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nas águas de

Lobato
uma micro-história construída a partir das falas de seus moradores
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nas águas de
Lobato
uma micro-história construída a partir das falas de seus moradores

Andreas Leonardus Doeswijk


Marcia Regina de Oliveira Lupion
Marcia Garcia Rodrigues

Maringá
2008
Projeto gráfico e diagramação Marcos Kazuyoshi Sassaka
Capa – arte final Luciano Wilian da Silva
Imagens Fornecidas pelos autores
Revisão textual e gramatical Ivonete Veraldo Gasparello
Cleide de Assis Durante
Normalização Marinalva Aparecida Spolon (CRB 9-1094)
Ficha catalográfica Edilson Damasio (CRB 9/1123)
Fonte CG Omega
Tiragem (versão impressa) 350 exemplares

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


(Eduem - UEM, Maringá – PR., Brasil)

Doeswijk, Andreas Leonardus

D653n Nas águas de Lobato : uma micro-história construída a partir das


falas de seus moradores / Andreas Leonardus Doeswijk , Marcia Regina
de Oliveira Lupion , Marcia Garcia Rodrigues. -- Maringá : Eduem,
2008.

201 p. : il., fots., mapas, color.

ISBN 978-85-7628-148-1

1. Águas de Lobato - Construção do espaço rural. 2. Águas de Lobato


- Histórias de vida. 3. Águas de Lobato - Geografia. 4. Águas de Lobato
- Microanálise. 5. Norte do Paraná - História regional. I. Título. II.
Lupion, Marcia Regina de Oliveira. III. Rodrigues, Marcia Garcia.

CDD 21.ed. 981.62

Copyright © 2008 para os autores


Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo
mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, dos autores.
Todos os direitos reservados desta edição 2008 para Eduem.

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AGRADECIMENTOS

Agradecemos a todos os moradores de Lobato, principalmente os memorialistas:


Iracema Coletto Colontonio e Durval Colontonio; Olindina Cordeiro de Freitas e
Manoel Batista de Freitas, Nair Marques de Oliveira, Raimundo Saraiva Peixoto,
Zailson Lemos, Nilo Lampugnoni, Valdir Cotrim Ribeiro, Olírio Xavier Cotrim,
Nabio Tanaka, Darcy Américo de Oliveira, José Cavalcanti da Silva, Henrique
Oelke, Tânia Martins Costa e aos memorialistas falecidos durante o processo de
elaboração e publicação da obra a Senhorita Alice Cafofo, o Senhor Satoro Inoue, o
Senhor João do Soutto Mello e o Senhor Agripino Lúcio dos Santos. A todos nosso
respeito, admiração e agradecimento.
Agradecemos ainda à Prefeitura de Lobato, na pessoa da Prefeita em exercício
Tânia Martins Costa pelo apoio e colaboração dispensados durante o trabalho de
pesquisa desenvolvido no município e pela disponibilidade em publicar essa obra
possibilitando dessa forma que nosso trabalho chegasse a todos os lobatenses e à
comunidade em geral.
Agradecimentos à Silvia Davidoski, Secretária Municipal da Educação de
Lobato, pelo companheirismo e emprenho na publicação do Livro.
Nosso agradecimento especial ao Professor Lúcio Tadeu Mota pelo
acompanhamento e orientação durante a publicação do Livro e pela redação do
prefácio que introduz a obra.
Aos professores Solange Ramos de Andrade e José Henrique Rollo Gonçalves
por disponibilizarem de seu concorrido tempo para fazerem uma leitura
minuciosa da obra e pela paciência em discutir detalhes da produção do Livro
entre outras tantas “ajudas” não nomeadas nesse agradecimento. A vocês nosso
eterno obrigado.
Ao LAEE-UEM, Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Étno-História da
Universidade Estadual de Maringá onde iniciamos o levantamento que posteriormente
resultou neste trabalho.
Ao Professor Marcos Rafael Nanni, do Laboratório de Geoprocessamento e
Sensoriamento Remoto da Universidade Estadual de Maringá por ter cedido o Mapa
de localização de Lobato no espaço estadual e nacional presente nesta obra.
EPÍGRAFE

Moravam lá umas dez famílias. Mas, depois que meu irmão pegou ela, foi
que ele foi mandando pra vim o povo do Norte, de Pernambuco. Vinham
aqueles caminhões de gente, jogava lá, os conhecidos que tinha lá. O
povo se iludiu, vinha muita gente, mas foi muita gente pra sofrer, porque
lá na fazenda, além de nós encontrar só aquele mato, que nós não tinha
nada, que a casa era nem matajuntada não era, era tudo aberto.

Olindina Cordeiro de Freitas


SUMÁRIO

Prefácio............................................................................... 11

Introdução.......................................................................... 15

1
De acidente geográfico a experiência histórica...................... 23

2
A Água Araçá: narrativa construída a partir dos relatos de
Iracema e Durval................................................................... 39

3
Um cotidiano de tentativas e incertezas em fazendas e em
Águas de Lobato: as experiências de Olindina e Manoel....... 63

4
Quando reinava sua majestade o café: a (re)ocupação espacial
das Águas.............................................................................. 87
5
A construção dos espaços sociais: as escolas e o perfil dos
habitantes das Águas............................................................. 103

6
A construção dos espaços sociais: a presença das capelas...... 129

7
Vigiar e punir........................................................................ 145

8
O grande êxodo e a reconversão econômica, 1969 – 1975... 167

9
História local, micro-análise e fontes orais. A história regional
revisitada .............................................................................. 175

Conclusões e propostas................................................... 187

Referências......................................................................... 193

Anexo.................................................................................. 199
PREFÁCIO

Em meados do ano 2000, quando o Laboratório de Arqueologia, Etnologia


e Etno-história da Universidade Estadual de Maringá foi convidado a participar
das pesquisas que seriam desenvolvidas no município de Lobato, iniciamos o
planejamento do trabalho de campo em arqueologia estudando as cartas geográficas
do IBGE sobre a região dos vales dos rios Pirapó e Bandeirantes. Nelas percebíamos,
ao longo dos rios, dos riachos e dos ribeirões, uma série de pontos que indicavam
centenas de moradias nas proximidades dessas águas.
Planejado o trabalho, em conjunto com as outras equipes que fariam os
inventários - geológico, pedológico, hídrico, botânico, zoológico e social, conforme
as definições do convênio firmado entre a Prefeitura de Lobato e o ITCA-UEM -
fomos a campo imaginando que ainda encontraríamos muitos moradores vivendo
nos sítios ao longo dos cursos d’água do Município. Mas qual foi a surpresa ao
desembarcamos na zona rural de Lobato; já não havia quase morador algum
vivendo na “roça” e a surpresa maior foi não encontrarmos mais as moradias, os
paióis, as escolas, as vendas, os campos de futebol, as capelinhas. Quase tudo tinha
desaparecido. As cartas do IBGE plotadas no início dos anos 70 já não expressavam
a nova realidade rural de Lobato.
O que era para ser um trabalho de pesquisa arqueológica, focado nos
indícios da cultura material das populações indígenas existentes na região antes
da ocupação moderna dos anos 40, quase se tornou uma pesquisa de arqueologia
histórica, devido à ampla presença de objetos e de vestígios da cultura material dos
“pioneiros”, agora destruídos pelos gigantescos subsoladores e arados dos tratores
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

das usinas de cana de açúcar que passaram a adquirir e/ou arrendar as propriedades
rurais da região.
A modernização do campo no Paraná, iniciada em meados dos anos 70, resultou
no fim da vida social das comunidades das Águas, inclusive com a destruição
material de sua presença ao longo dos cursos d’água.
Thomas E. Sheridan, historiador norte-americano, mostra que a ocupação do
vale do rio Tucson, no Arizona, tinha levado os espanhóis até a água, nos mesmos
locais onde diversas populações indígenas já se tinham estabelecido há muito tempo.
As várzeas dos rios Tucson e Santa Cruz, em meio aos desertos do grande sudoeste
americano, eram locais preferenciais de ocupação dos primeiros agricultores que
ali se fixaram desde o ano 1.000 antes de Cristo. Ele afirma que a continuidade de
povoamento dessa região do rio Tucson foi o resumo de um “imperativo ecológico
irresistível”; todas as populações que ali permaneceram se fixaram onde havia água
disponível. O autor ainda acrescenta que esses locais não só foram palco de relações
interculturais entre diversos povos diferenciados, mas também de ecoltuturacão,
isto é, de interação entre seres humanos e a natureza local.
O mesmo poderíamos dizer do vale do rio Pirapó, que também foi local
privilegiado para os assentamentos das primeiras populações de caçadores coletores
que ali chegaram por volta de 8.000 antes do presente, assim como foi local
escolhido pelos Guarani, que estabeleceram seus Tekoha (moradias) nas margens
de suas corredeiras. Da mesma forma, os jesuítas também acharam o local bom
para instalar suas Reduções no século XVII, e o governo do Império brasileiro,
para montar as colônias Indígenas no século XIX. E, no século XX, as Águas do rio
Pirapó e seus afluentes também atraíram para perto de suas corredeiras e poços as
populações de migrantes mineiros, paulistas, paranaenses e nordestinos.
O imperativo ecológico também esteve presente no processo de reocupação
moderna da região. Os topógrafos da CTNP - Companhia de Terras Norte do Paraná,
posteriormente Companhia Melhoramentos Norte do Paraná, não tiveram outra
maneira senão delimitar os lotes de terras com estradas nas cabeceiras e águas nos
fundos, pois ninguém, com certeza, compraria um lote de terras que não tivesse
aguadas boas e disponíveis o ano todo para consumo da família e dos animais e
para tocar monjolos e outras maquinarias do tempo.
Dessa maneira, com esse desenho, tivemos a quinta ocupação da região
iniciada nos anos 40, com os “pioneiros” plantando café nas cabeceiras livres das
geadas e construindo suas casas nos fundos dos lotes, formando as sociedade das
Águas, que duraram até meados dos anos 70, em todos os afluentes dos rios Pirapó
e Bandeirantes.
A história dessas comunidades foi magnificamente narrada e analisada neste
livro pela Marcia, pelo Andréas e pela Marcia Rodrigues. Pela primeira vez, um
livro sobre a história da ocupação moderna do Norte do Paraná aborda a questão
trazendo o conceito de “sociedade das águas”, enquanto uma interpretação sócio-
12 −
PREFÁCIO ■

histórica capaz de explicar a vida social das populações rurais aqui estabelecidas
no período de 1940 a 1975.
De volta aos vestígios materiais dessas comunidades, encontrados pelos
arqueólogos, misturados aos de populações pretéritas, pergunta-se o que levou à
dissolução desse modo de vida? O que rompeu o “imperativo ecológico” e fez que
as pessoas que viviam, de certa forma tranqüila, em suas moradias, com suas roças,
seus animais, suas pescarias ao longo dos riachos que desaguavam nos rios Pirapó
e Bandeirantes se mudassem desses locais para viverem na sede do município de
Lobato ou mesmo em outras cidades?
As respostas podem estar na reflexão proposta por Donald Worster, outro
historiador norte-americano, de uma aproximação entre o materialismo cultural de
Marvin Harris com o materialismo dialético de Karl Marx. Ela poderia nos trazer
luz sobre o complexo funcionamento entre natureza e passado, entre ambiente e
história.
O entendimento poderia estar um pouco na explicação de Harris, de que
as sociedades exploram a natureza, mas sempre com rendimentos decrescentes
enquanto não modificam suas ferramentas, seus métodos de exploração, criando
novos tecno-ambientes. É a teoria do materialismo cultural. Mas, com certeza, outro
tanto, na explicação de Karl Marx, de uma história impelida pela luta de classe,
pelos conflitos internos, pela competição entre formas de reprodução do capital, em
que o esgotamento do ciclo do café e a introdução do agronegócio não deixaram
margens para continuidade da vida social das comunidades das Águas de Lobato.

Lúcio Tadeu Mota

− 13
INTRODUÇÃO

1. Entre 1948 e meados de 1970, uma sociedade formada por um conjunto de


núcleos sociais relativamente autônomos construiu e habitou a zona rural de
Lobato, município localizado a 462km de Curitiba, ao Norte do estado do Paraná
(Figura 1). A sociedade, em sua forma geográfica, era composta por propriedades
rurais demarcadas a partir dos córregos ou Águas existentes na área sobre a
qual o Município foi fundado. Em sua forma social, as Águas apresentavam uma
organização voltada, sobretudo, para a vida em coletividade. Escolas, vendas,
capelas, campinhos de futebol e até um açougue fizeram parte da organização
social dos núcleos sociais denominados Águas. Tratava-se de espaços coletivos que
ilustravam o elevado nível de organização social implantado pelos moradores.
A existência e a trajetória desse conjunto de núcleos sociais coincidem com o
avanço e a consolidação do sistema capitalista no Norte do Estado e, dessa forma,
a história da sociedade das Águas é a história do estabelecimento desse sistema na
região. É, também, a história de pessoas comuns, que passaram grande parte de suas
vidas construindo um espaço social que reproduzisse a vida humana por meio de
elementos culturais trazidos de suas regiões de origem. Entre seu estabelecimento e
evolução, a sociedade das Águas existiu por aproximadamente 25 anos, enquanto
houve significativo número de moradores em suas propriedades. Com o declínio
populacional ocorrido de forma vertiginosa a partir principalmente de 1973, o
mundo das Águas passou por uma extrema mudança que confere uma nova plástica
a essa sociedade. Com isso, a história da sociedade das Águas aqui analisada faz
parte do acervo histórico da memória-local e será narrada com base em experiências
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

particulares de moradores e de ex-moradores que construíram e habitaram aqueles


espaços geográficos por eles organizados socialmente.
Segundo Antonio Candido (2001), os grupos sociais buscam sempre um
equilíbrio entre as necessidades e os recursos do meio ambiente e esse equilíbrio
estaria ligado à forma como as atividades são organizadas. Para ele, pode-se:

Determinar uma posição fecunda para compreender a vida social a partir


da satisfação das necessidades, mostrando, de um lado, que a obtenção dos
meios de subsistência é cumulativa e relativa ao equipamento técnico; de
outro, que ela não pode ser considerada apenas do ângulo natural, como
operação para satisfazer o organismo, mas deve ser também encarada do
ângulo social, como forma organizada de sociedade (CANDIDO, 2001, p.
30).

Figura 1: Localização de Lobato no Estado do Paraná


Fonte: Nanni (2001).

16 −
INTRODUÇÃO ■

A esse ângulo social, Candido denomina sociabilidades, conceito que


representa as relações sociais praticadas entre os grupos e é distinto do
equipamento material utilizado pelos grupos para se relacionar com o meio.
Entretanto essa separação entre relações sociais e equipamentos materiais é, no
contato com a realidade humana, indivisa. Na verdade, o equilíbrio entre esses
dois elementos forma o que o autor denominou organização social, conceito de
suma importância para a pesquisa, porque representa as relações travadas entre
os moradores em seu cotidiano de encontro, de transformação da natureza e de
reprodução humana conhecida e reelaborada no contato com a realidade das
Águas.
Ao discorrer sobre a forma como os moradores das Águas organizaram o
espaço social rural, a pesquisa evidencia que a sociedade que se estabeleceu
na região Norte paranaense, principalmente a partir de 1950, foi formada por
elementos culturais trazidos pelos migrantes de várias regiões do país e por
elementos relativos à reprodução econômica comum à sociedade capitalista.
Chamar a atenção para a existência da convivência entre esses dois elementos
é um dos nossos objetivos. Outros objetivos se referem ao trabalho com fontes
orais, à utilização da microanálise e à interdisciplinaridade como recursos
metodológicos e teóricos amplamente viáveis na construção, na sistematização,
na análise e na apresentação dos processos históricos, notadamente em trabalhos
de cunho regional.

2. Fundado em 1948 pela Companhia Melhoramentos Norte do Paraná (CMNP) 1,


o município de Lobato conheceu elevado crescimento populacional em seus
primeiros anos de fundação. De acordo com a memória-local, em 1953, quando
ainda era um patrimônio, Lobato contava com aproximadamente 15.000 habitantes,
dos quais dois terços eram moradores das Águas.
As Águas compreendem, aqui, mais que um córrego sobre o qual foram
delimitadas divisas entre propriedades pela CMNP. Elas assumem um sentido
social, pois o conjunto dessas propriedades revela a existência de núcleos sociais
relativamente autônomos, formados por grandes e pequenos proprietários,
lavradores e lavradoras, lavradores assalariados, meeiros, arrendatários,
professoras, empreiteiros que derrubaram a mata, donas-de-casa, crianças, enfim,
por pessoas interessadas em construir um espaço social capaz de atender às diversas
necessidades relativas aos seres humanos. Por isso seus habitantes constroem não
só moradias e estruturas relativas à produção cafeeira, como tulhas, terreiros para

1 Companhia Melhoramentos Norte do Paraná (CMNP) não é o nome original da empresa que loteou parte do Norte
e do Noroeste paranaense. Essa empresa se instalou em São Paulo, em 1925, sob a denominação Companhia de
Terras Norte do Paraná (CTNP) e era subsidiária da empresa inglesa “Brazil Plantations Syndicate Ltd”. Somente
em 1944, ao ser adquirida por um grupo de empresários brasileiros, ela passou a se chamar Companhia Melhora-
mentos Norte do Paraná (CMNP). Para informações detalhadas: (COMPANHIA MELHORAMENTOS NORTE DO
PARANÁ, 1977).

− 17
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

armazenar e secar o produto, mas também espaços para a organização social,


tais como: escolas, vendas, capelas e campos de futebol. Nesse fato reside toda
a importância do aspecto autônomo das Águas, pois demonstra a estrutura criada
pelos moradores para sustentar, sobretudo, os traços coletivos da vida na zona
rural.
Em levantamento realizado em mapas do Município, foram identificadas
34 aguadas, das quais somente 19 desenvolveram vida social do tipo nuclear,
representativa dos casos de organização social que interessam para a nossa pesquisa.
Como as 15 aguadas restantes se encontravam dentro de grandes propriedades, são
discriminadas nos mapas apenas as fazendas.
Desse modo, ao construirmos a história das Águas, não consideraremos todas
as aguadas existentes no Município, mas apenas aquelas nas quais houve vida social
de forma mais efetiva. Essa efetividade foi estabelecida de acordo com o significativo
número de construções coletivas que havia em determinadas Águas, conforme os
dados dos documentos e da memória-local. Ao todo, foram identificadas, nas Águas
de Lobato, 20 escolinhas rurais, 7 capelinhas, 6 vendas do tipo armazém e 3 campos
de futebol; entretanto pairam dúvidas a respeito do número real ou aproximado de
unidades destes dois últimos espaços coletivos. Em ambos os casos, é possível que
tenha havido um número maior do que aquele registrado pelos mapas analisados,
visto que os depoimentos revelam a existência desses espaços coletivos na maioria
das Águas.
Juntamente com as sociabilidades praticadas pelos moradores e freqüentadores
da zona rural, a construção desses espaços coletivos demonstra toda a vivência
e a organização social existente nos núcleos formados nas Águas e nas grandes
fazendas de Lobato. Ao se desenvolverem, esses núcleos trouxeram não só a
implantação do sistema capitalista baseado na pequena propriedade na região
Norte do estado do Paraná, mas também e, principalmente, milhares de pessoas e
de famílias esperançosas por uma vida justa e digna para si e para os seus.

3. O espaço de 25 anos que percorre a pesquisa revelou que, na maior parte desse
tempo, a vida dessas pessoas, migrantes e imigrantes de várias regiões do país e do
mundo, foi composta por um constante recomeçar; por uma série de tentativas que
levava os moradores das Águas a viverem em um eterno clima de insegurança e de
incerteza que os induzia a estarem sempre criando e recriando seu espaço social e
econômico.
É sobre a história dessa sociedade construtora que discorreremos. De certa
forma, a questão dos agentes responsáveis pela transformação ambiental e social
empreendida no Norte paranaense em meados do século XX é um dos pontos que
mais se destaca nos levantamentos históricos feitos sobre a região. Entre esses
agentes, encontram-se os já conhecidos interesses imobiliários e financeiros da
Companhia Melhoramentos Norte do Paraná (CMNP) e do Governo do Estado,
18 −
INTRODUÇÃO ■

juntamente com interesses de especuladores imobiliários. No caso do trabalho


realizado em Lobato, foram considerados sujeitos históricos esses agentes
já conhecidos e, principalmente, os protagonistas do processo, tais como:
trabalhadores especializados na figura de furadores de poço, farmacêuticos,
pequenos comerciantes, costureiras, donas de casa, professoras, parteiras,
benzedeiras, lavradores assalariados. Juntamente com os órgãos institucionais
anteriormente citados, os trabalhadores especializados e os trabalhadores
pertencentes ao universo doméstico foram considerados os sujeitos sociais e
institucionais, que, imbuídos de interesses particulares e coletivos, tornaram-se os
responsáveis pela construção do município de Lobato por meio da transformação
ambiental e da introdução de elementos sociais na área sobre a qual o Município
foi fundado.
Sob essa nova abordagem, o trabalho de campo realizado no Município
revelou a importância de uma vida particular aos moradores da zona rural para
a população local durante os primeiros anos de Lobato, quando este ainda era
Patrimônio de Astorga. Aos poucos, chamou-nos a atenção o uso freqüente
da denominação Águas às referências feitas aos moradores e à vida que se
desenvolveu no perímetro rural, principalmente entre 1948 e 1973, anos de
intensa transformação municipal.
Nosso interesse pelo fenômeno social ocorrido nas Águas de Lobato foi
motivado, principalmente, por dois fatores: a constatação da importância que
a sociedade local continuava a dar à vida rural, mesmo após quase trinta anos
de sua extinção; e os traços - revelados pelos memorialistas locais - do processo
de implantação da sociedade capitalista na região, ainda inexplorados pela
historiografia existente.
Isso faz da memória-local-oral a fonte reveladora do objeto aqui estudado, e
a sociedade que se formou às margens dos ribeirões existentes na zona rural - e
que já não existe mais - tornou-se o nosso objeto de análise histórica. Reveladora
de um momento de suma importância para a história regional - a implantação do
sistema capitalista do Norte do Paraná -, a sociedade das Águas possibilita-nos,
ainda, a introdução dessa historiografia em uma abordagem social do processo,
que tem, nas experiências humanas, nos casos particulares e na análise minuciosa
e detalhista das fontes, a valorização de pessoas e de vivências excluídas ou
sequer consideradas por algumas produções historiográficas existentes sobre o
processo.
Assim sendo, debruçamo-nos sobre um espaço e um tempo específicos e
reduzidos de abordagem histórica e relativos à construção da vida nas Águas
de Lobato entre os anos de 1948 e meados dos anos 1970, sem perdermos
de vista o desenvolvimento do Município como um todo. Nosso objetivo,
portanto, não foi escrever uma pequena história, mas demonstrar, por meio de
particularidades qualitativas, quão múltiplas são as versões sobre um mesmo
processo histórico.
− 19
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Srta. Alice Cafofo Sr. Agripino Lúcio dos Santos Sr. Satoru e Dona Miyoko Inoue

Sr. Henrique Oelke Sr. João do Soutto Mello Sra. Nair Marques de Oliveira

Sr. Durval Colontonio Sr. Olírio Xavier Cotrim Sr. Nilo Lampugnoni

Srta. Tânia Martins Costa Sr. Raimundo Saraiva Peixoto Sra. Iracema Coleto Colontonio

Sra. Olindina Cordeiro


e Sr. Manoel Batista de Freitas

Sr. Valdir Cotrim Ribeiro Sr. Zailson Lemos

Figura 2: Memorialistas
Fonte: As Águas [(2001)]. Coleção Particular Andreas L. Doeswijk.

