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SÃO CRISTÓVÃO
FEVEREIRO/2018
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
PRÓ- REITORIA DE PÓS- GRADUAÇÃO E PESQUISA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
SÃO CRISTÓVÃO
FEVEREIRO/2018
Shauane Itainhara Freire Nunes
SÃO CRISTÓVÃO
FEVEREIRO/2018
Shauane Itainhara Freire Nunes
Banca Examinadora
_________________________________________________
Orientadora Profª Dra. Alexandrina Luz Conceição (UFS)
____________________________________________________
Examinador (a) Prof.ª. Dra. Ana Consuelo Fontenele (UFS)
___________________________________________________
Examinador Prof. Dr. Cristiano Wellington Noberto Ramalho (UFPE)
___________________________________________________
Examinador (a) Prof.ª. Dra. Doralice Sátiro Maia (UFPB)
_________________________________________________
Examinador (a) Prof.ª. Dra. Marleide Maria Santos Sergio
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
CDU 911.3:639.2(813.7)
Dedico esta tese,
Aos pescadores e pescadoras artesanais de Sergipe, que
dividiram suas vivências e deram sentido a essa pesquisa
possibilitando-nos acreditar na coletividade, na cooperação
como caminho para o devir.
A Alexandrina Luz Conceição, por ser minha referência e
inspiração.
Aos meus pais por todo amor e dedicação.
Aos amigos que partiram, mas que permanecem, que
contribuíram com minha formação, me fortaleceram na luta por
uma sociedade mais humana, e aos quais os sorrisos nunca vou
esquecer: Israel e Romina, presentes!
AGRADECIMENTOS
Ao GPECT serei eternamente grata por poder vivenciar à academia a partir de um olhar
crítico e da ação crítica. Pelas amizades fortalecidas e por partilhar uma geografia e
uma universidade que podem ser transformadoras mesmo nos limites. No dia a dia,
Danilo, Danilo C, Eliany, Júnior, Maria José, Lucas Lira, Marcelo, Márcio, Michelle,
Morgana, Ricardo e Vanessa. A todos que contribuem e contribuíram com o
fortalecimento do grupo, Jordana, Ronilson, Leandro, Guto, Fabrícia, Nacelice, Karla,
Áurea, entre tantos outros, meu muito obrigada.
A Associação dos Geógrafos Brasileiros e a todos que constroem o seu movimento, sou
e serei sempre agbeana.
Aos parceiros desta jordana: Danilo pela contribuição com debates e o olhar atento aos
meus textos, além de ser meu grande parceiro em todas as situações. Jordana minha
amiga pelo apoio e cuidado. A Márcio pelos mapas e pelo carinho que só um grande
amigo nos oferece, a Vanessa e Marcelo que completam o grupo dos destrambelhados
pela amizade e pelo companheirismo. Eliany, Michelle, Ricardo, Júnior e Maria, pela
força e amizade dedicada.
A Yure Silva, pelas contribuições, paciência, generosidade, apoio, amizade e amor que
é mútuo. A duas amizades especiais que a geografia me proporcionou e que me
emocionam: Jorge Ferreira, entre debates, apoio e carinho e Cláudio Mendonça meu
maranhense forte e apaixonante.
Aos amigos geógrafos de João Pessoa, que muito contribuíram na minha formação,
Carlos Augusto, Doralice, Mara, Rafa, Vitor, Nirvana, Áurea, Luana, Lairton, Mariana,
Maria Salomé e Yure.
A Tânia, Elizana e Aroldo pela paciência e amizade. A Gandhi pelo apoio e pelo amor
compartilhado. A Telma pela amizade e torcida.
A meus pais Aloizio e Carminha que acreditaram nas minhas escolhas e estão sempre
ao meu lado com todo apoio e amor. As sobrinhas Júlia e Sofia pelos abraços que
acalmam. A Luquinha por me acompanhar nas pesquisas. A Isau por ter me mostrado
o caminho do Movimento na Geografia. A Shauna e demais familiares pela torcida.
RESUMO
The mediation between nature / society and the spatial and territorial logics of
water struggles in the theoretical Lukacsian work ontology concept.
The present PhD thesis assumes that the mediation between nature / society -
the ontological labor existence condition and life production - common to the
traditional people from the lands and water land environment, it is absorbed by
labor capitalist relations and human nature needs, then changing territories and
territoriality. In this way, we analyze the artisanal fishing from lukacsian ontology
conception and labor as mediator between society / nature relations that has the
transition character from biological to social being. In this way, it gives meaning
to social being and its sociability, once, there is a capital growth in natural
environments like land and water, it is increasingly appropriate as a universal
means of production superimposed on use of value. This research conducted
through the study of artisanal fishing in the state of Sergipe, in its spatial and
territorial logics, before the territorialization of capital in agro-hydro business form,
using nature as a landscape to be sold for real estate speculation, tourism,
expropriation of property of land and water. The advancement consolidation of
capital system in political entities has the propagation of the discourse of
productivity and natural environment control, as investments form and policies.
They use aquaculture as a solution for fish production chain to guarantee that the
country as a major world producer. The consequences for artisanal fishing in
Sergipe can be noticed in its increased reduction by the imposed restrain on
access to water and livelihoods, it has been done through local policies of
incentives to shrimp farming and fish farming that ignores the fishing communities
life style, Pushing nature as a form of commodity, accumulation of capital. A
market that is an ontological condition for alienation. We conclude in this thesis
that the socialization of nature as a condition of human life can be determined by
the relation of domination, or by the production of social life from needs that do
not represent destruction of the human condition. Understanding relation need,
quality and use, as an opposition to the vicious circle of the reified capital system,
which transforms men into things, and ensures the increasing expansion of
production wealth. In order to resist to it, we must reconstitute perspectives that
shift the metabolism of capital into a metabolism beyond capital and,
consequently, reestablish essential needs for human condition.
Lista de Mapas
Lista de Mapa.........................................................................................................
Lista de Figura........................................................................................................
Lista de Gráfico......................................................................................................
Lista de Quadro......................................................................................................
Lista de Foto...........................................................................................................
Introdução........................................................................................................17
1.1-A pesca-artesanal........................................................................................28
Considerações
Finais...............................................................................................................241
Referências......................................................................................................247
.
INTRODUÇÃO
17
A presente Tese está sustentada na reflexão dialética do conhecimento,
no que Carvalho (2008) afirma ser a totalidade a categoria fundamental de
análise, significando a realidade objetiva em suas correlações concretas (p.51)
e na análise das contradições mediante o materialismo histórico, que representa,
de acordo com Lukács (2015), o primeiro método:
18
social se faz presente nas sociabilidades desdobradas sob o julgo do capital,
entendendo que:
19
capital, e suas especificidades, autores como Carlos DIEGUES, Cristiano
RAMALHO, Eduardo CARDOSO e Simone MALDONADO, Catia da SILVA
fazem-se presentes nas nossas reflexões.
Temos clareza que para verificarmos as possibilidades de permanência e
resistência no lugar, na leitura ontológica do trabalho, é fundamental o
entendimento da narrativa dos usos verbais dos tempos dos sujeitos que narram,
dando-lhes o lugar dos narradores e colocando-me na condição de ouvinte para
identificar e descrever o conteúdo e sentidos das suas falas do ritmo das suas
percepções do sentido da vida, do sentido do tempo, do tempo do trabalho, do
lazer, do sentido do dinheiro, buscando pontuar as contradições do desejo e do
real.
Os sujeitos sociais aos quais nos reportamos têm, no intercâmbio com a
natureza, a constituição do seu modo de vida. A transformação da natureza pelo
trabalho, o ato de pescar como reprodução da vida social, passa por relações de
cooperação à medida que a apropriação das condições naturais para o exercício
da atividade não é mediada pela propriedade individual. Para Marx e Engels
(2007), a natureza como instrumentos de produção naturais pressupõe os
homens subsumidos à natureza. Dessa forma, o trabalho apresenta-se como
conhecimento e uso da natureza a partir de relações com base na coletividade.
A relação sociedade/natureza, nesse sentido, constitui-se unidade, sendo as
necessidades biológicas do ser social satisfeitas, ao mesmo tempo que, através
do modo de vida, constrói- se a identidade pelo trabalho.
No sociometabolismo do capital, a ordem de sua reprodução se dá, como
aponta Mészáros (2002), doravante sua incontrolabilidade, de forma que o uso
da natureza é mediado pela necessidade do valor de troca. A condição de
estranhamento da natureza e de si mesmo se estabelece ao passo que as
condições da existência humana são sujeitadas à produção da mercadoria como
indispensáveis à vida social. Nesse âmbito, a permanência de modos de vida de
comunidades pesqueiras representam resistência ao capital, na condição do não
estranhamento da natureza e da essência ontológica do trabalho.
Nossa Tese sustenta-se na concepção de trabalho de George Lukács.
Para o referente autor, o intercâmbio homem/natureza ocorre pela mediação do
trabalho que representa uma determinação ontológica e dá sentido ao ser social.
Essa determinação ontológica se dá no entendimento de que “Somente o
20
trabalho tem como sua essência ontológica, um claro caráter intermediário: ele
é essencialmente uma inter-relação entre homem (sociedade) e natureza, tanto
inorgânica (utensílios, matéria-prima, objeto de trabalho) como orgânica”
(Lukács, 1981, p.3).
21
difícil diante de toda pressão que esses ambientes estão sendo submetidos pelo
capital. Entre estas: a valorização do uso do solo, mediante processos de
expansão imobiliária e do turismo, em que a natureza passa a ser vista como
mercadoria e, consequentemente, fonte de lucro, especificamente em áreas
consideradas economicamente inexpressíveis, onde os bens naturais ainda
apresentam-se abundantes.
22
e troca, que atende ao propósito da acumulação capitalista” (HARVEY, 2005, p.
56).
A crescente tendência é a interação do modo capitalista e não capitalista
tornarem-se interdependentes. “A tendência do capitalismo, portanto, é
estabelecer um conjunto universal de valores, baseado no ‘trabalho social
abstrato’, definido numa escala global” (Ibidem, p. 63). O sistema
sociometabólico do capital, a fim de garantir crescimento, cria novos espaços de
acumulação.
A atividade pesqueira artesanal no modo de produção capitalista se
mantém como atividade subordinada ao valor de troca, em que os trabalhadores
e trabalhadoras que vivem da pesca, apesar das formas de resistência a partir
das identidades construídas, vivem no nível de pobreza e subserviência, de
modo que só uma inversão à lógica imposta nos espaços litorâneos e estuarinos
possibilitaria uma mudança de cenário, o que requer, dessa forma, uma
superação da lógica capitalista na produção do espaço. Nesse processo, a
relação sociedade/natureza altera-se em novas articulações da divisão social e
territorial do trabalho. Este é ameaçado na sua condição ontológica.
Entendemos que a essência ontológica do trabalho da atividade da pesca-
artesanal permite que permanências e resistências sejam construídas no
cotidiano das comunidades pesqueiras, contrapondo-se à forma alienante do
processo de trabalho subjugado ao capital.
As práticas de campo no resgate das experiências de vida e de trabalho
dos sujeitos que vivem da pesca-artesanal em Sergipe foi realizada,
especificamente, nas comunidades pesqueiras situadas no litoral sul de Sergipe,
no Baixo São Francisco e na Grande Aracaju ( Mapa 1), foi capturada através de
entrevistas abertas, semiestruturadas; depoimentos e relatos, como também nas
consultas a documentos produzidos por órgãos oficiais (Ministério da Pesca e
Aquicultura, IBAMA, ADEMA etc.) e pelos Movimentos Sociais ligados à pesca-
artesanal, como também as entidades institucionais de suas representações.
As comunidades visitadas foram escolhidas a partir dos conflitos
existentes entre o modo de vida das comunidades pesqueiras e a territorialização
do capital, de maneira que o urbano, a expansão do agronegócio, da aquicultura,
do turismo de consumo da natureza, e a relação com o mercado se fazem
centrais a compreensão do que se constitui permanência e resistência na
23
organização da vida e trabalho dos pescadores e pescadoras artesanais que
enquanto comunidade nos permitiu através da memória desenvolver esta
pesquisa.
No acesso as narrativas enquanto memória, passado e presente, os
entrevistados foram trabalhadores mais velhos que vivenciaram diferentes
momentos da captura de pescados na relação de apropriação da natureza. Em
torno de suas falas é que nossa análise se constitui uma leitura da realidade da
pesca-artesanal em Sergipe.
Foram transcritas as entrevistas de 18 trabalhadores da pesca-artesanal,
pescadores e pescadoras, entre eles representantes de associação, colônia e
do Movimento de Marisqueiras de Sergipe. Compõe esta pesquisa, conversas
em grupo na ASSEPIPO-Pirambu, participação de reunião da Associação de
Marisqueiras de Porto do Mato com pescadores e pescadoras, e debates
realizados durante três dias entre Resina e Propriá com pescadores e
pescadoras de todo estado, na articulação e formação organizada pela CPP e
MPP com Movimentos Sociais de Sergipe.
24
Mapa 1
25
relações capitalistas de produção, identificando as formas como o capital
territorializa-se através de processos que compõem a privatização, o controle e
a exploração da natureza.
No capítulo dois, “A pesca-artesanal na mediação da tríade
sociedade/trabalho/natureza: construindo resistências”, analisamos a
centralidade do trabalho nas relações sociais e sua condição ontológica na
pesca-artesanal. Destaca-se o metabolismo com a natureza nas comunidades
pesqueiras artesanais e como esse se constitui em singularidade. A análise
aprofunda-se no processo de alienação como constituinte da sociabilidade
instituída na universalidade do valor-de-troca, bem como a essência do trabalho
ontológico impõe limites ao processo de reificação do ser social.
O terceiro capítulo, “A singularidade do pescador-artesanal”, dá-se em
torno da constituição do debate sobre comunidades tradicionais em um paralelo
com comunidades comunistas primitivas e o costumes e cultura de comunidades
pobres, no sentido de apontar o reconhecimento do modo de vida tradicional a
partir de singularidades que se destacam no que é o sociometabolismo do
capital, no ponto que o debate em torno dessas comunidades se põe na
organização do trabalho, no sentido da cooperação e das relação com a
natureza. Nesse caminho, são apontadas de que forma se estabelecem a
permanência e a resistência das comunidades pesqueiras em Sergipe, a partir
do relato dos pescadores sobre o cotidiano do produzir-se na atividade
pesqueira, e de que forma se estabelece as singularidades definidas no debate
sobre comunidades tradicionais.
No quarto capítulo, “Contradição e dialética no processo de apropriação
da natureza: a pesca-artesanal frente à destrutividade do capital”, a reflexão se
dá em torno da apropriação da natureza, sua produção no modo de produção
capitalista e a forma como as comunidades pesqueiras se apropriam como
condição de vida com base no valor de uso e na unidade sociedade/natureza.
As contradições na relação sociedade/natureza finalizam a reflexão, na
compreensão do que representa uma natureza atormentada pela destrutividade
do capital na sua necessidade crescente de produção de valor.
Nas Considerações Finais, aponta-se a natureza não apenas como
conceito, mas como condição real de existência, de forma que pensar a
emancipação humana faz-se necessário a partir do que é vital ao ser social.
26
Condição irrefutável do ser, o trabalho carrega em si a condição de liberdade,
que nas comunidades tradicionais pesqueiras aparece na vida cotidiana como
resistência à sujeição completa à lógica do capital no processo de
estranhamento do que é vital à vida social.
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I CAPÍTULO- LÓGICAS ESPACIAIS E TERRITORIAIS DA PESCA-
ARTESANAL EM SERGIPE.
1.1-A pesca-artesanal
28
corporações ou confrarias de comerciantes ligadas à atividade pesqueira. Com
a pesca de longo curso, em mares mais distantes, há também a necessidade de
capital para manutenção dos barcos e tripulação.
Dentre as funções articuladas à atividade pesqueira, Cardoso (2001)
chama atenção a importância da pesca marítima para o processo de acumulação
do capital e da consolidação do capital mercantil dependente do comércio de
longas distâncias. No século XV e XVI, por sua vez, atrelados as navegações
que precedem o capital industrial no processo de acumulação.
A Revolução Industrial possibilitou o aumento da produção pesqueira.
Com o barco a vapor, permitiu centenas de toneladas de carga e a melhoria dos
meios de transporte, que permitiu a comercialização dos pescados nos centros
urbanos. No século XIX, essas mudanças tecnológicas acarretaram mudanças
profundas no processo de trabalho e na organização produtiva da pesca, o que
fez com que pescadores artesanais procurassem trabalho na pesca industrial
(DIEGUES 1983). Considera o autor que, no século XIX, na Inglaterra, havia vida
distinta, entre os pequenos pescadores e os pescadores que trabalhavam
embarcados nos barcos a vapor, proveniente da Revolução Industrial. Isso
porque já havia uma proletarização diferenciada e muito mais intensa na pesca
direcionada ao mercado, devido à intensificação do capital industrial.
Para Diegues, a proletarização na pesca, se dá com a introdução no modo
de produção capitalista, com a separação do pescador dos meios de produção,
embora esta tendência estivesse presente desde o século XIX. Foram as
transformações técnicas que permitiram a captura de pescados em grande
escala, e a concentração de capital que, inevitavelmente, levaram a uma forte
mudança na prática da atividade pesqueira, tanto na escala mundial como na
nacional.
O capital sujeita as relações no seu processo de acumulação e incide
sobre a pesca de diferentes formas. Em seu modo artesanal a pesca tanto é
sujeita ao processo de acumulação, na produção de mercadoria, ao mesmo
tempo que representa relações não inscritas no ciclo de reprodução do capital.
O pescar artesanal se dá no conflito entre diferentes estruturas produtivas, com
variados graus de inserção de capital. A condição de identidade construída na
atividade pesqueira artesanal, a condição de comunidade tradicional, está na
relação direta com a natureza como condição de vida.
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A pesca-artesanal não é tão somente conceituar e descrever a atividade
no seu processo de trabalho, não é apenas contrapor à atividade artesanal a
industrial, na sua capacidade de captura, mas entender o movimento da pesca
em sua forma artesanal e as relações que ela possibilita construir, de maneira a
apontar para permanências e resistências na sua forma de organização.
O Brasil é um país com grande diversidade em sua formação natural, no
caso da pesca, em suas modalidades artesanal e industrial, essa diversidade é
considerada, e possui relevância de maneira que a produção da pesca em
grande escala instala-se primeiramente onde há uma possibilidade de uso da
tecnologia disponível. Sendo a pesca-artesanal uma prática marítima e
continental, nas regiões Norte, Centro-oeste e Nordeste, elas predominam,
levando em conta diversas determinações que mediam a relação
sociedade/natureza na pesca, e nesse sentido de que forma se dá a organização
da mesma:
30
IBAMA1, no entanto a plataforma continental é estreita, e o fundo formado por
corais limita a prática do arrasto. Nas regiões Sul e Sudeste há também um grau
de produtividade de espécies que interessam ao mercado devido a correntes
marinhas ricas em nutrientes e características dessas regiões. Para Silva (2008),
esses elementos naturais conjuntamente com o incentivo fiscal do governo na
década de 1960 para atrair incentivo privado para a atividade pesqueira, fizeram
com que a pesca industrial tivesse mais força nas regiões Sul e Sudeste, onde
grande parte das empresas mantinham suas sedes.
Para Diegues (1983) o fato da pesca industrial está mais articulada no
Sudeste e Sul do país, está ligada a condições naturais e históricas que
permitiram uma acumulação mais intensa de capital nessas regiões, e nesse
caso distinta do modo de ser da pesca-artesanal. Para o autor, a pesca artesanal
não desapareceu, mas passa a estar dependente e subordinada à pesca
empresarial- capitalista. No caso do Nordeste, o autor vai afirmar que apesar de
prevalecer a pesca-artesanal há uma apropriação do excedente da pesca-
artesanal por empresas presentes na região. No entanto a pesca-artesanal
extrativa, continental e de estuário ainda é responsável por 60% da produção
nacional, o que para Silva (2008) demonstra a permanência da atividade e sua
importância produtiva.
Falar da produção pesqueira nas regiões não configura uma tentativa de
delimitar modalidades de pesca a determinados espaços físicos. De acordo com
Diegues (1983), passa pela compreensão da forma como a atividade pesqueira
se organiza enquanto atividade produtiva subordinada à produção capitalista que
se espacializa. A produção de pescado em sua forma artesanal ou industrial tem
diferentes alcances:
1
Segundo relatório do IBAMA-Estatística da Pesca de 2006, a região Nordeste é a segunda região em
produção de pescados por meio da pesca extrativa marinha, com o número de 155.162 toneladas.
31
A espacialização das modalidades de pesca no Brasil, submetidas a
condições naturais e históricas, compõe o desenvolvimento desigual resultante
do modo de produzir do capital. A prática da pesca-artesanal configura-se em
espaços para acumulação onde os recursos ainda não estejam esgotados.
Desse modo, contrapor a pesca-artesanal a outras modalidades de produzir
pescado implica pensar de que forma a organização da atividade pesqueira
artesanal ao longo da história representa, enquanto trabalho, uma maneira
diferenciada de se relacionar com a natureza.
Para Ramalho (2007), as mediações específicas da pesca permitem sua
leitura como arte, a arte de se fazer pescador artesanal, do conhecimento e
controle significativo do processo de trabalho, que lhes permite não estar
submetidos à plenitude do modo de produzir do capital, e, portanto, de
organização do trabalho que subverte a lógica capitalista. No entanto, o modo
de ser do capital passa pela captura do trabalho, e o ato de exercer trabalho-
pesca, passa pelo trabalho abstrato:
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Os diferentes graus de incorporação de tecnologia e capital na atividade
pesqueira converte-se em conflito entre estruturas produtivas, pois mesmo na
pesca-artesanal, há modalidades mais voltadas à subsistência e outras que
empregam técnicas de maior captura voltada ao mercado. O que para Cardoso
(2001) faz com que a identidade do pescador- artesanal emerja numa questão
territorial enquanto pauta e articulação de movimentos sociais voltados à
manutenção da atividade. Ante as diferenças existentes, trata-se da
permanência da pesca em sua modalidade artesanal, no confronto com
estruturas que afetam diretamente na organização da atividade enquanto modo
de vida:
33
O esforço não é o de conceituar, o que seria a pesca-artesanal, ou ser
pescador artesanal, mas o de compreender as relações que permitem identificar
a atividade pesqueira na modalidade artesanal como sendo um trabalho que
impõe limites à produção capitalista, na reprodução sóciometabólica do capital.
A atividade pesqueira artesanal em sua mediação sociedade/natureza
possui especificidades na forma de ser do trabalho subjugado ao capital e na
forma de produzir natureza, portanto pescadores e pescadoras como
contradição ao território do capital. A pesca é uma atividade que gera como
fruto do trabalho recursos não totalmente controlados há um tempo de
reprodução da natureza necessário, o que também é um limite à racionalidade
capitalista e que tem sido enfrentado com uma forma de produzir pescados que
permite alterar o tempo da natureza, a aquicultura.
34
O agronegócio na expansão da monocultura se apropria de terras onde
estão os cursos das águas ou áreas de mangue, destruindo e expulsando
pequenos produtores e pescadores de seus territórios de vida. Soma-se a essas
questões, a política energética de construção de barragens e hidroelétricas nos
rios, que para construir os lagos reservatórios, com o impacto das inundações,
desapropriam comunidades e transformam todo o curso e reprodução natural
das espécies de água doce com o controle da vasão e mudança na força das
águas. Soma-se ainda a privatização das águas através do hidronegócio em
suas formas de mercadorização, incluindo a aquicultura que estabelece-se a
partir de cercas onde antes se tinha um ambiente considerado livre.
Para Conceição e Sousa (2012), o hidronegócio inscreve-se na
reorganização produtiva no Brasil, impulsionado por setores primário-
exportadores e transnacionais, que torna a natureza apenas uma auxiliar no
processo de produção capitalista, de forma que a terra e a água, elementos da
produção camponesa tornam-se alvo do modelo de desenvolvimento
agroexportador no campo:
35
agronegócio, expande-se a partir dos cultivos nas águas, e é a racionalização do
capital, integrando completamente terra e água.
Com a expansão da reprodução do capital no território onde comunidades
praticam e vivem da pesca-artesanal, há um conflito iminente na forma de
organização do trabalho, no viver da natureza como extensão de vida ou como
meio de produção.
A atividade pesqueira artesanal produz mais da metade dos recursos
pesqueiros do país, segundo o Ministério de Pesca e Aquicultura 2 e o Relatório
descritivo da I Conferência Nacional de Pesca artesanal 3, em 2009, mesmo
assim o capital por intermédio do Estado, como faz com a produção camponesa,
apropria-se desses recursos no momento da circulação/mercado, sem que esse
faça os devidos investimentos na atividade em sua forma artesanal.
Não apenas os números4 revelam a relevância da atividade no Brasil,
mas as próprias relações sociais, construídas a partir da atividade pesqueira, e
que fazem parte da concepção de comunidades tradicionais enquanto conceito
que permeia políticas públicas. No Decreto que institui a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável para comunidades tradicionais, em seu artigo 3º,
inciso I, povos e comunidades tradicionais são definidos como:
2
O Ministério da Pesca e Aquicultura foi criado em 2009 e extinto em outubro de 2015, sendo incorporado
como secretaria no Ministério da Agricultura, em alguns estados, a incorporação final deu-se de forma
gradativa, em Sergipe, a incorporação completou-se em meados de 2016.
3
A Conferência da Pesca Artesanal tem o objetivo de discutir políticas públicas para a atividade pesqueira
artesanal, sendo esta organizada por movimentos de pescadores e pescadoras, entre eles, associações,
colônias, sindicatos e federações de pescadores. A proposta da Conferência Nacional resultou em um
relatório da mesma em que retrata a situação e as demandas da pesca- artesanal no Brasil, de forma que
esses movimentos, juntos, somem forças para atuar perante o Governo Federal e os Estaduais.
4
Segundo documento produzido na I Conferência da Pesca Artesanal, os pescadores e pescadoras
artesanais são responsáveis, por 65% da produção pesqueira, o que representa 500 mil toneladas por ano,
no entanto grande parte da pesca desembarcada não é contada, pois a forma de recolhimento de dados
ainda é muito precária, o que leva a um subdimensionamento da real produção da pesca-artesanal.
36
Apesar de haver políticas direcionadas às comunidades tradicionais e
nesse sentido a pesca-artesanal não se inviabiliza que os maiores incentivos por
parte do governo estejam direcionados para a aquicultura, ou seja, a criação de
pescados, que tem como intuito atender às necessidades de mercado. No
Estado de Sergipe a pesca-artesanal vem sendo pressionada, sendo postos
obstáculos reais à manutenção das comunidades pesqueiras artesanais. Para
Silva (2015), a atividade pesqueira passa por um processo de especialização e
de divisão social do trabalho desde a implementação da industrialização
brasileira, criando a pesca industrial, a aquicultura, a pesca amadora e a pesca-
artesanal, que são previstas em lei como modalidades da atividade pesqueira.
