre as pessoas transforma-se em um comportamento social das coisas
(Marx, 2011, p.105). Nas comunidades pesqueiras artesanais, no entanto, a
relação direta com a natureza e de comunidade escapa à universalidade do valor
de troca, de forma que a natureza e os indivíduos da comunidade são
reconhecidos no conjunto do que é a própria condição humana, que é o viver
social.
Para Harvey (2010), a história da humanidade consiste na destruição
criativa da Terra, e “o capitalismo como qualquer outro meio de produção,
baseia-se no usufruto da natureza” (p.65). No entanto, a segunda natureza do
capitalismo é marcada por um aumento contínuo dessa destrutividade criativa,
ao passo que o que é condição de vida para as comunidades tradicionais, torna-
se recursos naturais a compor a acumulação do capital:

No início, essa atividade era, em geral, conceitualizada em


termos de uma dominação humana triunfalista sobre a natureza
(parcialmente compensada por sentimentos estéticos que
romantizavam a relação com a natureza). Somos mais
cautelosos agora em nossa retórica, embora não
necessariamente em nossas práticas (Ibidem, p.152).

A destrutividade do capital, segundo Mészáros, sob a sombra da


incontrolabilidade, constitui uma estrutura totalizadora que sujeita a vida. E,
portanto, sujeita o ser social e a natureza, ao poder da mercadoria, de maneira
que seu avanço representa também o avanço da alienação e da reificação nas
relações sociais. Na sua composição, ao subordinar as necessidades humanas,

241
carrega suas próprias contradições à medida que expandir-se enquanto
mercadoria significa potencializar sua força destrutiva e, nesse sentido, as
condições de existência humana.
No processo global de reprodução da vida e do capital como lógica que
organiza o modo de produzir, o uso da natureza é cada vez mais subordinado
às funções produtivas do capital. Nesse caminho, privatizar a natureza consiste
no seu uso guiado às necessidades ilimitadas provenientes do mercado
capitalista. No que atinge toda reprodução da vida, as comunidades pesqueiras
em Sergipe apontam os conflitos existentes na apropriação das terras e das
águas no estado.
Os desdobramentos da natureza socializada à acumulação do capital, no
espaço onde se dá a prática da pesca-artesanal em Sergipe, integram processos
que se articulam na capacidade destrutiva do capital: da especulação imobiliária
ao turismo como consumo da natureza, ao modelo energético de construção de
barragens que modifica o curso das águas e a reprodução das espécies,
compreende-se uma privatização da natureza, que é monopolizada em seu
usufruto. Soma-se ainda a atuação da Petrobras no estado que impacta
diretamente a reprodução de espécies do rio e do mar, e o agronegócio que se
apresenta como conjunto de atividades rentáveis ao desempenho econômico do
país, integrando campo e cidade no mesmo objetivo: produtividade de mercado.
A consolidação dos processos que conduzem à mercadorização da
natureza representa, para a atividade pesqueira artesanal, a diminuição dos
pescados e o limite no acesso à terra e à água, um limite à permanência. Nesse
sentido, as políticas voltadas à atividade pesqueira artesanal tornam-se centrais
na pauta de reivindicações dessas comunidades. Segue-se, porém, que as
configurações de poder do Estado têm como caráter garantir o modelo de
desenvolvimento que submete a natureza como recurso. A concentração de
terras como centro da questão agrária no Brasil estende-se às águas no que o
uso e o acesso é controlado e, prioritariamente, destinado a atividades lucrativas,
nos moldes de crescimento e desenvolvimento econômico de mercado.
É importante ressaltar que as políticas públicas em contraposição à
proposta para o viver da pesca, ao propor a aquicultura - produção controlada
dos pescados na atividade do agronegócio - intensifica o cenário de conflitos na
luta pela terra e pela água. Exemplo este, de política pública, explícita em