20 −
INTRODUÇÃO ■

4. Narrar traços da construção do espaço social construído nas Águas de Lobato, por
meio da experiência daqueles que protagonizaram aquela transformação, tornou-se
um argumento e um vetor2 para abordarmos a ocorrência de elementos históricos,
durante o processo que consolidou a introdução do sistema capitalista na região
Norte do Paraná, e a forma como os habitantes do mundo rural se organizaram para
conduzir a transformação da região.
Todas as histórias de vida utilizadas como evidência histórica durante a pesquisa
são representativas daquele processo, e esse jogo de escalas não se contenta em
ilustrar e em evidenciar acontecimentos, partindo do princípio de que há apenas
duas escalas, a macro e a micro, mas sim várias escalas que se juntam para compor
o todo social. No caso da pesquisa nas Águas, a memória local ativada revelou
um universo de experiências vividas que, compôs aquele momento histórico e
que pode ser, em muitos sentidos, representativo da história de outros municípios
fundados durante o mesmo período.
Analisamos o processo ocorrido no Norte paranaense a partir de um levantamento
histórico-social tendo em vista dois aspectos em particular: a participação dos seres
humanos, sujeitos e sujeitas do devir histórico, e o jogo de escalas necessário para
discorrer sobre tal processo sem cair em uma crônica narrativa simplificadora e
excludente. Imbuídos dessas prerrogativas, desenvolvemos um trabalho procurando,
como orienta Simona Cerutti (1998, p. 175), “acompanhar percursos individuais a
fim de reconstituir a variedade” de experiências que compõe os diferentes campos
da vida social.
Concluímos que os moradores das Águas viviam os tempos de uma vida
comum, repleta de experiências compartilhadas, e não somente o tempo vetorial,
progressista e economicista sobre o qual costumamos caracterizar o processo em
questão. Os habitantes das Águas objetivavam melhorias quer na colheita de boas
safras de café, quer na colheita de outra alternativa econômica viável. No seu dia a
dia, todavia, travavam lutas constantes para garantir o acesso básico a itens relativos
à sobrevivência humana.
Construir casas, preparar a terra para receber o café, plantar hortas, derrubar a
mata, buscar água no rio para os afazeres domésticos - antes de ter o poço em casa
-, adaptar-se a região e a climas diferentes dos até então conhecidos são dramas e
tramas vividos no dia-dia das Águas, revelando outros tempos que também estiveram
presentes durante o processo que consolidou o sistema capitalista na região.
Vislumbramos toda a riqueza da abordagem microanalítica e de sua proposta,
aprofundando as análises e enfatizando o olhar minucioso, como o de um
investigador sobre as fontes. É um olhar que possibilita que sejam reconhecidos
aspectos particulares de determinados processos sem que se perca a noção de todo

2 Alfredo Bosi (1996, p. 30), utiliza a palavra vetor para significar um “tempo-flecha que avança na direção de um estágio
que deverá superar os anteriores. Um ritmo que quer queimar etapas; de resto, sabe-se que acelerar o processo se diz
também: aquecer a economia”

− 21
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

o processo, pois o que houve, nos primeiros anos de Lobato, e mais especificamente
nas Águas, foi a formação de uma sociedade que reproduziu aspectos de vida
em sociedade, considerados de ordem capitalista, cuja maior característica é o
predomínio dos interesses materiais. Por outro lado, essa sociedade também produziu
outras formas de reprodução humana, consideradas tradicionais: a religiosidade,
a solidariedade, os núcleos de convivência coletiva, os medos e os dramas que
acompanharam os habitantes em sua saga pelas Águas de Lobato. No encontro
entre essas duas sociedades, ao se valorizar somente as características capitalistas
que de fato existiram nas Águas, o analista daquela sociedade pode perder de vista
aspectos que fogem a essa caracterização e que procuramos registrar nesta obra.

5. É obvio que nossa exposição não contempla todos os aspectos que envolveram
o processo de evolução daquela sociedade, mas apresenta vários elementos que,
em conjunto, formam uma figura na qual são vislumbrados momentos daquela
experiência vivida. Outra peça do quadro, com a figura da vida nos primeiros anos
da zona rural lobatense, será fornecida ao discorrermos sobre o perfil regional e
cultural dos moradores, como forma de demonstrarmos a diversidade do grupo
social que habitou a localidade. Desse modo, não será através de uma narrativa
unívoca que a história das Águas de Lobato será contada, e sim a partir de um grupo
de narrativas construídas através das experiências de moradores e de ex-moradores
daqueles espaços e também por meio de informações contidas em documentos que
registram traços daquela vivência.
Nesse sentido, a pesquisa microanalítica desenvolvida nas Águas de Lobato
difere da maioria dos trabalhos de micro-história, porque apresenta seus resultados
por meio de diversas narrativas e quadros que representam a evolução daquela
sociedade, e não por meio de uma narrativa em particular, a qual perpassa todos
os capítulos. Não há, na história das Águas, um personagem central, e sim diversas
personagens, cujas histórias foram utilizadas para discorrer sobre uma história
coletiva, ou seja, utilizamos uma escala micro para discorrer sobre uma escala
de maior amplitude, que tanto pode ser a sociedade das Águas quanto a história
de pessoas em particular, ou, até mesmo, a história da introdução de elementos
pertinentes à sociedade capitalista e outras culturas regionais e nacionais na região
Norte paranaense.

22 −
1

DE ACIDENTE
GEOGRÁFICO A
EXPERIÊNCIA HISTÓRICA

1. Localizado ao Norte do município de Colorado; ao Sul de Flórida e Atalaia, a


Leste de Santa Fé e a Oeste dos municípios de Uniflor, Paranacity e Cruzeiro do Sul,
Lobato é um município com área de 234,118km2. Não apresenta regiões secas, seu
clima é subtropical úmido, mesotérmico. Geralmente chove no verão, estação que
costuma ser quente, mas seus invernos são, hoje em dia, pouco rigorosos, de modo
que é difícil haver geadas (Figura 3).
Quanto ao seu processo de implantação, ocorrido de forma efetiva em 1948,
logo após o trabalho de medição e de delimitação da área municipal e também da
demarcação dos lotes rurais e do perímetro urbano pelos agrimensores e topógrafos
da Companhia Melhoramentos Norte do Paraná (CMNP), há um fator que o
diferencia dos demais municípios projetados pela CMNP na região. Diferentemente
dos demais, nem todo perímetro de Lobato foi comercializado pela Companhia;
parte da organização das propriedades e da comercialização da área municipal
coube ao Governo do Estado (Figura 3). Esse fato traria diferenciações quanto aos
padrões de negociação e de distribuição de propriedades entre os dois organismos
institucionais, pois, enquanto o Estado promovia a venda de grandes propriedades
em suas terras, a CMNP ocupava seu espaço demarcando lotes de pequena e média
constituição.
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Figura 3: Lobato: Divisas Municipais; Áreas comercializadas


pela CMNP e pelo Governo do Estado do Paraná; Espaços
Coletivos
Fonte: Elaborado a partir dos documentos: Paraná (1981), IBGE (1972a,
1972b, 1978a, 1978b), Divisão Municipal de Educação (1957a, 1957b, 1959,
1961), Paróquia Sagrado Coração de Jesus Livro Tombo (1975), Livro de
Batizados (1999), Depoimentos Orais.

24 −
DE ACIDENTE GEOGRÁFICO A EXPERIÊNCIA HISTÓRICA ■

Colonização e desenvolvimento do Norte do Paraná, livro elaborado


pela Companhia Melhoramentos, em 1977, descreve que, nesse sistema de
colonização, os topógrafos, os engenheiros e os agrimensores procediam à
demarcação das áreas adquiridas pela empresa, aplicando regras diferenciadas
para a zona rural e para a urbana. No perímetro urbano, as cidades eram
organizadas de acordo com um plano urbanístico em que cada núcleo urbano
considerado base ficava a uma distância de 100km um do outro. No espaço
entre esses municípios-base, eram construídos patrimônios distantes 15km
um do outro, e as áreas destinadas a se transformarem em núcleos urbanos
eram divididas em datas em média com 500m 2, enquanto na zona rural o
plano previa recortes de lotes cujo tamanho não ultrapassava os 14 alqueires
(COMPANHIA MELHORAMANENTOS NORTE DO PARANÁ, 1977, p. 125).
O Plano contemplava ainda o uso das aguadas e dos espigões, ou seja, da
parte elevada do relevo natural que tivesse na parte baixa um córrego ou rio 3
existente na área, como limite para proceder à demarcação das propriedades
rurais (Figura 4) e que foi retirada do próprio livro da Companhia. Essa técnica
foi assim descrita pela Companhia de Melhoramentos Norte do Paraná (1977,
p. 125):

A zona rural foi colonizada pela Companhia dividida em pequenos


lotes, de área variável, demarcados de tal maneira a incluírem todos
eles uma parte de baixada e uma de espigões. Contam, ainda, com
água corrente e acesso por estrada de rodagem. [...] O batismo das
águas encontradas ficava a cargo do Departamento de Topografia, que
para a escolha dos nomes aproveitou o dicionário guarani, a relação
de acidentes geográficos dos países de onde vinham os imigrantes
(Espanha, Portugal, Itália), bem como os nomes de santos, de marcas
de cigarro, de quadros de futebol, ou mesmo de namoradas e esposas
dos agrimensores. Somente os nomes dos rios e ribeirões constantes
das escrituras primitivas não foram alterados.

Não se pode, contudo, afirmar que a idéia de demarcar propriedades tendo as


aguadas como limite tenha sido originalmente criada pela CMNP. Ruy Christovam
Wachowicz (1987), ao discorrer sobre o povoamento dos vales do Itararé e do rio
das Cinzas, apresenta uma importante discussão sobre como as águas existentes
nesses vales serviram de limite para a demarcação de posses de propriedades
entre os tropeiros mineiros e proprietários de terra em meados do século XIX.
Segundo Wachowicz (1987, p. 81):

3 Para os fins do que se pretende explicitar com o significado de espigão, é importante esclarecer que o termo "espigão",
segundo o Dicionário Aurélio Buarque Ferreira (1993), significa “pico de serra, monte ou rochedo”. Desse modo, quan-
do a palavra espigão for utilizada durante o texto, ela explicitará a parte elevada de um relevo que tem na parte baixa
um córrego ou rio, ou seja, a parte interfluvial.

− 25
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Os mineiros do Norte Pioneiro não faziam posse em qualquer lugar.


Para eles uma posse deveria equivaler a uma Água. Quem fazia a posse,
procurava a cabeceira de um riacho. Instalado na cabeceira é dono da água
e do terreno que a acompanha até o fim. Esta posse ou água terminava
quando este riacho desaguava num rio maior.

Figura 4: Lotes rurais demarcados a partir de uma


aguada conforme plano de colonização da CMNP
Fonte: Companhia Melhoramentos Norte do Paraná (1977, p. 122).

Wachowicz (1987) estende ainda mais essa discussão ao introduzir o sentido


de limite de posse como propriedade particular às águas. No caso do povoamento
do Valuto no Norte Paranense, ocorrido de forma sistemática, principalmente
em fins da primeira metade do século XIX, quando foram efetuadas as primeiras
incursões em terra paranaenses com o objetivo de tomar posse desses territórios
considerados devolutos, ou que outrora fizeram parte do fracassado sistema de
sesmarias, como não havia forma de medir o tamanho da posse, Wachowicz
(1987, p. 81) registra que as negociações ocorriam informalmente quando “os
possiantes combinavam: aqui é meu, ali é de fulano” e as águas, ou rios, eram o
26 −
DE ACIDENTE GEOGRÁFICO A EXPERIÊNCIA HISTÓRICA ■

meio natural utilizado para estabelecer então onde começava e onde terminavam
os direitos de uma posse.
Segundo Wachowicz (1987), havia uma diferença entre a forma de posse
empreendida pelos tropeiros e proprietários do final do século XIX, no Norte do
Paraná, e aquela praticada pela CMNP. Enquanto esta negociava a posse dos lotes
sob pagamento imediato ou parcelado, no século XIX tropeiros e proprietários se
apossavam de uma determinada área considerada devoluta, tornando-se proprietários
de grandes extensões de terra diretamente no trato com a região em que haviam
decidido se estabelecer. Em alguns casos, as áreas eram ocupadas por populações
indígenas que delas eram expulsas por não serem consideradas proprietárias das
terras em que viviam.
Geralmente eram áreas conhecidas como territórios devolutos, isto é, locais em
que se queria fazer crer fossem desabitados e cobertos por extensa mata virgem 4.
Outra diferença é que, no Norte Velho, uma aguada delimitava uma posse desde a
nascente até o encontro com outra aguada, ao passo que para a CMNP a aguada era
dividida em várias propriedades entre 5 e 15 alqueires, ou seja, ela servia de limite
para várias posses. Em termos sociais, possibilitava um contato mais fluido entre seus
moradores quando eram construídos os campos de futebol ou as escolas, as vendas
e as capelinhas, as quais se localizavam na parte alta do espigão e contavam ainda
com um poço e com instalações sanitárias para suprir as necessidades daqueles que
freqüentavam esses locais.
De volta à questão da posse como direito de propriedade sobre a terra,
Wachowicz (1987) recorda que, desde a Independência até 1850, as propriedades
eram adquiridas por meio da compra de terras tituladas, que outrora haviam
sido sesmarias, ou da formação de posses a partir de terras devolutas. No
início da década de 40 do século XIX, os meios governamentais discutiram
sobre o sistema fundiário brasileiro, fato que teria levado tropeiros mineiros e
proprietários a iniciarem a tomada de posses nos vales do Itararé e do rio das
Cinzas, divisa entre Paraná e São Paulo. Essa região era por eles conhecida pelo
trabalho desenvolvido com os animais trazidos do extremo sul do país e pelo
fato de ela ser considerada terra devoluta e, portanto, passível de aquisição
por meio do direito de posse e não de compra. Os tropeiros passaram, então,
a se estabelecer na região, que ficou conhecida como Norte Velho, antes que
o sistema fundiário brasileiro titulasse as terras chamadas devolutas, ou seja,
terras adquiridas somente mediante a sua compra. Essa prática foi diferenciada
com o passar dos anos e, já em 1848, antes mesmo da lei de 1850, Wachowicz
(1987, p. 82) registrava possiantes negociando suas terras em termos monetários
com prováveis interessados.

4 Para uma discussão mais profunda sobre os grupos indígenas que habitavam o norte do Paraná ver: Mota e Noelli
(1999) Exploração e guerra de conquista dos territórios indígenas nos vales dos rios Tibagi, Ivaí e Piquiri, Noelli e Mota
(1999) A pré-história da região onde se encontra Maringá, Paraná. Maringá e o Norte do Paraná: estudos de história
regional.

− 27
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Quase cem anos depois, os compradores de lotes em Lobato já estavam


inseridos em leis capitalistas de propriedade fundiária, de forma que só poderiam
adquirir suas propriedades por meio da compra, processo que foi intermediado
pela CMNP, empresa que adquiriu 546.780 alqueires –1.321.499ha/13.166km 2 - de
terras no Norte paranaense e que projetou o município de Lobato (LUZ, 1980, p.
125).
Constatamos que o uso de aguadas como limites geográficos para a
demarcação de uma posse é uma prática que acompanha o sistema fundiário
brasileiro desde meados do século XIX e que se reproduziu em uma escala mais
tecnicizada pela CMNP. Dada a importância que o mundo rural representa para a
experiência histórica de Lobato, torna-se relevante conhecermos alguns detalhes
geográficos e denominacionais que concorreram para a formação social desses
espaços. Para isso, abrimos mão de fontes cartográficas inéditas em trabalhos
regionais cuja análise resultou em um quadro expressivo das aguadas existentes
no Município e de como suas estruturas geográficas se tornaram vigas-mestras na
aplicação do Plano urbanístico da CMNP. Para traçarmos esse perfil geográfico
e denominacional, procuramos informações relevantes na planta parcial do
Município, elaborada pela CMNP em 11 de agosto de 1956 (Figura 5), na qual
consta a divisão dos lotes rurais e do perímetro urbano do então incipiente
Patrimônio Lobato. Nesse mapa, foram registradas pelos topógrafos 21 aguadas de
tamanhos diferentes dentro dos limites da Companhia, incluindo, entre elas, parte
do rio Pirapó. Do total das aguadas registradas no mapa, nem todas se tornaram
base para o recorte de propriedades e verificamos que a CMNP utilizou os córregos
de maior porte como base para os loteamentos. Dentre essas aguadas de maior
porte, estão o ribeirão Grajaú, o Araçá, o Paramirim, o Valmarina e o ribeirão
Colorado, na divisa com o município de Flórida, e o rio Pirapó, que faz divisa
com os municípios de Cruzeiro do Sul e Paranacity. Entre as aguadas de menor
porte, loteadas somente em parte pela CMNP, encontram-se os córregos Jecuriti,
Jubui, Curupari, e Ibitipoca, localizados no extremo Norte do mapa, local que
corresponde a aproximadamente metade do Município. Entre os quatro córregos
de menor porte, os dois últimos formam o que hoje é conhecido como Água
Ibitipoca e desembocam no Rio Bandeirantes, ao Norte de Lobato, e, portanto,
fora dos domínios da CMNP. Quanto às duas primeiras aguadas, Jecuriti e Jubui,
não encontramos referências escritas nos documentos levantados sobre Lobato
nem nos depoimentos coletados.
Grajaú e Araçá são outros dois córregos que tiveram apenas parte transformada
pela CMNP em base para lotear propriedades rurais Ambos têm dois afluentes de
menor capacidade. No Grajaú desembocam o Icarahy e o Ibara, ambos utilizados
como base para o recorte de propriedades. Dos afluentes do Córrego Araçá,
Cristalina e Itaberaba ou Itabora, como é registrado em documentos mais à frente,
somente o último se transformou em estrutura para loteamento. Nesse mapa
não se encontra a designação Águas como referência aos rios existentes, e sim
Córregos.
28 −
DE ACIDENTE GEOGRÁFICO A EXPERIÊNCIA HISTÓRICA ■

Figura 5: Planta Parcial n. VI: recorte dos lotes rurais pela


CMNP em Lobato
Fonte: Companhia Melhoramentos Norte do Paraná (1956).

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■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Em mapas com datações posteriores, verificamos diferenças em relação


ao mapa da CMNP, como é o caso do mapa elaborado pelo governo do estado
do Paraná, em dezembro de 1981, e reproduzido parcialmente na figura 3 5.
Nesse mapa, somente algumas aguadas são nomeadas e são desconhecidos
os critérios seguidos para tal elaboração. Como, todavia, trata-se de um mapa
rodoviário, inferimos que não era importante detalhar exaustivamente as
divisões internas relativas à hidrografia municipal. Apesar disso, como é um
mapa em que se pode visualizar todo o Município, localizamos outras aguadas
e propriedades existentes no território, as quais não estão contempladas no
mapa da CMNP porque se encontram fora dos domínios daquela empresa
privada. Encontramos duas particularidades nesse mapa: a mudança no nome
de um dos córregos e o não-detalhamento dos córregos afluentes das aguadas.
Desse modo, encontram-se acrescidas no mapa do Governo mais 12 aguadas
além daquelas citadas pelo mapa da Companhia, das quais apenas uma está
nomeada, a Água Sarandi, no lado Norte de Lobato, que desemboca no Rio
Bandeirantes e faz divisa com o município de Colorado. Esse mapa revela
ainda a existência de 4 fazendas que, juntas, ocupavam todo o extremo Norte
do Município: em tamanho decrescente, Fazenda da Barra, Fazenda Remanso,
Três Marias e Nossa Senhora do Rosário.
A lembrança do senhor Manoel Batista de Freitas ajuda na descrição de detalhes
mais precisos sobre a divisão dessa fazenda. Quando chegou a Lobato, em 1950,
ele trabalhou como empreiteiro na maior parte dessas fazendas que, antes de terem
sido divididas em quatro partes, constituíam, no início da ocupação da região, uma
só fazenda denominada Fazenda Remanso6.

Eu cortei muita madeira lá. Eram quatro donos. Que era uma sociedade,
o chefe mesmo era o Antonio Ferraz. Era o Antonio, tinha o Celso, tinha
o ‘Io’ e tinha o outro que eu não estou lembrado o nome dele. Sei que
hoje é a fazenda Três Marias que aí cortaram. Era uma fazenda só de
4700 alqueires; quando começou aquele negócio do INCRA, eles foram e
cortaram a fazenda em quatro partes. Ficou uma parte para seu Celso que é
a Remanso antiga, e a Da Barra, que é aquela que beira o rio e chega lá na
ponte. Aí ficou a fazenda da Barra para o Antonio Ferraz, a Remanso para o
seu Celso, as Três Marias ficou com a três irmãs que eles tinham, e a outra
que eu esqueço o nome, a Rosário ficou com o ‘Io’.

Nessa visualização cartográfica, concluímos que, no território


comercializado pelo Estado, houve um predomínio de terras destinadas às
grandes propriedades e que ocuparam, nos primeiros anos do Município,

5 Esse mapa foi reproduzido parcialmente e com alterações na Figura 3 de forma a poder acomodar outros dados refe-
rentes ao recorte dos lotes rurais e do perímetro urbano de Lobato e também as construções coletivas como escolas,
vendas, capelas e campos de futebol que puderam ser identificadas quer nas falas dos depoentes, quer na documentação
analisada – cartográfica e do município.

6 Depoimento de Manoel Batista de Freitas. Lobato, setembro de 2001.

30 −
DE ACIDENTE GEOGRÁFICO A EXPERIÊNCIA HISTÓRICA ■

aproximadamente um terço do total do território de Lobato, enquanto nas


áreas negociadas pela CMNP houve o predomínio de pequenas e médias
propriedades. Podemos apenas especular sobre as razões que e os interesses
que levaram a essas duas formas divergentes de ocupar o espaço de Lobato.
Como a CMNP não está mais ativada em sua sede em Maringá, dificilmente
descobriremos os reais motivos de tal procedimento. Quanto às transformações
nas denominações, temos o Córrego Jecuiritt, localizado no extremo Norte
do território loteado pela CMNP, e que aparece no mapa do governo como
Ribeirão Jacuriba, e o Córrego Itaberaba, afluente do Araçá, denominado pelos
topógrafos do Governo como Água Itabora. Outro córrego que sofre alteração
é o Ibitipoca que, no mapa da CMNP, não aparece em relevo, mas em 1981
surge em destaque como viga-mestra de uma Água que leva o seu nome: Água
Ibitipoca. O Córrego Jubui, afluente do Jecuiritt/Jacuriba, e os Córregos Ibara,
Icarahy, Cristalina e Ibiquara, que aparecem no mapa da CMNP, não estão
destacados no mapa do Governo.
Surgem, então, no mapa do Governo datado de 1981, com o mesmo destaque
que havia sido dado a outros Córregos pelos topógrafos da CMNP, em 1956,
as Águas Ibacuru, na continuação da Água Paramirim, a Água Sílex, afluente
da Água Valmarina, e a Água Santa Terezinha, que desemboca diretamente no
Pirapó. No extremo sul do Município, destacam-se a Água Caiatri e a Água
do Tigre, denominação que parece ter sido grafada erroneamente e que, na
verdade, estaria se referindo à Água do Trigo, localizada ao Sul de Lobato.
A Água do Trigo situa-se entre as terras comercializadas pelo governo do
estado do Paraná e contempla, entre suas propriedades, uma grande fazenda
denominada Nossa Senhora Aparecida. Além disso, nesse mapa, as aguadas não
mais são denominadas córregos, e sim Águas. Também encontramos referências
visuais sobre as Águas no relatório elaborado para o governo do estado do
Paraná em 1996. O objetivo era promover um levantamento sobre a forma como
estava sendo utilizado o solo urbano do Município para que fossem executadas
ações específicas no sentido de atender ao dispositivo que propõe que cidades
com número inferior a 20000 habitantes devem receber assistência de órgãos
estaduais para elaboração de normas que garantam a função social do solo
urbano (PARANÁ, 1996).
Nesse relatório, encontram-se mapas que ilustram a situação atual do Município,
como a rede de esgoto sanitário e o abastecimento de água. De forma particular,
chamou-nos a atenção o mapa do Sistema Viário, datado de 1980, que apresenta
as aguadas em suas duas formas de denominação, ou seja, como Córregos e como
Águas e ainda nos permite localizar duas aguadas não-especificadas nos documentos
anteriores: a Água da Bucha e a Água do Alemão. Além disso, o mapa introduz um
novo elemento, o nome das estradas formadas a partir dos espigões, as quais levam,
em alguns casos, o próprio nome da aguada.
− 31
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Vista da Água Araçá Vista da Água Ibitipoca

Vista da Água Paramirim Vista do Salto Pirapó

Vista da Água Valmarina Vista da Água Grajaú

Figura 6: As Águas de Lobato


Fonte: As Águas ([2001]). Coleção Particular Andreas L. Doeswijk.