A pesca é regulamentada pela Lei n°11.959, de 29 de junho de 2009 que
dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura
e da Pesca, a qual define a pesca como toda operação, ação ou ato tendente a
extrair, colher, apanhar, apreender ou capturar recursos pesqueiros. Destaca-se
alguns artigos e parágrafos importantes da lei que vão definir e delinear a pesca
e a política pública e de incentivos à atividade em várias dimensões:
37
Para ter acesso a direitos provenientes da prática da atividade pesqueira
é necessário ser registrado juntos aos órgãos que regulamentam a pesca. O
registro geral da Atividade Pesqueira- RGP foi instituído pelo Decreto de Lei
n°221 de 28 de fevereiro de 1967, e ratificado pela lei que regulamenta a pesca
em 2009. De acordo com Documentos do Ministério da Pesca, a Instrução
Normativa de 6 de junho de 2012 regulamenta procedimentos para obter o
registro geral de pesca necessário ao exercício da atividade.
Para obtenção do registro são consideradas duas categorias, pescador
profissional industrial e pescador profissional artesanal, sendo considerado
profissional da modalidade artesanal:
5
Disponível em: www.cppnac.org.br/site_antigorelatoriodescritivo.doc. Acesso em 13/02/2015.
38
A maioria dos atuais investimentos e políticas públicas está
voltada para o fortalecimento do hidronegócio, com exclusivo
interessado de privatizar as águas para instalação de fazendas
de cultivos. Dessa forma suprimem os territórios das
comunidades pesqueiras e promovem a desregulamentação da
legislação ambiental, conquistada historicamente pelas lutas e
mobilizações populares. (p. 2).
6
O Rio Vaza Barris é limite a Zona de Expansão Urbana de Aracaju-ZEU, definida pela Lei Municipal de no
873 de 1 de outubro de 1982, com os municípios de São Cristóvão e Itaporanga D’Ajuda.
39
estuarinos de forma extensiva, nesse sentido, a prática da aquicultura não seria
um problema em si. É o monocultivo que vai apresentar riscos ambientais
comprovados provenientes da criação de uma espécie exótica no caso do
camarão, e a forma de manejo que no modelo vigente foca em elevada
produção, o que leva a uma utilização maior de insumos prejudiciais à dinâmica
estuarina, e que se estende no curso do rio.
A aquicultura de base familiar, identificada em Sergipe por Lima e Silva
(2014), depreende que na organização da atividade fez-se necessário adaptar a
tecnologia utilizada nos viveiros à capacidade de investimento, produzindo de
forma semi-intensiva, coexistindo com a produção intensiva empresarial. No
entanto, na modalidade extensiva, como na semi-intensiva a forma de produzir,
considerando suas diferentes proporções, leva ao: desmatamento das áreas de
mangue e ocupação de faixa de praia; lançamento de efluente dos viveiros no
rio; percolação de água salina e rica em nutrientes dos viveiros; escape de
espécie exótica; consumo de grande volume de água e alteração do regime
hidrológico dos estuários e rios. O que aponta para a produção voltada ao
mercado como essencialmente desvinculada de uma possível sustentabilidade.
Sergipe soma-se a todos os outros estados do Nordeste, mais Rio de
Janeiro e Santa Catarina, e integra o mapa dos produtores de camarão marinho
no Brasil, que identifica o potencial brasileiro na pesca e aquicultura. O mapa
(Figura 1) é parte do 1° Anuário de Pesca e Aquicultura do Brasil, de 2014, que
reúne dados sobre a atividade pesqueira para apresentar ao mundo. Além de
produtor de camarão, Sergipe compõe o quadro dos estados produtores de
tilápia, que é produzida na maior parte do território brasileiro, com exceção do
Amapá. A espécie tilápia e tambaqui compõe o quadro de espécies de grande
produtividade para integrar os investimentos em aquicultura, junto ao
agronegócio, como indústria de riqueza no Brasil, são espécies comparadas a
frangos da água pelo alto nível de produtividade. O Anuário aponta para a
necessidade da cadeia produtiva de pescados no Brasil se estruturar, nos
moldes do agronegócio, o que remete a um investimento cada vez maior nas
atividades correspondentes a aquicultura.
40
FIGURA 1: ESTADOS BRASILEIROS PRODUTORES DE CAMARÃO MARINHO E
TILÁPIA
7
BRASIL, Ministério da Pesca e Aquicultura. 1° Anuário Brasileiro da Pesca e Aquicultura, 2014, p.38.
41
conhecida como a nova Lei da Pesca, elevou o número de cadastros, o que
permitiu a obtenção do número de trabalhadores da pesca por munícipio. O
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento abriga esses dados, sendo
que no ano de 2016, devido às mudanças de competência dos órgãos que
abrigam as políticas voltadas à atividade pesqueira, alguns dados se mantiveram
em migração e não disponibilizados.
Os documentos produzidos pela Universidade Federal de Sergipe em
convênio com a Petrobras são referentes, a medidas compensatórias que a
empresa é obrigada a fazer, devido a sua presença com a produção de petróleo
e gás no estado. Esses dados ajudam a detectar os possíveis impactos nas
comunidades litorâneas presentes em Sergipe, e nas atividades que essas
exercem, nesse caso, a pesca, que é diretamente afetada pela presença da
empresa. É necessário ressaltar que no estado não há registro de pesca
industrial, então todos os dados se referem à pesca-artesanal, ou a aquicultura.
Em Sergipe, a pesca-artesanal é responsável pela maior parte da
produção de pescados, no entanto, a aquicultura aproxima-se em produtividade.
Segundo o último Boletim de Pesca e Aquicultura, divulgado em 2011, a
produção de pescados teve aumento significativo comparada ao ano de 2007:
de 6082,00 toneladas, saltou para 7026,10. A aquicultura continental em Sergipe
produz a maioria dos pescados, correspondentes à atividade, com uma menor
participação da aquicultura marinha, apesar disso, apresentou queda na
produção entre 2007 e 2011, de 5.191,50 toneladas, para 4.653, 60.
A diminuição em números na produtividade dos pescados cultivados
pode ser explicada por uma análise feita pela ABCC- Associação Brasileira de
Criadores de Camarão, em 2011, que atrela a queda de produtividade do
camarão no Nordeste a partir de 2004, maior região produtora, o que inclui
Sergipe, a uma série de fatores, entre eles a dificuldade de obtenção de licença
ambiental entre 2004 e 2009, enchentes, e a disputa de mercado. Somada toda
a produção de pescados em Sergipe, de 1998 a 2007, a produção mais que
duplica, o que pode ser lido junto ao aumento do consumo de pescados no
mercado internacional, bem como o crescente estímulo à aquicultura junto à
produtividade da pesca-artesanal.
42
GRÁFICO 1
5.191,50
6.082,00
GRÁFICO 2
4.653,60
7.026,10
43
GRÁFICO 3
7.498,00
8.000,00
6.459,50
6.000,00 4.635,00
4.017,004.282,00
4.000,00
2.000,00
0
0,00
1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
44
de ser a da produção simples de mercadorias presentes em comunidades
camponesas e comunidades pesqueiras artesanais:
8
Informações obtidas em visita ao órgão em março de 2015, no entanto o estudo está incompleto, são
dados preliminares.
45
manguezal causando interferência direta na produção e
distribuição de nutrientes para o estuário e plataforma
continental; extinção de setores de reprodução e alimento de
moluscos, aves e peixes e diminuição da biodiversidade ao
longo das bacias hidrográficas. Isso gera a expulsão de
marisqueiras, pescadores e catadores de caranguejo de suas
áreas de trabalho, ou tornam-se obstáculos a seu acesso, aos
espaços produtivos do território, ao estuário e ao manguezal
com a privatização de terras da União, tradicionalmente
utilizadas para o extrativismo animal e vegetal. (SANTOS E
COSTA, 2010, p.9).
46
O Presidente do Conselho Nacional de Meio Ambiente de Estância- SE9
afirma que a carcinicultura no seu município é atualmente praticada por grandes
empresas, como o grupo Bompreço e Paes Mendonça, fortes no Nordeste, de
forma que não há mais pequenos produtores atuando no município. Essa
informação corresponde ao que já apontava o documento construído pela
Conferência de Pesca Artesanal, em 2009, que afirmara justamente que os
direcionamentos das ações do governo não estavam pensando a realidade da
pesca-artesanal, sendo que a competitividade de grandes empresas e pequenos
produtores é desproporcional.
Silva (2015), ao analisar a organização político-institucional pesqueira no
Brasil, vai apontar, no período de 1989 até os dias atuais, eventos históricos
importantes ligados à pesca, e vai destacar duas fases, a primeira que vai de
1989 a 1998, e a segunda fase, de 1999 a 2015. A primeira fase, segundo a
autora, é marcada pela política nacional voltada a questões ambientais, período
que o IBAMA administra o setor, e é marcado por ser muito ruim para economia
da pesca. Toma força o debate ideológico sobre a pesca como atividade
predatória, de um lado, e a importância das comunidades ligadas à pesca-
artesanal, de outro.
A fase de 1999 a 2015 tem início com o retorno da regulamentação da
atividade pesqueira ao Ministério da Agricultura e, posteriormente a criação do
Departamento de Pesca e Aquicultura, o que representa a busca por maior
produtividade no setor pesqueiro. A autora enfatiza que entre 2003 e 2009 foi
criada a Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca- SEAP, vinculada à
Presidência da República, e em 26 de junho de 2009 foi criado o Ministério da
Pesca e Aquicultura. Faz-se necessário ressaltar o papel de gestão desses
órgãos, voltado a uma política de desenvolvimento da pesca que tem a
aquicultura como projeto de modernização, o que exige dos trabalhadores da
pesca capacidade de reação:
9
O presidente do Conselho Nacional de Meio Ambiente de Estância, entrevistado em 2015 é pescador
artesanal do município e assumiu o cargo junto ao governo municipal.
47
ambiental. É nesse bojo que surge a política de definição dos
períodos de permissão de pesca, o seguro defeso, que consiste
num auxílio de salário mínimo pago até 2014 pelo Ministério do
trabalho e Renda aos pescadores e marisqueiros, no período em
que a espécie por eles coletada está proibida de captura. (SILVA
2015, p. 50)
48
a natureza que se dá na racionalidade do capital, não está, no entanto, esgotada
as possibilidades da reprodução do capital via a atividade pesqueira.
49
significativa, cerca de 37% 2013. Isso faz com que o setor
pesqueiro seja uma das indústrias alimentares do mundo mais
globalizadas e dinâmicas".
50
apropriação real dos meios de produção; o controle do como pescar e do que
pescar, em suma, o controle da arte da pesca”. (DIEGUES, 1983, p. 198).
As propostas institucionalizadas mediantes os órgãos que “pensam”
políticas para a pesca vão exatamente de encontro ao que nos aponta Diegues
(1983). A aquicultura e a pesca vão ter em comum somente a produção de
pescados, entretanto, para a institucionalidade que pensa o mercado, é a
aquicultura que vai responder:
51
aquicutura brasileira em água da União e em estabelecimentos rurais; Estruturar
a cadeia produtiva e garantir a regularidade da oferta do pescados.
O Documento resultado dessa Conferência Governamental, apresenta o
setor produtivo da pesca como sendo representado por Movimentos Sociais e
Empresários, o que demonstra a intenção de conciliar diferentes formas de
produzir no caminho da produtividade a ser seguido para o setor pesqueiro. Os
interesses representados pelos Movimentos Sociais e Empresários somente são
concíliaveis se o modo de produzir e ser do primeiro subjulgar-se ao segundo no
compromisso com o mercado, aprofundando contradições que vão de encontro
à permanência da pesca-artesanal.
O que representam o modelo presente nas políticas propostas é a pesca
como recurso e a gestão como solução para os problemas ambientais e para o
aumento da produtividade, articuladas ao discurso da sustentabilidade. Há uma
clareza no modelo de desenvolvimento “pensado” para a pesca.
O Plano Safra da Pesca e Aquicultura 2012/2013/2014, em consonância
à Política de Estado direcionada à produção de pescados apresentadas nos
documentos disponibilizados pelo Governo, propõe ser uma política de acesso
à crédito e incentivo à construção de Parque Aquícolas, de forma que se torne
possível modernizar equipamentos, garantir assistência técnica e garantir
produtividade para que pequenos produtores e pescadores insiram-se no
mercado, sendo assim:
52
preciso aprimorar técnicas de cultivo e manuseio, ampliar a
assistência técnica, modernizar equipamentos, investir em
pesquisa e garantir mais estrutura à cadeia produtiva. (Plano
Safra da Pesca e Aquicultura 2012/2013/2014, p.4 BRASIL,
Ministério da Pesca e Aquicultura,)
54
No entanto, essa mesma fórmula vem sendo empregada para pensar a
pesca e a produção de pescados, tendo como proposta a aquicultura como
possibilidade e garantia de produtividade, emprego e renda. Emcontra-se
envolta no discurso da sustentabilidade e da segurança alimentar, amparada
por pesquisas governamentais e de instituições de ensino, e viabilizada por
políticas de crédito que beneficiam grandes empresas e passam a determinar a
produção familiar:
55
pesqueira, aos projetos que representam em sua essência a garantia da
reprodução de mercadorias.
O Ministério da Pesca e Aquicultura no Brasil foi responsável por gestar
políticas para a atividade pesqueira nos anos que correspondem ao Governo
Lula e Dilma, de 2003 a 2016. Políticas essas não desvinculadas de órgãos
internacionais, como no caso da FAO, que articula e apresenta estratégias
mundiais de ação para a pesca nos países que fazem parte do seu Fórum. Em
Sergipe, o desdobramento dessa articulação através do Ministério da Pesca deu-
se inicialmente através do Projeto de Parques Aquícolas nas cidades de
Estância, Pacatuba, Santa Luzia do Itanhy e Indiaroba.
Segundo representante do Ministério da Pesca, o secretário adjunto 10, em
15 de dezembro de 2014, o projeto de Parque Aquícola prevê sua
implementação também no Baixo São Francisco, sendo que em algumas das
cidades selecionadas para receber os Parques, já existem atividades como a
carcinicultura. O Projeto dos Parques aquícolas 11, iniciado com audiências
públicas, prevê oitocentos e oitenta e cinco áreas aquícolas em Sergipe. A
proposta é o cultivo de ostras em águas marinhas da União, que chamadas de
fazendas de criação, destinada em sua maioria segundo matéria veiculada no
site oficial do Ministério, para a aquicultura familiar.
Em conversa, com Djalma Presidente do CMDS- Conselho Municipal de
Desenvolvimento Sustentável- do município de Estância, em 2016, e também
Presidente da Associação de Pescadores do Povoado Massadiço, que faz parte
das comunidades elencadas para participar do Projeto do Parque, afirmou que
o Projeto prevê dois tipos de licitações, a onerosa e a não onerosa.
A licitação onerosa prevê o pagamento pela licença do cultivo destinada
à pesca industrial; e a não onerosa sem custos de acesso à licitação de cultivo,
aos pescadores-artesanais. A onerosa com proposta em sua metragem de área
de cultivo, de cem por cem metros, e a não onerosa para os pescadores
artesanais de dez por cem metros. A proposta corresponde à implementação de
10
Os cargos de Superintendência da Pesca e de Secretaria Adjunta é de livre nomeação da presidência da
república, e durante o processo de pesquisa houve mudanças nos cargos e nas funções quando o
Ministério é incorporado como secretaria ao Ministério da Agricultura.
11
Com a extinção do Ministério da Pesca em 2015, os projetos de parque aquícolas estão
temporariamente suspensos de acordo informações obtidas na Superintendência Federal de Agricultura,
Pecuária e Abastecimento em Sergipe que assumiu a pasta da pesca.
56
três Parques no município de Estância. O primeiro nos Povoados Massadiço,
Miranga, Miranguinha e Ouricuri; o segundo no Povoado Porto do Mato, e o
terceiro próximo à Praia do Saco.
Apesar dos pescadores artesanais não precisarem pagar pela licitação de
uso da área de cultivo, o Projeto segundo o Presidente do CMDS de Estância,
está atrelado à obrigatoriedade de contrair empréstimos junto ao Banco do Brasil
e ao Banco do Nordeste, para garantir a compra de material importado para a
montagem das fazendas de cultivo e sementes das ostras, estando sob
assistência técnica já definida pela proposta do Projeto da empresa chamada
AQUATRIX, presente em todo litoral brasileiro, desconsiderando o conhecimento
de formas de cultivo que utilizam tecnologia que pode ser feita pela própria
comunidade.
O Projeto do Parque Aquícola12 é colocado como uma oportunidade de
desenvolvimento e renda para os pescadores-artesanais, ao mesmo tempo em
que propõe garantia de uma renda fixa, já que, com o cultivo de pescados, a
atividade não mais dependeria da reprodução natural das espécies na natureza.
Portanto, o projeto apresentado pronto e articulado com uma empresa de
assessoria técnica e atrelado ao financiamento bancário para a compra de
materiais.
Em nível estadual, as políticas em Sergipe são gestadas pela Secretaria
de Estado da Agricultura, Desenvolvimento Agrário e da Pesca- SEAGRI, que
possui entre seus projetos para comunidades que vivem da pesca, o incentivo à
piscicultura. O grande investimento apresentado é o projeto Dom Távora em
parceria com o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola-FIDA, que, em
2017, via edital, anunciou o valor total de 28,6 milhões de dólares a serem
investidos em pequenos negócios rurais em 15 municípios do estado, prevendo
o desenvolvimento de atividades como avicultura, caprinocultura, fruticultura
rizicultura, mandiocultura, e a piscicultura.
12
Os Projetos de Parques Aquícolas foram barrados em todo Brasil devido a problemas ambientais
identificados pelos órgãos competentes, os projetos estão parados e segundo a Superintendência Federal
de Agricultura que abriga a pasta da pesca, a implementação das políticas federais com a extinção do
Ministério da pesca em 2016, serão revistas em sua efetivação e prazos.
57
FIGURA 2: LOGOMARCA DO PROJETO DOM TÁVORA
13
Disponível: http://www.agencia.se.gov.br/noticias/agricultura/secretaria-da-agricultura-e-pnud-
lancam-edital-para-contratacao-de-especialistas-e-tecnicos-para-o-dom-tavora. Acesso em 21.10.2017.
58
negócios para associações e cooperativas de agricultores
familiares. Contratado em 2013, com investimento previsto de
US$ 28 milhões, sendo contrapartida estadual de US$ 12,3
milhões, o projeto Dom Távora beneficiará 10 mil famílias de
pequenos produtores rurais, beneficiando 40 mil pessoas,
através da implementação de 300 planos de negócios. O Projeto
atua em 15 municípios dos territórios Agreste Central, Centro
Sul, Baixo São Francisco e Médio Sertão Sergipano. (Disponível
em: http://www.agencia.se.gov.br/noticias/governo/governo-
implanta-projeto-dom-tavora-em-carira. Acesso: 05/03/2017)
60
discurso do empreendedorismo, a atividade pesqueira precisaria modernizar-se,
aproveitar todos os recursos possíveis para inserir-se de forma mais incisiva no
mercado. Um trecho do Documento de 2012 da consultoria legislativa da
Câmara dos Deputados do Brasil aponta sobre a pesca e aquicultura:
61
A destruição da natureza é tratada como crise ambiental com
base nas concepções que defendem a possibilidade da criação
de práticas econômicas e sociais alternativas capazes de operar
transformações expressivas nas relações entre sociedade e
meio ambiente, à luza do paradigma da sustentabilidade, o qual
propõe a internalização de uma nova ética, mediante o
surgimento de uma consciência ecológica, por meio de
mecanismos de mercado como ecoeficiência, certificações e
licenciamento ambiental, ICMS verdes, compensação
ambiental, acordos internacionais, protocolos diplomáticos,
dentre outros. (FONTENELE, 2016, p. 131).
62
acumulação do capital. A imposição da produtividade capitalista na prática
artesanal da pesca é justamente a imposição para a acumulação do capital.
Para Harvey (2010), “as relações entre o capital e o trabalho, bem como
entre o capital e a natureza, são mediadas pela escolha de tecnologias e de
formas organizacionais” (p. 104), que justamente vão mediar à realização do
fetiche da mercadoria, em sua plenitude. Na sua prática artesanal, a pesca
possibilita uma barreira à concretização do processo de reificação das relações,
e do próprio trabalhador que pesca, já que o trabalho ainda não se encontra por
completo subjugado aos imperativos das relações capitalistas.
O produto do trabalho na atividade pesqueira artesanal é retirado
diretamente da natureza. Para Marx (2013), a terra assim como a água
representam meios de subsistências prontos, porque preexiste independente do
trabalho (p. 256). Ao retirar o peixe, os mariscos - do mangue, do rio, do mar- o
trabalhador que pesca obtém objetos de trabalho também preexistentes na
natureza. Essa possibilidade objetivada na pesca-artesanal faz com que os
meios de trabalho estejam disponíveis na natureza, o que permite que a pesca-
artesanal não se dê na forma assalariada, tendo o pescador, domínio de todo o
processo de trabalho até chegar ao produto final do seu trabalho.
A atividade pesqueira-artesanal enquanto trabalho, produz natureza, mas
o que centraliza essa forma de produzir natureza não é apropriação dos meios
de trabalho disponíveis, de forma a garantir diretamente a ampliação/reprodução
do capital, mas a própria condição do pescador artesanal. Diante do que
representa o capital, para Smith (1988), posta uma necessidade social de
ampliação e dominação da natureza, sendo que:
63
sistema do capital, no entanto a produção da natureza deve representar a
dominação no sentido de garantir a expansão e acumulação contínua do capital.
Enquanto a prática da pesca-artesanal impõe limites ao modelo de organização
capitalista, de modo que nem o trabalho e nem o produto do trabalho estão
submetidos completamente às necessidades do capital, às necessidades do
mercado.
Atividades como a aquicultura, ao contrário, se integra perfeitamente ao
mercado mundial, que para Mészáros (2002), é incontrolável, e participando
deste, deve- se adaptar às condições econômicas de coexistências de
mercados, cuja concorrência prevalece e os conflitos se dão na forma da
destruição, na eliminação dos rivais. O que nada tem a ver com a prática de
cooperação construída na pesca-artesanal enquanto atividade exercida em
família ou no que se define vizinhança, e que dá sentido à comunidade.
O Estado reconhece e institucionaliza a pesca-artesanal, de maneira que
se apropria do que é potencial à acumulação do capital, mas não na garantia do
modo de ser da atividade. É discurso do Estado, e de instituições como a FAO,
que a pesca é uma atividade de extrema importância na garantia da segurança
alimentar, na produção de alimentos. Números do Ministério da Pesca no Brasil,
mostram que a quantidade de alimentos produzidos pela pesca-artesanal, e pelo
cultivo através da aquicultura são muito próximos. Em 2013, a produção de
pescados no Brasil foi estimada em 2,5 milhões de toneladas, sendo que 45%
da produção anual de pescados no Brasil correspondente à pesca-artesanal, o
que equivale há um pouco mais de um milhão de pescados provenientes da
modalidade artesanal, no entanto o estimulo se dá em direção contrária à
maneira de produzir do pescador artesanal:
64
O Estado sempre esteve presente na constituição do que seria a pesca-
artesanal, já que a própria instituição dessa categoria em contraponto ao que
seria a pesca industrial é estabelecida pelo próprio Estado. Para Resende
(2014), a relação institucional da pesca com o Estado Brasileiro remete ao
período Imperial, quando o conhecimento do pescador sobre a natureza e suas
possibilidades de uso se torna funcional, assim como a possibilidade da atividade
pesqueira tornar-se parte da estratégia de controle do território, do litoral
brasileiro. O pescador passa então a está sob o controle da Marinha, mediante
as estruturas administrativas:
65
que tornem os pescados atrativos ao mercado. Dessa forma, o Estado em seu
papel corretivo atua diretamente sobre a atividade pesqueira.
Apesar da atividade pesqueira artesanal perpassar pela forma de
apropriação/relação com a natureza das sociabilidades existentes, representa
um contraponto ao modo de produzir do capital. A pesca-artesanal perpassa a
institucionalidade desde o momento que é reconhecida enquanto categoria
atrelada diretamente ao Estado. A condição de exercer a pesca, enquanto
atividade econômica que permita o sustento, é a de se cadastrar junto ao
Ministério da Pesca e obter a carteira de profissional.
O Estado atua de forma a inserir a pesca no circuito produtivo do capital
mesmo em sua forma artesanal, sendo uma atividade que aponta para caminhos
que não somente o do trabalho assalariado e do consumo da natureza, enquanto
mercadoria. O esforço corretivo se dá via estratégia de controle do território, ou
do trabalho em si, para garantir a acumulação capitalista e não a acumulação do
que representa vida.
66
MAPA 2: BACIAS HIDROGRÁFICAS DE SERGIPE
67
Federação contabilizando, em 2014, 44 organizações segundo dados do
Ministério da Pesca. Algumas comunidades, além da pesca, exercem outras
atividades e são reconhecidamente quilombolas, indígenas, e assentamentos de
reforma agrária.
De acordo com dados disponibilizados pelo Ministério da Pesca, o número
de pescadores artesanais em todo Brasil aumentou durante os governos de Lula
e Dilma, de 2002 a 2016. Esse aumento está relacionado às políticas
direcionadas para a atividade pesqueira efetivada com a criação do Ministério da
pesca, em 2009, e algumas leis e decretos direcionados a atividade. O aumento
é referente às estatísticas institucionais, devido ao cadastro necessário para o
exercício da atividade pesqueira, o que, consequentemente, possibilitou um
maior canal de comunicação com as entidades representativas dos pescadores
e com os Movimentos Sociais ligados à atividade pesqueira, que mediam a
comunicação e o acesso dos trabalhadores da pesca às Políticas Públicas e se
organizam de forma a consolidar suas pautas.
Esses avanços foram possíveis devido à luta dos Movimentos Sociais
pelo reconhecimento da atividade e dos direitos trabalhistas, investimentos para
o setor e reconhecimento das comunidades e do território que vivem. No entanto,
na pauta dos Movimentos, estão questionamentos à forma como as Políticas
foram direcionadas e articuladas. O que guia as políticas é a necessidade do
mercado internacional, articuladas a uma modernização que tem por objetivo
somente a produtividade para o mercado, o que faz com que as Políticas
Públicas sejam compensatórias em relação às reais necessidades das
comunidades que vivem da pesca.
A Lei 11.958 sancionada em 2009, dispõe sobre a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca para regular as
atividades pesqueiras. Em suas principais competências: reconhece ao Estado
a função de ordenar, fomentar e fiscalizar a atividade pesqueira; preservar e
conservar recursos pesqueiros; define a atividade pesqueira, a atividade de
aquicultura e as categorias e setores relacionados às atividades.
Essa lei foi de grande impacto, pois conjuntamente com a criação do
Ministério da Pesca, permeou toda a Política Pública e as reivindicações dos
setores articulados com o processo de captura de pescados, entre eles a pesca-
artesanal. O reconhecimento de direitos fez com que muitos trabalhadores da
68
pesca, desde os que trabalham com a captura até os que trabalham com a
comercialização, pudessem ter reconhecido direitos trabalhistas e acesso aos
benefícios, como o crédito bancário e aposentadoria especial.