242
Sergipe no Projeto Dom Távora, em andamento, assumida pelo Ministério da
Pesca de grandes investimentos com rebatimentos locais a serem investidos
como incentivo à aquicultura para pequenos produtores.
A pressão a que são submetidas as comunidades pesqueiras, na
continuidade do viver da pesca, levam-nas a adotar cada vez mais como
estratégia de permanência, não somente a luta pelo acesso à natureza, como
também de direitos sociais. “Para ter garantidos todos os direitos não basta
apenas saber pescar; além disso, é necessário ter em mãos a Carteira de
Pescador[...]” (SILVA, 2015, p.60): O RGP que institui o reconhecimento do
pescador enquanto categoria profissional sujeito de direitos e deveres.
Com essa institucionalização, é importante ressaltar o controle que o
Estado impõe sobre a atividade pesqueira artesanal. O Seguro defeso enquanto
benefício financeiro permite ao pescador ter acesso a produtos que garantam
suas necessidades básicas durante a proibição da captura de determinadas
espécies para a reprodução, ou mesmo possibilita o conserto ou compra de
instrumentos de trabalho. Mas ao mesmo tempo, somado a outros benefícios de
seguridade social, tem se constituído como objetivo central de organizações
representativas da pesca-artesanal.
O reconhecimento do pescador artesanal como categoria profissional
passa por mediações burocráticas para que se possa ter a permissão legal do
exercício da atividade pesqueira. No entanto, as definições dentro das
normativas legais que caracterizam o trabalhador da pesca são determinadas
pelo Estado, que ao mesmo tempo que incorpora o conceito de comunidades
tradicionais, nos quais se incluem comunidades pesqueiras artesanais, dificulta
o acesso aos benefícios oriundos de políticas públicas. Há um desconhecimento
intencional nas definições da categoria do que seja o modo de vida e as
dificuldades enfrentadas pelas comunidades pesqueiras, exigindo que os
trabalhadores da pesca exerçam a atividade de forma ininterrupta e proibindo
que os mesmos disponham de outras fontes de renda, segundo a Lei da Pesca
n°10.779/2003 complementada pelo decreto 8.424/2015 e 8.425/2015, que não
abarca as reivindicações levantadas pelas mobilizações do Movimentos, entre
eles o MPP.

243
Entre 2009 e 2018, o Ministério da Pesca45 foi extinto, passando ao status
de secretaria e incorporada por dois Ministérios, e entre o fim de 2017 e começo
de 2018 sinaliza-se uma volta da pasta da pesca e aquicultura ao status de
Ministério com o decreto 9.260. No entanto, os objetivos permanecem entre
fomentar o desenvolvimento da atividade pesqueira e aquícola de forma
sustentável, o que diante das políticas e documentos apresentados pelo Estado,
fica claro a tentativa de direcionar a produção de pescados para a produtividade
de mercado no controle da atividade aquícola.
O desenvolvimento enquanto crescimento econômico que encontra
soluções para os problemas da sociedade no mercado, contraditoriamente,
aprofunda também os problemas que se tenta resolver. Para Mészáros (2007),
o crescimento não qualificado sob as nossas necessidades sociometabólicas é
um desperdício, de maneira que aprofunda problemas para as próximas
gerações. Desta forma, é preciso enfrentar o fracasso da modernização e do
desenvolvimento pautados em corretivos estritamente tecnológicos (p.190).
O desenvolvimento possível de se alcançar, tendo como fim produzir cada
vez mais, incorporando técnicas, tecnologia e pesquisas que garantam esse
aumento, é o que torna o trabalho cada vez mais intensivo, aumentando a
exploração da natureza. Qualquer proposta de sustentabilidade nesses moldes
torna-se descartável se o nosso pensar é guiado a potencialidades humanas e
da vida fora de uma lógica destrutiva. O fardo do tempo histórico que Mészáros
nos apresenta está nas consequências devastadoras para a humanidade que o
imperativo da lucrabilidade impõe como tirania do tempo do capital.
Os conflitos que se põem diante do viver da pesca-artesanal são oriundos
justamente do desenvolvimento representado no controle do trabalho e na
concentração e monopolização da natureza como recurso, que impede o acesso
direto aos meios de trabalho de comunidades tradicionais. A forma de ser do
capital é contrária à relação sociedade/natureza a qual carrega como mediação
o trabalho que dá sentido ao ser social. As mediações de primeira ordem
presentes nas comunidades pesqueiras artesanais, dado seu modo de organizar

45
O Ministério da Pesca extinto em 2015 passa ao status de secretaria e é incorporado pelo Ministério da
Agricultura. Em 2017, a Secretaria Especial de Pesca é transferida para O Ministério de Indústria e
Comércio. No fim de 2017, a SEAP é transferida para o gabinete da presidência e, em janeiro de 2018, o
Decreto 9.260 entra em vigor, retirando o status de “Especial” da SEAP, que volta ao status de Ministério
assim que seja nomeado um novo Ministro.