32 −
DE ACIDENTE GEOGRÁFICO A EXPERIÊNCIA HISTÓRICA ■

2. Vários detalhes técnicos sobre as Águas foram surgindo, principalmente ao


longo do trabalho de campo desenvolvido no Município e da investigação da
documentação cartográfica acima analisada. Ambos revelaram que a quantidade de
aguadas se transforma de acordo com o uso para o qual foi confeccionado o mapa.
O que se pudemos entrever, no entanto, é que, juntamente com os rios Pirapó e
Bandeirantes, a soma de aguadas em Lobato é de 34 no total, das quais 15 não
estão nomeadas nos mapas ou foram lembradas nos documentos analisados. Em sua
maioria, essas 15 aguadas estão localizadas dentro de grandes propriedades, quase
sempre fazendas. Elas não desenvolveram vida social cuja base espacial tivesse
sido construída a partir da própria aguada, a não ser o centro, que se constitui em
torno da Casa Grande da Fazenda, fato que reforça a idéia de que a valorização
de uma Água não dependia de seu aspecto geográfico, e sim de sua vida social ali
desenvolvida.

3. Depois de demarcados e vendidos os primeiros lotes, iniciam-se as


transformações ambientais por parte dos moradores. É inegável que os futuros
moradores das Águas iniciaram a organização de suas propriedades de forma a
acomodar a lavoura cafeeira e o núcleo familiar. Como nas demais regiões em
que o café estava sendo produzido esse rearranjo se deu por meio da queima e
da derrubada da mata existente, trata-se de uma atividade encontrada na maior
parte dos depoimentos coletados, em que a frase mais usual é aqui era tudo
mato. Dita ora em tom de gracejo, ora em tom aterrorizado, essa frase aparece
como uma das mais efusivas lembranças dos entrevistados. A questão da mata
remete a Lobato um caráter de fronteira não só pelo fato de ser um município
limite das terras adquiridas pela CMNP, mas também por não ter ligação com
Colorado, município vizinho. É como se Lobato representasse um fim de linha.
O memorialista Zailson Lemos 7, ao cogitar a possibilidade de vir para o Norte
paranaense, fez questão de frisar que

Meu pai na ocasião, ele tinha, com o amigo dele em Minas uma fazenda.
Uma fazenda pequena e tinha um tio nosso que havia vindo para Astorga e
esse tio sempre escrevia lá, dizendo que o Paraná era o celeiro do Brasil e
que vinha muita gente para cá e isso foi animando meu pai. Daí resolveu,
vendeu essa fazendinha lá que era sócio com o amigo dele, comprou na
ocasião um caminhão 51 aqueles chevrolet, em 1951. Botou a família em
cima e partiu para Astorga. Chegando em Astorga, meu tio informou: existe
um patrimônio ai que está iniciando e que se chamava Lobato’. E meu pai
ainda brincou: ‘mas lá não tem saída não é?’ E ele disse: ‘não’. Então meu
pai disse: ‘então é para lá que eu vou’. Ai ele chegou aqui em Lobato, mas
foi por influência dessa euforia que o Paraná estava. Que as terra eram
muito boas. Esse é o motivo que ele veio para cá.

7 Depoimento de Zailson Lemos. Lobato, outubro de 2000.

− 33
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Segundo o Senhor João do Soutto Mello8, caminhoneiro que trabalhou de


forma intensiva na derrubada da mata em Lobato, a madeira era retirada do interior
das matas por caminhões menores. Depois era levada até os caminhões de maior
capacidade, alguns transportavam até 15000kg.

Tinha muito caminhoneiro. Tiravam as madeiras, as madeiras boas, as


madeira de lei, e o resto derrubavam e metiam fogo. Queimavam tudo.
Primeiro eles tiravam a madeira. Tinha carreador, fazia carreador. Chegava
lá, tirava. [...] tirava tudo com caminhão. Tinha um caminhão para explanar
a madeira. Explanar a madeira, tirar a madeira lá de dentro do lugar que só
um caminhãozinho podia, e punha para nós que tínhamos os caminhões
grandes.

Outro dado importante sobre a técnica e os maquinários utilizados para extrair


as madeiras das matas era o uso de caminhões com carrocerias munidas de catracas,
as quais puxavam as toras para os caminhões com cabo de aço. A madeira retirada
das matas existentes nas propriedades costumava ser transportada por meio de
balsas que levavam os caminhões de uma margem a outra do rio Pirapó para serem
entregues em serrarias dos municípios vizinhos. Uma atividade que não estava
isenta de perigos, como recorda o mesmo senhor João 9:

Entrei numa balsa um dia e a balsa foi para frente. Quando o caminhão
pegou a balsa, ele estava com três toras dentro só, mais três ‘bichonas’. O
recurso foi jogar as toras n’água, amarrar o caminhão e soltarmos as toras.

Ainda sobre o procedimento para a derrubada das matas, utilizava-se primeiro a


roçada e, em um segundo momento, derrubavam-se as árvores maiores com o machado.
Ao ser questionado sobre como era feita a venda da madeira, o memorialista Raimundo
Saraiva Peixoto esclarece que o pessoal contratado para proceder ao desmatamento
vendia a madeira para as serrarias: “Vinha um pessoal, retirava as toras, e iam para a
serraria. [...] Antigamente não existia esse negócio que obrigava as pessoas a deixar [sic]
a gente chegava e fazia a derrubada, vendia a madeira na serraria”10.
De acordo com informações datadas de 1959, 80% da indústria de Lobato se
sustentava com o ramo madeireiro (FERREIRA, 1959, p. 305). Considerando, de
acordo com os dados do IBGE, que em 1960 a área de matas naturais e reflorestadas
cobria 4.930ha, o que representa mais de 50% da área total do Município, que é de
9.755ha, é provável que realmente o comércio de madeira tenha sido expressivo
nesses primeiros anos. Essa atividade intensiva levaria, em 1970, a uma redução

8 Depoimento de João do Soutto Mello. Lobato, outubro de 2000.

9 Depoimento de João do Soutto Mello. Lobato, outubro de 2000.

10 Depoimento de Raimundo Saraiva Peixoto. Lobato, outubro de 2000.

34 −
DE ACIDENTE GEOGRÁFICO A EXPERIÊNCIA HISTÓRICA ■

quase total da mata quando os dados do IBGE registraram, para aquele ano, uma
área de 1.495ha de matas naturais (IBGE, 1970). Ou seja, houve aproximadamente
85% de redução das matas lobatenses em um período de dez anos, fato que leva à
conclusão de que essa atividade acompanhava as frentes agrícolas, principalmente
nos períodos iniciais desse movimento, e que se sustentava sobre os recursos
naturais existentes nas áreas comercializadas pelas empresas colonizadoras. Embora
haja evidências sobre a exploração de madeira no Município, essa prática não ficou
registrada na memória local pela sua importância monetária, mas sim pela forma
quase folclórica de não se vislumbrar o sentido de transformação ambiental com ou
sem prejuízo para seus habitantes. Ficou registrado, sim, como uma atividade lógica
para as condições daquele momento, tendo em vista que objetivavam acomodar
principalmente a lavoura cafeeira.
Os ideais negativos sobre a floresta vão de encontro ao que alguns
autores como Neil Smith (1988) e Warren Dean (2002) consideram uma das
mais importantes características da sociedade capitalista: o conceito altamente
mercatilizado que esse sistema remete à natureza. A visão capitalista faz uso
indiscriminado dos recursos existentes em áreas naturais ou sociais, até a sua
exaustão, sem considerar as perturbações ou as mudanças trágicas que esse uso
indiscriminado pode suscitar. Warren Dean (2002), historiador americano que
escreveu a história da destruição da Mata Atlântica, introduz alguns parágrafos
em sua obra, nos quais discorre sobre esse processo que também atingiu o
Norte e o Oeste paranaense. A visão desse autor sobre a ocupação não é nada
apologética, ao contrário, é extremamente crítica quanto à forma como foi
empreendida a ocupação do Norte do Paraná pela CMNP. Para Dean (2002, p.
255), o projeto da Companhia queria “não mais estabelecer grandes fazendas
e sim, ao contrário, subdividir suas terras em lotes para venda em prestações a
todos os interessados”, como uma nova forma de grilagem que contava com sua
própria “força policial privada cuja atuação, propalava-se, não diferia da dos
pistoleiros contratados por loteadores menos escrupulosos”. Ainda segundo o
autor, as terras Norte-paranaenses eram supostamente adequadas para o cultivo
do café e a CMNP teria vendido milhares de lotes a esperançosos pequenos
produtores “até ser obrigada pelo falido governo britânico, durante a Segunda
Guerra Mundial, a vender tudo aos capitalistas brasileiros” (DEAN, 2002, p.
255).
A questão do olhar sobre a mata insere a formação da sociedade das Águas em
um contexto de maior amplitude dentro da história nacional - projeto modernizante
para o Paraná e para o Brasil -, da qual os habitantes acreditaram estar fazendo
parte. Na verdade, esse projeto encobria interesses imediatos de lucros exorbitantes
por parte de empresários ingleses e brasileiros, que pouco se preocupavam com
o alcance da transformação acelerada e sem planejamento ambiental, como a
empreendida em Lobato e em outros municípios fundados na ocasião. Dessa forma,
os moradores iniciaram os trabalhos em suas propriedades derrubando a mata
existente para plantar o cafezal e construir as demais dependências necessárias à
− 35
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

produção e à vida humana. As lembranças da mata, de sua derrubada e do início


das construções foram assim lembradas por Satoru Inoue 11:

Há trouxe tudo, mudança tudo e já queria construir a casa antes de ir


com a família eu vim e mandei abrir o mato, que foi queimado, abri o
carreador e construi a casa e depois trouxe a mudança. Logo entremos, no
ano 51 semeamos café. Ah empreitamos, aquele tempo falava de ‘gato’.
O empreiteiro que pegava para derrubar, coviar, a gente só plantou café,
semeei só café na cova. Pagava o empreiteiro para derrubar a mata, queimar,
alinhamento, tudo. Para entregar coviado. Mato era virgem mesmo. Tinha
tanta peroba grossa. Peroba, canafístula, gurucaia, tinha tudo. Bicho era
pouco hein, quase não teve. Não vi onça não, não teve onça não, queixada
assim tinha, e anta também um pouco.

Vista sob essa perspectiva mercantilista do uso dos recursos naturais, a


transformação empreendida pelos moradores da Águas corre o risco de ser
compreendida somente pela óptica da destruição do meio ambiente, e não
como a construção de um espaço social. Evidenciar somente o processo de
derrubada da mata e conseqüente extinção dos animais e dos recursos naturais
que a floresta oferecia descaracterizaria todo o trabalho desenvolvido na região.
Há que se considerar, primeiramente, que, para os futuros moradores das Águas,
a derrubada da mata fazia parte do projeto de construção de um espaço social
cuja utilidade visava, em primeiro lugar, à reprodução da vida humana. Em
segundo lugar, convém lembrar que a conscientização ecológica ainda não era
um assunto amplamente discutido e difundido na sociedade brasileira. Desse
modo, queimar a floresta existente nas propriedades tinha uma razão benéfica
em sua existência: por fim à fronteira com o desconhecido e domesticar o espaço
aberto resultante das queimadas, transformando-o em cultura cafeeira, produção
digna de sociedades de acordo com o momento progressista – alardeado e
exacerbado pelos órgãos governamentais durante as décadas de 1920 a 1950-,
do qual a população acreditou fazer parte.
Não obstante as condições acima apresentadas sobre as relações pessoais
que os moradores mantinham com a floresta, as informações ainda remetem
a outros pontos relativos à organização empreendida pelos habitantes. Como
vimos, derrubar a mata é a primeira das transformações por eles empreendidas
e alguns o fizeram em família ao passo que outros contrataram empreiteiros.
Organizaram, dessa forma, o espaço interior da produção agrícola e também o
da reprodução doméstica. Essa primeira providência surge como uma estratégia
de reprodução humana, praticada conscientemente no início do povoamento
da zona rural de Lobato, independentemente de suas implicações ambientais.

11 Depoimento de Satoru Inoue. Lobato, outubro de 2000.

36 −
DE ACIDENTE GEOGRÁFICO A EXPERIÊNCIA HISTÓRICA ■

4. O levantamento minucioso dos aspectos geográficos das Águas de Lobato


ilustrou e introduziu a questão da constituição espacial lá ocorrida. Em uma
escala mais ampla, essa ação transformadora empreendida por sujeitos
plurais - homens e mulheres, com ou sem posses materiais de grande monta,
trabalhadores esporádicos, profissionais autônomos, grandes e pequenos
lavradores e lavradoras, empresas colonizadoras, governo, especuladores
imobiliários, madeireiras, comerciantes, transportadoras -, nas Águas de Lobato,
simboliza a forma como se deu o processo de constituição de uma sociedade
no Norte do Paraná, a partir principalmente dos anos 40 do século XX. Daí
considerarmos uma categoria social a organização espacial empreendida pelos
moradores das Águas. Historicamente situada no tempo e no espaço, a ação
transformadora desempenhada por aqueles que migraram para Lobato sustentou
o redimensionamento de um conceito geográfico para um conceito histórico-
social amparado, sobretudo, pelas experiências ali vividas e pelo uso popular
que os moradores consagraram para o termo Águas.
Com efeito, foram os moradores que, em conversas informais, discorreram
sobre a vida que existiu nas Águas e sobre a importância das escolinhas, das vendas,
das capelas e dos campos de futebol para o convívio social naqueles espaços. Se
para a Companhia as aguadas serviam apenas como limite de propriedade, para
aqueles que lá habitavam elas extrapolavam o sentido dado pela CMNP e o seu
aspecto geográfico. Para os primeiros lobatenses, as Águas representavam uma
rede social primária semi-autônoma, capaz de nuclear o conjunto de atividades
sociais na qual a vida humana se desenvolvia plenamente. Na verdade, em nossa
pesquisa descobrimos algo que os antigos moradores desses ribeirões já sabiam: a
denominação Água designava tanto um riacho como um bairro rural, uma pequena
sociedade com características identitárias específicas. Dessa forma, o sentido do
termo Águas extrapola seu aspecto geográfico ou limítrofe entre propriedades
e assume essencialmente o aspecto social que a memória lobatense remete ao
termo. No universo das Águas, houve uma sociedade em constante transformação
e construção desse próprio espaço, um momento histórico recordado, sobretudo
pela quantidade de pessoas, famílias em sua maioria, que tentaram se estabelecer
na emergente sociedade de Lobato. Consideramos, portanto, que os homens,
em contato com o meio que os cerca, seja ele natural ou social, transformam e
são transformados de acordo com interesses e com significados que só podem
e devem ser compreendidos dentro da perspectiva temporal e espacial em que
a organização se deu. Dessa forma, a ampliação do conceito Águas para uma
categoria também social não é só uma construção acadêmica, e sim o uso de uma
denominação que se encontra inscrita na prática humana que busca, nos acidentes
geográficos, espaços para a reprodução da vida humana e social. Estamos na
presença de um caso em que a interpretação conceitual chega a reboque de uma
experiência histórica.
Ao contemplarem as Águas de Lobato como uma categoria social no horizonte de
pesquisa histórica, os moradores, empenhados em constituir, no perímetro agrícola,
− 37
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

um conjunto de espaços sociais coletivos, composto por escolas, capelas, vendas,


campos de futebol e, em um nível mais pessoal, as próprias relações travadas entre
familiares, homens, mulheres, crianças e uma tênue presença do Estado na figura do
Inspetor de Quarteirão, demonstraram a importância dessas organizações baseadas
em práticas sociais oriundas da cultura trazida pelos migrantes e imigrantes para
efetivar o desenvolvimento capitalista do Norte do Paraná a partir do final dos anos
40 do século XX.

38 −
2

A ÁGUA ARAÇÁ:
narrativa construída a partir dos relatos de Iracema e de
Durval

1. A Água Araçá foi um dos núcleos sociais mais bem equipados da zona rural:
possuía duas escolas, campo de futebol e uma venda. Localizada a Leste da
cidade de Lobato, o ribeirão batizado pelos topógrafos da CMNP com o nome
de Araçá (cujo significado pode ser tanto o nome de um município mineiro
quanto o de uma fruta brasileira) serviu como viga-mestra para a demarcação de
81 lotes no plano original (Figura 5). Essa demarcação acabou por se transformar
em 86 lotes após divisões ocorridas durante a venda ou revenda de alguns lotes.
Os primeiros moradores chegaram a Araçá bem antes da data em que foi aberto
o Patrimônio de Lobato, em finais de 1950 ou início de 1951, como lembra um
de seus primeiros habitantes, o senhor Durval Colontonio 12:

E tinha alguns moradores já na Água Araçá [...] que veio [...] deve ter
vindo aqui em 48 que se chama Joaquim Barbosa, Joaquim Bernardes
com a família e outros mais que tinha família lá, que eu também não
lembro o nome de todos né. Bom, já moravam na Água Araçá esse
pessoal.

12 Depoimento de Durval Colontonio. Lobato, junho de 2001.


■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

A boa memória do senhor Durval não o deixa na mão. Consultadas as


fichas dos Registros de vendas de lotes rurais pela Companhia Melhoramentos
Norte do Paraná (1979) 13 em Lobato, confirmamos que, em 3 de julho de 1948,
o senhor Joaquim Barbosa Sobrinho comprou três lotes (215; 216 e 217); no
mesmo dia, Joaquim Bernardes Alves, Lucelino Hilário Barbosa, José Manoel
Batista e Gercina Barboza compraram o lote 218. As cinco pessoas citadas
deram como residência Monte Alto, Minas Gerais, ainda que dez dias depois,
ao comprar o lote 229, Joaquim Barboza Sobrinho declarasse morar em Astorga.
Houve, então, moradores na Água Araçá que chegaram bem antes dos pioneiros
oficiais da cidade de Lobato.
De acordo com registros orais, em 1952, foi fundada a primeira escola
da zona rural, exatamente na Água Araçá; em 1964, no Livro de matrículas da
Divisão Municipal de Educação, foi registrada uma segunda escola nessa mesma
Água (DIVISÃO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO, 1957). Quanto à vendinha, não
foram encontradas informações sobre o seu proprietário, sua fundação ou
mesmo sua localização; sua existência só foi citada em conversas informais com
os moradores. Em relação ao campo de futebol, o senhor Olírio Xavier Cotrim,
então com 67 anos na data da entrevista em 2000, memorialista que não residiu
na Água Araçá, mas foi freqüentador assíduo dos bailes e dos jogos de futebol
lá ocorridos, fez questão de frisar que “cada sitiantes nessas beira d’água tinha
um campinho aí, chamava naquele tempo era quebra dedo, quebra canela” 14.
Cordial, o senhor Olírio gosta de contar que chegou a Lobato ainda quando
estavam sendo arrancados os tocos das ruas. Acrescenta que veio direto da
Bahia para São Paulo e, depois, como tinha conhecidos em Lobato, resolveu
vir para o Município. Durante a entrevista, ele discorre sobre fatos pitorescos
que costumavam acontecer durante as partidas de futebol, as quais ficaram
registradas em sua memória, muito mais pelas brigas que do que pelas jogadas,
vitórias ou derrotas, estas últimas sofridas pelos jogadores e participantes que
iam para os jogos de

caminhão. Tudo em ‘riba’ do caminhão, esse próprio Valdevino que eu


estou dizendo que era meu patrão ele era o chefe do time, ele dizia:
‘domingo nós vamos jogar na Água do Pirapó’. Quando dava aí pelas
duas horas, três horas da tarde, enchia o caminhão. O caminhão era dele
mesmo, nós íamos todos para lá, no outro domingo ia para água Araçá,
era desse jeito15.

13 É importante esclarecer que os Registros de lotes urbanos ou rurais em Lobato não estão mais disponíveis para pesquisa,
uma vez que o Escritório da Companhia Melhoramentos (CMNP) não se encontra mais ativado em Maringá desde o ano
2000, meses após esse levantamento.

14 Depoimento de Olirio Xavier Cotrim. Lobato, outubro 2000.

15 Depoimento de Olirio Xavier Cotrim. Lobato, outubro 2000.

40 −
A ÁGUA ARAÇÁ ■

Figura 7: Torcedores e reservas do time de Futebol


Fonte: Torcedores ([196-]). Coleção Particular Zailson Lemos.

Figura 8: Time de Futebol


Fonte: Time ([196-]). Coleção Particular Zailson Lemos.

− 41
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Em meio a gargalhadas, Olírio relembra que era comum as partidas acabarem


em briga, motivo que muitas vezes levava os “atletas de fim de semana” a não
comparecerem aos jogos no final de semana seguinte.
Quanto à primeira escola de Araçá, consta que sua primeira professora teria
sido Odete Américo de Oliveira, filha do proprietário da fazenda, o senhor Joaquim
Américo de Oliveira. Em 1955, essa professora foi substituída por sua irmã Darcy
Américo de Oliveira, que nos forneceu as informações a seguir:

Olha, nós mudamos para a fazenda em 52 [...] aí, em 55 a gente estava


lá.[...] acho que quando ele chegou lá já construiu, porque na própria
fazenda do pai tinha uma fazenda de colônia de mexer com café, então
aquelas crianças precisavam de escola. Então ele construiu ali. Mesmo na
faixa de casa da colônia ele construiu a escola16.

Construída em madeira, como as demais construções do período, a escolinha era


composta de uma sala de aula e atendia em média 35 alunos, distribuídos entre a
primeira e a terceira séries do antigo primário, hoje Ensino Fundamental. Anos depois,
provavelmente em 1960, essa escolinha foi substituída por outra um pouco menor
(Figura 10), que foi instalada a aproximadamente 1000m da cidade, a pedido do
substituto de Darcy, o professor Francisco Matiolli, e passou a ser administrada pelo
Estado. Em 1964, uma segunda escola foi instalada em Araçá, na fazenda Santa Maria.

Figura 9: Escola da Água Araçá 2


Fonte: Escola ([1960?]). Coleção Particular da Divisão
Municipal de Educação.

16 Depoimento de Darcy Américo de Oliveira. Lobato, outubro 2001.

42 −
A ÁGUA ARAÇÁ ■

Figura 10: Escola da Fazenda Santa Maria, Água Araçá


Fonte: Escola (1964). Divisão Municipal de Educação.

Tânia Martins Costa, também ex-professora rural do período e hoje prefeita de


Lobato, recorda que os primeiros educadores do Município tinham pouco preparo
acadêmico para lecionar e, normalmente, eram introduzidos na profissão ainda,

aos quinze anos, tinha professoras que mal eram alfabetizadas e já eram
professoras! Eu como inspetora tinha bastante dificuldades, bastante
problemas, do professor desconhecer o próprio conteúdo que ensinava,
então a gente tinha de trabalhar com eles, quantas vezes o professor
chegava até a mim pedia para eu dar a lição para ele para ele poder dar
a lição para o aluno. Era uma situação bastante difícil [por exemplo, na]
Escola da Água Araçá: antes de fazer o transporte de professor, porque hoje
nós fazemos o transporte escolar, trazemos o aluno para escola na sede, e
no início, quando nós ingressamos em 69, a maioria dos professores era do
local. Depois nós criamos o sistema de transporte do professor. Antes de
criarmos esse sistema, na Escola Araçá, a professora ela ia a pé, daqui lá tem
o que, uns três, quatro quilômetros, ela ia a pé, com um balde de merenda
na mão. Ela, era uma situação muito dificultosa17.

17 Depoimento de Tânia Martins Costa. Lobato, outubro de 2001.

− 43
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Outros detalhes da vida em Araçá podem também ser conhecidos pelas


experiências de vida de Iracema Coletto Colontonio e de Durval Colontonio,
moradores que viveram em Araçá por aproximadamente dez anos, durante a década
de 1950 e início dos anos 60.