Historicamente, as Colônias têm a função de representar os pescadores
artesanais enquanto órgão de classe. A lei 11.699 de 13 de junho de 2008,
dispõe sobre a livre associação e o papel de representação estadual das
Colônias. Já as Associações de pescadores fazem o papel de intermédio com
os Órgãos governamentais, tratando da burocracia necessária para acessar o
seguro defeso e a aposentadoria, mas o fazem não enquanto órgão de classe,
e sim como assessoria. Houve um aumento do número de associações nos
últimos anos14, o que mostra uma mudança na dinâmica representativa dos
pescadores, que passa por disputas políticas intensificadas com o advento das
políticas destinadas à categoria dos pescadores artesanais. (Quadro 1 e Mapa
3)
Não houve atualização dos dados do Ministério da Pesca até o ano de 2016 por conta da extinção do
órgão. Os dados sobre a RGP são disponibilizados no site do Ministério da Agricultura e na
Superintendência Federal de Agricultura.
69
MAPA 3: PESCA ARTESANAL EM SERGIPE 2016
70
Até o ano de 2014, de acordo com os dados do Ministério da Pesca,
haviam cadastrado 38.087 pescadores profissionais artesanais ativos, em 2016,
o número de cadastrados segundo o Ministério da Agricultura é de 28.348. Essa
queda no número de cadastros pode ser explicada pelos decretos 8.424 e 8.225
de 2015, que definiu novas regras para acesso a benefícios, e dificultou a
liberação e a regularização de novas RGPs. Os decretos excluem as atividades
de apoio à pesca, do acesso a benefícios, como o seguro defeso, e dispõe sobre
novos critérios para inscrição no Registro Geral da Atividade Pesqueira. Com
isso, órgãos de controle suspenderam registros já existentes e a análise de
novos, retomando a regularização do RGP somente em julho de 2017 15.
O cadastro que se refere ao RGP, concessão de autorização, permissão
ou licença para o exercício da atividade pesqueira é também necessário para
que pescadores possam acessar benefícios relacionados à atividade pesqueira
comprovando a profissão. Os benefícios assegurados são: o seguro defeso16, o
auxilio maternidade, auxilio doença, e a aposentadoria especial a qual assegura
que o trabalhador da pesca se aposente cinco anos antes que o trabalhador
urbano, como também o acesso às políticas de crédito e de infraestrutura.
Com a extinção do Ministério da Pesca17, a competência sobre a
regulação e as Políticas Federais para a atividade pesqueira passaram para
SFA-SE, ligado ao Ministério da Agricultura. No que corresponde às políticas de
infraestrutura, em 2015, com a suspensão da liberação de novos Parques
Aquícolas em todo o Brasil, foram suspensos os previstos para Sergipe- em
Estância e no Baixo São Francisco. A suspensão deve-se a problemas com
monitoramento e atendimento de condicionantes de licenças ambientais em todo
Brasil.
15
A Secretaria de Aquicultura e Pesca do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC)
publicou em 27 de julho de 2017 a portaria 1275 que tornou válido os registros suspensos e ainda não
analisados em todo Brasil. A permissão não dá acesso imediatamente ao seguro-defeso, que depende do
preenchimento dos pré-requisitos da Lei n° 10.779/ 2003 e Decreto n° 8.424/2015
16
O seguro defeso é um benefício pago ao pescador artesanal que fica proibido de capturar determinadas
espécies em períodos determinados para a reprodução. Desde abril de 2015 a habilitação e a concessão
do seguro-defeso cabem ao INSS e a gestão ao Ministério do Trabalho e do Emprego.
17
Em consonância com a Lei 15. 502/2017 que estabelece a organização básica de órgão da Presidência
da República e dos ministérios, em 22/01/2018, a Secretaria de Aquicultura e Pesca deixa de pertencer
ao Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços e passa a estar vinculada diretamente a
Presidência da República, o que lhe garante novamente o status de Ministério.
71
As políticas de infraestrutura presentes em Sergipe correspondem a
fábricas de gelo, caminhões frigoríficos, escavadeiras e computadores de acordo
com informações da SFA-SE em 2016. São duas fábricas de gelo no estado,
uma funciona no município de Brejo Grande e a segunda está ociosa no
município de Santa Luzia do Itanhy. Conforme a SFA-SE, as políticas de infra-
estrutura estão sendo repensadas para que as prefeituras desses municípios
assumam a gestão. As escavadeiras estão cedidas para construção de tanques
nos municípios de Carira, Itabaiana e Nossa Senhora das Dores. Um Telecentro
funciona em Brejo Grande, com computadores e acesso à internet voltado para
a formação dos pescadores. Em relação à assistência técnica para a criação de
pescados, ela existe a nível federal como política do MDA, mas não tem atuado
em Sergipe.
A grande aposta de infraestrutura é o terminal pesqueiro iniciada sua
construção em dezembro de 2015 e com 75% de suas obras finalizadas em
fevereiro de 2017, com pendências técnicas ainda em 2018. O terminal
construído pelo Governo do Estado em Convênio com o Governo Federal tem
como meta atingir mais de 12 mil pescadores, e o objetivo de facilitar a
comercialização de pescados, atendendo exigências de mercado como
conservação e limpeza. A intenção é profissionalizar a atividade:
72
FIGURA 3- TERMINAL PESQUEIRO DE SERGIPE
73
Pensar a profissionalização da captura e a comercialização de pescados
em Sergipe, quando se tem como política de infraestrutura apenas dois
frigoríficos que não correspondem à demanda de pescados do estado, enquanto
que o terminal pesqueiro localiza-se, onde aportam grandes embarcações,
remete a intencionalidade do papel do pescador-artesanal nesse modelo de
desenvolvimento. Não há como o pescador artesanal acessar o mercado em
disputa com a estrutura de grandes empresas de comercialização de pescados,
o que fortalece a presença de atravessadores nas comunidades.
Não há nas políticas de infraestrutura identificadas com qualquer
referência ao acesso a instrumentos de pesca, como redes, barcos e motores,
que permitem uma maior autonomia dos pescadores, que é o acesso aos seus
instrumentos de trabalho. A única política destinada à compra desse material
passa pelo crédito individual que leva ao endividamento de uma categoria já
fragilizada. Como estratégia de permanência, muitos pescadores (Foto 2)
desenvolvem habilidades na fabricação de redes e barcos e estabelecem preços
entre si, que passam pela renda disponível da comunidade e não por valores de
mercado.
74
Outro ponto de disputa nas políticas conquistadas ao longo dos últimos
anos tem a ver com o RGP. Um dos problemas apontados na Superintendência
Federal de Agricultura em Sergipe- SFA-SE, refere-se ao número real de
pescadores no estado que não condiz com o número de registros. A alegação é
que muitos fazem o registro para acessar benefícios, o seguro- defeso e a
aposentadoria especial, discurso esse, que ao desqualificar os pescadores
enquanto categoria, fragiliza o acesso à política pública.
O dirigente da Colônia Z118 que abrange Aracaju e municípios próximos
como Maruim e Laranjeiras, afirma que o papel da Colônia é fazer o cadastro
inicial, sendo necessário além da documentação dos pescadores, duas
testemunhas que atestem que a pessoa em questão exerce a pesca-artesanal.
Dessa forma, não é competência de entidades representativas fiscalizar quem
de fato pratica ou não a atividade pesqueira artesanal, a comprovação se dá pelo
reconhecimento de outros pescadores.
Com as novas regras de acesso aos benefícios para novos cadastrados
por meio dos decretos n°8424 e n°8425 de abril de 2015, o governo federal alega
diminuição de distorções:
18
A visita a Colônia Z1 foi feita em 2016.
19
Disponível em: http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2015/04/pescador-recebera-seguro-
desemprego-durante-defeso. (Acesso em 03/11/2015)
75
Para os dirigentes20 das Colônias Z1 e Z2, das regiões de Aracaju e São
Cristóvão, respectivamente, com maior número de pescadores registrados em
Sergipe, muitos pescadores são prejudicados com a suspensão do cadastro
inicial, as colônias desde 2015, não recebem a carteira de pescador de alguns
associados já cadastrados, o que as impede de efetuar novos cadastros iniciais.
O Decreto n°8.424, com as novas regras para acesso ao seguro defeso e registro
de pescador, à medida que legisla sobre o acesso aos benefícios de direito do
pescador- artesanal ignora a realidade do mesmo.
O Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais em Intercâmbio 21
realizado em Sergipe, com pescadores e pescadoras do estado, defende a
pesca como captura, beneficiamento e comercialização. Esse reconhecimento
fortalece a atividade pesqueira em detrimento da figura do atravessador
comumente apontado por comunidades que vivem da pesca como uns dos
grandes problemas, obrigando-as a entregar o pescado por um valor que não
lhes garante o sustento.
Para o Movimento, a leitura da pesca ininterrupta é uma negação da
realidade das pescadoras e pescadores que enfrentam diversas dificuldades
para viver da pesca. Nesse sentido, esses decretos representam um
enfraquecimento e um recuo a direitos conquistados. Após os decretos o MPP
contabiliza o indeferimento e não entrega de mais de 200 mil carteiras em 2015
e 2016, a resposta se dá na forma de mobilização, em novembro de 2016, em
Brasília, para afirmar entre outras pautas, a necessidade de revogação desses
decretos.
O emprego em outras atividades durante o ano, ou o exercício da
atividade pesqueira associada a outras atividades, faz-se necessário devido às
dificuldades e à impossibilidade em muitos casos de viver somente da pesca. A
renda de outras atividades permite o acesso não somente a itens de consumo,
como a manutenção dos instrumentos de trabalho, rede, barco, motor. As
atividades de apoio à pesca, que envolvem tratar o pescado, ou comercializar,
20
Conversa realizada em 2017 na colônia Z1 em reunião com os dirigentes da colônia Z1 e Z2.
21
De 28 de outubro a 1 de novembro de 2016 foi realizado em Sergipe um Intercâmbio das Pastorais
Sociais do Campo, Movimentos Sociais, Povos e Comunidades Tradicionais, onde foi possível a nossa
participação.
76
são feitas por familiares ou por pessoas da comunidade, e constituem o viver da
pesca.
A construção da Política Pública descolada da realidade do pescador, ou
a partir de uma visão romantizada e útil de comunidades tradicionais que liga a
relação com a natureza a uma condição de pobreza, tem como papel negar-lhes
não só o acesso ao consumo, mas fragilizar-lhes em seus direitos conquistados:
77
O reconhecimento não leva a uma leitura da atividade em sua realidade. Há o
risco dos trabalhadores da pesca organizarem-se em torno de políticas públicas
que lhe são de direito, mas que representam a essência do Estado, enquanto
que a materialização do sentido de ser pescador/pescadora artesanal se dá na
continuidade do viver da/na natureza.
Em Sergipe os relatos dos pescadores artesanais e das pesquisas
institucionais sobre os vários usos dados, as águas das bacias, estuários, e
marítimas e sua relação com as dificuldades do viver da pesca-artesanal passam
pelo despejo de produtos químicos, o represamento e o não acesso pelos
pescadores a áreas historicamente de uso da atividade pesqueira. Alguns dos
problemas identificados, como, o despejo de produtos poluentes diretamente nas
águas, é notícia recorrente em Sergipe, (Figura, 3, 4 e 5), matérias sobre
manchas de óleo encontradas na praia, referentes a vazamentos da Petrobrás.
Os resíduos das usinas de cana de açúcar e de tanques de criação de pescados
despejados diretamente nas águas dos rios também são identificados como
problemas ambientais no estado.
22
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/09/1809316-ibama-multa-petrobras-
em-r-125-milhoes-por-vazamento-em-sergipe.shtml. Acesso em: 10/10/2016.
78
FIGURA 5: REPORTAGEM SOBRE POLUIÇÃO DE RIOS EM SERGIPE
Fonte: G1 Sergipe.24
23
Disponível em: https://www.destaquenoticias.com.br/leia-poluicao-e-descaso-estao-matando-os-
rios-sergipe-e-poxim/. Acesso em: 10/01/2017.
24
Disponível em: https://g1.globo.com/se/sergipe/noticia/fpi-conclui-que-a-foz-do-rio-sao-francisco-
esta-em-estado-critico.ghtml. Acesso em: 20/10/2017.
79
Relatórios tem sido produzidos no sentido de identificar os problemas que
impactam diretamente a atividade pesqueira visando dar visibilidade às
comunidades que vivem da pesca, fortalecer a identidade construída a partir da
pesca-artesanal e subsidiar políticas na garantia dos territórios das comunidades
tradicionais, o que representa material importante em nível nacional em
contraponto à visão da produção de pescados como possível expansão do
agronegócio que não revela os problemas já enfrentados pelos pescadores
artesanais .
O Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, que disponibiliza
material produzido em diversos estados do Brasil junto a comunidades
tradicionais e está ligado à Universidade Federal da Amazônia e à Publicação
Conflitos Socioambientais e Violações de Direitos Humanos em Comunidades
Tradicionais Pesqueiras no Brasil, produzido pelo Conselho Pastoral dos
Pescadores, ambos a nível nacional, identificam e mapeiam alguns dos conflitos
que afetam diretamente a pesca-artesanal no Brasil incluindo Sergipe, e que vão
de encontro à garantia da permanência das comunidades que vivem da pesca.
No Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia25, nas séries referentes
às comunidades do São Francisco, é possível encontrar depoimentos dos
pescadores sobre os conflitos presentes no estado de Sergipe. Nos relatos dos
pescadores dos Cânions do São Francisco, há denúncia de sumiço dos peixes
após a construção da barragem. A Usina Hidrelétrica de Xingó afetou diversas
comunidades desde sua construção, e os tanques de aquicultura devido ao
volume de água consumido, representam o represamento das águas em maior
e menor escala respectivamente. Outro problema relatado é a dificuldade no
acesso ao rio devido à presença de fazendeiros que avançam com suas
propriedades sobre caminhos de acesso as margens do rio. Os pescadores dos
Cânions identificaram o lugar da piscicultura presente no Baixo São Francisco,
o lugar dos turistas, mas não veem o lugar do pescador.
25
Projeto iniciado na UFAM que reuniu pesquisadores em Antropologia, Direito, Geografia, História,
Biologia e Sociologia, para através de oficinas junto a comunidades tradicionais e movimentos sociais,
produzir material com manifestações de identidades coletivas através de relatos e da cartografia para dar
força ao processo de luta e territorialização dessas comunidades.
80
No Baixo São Francisco os relatos são sobre a pesca predatória e a
piscicultura. A prática da pesca predatória como atividade dos pescantes 26 que
capturam toneladas de peixe nos cânions do São Francisco sem que haja
interferência dos órgãos fiscalizadores, sobre alegação de não ter recursos para
efetivar a fiscalização, no entanto há fiscalização na prática da pesca-artesanal.
A piscicultura apresentada na região do São Francisco em conflito com a pesca-
artesanal é caracterizada pelo cultivo em gaiolas que impedem a passagem dos
barcos utilizados pelos pescadores. A NETUNO é uma das empresas presentes
no Baixo São Francisco - líder na comercialização de pescados no Brasil,
produtora de pescados através do cultivo, possui fazendas de criação e estrutura
de beneficiamento de pescados na região que compreende o São Francisco, de
Pernambuco a Sergipe. Além do impedimento de passagem de barcos dos
pescadores locais onde são colocadas mais gaiolas que o permitido na extensão
do rio, sem a devida licença ambiental, conforme denúncia dos pescadores.
A piscicultura é denunciada como um dos empecilhos à prática da pesca
artesanal, entretanto ao mesmo tempo esta é adotada por alguns pescadores a
partir do incentivo da CODEVASF e das Prefeituras locais as quais financiam
tanques redes e doam alevinos e parte da ração. Ao assumirem os tanques, os
pescadores ficam reféns das empresas que vendem ração, o que consome 60%
dos custos. Muitos acabam vendendo os peixes cultivados para a Netuno,
enquanto outros desistem por conta das dificuldades no cultivo. (Pescadores e
Pescadoras artesanais do Cânion do Rio São Francisco, 2009).
Pescadores e pescadoras da Foz do São Francisco relatam problemas
com a carcinicultura, responsável pelo desmatamento do mangue e pelo
envenenamento de vários peixes e do caranguejo, ao longo dos riachos que
desaguam no São Francisco. Outro problema relatado é o não acesso a lagoas
naturais que se encontram cercadas em terras de fazendeiros, historicamente
de acesso dos pescadores. A comunidade Resina 27 de Pescadores na Foz do
26
Os pescantes refere-se aos que praticam a pesca predatória no Baixo São Francisco, enquanto os
pescadores artesanais, pescam quilos, os pescantes pescam em grandes quantidades para comercializar,
o que para os pescadores representa diminuição dos pescados para os pescadores locais que sobrevivem
da pesca artesanal em regime de consumo e pequena comercialização.
27
O conflito existente em Resina se deu pela tentativa de fazendeiros de venderem as terras onde hoje
se encontra a comunidade quilombola para empresários locais com o objetivo de construir um complexo
turístico. Com o apoio de setores da igreja católica, a comunidade quilombola de pescadoras conseguiu
dar entrada na documentação para o reconhecimento do território quilombola.
81
São Francisco, em Sergipe, lutou pelo reconhecimento do território quilombola
que passou pelo conflito com fazendeiros, construtoras e o judiciário local.
No Saramém, comunidade de pescadores também da Foz do São
Francisco, antigo povoado Cabeço em Sergipe, os relatos, passam pela recusa
da CHESF em assumir qualquer responsabilidade sobre o avanço do mar na
comunidade com a construção da Hidrelétrica de Xingó, a diminuição dos
pescados, conflito por terras com fazendeiros e com a NORCON- Grande
Empresa Construtora- que atua em Sergipe, Alagoas, Bahia e Pernambuco, e
envolvida no conflito com a comunidade Resina na disputa pela posse de terras.
O interesse da empresa é a construção de um complexo turístico na foz do São
Francisco, projeto que não se consolidou devido à luta das comunidades
pesqueiras pelo reconhecimento e direito de permanência.
Alguns dos depoimentos e denúncia dos pescadores da Foz do São
Francisco reunidos no material do Projeto Nova Cartografia Social, coincide com
o estudo feito pela Fiscalização Integrada do São Francisco- FPI, em Sergipe,
divulgado em outubro de 2017, que identificou a situação do rio como crítica
devido ao desmatamento de mangues e mata atlântica das margens dos rios e
a poluição. A presença de viveiros de camarão de forma irregular, e atividades
de mineração, são responsáveis pelo desmatamento ilegal. Já a poluição, é
agravada pelo não tratamento de esgoto e lixões presentes nas cidades que
abrigam cursos de água que desaguam no rio, assim como pelo uso
indiscriminado de agrotóxico que afetam a água e a saúde da população. “A
ausência do Estado tem propiciado muitos ilícitos ambientais, grilagem das terras da
União e violência contra as comunidades tradicionais do Velho Chico”, (Procuradora da
República e coordenadora da FPI Lívia Nascimento Tinôco).
O estudo feito pelo FPI e amplamente divulgado no estado foi encaminhado ao
Ministério Público enquanto denúncia para que sejam cobrados dos órgãos
responsáveis ações de solução aos problemas identificados. No entanto, o esforço de
outros movimentos diretamente ligados aos pescadores e pescadores, tem um papel
fundamental, no sentido de trazer os conflitos à tona a partir não somente do impacto
ambiental, ou de irregularidades legais. Mas a partir das contradições existentes entre
lógicas diferenciadas no relacionar-se com a natureza.
O Documento produzido pelo Conselho Pastoral da Pesca detalha os
conflitos em Sergipe (Quadro 2) a partir das cidades e comunidades que fazem
82
parte da Bacia do São Francisco, identifica os causadores dos conflitos, as
atitudes de enfrentamento por parte das comunidades pesqueiras e o que se
espera do poder público. O intuito é ter um Documento como instrumento de
formação e reflexão junto à sociedade brasileira na luta pela Campanha da
Regularização dos Territórios Pesqueiros, promovido pelo Movimento de
Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil em parceria com igrejas,
pastorais e movimentos sociais (Conselho Pastoral dos Pescadores, 2016).
83
água. A permanência dessas comunidades perpassa pelo enfrentamento que
está atrelado à luta e acesso de política pública, tanto de reconhecimento de
identidade, quando no reconhecimento de território e de investimentos para o
exercício da atividade pesqueira. A organização dos pescadores em Sergipe é
articulada por Colônias e Associações, sendo mais recente a presença e a
estruturação de Movimentos Sociais, a exemplo do Movimentos das
Marisqueiras de Sergipe. O trabalho enquanto categoria de analise, a pesca-
artesanal, é condição de entender de que forma se organiza e permanece a
atividade pesqueira em Sergipe dentro de um Movimento que se dá em escala
nacional e mundial.
A forma de organizar o trabalho na atividade pesqueira artesanal é
diversa. Há os pescadores de água doce, de água marinha e de ambas, no caso
de comunidades que vivem próximas aos estuários de rios. Há situações que se
enquadram em uma modalidade de pesca, que apesar de não ser industrial, tem
estrutura que possibilita maior captura de pescados e representa uma maior
pressão sobre a espécies, o que configura relações de trabalho de maneira
correlata a forma capitalista de organização do trabalho.
Pensar a permanência da pesca-artesanal diante da expansão do capital
em todas as esferas da vida, passa por identificar de que maneira essas
diferentes formas de se apropriar do trabalho na atividade pesqueira se dão, e
como se permanece pescador-artesanal, diante das terras e das águas cada vez
mais submetidas ao processo da privatização e controle do capital.
Resistir diante à aquicultura, ao agronegócio, como modelo de
desenvolvimento para os que vivem da terra e das águas, diante das barragens
ao longo dos rios, das cercas, dentro e fora das águas; permanecer diante da
diminuição dos pescados, dos venenos e da poluição presente nas águas, da
pesca predatória. Remete ao significado do trabalho ontológico que representa,
condição de permanência e resistência enquanto a pesca-artesanal representar
e materializar o trabalho concreto que dá sentido ao ser, ao ser pescador
artesanal.
Nesse sentido, permanecer é conflito, entre as determinações que levam
as relações produzidas na pesca-artesanal, e as determinações postas e
impostas na “forma de ser” do capital. Para Ramalho (2013) “ Pode-se dizer que
a feitura de um pescador é um processo artesanal, assim como seu próprio
84
trabalho (p.121). ” Justamente pelas relações que levam a identidade de
pescador, o aprendizado entre gerações, na família ou na comunidade, o
domínio que é preciso ter das técnicas de pesca, o conhecimento da natureza,
é um aprender que não se estabelece no ritmo do capital e sim da natureza.
O autor aponta liberdades e autonomias possíveis a partir da
pesca/trabalho, a partir das particularidades na organização da pesca-artesanal,
que leva à compreensão da pesca como trabalho que ao mesmo tempo que
perpassa o mundo da mercadoria, não pode ser compreendido na lógica apenas
do capital. Dessa forma o “estado” de conflito não se dá somente na “resistência”,
mas na permanência apenas pelo conflito de sua existência na contramão da
lógica dominante.
A expansão e a acumulação do capital, para Mészáros, é meta
fundamental da atividade econômica (2002, p. 209), no caso da pesca-artesanal
ainda que o trabalho não seja a mediação somente para o acesso ao mundo das
mercadorias. Para o autor, o que se impõe é a garantia ampliada do sistema do
capital, e quaisquer obstáculo deve ser superado na garantia da produtividade.
O obstáculo representado pela permanência de comunidades e trabalhadores
que vivem da pesca é, nesse sentido conflituoso. A estratégia constituída
institucionalmente é da produtividade como caminho para a atividade pesqueira,
os que permanecem. Resistir na garantia da relação que a pesca-artesanal
propicia dá-se no enfrentamento a esse sistema sóciometabólico que
homogeneíza as relações possíveis de intercambio social enquanto princípio
econômico.
Para Mészáros (2011), a homogeneização das relações produtivas e
distributivas completa o círculo vicioso do capital. Separado das condições
materiais e instrumentos de trabalho fica impossível para o trabalhador produzir
para seu próprio uso. O pescador artesanal está cada vez mais sujeito a essa
homogeneização pela ofensiva do modelo de desenvolvimento proposto para as
águas, que é o modelo do agronegócio como processo homogeneizador:
85
A pesca-artesanal está continuamente sujeita à força do capital em suas
estratégias de expandir seu modelo de produção. Pensar a permanência
enquanto uma qualidade do sujeito que permanece, como condição de
continuidade enquanto pescador, no caso da pesca-artesanal é a relação do
sujeito que trabalha, o exercer a pesca. Sua condição de continuidade é
representada pelas condições de produção pertencentes a ele. A produtividade
na pesca-artesanal – intercambio com a natureza- não é a produtividade do
capital/lucro, é qualitativo presente no conhecimento dos pescadores que
permanecem enquanto houver condições materiais para o exercício da pesca,
condições essas dada no acesso à terra e água.
As estratégias de permanência das Comunidades Pesqueiras em Sergipe
se constitui no exercício da atividade pesqueira em si, nas organizações
coletivas, no acesso à política pública, na autonomia da relação que se constitui
diretamente com a natureza. Na forma como a pesca-artesanal se organiza.
Nesse sentido a permanência da atividade pesqueira artesanal em Sergipe se
dá enquanto local, mas no movimento em escala nacional e mundial. A pesca-
artesanal que permanece na relação sociedade/natureza que reconhece o ser
como natureza e não como externalidade. Trabalho que não está completamente
submetido à lógica do capital, mas que permanece na condição de classe
subserviente.
86
II- CAPÍTULO- A PESCA-ARTESANAL NA MEDIAÇÃO DA TRÍADE
SOCIEDADE/TRABALHO/NATUREZA: CONSTRUINDO RESISTÊNCIAS
87
A singularidade presente na atividade pesqueira artesanal não se dá na
perspectiva de uma volta à natureza, mas no entendimento de que na produção
material, enquanto produção social, há formas outras de produzir trabalho que
não o trabalho completamente subjugado ao sociometabolismo do capital. A
partir dessa singularidade, é possível estabelecer de que forma a atividade
pesqueira, enquanto ramo particular da produção material da vida e apropriada
pelo capital, faz-se contraditoriamente resistência à forma universalizante do
capital.
88
permite compreender o que há de comum nas múltiplas determinações que
definem o modo de produção capitalista.
Para Lessa e Tonet (2009), a compreensão do pensamento de Marx se
baseia na premissa de que é condição indispensável para entender a relação
homem/natureza, o ato de transformação constante da natureza pelo homem. A
partir dessa transformação (a sociedade) é possível existir, reproduzir. É o
trabalho que media essa transformação. O ato pelo qual o homem se faz ser
social, diferente das leis que regem a natureza, já que o ato de exercer trabalho
é antes idealizado no processo de consciência antes de ser objetivado.