244
trabalho e apropriar-se da natureza, permanecem junto às mediações de
segunda ordem:

Se compararmos as mediações de primeira ordem com as bem


conhecidas determinações estruturais hierárquicas das
mediações de segunda ordem do capital, percebemos que tudo
se altera com o surgimento do capitalismo de modo quase
irreconhecível. Pois todas as demandas mediadoras primárias
devem ser modificadas de modo a adequar-se às necessidades
auto-expansivas de um sistema de controle reprodutivo social
fetichista e alienante, que subordina absolutamente tudo ao
imperativo de acumulação do capital (MÉSZÁROS, 2007, p.41).

O caráter ontológico do trabalho que identificamos na pesca-artesanal


frente ao desenvolvimento social no movimento do capital permite-nos falar de
modos de vida, que tem na relação sociedade/natureza a condição de
identidade, de permanência e de construção de resistências envoltas no modo
que se organiza esse trabalho e, nesse sentido, a realidade concreta. A pesca-
artesanal tem o papel não só de suprir as necessidades imediatas do ser que
pesca, mas assume a mediação nas relações de comunidade que se apropria
da terra e das águas, de maneira que o reproduzir da própria vida não significa
o estranhamento do outro, de si mesmos e da natureza.
É nesse viés que Ponty (2000) afirma que reencontrar a natureza exterior
exige um esforço em superar o estado de indivisibilidade em que se encontra
nossa percepção, à proporção em que se vê como natureza, permite a
compreensão desta e da nossa própria vida (p.63). Caminhar nessa direção é
algo que comunidades tradicionais sempre fizeram ao organizarem a vida, de
modo que se faz necessário desenvolver o conhecimento da natureza como
condição de existência, e no reconhecer dessa dependência, encontra-se um
metabolismo que não desumaniza, em contraposição à mediação
capital/trabalho.
As relações que possibilitam o viver da pesca-artesanal, enquanto modo
de vida que conserva a essência ontológica do trabalho, são criadas e recriadas
a partir da relação sociedade/natureza, à medida que terra e água são condições
imediatas de vida. Entretanto, a apropriação da natureza por comunidades

245
pesqueiras caracteriza-as enquanto tradicionais por constituir singularidades no
que representam as relações sociais mediadas pelos objetivos do capital.
É importante observar que tratar de modos de vida singulares não é a
afirmação das potencialidades humanas no sentido do para si, por remeter a
mediações que resistem ao processo de alienação por completo, assim como
todos os avanços alcançados sob a ordem do capital não nos leva a esse
exercício, já que o caráter devastador do metabolismo do capital é incontrolável.
Lukács (2015) chama atenção para os fenômenos singulares porque é no
processo histórico real que se pode superar o capital de forma concreta,
transformando categorias do ser social que determinam o modo de ser do capital
(p.124).
Lutar pelo acesso à natureza como meio de trabalho que dá sentido à
identidade social dos trabalhadores dos mangues, dos rios e do mar, representa
a irrefutabilidade do caráter ontológico do trabalho. A pesca-artesanal em
Sergipe é a atividade dos que através das águas existem enquanto comunidades
que ao apropriar-se da natureza representam o impedimento a expansão de toda
estrutura e lógica capitalista, a vida. E ao permanecer pelo trabalho, resistem no
conflito entre as mediações de segunda ordem, que se impõe como lógica
dominante de organização do trabalho e da vida, e o seu modo de vida o qual
define a natureza como extensão de si próprios no que compreendemos ser a
unidade necessária à relação sociedade/natureza.

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