2. No dia 14 de julho de 1950, Antonio Coletto - pai de Iracema Coletto


Colontonio, cuja história de vida introduz esse subtópico -, Sílvio Meschiari e
Adriano Aparecido Pires saem do escritório da Companhia Melhoramentos Norte
do Paraná em Londrina como proprietários de três lotes de terra na Água Araçá. De
acordo com o Registro de Vendas de Lotes rurais da Companhia Melhoramentos
Norte do Paraná, essas foram as 3 únicas vendas promovidas pelos agentes G.
Durães e J. Lopes naquele dia e mês para o então Patrimônio Lobato. Um número
consideravelmente pequeno se comparado às vendas ocorridas dois anos antes,
no mesmo mês, quando se iniciaram as vendas de lotes na zona rural. De fato,
em julho de 1948 foram realizadas 24 vendas, contabilizando um total de 306
alqueires, cujos tamanhos variavam entre 5 e 30 alqueires e custavam, em média,
CR$2.736,00 o alqueire, como consta nos Registros da CMNP (1948-1979). De
acordo com essa documentação, cujos registros originais nós consultamos, foram
comercializados na zona rural 450 lotes, dos quais foram vendidos 252 somente
em 1948. Verificamos, também, que o maior fluxo de vendas ocorreu exatamente
nos dois primeiros anos, quando foram comercializados 103 lotes. Dois anos após
o início das vendas em Lobato, ou seja, em 1950, Sílvio Meschiari, Adriano Pires
e Antonio Coletto pagaram CR$1.584,00 o alqueire pelos lotes de números 227A,
227B e 227C, ou seja, 43% menos que o valor cobrado pelos lotes em 1948. Nos
Registros também tomamos conhecimento de mais detalhes pessoais desses três
personagens da história de Lobato: eram brasileiros, lavradores, casados e maiores
de idade. Sílvio Meschiari e Adriano Aparecido Pires disseram ser de Rolândia e
Antonio Coletto declarou que residia em Arapongas, ambos municípios do Norte
paranaense.
Pesquisamos o mapa da CMNP, datado de 1956 e analisado no capítulo 1,
para localizarmos esses lotes registrados nas fichas cadastrais e descobrimos que
não havia, originalmente nos planos da Companhia, três lotes cujas numerações
fossem 227A, 227B e 227C. No referido mapa consta apenas que havia um lote
de número 227A, que tinha por divisa lateral dois outros lotes de numeração 227
do lado esquerdo e o lote 228 na lateral direita, cuja referência era Água Araçá.
Entretanto consta no Registro da CMNP que, em 23 de dezembro de 1948, o senhor
Waldevino Dornelles, residente em Ourinhos, estado de São Paulo, comprou os
lotes 227 e 227A com metragens de 15 e 10 alqueires, respectivamente. Como
pode um mesmo lote ser vendido em primeira mão para diferentes compradores
e em épocas diferentes? Dizemos em primeira mão porque algumas fichas da
Companhia discriminavam os nomes e os dados pessoais de compradores
secundários de uma propriedade. Como cada um dos quatro compradores citados
44 −
A ÁGUA ARAÇÁ ■

tinha suas próprias fichas cadastrais de compra de propriedade e como nada mais
consta nessas fichas, não há evidências de que tenha havido a revenda de um
mesmo lote.
O que ocorreu com essa documentação empresarial? Os funcionários da
empresa, em algumas ocasiões, fizeram novas fichas quando da revenda de um
lote e, em outras, recuperaram a ficha da primeira venda e efetuaram anotações
sobre uma segunda e, até terceira venda, como observamos ao manusearmos essa
documentação nas dependências da CMNP em Maringá no ano 2000? Acreditamos
que as duas hipóteses podem ser verdadeiras, mas esse fato leva um crítico de
fontes escritas a mensurar a dimensão de incoerências que uma fonte pode conter.
Por mais verdadeira que seja a existência de um discurso implícito nas fontes
escritas, há que se render ao fato de que elas não estão livres de erros estatísticos e,
até mesmo, como vimos acima, de incoerências quanto ao real detalhamento das
informações e dos dados que elas se propõem fornecer.
O trabalho com fontes originais, como as usadas na pesquisa em Lobato,
revelou a dimensão e, ao mesmo tempo, os limites dos documentos escritos ou
construídos a partir da oralidade. Esses limites podem ser reduzidos às incoerências
existentes nos dois tipos de fontes citadas e, quanto à dimensão, considerada aqui
um universo de possíveis informações, essa revela que os aspectos subjetivos, ou
qualitativos, são tão ou mais importantes que os quantitativos quando tratam de
assuntos históricos. Desse modo, presumimos, e os Registros nos autorizam a isso,
que o senhor Waldevino Dornelles vendeu parte de seus lotes aos senhores Antonio
Coletto, Adriano Aparecido Pires e Sílvio Meschiari. Ele, todavia, não o fez apenas
repassando os lotes a um novo comprador ou compradores, mas sim redistribuindo
o tamanho e a numeração dos lotes 227 e 227A. Originalmente, os dois lotes
somavam 25 alqueires, que foram redimensionados para a revenda, formando 3
lotes menores, dos quais dois de 6 alqueires, que ficaram com os senhores Antonio
Coletto e Sílvio Meschiari, e um terceiro, com apenas 3 alqueires, que teria ficado
com Adriano Pires.
Segundo dados da CMNP, o Senhor Joaquim Américo de Oliveira adquiriu o lote
número 226 e o integrou à sua fazenda. Após trabalho de campo realizado no local,
consideramos que o lote redividido em propriedades de dimensões menores foi o de
número 227A, ao passo que o lote 227, originalmente com 15 alqueires, ficou, depois
da revenda, com 10 alqueires no total. Podemos especular ainda mais e considerar que
esses 10 alqueires restantes foram vendidos inteiros ou, ainda, em partes menores a
outros compradores cujo registro não consta nos documentos da Companhia.
Foi assim que, em julho de 1950, o pai de Iracema Coletto comprou o primeiro
e único sítio da família com 6 alqueires no total. Adolescente nos anos 50, Iracema
chegou a Lobato com 15 anos de idade, meses após o pai ter comprado um
sitiozinho, como ela costuma se referir à propriedade de sua família. Chegaram a
Lobato durante o dia, após terem passado a noite no então Patrimônio de Ângulo,
depois que o caminhão de mudança quebrou:
− 45
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Nós viemos para São Martinho [perto de Rolândia-PR], ficamos um ano


lá. Depois meu pai comprou o sítio de Lobato e nós viemos para cá. Mas
em Lobato era tudo mato, então nós viemos morar no meio do mato, aí
eu vim para cá. Eu tinha 13 anos, quando eu vim para São Martinho. Em
São Martinho ficamos um ano lá colhendo café, colhendo café, depois,
não..., é. Depois nós viemos para Lobato. Então foi em 49, em 50 nós
viemos para cá. E viemos aqui três famílias: a família do meu pai, que
nós viemos no sítio. Depois tinha a família do amigo do meu pai que
comprou um terreno e trouxe um empregado que esse empregado veio
conosco do Estado de São Paulo. Moramos lá em São Martinho com eles
um ano, moramos 5 meses numa casa só, num rancho, colhemos café
e depois cada um foi para sua casa. Aí ficamos um ano tocando café de
colono. Depois viemos para cá e nós veio junto. Só que ele foi no sítio do
outro e nós fomos para o nosso sítio, o sítio que meu pai tinha comprado.
Nós chegamos de dia. Porque nós vínhamos vindo e o nosso caminhão
de mudança quebrou no descer do Ângulo ali naquele corregozinho,
quebrou, e nós posamos numa serraria ali do lado. E nosso vizinho veio
embora, mas ele já tinha casa boa pronta e nós também tínhamos mais era
um rancho que meu pai tinha feito. Aí nós chegamos de dia e chegamos
no nosso rancho. Nesse rancho que eu falo que era feito de tabuinhas,
dessas tábuas de segunda18.

O senhor Antonio Coletto comprou o sítio e mandou que um empreiteiro


chamado Cassimiro derrubasse a mata que cobria a área da propriedade; só então
construiu a casa. Antes de trazer a família, ele costumava vir para a propriedade e
ficar uns quinze dias trabalhando nessas atividades e assim ele construiu uma casinha
de telhado e paredes de tábuas de segunda linha e de chão de terra batida com cinco
cômodos - quatro quartos e uma sala. O poço foi construído cinco meses depois, de
forma que durante esses primeiros meses foi necessário buscar água no córrego Araçá
para as atividades domésticas, higiene e alimentação. A cozinha foi construída anos
depois, mas Iracema conclui que “a gente vivia tão feliz! Nem pergunta! Nossa vida!
Porque a gente era acostumada com aquilo”. Foi então que Iracema, seus seis irmãos,
quatro homens e duas mulheres – uma terceira menina nasceria anos depois, já no
sítio -, pai e mãe iniciaram então uma vida nas Águas. Nos primeiros cinco anos, as
atividades no sítio foram diversificadas. Não somente a cultura do café foi a principal
atividade desenvolvida pela família, mas também a esfera do mundo doméstico e de
reprodução familiar. Considerando as necessidades primárias de alimentação, foram
plantadas hortas e iniciada a criação de porcos. Vez ou outra, eles iam à cidade
mais próxima, como Astorga ou Flórida, para adquirir mantimentos beneficiados, mas
isso foi em anos posteriores, quando a família Coletto já se encontrava em melhores
condições financeiras porque antes disso

Alimento era na roça. A gente colhia o arroz, feijão. Batata a gente não
plantava. No começo foi muito difícil, porque nós comíamos arroz e feijão
puro, porque a gente não tinha com que comprar! Tinha nossos vizinhos
vinha fazer compra em Astorga, eles já compravam carne seca, essas coisa.
Já como a gente era muito pobre e não tinha, então nós comíamos arroz e

18 Depoimento de Iracema Coleto Colontonio. Lobato, outubro de 2001.

46 −
A ÁGUA ARAÇÁ ■

feijão puro. A gente aí foi plantando, foi vindo um canteirinho de verdura,


a gente ia comer salada. E quando matava o porco, até criar esse porco,
engordar para matar e ter a carne, olha, foi difícil. Fruta sim, a gente pegava
muita jabuticaba, tinha uma frutinha amarela, não sei como que chamava
aquela fruta... é o que a gente comia. Gabiroba. E a jabuticaba tinha demais
jabuticaba. E a gente matava muito assim, meu irmão ia de tarde assim
num matinho que tinha bem perto de casa, que só derrubou para fazer a
casa, tinha aqueles ‘uru’, uns ‘frangãos’ preto assim, matava de dois, três,
a gente fazia... É! Aqueles ‘jacu’ que fala, não. ‘Jacu’ sim. Uns ‘frangãos’
pretos assim. Muito gostoso! Parecia frango. E nós comíamos aquilo com
uma boca boa nossa!19

Outros alimentos cultivados pela família foram repolho, cebolinha, “cheiro verde
que fala hoje”, o almeirão, este último fazia parte da alimentação porque “italiano gosta
muito de almeirão”, esclarece dona Iracema. Além desse hábito étnico reproduzido
pela família, outros costumes foram sendo incorporados ao dia-a-dia na Água Araçá e
no contato entre os vizinhos (dificilmente se matava um porco sem dividir com os mais
próximos). Como acontecia nas demais Águas, na Araçá tinha muita gente morando
tanto de um lado como do outro do córrego e

Cada um tinha seu sitiozinho, e, às vezes, se fosse um sítio um pouco maior


tinha empregado ou dois, então era muita gente. Era assim. [Então] Se nós
matávamos porcos, nós dividíamos com todos os vizinhos mais próximos.
E eles também a mesma coisa. [...] quando eu morava no sítio que eu casei,
com minha sogra, era desse jeito também. Se um matava porco podia crer
que ia vim carne para gente, podia ser vizinho meio distante, mas se fosse
conhecido eles traziam20.

Segundo ela, essa prática perdurou “por muito tempo. Desde quando eu morava
lá no sítio”, acrescenta ela. Noutra parte do depoimento, Iracema descreve como a
participação das mulheres foi substancialmente importante na lida com a roça e com
outros afazeres rurais, como cuidar de criações – suínos, galináceos -, entre outras
atividades, fato ilustrativo de que a submersão desses afazeres sob o rótulo trabalho
doméstico esconde na verdade uma vida de dupla jornada que sobrecarregava esposas
e crianças no cotidiano das Águas.

Eu levantava de manhã. Eu tinha quatorze, quinze anos por aí, levantava


de manhã, minha mãe então ia fazer o almoço e eu ficava ali ajudando
ela até [...] levantar as crianças, dar café, dar mamadeira, aquela
confusão. Aí depois ela fazia o almoço, eu pegava o almoço, e ela punha
mais comida dentro da panela, pegava aquela comida atravessava um
sítio que tinha beirando o nosso sítio, puro mato, e pegava o sítio do
seu Joaquim Américo, lá era derrubado, lá não era [...] beirando aquele
outro mato, o mesmo mato que eu atravessava aqui ia até lá em cima.
Aí eu atravessava de novo e ia ao nosso sítio. Que para ir por aqui não

19 Depoimento de Iracema Coleto Colontonio. Lobato, outubro de 2001.

20 Depoimento de Iracema Coleto Colontonio. Lobato, outubro de 2001.

− 47
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

tinha caminho. E lá eu ficava até de noite. Nós almoçávamos, aquela


comida depois nós guardávamos bem, quando chegava lá pras duas
horas a gente fazia um monte de folha assim enfiava aquele caldeirão
pra esquentar aquele arroz e comia aquela comida, depois vinha em
casa para jantar21.

Jantar não era necessariamente o que a jovem Iracema e sua mãe faziam. Quando
voltavam para casa após o trabalho na roça, iniciavam os preparativos relativos ao
jantar porque “no sítio faz aquela janta como se fosse o almoço. E ficava aquela
louça pra lavar, eu que lavava. Lavava as crianças pra por pra dormir. Antigamente
era muita criança pequena”. Era uma jornada dupla que se estendia até altas horas,
pois, assim que as crianças dormiam, tinha de passar roupa, costurar, remendar o
que estivesse precisando. A esse cotidiano exaustivo ela ainda acrescenta muitas
outras atividades: “quando matava o porco fazia tudo, fazia sabão, derretia gordura,
fazia tudo, fritava a carne, enlatava [...]”.
Todas as atividades citadas, que se iniciam com a matança do porco, duravam
até dois dias e exigiam das mulheres concentração e conhecimento antecipado.
Iracema descreve como se davam tais atividades executadas por ela e por sua mãe,
Dona Genoveva Meschiari Coletto, irmã de Sílvio Meschiari:

Sabão? É só por [...] pega a barrigada do porco, lavava ela no córrego. Nós
íamos lá no córrego lavava ela bem, tirava aquela sujeira, depois vinha
no tacho e punha assim, couro, essas coisas que a gente não ia aproveitar
punha lá. Gordura que sobrava durante aquele tempo que a gente ia
fritando aquelas gorduras, então ia guardando e no dia punha, punha no
sabão. E aí punha soda com água e ia mexendo com fogo até que ficava
um sabão bem ‘liguento’ e depois tirava do fogo ele endurecia22.

Passava-se o dia cozinhando aquela barrigada que era mexida com uma pá de
madeira sobre um fogão improvisado no quintal que era feito

Assim com uma pilha de tijolo, punha o tacho em cima, punha fogo. E para
matar o porco era assim também: a gente fervia água naquele tacho, matava
o porco lá no chiqueiro, punha em cima de uma tábua, e água fervendo
naquele tacho jogava no porco assim, tirava aquele cabelo dele, limpava
com água fervendo, com a faca, raspava23.

Concomitantemente ao feitio do sabão, elas ainda cuidavam do preparo da


carne para ser estocada em vasilhas, cuja limpeza e higiene Iracema fez questão de
frisar:

21 Depoimento de Iracema Coleto Colontonio. Lobato, outubro de 2001.

22 Depoimento de Iracema Coleto Colontonio. Lobato, outubro de 2001.

23 Depoimento de Iracema Coleto Colontonio. Lobato, outubro de 2001.

48 −
A ÁGUA ARAÇÁ ■

Ah! A gente punha em latas. Aí meu pai já comprava as latas nas vendas; que
tinha as latas que tinham umas tampas. Então ali punha a gordura, fritava as
carnes naquele mundo de gordura dentro do tacho, cortado tudo pedaços
graúdos. Aí depois, fritava em bastante gordura, jogava tudo dentro da lata.
Que a gordura conservava a carne, que aquele tempo não existia geladeira,
era só assim! E os toicinhos a gente derretia tudo e fazia quatro, cinco latas
de banha, e a gente não tinha óleo. O óleo era só para fazer salada. Alguma
latinha que a gente comprava. Era tudo banha de porco24.

Ao mesmo tempo em que a esfera doméstica se estruturava, a produção cafeeira


também se fortalecia e, desse modo, no sítio de Antonio Coletto, um resultado
positivo na primeira produção do café era o que mais se desejava naquele ano de
1954. Não foi, entretanto, o que aconteceu:

E nós plantamos café e foi, graças a Deus, a gente com saúde a gente
fez tudo isso. E por fim, quando o café estava com quatro anos e ia dar a
primeira carga, veio a geada e matou tudo. Nós ficamos tudo, ai Deus...
desorientados. Mas, fazer o quê, aí depois eu casei. Depois eu casei.
Depois daquela geada eu casei. A geada parece que foi em julho, eu casei
em setembro. Não, foi no outro ano que eu casei25.

Novamente, porém, a família formou o cafezal e esperou os resultados, Iracema,


todavia, mudou-se para a fazenda São José, na mesma Água Araçá, depois de se
casar com Durval Colontonio, que será biografado em parágrafos posteriores.
Detalhes da história vivida por Dona Iracema e sua família mostram como era
volumoso o trabalho desempenhado pelas mulheres nos primeiros anos da vida nas
Águas de Lobato, mas, como nas Águas não havia somente trabalho, tanto jovens
quanto adultos costumavam se juntar e organizar bailes ou para festejar o padroeiro
e rezar o terço com os vizinhos, ou para comemorar um casamento ou, ainda, para
se divertir. Desse modo, os anos no “sitinho” foram passando e com eles as relações
sociais e pessoais. Facilmente vem aos lábios de Iracema o nome de colegas de
adolescência com as quais se divertia nos bailes nas Águas e nos passeios à cidade
nas tardes de domingo. As atividades de lazer povoaram os anos da juventude da
Água Araçá e se extinguiram quando as mocinhas amigas foram se casando.

Ah, acabou. Acabava viu. Acabava por que cada uma foi para um lado.
Eu era muito amiga da Odete do Benevides aqui. A Odete, e eu; tinha
essa Aparecida, desse amigo do meu pai que nós viemos do Estado de
São Paulo junto, nós éramos inseparáveis. E tinha minhas primas, que
moravam do outro lado, a turma dos Meschiari. E tinha, a Odete tinha
umas primas também que moravam do outro lado, então a gente se
juntava. Era muito legal, nossa! Quase todo domingo a gente vinha para
Lobato, era tão gostoso! Porque juntava aquela moçaiada e vinha ... aqui
encontrava com os rapazes, que eles já tinham vindo, já estavam aqui, ai

24 Depoimento de Iracema Coleto Colontonio. Lobato, outubro de 2001.

25 Depoimento de Iracema Coleto Colontonio. Lobato, outubro de 2001.

− 49
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

quando à tarde a gente ia embora, ia todo mundo junto. Meu irmão, que
eu tinha um irmão, mas meu pai era muito severo, não deixava a gente ta
saindo sozinho, então meu irmão sempre estava junto com a gente. Se ia
nesses bailinhos no sítio, os irmãos tinham que estar junto senão não ia
no baile. Era muito bom26.

O irmão citado era Maurício que, por sua amizade com Iracema, transformou-
se em fio condutor da próxima narrativa. Ela relata que seu pai, homem com algum
conhecimento escolar, costumava juntar em sua casa, no horário da noite, alguns
meninos para ensinar a ler e a escrever, principalmente durante os dois primeiros
anos, quando em Araçá ainda não havia escola, fato superado quando Joaquim
Américo de Oliveira construiu uma em sua fazenda, que era vizinha à fazenda
de Antonio Coletto. Antes disso, porém, seu Antonio teria iniciado a atividade
de professor a pedido do compadre Ernesto Gatti, que desejava que seus filhos
recebessem educação escolar, mesmo informal:

Porque meu pai, engraçado, que meu pai tinha [...] porque aqui não tinha
escola, esse Ernesto Gatti, que é o padrinho da minha irmã, ele tinha uns
rapazotes e ele queria que eles aprendessem alguma coisa. Meu pai era
meio estudado, ele pegou e arrumou umas mesas, umas cadeiras na sala,
que nós tínhamos uma salona grande, e ensinava eles e eu ele não quis.
Disse que mulher não precisava aprender ler. Eu ia arrumar cozinha, eu ia
passar roupa à noite, porque de dia a gente ia na roça. E ele ensinou meus
irmãos, porque eles já estavam estudando lá em São Martinho, então eles
continuaram com meu pai. E as mulheres não ligavam para estudar. Depois
eu aprendi porque eu gostava, eu tinha uma loucura! Eu tinha loucura
para aprender assim [...] aí eu comecei, depois que eu casei eu comecei
a ler aqueles [...] ai meus Deus do céu [...] aqueles que vinham aqueles
capítulos. Não é gibi, revista [...] que vinham aqueles capítulos como se
fosse uma novela27.

E assim, a jovem Iracema, por iniciativa própria, aprendeu a ler e a escrever,


embora, segundo ela, não dominasse com clareza a matemática. Quanto a outros
momentos, porém, ela e o irmão costumavam freqüentar os bailes que aconteciam
nas Águas:

As moças antigamente eram muito presas. Que nem minha mãe falava
assim: ‘você vai no baile mais seu irmão, se ele for, você vai, se não você
não vai.’ E eu ia, sabia que tinha que respeitar ele, o que falava era ordem
para mim. Só que eu gostava muito dele, que ele era muito bom para mim!
Meu irmão era muito bom para mim28.

26 Depoimento de Iracema Coleto Colontonio. Lobato, outubro de 2001.

27 Depoimento de Iracema Coleto Colontonio. Lobato, outubro de 2001.

28 Depoimento de Iracema Coleto Colontonio. Lobato, outubro de 2001.

50 −
A ÁGUA ARAÇÁ ■

Iracema não se lembra exatamente em qual dessas ocasiões ela conheceu


aquele que viria a ser seu futuro marido, o jovem Durval Colontonio, também
morador de Araçá. Sabe apenas que foi em um baile na Água, mas não se recorda
da data nem do lugar exato:

Então a gente nossa, namorava, era só namorar, dançava junto só, e vinha
embora junto assim: mas nem pegar na mão não pegava. Porque Deus o
livre se meu irmão visse eu pegar na mão do namorado! Chegava em casa,
contava para o pai, o pai ficava bravo. Quer dizer que ele nunca me bateu
nada, mas, a gente sabia que tinha aquele respeito, que não podia, então
não podia mesmo!29

Em setembro de 1954, os noivos, as respectivas famílias e uns poucos convidados


dirigiram-se ao então patrimônio de Iguaraçu, distante de Lobato aproximadamente
trinta minutos de carro, para realizarem o casamento, porque em Lobato, embora já
houvesse Igreja católica, esta ainda não era paróquia. Após as cerimônias no civil e
no religioso, que ocorreram por volta das duas horas da tarde, foi servido um jantar
no salão do cinema, que ficava na cidade, e um baile na casa dos pais do noivo,
onde o jovem casal também iria morar.

3. Durval Colontonio, então com 21 anos de idade, chegou a Lobato em junho


de 1950 com a família. Esse senhor, que estava para completar 72 anos na data da
entrevista em 2001, é figura popular entre os moradores do Município. Ele, seus
pais e mais sete irmãos vieram de Estrela do Oeste, São Paulo, com o objetivo de
continuar administrando, no Paraná, as propriedades do tio José Sandin, para quem
já trabalhavam no estado de São Paulo. O senhor José Sandin havia vendido as terras
em Estrela do Oeste e comprado uma fazenda com 200 alqueires e 43 mil pés de
café já plantados em Lobato. Os lotes por ele adquiridos na Água Araçá, em junho
de 1950, haviam pertencido, anteriormente, ao senhor José Bertucci, em primeiro de
fevereiro daquele mesmo ano, e correspondiam aos lotes 230, 206, 214, os quais,
juntos, somavam 150 alqueires, e os lotes 214A e 230A, com 30 e 20 alqueires,
respectivamente, como consta dos Registros da CMNP. Segundo Durval,

[...] essa fazenda do tio era da família Bertucci. Vendeu para o meu tio, e na
fazenda Bertucci tinha 43 mil pés de café para o lado de cá da Água Araçá
orelha de onça tudo dentro da cova. Mas estava na ‘quiçaça’, no mato. E
a gente então, na outra fazenda que foi vendida no Estado de São Paulo,
a gente conseguiu uns empregados bons e trouxemos para a fazenda para
tocar esse café que estava abandonado30.

29 Depoimento de Iracema Coleto Colontonio. Lobato, outubro de 2001.

30 Depoimento de Durval Colontonio. Lobato, junho de 2001.

− 51
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Figura 11: Localização


provável da fazenda
onde viveram Durval
e Iracema e, em
destaque, o lote de dez
alqueires recebido pela
família Colontonio do
tio José Sandin
Fonte: Elaborado a partir dos
documentos: Paraná (1996),
Companhia Melhoramentos
Norte do Paraná (1979),
Depoimento de Durval
Colontonio (2001).

Figura 12: Vista de um lote


recortado a partir da Água
Araçá
Fonte: Vista ([2001]). Coleção Particular
Andreas L. Doeswijk.

52 −
A ÁGUA ARAÇÁ ■

Figura 13: Tulha de Café da Fazenda Bertucci


Fonte: Tulha ([2001]). Coleção Particular Andreas L. Doeswijk.