Esse processo de idealizar o ato antes de exercê-lo, é o que Lukács
(1981) apresenta como teleologia, processo não presente na natureza, já que se
dá justamente na consciência que então estabelece um fim, que se materializa
a partir do trabalho. Nesse caminho, o homem se transforma juntamente com a
natureza cada vez que constrói o mundo material e adquire novas habilidades:
89
etapa da vida social, em que a relação direta com a natureza e a cooperação
dos indivíduos faz-se necessária como forma imediata de garantir a
sobrevivência, evidencia-se a forma de apropriação da natureza mediada pelo
trabalho:
Com efeito, é por meio da natureza como meio de trabalho que se tem o
primeiro momento do trabalho orientado a um fim. Natureza essa que garante os
meios de subsistência de comunidades que, mesmo nas sociedades mais
desenvolvidas, continuam a exercer trabalho diretamente desta. “O trabalhador
e seus meios de produção colados um ao outro como o caracol e sua concha”
(MARX 2013, p. 433).
Os meios de trabalho disponíveis na natureza, terra e água, para Marx
(2004), não são capital e sim uma forma particular de existência do mesmo,
tratam-se de elementos universais-naturais, de forma que o trabalho que se dá
na relação direta com esses meios universais-naturais não representam trabalho
90
abstrato inicialmente:
91
do modo de produção:
92
transformação da natureza pelo trabalho, o que temos é a própria natureza na
condição de mercadoria.
Sob essa lógica, a “imagem natural intocada” propicia a venda do espaço
como mercadoria ecológica, e serve ao mesmo tempo de estratégia para o
aumento do preço do uso do solo. A acumulação capitalista se realiza a partir da
venda do tempo livre para o consumo. “O espaço aparece como mercadoria,
apesar de suas especificidades, produzido e vendido enquanto solo urbano, [...]
submissos à troca e à especulação” (CARLOS, 1996, p.36).
A natureza intocada é, conforme explicita Diegues (1996), um mito que
serve a uma política de conservação da natureza o qual representa uma visão
de mundo em que a relação homem/natureza não é tratada enquanto uma
simbiose, o mundo natural e o mundo industrial são vistos como dicotômicos,
portanto, exclui a mediação sociedade/natureza pelo trabalho como base para
compreender as relações sociais.
Essa visão da natureza representa na sociedade moderna um conjunto
de mitos com base de sustentação na ciência que solidifica a natureza como
elemento fora do homem, passível de ser recurso. A venda da natureza
preservada como paraíso faz sentido à medida que a dicotomia homem/natureza
é posta. O turismo apropria-se dessa natureza como venda da paisagem nas
áreas preservadas, que estão justamente onde se encontram as comunidades
que vivem diretamente da natureza. É o espaço da acumulação capitalista que
se impõe a uma lógica de reprodução diferenciada das comunidades lidas como
tradicionais. Quanto a isso, Diegues (1996) exige a leitura das diversas relações
da sociedade com a natureza:
93
política do espaço travestida de planejamento, e sim da forma em que se
engendra a reprodução social. Diante disto, “não se pode esquecer que o capital
como modo historicamente específico de produzir a própria vida impõe o seu
domínio às fontes originais de riqueza, que inclui além do trabalho, a natureza”
(p. 24).
Dessa maneira, é necessário extrapolar os limites locacionais para
evidenciar e verificar como as contradições no espaço são produzidas, e como
os diversos usos e abusos da natureza reforçam a necessidade de compreender
o caráter dinâmico contido no movimento das contradições do/e no espaço
(BORZACCHIELLO, 2001).
Para Scarim (2001), novas contradições são suscitadas como
consequência do processo de reprodução do capitalismo, entre elas o próprio
espaço fragmentado, e nele, o conceito de raridades que se espacializa a partir
de uma natureza finita diante das necessidades produzidas no capitalismo.
A subordinação da produção do espaço, na lógica do capital, altera os
ritmos de vida dos sujeitos reais historicamente habitantes do lugar, que aos
poucos vão perdendo a autonomia dos usos, obrigados ou a se inserirem no
mundo das mercadorias, ou expulsos tornam-se invisíveis, enquanto sujeitos das
relações de produção, embora submetidos a todos os tipos da lógica perversa
da acumulação capitalista. A coletividade que se encontra nessa atividade busca
assumir, muitas vezes sem consciência, uma forma de resistência para a própria
sobrevivência na estrutura social da divisão desigual do trabalho.
A dependência mutual presente entre os trabalhadores da pesca-
artesanal é expressa no exercer trabalho na relação direta com a natureza. O
apropriar-se dessa natureza enquanto atividade produtiva tem como resultado
uma determinada forma de exercer trabalho, e um determinado produto desse
trabalho. À medida que o valor de troca se impõe nessa mediação, a forma de
produzir e o produto do trabalho enquanto mercadoria transformam-se numa
relação em que:
94
A liberdade do pescador-artesanal está sob constante ameaça, à
proporção em que a forma de exercer trabalho na pesca-artesanal encontra
dificuldades para subsistir. É necessário complementar a sua renda com outras
atividades, uma vez que quando não se possui os instrumentos de trabalho,
submete-se a trabalhar em outras embarcações, ou embarcar não mais nos rios
e mares, mas nas políticas públicas que apresentam a produtividade de mercado
a partir dos cultivos como solução para os problemas enfrentados pela atividade
pesqueira.
A pesca-artesanal se dá no trabalho familiar e na cooperação com a
vizinhança. O pescador artesanal não sai sozinho para pescar e não o aprende
sozinho, há uma relação de respeito aos saberes dos mais velhos, no sentido do
aprender a fazer, assim como no próprio ato de pescar, em que é preciso
conquistar o respeito através da sabedoria da arte da pesca para ser mestre. O
barco então tem a sua tripulação guiada pela mestrança. Segundo Maldonado
(1994), a mestrança constitui-se pela construção simbólica de um mestre que
representa a hierarquia da embarcação, a partir do saber pescar, da experiência
adquirida na atividade pesqueira, do conhecer o mar, os riscos, os pontos de
pesca; é o mestre que tem o papel de guiar a pescaria com base na experiência
coletiva, e não somente guiar o barco, mas garantir que as relações
experimentadas durante a pescaria se deem de tal maneira que a cooperação
permita melhores resultados.
No final da pescaria ocorre a divisão baseada nos costumes da
comunidade; é o que Diegues (1983) identifica como relação de respeito, ao
mostrar como se definem as relações de trabalho e de sociabilidade dentro e
fora do mar. Respeito à sabedoria adquirida a partir da experiência, uma relação
de ajuda mútua dentro da comunidade pesqueira. Se um pescador fica doente
ou se já está mais velho, há uma divisão do pescado com esses pescadores. A
coletividade é a forma que essa atividade encontrou, ao longo de sua existência,
para manter-se. “É essencial ver que o mar enquanto espaço produtivo e
também como referencial ideológico e espacial dos pescadores é considerado
de posse comum - o que repercute nas suas práticas sociais” (SILVA, 2008, p.
47).
Para Maldonado (1994), o contexto da pesca constrói relações
igualitárias, na medida em que, para os pescadores, há uma relação entre dois
95
meios: a terra e o mar. No mar, os pescadores estão distantes e mais suscetíveis
aos perigos e à imprevisibilidade do ambiente marítimo, o que os coloca numa
situação de igualdade, em que todos, juntos, estão em sintonia para exercer sua
atividade e proteger uns aos outros.
Ao mesmo tempo que se tem a construção de uma igualdade dentro do
mar, existe também o elo entre o mar e a terra, é a figura do mestre que
representa justamente o respeito à sabedoria e a experiência adquirida durante
anos de pescaria. Esse respeito é que define a relação hierárquica dentro da
pesca:
96
resulta o trabalho, o conhecimento dos pescados e das espécies é parte do
processo de trabalho.
A especificidade de cada comunidade, a depender das condições
naturais, define se há uma espécie considerada de maior qualidade ou várias
espécies que permeiam hábitos culturais alimentares em diversos momentos da
vida cotidiana. No tempo em que o cultivo homogeneíza a produção, quando as
espécies a serem produzidas são demandadas pelo mercado, de forma que
possam se reproduzir rapidamente e garantir a produtividade enquanto objetivo
do trabalho voltado ao capital.
Na pesca-artesanal, o produto do trabalho depende do ciclo da natureza,
a organização do trabalho nesse sentido encontra limites para atuar na garantia
da produtividade como necessária à acumulação capitalista. A atividade que
interessa ao capital está sob controle, todo tempo de trabalho é produtivo, não
há interrupção do fluxo de trabalho sob determinado controle da produção, o que
não é possível na natureza, nos moldes da produção pesqueira artesanal.
Sendo a organização do trabalho na atividade pesqueira artesanal
pautada em relações que contrariam a organização do trabalho totalmente
sujeitado ao capital, ainda assim o produto do trabalho precisa ser trocado de
maneira que seja possível para os trabalhadores da pesca adquirirem outras
mercadorias. Para Marx (2013), a independência das pessoas umas das outras
se consuma num sistema de dependência material universal, e a divisão social
do trabalho inevitavelmente converte o produto do trabalho em mercadoria
(p.182). O relacionar-se com a natureza na pesca-artesanal não dissolve a forma
mercadoria do sistema do capital, mas impõe a essência do trabalho que dá
sentido ao ser social, ainda que compondo a circulação simples de mercadorias:
a venda para a compra.
Os trabalhadores da pesca, ao se relacionar com a natureza, produzem e
se reproduzem não somente na esfera biológica, mas enquanto ser social, que
produz cultura, que transforma e se transforma enquanto natureza. Segundo
Smith (1988), “antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a
natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e
controla seu metabolismo com a Natureza” (p.71). Em conformidade com o autor,
existe um processo de produção da natureza, e essa produção se dá de maneira
diferenciada, nos diversos espaços, de acordo com os interesses postos pela
97
sociedade de classes, que têm como base a acumulação que sustenta o capital,
o que resulta então em um desenvolvimento desigual. Falar então de dominar a
natureza, para Smith, é um jogo ideológico para justificar o uso desigual dessa
natureza. Produzi-la, pelo contrário, dá-nos a perspectiva de produzir de outra
forma.
Conforme Antunes (2007), “o sistema de metabolismo social do capital
nasceu como resultado da divisão social que operou a subordinação estrutural
do trabalho ao capital” (p.19). Dessa forma, os seres sociais mediados entre si e
dentro de uma totalidade social que se dá sobre determinado modo de produção
passa a subordinar as mediações de primeira ordem e de segunda ordem, que
são justamente as mediações que permitem a reprodução do sistema do capital.
As mediações de primeira ordem suprem as necessidades básicas e vitais da
reprodução individual e societal.
Considera o referido autor que, dentro de uma totalidade social, é preciso
a compreensão de como se dá esse sistema de mediações. As mediações de
primeira ordem passam pela leitura que compreende o homem como natureza,
fazendo parte dela numa relação direta de intercâmbio, cujas necessidades são
supridas de acordo com os recursos disponíveis. As mediações de primeira
ordem, enquanto relações da comunidade com a natureza, apresentam-se como
ações necessárias à própria reprodução social do grupo, como a regulação do
processo de trabalho, assim como instrumentos necessários ao mesmo, e outros
bens também necessários à comunidade.
O sistema de trocas existente nessa mediação se apresenta como forma
de suprir necessidades do grupo, necessidades essas que podem mudar, já que
o próprio ser, ao se reproduzir cotidianamente, transforma-se continuamente,
assim como a própria natureza. As mediações de primeira ordem, por se
basearem nas necessidades reais do ser, do grupo, levariam então à
organização de recursos destinados aos seres em sua totalidade social
(ANTUNES, 1999).
As mediações de segunda ordem, por sua vez, acrescentam elementos
às mediações de primeira ordem. Elementos estes que são correspondentes à
reprodução sociometabólica do capital, por isso são de ordem fetichizante e
alienante, de forma que as mediações de primeira ordem são subordinadas às
de segunda ordem, na medida em que o valor-de-uso se subordina ao valor-de-
98
troca, e tem que ser constantemente expandido. É o que, para Mészáros (2007),
representa o círculo vicioso do capital, já que entre essas mediações há relações
de dominação que se manifestam na sociedade de classes. Sociedade esta que,
ao sujeitar mediações necessárias à reprodução social, ignora a necessidade de
garantir que os recursos sejam otimizados para a reprodução sociometabólica
das gerações que estão por vir. O capitalismo é um marco da submissão das
mediações de primeira e segunda ordem:
99
das mediações de segunda ordem. A relação direta com a natureza proporciona
um modo de vida diferenciado do imposto pelo capital.
A partir da compreensão das mediações de primeira e segunda ordem, é
possível afirmar: a condição de resistência presente em comunidades mantém
uma relação direta com a natureza. Essa resistência está presente na relação
de subsistência que se estabelece diretamente com a natureza, na
transformação do ser e do grupo a partir do trabalho, no intercâmbio com os
recursos disponíveis e que possibilita a vida e identidade da comunidade na
pesca.
Marx no Grundisse explica e exemplifica a força da comunidade enquanto
ligação dos indivíduos uns aos outros a partir da relação direta com a natureza
nas antigas comunidades feudais, e de trabalhadores livres, na comunidade
oriental e germânica, como formas de organização do trabalho que precederam
a produção capitalista. O trabalho assalariado, a separação do trabalhador das
condições objetivas de realizar trabalho, pressupostos para criar as condições
históricas do capital são elementos que vão de encontro à noção de comunidade.
A singularidade (força) da comunidade está na forma como o trabalho se
apresenta, assim como o sentido de propriedade. O acesso aos meios naturais
de produção não se dá enquanto apropriação individual, “o indivíduo relaciona-
se consigo mesmo como proprietário, como senhor das condições de sua
realidade” (p.388). Para Marx (2011), a comunidade ou as famílias singulares
relacionam-se como proprietária comum das condições naturais de trabalho, a
terra, no caso da produção das comunidades em questão, e somente como parte
da comunidade há a apropriação pelo processo de trabalho.
Ao tratar das tribos asiáticas, Marx (2011) exemplifica como o indivíduo
singular e seu caráter comunitário, à medida que se afasta das condições de
trabalho, dão o caráter de comunidade, acabando por desenvolver condições de
trabalho essencialmente novas, voltadas para o exterior da comunidade. O
conceito de comunidade presente em Marx, enquanto produto histórico, passa
pela apropriação das condições naturais para exercer o trabalho, ocorre pela
propriedade. A relação do sujeito que trabalha com os pressupostos naturais do
trabalho são pertencentes a ele.
A permanência do caráter de comunidade consiste na autonomia e na
relação recíproca com membros da comunidade, no entanto Marx deixa claro
100
que esse pertencer à comunidade não deixa de ser mediado por um determinado
modo de produção e organização social:
101
indivíduo trabalhador, mas tem na propriedade da terra um modo de existência
objetivo, que está pressuposto à sua atividade da mesma maneira que sua pele,
seus órgãos sensoriais, os quais ele também desenvolve no processo vital –
mediado pela existência original, natural e espontânea, e historicamente
desenvolvida ou modificada do indivíduo como membro de uma comunidade.
Esses pressupostos estão presentes nas comunidades antigas em
questão, e se conservam com as devidas mediações nas comunidades que
continuam a reproduzir a vida na relação direta com a natureza. Dessa maneira,
o modo de vida constituído nessa relação permite, com as limitações de uma
sociedade voltada à reprodução do capital, realizar trabalho a partir do controle
do processo das condições objetivas postas.
Pensar o sentido de comunidade que permeia as relações de
comunidades pesqueiras é pensar o sentido e a forma da organização do
trabalho para compreender as condições de sua permanência e resistência
como comunidades tradicionais, justamente pelo modo de vida que remete a um
tempo que não o presente, do tempo do capital, em sua forma de ser, de expandir
e reproduzir.
Compreende-se que o papel do trabalho no intercâmbio com a natureza
representa determinação ontológica e dá sentido ao ser social. Essa dimensão
do trabalho nos permite avançar na própria dimensão do que é humano, e dessa
forma, nas relações construídas ao longo do processo social. A determinação
ontológica, para Lukács (1981), está no entendimento de que só a partir do
trabalho é que podemos entender o ser social:
102
que se torna ser social.
Lukács (1981) afirma que esse salto representa um processo longo, em
que não se pode caracterizar o momento exato no qual essa transformação
acontece, mas onde se tem claro que o salto representa uma mudança estrutural
e qualitativa do ser, do ser orgânico em ser social. “A essência do salto é
constituída por esta ruptura com a continuidade normal do desenvolvimento e
não pelo nascimento, de forma imediata ou gradual, no tempo, da nova forma do
ser” (Ibidem, p. 05).
103
mesma formação, mudam continuamente (Ibidem, p.65).
Para o autor, é impossível entender o ser a não ser pelo trabalho, que se
torna modelo de toda práxis social, e tem no valor de uso inevitavelmente
condição básica do existir. O trabalho responsável pela transformação do
homem inorgânico em ser social, por ter caráter ontológico, nunca deixará de ser
central nas relações sociais.
O homem enquanto ser social vai se complexificando a partir de novas
necessidades, e passa a criar outras mediações para as realizações dos fins,
antes construído no processo de consciência. Primeiramente, para Lukács
(1981), é no processo de consciência que se desenvolve, com o trabalho, a
própria consciência, que se torna autônoma na medida em que se autorreproduz
a partir do que capta, tanto no mundo exterior, quanto no interior, fazendo assim
com que o trabalho surja e se desenvolva, determinando seus vários fins.
Dessa forma, o meio natural ganha a forma, a qual o homem enquanto
ser social define a partir de suas necessidades. É o que Lukács (1981) chama
de posição teleológica, o trabalho, como modelo de toda práxis social formado
não somente na ação, mas também na subjetividade do pensamento, de forma
que pensar e agir trabalho são categorias indissociáveis. Para Lukács, a
teleologia é algo que não existe na natureza, de forma que esta tem uma
finalidade consciente que só é possível na materialidade do ser, quando este em
sua ação de exercer trabalho, torna-a real. “Somente sobre a base real de um
conhecimento ao menos imediatamente correto das propriedades reais das
coisas e dos processos é que o pôr teleológico do trabalho pode cumprir sua
função transformadora” (LUKÁCS, 2012, p.288).
O entendimento do ser social só se torna possível quando o homem em
suas ações adquire autonomia no trabalho que se efetiva partindo de contínuas
posições teleológicas. Pensar a realidade permite então transformar a ação.
Criar a realidade, ao mesmo tempo em que cria a si próprio na consciência do
seu gênero. Produzir natureza e trabalho, assim como o produto do seu trabalho,
é o que permite a definição e a compreensão do ser social, que ao buscar os
meios de se produzir e reproduzir, adquire então um conhecimento da natureza,
necessário aos fins que se projetam na mente.
Por conseguinte, têm-se o que Lukács (1981) observa como processo de
104
consciência, a realidade que é apenas reproduzida nesta. Logo, existiria dois
momentos distintos, o próprio ser e o seu reflexo, sendo que a reprodução da
realidade na mente se estabelece a partir da subjetividade do próprio ser,
mediante suas necessidades e de como essas são postas e materializadas a
partir do trabalho:
105
O trabalho de pescaria, como qualquer outro, é uma obra
teleológica, isto é, orientada para atingir certa meta, que busca
capturar o ser – precisamente - assim (a natureza - o mar e os
peixes) a partir da consciência, da subjetividade. Ao fazer isso o
pescador transforma os peixes e o mar em utilidades humanas
(valor de uso como suportes do valor de troca) e opera, por conta
disso, mudanças em seu próprio mundo, pondo-os em
movimento (Ibidem, p. 82).
106
industrial, que de forma indiscriminada é regulada para a captura de pescados,
com objetivo de abastecer o mercado em escala ampliada para além do local,
assim como a aquicultura, que no controle da criação de pescados apresenta-se
enquanto produtividade necessária à garantia do lucro. Ainda assim, a pesca-
artesanal, inserida nesse processo global de reprodução ampliada do capital,
representa o trabalho que define o modo de vida e a possibilidade de
permanência e resistência de comunidades pesqueiras, no garantir da
humanidade possível no trabalho.
107
enquanto o trabalho é a condição de existência do homem. Trabalho que na
necessidade do ser de existir, vai mediar a produção de valores de uso a partir
do sóciometabolismo com a natureza, levando a uma mudança qualitativa e
estrutural do ser. O “salto” entendido como processo de transição possível
através do trabalho rompe com a condição apenas biológica do ser. “A primeira
consequência disso é que o trabalho torna-se protoforma de toda a práxis social
(...) sua forma originária desde que o ser se constitui. ” (ANTUNES, 1999 p. 137).
O trabalho materializado é valor de uso, sendo o determinante na
mudança qualitativa do ser. Na relação com a natureza, o ser que trabalha
exerce essa atividade orientada por um objetivo, “no final do processo de
trabalho, chega- se a um resultado que já estava presente na representação do
trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que já existia
idealmente" (MARX, 2013, p. 256).
Para Marx (2013), o que esse novo ser dotado da capacidade de exercer
trabalho vai fazer é se apropriar de uma forma útil da natureza, agindo sobre
suas potencialidades, de forma que, ao modificar a natureza, também modifica
a sua própria natureza, em que se têm a ontologia do trabalho, a condição do
ser social:
108
não significa que ele se limite a uma alteração da forma do
elemento natural; ele realiza neste último, ao mesmo tempo, seu
objetivo, que sabe que determina, como lei, o tipo e o modo e
sua atividade e ao qual ele tem de subordinar sua vontade
(MARX, 2013, p.256).
109
A alternativa se configura como resultado do metabolismo entre a
sociedade e a natureza. Satisfeitas as necessidades imediatas do ser que
trabalha, há um desenvolvimento da consciência no sentido do pôr teleológico.
As necessidades sociais avançam e a alternativa se apresenta como resultado
da práxis humana no processo de tomada de decisões entre as alternativas
possíveis. Em um primeiro momento, o pôr teleológico se define a partir de uma
atividade que se dá entre o ser que trabalha e a natureza. Em seguida, na
reprodução da vida social, o pôr será um fim posto por outros homens:
110
Alcântara (2014) ressalta a leitura de Marx no que tange à relação
sujeito/objeto, que passa por compreender a natureza como uma objetividade
independente do homem. Objetividade necessária ao homem enquanto ser
social, mas que representa na sua consciência, enquanto reflexo, um momento
ontologicamente diferente da ontologia do ser social. Essa compreensão da
objetividade da natureza, que assim apenas pode ser compreendida porque a
objetividade só faz sentido na relação com um outro ser, no caso, da relação
homem/natureza, torna-se necessária à medida que é preciso decifrar a
construção do pensamento que se dá a partir da objetividade posta:
111
relação sociedade/natureza em que se encontra o próprio ser - o trabalho:
112
também é mercadoria, tem-se uma relação coisificada, a reificação representa o
aprofundamento de relações desumanizantes.
Além disso, a exteriorização apresenta-se como categoria que representa
a subjetividade do sujeito, o resultado do trabalho e como o trabalhador se
relaciona com o objeto que representa o ser enquanto objetividade de si ao
passo que é uma realização de sua corporeidade enquanto gênero humano. À
proporção que essa subjetividade se dá, tendo a mercadoria como mediação das
relações humanas, a exteriorização passa a representar não sujeitos singulares
que na causalidade possui e opta por alternativas que vão ao encontro da
essência ontológica, mas, antes, sujeitos que possuem alternativas que vão de
encontro a essa essência.
O trabalho enquanto atividade produtiva passa a mediar uma relação
coisificada e, nesse sentido, alienada, apartada de sua condição ontológica a
qual transforma o homem em ser social, que leva à condição humana. Para
Mészáros (2006), a condição da realização humana não se trata de um retorno
à natureza, e sim de uma plena realização da natureza do homem, que é
perturbada pelas mediações de segunda ordem e subordinam a atividade
produtiva, “às exigências da produção de mercadorias destinada a assegurar a
reprodução do indivíduo isolado e reificado, que não é mais do que um apêndice
desse sistema de “determinações econômicas” (Ibidem, p. 81).
No processo de trabalho e na construção de alternativas sociais,
encontra-se a potencialidade da liberdade e também da alienação. Por isso que,
para Lukács (2013), o conceito de liberdade real está no trabalho, em sua
essência ontológica, sendo assim o trabalho, o modelo de práxis social e de
liberdade. “Se o homem não tivesse criado a si mesmo, no trabalho, como ente
genérico social, se a liberdade não fosse fruto da sua atividade, do seu
autocontrole sobre a sua própria constituição orgânica, não poderia haver
nenhuma liberdade real” (Ibidem, p. 156).
113
(que é claro, inclui em certas circunstâncias, o desejo de manter
a situação existente) (ANTUNES, 1999, p. 144).
114
processo de trabalho, a consciência que se desenvolve na produção da vida
material. O pôr teleológico, nesse sentido, espelha alternativas que se
aproximam da essência ontológica do trabalho. As mediações necessárias à
reprodução da vida passa pela apropriação da natureza de maneira que não há
estranhamento entre o ser que trabalha e o produto do seu trabalho.
Diante do modo de produção do capital, o viver da atividade pesqueira
artesanal rompe com alguns pressupostos da lógica capitalista: o trabalho
assalariado, a separação do trabalhador dos meios para produzir. Como
atividade extrativista, o pescado se encontra pronto na natureza, o pescador
precisa desenvolver técnicas de captura, e mesmo os instrumentos de trabalho,
como barcos e redes, são produzidos pelos trabalhadores. Sendo assim, a
atividade artesanal não se propõe a produtividade capitalista, portanto os
instrumentos são possíveis de serem confeccionados também de forma
artesanal.
Diante do mar e do rio ainda limitado no sentido de propriedade privada,
a atividade pesqueira artesanal se dá em um ambiente que leva a uma prática
coletiva, por isso a pesca está atrelada a comunidades que dominam a prática,
a arte da pesca. O sentido de comunidade está na forma de organizar trabalho
e na forma de estar na natureza, sem a completa mediação da propriedade
privada.
O que as comunidades antigas tribais, que se aproximam do trabalho
primitivo, têm em comum com as comunidades pesqueiras é a essência
ontológica do trabalho que permanece na organização social destas
comunidades, posto que a relação direta com a natureza garante dentro do limite
possível dos estágios de produção de dados momentos históricos, uma forma
de organizar trabalho que rompe com a lógica do trabalho abstrato, o trabalho
alienante do capital.
Isso não nos permite dizer que não há alienação nas comunidades que
vivem da relação direta com a natureza, há outras mediações que perpassam e
sobrepõem ao modo de vida destas comunidades, que determinam uma
consciência reificada. Mas, a forma que se dá o intercâmbio com a natureza
permite uma maior ou menor capacidade de realização da autoatividade, e essa
essência ontológica nos permite compreender o papel do trabalho na
humanização do ser, homem, social.