Para administrar a fazenda São José, a família Colontonio recebeu 10 alqueires de


presente do tio José Sandin. Mas, segundo Durval, “só que deu tudo em mato. Nós tivemos
que derrubar e preparar o lote, plantar café, aquela coisa. Mas eu, ganhamos de presente
pra vir para o Paraná, porque aqui era um sertão danado, dava medo disso aqui”.
O senhor Durval e sua família participaram ativamente da implantação da política
institucional em Lobato e da sua municipalização, ocorrida em 1956 que teve como
maior incentivo o número expressivo de habitantes das Águas (PARANÁ, 1956). Como
protagonista da municipalização ele recorda, em detalhes, alguns dos acontecimentos
ocorridos após esse fato:

Olha, a primeira gestão foi assim muito difícil para montar a prefeitura. Você
veja que Lobato emancipou, elegeu prefeito, a câmara mas foi abandonada
completamente pela Comarca de Astorga. E não ajudaram com nada. Então
o prefeito Portela, ele teve que começar da borracha, o lápis, tudo quanto e
coisa ele teve que começar de tudo. Alugou um ‘prediozinho’ de madeira e
era o salão na frente e uma residência no fundo. Então desmanchou as paredes
de dentro e fez a câmara e na frente a prefeitura. E tinha a Casa Gaúcha, a
antiga Casa Gaúcha de Astorga, que até me parece que não existe mais a Casa
Gaúcha, ela emprestou máquina de escrever, alguma coisa para a prefeitura
começar a trabalhar. E foi montada a Prefeitura e a Câmara. E a Câmara não
tinha mesa, não tinha cadeira. Então a gente pegava dos vizinhos as cadeiras
emprestadas, a mesa, e, assim que terminava a sessão nós íamos entregar para os
donos o material. E já começamos fazer os lançamentos territoriais, aprovamos
o orçamento, e foi solto para os proprietários e alguns deles já começaram a vir
fazer o pagamento na Prefeitura e o prefeito já começou a se movimentar. Por
sinal, o prefeito precisava de um contador pago e na época estava difícil mais
um filho do fazendeiro até o falecido meu tio, um primo meu, eu conversei
com ele para ser o contador da prefeitura de Lobato. Ele trabalhou seis meses
de graça, ele não quis nada, só para ajudar o município31.

31 Depoimento de Durval Colontonio. Lobato, junho de 2001.

− 53
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Figura 14: Esquema da organização do espaço na Fazenda São José, década de


1950, quando predominava a produção cafeeira
Fonte: Elaborado a partir dos depoimentos de Iracema e de Durval Colontonio.

Legendas:
1. Água Araçá
2. Sede
3. Terreiro de café
4. Tulha
5. Residência onde viveram Iracema e Durval
6. Colônia
7. Mangueira de Porco
8. 9. 12. 13. Lotes que faziam parte da propriedade de José Sandin, proprietário da fazenda São José, e que foram distribuídos
para os senhores Ferrucci (15 alqueires); Pitarro (10 alqueires); Ricieri Carbelin (10 alqueires) e Santo Gasola (15 alqueires). Esses
senhores receberam os lotes de José Sandin como forma de pagamento por serviços prestados como meeiros de café nas
propriedades de Sandin em Estrela do Oeste, estado de São Paulo.
10. Lote da fazenda São José, cuja responsabilidade pela produção cabia a dois empregados.
11. Lote doado por Sandin à família de Durval Colontonio.

54 −
A ÁGUA ARAÇÁ ■

O senhor Durval acrescenta que o prefeito Portelinha não queria aceitar


concorrer às eleições municipais e que só o fez por insistência de Durval e de
outros conhecidos. Então, em 31 de julho de 1956, Lobato é elevado à condição
de município e, no mesmo ano, em eleições ocorridas em 03 de outubro, foram
empossados a primeira Câmara e o primeiro Prefeito, os quais assumiram seus
cargos em 14 de dezembro do ano corrente e legislaram até 13 de dezembro de
1960.

Figura 15: Prefeitura de Lobato


Fonte: Prefeitura ([195-]a). Coleção Particular Divisão Municipal de
Educação.

− 55
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Figura 16: Prefeitura de Lobato II


Fonte: Prefeitura ([195-]b). Coleção Particular / Divisão
Municipal de Educação.

Figura 17: Primeiro ônibus de Lobato


Fonte: Primeiro ([1950?]). Coleção Particular Luiza Akiko
Siguihara.

56 −
A ÁGUA ARAÇÁ ■

Figura 18: Dez anos do aniversário de Lobato


Fonte: Dez ([1966]). Coleção Particular Luiza Akiko Siguihara.

Na vida pública de Durval constam ainda fatos ocorridos antes de 1956,


os quais são de suma importância para ilustrar a força social existente entre os
moradores das Águas. Na lista de atividades coletivas por ele desempenhadas,
consta sua participação e a de seus familiares na construção da primeira Igreja
católica e também da estrada que liga o Município a Colorado, lado Norte de
Lobato. A construção da Igreja Católica ficou registrada em sua memória:

E a gente como toda vida foi assim um religioso, só que eu, por exemplo,
sou um religioso assim meio safado para religião. Mas a religião que eu
gosto é a católica. Meus pais na época, meu sogro, Adriano Pires, Ernesto
Gatti, Mário Martins, a gente começou a fazer, bem aqui no fundo da
casa onde mora meu cunhado hoje, naquele tempo ele não morava aqui,
era um salão com uma residência. E tinha uma data vazia ao lado então
a gente fez um barraco de encerado, cobriu de encerado e começou
a rezar os primeiros terços ali. E depois do terço saía um leilãozinho
para angariar fundos para construir a primeira igreja. Embora que a
igreja também, as madeiras foram doadas pelos proprietários, as toras a
serraria serrou, e os carpinteiros trabalharam de graça e o comércio aqui
deu prego. Mas, sempre que faltava alguma coisa para comprar fazia as

− 57
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

festas, o leilão, para poder construir [...] dar prosseguimento da primeira


igreja de Lobato32.

Segundo Durval, isso tudo ocorre no período em que Lobato ainda era
Patrimônio de Astorga, em 1954, quando

Só tinha a primeira rua que era a Fernão Dias na entrada de Lobato, de


Flórida para Lobato, tinha a primeira rua aberta e o resto era picada com
balizas aonde ia sair as outras ruas. E em agosto, não, em julho começou
também a derrubada do mato. Queimaram o mato mais queimaram muito
mal. Quer dizer, a madeira não estava seca não queimou nada. E ai foi
loteado as datas e a Companhia veio e cortou as datas em cima daquela
pauleira e os proprietários das datas ele tinha que vir aqui, limpar a data e
construir a sua casa33.

As recordações de Durval remetem, ainda, à construção da estrada que ligaria


Lobato ao município de Colorado:

Lobato fim de linha. Inclusive, até a fazenda Moron, tinha estrada, da


fazenda Moron até a ponte do Bandeirantes não tinha, era puro mato. Então
a gente combinou de abrir a estrada até o Bandeirante porque a ponte já
estava feita. O povo de Colorado já tinha feito a ponte do Bandeirante,
então só faltava um treco de mato para a gente abrir, então a gente abriu
a estrada. Por sinal. O ex-prefeito João de Soutto Mello, ele tinha um, não
lembro o ano, 48 por aí, lê que levava a turma até o começo da estrada
para a gente começar a abrir. Levava os trabalhadores no caminhão, vinha
buscar água com caminhão, levava água lá pra eles [...] pra não faltar água
pro pessoal. E a gente conseguia abrir a estrada no machado, na foice, na
enxada, até a ponte34.

Ele também se recorda da escola na Água Colorado, ainda no período em


que as terras do município de Lobato estavam sendo demarcadas. Segundo ele, a
construção dessa escola foi condicionada à provável perda dessa faixa de terra para
o município de Flórida. De acordo com o Histórico de Lobato, escrito por Ana V.
Souza em 1990, essa escola, construída em oito dias, foi a primeira do norte do
Paraná em alvenaria construída na zona rural. No mesmo ano do livro, ela estava
servindo de moradia para uma família carente após ter sido desativada. Vejamos o
que conta Durval:

32 Depoimento de Durval Colontonio. Lobato, junho de 2001.

33 Depoimento de Durval Colontonio. Lobato, junho de 2001.

34 Depoimento de Durval Colontonio. Lobato, junho de 2001.

58 −
A ÁGUA ARAÇÁ ■

Pois não. O negócio da escola foi o seguinte: Lobato se emancipou em


1956, e logo em seguida à gestão foi eleito a Câmara, o prefeito, e Flórida
era apenas um Distrito. Mas como o PTB fez a Comarca de Astorga todinha
e o ex-governador, Moyses Lupion, PSD na época, Lobato era apenas um
Distrito. Então, para fazer com que colocasse um prefeito PSD na Comarca
de Astorga, emancipou Flórida e colocou um prefeito interino por dois
anos. E daí ,mas o prefeito de Flórida achava que o município de Flórida
tinha pouco terreno, então ele recorreu ao governo do Estado para pegar
um pedaço de terra maior. E ai acharam por bem pegar, no município
de Lobato, pegar na estrada Colorado, quem vem de Santa Fé até no rio
Pirapó, a Água Colorado, seria Flórida. Mas no dia que o engenheiro estava
cortando, marcando a divisa, por coincidência eu fui numa fazenda na beira
do Pirapó, que era do meu tio também, ele tinha oitenta alqueires lá, e meu
pai é que tomava conta. E meu mandou que eu fosse lá na fazenda dar uma
ordem lá. Nessa fui, encontrei o engenheiro, estava passando a cavalo, e
como eu tenho costume de fumar direto, uns dos funcionários do engenheiro
me parou e me pediu um cigarro e eu dei o cigarro. Aí falei: ‘mas vocês
estão cortando lote aí?’, ele falou: ‘não, nós estamos tirando a divisa para
Flórida, daqui para lá vai pertencer a Flórida’. Ai eu fui e falei: ‘mas espera
lá, eu sou um representante de Lobato. Isso aqui já foi feito o lançamento
territorial aqui e, muitos desses proprietários já pagaram seus impostos na
prefeitura’. (naquele tempo era pago no guichê da prefeitura) ‘E como é que
vai ficar isso?’. ‘É isso aí quem vai Ter que resolver vai ser o prefeito, vai ser
o prefeito, ele que tem que resolver’ Aí eu vim em Lobato, avisei o prefeito,
o prefeito foi em Curitiba e falou como governador, o governador só dava o
terreno de vo lta se o prefeito passasse para o partido dele. E ele disse; ‘eu
posso passar depois que eu terminar o meu mandato. Ai até posso passar,
mas antes de terminar eu não vou decepcionar os meus eleitores’. E daí ele
encontrou com o deputado da região, e falou com o deputado. O deputado
pediu para ele que construísse uma escola de alvenaria na divisa de Lobato
com Flórida. Mas tinha que ser de alvenaria. Ai que deixasse o resto por
conta dele, dentro de quinze dias a escola já estava pronta, já funcionando
com professor e aluno. E acabou que conseguiram ficar como o terreno,
não foi tomado o terreno35.

O relato de Durval apresenta uma característica que o diferencia dos relatos de


outros moradores e ex-moradores da zona rural, pois ele e sua família se encontravam
intrinsecamente ligados às questões urbanas, fato que se dá, segundo ele, porque a
propriedade em que moravam se encontrava “de Lobato na sede, 1.500 metros” de
distância. Ainda em seus anos na Araçá, Durval recorda ter havido conflitos entre os
habitantes, inclusive com homicídios. Essas memórias remetem ao período em que
ele foi inspetor de quarteirão, pessoa responsável por contornar prováveis conflitos
que, por ventura, viessem a acontecer em uma Água ou, ainda, por trabalhar como
organizador de eventos ou de construções coletivas, como a construção da igreja
católica. Ele sabe, por experiência própria, que viver nas Águas não representava
harmonia total entre os moradores e que a necessidade de inspetores de quarteirão
remetia à existência de conflitos entre os moradores daquela localidade. Esses
conflitos se configuravam não somente em casos extremos, como homicídios,

35 Depoimento de Durval Colontonio. Lobato, junho de 2001.

− 59
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

mas também em outras formas de desentendimentos entre os habitantes, os quais,


em muitos casos, extrapolavam o poder conferido ao inspetor de quarteirão.
Abordaremos mais detalhadamente esse assunto no capítulo Vigiar e Punir.
A existência de um inspetor de quarteirão, entretanto, não era apenas o reflexo
de uma sociedade local com conflitos entre moradores. Tratava-se de um cargo
ocupado por um morador responsável e, acima de tudo (e o que é mais importante),
por um proprietário com ascendência moral sobre a vizinhança, característica que
conferia um certo status social (DELEGACIA DE POLICIA DE LOBATO, 1957). Ou
seja, o cargo era ocupado, na maioria das vezes, por um morador que possuísse
essas qualidades. Desse modo, Iracema e Durval não podem ser identificados
apenas como lavradores. O fato de Durval ter se tornado inspetor de quarteirão e de
ter participado de atividades relativas à construção da igreja, além de ter sido eleito
vereador durante a primeira e a quarta gestão municipal, demonstra que o casal
esteve envolvido não só com as atividades rurais, mas também com as atividades
urbanas.
Não obstante esse envolvimento institucional, o casal deixou a zona rural no
início da década de 1960 e se mudou para o então patrimônio de Brasiliana, Oeste
do Paraná, onde Durval passou a trabalhar como corretor de imóveis, fato que
marcou a saída definitiva do casal da fazenda São José, mas não do Município.
Iracema recorda os anos vividos fora do Município e também o retorno para ele:

E depois meu marido me levou lá pro sertão. Ai que coisa triste. Fiquei
quatro anos para lá. Lá, perto de [...] município de Assis Chateaubriand, mas
em Brasiliana. O lugar feio, meu Deus do céu! E lá não existia nada, pior
do que aqui, quando nós viemos morar aqui! Depois fomos para Altônia,
depois viemos para Lobato de novo36.

Dessa forma, traços das experiências vividas por Durval e Iracema narram
a trajetória do cotidiano de muitos dos moradores das Águas: uma sucessão de
tentativas em busca de uma vida tranqüila, a qual só poderia ser atingida por meio
do trabalho. Um olhar sobre o passado demonstra, contudo, que houve uma série
de tentativas frustradas que minaram as energias dos dois ex-lavradores. Já na
cidade, após a tentativa de manter uma confecção de roupas infantis, hoje, Iracema
trabalha com sua filha Elizabete em uma pequena fábrica de roupas também infantis.
Durval abandonou a política institucionalizada e auxilia sua esposa na fábrica e nos
afazeres domésticos.

4. As experiências de Durval e de Iracema, bem como as lembranças de Darcy, de


Tânia e de Olírio sobre os bailes, os jogos de futebol, os inspetores de quarteirão

36 Depoimento de Iracema Coleto Colontonio. Lobato, outubro de 2001.

60 −
A ÁGUA ARAÇÁ ■

e o sistema educacional demonstram o elevado nível de autonomia social na


Água Araçá e as relações travadas pelos moradores no início e na evolução da
sociedade local. Como se viu com Iracema, laços familiares precedem a vinda
para o emergente Município e a proximidade entre os sítios facilitou o contato
entre os moradores. Nesses locais, eram reproduzidos traços de um cotidiano
conhecido, como a construção de uma horta, cuja produção era apreciada pelos
descendentes de italianos, e a organização da propriedade para acomodar a
produção cafeeira. Em atividades constantes e empreendedoras, os moradores
construíram em Araçá um espaço social capaz de atender ao grupo social que lá
se estabeleceu. Ao produzirem naqueles espaços costumes de um cotidiano já
conhecido, trouxeram para as Águas não só a produção cafeeira, mas também a
reprodução de hábitos oriundos de outros momentos de um cotidiano vivido em
outras regiões do Brasil, como São Paulo e Minas Gerais. Aí reside a hipótese de
que a consolidação do sistema capitalista na região Norte paranaense não está
ligada apenas à produção cafeeira. Como vimos mostrando, o tempo das Águas
revelou que hábitos não tão modernos, como a produção alimentar baseada em
hortas e na criação de suínos em escala doméstica, juntamente com a reprodução
de hábitos culturais religiosos e até mesmo étnicos também foram relevantes para
a introdução e o sustento do capitalismo. Iracema, por exemplo, descreve como
as mulheres se organizavam para construir o ambiente doméstico. Para famílias
que conduziam sozinhas a produção da fazenda, o trabalho das mulheres nos
domínios do lar, bem como na lavoura, funcionava como uma estratégia de
sobrevivência para o núcleo familiar. No caso de Durval e de sua família, a
estratégia de reprodução humana também se encontra ligada ao núcleo familiar,
uma vez que ele, seus pais e irmãos empregaram o conhecimento adquirido com
a produção cafeeira no estado de São Paulo para desenvolver suas atividades na
fazenda São José.
Em alguns momentos da constituição da vida nas Águas, todavia, os moradores
se depararam com atividades que fugiam aos seus conhecimentos, como a derrubada
da mata no lote recebido pela família de Durval e o preparo do terreno para receber
o café. Ou seja, os moradores das Águas estavam sempre transformando aquele
espaço por meio de atividades já conhecidas e também por meio de atividades
desconhecidas. Do confronto entre essas duas esferas surgem particularidades que
ficaram registradas na memória local, na maioria das vezes, lembradas através de
sentimentos ambíguos relativos à insegurança e também ao empreendedorismo.
Bailes e jogos de futebol eram atividades relativas ao convívio social coletivo e
estavam inscritas na margem de lazer existente no mundo rural; servem para ilustrar
o nível de sociabilidades praticado pelos moradores rurais. Mais que organizar a
produção econômica, eles reproduziram e recriaram espaços sociais cujo objetivo
maior era a própria reprodução de uma sociedade autônoma não só em relação à
estrutura material, mas também à estrutura social, ao passo que os inspetores de
quarteirão representaram a margem de desarmonia entre os grupos sociais rurais,
fator pouco explorado pela historiografia regional.
− 61
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Em suma, os que se dirigiram às Águas sabiam que estavam reestruturando


suas vidas, tendo na produção cafeeira a base econômica da sua sobrevivência.
Entretanto, na memória local, as lembranças não remetem a essa produção agrícola,
mas aos momentos de aflição decorridos das geadas ou ao trabalho desempenhado
na constituição social coletiva lá existente. Uma evidência dessa afirmativa refere-
se à construção da primeira Igreja católica de Lobato, três anos após a abertura do
perímetro urbano, ou ao sistema de mutirão para a construção da estrada e da ponte
de ligação entre Lobato e Colorado. Ainda no ano de 1953, os moradores recordam-
se da construção da escolinha na fazenda de Joaquim Américo de Oliveira, com
o auxílio do senhor Antonio Coletto e das professoras Odete e Darcy Américo
de Oliveira. Trata-se de momentos que demonstram a importância do empenho
dos moradores na construção de uma sociedade nos mais variados âmbitos de
organização humana.
Os olhares femininos e masculinos se diferenciam na descrição da formação
dessa estrutura. Assim, enquanto Iracema narra sua trajetória pela Água Araçá,
relembrando atividades restritas quase que somente ao âmbito doméstico, Durval
centra sua narrativa na forma como sua família se instalou na fazenda e também
em como estiveram sempre ligados às questões urbanas. O que temos no início de
Lobato é a população se organizando para promover melhorias que atenderiam tanto
aos moradores rurais quanto aos urbanos e, também, aos interesses intermunicipais,
uma vez que a construção da ponte e da estrada ligaria Lobato aos outros municípios
vizinhos.
A autonomia de uma Água se dava, portanto, em diversas escalas que englobam
relações entre o meio urbano e o rural, entre a transformação do meio ambiente e
a instalação de espaços de produção e de sociabilidades entre municípios. Dessa
forma, cria-se um sistema em que micro e macro escalas sociais que compõem
um contexto histórico se encontram e demonstram o quanto estão intrinsecamente
envolvidas. Ao discorrermos sobre o universo rural das Águas, é necessário
considerarmos tal envolvimento, uma vez que as ações humanas, agindo como
estratégias de sobrevivência, são responsáveis pela concretização dessa interligação
entre meio físico e estrutura social e entre o setor institucional e cultural de um
espaço social.

62 −
3

UM COTIDIANO
DE TENTATIVAS E
DE INCERTEZAS EM
FAZENDAS E EM ÁGUAS
DE LOBATO:
as experiências de Olindina e de Manoel

1. Em uma noite de 1947, a jovem Olindina Cordeiro Freitas 37 e suas irmãs se


arrumavam para ir a um baile e mal sabia ela que naquela noite conheceria seu
futuro marido, Manoel Batista de Freitas. Assim ocorreu o encontro: “foi num baile,
num lugar chamado Alegre, [estado de Pernambuco]. E aí ficamos naquele baile,
dançando, e aí comecei o namoro com ela. Isso em 1947” 38, explica ele. Manoel
Batista de Freitas nasceu em Capim de Planta, município de Pesqueira, estado de
Pernambuco, no dia quinze de julho de 1928. Juntamente com seus pais, o senhor
João Batista de Freitas e dona Maria Emília dos Santos e com seus seis irmãos -

37 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

38 Depoimento de Manoel Batista de Freitas. Lobato, outubro de 2001.


■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

quatro homens e duas mulheres -, seu Manoel, desde criança, costumava lidar com
vários tipos de criação no sítio do pai:

A lembrança que eu tenho da minha infância é que nessa fase de, que
acabou a escola eu vim para a agricultura trabalhar e tinha os irmãos tinha
os divertimentos dele e eu era assim meio, tinha assim, era meio ressabiado.
Eles saíam assim para brincar pelos matos e eu não ia, eu gostava só de estar
junto com a criação, cuidando de uma coisa e outra, e inclusive eu era
quem era o campeiro das ovelhas, dos cabritos, do gado. Tudo era eu que
comandava, pequeno, assim, na infância de dez, doze anos, treze anos. Era
essa a minha infância. Não teve assim uma infância, como se diz hoje, de
brincar de bola, essas coisas eu não tive39.

Aliás, nem à escola praticamente Manoel foi, pois

A escola tinha assim a uns quatro quilômetros de onde a gente morava.


Na mesma linha de Capim de Planta. No mesmo Capim de Planta que
era uma região grande chamada Capim de Planta, que era uma ribeira, a
gente chama lá. Ali nós estudamos uns meses e depois não estudei mais.
Quando eu saí da escola, a professora tinha passado as primeiras contas de
somar, diminuir, multiplicar para mim, e eu levei para casa e eu aprendi
sozinho. E dali pra cá eu vim aprendendo as coisas eu mesmo. Não tive
mais escola40.

Olindina, nascida em 28 de agosto de 1929, no município de Pedra Buíque,


também em Pernambuco, morava com os pais quando Manoel veio com a família
se estabelecer no sítio vizinho ao seu, mais ou menos entre os anos de 1944-1945.
O nome do sítio de seus pais era Duarte e ficava no município de Pedra. Após
conhecer Manoel, Olindina ficou morando em casa de seus pais até o dia 28 de
maio de 1950, quando se casou dias antes de completar 21 anos de idade. Ela e
Manoel foram morar em casa própria comprada do irmão de Olindina, o mesmo
que escreveria para Manoel convidando-o para vir trabalhar em Lobato, no Paraná.
Adolfo Cordeiro Vaz, o irmão de Olindina, teria vindo para Lobato para trabalhar
como empreiteiro na fazenda Moron, localizada na Água Sarandi, e costumava
trazer conterrâneos seus para lá trabalhar. A convite deste, Manoel se mudou de
Pedra Buíque para Lobato com apenas três meses de casado:

Ah, ali eu namorei com ela ali até, 50, quase 3 anos. Em 50 nos casamos.
No dia 28 de maio de 50. Ali eu fiquei ali, mas desde mais novo que eu
tinha vontade de vir para cá [para o Paraná]. Ali, quando eu casei, já fiz
uma casa boa. Quase como essa aqui, até comprei de um irmão dela a casa
pertinho da casa dos pais dela. Aí, combinei, casei, quando foi com 2 meses

39 Depoimento de Manoel Batista de Freitas. Lobato, setembro de 2001.

40 Depoimento de Manoel Batista de Freitas. Lobato, setembro de 2001.

64 −
U M C O T I D I A N O D E T E N TAT I VA S E D E I N C E RT E Z A S ■

esse irmão dela pegou a fazenda Moron para tocar, escreveu para lá, para
nos virmos embora para cá. Aí foi que eu vendi tudo41.