115
2.3- O ser social e o processo de reificação
116
mesmo. Nesse sentido, o estranhamento se dá tanto na relação do trabalhador
com o produto do trabalho que passa a ser exterior, e na atividade produtiva que
também não pertence ao trabalhador. O trabalho estranhado, segundo Marx
(2004), estranha do homem a natureza da qual ele vive e que faz parte, da qual
depende sua vida física e mental:
117
de alienação e não se resumem à identidade entre sujeito e objeto:
118
trabalho, o que leva a mercadoria a ser a forma universal nas relações, mesmo
no ato laboral que se dá diretamente na natureza produzindo valor de uso, o
valor de troca se impõe como forma de sociabilidade. Para estabelecer valor de
troca, é preciso estabelecer o tempo socialmente necessário de produção,
baseado na própria produção já existente. O trabalho necessário em qualquer
sociedade produtor de valores de uso é justamente o resultado da mediação que
o trabalho exerce na relação homem/natureza. Aumentar a produtividade do
trabalho não muda o valor do produto em si, mas ao aumentar a quantidade do
que se produz, e tendo mais valores de uso, tem-se a condição do valor de troca.
Ao estabelecer a partir do valor de uso o valor de troca, tendo a
mercadoria como finalidade do produzir, faz-se necessário que o trabalho esteja
guiado para esse fim, ao passo que a própria força de trabalho torna-se
mercadoria no processo de trabalho. Para Marx (2010, p. 80), quanto mais
mercadorias cria-se, mais barato torna-se o próprio trabalhador enquanto
mercadoria, quanto mais valorização do mundo das coisas, proporcionalmente
há uma desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somente
mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e
isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral.
Para se tornar mercadoria, Marx (2013) afirma que é preciso haver a
troca, apesar do capital não ter origem na circulação; sem a circulação, tão pouco
não há capital. A força de trabalho constitui-se enquanto valor de troca, quando
vendida ao detentor dos meios de produção, portanto, torna-se mercadoria.
120
fetichismo da mercadoria, poder alheio ao próprio homem. Netto28 (1981, p.35),
ao debater a tematização da alienação da sociedade mercantil, a sociedade de
capitalismo universal, destaca a forte determinação econômica-social na
construção da socialidade, com a formação de estruturas de comportamento
resistentes, que se objetivam enquanto automização dos fenômenos. Assim, a
alienação traz em si o problema do fetichismo e da reificação.
Marx trata da problemática do fetichismo em sua obra mais acabada, O
Capital, ao se dedicar ao estudo da mercadoria no capitalismo, em sua forma
concreta histórica-social (Ibidem). No que traz à tona a complexidade da forma
mercadoria que carrega a duplicidade do trabalho e, por conseguinte, a
compreensão do trabalho como formação de valor, ao mesmo tempo, a categoria
trabalho, em sua dimensão ontológica constitutiva do ser. De tal modo, a
natureza da sociedade burguesa perpassa a duplicidade do trabalho cristalizado
na mercadoria.
Teorizar esse movimento torna-se então o desvelar do fetichismo, o papel
místico que a mercadoria exerce à medida que torna valor o que é humano, e
que o é possível, com a universalização da produção mercantil. O fetichismo
então se dá na mediação das relações humanas pela mercadoria, que em sua
universalidade, faz parecer natural a dimensão das relações sociais como
relação entre coisas. Dessa maneira, a concretização do fetichismo na
especificidade do capitalismo enquanto sociometabolismo do capital se dá
enquanto reificação - o tornar das relações sociais em relação entre coisas.
Netto (1981) evidencia que fetichismo e alienação não são idênticos,
sendo o problema da alienação mais amplo. Enquanto o fetichismo é um dos
seus aspectos, a reificação emerge na especificidade do modo de ser da
produção capitalista, e ainda assim nem toda forma de alienação é reificada.
Nesse sentido, o estudo da mercadoria presente no Capital torna-se essencial,
ao passo que a mercadoria e seu papel ao longo da história não é o mesmo.
Processos que constituem a alienação se dão antes mesmo da consolidação da
sociedade burguesa em sua particularidade - do capitalismo e a produção de
28
José Paulo Netto no livro Capitalismo e Reificação contextualiza e traz o debate da reificação diante da
problemática do fetichismo e da alienação, como fenômeno do capitalismo tardio, recuperando debates
de autores e da esquerda marxista, apontando a necessidade da leitura de Marx e o lugar da alienação
em sua obra.
121
mercadorias em sua forma universal. Nestes termos, as relações reificadas
apresentam-se como momento em que a organização da vida social se dá a
partir da necessidade de reprodução do capital num dado momento histórico do
capitalismo:
122
como necessária à vida humana, à medida que a mediação da propriedade
privada tornou-se base para o desenvolvimento da indústria, de forma que a
alienação e reificação tornam-se aspectos positivos tanto quanto necessários.
No entanto, ao aprofundar-se essa oposição antagônica, há uma supressão da
condição humana no limite que perde “ sua justificação histórica relativa se torna
um anacronismo social indefensável” (Ibidem, p. 107).
A relação entre homem e natureza mediada pelo trabalho trata-se de uma
interação dialética, desse modo a atividade produtiva é parte constitutiva do ser
social, que ao realizar trabalho, produz-se, recriando a própria natureza, que é
condição necessária à realização da atividade produtiva e, deste modo, à
existência humana. As mediações de segunda ordem nessa relação sustentam
a alienação do trabalho conforme mascaram a unidade dialética do homem,
trabalho, natureza. Por isso, as relações sociais de produção engendradas com
base na alienação do trabalho é a autoalienação do trabalho, na medida em que
é a atividade produtiva exercida por esse ser social que o limita em sua condição
humana, o que Mészáros (2006) define como a relação alienada entre o homem
e sua essência objetiva, a auto-alienação-humana (p.92).
A pesca-artesanal como uma forma particular de atividade produtiva
assume dado os momentos históricos, a universalidade do metabolismo que a
sociedade estabelece com a natureza e, por conseguinte, as formas de
alienação sócio-histórica concretas. No entanto, ao exercer uma atividade que
demanda uma forma particular de organização, conhecimento da natureza,
apropriação coletiva, o pescador não pode alienar-se da natureza, se é essa
natureza extensão de si próprio na condição de pescador. A forma de alienação
que condiciona o pescador passa então pela auto-alienação-humana, perpassa
não só pela alienação do trabalho, mas por outras mediações necessárias ao
ser, que, enquanto social, insere-se em dadas sociabilidades.
O sociometabolismo do capital em sua necessidade de expansão torna-
se universal, organiza o trabalho e a vida, apropria-se do trabalho e da natureza,
e para as comunidades que vivem da pesca. Esse sociometabolismo não se dá
apenas no momento que o produto do trabalho, o pescado, assume a forma de
mercadoria. Por mais que o produto do trabalho represente uma troca simples,
no sentido que a troca se dá na condição de permanência do pescador, a
possibilidade de consumir apresenta-se como uma necessidade que vai além do
123
intercâmbio direto com a natureza, e para tal, a produtividade capitalista é posta
como solução.
O Estado, por vezes, é o mediador dessa inserção do pescador numa
sociabilidade que necessariamente precisa transformar a relação que se tem de
comunidade e de compreensão da natureza, em relações cada vez mais sociais,
na qual a natureza deve ser vista como barreira a ser superada, na garantia da
inserção do pescador na lógica capitalista de produção de mercadorias, e de
autoalienar-se a partir de relações reificadas.
A ontologia constituinte do ser social, na pesca-artesanal, dada como
condição de permanência e possibilidade de resistência, em sua prática social,
opõe-se à forma dada ao desenvolvimento capitalista, pois o trabalho ao estar
condicionado à relação direta com a natureza em sua “forma natural” em seus
ciclos, resguarda a dimensão ontológica do trabalho. Mas não há impedimento
da alienação como constituinte das relações na atividade pesqueira artesanal,
pois não há isolamento, e é característica do capital subjugar o trabalho de todas
as maneiras possíveis.
O pescador passa a estar cada vez mais pressionado por uma
sociabilidade que se dá a partir do fetiche, do poder da mercadoria, até ao ponto
que o próprio se torna mercadoria. Evidencia-se que “as tendências econômicas
se impõe de uma maneira tal que propõe tarefas aos homens singulares que
estes, sob pena de ruína, só podem solucionar de modos bem determinados,
economicamente prescritos” (LUKÁCS, 2013, p. 618). A alienação se põe em
diversas dimensões e representa que a alienação universal (econômica) implica
na alienação parcial, que assim deve ser antes de se tornar universal
(MÉSZÁROS, 2006, p. 129).
As dimensões da alienação em sua concretude para Alcântara 29 (2017)
passam pela esfera da vida cotidiana, em que a sociedade e indivíduo
reproduzem-se. A vida cotidiana, em sua heterogeneidade, que carrega a
particularidade das atividades humanas e, com isso sua base ontológica, aos
complexos sociais que surgem dessa esfera, entre eles a alienação. Para a
autora, a vida cotidiana “diz respeito ao lugar otológico onde as categorias
sociais adquirem formas e conteúdo específicos, não podendo ser desprezado
29
A autora debate a ontologia e alienação em Lukács.
124
quando se busca examinar um fenômeno ideológico na sua essência e
atualidade” (p. 184).
Para Lukács (2012), a vida cotidiana frequentemente oculta a essência do
ser, ao invés de iluminá-la:
125
[...]Vislumbramos no homem singular um dos polos ontológicos,
um dos polos reais de todo e qualquer processo social, visto que
o estranhamento é um dos fenômenos que mais decididamente
está centrado no indivíduo, torna-se importante relembrar que,
também, nesse caso, não se trata de uma liberdade abstrata
individual, à qual se contraporia no outro polo, no da totalidade
social, uma “necessidade” igualmente abstrata, só que abstrata
social, mas que não é possível eliminar totalmente a alternativa
de nenhum processo social (Ibidem, p. 585).
126
Para Marx (2011), as relações sociais não são um produto da natureza,
mas da história, a universalidade que se dá do estranhamento na sociedade não
se dá antes que indivíduos singulares desenvolvam suas relações e habilidades
próprias e comunitárias (p.110). A existência de comunidades que não estão
completamente subordinadas ao processo de estranhamento representa a
singularidade na universalidade do trabalho abstrato que em qualquer estágio da
sociedade representa a relação homem/natureza inerente ao trabalho. Mas, a
transcendência positiva da alienação 30 não se efetiva, pois ainda o trabalho é
confrontado com o trabalho abstrato em sua forma universal e dominante na
forma de ser da sociedade.
O modo de existir do capital é em expansão, mesmo nas comunidades
que vivem diretamente da natureza e que exercem um determinado controle
sobre o processo de trabalho. As mediações necessárias ao capital
permanecem, no caso das comunidades pesqueiras, há uma estrutura de
organização social na especificidade da atividade ao qual o Estado é garantidor.
Essa mediação Estado/pesca passa pela prática da atividade pesqueira e
a necessidade de registro do pescador artesanal, pelo papel das colônias e
outras instancias formais de representação coletiva, e políticas públicas voltadas
à atividade que perpetua as necessidades expansivas do capital. Nas
comunidades pesqueiras há uma série de políticas sendo intermediadas no
sentido de inserir o pescador artesanal na produtividade do capital, a exemplo
da aquicultura. Mesmo que esse trabalhador domine o processo de trabalho, há
toda uma sociabilidade voltada à mercadorização do trabalho, da natureza e da
vida.
Para fins de acumulação do capital, o trabalho produtivo garante sua
valorização, portanto a inserção da atividade pesqueira na produtividade do
capital através do agronegócio se coloca como um ramo de expansão do capital,
a subsunção do trabalho ao capital enfim se realiza como um modo de produzir
especificamente capitalista, o cultivo de pescados como controle da natureza
com fins de produzir mercadoria. “É a necessidade de controlar socialmente uma
força natural, de poupá-la, de apropriar-se dela ou dominá-la em grande escala
30
Conceito de Mészáros ao tratar da teoria da alienação em Marx, que representa a superação do trabalho
alienado enquanto emancipação completa de todas as qualidades e sentidos humanos, passando pela
esfera da produção como condição, mas também pela esfera política, moral e estética.
127
mediante obras feitas pela mão do homem o que desempenha o papel mais
decisivo na história da indústria” (MARX, 2013, p.582).
O pescador que exerce a atividade em sua forma artesanal, mesmo que
não produza mais-valor, está inserido na lógica capitalista. O produto do seu
trabalho, quando não comercializado diretamente pela família, é usurpado por
atravessadores que representam grandes empresas, ou mesmo atravessadores
da comunidade que possuem uma estrutura de comercialização. Nesse
movimento, a produção da pesca-artesanal em algumas comunidades volta-se
completamente para o mercado e extrapola o comércio em escala local e
nacional.
O processo de alienação passa pelo controle do trabalho, mas também
por todas as esferas da vida atreladas à condição de ser social, o viver
sociedade. Se o pescador artesanal devido às condições de trabalho que
remetem ser pescador, não submete sua força de trabalho ao assalariamento, a
maneira como ele é obrigado a inserir o produto do trabalho no mercado, ainda
assim é determinada pela força do capital. É o que Mészáros (2002) afirma ser
um modo peculiar de controle, as exigências fetichistas do sistema do capital
tornam-se inevitáveis devido à separação entre produção e controle no âmago
do sistema:
129
de mercadoria que contradiz a sua essência (Ibidem); faz-se necessário então
abolir o trabalho em sua organização negativa, a do capital, do capitalismo.
Para nós, em consonância com a compreensão da leitura de Lukács
(2013), o pescador artesanal representa a singularidade enquanto polo
ontológico e que constitui momentos não reificados. A singularidade forma a
totalidade dinâmica, mas só a consciência e a intenção de alcançar a generidade
humana fará com que esse homem consiga “apropriar-se de sua própria
elevação acima de seu ser-homem meramente particular - pelo menos como
obrigação perante a si mesmo, o que pode gerar conflitos” (Ibidem, p.601) -
entretanto, não necessariamente um processo revolucionário, pois a generidade
está aí apenas como possibilidade dentro de um processo global almejado por
um homem singular. Lukács, ao recorrer a Marx, aponta:
130
partir do sociometabolismo com a natureza, não significa um retorno à condição
primitiva. A condição humana se dá enquanto ser social. Romper com o processo
de alienação significaria uma atividade humana autoconsciente. “A figura do
processo social de vida, isto é, do processo material de produção, só se livra do
seu místico mar de névoa quando, como produto de homens livremente
socializados, encontrasse sob seu controle consciente planejado” (MARX 2013,
p.156).
O grau de liberdade positiva possível de ser alcançada na socialidade
capitalista está relacionada ao caráter das relações de propriedade existentes,
ainda que a superação da alienação não se restrinja à superação da propriedade
enquanto mediação na sociedade. Mészáros aponta a transcendência positiva
da propriedade privada como parte argumentativa da alienação em Marx,
correspondente ao momento em que o homem exerce sua humanidade
plenamente, sem ignorar a liberdade relativa em relação a necessidade da
natureza.
A análise da relação de propriedade privada e liberdade evidenciada por
Mészáros31 passa pelo avanço das forças produtivas, que torna o homem menos
dependente das necessidades naturais que vão mediar sua relação com a
natureza. Esse aumento da capacidade produtiva é desperdiçado à medida que
o governo dessas forças resulta, no que aponta Lukács (2013) como contradição
da forma social capitalista - o desenvolvimento das capacidades produtivas
representa o desenvolvimento das capacidades humanas, mas não representa
o avanço da personalidade humana - a condição do estranhamento, nesse
sentido, permanece e se amplia no sentido negativo da liberdade.
A questão posta por Mészáros (2006) quanto ao papel da propriedade, e
ao que ela representa no que tange à plenitude do exercício das capacidades
humanas, convergem no que é a própria socialidade. A resposta se dá à medida
que a propriedade privada constitui a alienação, o trabalho como externo ao
trabalhador. O que Lukács (2013) vai afirmar é a necessidade de entender a
personalidade como categoria social para compreender o estranhamento, o que
perpassa por mediações que levam mesmo na esfera da individualidade, que
não está desligada da totalidade social:
31
A teoria da Alienação em Marx, pág. 143.
131
A objetivação sob condições em que o trabalho se torna exterior
ao homem assume a forma de um poder alheio que confronta o
homem de uma maneira hostil. Esse poder exterior, a
propriedade privada, é “o produto, o resultado, a consequência
necessária, do trabalho exteriorizado [alienado], da relação
externa do trabalhador com a natureza e consigo mesmo
(MÉSZÁROS, 2006 p. 146).
132
Como a “alienação é a produção do capital realizada pelo
trabalho”, ela deve ser entendida “como atividade, estando
sempre em disputa. Em outras palavras, a alienação é a luta do
capital para sobreviver, a luta do capital para subordinar o
trabalho (...), é a luta incessante do capital pelo poder. A
alienação não é um aspecto da luta de classes: é a luta do capital
para existir” (ANTUNES, 1999, p. 132).
133
condição de pescador artesanal remete a uma ontologia e liberdade possível,
através do trabalho, o que não quer dizer que estas representem o modelo de
trabalho ou sociedade a ser alcançado. Mas constituem-se atividades onde o ser
que trabalha no seu metabolismo com a natureza, de alguma forma domina o
processo de trabalho, e nessa relação direta com a natureza constroem relações
que fogem à algumas mediações da lógica do capital:
134
de sua separação. Desde o primeiro trabalho enquanto gênero
do devir homem do homem até as resoluções psíquico-
espirituais mais sutis, o homem confere fora ao seu meio
ambiente, contribui para construí-lo e aprimorá-lo e,
concomitantemente com essas suas ações bem próprias
partindo da condição de singularidade meramente natural,
confere a si mesmo a forma de individualidade dentro de uma
sociedade (LUKÁCS, 2013, p.284).
135
III- CAPÍTULO - A SINGULARIDADE DO PESCADOR ARTESANAL
136
comunidades comunistas primitivas. Luxemburgo examina e discorre a partir das
relações de trabalho e meios de produção como questão central para
compreender as diferentes formas sociais de produção, apontando o comunismo
primitivo anterior ao capitalismo, como forma social predominante na história do
homem social.
A relação com a natureza, constituinte dessa organização social, em que
parte dos campos, das florestas e das águas é território indivisível, tem o valor
de uso e não o valor de troca determinante na exploração do trabalho, como
condição central para sua permanência. A relação metabólica com a natureza
engendrada na sociedade comunista primitiva para o avanço do capitalismo
torna-se necessária a dissolução dessas comunidades. Neste processo,
identificam-se semelhanças que ligam as comunidades tradicionais às
comunidades comunistas primitivas, possibilitando estabelecer relações sobre a
permanência e resistência das comunidades pesqueiras atuais.
Os estudos sobre as sociedades comunistas primitivas tratam de
organizações, tribos, clãs que tinham a terra enquanto propriedade comum.
Luxemburgo (2015) vai resgatar esses estudos e concluir que a propriedade
comum não surge com a Idade Média sobre o sistema feudal, mas
anteriormente. Ao investigar clãs e tribos na Europa, comunidades rurais na
Índia, o comunismo agrário no Peru, entre outras descobertas e relatos,
reconhece a forma de organização social predominante como sendo o
comunismo primitivo.
A forma de organização dessas comunidades, conforme a referente
autora, é marcada pelo comunismo agrário, visto que o trabalho se compunha
em torno do cultivo da terra, criação de animais, coleta, pesca e caça. De
comunidades nômades a comunidades sedentárias que têm como característica
a apropriação da natureza enquanto coletiva, não há distinção entre ricos e
pobres sem acumulação de riqueza, ou regras no formato de leis implementadas
por uma institucionalidade, na forma do Estado.
Entre os primeiros estudos sobre as sociedades comunistas primitivas
destaca-se, no século XIX, a obra de Von Maurer que compreende estas como
particularidades restritas à Alemanha, por tratar de propriedades comuns
existentes no território germânico. No entanto, outras investigações e estudos
apontados por Luxemburgo (2015) somam-se à obra de Von Maurer, entre estas,
137
sobre o campesinato russo organizado a partir do comunismo agrário, enquanto
comunidade familiar primitiva no formato de aldeias.
Esses estudos, a princípio concentrados na Europa, onde a expansão do
capitalismo assume sua feição colonial mediante, a apropriação de terras no
formato da propriedade privada, exploração de povos autóctones e da natureza
para matéria-prima ampliam-se diante à constatação da organização social
encontrada nos territórios de interesse da expansão colonialista, nas
comunidades estruturadas a partir da apropriação coletiva da natureza. Desse
modo, no caso da Índia, são encontradas diversas comunidades rurais:
138
aldeia não era uma “particularidade atávica” de uma raça ou de um continente,
mas a forma geral da sociedade humana” [...] (Ibidem, p.29).
139
social. Entre estes, Grosse32, que vai se opor à teoria do comunismo, tentando
afirmar que é na verdade a propriedade privada que dá sentido à cultura, sendo
o comunismo apenas uma etapa da vida social de alguns povos (p.49). Para
justificar sua teoria, o mesmo dá ênfase à produção como alimentação, como
sendo esta a determinante na forma de organização social, e não a caça, a
pesca, a criação de gado e a agricultura, que definiriam o comunismo.
32
Grosse autor de As formas da família e as formas da economia, de 1896, é um dos adversários da teoria
do comunismo primitivo em seus esforços em negar que o desenvolvimento histórico da humanidade
começa pela propriedade comum. Rosa Luxemburgo se utiliza de suas análises para compor a crítica aos
estudiosos que tentam eternizar as formas do capitalismo.
140
propriedade coletiva dos meios de produção, no caso, a relação direta com a
natureza e a apropriação coletiva. Desde a comunidade germânica da marka ao
antigo Império Inca da América do Sul, Luxemburgo (2015) descreve a
organização dessas comunidades e identifica os elementos que vão constituir a
base do que se considera o comunismo primitivo. Ao elucidar o sistema de
organização da marka germânica, também a aproxima do que foi a organização
de outras comunidades comunistas primitivas:
141
parcelamento de terras. Ainda assim, muitas comunidades permanecem
enquanto clãs e aldeias em um determinado processo de isolamento, mantendo
as relações que as caracterizam como comunidades primitivas, a exemplo de
comunidades hindus na Índia:
142
viver e trabalhar durante séculos segundos as antigas tradições.
A porta está, no entanto, aberta à desigualdade, pelo caráter
hereditário dos bens e pela possibilidade de alienar os bens dos
camponeses. (Ibidem, p.157).
143
passam a viver da pesca, que logo é identificada como outra forma de gerar
lucros, de maneira que a orla então passa a ser arrendada para grandes
comerciantes.
Em suma, o que está posto é a apropriação da natureza como meio de
produção, para garantir a acumulação primitiva. Nesse processo, a produção
capitalista encontra o caminho para se realizar e expandir, e os meios de
subsistência que supriam a necessidade de uma massa de trabalhadores, torna-
se, segundo Marx (2013), capital constante diante de um capitalismo industrial
que toma forma. Além disso, os meios de subsistência antes produzidos pelo
próprio trabalhador precisaram ser adquiridos de alguma maneira, o que além
de criar um mercado interno, impossibilita a formação de uma indústria rural, e
vai contribuir no que se torna a divisão campo-cidade, no que concerne à divisão
do trabalho e a centralização de determinadas estruturas de produção.
Todo esse processo faz parte de um sistema colonial, que tem a violência
como modus operandi do processo de expansão capitalista, “a propriedade
privada, como antítese da propriedade social, coletiva, só existe onde os meios
e as condições externas do trabalho pertencem a pessoas privadas” (Ibidem,
p.830). A expropriação dos meios de subsistência, de diversas comunidades
comunistas primitivas, a impossibilidade através do cercamento e do pagamento
de impostos de manter seu modo de vida, na relação de apropriação coletiva da
natureza, impõe a essas comunidades a lógica capitalista:
144
medievais, evidencia-se a pesca no mar que com o avanço na tecnologia das
embarcações, estas podiam afastar-se e garantir a captura de mais pescados.
Esses avanços foram cruciais no momento da consolidação da produção
capitalista, no aumento da produtividade que garante a acumulação através de
maiores lucros, isso tudo em meio à Revolução Industrial, tendo o barco a vapor
como símbolo dessa revolução para a garantia da pesca voltada à produção
capitalista. Nesse contexto, há uma proletarização do pescador que não mais
domina os meios de produção. “A introdução de relações sociais de produção
capitalista na pesca se dá com a separação efetiva do pescador e os meios de
produção e pela introdução da máquina a bordo” (Ibidem, p.71).
Há na atividade pesqueira, com a produção capitalista, uma dissolução
também do modo de vida baseado na relação direta com a natureza enquanto
meios de produção do próprio trabalhador. Para Diegues (1983), isso se dá
inclusive pela destruição da própria natureza enquanto força produtiva,
principalmente em ambientes lagunares e estuarinos, com atividades predatórias
diante da produtividade capitalista.
Diegues (1983) retrata as contradições que permeiam a atividade
pesqueira, nesse sentido, seus estudos referem-se às comunidades pesqueiras
artesanais que permanecem, de forma a caracterizar sua existência, pautada na
pequena produção mercantil e em elementos que as diferencia da produção
capitalista. O modo de cooperação do trabalho familiar e a produção voltada para
subsistência, de maneira que o metabolismo do pescador com a natureza é
mediado por essas relações, que levam a um modo de vida baseado na
coletividade e o produto do trabalho prioritariamente como valor de uso.
A caracterização dos pescadores, camponeses e trabalhadores do mar,
para Diegues (1983), passa pela produção desses trabalhadores, enquanto
independentes, no sentido do não assalariamento, que só é possível com a
apropriação da natureza, o acesso que se dá de forma coletiva a essa natureza
enquanto meio de subsistência e de produção pesqueira. Vínculo esse presente
na terra e na água enquanto conjunto. Nesse sentido, indica um particularismo
na própria relação desses trabalhadores que estão inseridos na lógica capitalista
de diversas maneiras, mas que mantêm elementos de mediação que não os
permite ser compreendidos apenas a partir da lógica de reprodução capitalista.
A apreensão do que seja os pescadores que se opõem à completa inserção na
145
lógica capitalista está assinalada justamente na atividade que exercem, na forma
de ser do trabalho, possível na relação direta com a natureza
146
tempo e percursos da cidade, do urbano, e funcional a determinado modo de
organização social e sua preservação (Ibidem, p.24). Ainda assim, a memória
tem papel determinante na preservação de costumes, de maneira que a memória
do trabalho a qual nos debruçamos, enquanto atividade pesqueira, dá
continuidade a um modo de vida ligado a um conhecimento da natureza possível
através do vivido e da memória:
149
forma de relacionar-se com a natureza e de organizar o trabalho da classe tida
como subalterna, que passa a relacionar-se de modo a produzir uma cultura
diversa e ao mesmo tempo singular em relação à cultura que se produz como
dominante e universal.
O costume trata-se de um modo de vida que está arraigado a uma
realidade que é material e social, e enquanto estudo de uma cultura tradicional
popular, remete às diferenças postas no que é o mundo moderno e no que é
tradicional. Tanto o cercamento quanto o mercado representam nos estudos de
Thompson (1991) aspectos centrais para compreender o capitalismo que se
estrutura no século XVIII, ao mesmo tempo que permanece o tradicional como
contraponto e pressionando determinadas ações do Estado e da classe
dominante:
150
a expansão dos cercamentos ou impunham a força do costume na forma de lei,
enquanto direitos consuetudinários, estão submetidas à passividade da condição
de dominados, de forma que a transição do trabalho servil para o trabalho
assalariado mantém a condição de subalternidade da classe pobre, mesmo que
sob a denominação de trabalhador livre.