Vender tudo não foi exatamente o que Manoel fez, pois, na seqüência de seu
depoimento, encontra-se a seguinte frase: “Só deixei a casa lá com um terrenozinho
e no dia 25 de agosto de 50 viajamos de lá para cá”. Não sabemos os motivos
que levaram Manoel a conservar essas propriedades em Pedra Buíque; se foi por
desconfiança da nova empreitada ou se foi por falta de compradores. Sabemos que
em 1975 Manoel voltou para Pedra Buíque para rever a mãe - o pai havia morrido
em 1971 - e os irmãos que lá ficaram ou que para lá voltaram após migrarem para
outros estados do país como São Paulo. Segundo Manoel, dois de seus irmãos ainda
moram naquele estado: “o Cazuza mora em São Paulo, o José, em Paulo Afonso, e
o Antonio, a Alice e a Severina moram lá [em Pernambuco] nas propriedades que
o velho deixou” .
Em agosto de 1950, Manoel e Olindina iniciam a viagem que os traria para o
Paraná. Vieram sozinhos e de ônibus e, antes de chegarem ao destino previsto, o
jovem casal cumpriu o seguinte itinerário, segundo Olindina:

Para Lobato mesmo naquela época, só viemos nós. Porque meu irmão
veio, mas foi aquele que já veio que pegou a fazenda para administrar. Nós
viemos para, nós chegamos em São Paulo ficamos uns oito dias lá, depois
viemos pra Arapongas que tinha meu irmão lá, porque lá em São Paulo eu
tinha minha irmã, meus irmãos lá, aí eu fiquei uns dias lá, depois viemos
para Arapongas fiquei mais uns dias, [...] na fazenda. Aí quando chegamos
na fazenda já tinha esse Adolfo, meu irmão, que era o administrador de lá
[...]42.

E quando chegaram ao Patrimônio Lobato, Manoel relembra que:

A impressão foi mal. Eu pensei que a gente vinha para dentro de uma
lavoura de café, e quando eu cheguei na beira da Fazenda, que só tinha
ela de aberto, e era tudo mato para cá e para lá, aí falaram ‘o café é aqui’.
Aí eu respondi para um cunhado meu: ‘cadê o café?’. E ele disse: ‘está
dentro da cova aí’. Estava o café tudo varando a madeira, já com um ano
de plantado e punha a madeira por cima assim, para não dar sol, para não
queimar o cafezinho orelha de onça que nem o senhor falou ontem? Aí eu
falei assim: ‘mas, ‘vichi’ Maria, isso aqui é um capoeirão” que parecia a
mata mesmo que sem ser derrubada. Aí ele falou: ‘mas, não Manoel, isso
aqui nós vamos carpir esse mato e o café com 2, 3 anos já está dando’. Aí,
eu entrei naquela fazenda com aquela impressão ruim. Mas, aí cheguei na
sede da fazenda já tinha 6 casas que tinha. Aí meu cunhado já estava lá.
Aí ele falou: ‘Manoel, você vai ficar numa casa mais eu’. Aí fiquei mais ele
numa casa. Carpir aquela quiçaça, aquele mato. Aí ele ordenou para eu
tomar conta de uma turma no machado na frente cortando de machado
aqueles matos dessa grossura assim, como brabo, aqueles brotos que tinha

41 Depoimento de Manoel Batista de Freitas. Lobato, setembro de 2001.

42 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

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■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

nascido já tudo grande que foi cortado tudo a machado. E outra turma atrás
de enxadão carpindo, tirando aquele mais, mais pequeno43.

Nas palavras de Olindina, observamos a mesma impressão que seu marido


teve ao chegar não só à fazenda Moron, também ao próprio Patrimônio Lobato: “A
primeira impressão é que eu não via ninguém, só via mato, não via casa, eu falei:
Nossa! Mas, ninguém, não tem ninguém, nem cidade perto não tem” 44. Entorpecidos
por aquela impressão negativa do lugar em que haviam depositado seus sonhos de
começo de vida a dois, Olindina e Manoel foram morar com o irmão daquela.
Adolfo então, separou dois dos cinco cômodos de sua casa para a irmã e o cunhado
morarem e lá eles ficaram por aproximadamente seis meses. Segundo ela, “aqueles
cômodos nem fogão não tinha, tinha que a gente aterrar. Carregar terra, lá do
córrego, e aterrar aquela casa, aí fizeram um fogãozinho que a gente cozinhava” 45.
Desse modo, com pouco mais de três meses de casada, a jovem Olindina chega a
Lobato. Longe dos pais, dos amigos, do ambiente e da cultura conhecida, o casal
inicia a trajetória de sua vida a dois ou, como são recordados por ela: “vida de luta”.
Lá chegando, o jovem casal encontra outras famílias pernambucanas que, como
eles, vieram para o Paraná “iludidos”, diria Olindina anos depois:

Eram sete [famílias], mas tinha mais. Porque tinha casa, moravam bem umas
doze famílias, porque tinha casa que moravam duas famílias. Que nem eu,
eu morava em dois cômodos, e tinha outro que morava nos três. Porque as
casas eram sete casas, mas, de cinco cômodos cada uma. Esse negócio de
banheiro, essas coisas, ninguém tinha46.

O proprietário da Moron, o senhor José Moron, residia em Marília, estado


de São Paulo, e cabia ao senhor Adolfo tocar os trabalhos a serem desenvolvidos
na propriedade que tinha por objetivo a produção cafeeira. Aos poucos, o núcleo
populacional de aproximadamente quarenta pessoas, entre adultos e crianças que
viviam em tempo integral na fazenda, foi criando um espaço social com diversos
tipos de relações.
Além das sociabilidades relativas ao momento de chegada das famílias
trabalhadoras, como a acolhida oferecida pelo irmão de Olindina, faziam parte
da esfera social produzida na fazenda as relações de trabalho, de parentesco e
de interação com o meio ambiente, a reprodução de costumes e a construção de
espaços físicos para atender a outras demandas necessárias à composição do núcleo
de moradores. Um cotidiano de adaptação de costumes, de ressignificações de
sentido e de empreendedorismo foi se tornando particular em alguns aspectos para
os moradores da fazenda. Uma dessas particularidades é o fato de a maior parte

43 Depoimento de Manoel Batista de Freitas. Lobato, setembro de 2001.

44 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

45 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

46 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

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U M C O T I D I A N O D E T E N TAT I VA S E D E I N C E RT E Z A S ■

desses migrantes ser de origem pernambucana, elemento social que reforçava os


laços de parentesco entre esse núcleo. Eram pessoas, famílias que, como Manoel e
Olindina, vieram para Lobato a convite de Adolfo Cordeiro Vaz para trabalhar na
colheita do café. Entretanto, quando lá chegaram, depararam-se com incontáveis
outras atividades e com um ambiente estranho e, de certa forma, assustador, ao
menos para Olindina:

Mas, depois que o meu irmão pegou ela [a fazenda], foi que ele foi mandando
pra vim o povo do Norte, de Pernambuco. Vinham aqueles caminhões de
gente, jogava lá, os conhecidos que tinha lá. O povo se iludiu, vinha muita
gente, mas foi muita gente pra sofrer, porque lá na fazenda, além de nós
encontrarmos só aquele mato, que nós não tínhamos nada, que a casa não
era nem matajuntada não era, era tudo aberto, aí eu tive aquela Osfélia
minha, era uma menina doente, e eu, aí, Deus me livre, que sofrimento,
eu ficava dia e noite com aquela menina nos braços chorando, não tinha
tempo pra nada, e eu lavava roupa, e ela chorando, não tinha remédio,
ninguém procurava também não tinha ônibus também. Tinha que vim em
Arapongas, se fosse preciso. E foi assim, assim aquela luta da gente aqui
nessa Fazenda Moron47.

Nos primeiros três anos na fazenda, Manoel participou das atividades relativas
à produção cafeeira quando, segundo ele “então era, só carpindo o café, cuidando
do café” e Olindina também se iniciou nas atividades da fazenda em construção.
Além do mato para ser cortado, café a ser plantado e cultivado, havia um número
significativo de bocas para serem alimentadas entre outros trabalhos considerados
domésticos. O dia costumava amanhecer com as mulheres já no fogão à lenha e,
pra dar conta da alimentação desse pessoal, Olindina e sua cunhada Terezinha,
esposa do administrador Adolfo,

Usava bem as panelas, mas assim, nós não tínhamos nem com que arear
louça, era aquela areia de córrego. Era um atraso! Mas eu, na casa de minha
cunhada eu ajudava muito ela porque ela era casa de muita gente, porque
minha cunhada tinha bastante filho também, e na casa dela, vinha aqueles
caminhões de gente só ia para a casa dela primeiro. Então ela tinha uma
luta muito grande.A gente ralava milho com um ralo, punha a espiga de
molho, aí então deixava para amolecer e ralava no ralo para fazer bolo para
aquele povo, tomava café. Senão pegava aquela massa, a farinha de trigo e
mexia aquele molinho e fazia aqueles bolinhos pra dá para o povo tomar
café, porque era muita luta, muita luta mesmo. A gente não ia na roça mais
ninguém tinha sossego48.

Não ir à roça, porém, não era necessariamente uma preocupação para essas
mulheres e seus inúmeros afazeres. Para a jovem esposa, no entanto, não foi somente
o imenso trabalho a ser desenvolvido no dia-a-dia da fazenda que a preocupou.
Havia também outros fatores de ordem física e pessoal. Olindina teve dificuldade

47 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

48 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

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■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

com a alimentação que era consumida no Paraná, o que tornou sua adaptação à
região ainda mais difícil:

E as comida, as comidas, eu mesmo tinha o jeito do Norte, eu fiquei um


ano pra poder aprender a comer só arroz. Porque eu era acostumada lá em
Pernambuco, a gente comia: arroz, feijão e carne e o arroz lá para nós era
uma mistura. Fazia o arroz mexido, temperado, era aquele arroz mole, e
colocava tempero e colocava em cima da comida pra comer só assim, eu
não conseguia, eu fiquei mais de um ano49.

Seis meses depois, quando, o jovem casal se mudou para sua própria casa,
Olindina ainda não tinha se habituado à nova alimentação e, grávida do primeiro
filho, cozinhava para vários camaradas, doze ao todo:

Eu fazia o almoço e o Manoel levava, depois de tarde já tinha o café que


era fazer esses bolinhos viradinho com café pra levar na roça também que
saia com aquela bacia de comida pra levar na roça pra levar por povo.
Começou, nós, [eu] estava grávida do Felix, eu com aquelas pernas cheias
de ferida, porque quando eu cheguei os mosquitos me estranharam, me
chuparam muito. Até que a boca da noite assim os mosquitos estavam
chupando a gente. E nós [não] éramos prevenidos, nós não tínhamos calça
comprida, nós não usávamos. Eu sei que nós sofremos muito porque nós
não tínhamos experiência, muito desprevenido, nós não tínhamos nunca
saído de casa, nós não sabíamos como que era aqui, eu sei que aí foi
naquela luta, eu gorda para ganhar o menino, e doente, e cozinhado para
esses camaradas. Aí, depois, eu fui para Arapongas ganhar esse menino,
aí fui para lá e Manoel ficou com esses camaradas e uma prima minha
cozinhava, depois meu irmão foi e tomou conta50.

Com a criança ainda pequena, Olindina ficou adoentada e sentiu-se fraca:

Eu não sei, eu era muito fraca, parece que eu não tinha muita disposição,
não sei se é porque eu tinha mudado de lugar, e eu sei que a gente era
aquela luta, puxando água naquele poço, e eu só tinha dois cômodos só,
aqueles dois, tinha a sala e a cozinha, minha sala era a cozinha, e era
o quarto e a cozinha só. E pegava depois aquela criança era chorão, eu
não tinha tempo de lavar, tinha que esperar o domingo para o Manoel me
ajudar a olhar para eu poder lavar roupa. A mulherada vivia assim, era só
fazendo comida, levar na roça, porque só tinha mato não tinha o que as
mulheres fazerem51.

Acho que devemos acrescentar algumas palavras às palavras de Olindina, pois,


como ela mesma relata, havia muito trabalho a ser feito pelas mulheres em outros
espaços da fazenda. Enquanto os homens cortavam o mato, cultivavam o café e

49 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

50 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

51 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

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U M C O T I D I A N O D E T E N TAT I VA S E D E I N C E RT E Z A S ■

construíam cercas e dependências para atender à lavoura, cabia às mulheres um


universo de outras atividades, cujo desempenho era disciplinarmente cronometrado
para que fosse possível dar conta de um número significativo de atividades consideradas
femininas. O ritmo necessário para lavar, passar, cozinhar, plantar e cultivar a horta,
cuidar das crianças, costurar, entre outros trabalhos desenvolvidos pelas mulheres e
pelas crianças, tudo sempre disciplinado, não é, sem dúvida, uma responsabilidade
que deixasse muito espaço para outras atividades ou que pudesse ser negligenciado,
haja vista a importância dessas tarefas para o núcleo social existente na Moron.

2. A vida considerada “de luta” por Olindina continuaria ainda por muitos anos
e se configuraria sob os mais variados aspectos no cotidiano da zona rural. Após
quatro anos da venda dos primeiros lotes rurais, o então Patrimônio Lobato era
coberto por considerável mata nativa, fato que amedrontava Olindina e a deixava
muito insegura. Para ela, que vivia momentos de adaptação a um novo ambiente
cuja transformação acontecia de forma abrupta a cada instante e sob seus olhos, a
questão relativa à mata revelava os sentimentos mais sofridos e inseguros. Segundo
ela, quando via “aquele mato horrível, a gente olhava assim os mato, fazia derrubada
e queimava, eu tinha tanto medo, parecia que o mundo estava pegando fogo, tanta
fumaça, tanta quentura tinha assim aqueles matos” 52.
Esse cotidiano de medo e de insegurança levou Olindina a expressar sua
vivência na zona rural como momento de luta, pois a adaptação ao novo espaço,
cuja geografia e clima eram desconhecidos, foi para esses migrantes nordestinos
uma fase de conflitos constante e, muitas vezes, de mudança indesejada.
Assim, havia uma luta para se adaptar às novas condições, criando, ou melhor
dizendo, recriando um espaço social em que o já conhecido fosse inserido no
desconhecido, de forma a dar à imagem criada por tal metamorfose um aspecto
que fizesse sentido para seus ocupantes. Imbuídos dessas preocupações, os
moradores da fazenda Moron, com o passar do tempo, foram organizando as
construções relativas à produção cafeeira e às atividades que visavam atender
às necessidades de lazer daquele grupo social:

Com o tempo foi descobrindo, foi animando e meu irmão, festa nós não
tinha, passeio nós não fazia, aí então quando era tempo de São João assim,
esse seu Valdir da farmácia, era que tocava trombone, e sei que meu irmão
inventava aquelas festinhas lá na Fazenda Moron, e eu dançava lá na
cozinha, a gente saía dançando lá na cozinha, só assim de ano em ano, São
João. O seu Valdir tocava e nós dançávamos lá na cozinha, lá na cozinha
que não tinha nem a sala53.

Ou seja, nem só de trabalho vivia o grupo formado na fazenda; ainda que


poucos, havia também momentos de lazer e de diversão, conforme recorda

52 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

53 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

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■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Olindina. Constatar esse fato é buscar no particular o conteúdo para uma história
social em que a ação de pessoas consideradas comuns é o que realmente importa
se se quer atribuir a esses personagens o papel de protagonistas da história sobre a
qual se queira discorrer.
Ainda sobre os primeiros anos em Lobato, Olindina dá mostras do cotidiano da
fazenda ao recordar de uma forte geada ocorrida no ano de 1953, quando o casal e
seus dois primeiros filhos, Felix e Maria Osfélia, sofreram com problemas relativos
à sobrevivência em uma região cujo clima lhes era totalmente novo:

Nunca briguei porque a gente tinha vindo embora. Porque tinha mulher,
olha, brigava com os maridos, reclamava porque tinha vindo, porque estava
ali naquele sofrimento, mais eu não, eu sofri só calada, naqueles tempos
de frio, que não tinha, aquela Maria Osfélia minha, uma geada grande, eu
não sei se em, ela é de 52, não sei se foi 53, ela pegou uma geada grande
que ela só vivia sentada no chão, esfriou a bundinha assim, no chão frio. A
gente não era prevenida de roupa, a gente não era prevenida de nada. Lá
em Pernambuco nós não precisávamos de roupa de frio assim, eu nunca
usei um casaco, nada de frio lá. Agora a gente vai lá tem [...], mas, naquela
época não. E ela só vivia no chão, aquele frio que nós não tinha nada
mesmo era só o chão, e ela ‘dispeiou’ a bundinha no chão, de ficar no
chão frio54.

Além de adaptação a um novo clima e a uma nova cultura, Manoel e Olindina,


ainda durante essa geada de 1953 sofreram mais uma decepção. Segundo Manoel,
“quando foi em 53 que o café estava para produzir a primeira safra veio a geada. Aí
o patrão deu mais dois anos para nós” ficarmos na fazenda. Mas não era somente a
geada que assustava Olindina:

Teve uma época que deu uma tempestade que eu morri, quase morri de
medo, a casa começou a descobrir, e a casa ia descobrindo e enchendo
de água, e eu gorda, estava bem gorda, da Odete, eu tinha, não, eu estava
gorda da Odete sim, eu peguei a Osfélia no braço e pegava na mão do
Felix e a casa assim cheia d’água. Eu peguei um medo de água, de chuva
que bastava um relâmpago assim no mundo que eu já ficava tremendo
assim de medo. Peguei um trauma [...] de chuva, agora não, mas eu passei
tanto medo, tanto medo, meu Deus! E ficava sozinha, o Manoel sempre
trabalhando longe [...] quer dizer, era colônia, mas não da pra ficar nas
casas dos outros, nem os outros na casa da gente. Ele só chegava no escuro,
lá pelas nove horas da noite que ele chegava, saía de madrugada e só
chegava essas horas assim55.

Era comum Manoel ficar fora de casa trabalhando até tarde da noite. Ainda
nos tempos em que havia mata para ser derrubada, o jovem costumava trabalhar
para outros proprietários quando o café ainda não estava pronto para a colheita.

54 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

55 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

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Esse trabalho, além de render algum dinheiro extra, tomava muitas horas, não só de
Manoel, mas também de seu cunhado e de parentes que moravam na fazenda:

E lá de vez em quando tinha uma folga eu mais o Antonio França e esse


cunhado que eu estou falando - que me acalmou quando eu cheguei que eu
fiquei apavorado que só tinha quiçaça -, nós saíamos fora assim, pegávamos
uma empreita de madeira para cortar no mato, e ali ia vivendo até [...], na
esperança do café produzir56.

Frio e fome, o primeiro totalmente desconhecido para os migrantes nordestinos


acostumados ao clima quente; e o segundo, embora natural do ser humano, era
desconhecido também, pois, nesse caso, significava passar fome mesmo tendo o
que comer. Como se viu, os costumes e os hábitos vividos por Dona Olindina em
sua terra natal não encontram espaço para se reproduzir em sua nova moradia.

3. Durante esses primeiros anos, os moradores da Moron foram, aos poucos,


estruturando fisicamente seu espaço social. A mata foi derrubada e a lavoura,
plantada e cultivada; não só as casas e as dependências relativas à produção cafeeira
foram construídas, mas também o terreiro e a tulha e demais construções, visando
às demais esferas sociais, como uma escola, uma capela, uma venda e até um
açougue. Aliás, a Fazenda Moron é o único exemplo de núcleo social rural com
um açougue.
Essas construções, no entanto, não se localizavam na colônia da fazenda, mas
sim na estrada que dá acesso ao município de Colorado. Junto ao carreador que
levava ao interior da fazenda, ficavam a escola, a capela, denominada Santo Antonio
(PARÓQUIA SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, 1975), e a venda, esta última
de propriedade do senhor Severino Chagas. Segundo Manoel, os mantimentos
comprados eram o trigo, o macarrão e a própria carne: “Comprava muito aqui na
fazenda Moron, tinha venda do seu Severino Chagas. Comprei muito lá. Depois ele
acabou com a venda, aí tinha a venda do seu Joaquim mineiro [na cidade]”.
Outra Água equipada com uma venda em que Manoel e Olindina moraram foi na
Água Potiguara, na estrada que dá acesso ao Salto Pirapó ou Água Pirapó. A denominação
Salto se refere à queda d’água existente naquele rio, por isso os moradores e mesmo
os mapas registravam Salto Pirapó ao se referirem àquela região banhada pelo rio que
dá nome ao salto. Desse estabelecimento no Salto, diz Seu Manoel: “eu me lembro era
tinha o Davi, que era o dono da venda. Já os outros primeiros eu não me lembro o nome
deles. O Davi já entrou naquela década de 68/69, agora aqueles primeiros eu não me
lembro”. E, quanto à vendinha da Água Paramirim, ele recorda que o proprietário era o
senhor Alexandre, cujo sobrenome desconhece.
A existência de tais estabelecimentos comerciais quase não foi lembrada pelos
depoentes; no entanto a existência de vendinhas nas Águas Grajaú, Valmarina e

56 Depoimento de Manoel Batista de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

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■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Araçá, por exemplo, foi confirmada em conversa informal com o Senhor Benevides
Bérgamo, morador de Lobato desde 195157. Esclarecemos, todavia, que, em alguns
casos, apenas a localização aproximada desses estabelecimentos foi identificada. O
espaço das Águas com a produção canavieira que se estende em grande parte do
município, sobretudo na parte Norte, transformou radicalmente a zona rural, muitas
vezes impossibilitando aos ex-moradores a identificação do local exato de muitos
estabelecimentos. Desse modo, as vendinhas identificadas na figura 3, com exceção
das vendinhas nas Águas Grajaú, Valmarina e Silex, têm por base somente a Água
em que estavam estabelecidas, mas não seu local exato. O mais importante, porém, é
que a descrição da existência de tais estabelecimentos reafirma a hipótese de que os
moradores foram os responsáveis pela organização e pelo desenvolvimento de uma
vida social particular no núcleo formado pelas Águas de Lobato. Ademais, o fato de
nem sempre se lembrarem de todos esses estabelecimentos foi assim expresso pelo
senhor Manoel: “é que a gente quase não saía da fazenda sabe?” Na documentação
educacional institucional de Lobato, constatou-se que, no ano de 1957, havia
naquela fazenda uma escolinha (DIVISÃO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO, 1957), mas
os depoimentos apuraram ainda mais a data da sua existência e foi possível chegar ao
ano de 1955, ano de sua fundação. Manoel conta detalhes sobre essa fundação:

Lembro. A escola começou em 1955. A comadre Elza morava no sítio do


sogro dela, do seu José Biguette, vizinho com a fazenda Moron, e tinha esse
o meu cunhado tinha esse conhecimento com esse capitão em Astorga,
chamava capitão Augusto. Aí ele arrumou, nesse tempo o governo daqui
chamava Bento Munhoz da Rocha. Aí ele arrumou com o Bento para ela
lecionar já o Estado. Aí ela começou a lecionar na fazenda Moron em 55,
agora eu não me lembro o mês que ela começou. Sei que parece que foi
no começo do ano 58.

Segundo Manoel, a escolinha da Moron iniciou com 25 alunos mais ou


menos e atendia também a crianças de outras Águas localizadas perto da
fazenda, como a Ibitipoca e a Potiguara. A população que vivia nessas duas
Águas também teria suas próprias escolas em anos posteriores. Em primeiro
de maio de 1957, os moradores da Ibitipoca já se encontravam equipados
com uma sede escolar com 48 alunos matriculados em séries primárias; ao
passo que as crianças da Água Potiguara já contavam com uma escolinha
no ano de 1965. Como as demais escolinhas que foram sendo fundadas
pelos moradores das Águas de Lobato, a escola da Moron era composta de
apenas uma sala e o conteúdo lecionado referia-se aos anos primários de
primeira a terceira séries (DIVISÃO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO, 1957).

Conforme mencionamos, a nora de um dos proprietários vizinhos a Moron, a


senhora Elza Corrêa Netto Biguetti, tornou-se a professora das crianças da fazenda
e das propriedades que se localizavam em Águas vizinhas. Como as demais

57 O senhor Benevides Bérgamo, funcionário da Prefeitura de Lobato durante uma das fases da pesquisa de campo reali-
zada no município, assíduo frequentador da zona rural de Lobato desde 1951 e motorista que acompanhava o trabalho
realizado nas Águas, foi o responsável por essa informação. Lobato, julho de 2002.