Para Thompson (1991), a hegemonia cultural tinha um papel primordial
para o controle da classe pobre, de modo que determinados rituais tinham como
objetivo induzir a construção de um imaginário social de papeis determinados e
de comportamentos, naturalizados como constituinte da sociedade em questão.
Poder e autoridade como princípios a serem respeitados diante de uma classe
trabalhadora, que por vezes se rebelava ou era tida como indisciplinada, mesmo
que não enquanto grande classe organizada de trabalhadores, mas que por
vezes questionavam regras sociais ou poderes e decisões locais.
A cultura como hegemonia se põe, para Eagleton (2000), como sujeito
universal, assim como o papel que o Estado assume enquanto instituição
mediadora das relações sociais. Essa universalidade representa o não conflito,
a humanidade como “deve ser”, o modelar do que seja humano descolado do
real no sentido de escamotear o conflito existente entre o que se propõe
universal e a realidade que não se põe a partir da ideia de civilização, costumes
e moral, dentro do espírito iluminista o qual trata da cultura como civilização, a
partir do desenvolvimento como progresso.
Mesmo quando cultura passa a representar formas de vida em suas
especificidades, na contraposição a um modo de vida universal, persiste a
manutenção de uma cultura superior diante de uma sociedade que se estrutura
em classes:
151
A cultura popular como primitiva, ou como uma nova forma de barbarismo,
passa ao status de cultura particular (Ibidem. p.81). Enquanto particular, há uma
cultura universal que se naturaliza como o modo de ser do que é humano, na
qual o capital se põe como relação universal. Nesse sentido, reconhecer modos
de vida diferenciados não significa que a cultura assuma uma roupagem crítica
no sentido da contraposição à cultura como civilização, sendo esta representada
pelo modo de vida de uma classe dominante, burguesa.
Modos de vida a partir do discurso do que se propõe universal assume,
elucida Eagleton (2000), o oposto de civilidade, da vida como selvagem. Admitir
a diversidade de modos de organizar a vida não faz com que represente uma
contraposição de fato à ideia de civilidade, se o primitivo representa apenas um
estágio de desenvolvimento ou o diferente dado como isolado, o descrever da
pluralidade. “É preciso lembrar, também, que nenhuma cultura humana é mais
heterogênea do que o capitalismo” (Ibidem, p.29).
A cultura de uma classe dominante e de uma classe dominada
representam modos de vida diferenciados, não necessariamente excludentes.
Para Thompson (1991), uma cultura plebeia não se manifesta revolucionária
apenas por ser dominada diante da hegemonia cultural de outra classe, muitas
vezes incorporando valores culturais da classe dominante. No entanto, estando
em polos diferentes, o contexto de dominação revela através da organização do
trabalho e da vida, as forças sociais e a dinâmica da qual fazem parte enquanto
estrutura de sociedade:
33
O autor conceitua multidão a partir da experiência história de revoltas sociais da plebe no século XVII.
152
distintos, resiste em ser dominada à medida que mantém uma cultura popular
tradicional não condizente com a necessidade de uma classe trabalhadora
integrada à mudança qualitativa do trabalho imposta por uma revolução industrial
e pelo ritmo das cidades urbanas em formação.
O sentido no debate de hegemonia cultural perpassa pelo controle que
não se constitui apenas enquanto físico, ou a força da multidão constituiria uma
força revolucionária. O que se propõe enquanto reflexão é pensar a estrutura
social que começa a se montar no século XVIII, Estado, leis e ideologias que vão
fortalecer um modo de controle necessário à sociedade de classes. Thompson
(1991) chama atenção para o cuidado com a leitura do que representa a
hegemonia cultural, que enquanto conceito faz-se necessário ao entendimento
das relações de dominação, mas que ao mesmo tempo não deve engessar a
classe dominada na sua capacidade de reação ou de construção de modos
próprios de organização da vida e trabalho (p.78).
É nas práxis da vida que os diferentes modos de vida são produzidos,
tendo como sustentáculo a escala local no sentido da particularidade e o
costume que se constitui para Thompson (1991), no uso comum e no tempo
imemorial. O que traz a importância da tradição oral enquanto permanência
desses costumes e também na regulação da propriedade, que se instituía no
século XVIII enquanto herança na garantia da propriedade privada e no direito
de uso coletivo determinado justamente pela oralidade dos que ali estavam e
que se constituiu resistência. No centro, o vínculo à terra como materialidade dos
costumes se dá a partir do trabalho, da relação sociedade/natureza como
condição si ne qua non dos costumes.
A oralidade, através da memória, é justamente o tempo vivido. Para BOSI
(2003), construção social do grupo, da comunidade familiar ou grupal, à medida
que há uma coletividade necessária à memória que se dá através do processo
de socialização, passa pelo trabalho, pela vivencia de classe. A partir da
memória, é possível reconstituir, retomar o que é marginal diante de uma
sociedade mercantil capitalista que engole singularidades, pois se faz necessário
ter um padrão de organização da vida e do trabalho, do próprio tempo, para
justificar uma socialização voltada a uma demanda que é do capital.
A memória dos mais velhos apresenta-se nesse momento como essencial
ao direito de uso da terra, dos rios, das florestas, como barreira aos cercamentos
153
de uma classe com poder de instituir propriedade, enquanto uso individual. O
uso comum de uma coletividade é que se impunha como obstáculo ao processo
em expansão dos cercamentos, “dada a pressão da vizinhança”, do “costume
agrário”. “No século XVIII, as florestas, as áreas de caça, os grandes parques e
algumas áreas de pesca eram arenas notáveis de reinvindicações (e
apropriações) conflitantes de direito comum” (THOMPSON 1991, p.90).
Os cercamentos enquanto parte do conflito somava-se à formação das
cidades e todos os problemas oriundos da concentração de pessoas e da
demanda por recursos no contexto do século XVII. Surge então argumentos no
sentido da superexploração dos recursos devido ao uso comum, o que justificaria
o sentido da propriedade e da restrição a esses recursos, como centro de um
debate legal que tomava força. No entanto, para Thompson (1991), estava sendo
ignorado de que forma realmente se dava o uso comum, “ao longo do tempo e
do espaço, os usuários das terras comunais desenvolveram uma rica variedade
de instituições e sanções comunitárias que impôs restrições e limites ao uso”
(p.93).
O costume apresenta-se como lugar de conflito na medida que há uma
práxis fundada no uso da terra. Um costume agrário que vai de encontro ao
interesse dominante referente à instituição da propriedade e do uso dos
recursos, com o objetivo de alimentar um mercado em expansão, parte do
capitalismo que se erguia como modo de produção a ser universal. O costume
na força da tradição, do uso, da prática, passa a contrapor leis, a forçar o direito
enquanto instituição de poder a negociação com o direito de uso, enquanto
materialidade da vida dos pobres que representava uma força social de
contraponto.
O direito de uso deste conflito está posto no direito de propriedade e sua
consolidação enquanto mercadoria, “[...] da noção de propriedade rural, bem
como uma reificação dos usos em propriedades que podiam ser alugadas,
vendidas ou legadas” (Ibidem, p.112). A propriedade capitalista que se encontra
como cerne das transformações, no sentido da transição de propriedades
feudais, de práticas agrárias comunais para um modo de ser capitalista, “a
reificação – e a venda – de usos como propriedades sempre chegava ao clímax
no momento do cercamento” (Ibidem, p.113).
154
A propriedade privada e, consequentemente, o não acesso de
comunidades pobres e tradicionais à terra e à água como forma de reprodução
diretamente da natureza, imediatamente libera mão de obra, trabalhadores aos
quais só reste a força de trabalho. Ao mesmo tempo que a manutenção dessas
comunidades desobriga maiores custos desses trabalhadores, a nível de
assistência, outros trabalhadores consomem o que é produzido pelos pobres do
campo a custos mais baixos, o que permite a continuidade de salários
rebaixados, a manutenção de uma classe pobre.
Bosi (2003), ao apontar sobre a cultura das classes pobres, compreende
a mesma ligada à sobrevivência, e o papel da oralidade como externalidade da
memória, que retrata “[...] participação no mundo através do suor e da fadiga: o
sabor dos alimentos, o convívio da família e vizinhança, o trabalho em grupo, as
horas de descanso” (p.154). De maneira que a cultura da classe pobre se dá na
oposição à cultura dominante socialmente reconhecida como valor universal, e
nesse caminho, a cultura almejada, o que leva a autora ao questionamento sobre
ser a cultura um objeto de consumo ou o desenrolar da vida social:
156
eram reivindicados como “nossos”, e não como meus ou seus.
(THOMPSOM, 1991, p.145)
34
Thompson utiliza trechos dos textos do jovem poeta John Clare, que mediante consciência costumeira
de sua comunidade, expunha em seus poemas a indignação da plebe sobre cercamentos aos bens
comuns.
157
Diante das circunstâncias dos cercamentos como restrição às condições
de subsistência, o mercado fortalece-se através do comércio de alimentos, de
transações e manipulações voltadas à manutenção dos lucros da classe
proprietária de terras e de poder político. Nessa perspectiva, apreende-se a
formação de instituições mediadoras da sociedade capitalista, o mercado e o
Estado, a se expressar no capitalismo inglês no século XVIII. Os estudos de
Adam Smith subsidiam o debate da regulação do mercado como necessário ao
desenvolvimento social, substanciando o movimento que leva à naturalização da
exploração como modelo de sociedade:
158
A transição para uma sociedade industrial acarretou uma mudança
qualitativa na forma de ser do trabalho, a multidão composta por pobres,
camponeses, pescadores, caçadores, mineradores, ao produzir costumes com
base no trabalho que se dá na relação direta com a natureza, têm como o tempo
de suas vidas o próprio tempo da natureza. Mas, para constituir classe
trabalhadora assalariada na cidade, torna-se preciso disciplinar esse trabalho,
tendo no relógio o simbolismo de controle, do tempo e do trabalho. A força do
relógio no século XVII se expande ao lado de costumes que não passam pela
contagem do tempo:
159
Combinam sob forma novas os fragmentos de matéria de um
meio que é anômico, os detritos e migalhas da sociedade
industrial, imprimindo a esses conjuntos o encanto que só
poderia emanar da classe voltada como nenhuma outra para os
valores de uso. (p.158)
160
jovens, os de barco a motor, que vão atrás do que em algum momento significava
mais dinheiro. Para o velho o mar fazia o que não podia deixar de fazer.
O tempo no mar para o velho se conta ao olhar o sol e a lua, ao saber do
vento, para então continuar a pescaria. Suas companhias são outros peixes e as
aves, e ao navegar todo conhecimento do tempo da natureza se faz presente,
do pôr do sol a lua que brilha. A beleza do peixe capturado é o que faz o velho
admirar-se e também perguntar: o que fizera ele com o peixe? Se valia tamanha
luta? E o mesmo responde “ “Mas você não matou o peixe apenas para
conserva-se vivo e o vender para alimento”, pensou ele. “Matou-o por orgulho e
porque é um pescador. Amava o peixe quando estava vivo, afinal ainda o ama
morto. Se o ama, com certeza que não foi pecado matá-lo. Ou será ainda pior?”
” (Hemingway, 2017, p.104)35.
Para voltar da pescaria, fez do vento seu amigo diante do mar tão largo
com amigos e inimigos. E ao estar em terra, ao estar em casa, o jovem lhe vem
cuidar, e outros pescadores, a cuidar do seu barco e de sua pescaria. O jovem
então lhe cobra a parceria para pescaria, tinha muito o que aprender com o
velho.
Hemingway (2017) ao escrever O Velho e o Mar, nos leva para o mundo
da pesca, a cada memória e a cada detalhe da vida do seu personagem - o velho
pescador de Havana, aproximando-nos da realidade das atuais comunidades
pesqueiras e de seu modo de vida; do conhecimento que estabelece a relação
do pescador com a natureza, que é aprendido com os mais velhos, com a
comunidade. A natureza que se apresenta como condição de vida e não somente
a partir do valor de troca. Do tempo na e da natureza não medido pelo relógio e
sim através, do mar do sol e da lua, a determinar o caminho da pescaria.
De Hemingway para Caymmi, temos a descrição do pescador na sua
relação com a terra e com o mar. O pescador do autor e do compositor tem em
comum o mar, a natureza como extensão de suas vidas, condição de ser
pescador. O sentido em ser pescador é dado pela atividade pesqueira, mas
apreendida na literatura do Velho e o Mar e na canção de O bem do mar, é antes
a pesca, o trabalho, que dá sentido ao homem pescador, na relação direta com
35
Original de 1952
161
a natureza, condição de vida material, mas também do ser em suas
potencialidades:
O bem do mar
162
Ao tratar do habitar enquanto experiência histórica, o autor reflete a visão
instrumental do que seja o domínio da natureza enquanto necessidade material
à reprodução humana. Mas, para além dessa visão instrumental, o trabalho não
se dá somente no suprir do necessário à reprodução material da vida. Nesse
sentido, o habitar e o lugar de pessoas, famílias, comunidades que convivem na
coletividade em torno de uma dada prática, carrega mais do que uma visão
utilitária do trabalho. O que submete o valor de troca ao valor de uso, porque há
uma dimensão do trabalho nestas relações que tornam essa coletividade dotada
de sentido e que, tornando-se o trabalho ou o fruto do trabalho apenas
mercadoria, também se põe na dimensão utilitária desse trabalho.
Esse sentido do habitar coletivo, a noção de comunidade, trazidas à
reflexão, por ser singular, enquanto realização do trabalho na relação
sociedade/natureza, é contraponto da sociedade organizada da reprodução do
capital. Ainda que estando integradas a essa forma dominante do reproduzir da
vida social, e em constante transformação, continuam a ser lidas a partir do que
é tradicional ou primitivo, de forma que há um reconhecimento desses modos de
vida:
Com efeito, para Brandão (2009), há uma colisão entre a lógica racional-
instrumental da apropriação da natureza para o lucro, e o produzir da vida, desde
as sociedades primitivas às mais complexas. No que a condição de ser social
implica em relações várias que nos levam além do imediatismo dessa lógica
instrumental, e que se faz presente nos espaços e tempos do mundo rural.
Comunidades que, na garantia do sustento familiar, ou da reprodução da vida
comunal, a partir da natureza, através de atividades, de coleta, caça, pesca e a
agricultura camponesa, tem a natureza como espaço de vida e trabalho.
Compreender e refletir a partir do que seja o modo de vida das
comunidades pesqueiras artesanais em Sergipe, dado o seu relacionar-se com
163
a natureza, perpassa, pelo relato dessas comunidades, que nos permite articular
suas vivências. A oralidade e a memória nesse sentido se fazem presentes nos
depoimentos de vida e trabalho, e a linguagem pauta-se no que seja a prática
social dessas comunidades. Reflexão que Ribeiro (2011) faz ao tratar em seu
estudo sobre os sentidos da pesca, no que a comunicação é dada a partir de
quem é o interlocutor, de maneira que a forma como a linguagem se apresentará
em pesquisa, tem um sentido de ser que não se configura nunca em
neutralidade. “É neste sentido que toda enunciação é considerada um ato de
fala, ou seja, o que falamos ou escrevemos está direcionado para uma ação,
queremos fazer algo com essas palavras” (Ibidem, p.80). Neste caso, que as
palavras dos pescadores artesanais permitam-nos ir à realidade a partir de suas
experiências de vida e trabalho.
Vemos, assim, a necessidade da narrativa dos pescadores, não por si só,
como uma constituição da realidade, mas na possibilidade da análise. “A
memória oral, longe da unilateralidade para a qual tendem certas instituições,
faz intervir pontos de vista contraditórios, pelo menos distintos entre eles, e aí se
encontra sua maior riqueza” (BOSI, 2003, p.15). O que é e por onde caminha a
atividade pesqueira artesanal em Sergipe, apreende-se no depoimento de quem
entre o mar, o rio, o mangue e a terra, faz-se pescador-artesanal:
164
do pescador [..]” (p.32). Ainda que inserido numa economia de mercado global,
em determinados momentos de sua atividade, essa inserção se dá a partir de
um metabolismo com a natureza que não corresponde à produtividade do capital.
Desse modo, o trabalho na mediação sociedade/natureza não lhes é estranho,
mas configura o próprio ser à medida que dá sentido à identidade construída
enquanto pescador artesanal:
36
Conhecido popularmente como aratu e de nome científico Goniopsis cruentata, é uma espécie de
caranguejo menor e avermelhado.
165
FOTO3: ARATU- POVOADO PORTO DO MATO/ESTÂNCIA
37
Dados de pesquisa junto a comunidades pesqueiras realizado pelo PEAC - Programa de Educação
Ambiental com Comunidades Costeiras. Disponível em: http://programapeac.com.br/wp-
content/uploads/2010/11/O-PROCESSO-DE-TRABALHO-DA-MARISCAGEM.pdf.
166
FOTO 4: REUNIÃO DA ASSOCIAÇÃO DAS PESCADORAS E
MARISQUEIRAS DO POVOADO PORTO DO MATO
167
forma, da pesca artesanal, pegar sururu, massunim, ostra. (A.
43 anos- pescadora artesanal e marisqueira, Povoado Porto do
Mato-Estância/2016)
168
FOTO 5: PESCADOR-ARTESANAL DE PORTO DO MATO
169
escala. Cardoso (2009) destaca a forma que se realiza a pesca-artesanal,
enquanto economia de subsistência e de troca atrelada ao mercado de
pescados, o que representa a alimentação de “populações rurais pauperizadas
ao longo dos rios, mares, lagos e demais corpos d’água brasileiros” (Ibidem,
p.38); como também atrelada ao baixo investimento nos instrumentos de
trabalho e da não propriedade da água. Destarte, a caracterização da pesca-
artesanal se dá de forma diversa, mas com pontos comuns identificáveis, ao
longo dos estudos sobre essa atividade:
170
FOTO 6: BARRACA PARA TRATAR E VENDER PEIXE NA ORLA DO BAIRRO
INDUSTRIAL
171
FOTO 7: PESCADORES DO BAIRRO INDUSTRIAL
Não tenho barco, pesco com a rede dos outros, é como eu falei
se você tiver precisando do peixe você divide, e se não tiver você
vende, porque tem cambista aí. (G- 68 anos- pescador artesanal
do Bairro Industrial Aracaju/2017)
Aprendi a consertar rede vendo os outros, passo uns quinze dias
para consertar setenta braços de rede. O pescador ele não pode
pagar, se eu for cobrar um dia ai de servente, o pescador vai
comer o que? (G- 68 anos- pescador artesanal do Bairro
Industrial/Aracaju/2017)
172
na condição da apropriação dos recursos pesqueiros. No rio ou no mar, não há
uma relação de propriedade, enquanto cercamentos, como na terra. A condição
de ser pescador é ter o conhecimento da natureza, em que o aprendizado se dá
na relação de comunidade. Há uma coletividade que perpassa o ser pescador,
dessa maneira, há elementos que estruturam a pesca-artesanal, mesmo na
especificidade da captura, diante do mangue, do rio ou do mar.
Há situações em que a pesca está estruturada, de forma a garantir maior
produtividade ao mercado, os elementos que estruturam a atividade em sua
forma artesanal permanecem, à medida que a organização do trabalho não se
configura ainda a mercê da lógica capitalista. Como é o caso de parte
representativa da atividade em Pirambu, município litorâneo ao leste de Sergipe,
com uma população estimada de 8.369, segundo o IBGE (censo de 2010), com
o registro de 2.028 pescadores, de acordo com a colônia Z-5. A pesca é marcada
pela captura do camarão em alto-mar e a formação do município está vinculada
à atividade pesqueira, que permanece sendo uma de suas principais atividades,
o que é possibilitado por ser área litorânea e ao mesmo tempo estuarina do rio
Japaratuba. (Fotos 8,9,10 e 11).
173
FOTO 9- BARCOS ANCORADOS NO RIO JAPARATUBA
174
FOTO 11: CAMARÕES DE ALTO-MAR/PIRAMBU
175
agricultura, mas eu acho que é 60% a pesca, porque graças a
Deus nós temos esse mar aí grandão, é só a gente saber lhe dar
com ele (A.-54 anos-pescador artesanal Pirambu/2016)
Pirambu só tem duas fábricas, a pesca e a prefeitura. Tem o
royalty da Petrobrás que deveria ser destinado uma verba para
a pesca e não é, porque o petróleo é tirado de dentro do mar,
ocupou um espaço que o pescador pesca e esse espaço ele não
tem retorno nenhum, ele não tem uma cesta básica do governo,
ele não tem nada, só um seguro defeso e mesmo assim
complicado para o pescador adquirir. O Pescador ele tem que
se virar nos 30 para conseguir botar o peixe e o camarão na
mesa ou para vender para sobreviver (M. -47 anos-pescador
artesanal Pirambu/2016)
176
que ter muito dinheiro. Tem muito, agora que tá acabando mais,
de primeiro era muito, e ai eles esbagaçam a rede da gente, a
gente não tem direito a falar nada. A gente vai lá eles dizem você
tem que pescar beradeiro, mas quando é a noite e tem camarão
eles vêm para beirada, aí pegas as da gente. A gente se livra
deles mas, não tem jeito. Nesses tempos eu não tenho nem
pescando, a gente pesca mais pela noite quando eles param.
(W. -53 anos-pescador artesanal Porto do Mato/2015)
Cambista quando você pega hoje 50 quilos de peixe, ele te paga,
se for de seis ele paga de seis, se for de oito ele paga de oito,
mas se você for amanhã pegar 80, 100 quilos ele já quer outro
preço, porque diz que tá ruim. (W. -53 anos-pescador artesanal
Porto do Mato/2015)
A especulação imobiliária está expulsando os pescadores,
breve vamos ser um Mosqueiro da vida, porque no passado o
Mosqueiro era uma área de pescadores, hoje não é mais.
Estância se não tomar cuidado breve não tem mais pesca em
Estância, é especulação imobiliária que tá mandando todo
mundo embora. Porque o rico chega lá, compra a terra do
pescador, faz uma mansão, expulsa a família dele e contrata um
como caseiro. O pessoal está migrando para o extrativismo da
mangaba, hoje em dia todo pescador coleta mangaba também
porque é uma alternativa de renda. É por isso que eu sou favor
de uma formação diferente, porque você pode extrair do mangue
o sururu, tem a moréia, tem o bagre, tem uma série de coisas
que você tem como fazer, mas que normalmente, a nova
geração, minha vó fazia de um jeito, eu aprendi com a minha vó
e teve umas modificações, a nova geração já faz diferente. Mas
por exemplo, o jovem sai para pescar não lembra de botar uma
rede para pegar um bagre, é uma fonte de renda, no mínimo
para botar comida em casa. (D. pescador artesanal e Presidente
do Conselho de Meio Ambiente de Estância/2015)
Na nossa região não dá para viver só da pesca, porque aqui é
como se fosse mais do que uma cidade, é para turista, eles
esquecem das pessoas daqui, aqui tudo é caro, as vezes até
mais caro do que na própria cidade. É por isso que o pessoal as
vezes sai daqui para fazer compras lá, porque lá sai mais em
conta, porque aqui tudo é no gogó, então elas têm que se
virarem, o que é que elas fazem, são 30 dias, a maré boa é mais
ou menos 15, 12 dias, aqueles dias de maré ruim, aqueles dias
que elas não podem porque a maré está cheia, ai elas vão dar
faxina na casa de vizinho, dar faxina na casa dos ricos, lavar
roupa. Os homens arrumam como servente, limpar terreno do
povo, mas, de todo jeito eles se viram, ficar com fome é que não
pode né? (A. 43 anos- pescadora artesanal, Povoado Porto do
Mato-Estância/2016)
177
condição tem sido marcada pela construção de resorts e condomínios de luxo.
Gesteira e Cavalcante (2016), ao analisar o processo de especulação imobiliária
na grande Aracaju, apontam para a expansão da urbanização como forma de
acelerar o tempo de rotação do capital em sua necessidade de acumulação.
Nesse caminho, o Estado, ao fomentar a estrutura necessária para a
especulação da terra como mercadoria ao interesse de grandes construtoras,
tem investido em Conjuntos Residenciais de luxo no formato de Condomínios
fechados e de complexos turísticos, quem têm se espalhado pelo estado com
grandes consequências para as comunidades ali presentes:
178
Na região do Baixo São Francisco/SE, as comunidades tradicionais que
vivem da pesca vivem o conflito/disputa pelo acesso à terra e água, quanto na
degradação do rio e de suas espécies devido à presença das barragens ao longo
do seu curso. A comunidade Quilombola de Resina tem resistido na luta pelo
acesso à terra e água e no viver da pesca, na foz do Rio São Francisco. (Foto
12 e 13)
179
FOTO 13: COMUNIDADE QUILOMBOLA E PESQUEIRA DE RESINA 2
180
Começemos, chegou Padre Isaías aí ele veio fazer as visitas as
comunidades, aí veio aqui a Resina, o pessoal daqui era a
pobreza mesmo, era uma tristeza, porque tinha o peixe, mas
você não conhecia dos seus direitos, você vivia aqui que eles
diziam que a terra era deles. Nós trabalhava aqui era para o
fazendeiro, não apanhava porque eles não batiam, mas era um
cativeiro, porque se você plantasse um coqueiro, você plantava
era para ele, você plantava uma roça, plantava todinho o mato,
o cajueiro tudo derrubava, depois largava o fogo, depois fazia a
roça, para plantar a macaxeira, aí ele dizia agora pegue o
coqueiro e plante, você plantava mais era para ele, o dono, o
fazendeiro. Era muita gente que vivia aqui, morava muita gente,
agora só para trabalhar para ele. Acharam pouco pegaram uma
empresa chamada Norcon, aí jogaram, chegou um véio e disse
que comprou essa terra aqui da resina para cá, aí foi todo
mundo, ele disse: Comprei essa área aqui é minha já, aí ele
disse que comprou a doutor Josan, que era outro herdeiro.
Pediram os documentos, ele disse que da resina até o gato preto
era dele, e disse que não ia querer ninguém lá. O véio disso que
ali era bonito, e não queria nenhum pescador ali, ali ia fazer
campo de golfe, resort, disse que as meninas dava para
aproveitar para trabalhar (C. -46 anos- pescador artesanal e
quilombola, Povoado Resina- Brejo Grande/2016)
181
Em frente às adversidades impostas ao viver da pesca-artesanal, o que
se apresenta como solução é a noção de progresso e desenvolvimento voltado
à produtividade de mercado. Objetiva-se a substituição do aprendizado
comunitário na relação direta com a natureza, condição necessária de pescador
para sua relação com o mercado enquanto empreendedor, indo de encontro à
lógica de organização da pesca-artesanal. Em visita a SEAGRI, em outubro de
2016, foram apresentados projetos voltados à atividade pesqueira que envolvem
o incentivo à aquicultura. A fonte de financiamento propagada tem sido garantida
pelo projeto Dom Távora, parceria entre o FIDA e o Estado de Sergipe, com o
orçamento de 28,3 milhões para todo estado, sendo 2,6 milhões só para o Baixo
São Francisco.
Entre as atividades financiadas pelo projeto, além da rizicultura e do
beneficiamento do coco, está a piscicultura (Figura 6). De acordo com o assessor
da SEAGRI Jean Paolo Costa, os projetos oriundos da Secretaria são de ordem
coletiva, entretanto os benefícios são apenas para as comunidades que
assumem os investimentos em aquicultura. Desse modo, seria necessário
facilitar licenças ambientais para carcinicultores e piscicultores de menor porte,
além de pleitear um selo de comercialização, para que os pescados oriundos da
atividade adquiram maior força no mercado através de programas do governo
federal.
182
FIGURA 7: REPORTAGEM SOBRE O PROJETO DOM TÁVORA EM SERGIPE.
183
A percepção dos movimentos de resistência em torno da pesca-artesanal
tem não só identificado os conflitos existentes nos territórios pesqueiros, como
tem feito análises sobre a apropriação da natureza enquanto mercadoria, em
uma lógica contrária à presente nas comunidades pesqueiras. Nessa direção,
reivindicam o direito não só a sua identidade, a nível institucional, como também
o direito à terra e a água, referente aos conflitos socioambientais que estão
vinculados ao modo de produção capitalista.
Em suma, a natureza constantemente vinculada a uma questão ambiental
é também a natureza apropriada como recurso em uma ofensiva da expansão
capitalista que não é passível de recuo. A terra e a água, para os pescadores
artesanais, são condições de vida, em conflito permanente diante de um modelo
de desenvolvimento que as mercadoriza.
184
partir de diferentes institucionalidades, através das colônias e associações de
pescadores. O pescador artesanal enquanto categoria reconhecida pelo Estado
exerce sua atividade a partir de determinado controle, no momento que a
atividade da pesca está associada ao registro de pescador. Garantir as
reivindicações no setor da política pública torna-se alvo de disputa dentro das
ações governamentais.
Para Cardoso (2001), a especificidade da atividade pesqueira reside na
articulação terra e água necessária à condição de ser pescador, e no produzir
espaço. A forma de relacionar-se dos pescadores artesanais com a natureza
também é mediada por relações que atingem diretamente a possibilidade do
viver da pesca, por processos que se apropriam da natureza para a expansão
da produção capitalista, nesse viés, o pescador é levado ao embate que suscita
a luta política como forma de garantir sua permanência.
A politização do movimento dos pescadores tem alguns marcos a serem
sublinhados. Entre estes, a Constituinte da Pesca de 1988, que equipara os
direitos sociais das colônias aos dos sindicatos de trabalhadores rurais, e que
mobilizou e movimentou pescadores a nível nacional, a destacar o papel de
articulação da Comissão Pastoral de Pescadores. Segundo Cardoso (2001),
apesar de carregar uma forte intervenção do Estado através da instituição das
colônias, a mobilização da Constituinte representa um salto na articulação do
movimento de pescadores, mesmo com as contradições presentes no processo
de disputa das representações:
185
institucionalidade representativa, que por vezes é tomada por interesses que vão
de encontro às necessidades do que seja a pesca-artesanal, utilizando-se
apenas da mediação, trabalhador da pesca/Estado.
Nesse trajeto, outras frentes se abrem, seja em escala local, ou nacional,
para que as pautas da pesca-artesanal tornem-se pautas políticas de
enfretamento pela garantia da terra e água enquanto reprodução da vida. Em
Sergipe, o depoimento dos pescadores revela o reconhecimento das
representações na garantia de direitos da categoria, mas também a angústia
diante dos limites das colônias e associações ou da inexistência de uma
mobilização maior em torno de suas demandas:
186
funciona enquanto associação comunitária para receber, armazenar, tratar e
comercializar os pescados, além do apoio a nível de estrutura dos barcos, como
consertos e óleo diesel. No caso da Colônia Z5 e da ASPEPIPO, em conversa
com seus presidentes, estes informaram que ambas têm o papel de reunir a
documentação necessária para garantir aos pescadores e pescadoras o RGP, o
seguro defeso, a licença maternidade e a aposentadoria, em mediação com os
órgãos públicos responsáveis. (Foto 14 e 15).
187
FOTO 15: DESEMBARQUE DE CAMARÃO DE ALTO-MAR/PIRAMBU
188
A CONDEPI, antiga Pirambu Pesca, nos moldes de uma cooperativa,
reúne as demandas mais imediatas diretamente ligadas à atividade pesqueira.
De acordo com o presidente da Associação, as atividades consistem na
fabricação de gelo que abastecem os barcos, e também a venda para garantir o
funcionamento de toda estrutura existente. Há o abastecimento dos barcos com
óleo diesel subsidiado pela Petrobrás a preços mais baixos, além de balanças e
beneficiamento dos pescados, de maneira que concentra quase toda
movimentação da atividade pesqueira no município, dos donos de barcos
também pescadores aos que embarcam e assumem as pescarias em grupos.
As mulheres têm papel fundamental na manutenção da atividade pesqueira ao
dedicarem-se no catado do camarão para comercialização:
189
FOTO 16: CATADO DE CAMARÃO/PIRAMBU
190
FOTO 17: REDE DE PESCA DE PESCADORA ARTESANAL DE PORTO DO MATO
191
Estância38, reconhece-se a jornada exaustiva de trabalho a que as marisqueiras
estão submetidas, acumulando o trabalho doméstico com a mariscagem, de
forma que os estudos do Programa têm sido direcionados à composição de suas
ações, dentre elas a articulação para a criação do Movimento de Marisqueiras
de Sergipe- MMS.
O Movimento de Marisqueiras de Sergipe39, que surge em 2013 e se
estrutura em 2015 com as coordenações, tem atuado no sentido de dar
visibilidade e reconhecer o papel dessas mulheres na atividade pesqueira, como
também reunir as pautas de luta e mobilizar-se em torno das demandas da
pesca- artesanal no estado (Foto 18 e 19). A criação do Movimento está atrelada
à atuação do PEAC junto às comunidades. De acordo com uma das
pescadoras40 que tem atuado junto ao Movimento, nas etapas para sua
organização, tem-se, incialmente, pesquisas que definiram a área de
abrangência dos impactos da empresa, seguido da identificação da atividade de
mariscagem. Após esses estudos, uma das formas de fazer mitigação tem sido
a organização de reuniões, que estimularam a organização do movimento,
inclusive dispondo de estrutura e recursos, para que a marisqueiras do estado
encontrem-se, façam reuniões e participem de eventos a nível nacional com
outras pescadores e pescadores.
38
O processo de trabalho da mariscagem: Caracterizando a realidade de Porto do Mato Estância-SE.
Disponível em: http://programapeac.com.br/wp-content/uploads/2010/11/O-PROCESSO-DE-
TRABALHO-DA-MARISCAGEM.pdf.
39
De acordo com informações disponíveis no site do PEAC, programapeac.com.br, a criação do MMS se
dá em 2013 no 1° Encontro Inter-regional das Marisqueiras realizada pelo Programa, de onde saiu o
Primeiro Pacto de Lutas com as pautas do Movimento. Já em 2015, no 2° Encontro, há uma estruturação
do MMS para eleger sua coordenação, articular-se com outros movimentos e participar de atos políticos.
40
Pesquisa de Campo no Povoado Muculanduba.
192
FOTO 18: BANDEIRA DO MMS- POVOADO MUCULANDUBA
193
Apesar do reconhecimento do Projeto como fundamental à formação do
MMS, há discussões internas do Movimento que apontam para a necessidade
de autonomia do Movimento de Marisqueiras em relação à Petrobrás, ao mesmo
tempo que se vê uma obrigação da empresa em compensar e mitigar pelas
atividades que exerce e impactam as comunidades:
194
Mapa 4
195
FOTO 20: ATIVIDADE DE FORMAÇÃO DO MPP EM RESINA-BREJO GRANDE/SE
196
O papel do MPP em Sergipe é recente. Uma de suas articulações e
mobilização com os pescadores artesanais de Sergipe, Alagoas e Bahia, foi
realizada em outubro de 2016, em um primeiro momento na Comunidade
Resina, em Brejo Grande e, em seguida no município de Propriá (Foto 20 e 21),
ambos em Sergipe no Baixo São Francisco cuja atividade consistiu na formação
e intercâmbio entre o Conselho Pastoral da Pesca, que atua no Baixo São
Francisco, e o MPP, junto a outros movimentos que mobilizam a atividade
pesqueira artesanal no estado.
Estando presente neste evento, pôde-se verificar que os debates
pautaram a pesca-artesanal a nível nacional e local, para o fortalecimento de
bandeiras de luta da atividade, com o objetivo de elencar os conflitos
identificados pelos representantes nos estados presentes. “A política da vida é a
luta”, afirmou uma das representantes do MPP. Entre os debates, destacaram-
se a crítica da forma como a aquicultura foi inserida junto à pesca artesanal,
enquanto política Ministerial, de concessão de águas públicas; como também a
crítica ao limite de políticas compensatórias que não são pensadas e gestadas
a partir dos anseios das comunidades e povos tradicionais.
A concepção do que sejam povos e comunidades tradicionais, trazida ao
debate pelos próprios pescadores, está na organização de vida, luta e memória
de negros e indígenas, principalmente no Nordeste, como populações que
compõem as comunidades pesqueiras. A Identidade do Território Pesqueiro,
bandeira de luta do MPP, parte da leitura dos pescadores enquanto extrativistas,
ribeirinhos, indígenas, quilombolas, sendo identidades que se relacionam na
pesca-artesanal.
A retomada das lutas a nível nacional que articula o MPP enquanto
Movimento, data do encontro de pescadores em Brasília, em 2009, onde o
debate foi construído em torno da preocupação das ameaças e perdas dos
territórios das comunidades pesqueiras, que instituiu como principal bandeira de
luta do movimento a Defesa do Território Pesqueiro (Figura 8), com a campanha
de visibilidade nacional em torno de assinaturas, para a propositura da lei de
reconhecimento dos territórios.
197
FIGURA 8: CAMPANHA EM DEFESA DO TERRITÓRIO PESQUEIRO
No rio e no Mar
Pescadores na luta
Nos Açudes e Barragens
Pescando liberdade
Hidronegócio. Resistir!
Cerca nas Águas. Derrubar!
(Grito de Ordem do MPP)
199
IV- CAPÍTULO- CONTRADIÇÃO E DIALÉTICA NO PROCESSO DE
APROPRIAÇÃO DA NATUREZA: A PESCA-ARTESANAL FRENTE A
DESTRUTIVIDADE DO CAPITAL
41
Martins- sociabilidade do homem simples.
200
argumentos, “ [...] “ ademais, na natureza, todas as organizações, desde a mais
baixa até a mais alta, têm por base um tipo simples”, e esse tipo “pode ser
encontrado pleno e inteiro, em sua essência genérica [..] ” (Ibidem, p.111).
Engels (2015) refuta o pensamento de Duhring sustentando a
necessidade de compreender não só o modo de existência dos corpos, mas
também ao que se constitui natureza e sociedade, como condição de superação
do pensar que torne imóveis diante dos processos que compõe a vida, o homem,
em sua existência, que a natureza não se realiza de forma metafísica, e sob essa
ótica, a própria sociedade.
Sob a égide do capitalismo a nível global, a concepção de natureza, para
Smith (1988), está imbricada na ideia de progresso atrelado à dominação e
consumo da natureza, como necessária e inevitável à reprodução social. Mas,
ao mesmo tempo, é possível encontrar nos estudos que abordam concepções
sobre natureza, contradições que demonstram a complexidade que envolve a
tentativa de incutir a noção de natureza nas bases do pensar que sustenta a
sociedade capitalista.
Essa sustentação parte da ideia de uma natureza exterior que se apoia
na ideia de Deus que exterioriza sua racionalidade na natureza. De maneira que,
em consonância com PONTY (2000), essa afirmação recai no que seria a própria
natureza em si, que, como externalidade, carrega suas leis dentro do planejado
por Deus e, sendo infinito, automaticamente torna infinita a natureza e suas leis.
O mundo tal qual o conhecemos dependeria então das leis da natureza para
assim continuar infinita, a seguir uma ordem formada por Deus. O homem,
criação posterior à natureza, teria por finalidade dar continuidade à racionalidade
de Deus.
Nesse debate, há um dualismo que apresenta a natureza como externa
ao ser, assim sendo, numa perspectiva não dialética de sociedade/natureza,
mas sociedade e natureza. Essa concepção de natureza externa ao homem,
para Smith (1988), tem início justamente na teoria criacionista, que remete a
Deus a criação de uma natureza primeira em que só posteriormente se dá a
criação do homem. Com a criação do homem, há então uma natureza humana,
sendo essa natural, e portanto, imutável.
A contradição se apresenta na medida em que essa natureza é também
universal, já que o homem necessita dominar a natureza para reproduzir
201
sociedade, o que leva ao questionamento da própria externalidade da natureza
enquanto concepção que permeia o meio científico a sustentar estudos que se
encarregam de criar meios para sua dominação. Sendo assim, intencional ao
desenvolvimento de uma sociedade burguesa industrial em expansão, que o
conceito de externalidade da natureza se torne a concepção de toda uma
sociedade, a nortear a forma de ser e organizar o trabalho:
202
A exterioridade é substituída pela universalidade, pelo menos no
fim de semana. Essa viagem poética começa a partir da
exterioridade da natureza; se a viagem poética para a natureza
começa onde a viagem científica termina; se a viagem poética
começa a partir da exterioridade da natureza que ela tenta
universalizar, a viagem científica aceita a universalidade da
Natureza- como matéria ou como espaço e tempo- que ela tenta
continuamente converter em um objeto exterior ao trabalho.
(SMITH, 1988, p.44).
203
produção social, assim sendo, o que é definidor é a forma da apropriação, que
sob o capitalismo, estabelece a propriedade privada.
A propriedade da terra ou a terra enquanto passível de valor tornada
mercadoria impede seu uso como fonte de subsistência imediata e impõe o
trabalho assalariado aos que não podem viver diretamente da relação com a
natureza. Esse é o sentido da apropriação, para Marx, enquanto propriedade
privada que dá sentido inicialmente à acumulação do capital.
A natureza valorizada a partir do processo de produção capitalista é
propriedade, é condição de produção e também matéria-prima, ainda sim, há um
limite que se impõe à forma de produzir do capital, que é o limite de reprodução
da própria natureza em seu ciclo natural. Limites que são constantemente
expandidos na tentativa de controlar a produtividade da natureza sobre circuitos
e modelos de produção intensivos.
Essa relação metabólica com a natureza, sob o capitalismo,
inevitavelmente assume a forma de alienação, sendo dada ao homem e à
natureza a condição de mercadoria. Mas o que é a natureza? Para Ponty (2000),
um objeto enigmático, um objeto que não é inteiramente objeto; ela não está
inteiramente diante de nós. É o nosso solo, não aquilo que está diante, mas o
que nos sustenta (p.4). “A natureza é ao mesmo tempo passiva e ativa, produto
e produtividade, mas uma produtividade que tem sempre necessidade de
produzir outra coisa” (Ibidem, p.59).
A natureza, segundo Ponty, não pode ser Deus, e não representa um
produto final, há um movimento na natureza, sendo assim produto e produtora.
E só movimentando nossa percepção para o que é unidade entre nós e a
natureza, é que será possível compreender o seu sentido. Assim, a superar o
idealismo que nos afasta do que seja o mundo que construímos não como seres
inertes à mercê de uma finalidade previamente determinada.
Ao analisar a natureza na perspectiva do valor de troca e do valor de uso,
Fontenele (2013) remete-se à teoria do valor em Marx, que expressa o valor
dado as coisas a partir da organização social e do trabalho voltada à produção
de mercadorias, de forma que a natureza a ser apropriada enquanto recurso e
dotada de valor, aparece como externalidade:
204
As sociedades, ao reproduzirem as condições de sua existência,
estabelecem relações vitais com a natureza, as quais, em meio
ao desenvolvimento histórico desvendam a objetividade e a
materialidade dessas relações em suas múltiplas
manifestações. É através do trabalho e do tempo histórico que
as sociedades ao produzirem e reproduzirem sua condição
material de existência fazem como unidade com dois elementos:
valor de uso e valor de troca. (Ibidem, p.36)
205
Dessa diferença parte o sentido da pesca-artesanal em sua relação com
a natureza, e da atividade voltada simplesmente ao objetivo do lucro, na medida
em que atividades pesqueiras voltadas à produção capitalista, ao esgotar os
recursos pesqueiros da localidade, não encontram mais sentido de permanência.
No que se refere às comunidades pesqueiras artesanais, as dificuldades diante
da diminuição dos recursos pesqueiros são enfrentadas, no recriar-se pescador
a partir das relações de comunidade e da compreensão da natureza como
condição de suas próprias vidas, há um respeito, de tal modo, aos limites
impostos pela natureza.
A pesca-artesanal enquanto atividade condicionada aos ciclos naturais da
natureza, inevitavelmente, organiza-se em torno do tempo que se opõe à
produtividade capitalista. Os instrumentos de trabalho utilizados na pesca-
artesanal, nesse sentido, diferenciam-se da própria capacidade de captura, e a
organização do trabalho, em torno da atividade que se dá no domínio das
técnicas e na produção dos instrumentos de trabalho voltadas às especificidades
dos recursos pesqueiros disponíveis. Há um conjunto de elementos em torno da
relação trabalho/natureza na pesca que define a forma dessa relação.
A reprodução da vida, fora dos princípios da “civilização” do modo de
produção capitalista, é considerada como primitiva e se estabelece, hoje, como
tradicionais, ao se definir como modo de vida na negação da concepção
capitalista de desenvolvimento e de progresso.
Na afirmação da existência de comunidades tradicionais, reconhece-se
um modo de vida a se pôr em outra direção ao modo de vida dominante. Isso,
no entanto, não nos permite visualizar isolamento ao capital, dado seu modo de
expandir-se e reproduzir-se. Sendo assim, apontamos a forma mercadoria como
mediação nas relações que compõem o modo de vida tradicional, tendo sua
permanência e resistência atrelada ao trabalho em sua ontologia, própria da
condição humana, mas ao mesmo tempo não deixando de se inserir na
necessidade de consumo no mundo da mercadoria.
Essa inserção compromete o metabolismo das comunidades pesqueiras
com a natureza, quando dada suas especificidades possíveis no modo de
organização do trabalho e apropriação da natureza, não se tem a natureza como
exterioridade. Diegues (1983) examina essas questões e as vê como mudanças
206
que rompem com os elementos estruturantes no que define as comunidades
pesqueiras artesanais como modo de vida tradicionais:
207
Chama marisqueiras, mas na verdade elas são pescadoras,
porque é família né? As vezes o marido, o pai ou o irmão tá no
mar pescando, e elas tão aí cuidando dessa parte. Sem elas ali
não existia pescaria, porque nós não tem fábrica para poder
beneficiar o camarão, é todo feito manual, é todo feito artesanal.
(M- 47 anos- pescador artesanal e Presidente da Colônia de
Pirambu/2016).
208
Do mesmo modo, o ser social pressupõe natureza orgânica e
inorgânica e, se não tiver essas duas como fundamento, não lhe
é possível desenvolver as suas próprias categorias, distintas
daquela. A partir de tudo isso, torna-se possível uma ordenação
dos níveis do ser sem pontos de vista valorativos, sem confundir
com estes a questão da prioridade ontológica, da independência
e dependência ontológicas. (LUKÁCS, 2013, p.191)
O ser social surge como uma etapa singular da atividade entre o orgânico
e o inorgânico, e com ela a consciência humana, condição do produzir relações
qualitativamente novas resultantes de um processo histórico. É nesse sentido
que Lukács define o pôr teleológico diferente da consciência animal que se
adapta ao meio ambiente, enquanto a consciência possibilita a transformação da
natureza em outro patamar que vai além de uma simples adaptação.
A consciência é produto do metabolismo com a natureza. Diante da
unidade sociedade/natureza, a alienação se estabelece, e essa unidade é
utilizada para sustentar concepções que afirmam a condição imutável do
homem, na negação do que seja social. E o devir do homem, como possível de
construir e transcender através do trabalho determinadas relações sob o modo
de produção capitalistas que emergem como naturais a condição humana.
Lukács (2015) reforça a necessidade de uma leitura crítica e dialética
sobre a natureza, já que a maneira como se constitui o nosso conhecimento
sobre esta se dá a partir das mediações que se manifestam na sociedade, nesse
209
caso, a sustentar sob o processo de alienação, o modo de produção do capital.
O ponto desse debate está na compreensão da relação sujeito e objeto enquanto
antagônicos, sendo a sociedade/natureza unidade à objetividade possível de ser
transformada e, assim, descartada sob uma leitura não dialética:
42
Destaque do autor
210
processo dialético existente na relação entre a estrutura econômica da
sociedade e o metabolismo entre sociedade e natureza, de forma que a
objetividade, nessa medida, passa a ser dialética (p.97). Essa objetividade, no
entanto, não necessariamente produz o conhecimento dialético dado às formas
de mediação dominantes na estrutura social, mas “Em outras palavras, a
dissolução, a superação, de uma contradição dialética é produzida pela
realidade no processo histórico real” (p.98).
É por isso que tratar da produção da natureza é falar sobre a relação
indissolúvel e dialética entre o sujeito e o objeto, que dá sentido ao ser social.
Ainda que a natureza exista sem o ser social, o contrário não é verdadeiro. A
capacidade peculiar que configura o que é humano diante da natureza, a
consciência do trabalho ao transformá-la, torna social essa natureza à medida
que o processo de desenvolvimento da sociedade o é em escala global, a
caracterizar o próprio modo de produção capitalista. Isto posto, é central o
trabalho em sua condição ontológica a estabelecer o conhecimento real do que
trate a relação sociedade/natureza.
As categorias utilizadas por Lukács na explicativa da ontologia do
trabalho, condição do ser social, sustentam-se na relação do que é natural ao
que é social, em relações que se complexificam. Das cadeias causais
imprescindíveis ao pôr teleológico, ao espelhamento que estabelece o sujeito e
o objeto, ao mesmo tempo, a relação de dependência, ao ponto que o espelhar
da realidade na consciência é que precede o trabalho que transforma natureza,
depois torna-se social como o próprio homem.
Do espelhamento surgem as peculiaridades diante de alternativas sempre
novas no movimento da práxis social, sem jamais se desassociar do
metabolismo sociedade/natureza em seu objetivo inicial e próprio da condição
humana, que é produzir valores de uso. O devir do homem está na reciprocidade
entre o homem e a natureza, no que a própria prioridade ontológica de
reprodução biológica ante a econômica confirma essa relação.
Produzir natureza, nesse sentido, trata-se da sociabilidade da vida
humana, pois mesmo a se compreender sujeito e objeto, não há reprodução do
ser social sem a transformação dessa natureza. O caráter social do ser em sua
humanidade está diretamente atrelado ao que lhe dá condição de se reproduzir.
Nesse sentido, compreender homem e natureza não passa por tratar a natureza
211
enquanto exterioridade, com o risco que se assume necessário ao capitalismo
de negar a própria humanidade:
213
ao mesmo tempo em que se aproximam de relações que levam ao
estranhamento desse ser no outro, deste modo, da sociabilidade que define a
condição de comunidades a viver da pesca.
A relação dada na pesca-artesanal é o produzir da natureza no sentido
que essa produção passa a se afirmar em uma sociedade cada vez mais social,
em que as mediações que levam aos pôres teleológicos são cada vez mais
sociais, a pesca se dá na relação direta com a natureza a partir do ciclo produtivo
dessa natureza. As sociedades primitivas são assim determinadas a partir do
nível de domínio da natureza, sendo que, para Lukács (2013), atividades como
a caça, coleta e a pesca, praticadas por estas não transformam a natureza, ainda
que os homens ao exercerem essas atividades já tenham ido além do estado de
naturalidade de sua existência (p.473).
No entanto, essas práticas, mesmo que diretamente da natureza não
modifiquem seus ciclos reprodutivos, passam a ser cada vez mais sociais à
medida que a natureza também é socializada. A natureza que figura como objeto
do metabolismo compreende a totalidade da sociedade. A relação sujeito/objeto
entre o pescador e a natureza não se dá como exterioridade, como objetividade
alienada, está na condição da objetividade dada à natureza que é de sua própria
vida.
A possibilidade do homem de exercer todas as potencialidades humanas
depende primeiramente de sua reprodução biológica, por isso o debate da
ontologia no que constitui o ser é essencial para estabelecer o devir do homem.
Assim sendo, as sociabilidades que resguardam essa relação com a natureza
como condição primeira de sua identidade e existência representam uma
afirmação do que seja a relação sociedade/natureza na constituição do ser
social.
214
sociometabolismo. Mas pensar a base para diferenciação desse espaço
geográfico somente a partir da diferenciação encontrada na natureza levar-nos-
ia à teoria determinista, de forma que a relação que caracteriza comunidades
tradicionais estariam limitadas à produtividade encontrada na natureza em suas
localizações.
A relação das comunidades pesqueiras artesanais com a natureza as
caracteriza enquanto comunidades tradicionais, o acesso a ambientes que
permite a prática da pesca é premissa à atividade, mas só compreendendo os
pescadores em sua vida cotidiana, no movimento do processo histórico é que
podemos destacar suas singularidades. O trabalho na pesca produz relações e
transforma a natureza ao ponto que se identifica de forma diferenciada o modo
de vida dos pescadores, e de que forma se objetiva essa práxis enquanto relação
sociedade/natureza.
O trabalho enquanto princípio do ser social, ao transformar a natureza
e a si mesmo, produz espaço de forma diferenciada. Na medida que a sociedade
se complexifica com a divisão do trabalho em diferentes níveis em diferentes
escalas para a expansão do capital, a produção da vida social produz de forma
diferenciada a própria natureza:
215
se uma diferenciação cada vez mais social dessa natureza diante do processo
de trabalho.
O trabalho subsumido ao capital, de forma a guiar a produção capitalista
do espaço, invariavelmente produz uma sociedade de classes, da qual Smith
(1988) se ocupa a analisar apontando as contradições do modo de ser do capital
e sua tendência para diferenciação da produção do espaço e da natureza a ser
apropriados de forma a estabelecer o desenvolvimento desigual e combinado
como forma da sua lógica espacial.
A concentração de determinadas estruturas sociais compreende a divisão
do trabalho através de determinadas atividades produtivas, no que remete à
própria divisão cidade e campo como suporte à expansão do capitalismo. De
maneira que a cidade aparece como o lugar da concentração do capital, diante
do campo como lugar da produção de alimentos, de matérias-primas e do próprio
retorno à natureza. Divisão que ganha outros contornos com a própria
necessidade de acumulação e reprodução do capital, a exemplo do
agrohidronegócio como atividade que rompe com a estrutura do campo cidade
como momentos diferenciados da produção capitalista:
216
A tendência do capital à acumulação define a dominação da natureza e
da produção do espaço a esses objetivos, o que amplia continuamente sua
capacidade destrutiva. Essa regulação a definir o modo fetichizado de
reprodução da sociedade, para Harvey (2010), expressa-se no processo de
globalização como anseio da classe que representa o capital a configurar a
expansão geográfica como de mercado nos moldes da dominação:
217
homogeneidade mundial ou se as diferenças e resistências levarão a uma
desestruturação (p.76).