58 Depoimento de Manoel Batista de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

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professoras desse período, Elza assumiu o cargo devido à necessidade de educar


os filhos dos moradores daquele local; ela não tinha formação profissional para
exercer essa atividade. Em 1957, somente o nome da professora Elza aparece no
Livro de Matrícula dos alunos da Moron e o de nenhuma outra mais.

4. Concomitantemente a essa estruturação física e de pessoal, disposta a iniciar


grandes empreitadas, como fundar uma escola, a luta dos moradores estava
depositada na esperança de uma segunda safra do café, que foi novamente minada
em 1955, “quando o café estava melhor que em 53, quando saiu da cova. Ainda
colhemos mil sacas de café, todos os empreiteiros. Aí, veio a outra geada, teve
talhão, [isto é glebas com até] 10 mil pés de café que não brotou mais”. Essa
outra geada levou, junto com o café a ser colhido, a maior parte dos moradores
da fazenda; uns foram para Arapongas, outros pegaram rumos diversos dentro
mesmo de Lobato. E a família de Olindina, seu irmão Adolfo e a família, além de
outros moradores, separaram-se, ficando apenas ela, o marido e os filhos morando
na fazenda até 1957. Quando a família de Manoel saiu da Moron, os proprietários
ainda lidaram alguns anos com o café, mas depois desistiram e passaram a plantar
pasto. Hoje, “é tudo cana”, resume Manoel. Desiludidos com as agruras vividas
na fazenda Moron, mas com esperança de dias melhores, Manoel e Olindina,
grávida da quinta filha, mudam-se para a fazenda Nossa Senhora Aparecida, na
Água Potiguara, e lá ficam por três anos, entre 1957 e 1960. Do tempo que
passaram lá, Olindina recorda:

Cheguei na Potiguara eu trouxe meus quatro filhos que eu já tinha: Osfélia,


o Felix, a Odete e a Onéssia, aí quando cheguei na Potiguara no mês de
setembro em dezembro eu ganhei a Romilda. Aí tinha uns vizinhos uns
espanhóis mais eles nem ligavam, aí eu não tinha ninguém, quer dizer,
tinha esses vizinhos mais eles não procuravam amizade, quando eu estava
com um mês de dieta que as vizinhas chegaram lá na minha porta. Aí tinha
minha sobrinha na Água Paramirim o Manoel pegou, procurou uma já tinha
uma mulher que ia assistir com a gente, ele buscou aquela mulher, aí depois
buscou minha sobrinha ficou oito dias comigo. Aí eu fiquei, eu puxava água
em poço, lavava roupa, eu fazia tudo. Já o serviço era mais porque eu tinha
mais crianças, e eu não tinha, tinha outra casa mais não tinha mais mulher,
só tinha meu cunhado que morava aqui e ia para trabalhar lá59.

Enquanto Manoel lidava na lavoura e em outras atividades, como a compra


e a venda de gado, Olindina preparava e organizava o novo lar juntamente com
os filhos mais velhos: “ali no sítio, quando eu entrei lá, nesse sítio da Potiguara,
era tudo mato, até na beira da calçada tinha grama. E eu danei a enxada pra carpir
descobrir tudo, eu de dieta da Romilda, eu cavava com a enxada aquelas gramas e
as crianças tudo pequenininha, carregava, jogava tudo assim longe, deixei o quintal
todo limpo”.

59 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

− 73
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

A casa em que moravam na Potiguara era melhor que a da Moron, pois tinha
cinco cômodos; entretanto não tinha banheiro. Lá na Moron, o costume era tomar
banho no quarto com a bacia e fazer as necessidades físicas na mata: “naquele
sacrifício medonho, era um povo sem experiência”, conta Olindina. Já na Potiguara,
Manoel construiria uma privada alguns meses depois: “naquele tempo a gente
chamava privada”, explica ela. Os anos na Potiguara, em termos de convívio com
outras pessoas, foram os mais sofridos para Olindina, Manoel e seus filhos. Como
vimos pelo depoimento, os vizinhos espanhóis recebem os novos moradores de
forma mais comedida. Apenas trinta dias após o parto é que vão fazer uma visita
para o casal. São desconhecidos os motivos que teriam levado os espanhóis a não
se aproximarem dos novos vizinhos, mas, quanto a Olindina, pode-se inferir que
esperava uma aproximação mais efusiva, como a que recebera de seus parentes
quando chegara a Moron anos antes.
Observamos que na propriedade da Água Potiguara surgem novas relações entre
os moradores. A recepção por parte de uma família de vizinhos espanhóis é tão pouco
calorosa que Olindina nem cita seus nomes em seu depoimento; surge, novamente
nas lembranças dessa senhora, nos anos vividos nessa propriedade, a participação dos
filhos e de parentes que se deslocam de outras Águas para vir auxiliá-la em problemas
relativos a sua saúde, que se tornou muito debilitada naqueles anos.
Por meio dos relatos, observamos uma profunda unidade entre esse núcleo
de pernambucanos lobatenses. Laços que se reforçam em momentos decisivos
nos trabalhos dentro e fora da fazenda, nas atividades consideradas domésticas e
femininas e, ainda, no caráter solidário das relações entre o núcleo cujo parentesco,
além de consangüíneo, era também regional. Essa união parece inclusive ser a viga-
mestra que sustenta a vida desse núcleo no município emergente. A lembrança
constante da participação de conhecidos nos episódios recordados por Olindina e
Manoel ocupa aproximadamente oitenta por cento de seus depoimentos, de forma
que é difícil encontrar uma frase que não seja iniciada por “eu mais aquele meu
cunhado” ou “minha prima que morava mais eu”, quando os protagonistas recordam
os momentos vividos na zona rural.

5. De volta aos anos vividos na Água Potiguara, Olindina, agora mais experiente
depois de cinco gestações completas e outra já no final, cuidou de aprontar os
afazeres da casa quando percebeu que a hora do parto estava chegando. Sem se
abalar, como fazia em outras ocasiões, saiu logo cedo para lavar roupa em um poço
bem fundo do qual as mulheres retiravam a água e a colocavam em um tanque de
madeira para lavar a roupa. Esse tanque, na verdade, era uma tábua e, segundo
Olindina, “era mais fácil”, pois, na Moron, havia que lavar roupa no riacho. Depois
da roupa lavada, outros afazeres aguardavam a parturiente:

Naquele tempo, eu já vivia numa casinha melhor, que era de assoalho, eu


encerava até de baixo do fogão eu encerava. Aí eu fui limpar a casa, eu vi
que eu ia ganhar neném, eu fui limpar a casa, que era para deixar as coisas

74 −
U M C O T I D I A N O D E T E N TAT I VA S E D E I N C E RT E Z A S ■

limpas, aí ela não deu muito tempo assim, ela logo nasceu, porque quando
as meninas nasciam logo, os meninos demoravam mais um pouco, mais eu
nunca fiquei um dia assim pra ter um filho. Quando as parteiras chegavam
demorava uma meia hora assim, já ganhava, era mais rápido60.

Em seu sexto parto, Olindina contou com a ajuda de sua prima Ingrácia, o que
a deixou mais tranqüila:

Ela [Ingrácia] tinha vindo do Norte e ela tinha vindo morar comigo, naquela
casa que tinha vizinha. Aí quando eu fui para eu ganhar a menina, eu
demorei, porque eu tinha muita coisa pra fazer, quase que a menina nasce
(risos) sem a mulher chegar, quando a mulher chegou já a menina tinha
nascido a Rosilda, já, eu estava com essa Ingrácia aí as meninas queriam
entrar no quarto, e essa Ingrácia fechou a porta, era a Odete e a Marizete.
A Odete era minha e a Marizete era da Ingrácia. E ficava batendo na porta
chorando querendo entrar, e a porta trancada, um calor, que estava! Aí
depois a mulher chegou cortou o umbiguinho da menina. Que é a
Rosilda61.

Dez dias depois que Rosilda nasceu, a esposa de Manoel ficou novamente
doente. Mais uma vez, Ingrácia torna-se importante na vida do casal e de seus
seis filhos. Ela cuida dos afazeres domésticos e das crianças: “ela cuidou de mim”,
relembraria Olindina anos depois.
Durante três anos o casal de pernambucanos e agora também seus seis filhos
vivem e trabalham nessa fazenda que pertencia a um senhor chamado Leonel. Três
anos depois, porém, Manoel recebe uma proposta de trabalho: “me deram uma
administração numa fazenda vizinha com esse sítio. Aí fiquei mais três anos. De 60
a 63”. Nesse primeiro ano vivido na fazendinha do senhor Leonel, primeiro Manoel
diz ter formado o cafezal, depois, quando o senhor Leonel vendeu para o senhor
Antonio Ortiz, Manoel continuou como administrador, mas a produção da fazenda
passaria a ser mais diversificada:

Na Água Potiguara eu, que é no sítio do Leonel, que foi onde eu fiquei só
esses três anos, cuidei só de lavoura de, fui formar o café novamente e aí
fiquei três anos lá Aí o seu Leonel vendeu para Antonio Ortiz o sítio, aí ele
chegou e falou: ‘não vamos mais mexer com café não Manoel, você pode
plantar o que quiser aí dentro que eu vou encher de pasto.’ Aí que eu fiquei
mais dois anos ali cuidando da lavoura, da minha parte e a outra parte
ele já tomou conta que não tinha empreiteiro, estava abandonada. Aí eu
fiquei cuidando só de lavoura, plantando arroz, milho, algodão, mamona
ali onde era minha empreita. O resto ele já tomou conta, já foi plantando
capim. Aí quando foi no derradeiro ano que eu tinha ido entregar para ele,
ele já foi plantando capim, aí eu mudei para a outra fazenda onde eu fui
ser administrador62.

60 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

61 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

62 Depoimento de Manoel Batista de Freitas. Lobato, setembro de 2001.

− 75
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Nessa fazenda chamada Nossa Senhora Aparecida, que também ficava na


Água Potiguara, Manoel “ganhava renda do que vendia, ele tinha porcentagem”,
conta Olindina. Isso ocorreu durante os anos 1960, 1961, até 1963 quando nasceu
o sétimo filho. Nesse ano derradeiro, aconteceu o ano do fogo, como costumam
lembrar Olindina e Manoel. Ano que traria mais algumas mudanças na vida do
casal e de seus filhos. Dentre essas mudanças, aconteceria uma que transformaria
radicalmente a vida da família; eles se tornariam proprietários de um pequeno sítio
no aterro. E tudo se deu mais ou menos assim:

Eh! Chi! Porque em todo lugar aqui havia um incêndio no sítio. Aí, a geada
caiu no dia 6 de agosto, fiquei com a criação só sustentada no milho e
na mandioca. Um bocado de criação de gado e animais. E aí tinha que
entregar a fazenda no dia 30 de setembro [de 1963] e com aquela situação
que não tinha quem arrendasse um pedaço para por a criação. Aí eu fiquei
procurando um ‘sitinho’ para comprar aí, comprei um ‘sitinho’ aqui no
aterro. Aí, no dia 30 de setembro, eu entreguei a fazenda lá e mudei para
um ‘sitinho’ aqui no aterro63.

6. O aterro a que se refere Manoel fica na Água Colorado, divisa com o município
de Flórida. A propriedade por eles comprada tinha cinco alqueires, mas, segundo
Olindina, a terra não era boa:

Aí nós fomos para aquele sítio lá, parece que ficamos lá três anos, e foi no
tempo que o João nasceu, foi 63, e deu aquela seca grande e a geada e o
café virou pó, queimou tudo, e o café virou pó, queimou tudo, e o homem
vendeu aquela fazendinha, e o Manoel comprou esse sítio aqui no aterro,
eram cinco alqueires, só que a terra era ruim. A terra não era boa. Tinha
café, ele plantou mamona. Só que depois saiu aquela lei do governo de
cortar os cafés, aí ele recebeu para poder cortar esse café, ele parece que
estragou, andou muito sabe!64

Manoel, depois que comprou a propriedade no aterro, passou também a


trabalhar com gado, atividade que o obrigava a ficar muito tempo fora de casa.
Olindina recorda:

Ai foi o tempo que eu vivia na roça, junto com as crianças, e o Manoel


saía bem cedo chegava de noite, nove horas da noite, ele tinha uns cavalos
muito bem [...] depois que nós morava no aterro, ele comprou tinha gado,
bastante animal, carrinho, tudo tinha lá no aterro. E aí foi que ele negocia
lá para o lado de Colorado, não sei para onde, começou a comprar gado,
vender gado, com esse negócio acabou tudo que nós tínhamos65.

63 Depoimento de Manoel Batista de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

64 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

65 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

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U M C O T I D I A N O D E T E N TAT I VA S E D E I N C E RT E Z A S ■

Enquanto Manoel saía pelo mundo, como costuma dizer Olindina, ela e
as crianças passaram a trabalhar em propriedades vizinhas como lavradores
assalariados:

Eu na roça mais as crianças e ele para o mundo. Ele saía cedo e só chegava
uma hora da manhã, mais, todo dia. E a besta lá, só lutando. Chegava ia
lavar roupa, no outro dia cedo [Manoel] sumia outra vez. Eu ia panhar
algodão numa quiçaça que o mato dava assim até o pescoço. [...] Eu
trabalhei nesse negócio de panhar algodão. Na nossa não tinha. As crianças,
os mais pequenos ficava em casa e os grandes iam comigo para roça depois
iam para escola. Ficavam só. Ficava, era um sitiozinho e tinha vizinho meio
longe, perto da estrada66.

Se o convívio com outras pessoas foi difícil na fazendinha da Potiguara, os


anos vividos no aterro de Colorado se mostraram ainda mais ingratos para a família.
Nesse sítio viviam duas famílias, ou melhor, era uma só propriedade com dois
donos, Manoel e mais um, cujo nome não foi mencionado:

Veja, nesse sítio vizinho com meu sítio, era um sítio só, só que era repartido
de duas famílias, era metade para nós, metade pro outro homem. Eu acho
que lá eram umas quatro pessoas, e tinha eu, mais perto da estrada e do
outro lado tinha umas duas casas, tinha ainda mais família, só que a gente
não era assim de tinha amizade assim, tinha amizade mais não ia na casa
de ninguém, cada um era nas suas casas67.

No período entre 1960 e 1967, os familiares pernambucanos se dispersaram,


uns para fora do Município e do Estado, outros para a cidade, como Adolfo
Cordeiro Vaz e a prima Ingrácia. Manoel e Olindina, juntamente com seus filhos,
eternos companheiros, continuaram vivendo na zona rural e, no que diz respeito
ao trabalho, voltaram-se para a diversificação das atividades até 1967, quando se
mudaram em definitivo para a cidade. Enquanto Manoel trabalhava com o gado e
ficava a maior parte do tempo fora do sítio, Olindina, além do trabalho na lavoura,
iniciou a atividade de costura, a qual exerceria até 2002, quando problemas de
saúde a afastaram do trabalho na cidade:

Eu só chegava, e às vezes quando eu chegava costurava um pouco de noite,


tinha as costuras das vizinhas pra fazer, as vizinhas mais longe levava as
costuras pra mim. Até o galo cantar assim, eu costurava. Era as horas que eu
tinha pra costurar assim era de noite, eu lavava roupa de noite, porque era
mais sossegado porque de dia eu não tinha tempo, era assim. E as crianças
só estudavam longe, em tempo de geada essas crianças saíam cedo, às
vezes com um golinho de café, só que tomavam. De chinelo de dedo,

66 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

67 Depoimento de Manoel Batista de Freitas. Lobato, setembro de 2001.

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■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

porque não tinha com que comprar, não tinha o que levar de lanche, não
tinha nada68.

Como se pode constatar, a chegada na Terra da Promissão (FERREIRA, 1959,


p. 304), forma como era apresentada a região Norte paranaense nas propagandas
de venda de terra pelo país, não encontra eco nas palavras de Dona Olindina. O
que se tem de fato é um forte sentimento de medo, de isolamento e de incerteza
frente ao desconhecido. A vida nas Águas para nossos protagonistas e seus filhos
não se apresentou como a vida em uma Terra de Promissão, mas sim como uma
terra de provação, que perpassaria os mais variados âmbitos da vida e do cotidiano
construído pela família. Enquanto Manoel buscava trabalho fora do sítio, Olindina
dividia seus dias entre os filhos, o trabalho, a lavoura e a costura. Treze anos após
a chegada a Lobato, as perspectivas de dias melhores e os sonhos do então jovem
casal ainda não haviam se concretizado. O que havia na realidade das Águas era um
cotidiano que precisava ser conquistado a cada dia e em cujo interior abundavam
os momentos de insegurança intercalados a sentimentos de esperança.
De esposa que cuidava da alimentação dos trabalhadores empreiteiros na
fazenda Moron a lavradora rural e costureira assalariada, assim podem ser resumidas
as estratégias de sobrevivência desempenhadas por Olindina em sua passagem
pelas Águas, entre 1950 e 1971 e representada na Figura 19. Desempenhar vários
papéis fundamentais para a sua sobrevivência, a de seus filhos e a de seu marido
foram os espaços e as estratégias em que Olindina experienciou seus momentos
de luta. Mas, em sua vida de luta, o que parece ter sido sua maior batalha foi a
não-reprodução de seus ideais de vida familiar. Ela teve de lutar contra uma vida
cujos papéis femininos e masculinos estavam culturalmente estabelecidos. Homens
e mulheres cumprindo determinadas funções dentro do casamento, cabendo aos
primeiros atender às necessidades materiais da esposa e dos filhos e às segundas a
produção de bem estar mental e a organização do lar de forma a tornar esse espaço
um refúgio para o marido quando estivesse em casa. Mas não foi essa a vida que ela
viu se descortinar frente a seus olhos. Eis seu maior conflito. Um conflito cultural
em cujo interior se digladiavam não somente momentos de adaptação a um novo
espaço físico, mas também e, principalmente, uma realidade na qual era impossível
reproduzir seus ideais de casamento e de estabilidade social. Olindina viu, a
cada dia de sua vida nas Águas, a construção de um cotidiano composto por suas
próprias atitudes, estrategicamente praticadas de acordo com as necessidades de
sobrevivência que sua família impunha. Ela viu desmoronar a cada dia seus sonhos
idílicos de vida em família e Manoel, por alguns anos, foi símbolo de sua desilusão.
Quando ela diz: “Eu na roça mais as crianças e ele para o mundo”, a impressão
que se tem é a de que Manoel tinha negligenciado suas responsabilidades de pai
e de marido. Um olhar menos envolvido emocionalmente talvez revele uma outra
perspectiva para o comportamento de Manoel.

68 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

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U M C O T I D I A N O D E T E N TAT I VA S E D E I N C E RT E Z A S ■

Figura 19: Itinerário realizado por Olindina e Manoel pelas


Águas de Lobato
Fonte: Elaborado a partir de diversos documentos, Paraná (1996),
Depoimentos de Olindina Cordeiro de Freitas e Manuel Batista de Freitas.

Esse homem, desde a infância, esteve voltado para o trabalho; enquanto os


irmãos gostavam de brincar, ele enfatizava que seu prazer era lidar com a criação.
Considerando a forma como ele se refere a esses anos vividos nas Águas e depois na
cidade e a participação de sua esposa nesses momentos, observamos que há, de fato,
posicionamentos diferentes perante a vida, os quais só podem ser compreendidos
quando observados em suas particularidades de universos masculinos e femininos,
em cujo interior se reproduz um conflito quanto à responsabilidade de cada um no
seio familiar. Seu Manoel, que contava com 74 anos de idade quando concedeu a
entrevista em 2001, reconhece o trabalho desempenhado pela esposa durante os
anos que viveram juntos:
− 79
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Olha, são várias coisas. As coisas que melhor me aconteceu foi eu ter a
felicidade de ter criado a família com todo sacrifício, mas tão todos criados,
isso me trouxe um prazer muito grande. E outro prazer que eu tenho, que
agradeço a Deus [...], foi ter vindo essa doença para mim depois que a
família estar tudo criado, que eu ainda hoje penso, foi uma grande vitória
que Deus me deu de eu não ter tido essa doença em tempo que eles
eram todos pequenos. Que eu não pudesse mais cuidar deles. Isso é uma
das coisas que me traz uma satisfação muito grande. E a outra coisa que
eu tenho, de maior prazer é de ter casado com uma mulher muito mais
responsável do que eu viu? Todo dia eu agradeço a Deus ter me dado essa
companheira tão fiel, tão ‘lutadeira’, tão cheia de respeito como ela69.

Ou seja, ambos buscavam reproduzir ideais de responsabilidade familiar;


esbarravam, todavia, em condições sociais que impossibilitavam tal reprodução.
Entre o mundo ideal e o mundo real, há situações que acabam levando os indivíduos
à desilusão. Além disso, o fato de valorizarem apenas determinadas particularidades
do dia-a-dia também concorre para que tais desilusões sejam reforçadas em
detrimento de outras sensações ou lembranças.

7. O tom íntimo das recordações de Olindina e o depoimento caloroso de Manoel


revelam um cotidiano conflituoso entre os interesses femininos e os masculinos no
contato com um novo espaço social. Neles não há uma visão de classe nem rancor
social contra os fazendeiros e costumam atribuir sua vida de má sorte ao destino
ou à vontade de Deus, o que não significa necessariamente que não lutaram, a seu
modo, para conquistar as suas utopias de proprietário rural, no caso dele, e de uma
mulher autônoma, no dela. Manoel se apresenta como um homem voltado para o
trabalho que era preciso ser feito nas propriedades em que viveram e para atividades
que precisavam ser desempenhadas em outras propriedades. Quanto a Olindina,
uma análise profunda de seu depoimento revelou que ela é uma mulher de atitudes
próprias, como a que tomou quando chegou na Potiguara e organizou o espaço da
casa juntamente com seus filhos, ou quando foi trabalhar em lavouras alheias para
sustentá-los e a si própria. Entretanto não só Olindina se transforma a partir da vida
nas Águas. Manoel também sofre com essa experiência e, no fim de 1971, quando
consegue um bom dinheiro com a venda de mamona que havia plantado em um
sítio arrendado, contrai caxumba duas vezes seguidas. Essa doença, decididamente
catártica na vida desse trabalhador, só foi vencida graças principalmente aos
recursos médicos que o dinheiro na colheita possibilitara. Manoel, então, desiste
de trabalhar na lavoura. Segundo ele, essa situação ocorreu em dezembro de 1987
e perdura até os dias de hoje. Durante esse período, os filhos foram resolvendo
suas próprias vidas e dona Olindina foi assumindo cada vez mais responsabilidades
com a casa e com o Manoel, até que, em 2002, ela também por doença, passou a
depender da ajuda de suas filhas para cuidar de si, da casa e de Manoel.