A vida cotidiana dos pescadores artesanais, ao reproduzir seu modo de
vida, não deixa de estar imerso na lógica capitalista, mas se põe como o não
homogêneo. As contradições que se manifestam na vida cotidiana, para Martins
(2008), emergem da reprodução social enquanto reprodução ampliada do
capital, ao modo que a repetição aludida ao cotidiano também cria o novo diante
do produzir da história, dado ao homem a capacidade de criar e de ser criatura
de si (p.57). Assim, as contradições, ao gerar conflitos com a própria condição
humana, só podem ser transformadas pelo próprio criador.
Nesse bojo, os conflitos existentes e identificados pelas próprias
comunidades pesqueiras artesanais são resultados do modelo de controle dos
recursos naturais. Tendo no agronegócio, na construção de hidrelétricas como
matriz energética, no turismo e na especulação imobiliária a concretização de
práticas que impedem a permanência de comunidades pesqueiras, no que o
arranjo produtivo é sustentado pelo capital privado e pelo Estado:
218
A definição das culturas tradicionais, para Diegues (1996), compreende o
uso da natureza enquanto recurso natural repletos de significados a essa cultura
que justamente se objetiva enquanto modo de vida. Nessa definição na relação
com a natureza, destaca-se a relação de dependência e de simbiose que institui
o modo de vida a partir do ciclo natural da natureza e, consequentemente, o
conhecimento dessa natureza e o desenvolvimento de técnicas para a
apropriação desses recursos que se caracterizam por um baixo impacto dado
seu modo artesanal (p.87).
Por isso, a produção do espaço dada à pesca-artesanal, é tida enquanto
singular, mesmo ao se configurar território do capital, que se expande, mesmo
sem monopolizar o uso da terra e das águas, lugar de vida e trabalho das
comunidades pesqueiras. O cotidiano dessas comunidades estabelece, nesse
sentido, um produzir da natureza que não parte da produção social voltada ao
capital. Santos e Almeida (2008) denominam estas de cultura desviantes, à
medida que a prática dessas comunidades se dá de forma dupla, tanto na
inserção de práticas que remetem ao modo de produção dominante, como ao
vivenciar práticas da economia capitalista.
O cotidiano como expressão do vivido das comunidades pesqueiras se dá
na apropriação da terra e da água no exercício da pesca, mas também como
lugar de moradia e de relações comunitárias, o que para Maldonado (1994), ao
tempo que esses dois meios passam a ser reivindicados como de direito dessas
comunidades, a territorialidade se estabelece como representação do espaço
que expressa a organização social das comunidades pesqueiras:
219
conforme Maldonado (1994), relação de igualdade que se converte também na
cooperação existente entre os pescadores na realização do trabalho, como
também nas relações de comunidade. A forma de se apropriar da natureza
define o não estranhamento do outro, e da própria natureza, o que constitui um
produzir de relações que resultam nas diferenças apontadas nas reconhecidas
comunidades definidas tradicionais:
220
A prática social voltada à pesca-artesanal carrega em si a tendência à
diferenciação, enquanto expressão da divisão social do trabalho, mas também a
tendência à igualização, na medida que se articula a partir de uma sociedade
que se organiza a partir da mundialização do capital a determinar o modo de
socialidade do ser social. Sendo assim, não há uma natureza diferenciada
apropriada pelas relações provenientes da atividade pesqueira, mas um modo
diferente de se relacionar.
As mudanças efetivadas ao longo do processo social, que orientam os
pôres teleológicos do ser social, apresentam condições de existência real que
se movimentam no sentido de impor uma única lógica de apropriação da
natureza. O desenvolvimento social manifesta-se ao exprimir as relações de
consumo como única forma de estimular as potencialidades humanas criativas,
sendo assim, a produção continua e crescente de mercadorias novas, que
implica na exploração contínua e destrutiva da natureza.
A preservação da natureza atribuída às comunidades tradicionais está
ligada à forma como se inserem no circuito de produção e consumo. De qualquer
maneira, preservar porções da natureza numa leitura próxima da
conservacionista, de natureza isolada, é uma falácia desmistificada pelas
próprias comunidades que identificam as mudanças na reprodução da natureza
e as identifica como oriundas de estruturas organizadas em torno do que se
expressa como desenvolvimento:
221
uns derramamentos de óleo que houve também por aqui, pela
mortalidade do caranguejo, que eles sabem disso, simplesmente
eles deixaram, só que as vezes eles chamam a gente para
cursos, para eventos do PEAC, eventos da Petrobrás (A- 43
anos, pescadora artesanal, Porto do Mato/2016)
222
específicos limitados. Com isso, os adversários da ordem
estabelecida da reprodução sóciometabólica, incorrigivelmente
discriminatória, têm de enfrentar e superar não apenas a força
positiva autossustentada de extração do trabalho excedente do
capital, mas também a força devastadoramente negativa (a
inércia aparentemente ameaçadora) de suas ligações circulares.
(Ibidem, p.181)
223
As necessidades humanas ao representar essa transcendência positiva
do trabalho precisam romper com o controle metabólico do capital. O que só é
possível de realizar-se para Mészáros (2002) numa relação com a natureza que
compreenda os seres humanos como parte desta a satisfazer suas
necessidades através do intercâmbio, e que não podem produzir sua existência
sem essa mediação com a natureza:
224
e remeter a compreensão das categorias superiores como movimento para
compreender as categorias simples, tem-se aí o reconhecimento da
complexidade social como essencialmente fruto do metabolismo do ser com a
natureza.
Nas comunidades pesqueiras, toda essa complexidade social não estaria
materializada, dado o modo de vida considerado tradicional, não possibilitar o
que caracteriza esse desenvolvimento mediado por categorias que remetem ao
modo de produção capitalista. No entanto, partindo dessa complexidade para o
modo de vida que nos move ao que é essencialmente humano, que é o modo
peculiar do metabolismo com a natureza determinado por porês teológicos não
submetidos completamente à reificação capitalista, produzimos o conhecimento
do em si ao para si. Mesmo que o conhecer não signifique superação,
submetemos o conhecimento às potencialidades humanas, ao que seja o devir
homem em sua capacidade total de as exercer.
A concepção de uma natureza integrada ao seu modo de vida e não
apenas como objeto, no sentido do antagonismo com o sujeito, de forma que a
natureza se torne apenas objeto de intervenção, presente nas comunidades que
vivem diretamente da natureza, permite-nos ir à questão proposta por Mészáros
(2002), da unidade dos sujeitos que trabalham com a natureza de forma
compatível ao desenvolvimento produtivo existente, pois a permanência destas
revela, diante do sociometabolismo do capital, a emergência de outra forma de
práxis humanas:
225
A realização do desafio proposto a nível de transcendência da
autoatividade humana voltada a sua realização em todas as suas
potencialidades, não é possível somente a partir dos modos de vida de
comunidades tradicionais a partir de uma proposta de bem viver. Mas nessas
comunidades, a externalidade da natureza é confrontada enquanto única
racionalidade da existência humana. O reconstituir da relação
sociedade/natureza passa pelo exercício das qualidades humanas na dimensão
de uma totalidade social que determina o processo histórico a representar o ser
social em sua plenitude.
43
Subtítulo utilizado em alusão ao livro de Gilson Dantas (2012) – ver referência bibliográfica. Estudo
fundamentado nas leituras de Karl Marx sobre a incapacidade da sociedade mediada pelo capital de
restituir o equilíbrio necessário a condição humana, apontando o papel da classe trabalhadora na luta
ecológica pela reconciliação da humanidade.
226
O discurso da crise ambiental se anuncia na perspectiva de proteger a
natureza e reduzir os seus danos com os impactos da produção industrial, do
modo de vida urbano e da agricultura de larga escala e outras atividades
atribuídas a relação do homem com a natureza. No entanto, as estratégias que
se pautam na redução de danos, ou na proteção de partes da natureza, não
enfrentam a questão central, que está na forma como a sociedade tem
transformado a natureza sob a mediação capital/trabalho.
A acumulação do capital só é possível com o crescimento dos lucros sob
uma constante exploração da natureza, que na sua tendência universalizadora
se dá sobre a “sombra da incontrolabilidade” do capital na produção do espaço
global. “A degradação da natureza ou a dor da devastação social não têm
qualquer significado para seu sistema de controle metabólico em relação ao
imperativo absoluto de sua autorreprodução numa escala cada vez maior”
(MÉSZÁROS, 2002, p.253).
A necessidade do lucro conduz a uma contradição que se aprofunda à
medida que há necessidade crescente de produtividade, o que contradiz à
possibilidade de solução para a crise ambiental no modo de produção capitalista,
situação que não é possível de ser resolvida sem subverter a lógica de produção
com a natureza na sua continuidade cada vez mais destrutiva, considerando a
natureza como recurso inesgotável.
A organização da sociedade em torno da lógica de uma inevitabilidade da
produção cada vez maior de mercadorias como promessa de desenvolvimento
e inerente ao ser que trabalha constituiu-se numa racionalidade destrutiva:
As conferências ambientais das décadas de 1990 e 2000 consolidaram o
princípio da sustentabilidade enquanto discurso ideológico, como se fosse
possível incorporar na forma de ser do capital a preservação da natureza. O
capital tem como característica determinante ser destrutivo, em sua nova fase
de acumulação, a crise lida ambiental é estrutural do capital, o que
invariavelmente agrava mais a crise entre homem e natureza (DANTAS, 2011,
p.17).
227
será aplicar um montante de capital para valorizar esse mesmo
capital. (Ibidem, p.72)
228
está assim submetido a leis da natureza que se constituem em crise ecológica à
medida que diante dos limites da natureza o capital só se realiza sem limites.
A crise ecológica é, dessa forma, uma crise global, ante o poder destrutivo
do trabalho submetido ao capital. Se a natureza é condição da realização do
trabalho na relação sociedade/natureza, e é tratada como externalidade, a
degradação dessa natureza passa a se impor cada vez mais como limite ao
capital, no sentido da disposição de sua matéria passível de se tornar valor
através do trabalho. Altvater (2006) considera a necessidade de se levar em
conta o conceito de entropia que representa a troca necessária entre matéria e
energia a determinado sistema:
229
baixas taxas de juros, os Grandes Grupos transnacionais se
dirigem para a periferia para a aplicação em ativos fixos como
terra, minérios, matérias primas agrícolas, água, territórios de
elevada biodiversidade, investimentos em setores produtivos na
produção agrícola; controle de energia renováveis (hidrelétricas
e usinas de etanol). (Ibidem, p.20)
231
FIGURA 10: 1° ANUÁRIO DE PESCA E AQUICULTURA 2014/2
232
FIGURA 11: NOTICIA SOBRE PARCERIA DA ONU E PROJETO DOM TÁVORA/SE
233
A aquicultura apresenta-se como uma das faces que representa a gestão
das águas voltadas a sustentar atividades que possibilitem o crescimento
econômico. Di Mauro (2016) chama atenção para a água como instrumento de
dominação e de transformações na forma de recursos hídricos. A natureza é
transformada em mercadoria, e nesse sentido, a água cada vez mais é motivo
de conflitos em escala mundial. O autor pontua as agendas ambientais e os
órgãos responsáveis por pensar politicamente o uso da natureza, tendo a água
como grande preocupação.
No Brasil, há marcos legais que tratam do uso da água, a determinar seu
domínio e responsabilidades de gerenciamento, a destacar a Lei 9.433/97. “A
água é um bem de domínio público. “Nesse fundamento está contida a ideia de
que, no Brasil, não deveria haver água privada. Todas as águas, no território
nacional, são de domínio da União, dos estados e do Distrito federal [...]” (Ibidem,
p.394). Essa lei constitui o que possibilita a prática da pesca-artesanal e que
define a organização do trabalho em torno de uma apropriação que não se dá
enquanto propriedade privada.
Porém, enquanto domínio público, cabe o gerenciamento do Estado, que
define de que forma se darão os usos, no que a pesca artesanal é uma atividade
regulada através do cadastro dos pescadores; e os múltiplos usos das águas
são gerenciados através de outorgas previstas na Política Nacional de Recursos
Hídricos, orientadas para a utilização do recurso:
234
utilizam dessas outorgas, que são atividades identificadas pelas comunidades
pesqueiras como causadores de conflitos e de degradação da natureza.
As contradições presentes na forma do uso dado à natureza diante da
dinâmica do capital com mediação do Estado, tratadas nas agendas ambientais
no manto da sustentabilidade, são apresentadas por Paula (2013) como
“capitalismo verde”, que intensifica o processo de mercadorização da natureza,
correspondendo a sua face mais perversa:
235
Ciência e tecnologia são utilizadas não só para garantir na prática a
intensificação da exploração da natureza, mas também para construir os
argumentos que vão validar a crença do desenvolvimento sustentável do
capitalismo. No que não for sustentável, prevê-se medidas de prevenção,
mitigação e remediação, previstas nos licenciamentos ambientais federais
correspondentes no Brasil. Isso quer dizer que diante dos impactos destrutivos
da natureza, as empresas são obrigadas a manter projetos que amorteçam essa
degradação.
O PEAC, em Sergipe, nesse sentido corresponde à medida mitigatória,
conduzida pelo IBAMA junto a Petrobrás, devido às atividades da empresa
correspondentes à exploração de gás e petróleo junto a comunidades costeiras
(Figura 12). No que as comunidades pesqueiras impactadas não são apenas as
que praticam a atividade no mar, mas envolvem as que exercem a pesca em
mangues e rios. As atividades do PEAC organizadas pela empresa datam seu
início em 2011, na Bacia de Sergipe-Alagoas, com um diagnóstico
socioambiental das comunidades.
236
Figura 12: Notícia sobre Medidas Compensatórias e Mitigatórias da Petrobras/SE
44
Disponível em: http://www.mpf.mp.br/se/sala-de-imprensa/noticias-se/mpf-cobra-que-petrobras-
implemente-medidas-compensatorias-pelas-atividades-em-sergipe. Acesso em 04/10/2017.
237
O relato da marisqueira trata sob o papel que a Petrobras tem tido via
PEAC, na organização do Movimento de Marisqueiras em Sergipe, já que o
projeto não só estimulou a formação do movimento, como garante sua
participação em eventos de formação e media reuniões até que o mesmo tenha
uma estrutura própria de organização. Este exemplo, entre um dos projetos
executados, mostra a parceria que estabelece entre a empresa e a comunidade
mediada pela Universidade. No que o próprio nome do projeto entrega, trata-se
de educação ambiental para solucionar os problemas oriundos de atividades que
destroem a natureza.
“La absoluta mayoría de los gobiernos favorece la acción depredadora de
las grandes empresas” (BLANCO, 2105, p.79). A Petrobras apresentou lucro
líquido de 5 bilhões nos primeiros nove meses de 2017, segundo dados próprios
divulgados, no entanto as comunidades pesqueiras em Sergipe, enquanto
grupos sociais afetados, tem como mitigação projetos de educação ambiental
que não transformam a condição de subalternidade e pobreza e não têm a
capacidade de garantir qualquer autonomia no modo de vida dessas
comunidades que passam pela manutenção da natureza e não por sua
destruição.
O modo de vida tradicional atribuído às comunidades pesqueiras
artesanais é descrito por Blanco (2015) como respeito e amor à natureza, ao
tratar de comunidades indígenas remetidas a comunidades primitivas, no que se
compreende uma ética primitiva que detém o respeito à natureza. A
sobrevivência da humanidade assim depende da recuperação dessa ética
enquanto resposta aos ataques de grandes empresas associadas a governos no
que representa o sistema capitalista, predatório à natureza e à condição humana.
“Volver a la ética primitiva no significa abandoar las venatajas de la civilización,
pues manedremos y universalizaremos todas aquellas que no afecten a la
naturaliza y por lo tanto a la supervivência de la especie” (Ibidem, p.83).
Portanto, uma luta ecológica nesse caminho só se dará à medida que se
construa uma solução que passe pelo entendimento da luta política no que
representa as mediações do capital. Se a sociedade na forma do ser social,
através dos pôres teleológicos constrói alternativas conscientes, a relação com
a natureza é através dessa relação peculiar do ser social com a natureza, que é
238
possível restabelecer um metabolismo que não seja destrutivo a sua condição
singular.
A perspectiva crítica na luta pela natureza, como resposta à dupla
alienação homem-homem, sociedade-natureza, que constitui a crise ambiental,
passa pela tomada de poder político da classe subjugada pela centralização e
monopolização das riquezas e, nesse sentido, da natureza nas mãos de uma
classe que representa os objetivos do capital. A exploração do trabalho e a
expropriação dos meios de produção que Marx revela como base do capital
torna-se assim base da crise ambiental, portanto, só é possível de ser superada
com uma mudança estrutural na organização social (DANTAS, 2011, p.101).
A dimensão da crítica que se constitui numa natureza atormentada a partir
de Marx estabelece a relação do homem com a natureza como condição
inexorável da sociedade, por isso que uma natureza que se apresente como
exterioridade na negação de uma relação que se compreende dialética,
representa uma falha metabólica na relação sociedade/natureza:
239
estranhamento, da coisificação (CONCEIÇÃO, 2012, p.15). “O direito ilimitado
do uso da natureza só é possível pela sua privatização. Com a privatização da
terra, do ar e da água a natureza fica aprisionada nos braços do capitalista, que
atraído pelo lucro incomensurável, produz a própria arma que irá destruí-lo”
(Ibidem, p. 16).
Na leitura de István Mészáros (2002), para transformar a produção de
riqueza como finalidade da humanidade, foi necessária a separação do valor de
uso do valor de troca. Para o autor, é na autorrealização por meio da riqueza de
produção e não pela produção da riqueza alienante e reificada, que deve estar
sustentado todo projeto de desenvolvimento sustentável. É na compreensão da
relação necessidade, qualidade e uso, em contraposição ao círculo vicioso do
sistema reificado do capital, que transforma os homens em coisas, para sua
crescente ampliação de riqueza de produção.
Reconstituir perspectivas que desloquem o metabolismo do capital para
um metabolismo para além do capital e consequente no devir do homem, passa
por restabelecer a dimensão da relação sociedade/natureza de forma não
estranhada.
240
CONSIDERAÇÕES FINAIS
241
carrega suas próprias contradições à medida que expandir-se enquanto
mercadoria significa potencializar sua força destrutiva e, nesse sentido, as
condições de existência humana.
No processo global de reprodução da vida e do capital como lógica que
organiza o modo de produzir, o uso da natureza é cada vez mais subordinado
às funções produtivas do capital. Nesse caminho, privatizar a natureza consiste
no seu uso guiado às necessidades ilimitadas provenientes do mercado
capitalista. No que atinge toda reprodução da vida, as comunidades pesqueiras
em Sergipe apontam os conflitos existentes na apropriação das terras e das
águas no estado.
Os desdobramentos da natureza socializada à acumulação do capital, no
espaço onde se dá a prática da pesca-artesanal em Sergipe, integram processos
que se articulam na capacidade destrutiva do capital: da especulação imobiliária
ao turismo como consumo da natureza, ao modelo energético de construção de
barragens que modifica o curso das águas e a reprodução das espécies,
compreende-se uma privatização da natureza, que é monopolizada em seu
usufruto. Soma-se ainda a atuação da Petrobras no estado que impacta
diretamente a reprodução de espécies do rio e do mar, e o agronegócio que se
apresenta como conjunto de atividades rentáveis ao desempenho econômico do
país, integrando campo e cidade no mesmo objetivo: produtividade de mercado.
A consolidação dos processos que conduzem à mercadorização da
natureza representa, para a atividade pesqueira artesanal, a diminuição dos
pescados e o limite no acesso à terra e à água, um limite à permanência. Nesse
sentido, as políticas voltadas à atividade pesqueira artesanal tornam-se centrais
na pauta de reivindicações dessas comunidades. Segue-se, porém, que as
configurações de poder do Estado têm como caráter garantir o modelo de
desenvolvimento que submete a natureza como recurso. A concentração de
terras como centro da questão agrária no Brasil estende-se às águas no que o
uso e o acesso é controlado e, prioritariamente, destinado a atividades lucrativas,
nos moldes de crescimento e desenvolvimento econômico de mercado.
É importante ressaltar que as políticas públicas em contraposição à
proposta para o viver da pesca, ao propor a aquicultura - produção controlada
dos pescados na atividade do agronegócio - intensifica o cenário de conflitos na
luta pela terra e pela água. Exemplo este, de política pública, explícita em
242
Sergipe no Projeto Dom Távora, em andamento, assumida pelo Ministério da
Pesca de grandes investimentos com rebatimentos locais a serem investidos
como incentivo à aquicultura para pequenos produtores.
A pressão a que são submetidas as comunidades pesqueiras, na
continuidade do viver da pesca, levam-nas a adotar cada vez mais como
estratégia de permanência, não somente a luta pelo acesso à natureza, como
também de direitos sociais. “Para ter garantidos todos os direitos não basta
apenas saber pescar; além disso, é necessário ter em mãos a Carteira de
Pescador[...]” (SILVA, 2015, p.60): O RGP que institui o reconhecimento do
pescador enquanto categoria profissional sujeito de direitos e deveres.
Com essa institucionalização, é importante ressaltar o controle que o
Estado impõe sobre a atividade pesqueira artesanal. O Seguro defeso enquanto
benefício financeiro permite ao pescador ter acesso a produtos que garantam
suas necessidades básicas durante a proibição da captura de determinadas
espécies para a reprodução, ou mesmo possibilita o conserto ou compra de
instrumentos de trabalho. Mas ao mesmo tempo, somado a outros benefícios de
seguridade social, tem se constituído como objetivo central de organizações
representativas da pesca-artesanal.
O reconhecimento do pescador artesanal como categoria profissional
passa por mediações burocráticas para que se possa ter a permissão legal do
exercício da atividade pesqueira. No entanto, as definições dentro das
normativas legais que caracterizam o trabalhador da pesca são determinadas
pelo Estado, que ao mesmo tempo que incorpora o conceito de comunidades
tradicionais, nos quais se incluem comunidades pesqueiras artesanais, dificulta
o acesso aos benefícios oriundos de políticas públicas. Há um desconhecimento
intencional nas definições da categoria do que seja o modo de vida e as
dificuldades enfrentadas pelas comunidades pesqueiras, exigindo que os
trabalhadores da pesca exerçam a atividade de forma ininterrupta e proibindo
que os mesmos disponham de outras fontes de renda, segundo a Lei da Pesca
n°10.779/2003 complementada pelo decreto 8.424/2015 e 8.425/2015, que não
abarca as reivindicações levantadas pelas mobilizações do Movimentos, entre
eles o MPP.
243
Entre 2009 e 2018, o Ministério da Pesca45 foi extinto, passando ao status
de secretaria e incorporada por dois Ministérios, e entre o fim de 2017 e começo
de 2018 sinaliza-se uma volta da pasta da pesca e aquicultura ao status de
Ministério com o decreto 9.260. No entanto, os objetivos permanecem entre
fomentar o desenvolvimento da atividade pesqueira e aquícola de forma
sustentável, o que diante das políticas e documentos apresentados pelo Estado,
fica claro a tentativa de direcionar a produção de pescados para a produtividade
de mercado no controle da atividade aquícola.
O desenvolvimento enquanto crescimento econômico que encontra
soluções para os problemas da sociedade no mercado, contraditoriamente,
aprofunda também os problemas que se tenta resolver. Para Mészáros (2007),
o crescimento não qualificado sob as nossas necessidades sociometabólicas é
um desperdício, de maneira que aprofunda problemas para as próximas
gerações. Desta forma, é preciso enfrentar o fracasso da modernização e do
desenvolvimento pautados em corretivos estritamente tecnológicos (p.190).
O desenvolvimento possível de se alcançar, tendo como fim produzir cada
vez mais, incorporando técnicas, tecnologia e pesquisas que garantam esse
aumento, é o que torna o trabalho cada vez mais intensivo, aumentando a
exploração da natureza. Qualquer proposta de sustentabilidade nesses moldes
torna-se descartável se o nosso pensar é guiado a potencialidades humanas e
da vida fora de uma lógica destrutiva. O fardo do tempo histórico que Mészáros
nos apresenta está nas consequências devastadoras para a humanidade que o
imperativo da lucrabilidade impõe como tirania do tempo do capital.
Os conflitos que se põem diante do viver da pesca-artesanal são oriundos
justamente do desenvolvimento representado no controle do trabalho e na
concentração e monopolização da natureza como recurso, que impede o acesso
direto aos meios de trabalho de comunidades tradicionais. A forma de ser do
capital é contrária à relação sociedade/natureza a qual carrega como mediação
o trabalho que dá sentido ao ser social. As mediações de primeira ordem
presentes nas comunidades pesqueiras artesanais, dado seu modo de organizar
45
O Ministério da Pesca extinto em 2015 passa ao status de secretaria e é incorporado pelo Ministério da
Agricultura. Em 2017, a Secretaria Especial de Pesca é transferida para O Ministério de Indústria e
Comércio. No fim de 2017, a SEAP é transferida para o gabinete da presidência e, em janeiro de 2018, o
Decreto 9.260 entra em vigor, retirando o status de “Especial” da SEAP, que volta ao status de Ministério
assim que seja nomeado um novo Ministro.
244
trabalho e apropriar-se da natureza, permanecem junto às mediações de
segunda ordem:
245
pesqueiras caracteriza-as enquanto tradicionais por constituir singularidades no
que representam as relações sociais mediadas pelos objetivos do capital.
É importante observar que tratar de modos de vida singulares não é a
afirmação das potencialidades humanas no sentido do para si, por remeter a
mediações que resistem ao processo de alienação por completo, assim como
todos os avanços alcançados sob a ordem do capital não nos leva a esse
exercício, já que o caráter devastador do metabolismo do capital é incontrolável.
Lukács (2015) chama atenção para os fenômenos singulares porque é no
processo histórico real que se pode superar o capital de forma concreta,
transformando categorias do ser social que determinam o modo de ser do capital
(p.124).
Lutar pelo acesso à natureza como meio de trabalho que dá sentido à
identidade social dos trabalhadores dos mangues, dos rios e do mar, representa
a irrefutabilidade do caráter ontológico do trabalho. A pesca-artesanal em
Sergipe é a atividade dos que através das águas existem enquanto comunidades
que ao apropriar-se da natureza representam o impedimento a expansão de toda
estrutura e lógica capitalista, a vida. E ao permanecer pelo trabalho, resistem no
conflito entre as mediações de segunda ordem, que se impõe como lógica
dominante de organização do trabalho e da vida, e o seu modo de vida o qual
define a natureza como extensão de si próprios no que compreendemos ser a
unidade necessária à relação sociedade/natureza.
246
REFERÊNCIAS
247
Geral da Atividade Pesqueira na categoria de Pescador Profissional no âmbito
do MPA.
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Tomáz, Alzení de Freitas & Santos. Brasília: CPP, 2016.
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de janeiro: Consequência, 2014. p.43-68.
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Tradicional. Tradução Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras,
1991.
254