69 Depoimento de Manoel Batista de Freitas. Lobato, setembro de 2001.

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8. Há na história de vida de seu Manoel várias viagens que são narradas de forma
tal que nos levam à suspeita de que seu significado extrapola sua informação inicial.
Primeiro, está a viagem de Manoel e Olindina de Pedra do Buíque, Pernambuco,
até a Fazenda Moron, na Água Sarandi de Lobato, acontecimento que já foi narrado
no começo do presente capítulo. Mas, em segundo lugar, há uma viagem muito
mais difícil de ser interpretada: a de seu Manoel a Céu Azul, Paraná.
No decorrer das entrevistas realizadas junto aos antigos moradores de Lobato,
houve três viagens que nos chamaram a atenção. Primeiramente, a travessia a cavalo de
Erexim, Rio Grande do Sul, até Campo Mourão, Paraná, do pai de seu Nilo Lampugnoni,
em 1942. Em segundo lugar, a viagem do senhor Henrique Oelke à cidade de São
Paulo, uma verdadeira odisséia de um pai que tenta salvar seu filho doente, experiência
que assume um caráter vital, pois leva à conversão de seu Henrique a uma vida
evangélica ativa. E, por último, em 1970, a mencionada viagem de seu Manoel a Céu
Azul para se encontrar com o dono de um lote que pretendia alugar. Por uma única
vez, no transcurso deste livro, transcreveremos as palavras do próprio seu Manoel para
mostrarmos esse relato tão extenso e tentarmos interpretá-lo:

Não, aí eu entreguei o sítio, aí mudei para aqui aí arrendei, tinha um sítio


lá na Paramirim, perto, vizinho onde era a venda, só que não tinha mais a
venda, tinha acabado a venda, que ninguém sabia quem era o dono. Tava
em mato, tudo aqui já tinha sido derrubado a mais de 15 anos e aquele
mato aqui naquele lugar. Aí eu fui em Maringá e tomei a informação que
na Companhia (CMNP) eu sabia quem era, podia saber quem era a dona do
sítio. Eu tinha conversado com o homem dono do sítio, chamava-se João
Batista, mas quando ele veio no sítio, comprou da companhia, liquidou,
que veio aqui olhar o sítio, quando voltou morreu em casa. Era um homão,
era negro ele. Mas era um homem muito direito. Aí foi embora, ficou aquele
sítio ali sem ninguém saber quem era dono, eu que tinha conversado com
o homem lá na cabeceira do sítio quando ele veio olhar. Aí, eu fui, me
informaram que eu podia achar roteiro para saber onde é que estava a viúva
dona do sítio pela Companhia Melhoramentos Norte do Paraná que era
quem tinha vendido para ele né. Aí eu fui para Maringá, tinha um escritório
da Companhia bem ali atrás de onde tinha a rodoviária velha. Aí eu pulei
do ônibus, fiquei lá na frente do prédio, tava fechado, daí uma meia hora
eu vi chegar um homem alto pegou a chave do bolso e foi abrindo, aí eu
encostei nele, porque para essas coisas toda vida eu fui meio ativo, encostei
nele e falei: ‘o senhor é chefe aqui na Companhia?’, ele falou: ‘é, eu vim
de São Paulo’. Ele era gerente da Companhia. Ele falou; ‘o senhor pretende
alguma coisa?’, eu falei: ‘É, eu vim aqui tomar uma informação, ver se tem
uma informação de uma dona de um sítio que tem em Lobato’. Ele falou:
‘o senhor entra aqui que eu vou ver’. Aí eu dei os dados do sítio, aí ele me
informou tudo certinho. Disse: ‘olha, a dona do sítio ta morando em Vera
Cruz do Oeste, para o senhor ir lá é meio difícil. Eu vou me informar de outra
Companhia que vendeu os terrenos lá para ela em Vera Cruz, quando for
uma hora da tarde o senhor vem aqui que eu posso lhe informar melhor’. Aí
eu fui almoçar, e quando foi uma hora da tarde então eu fui lá e ele me deu
as dicas tudo certinho. E falou: você pega o ônibus daqui para Cascavel,
de Cascavel você pega para Céu Azul, antes de chegar em Céu Azul tem
um arraíalzinho chamado Boa Vista, ali é onde entra para Vera Cruz. E,
dali de Vera Cruz onde ela está ta 8 ou 9 km. O senhor tem que procurar
lá o seu Vitório, agrimensor, que ele mora vizinho com ela. É mais fácil o

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■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

senhor ir pela beira da estrada. Ele mora bem na beira da estrada, tem um
lote de 20 alqueires pegado com ela, só que ela fica para o lado de baixo,
mais para o lado leste e ele mais para o norte. E Aí, eu vim para casa e falei:
‘eu vou lá’. Peguei, e tinha vontade de arrendar o sítio, sítio todo de mato,
terra boa até. Aí fui para lá, posei de Céu Azul, no outro dia bem cedo...
aí quando eu cheguei lá, conversando com um homem, ali era fiscal do
parque nacional ali em Céu Azul. Aí ele já falou que no outro dia me levava
lá e cobrou uma quantia, acho que paguei 70 ou 80 reais para ele me levar
ali na casa dela. Chamava seu Moacir. Aí saímos. Logo chegamos em Vera
Cruz, em Vera Cruz descemos e perguntamos a estrada que saía na casa do
seu Vitório agrimensor já, ali ensinaram, e aí nos descemos, e quando foi
umas 8 horas do dia já estava na casa dela. Aí arrendei o sítio dela por três
anos. O primeiro ano eu pagava 500 reais de arrendamento. No segundo
700, e o terceiro, deixava, ou uma casa ou dava 1000 reais, 1000 contos
para ela. Naquele tempo era [...] Hoje é 1000 reais. Aí eu, abrimos o sitio,
derrubamos o sítio, e no fim de 71 colhi muita mamona, apurei uns 8/10
mil reais naquele tempo. Quando tava terminando a colheita, um dia, levei
o caminhão começou um dor assim no queixo, eu nem me incomodei,
pensei que era por causa de muito balaio de mamona que eu tinha posto
assim de lado nas costas, e pondo saco de mamona para dentro de casa lá,
e eu senti aduela dor no cangote, aí chegou o caminhão para pegar 55 sacos
de mamona que eu tinha mandado eles vinham com caminhão para pegar
dia de sábado, e eu [...] tudo aquela sacaria de mamona na cabeça e punha
em cima do caminhão para Flórida. Até chamava seu Evaristo o dono do
armazém em Flórida. Aí,... de lá, descarregou a mamona, fez a conta, ele
me pagou, quando eu cheguei em casa, olha, não agüentava, aquilo desceu
de uma vez [...]70.

A historiadora americana Ann Farnsworth-Alvear (1995) 71, aconselha àqueles


que trabalham com fontes orais a prestar muita atenção nos elementos discursivos
incompreensíveis em primeira instância. Assim como os silêncios e os esquecimentos
apontam para significados importantes, como os revelados explicitamente pela
narrativa, o elemento incompreensível ou, como em nosso caso, um relato detalhado
e fora das proporções com referência ao conjunto da entrevista também significa
algo importante para nós.
No caso da viagem a Céu Azul, o que surpreende não é a viagem em si,
nem o seu objetivo, mas a importância que lhe dá seu Manoel, o que o faz relatar
minuciosamente o ocorrido. Com efeito, é o único momento em que ele demora
tanto para narrar um acontecimento de importância, pensaríamos, mediana. Por
exemplo, o relato da viagem de Pernambuco ao Paraná, que deveria ser a mais
relevante em uma história de vida marcada pela migração, resolve-se em três linhas,
ao passo que a narrativa da expedição a Céu Azul ocupa 55. Relendo atentamente

70 Depoimento de Manoel Batista de Freitas. Lobato, setembro de 2001.

71 Farnsworth-Alvear (1995) descobriu que, nos relatos sobre uma rainha de beleza das fábricas de tecelagem de Medellín,
Colômbia, na década de 30, a insistência na história de uma “rainha que não era virgem” extrapolava amplamente o
significado desse fato em si, já que afetava toda a disciplina industrial da área na época. Se as lembranças das mulheres
entrevistadas não conseguiram interpretar o alcance desse acontecimento, ao menos as suas falas remarcaram, insisten-
temente, todos os detalhes desse acontecimento histórico que acabou com as eleições de rainhas industriais na cidade.
A idéia geral está no fato de que há um limite entre o que pode e o que não pode ser dito, e que nós, historiadores da
oralidade, devemos procurar os significados ocultos em relatos que não conseguem expressar isso plenamente.

82 −
U M C O T I D I A N O D E T E N TAT I VA S E D E I N C E RT E Z A S ■

toda a história de vida do seu Manoel, poderemos nos aproximar de algumas razões
para tamanha importância dada a essa viagem.
Em primeiro lugar, em 1971, seu Manoel encontra-se em um momento crucial
de sua vida. Como vimos, na década de 1960 ele havia perdido duas propriedades: a
primeira, ainda que só uma promessa, em Paramirim, devido à geada do ano 1963, e
a segunda, em 1966, mais concreta, no aterro da Água Flórida por causa da seca do
ano anterior e por negócios malsucedidos, Nesse sentido, o arrendamento dessa terra
virgem em Paramirim poderia parecer uma tábua de salvação. O fato de essa terra
estar abandonada e improdutiva e de poder ser arrendada por um preço mais que
razoável fazia ainda mais sedutora a operação. De fato, como vimos no relato, seu
Manoel conseguiu arrendar a gleba em condições bastante vantajosas. Em segundo
lugar, no caso de êxito, essa viagem possibilitava a permanência na Água Paramirim,
um lugar conhecido, onde a família já tinha morado e que seguramente tinha deixado
algumas lembranças boas. Também não devemos esquecer que o relato de Manoel
é uma construção a posteriori. Visto desde o presente, essa viagem foi o início do
fim, a última experiência de Manoel (para aquela época, Dona Olindina e seus filhos
já moravam em Lobato) com a lavoura agrícola e a última esperança de realizar a
sua utopia de agricultor abastado, morador em uma fazendola de café. Por último,
e também a partir de um olhar desde o presente, esse lote de Paramirim foi o lugar
onde ele adoeceu, fato que acabou finalmente com a sua persistência em continuar
trabalhando na zona rural e que o obrigou a se radicar definitivamente na cidade e a
exercer os ofícios urbanos de pedreiro e de marceneiro. Assim ele se expressa:

Fiquei mais 10 dias. para encurtar a história, o dinheiro que eu tinha livrado
na colheita da mamona gastei todinho com a doença. Aí, sarei, fiquei trinta
dias sem poder trabalhar, ir lá para o sítio, e tinha que entregar o sítio, aí
quando foi no dia primeiro de setembro, eu tava mais ou menos bom, aí
peguei o carrinho, arriei o cavalo e fui lá para o sítio aí acabei de colher
as mamonas que eu tinha no sítio, e eu já entreguei o sítio. Ela já tinha
vindo aqui já tinha vendido o sítio para o Tonico doceiro, o finado Tonico
doceiro. E o finado Tonico doceiro tinha vendido para o Getúlio que tinha
aquela oficina mecânica ali. Aí dia 30 de setembro de 71 eu entreguei o
sítio para o Getúlio e vim para cá. Aí falei: ‘olha, eu não quero mais mexer
com sítio que já sei que eu não tenho sorte com sítio não’. Aí, comecei a
ingressar no serviço de pedreiro e carpinteiro que já tinha um começo, já
sabia mais ou menos né, aí trabalhei até o dia que me deu esse problema
na vista72.

Nessa última parte do relato, parece-nos fundamental a frase “eu não tenho sorte
com sítio, não”. Na verdade, em 1971 estamos já em pleno processo de reconversão
econômica, de concentração e de tecnificação da agricultura. Pessoas trabalhadoras
como seu Manoel, porém sem capital ou acesso a créditos, não podiam continuar
sonhando com utopias agrárias. O fato de ter de entregar a terra em Paramirim, mais
que uma questão de sorte, era um sinal dos tempos [...] Como seu Manoel, outros

72 Depoimento de Manoel Batista de Freitas. Lobato, setembro de 2001.

− 83
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

milhares de lobatenses abandonaram as Águas e fazendas do Município para migrar


para o Oeste, morar nas periferias das grandes cidades ou, simplesmente, radicar-se
na própria cidade de Lobato.
Ironicamente, o fim da utopia agrária de seu Manoel inaugurou um período de
paz e de tranqüilidade. Ele tinha seu emprego e podia construir a sua casa; dona
Olindina estava conquistando a sua identidade própria como mulher e trabalhadora
e os filhos tinham em Lobato melhores oportunidades para estudar e trabalhar,
diferentemente de quando moraram nas Águas. Como dissemos anteriormente, as
utopias, em geral, e as migrações, em particular, costumam carregar grande dose
de infelicidade. A renúncia à utopia pode inaugurar a era de desfrute do presente.
Esse, ao menos, parece ter sido o caso da história de vida de seu Manoel e de dona
Olindina. A viagem que começou em Pedra do Buíque, Pernambuco, em 1950,
acabou na cidade de Lobato - atrás da igreja -, em 1971. Nessa viagem de 21 anos,
nasceram 7 filhos, percorreram as estradas que iam da Fazenda Moron às Águas
Potiguara, Paramirim, Colorado (aterro Flórida) e, novamente, Paramirim. A casa de
Lobato acabou sendo o porto de chegada, o fim da viagem.

9. As experiências aqui narradas são uma ínfima parte dos momentos e dos
acontecimentos vividos nas Águas de Lobato. Concluímos que os que se dirigiram
para a zona rural do município sabiam, ao menos em parte, que estavam se
dirigindo para um local em construção. Não se davam conta, porém, da significativa
importância histórica de sua participação nesse processo construtor. As relações
sociais aqui descritas - negociações para a compra de uma propriedade, formas
parentais de relacionamentos, mutirões, interminável recomeçar após uma geada,
casamento, nascimento de um filho, lazer, fé, adaptação a um novo clima e,
principalmente, ressignificação da cultura conhecida em meio a um ambiente
divergente - são elementos que, em conjunto, surgem na narrativa daqueles que
viveram nas Águas e que dão conta da construção social da qual estamos falando.
É, pois, com vistas a essa rede de relações sociais que percebemos as
estratégias utilizadas pelos moradores para construir um espaço social em uma
região, ao menos naquele momento, praticamente desabitada ou destituída de outra
forma de sociedade73. Os moradores das Águas são os empreendedores daquela
transformação. Se eles o fizeram conscientes desse poder de transformação e de
implantação de uma sociedade, não deixaram transparecer em seus relatos. Na
verdade, suas narrativas evidenciam que buscavam atender às necessidades imediatas
de sustento familiar. A construção de núcleos formados por escolas, vendas, capelas
e campinhos tornou-se mais uma forma de organização desses núcleos através de

73 Embora tenham sido encontrados vestígios de que grupos indígenas tenham habitado as margens das Águas de Loba-
to - através da ocorrência de sítios arqueológicos e de cultura material indígena – por parte da equipe do Laboratório
Interdisciplinar da Universidade Estadual de Maringá (LAEE/UEM), tal discussão não foi incorporada no texto, pois os
dados se encontram em fase de análise, de mapeamento e de sistematização para determinar quais teriam sido os povos
que lá viveram.

84 −
U M C O T I D I A N O D E T E N TAT I VA S E D E I N C E RT E Z A S ■

construções consideradas básicas do que realmente a implantação de um modelo


de sociedade capitalista na região.
Em maior ou menor grau, ora enfatizando características econômico-capitalistas,
ora elementos relativos à constituição social do grupo, os ex-moradores rurais
revelaram os vários tempos que foram se implantando na sociedade das Águas.
Por meio de sua história, constatamos que aquela sociedade se formou mediante
um processo empreendedor econômico baseado na cafeicultura e, principalmente,
mediante um processo construtor com base na formação de um espaço social, em
cujo interior valorizava-se a relação social entre os componentes de uma família ou
de um grupo social.
Vejamos o raciocínio: Durval, Iracema e seus familiares, bem como Olindina
e Manoel, dirigem-se para a região na companhia de outros conhecidos, inclusive
parentes consangüíneos. Durval se estabelece na fazenda adquirida pelo tio José
Sandin, e Iracema chega ao então Patrimônio Lobato, juntamente com o tio Sílvio
Meschiari e outras famílias conhecidas da região de São Martinho – perto de
Rolândia –, onde todos viviam e trabalhavam em uma fazenda de café. Olindina e
Manoel, por sua vez, fixam-se em uma fazenda com outros migrantes nordestinos,
um deles irmão de Olindina.
Posteriormente a esses acontecimentos, inicia-se a transformação dos sítios e
das fazendas em locais capazes de atender às mais diversas necessidades humanas,
como a construção de um poço, o feitio de uma horta, a criação de porcos e de
galinhas, tudo acontecendo ao mesmo tempo em que os cafezais eram plantados e
cultivados. Em 1952, na Água Araçá, onde viveram Iracema e Durval, é construída
a primeira escolinha rural; na Moron, isso ocorreu alguns anos depois, em 1955.
Em ambas as Águas, a Moron se localizava na Água Sarandi, e as propriedades dos
pais de Iracema e da família de Durval, na Água Araçá, havia uma capelinha e uma
venda; na Moron, como dissemos, havia até mesmo um açougue. Embora tenha
havido um campinho de futebol na Fazenda Santa Maria, também na Araçá, não
há narrativas explícitas sobre a existência específica desses espaços de diversão na
Moron ou na Fazenda São José.
Que universo era aquele da Fazenda Moron e de todo perímetro rural capaz
de fazer que um ser humano, ou um grupo de seres humanos, ficasse até dois anos
sem se dirigir à cidade, conforme relatou Olindina? Com certeza, um universo no
qual interagiam vários interesses comuns e cuja satisfação era, ao menos na medida
do possível, suprida pelo grupo social ali estabelecido e pelo meio físico por eles
criado. Vislumbra-se, dessa forma, um ambiente em que a autonomia criada pelos
moradores nas Águas e fazendas só era desestruturada por acontecimentos cuja
grandeza estivesse inscrita fora das possibilidades sociais e espaciais por eles
criadas. Por exemplo, o caso de uma doença, cuja cura não estivesse mais ao
alcance local e que rompesse com a autonomia absoluta das Águas. Surgem então,
nos relatos, características que permitem visualizar o caráter relativo da autonomia
existente no local sem, no entanto, deporem contra a intenção de transformar
− 85
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

aqueles espaços por meio da criação de pontos sociais estratégicos que buscassem
suprir, sobretudo, necessidades imediatas e menos elaboradas de vivência social,
sem que os moradores precisassem se locomover constantemente à cidade ou a
outras localidades.

86 −
4

QUANDO REINAVA SUA


MAJESTADE, O CAFÉ:
a (re)ocupação espacial das Águas

1. Do conjunto das informações coletadas nas entrevistas, parece-nos que os


primeiros moradores dividem a sua história de vida – a qual coincide com a história
local e a das Águas - em três etapas diferenciadas:
- a chegada ao lugar em que tudo era mato, o que se constituía no grande
desafio aos homens e às mulheres; compreende os anos de 1948 a 1956,
aproximadamente.
- o auge da lavoura do café, que coincide com o desenvolvimento da vida
social nas Águas. Corresponde ao tempo da fartura, à época de ouro, ao
trunfo do homem sobre a floresta; é o tempo em que os filhos eram pequenos
e iam à escola; o tempo dos bailes e do futebol nas Águas; o tempo das festas
nos clubes e das capelinhas da igreja matriz lotadas; o tempo em que, em
Lobato, não havia, ou havia poucos crimes e todos formavam uma grande
família. Essa fase começa a declinar em forma progressiva, a partir de meados
de 1969.
- finalmente, e a partir de meados de 1969, a história de Lobato é vista como
decadente. Por causa das geadas e da política de erradicação, começa a
desaparecer o café e as famílias de agricultores continuam a sua marcha para
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

o Oeste. Lobato passa de 10.000 habitantes em 1960 ou, talvez, de 17.080


em 1968, a 4.687 em 197574.

Para poder captar a construção de sentido nessas falas de homens e de


mulheres, consideraremos as possibilidades de visualizar uma Gestalt comunitária
dos moradores das Águas de Lobato e a periodização do processo histórico em
vários tempos: os da gênese, do auge, do êxodo rural e da reconversão econômica
e social.

2. Das pessoas entrevistadas, 13 homens e 6 mulheres, todos nascidos entre 1924 e


1941, ou seja, com idades entre 59 e 76 anos, 4 nasceram em Minas Gerais, 4 em
Pernambuco, 3 em São Paulo, 3 em Bahia, 2 no Japão, 1 no Rio Grande do Norte e
1 em Rio Grande do Sul. Elas chegaram a Lobato entre 1949 e 1957 e, dentre elas,
10 vieram do estado de São Paulo, ou seja, além dos 3 paulistas de nascimento,
outros 7 tiveram uma permanência mais ou menos longa nesse Estado, antes da sua
chegada ao Norte de Paraná.
Se o tamanho da amostra não é muito decisivo, ao menos questiona aquela
idéia enraizada de que a (grande) maioria dos que povoaram o Norte de Paraná era
oriunda de São Paulo ou de São Paulo e de Minas Gerais. Os Livros de Matrículas
das Escolas Rurais de Lobato mostram que o percentual de nordestinos que vivia
na zona rural era muito importante. Esses trabalhadores constituíam a massa de
não-proprietários, quer dizer, de arrendatários e de assalariados. Esse fato não é
destacado nos livros de história acadêmica regional, os quais se caracterizam, em
geral, pelo objetivismo, pelo economicismo e pelo determinismo próprios de uma
visão estruturalista e excludente. Voltando, pois, aos dados dos entrevistados,
dentre aqueles que não fizeram escala em São Paulo, 3 viveram durante um tempo
em Astorga, e outro em Assaí, de forma que somente 10 depoentes chegaram
diretamente do seu Estado de origem a Lobato, dado que evidencia que nem toda
a migração se realizava por meio de etapas intermédias. Ao menos em Lobato,
deparamo-nos com a migração direta e com a corrente migratória que fazia
escala em São Paulo ou na região do Paraná Novo da colonização imediatamente
anterior.

3. Os entrevistados, ao serem indagados sobre qual era a primeira impressão ao


chegarem a Lobato, em 1949, 50, 52 ou 54, muitas vezes responderam que foram a
presença do mato, as poucas casinhas de tábuas, os animais transitando livremente
pelo Patrimônio e, ainda, a condição das estradas, que tendia a isolar Lobato das
diferentes Águas:

74 Os dados de 1968 constam do Livro CMNP (1977), ao passo que os números para 1975 foram extraídos do IBGE/Censos
Demográficos- 1975.

88 −
Q U A N D O R E I N AVA S U A M A J E S TA D E , O C A F É ■

Quando nós chegamos a Lobato tinha apenas duas casas [...] a nossa era a
terceira (Alice Cafofo)75.
Era mato ainda, só tinha duas casas. Tinha muito mato, muito forte. (Satoru
Inoue)76.
Quando cheguei a Lobato, no 52 mais ou menos, era uma cidadezinha
pequena, era um distrito e existia mata, muito mato, depois foi começando
a abrir (Raimundo Saraiva Peixoto)77.
Era aquela linha São Paulo, Londrina, Arapongas. E Lobato era o fim da
linha [...] Era só mato, umas quatro, cinco casinhas de madeira. (Valdir
Cotrim Ribeiro)78.

A natureza amedrontava e apenas em uma ocasião o pai de um dos entrevistados,


o senhor Zailson Lemos79, expressou sua admiração pela beleza da selva virgem:

Meu pai chegou em 51. Ele conta que chegando aqui ficou impressionado
com a beleza das matas [...]. A impressão dele foi essa. Quando aqui
chegou, tinha uma área, 30 alqueires, 20, e só tinha as 4 casas. Animais
transitavam assim, que era mato.

Aliás, vários pioneiros confirmam a presença de animais selvagens, tais como:


queixadas, pacas, antas, capivaras, tatus, veados e cobras. Alguns negaram a presença
de onças, seguramente o animal mais feroz da floresta, e outros responderam que
havia poucas. Chamou-nos a atenção o fato de poucos dos depoentes conhecerem
bem o mato por dentro, visto que o desmatamento foi feito em grande parte por
quadrilhas de peões comandadas por um gato. Esses peões, nordestinos em sua
maioria, formavam a classe perigosa do Município nos primeiros tempos e, às vezes,
armavam algumas encrencas nos bailes nas Águas. A história desses jacus ainda
está para ser construída devido às características já apontadas da nossa história
regional80.
Nem todos participaram efetivamente da derrubada do mato, na realidade, só
Durval, Manuel e Olírio. Outros, como João, trabalharam de motorista de caminhão,
levando toras de madeira às serrarias. Várias pessoas comentaram os processos da
derrubada e da queimada:

75 Depoimento de Alice Cafofo. Lobato, novembro de 2000.

76 Depoimento de Satoru Inoue. Lobato, outubro de 2000.

77 Depoimento de Raimundo Saraiva Peixoto. Lobato, outubro de 2000.

78 Depoimento de Valdir Cotrim Ribeiro. Lobato, março de 2001.

79 Depoimento de Zailson Lemos. Lobato, outubro de 2000.

80 Um livro de interesse que tem como tema esses trabalhadores é o de Vieira (1999) Jacus e Picaretas (A história de uma
colonização). A obra é uma mistura de memórias do autor e de um romance social. Tem o mérito de adotar o ponto de
vista desses trabalhadores que ainda não tiveram um lugar na historiografia da região.

− 89
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Tirava as madeira, as madeira boa, as madeira de lei, as madeiras aproveitava


e o resto derrubava e metia fogo81.
Ia lá um pessoal, faziam aquela roçada. Depois ficavam as árvores mais
grandes e mais grossas e as derrubavam a machado. Depois queimava, a
queima, depois ia eles... iam fazer lavoura de café, fazia coviação, coviava,
fazia as covas, plantava café, colhia madeira, aquele madeiramento
assim82.
O dia todo em roda do toco para arrancar um. Tinha toco que levava dois
dias pra arrancar. [...] No enxadão, tudo no enxadão. Juntava vinte, trinta
homens e tudo no enxadão. Iam outros com machado cortando raiz e
outros, onde não podia ir o enxadão ia na raça e nos conseguimos abrir83.

Na realidade, essa última descrição não se refere à derrubada do mato


propriamente dita, mas a abertura da estrada para Colorado, empreitada que
envolveu a grande parte da comunidade e se cristalizou no imaginário das pessoas
e nas imagens fotográficas. Foi um trabalho de mutirão que tirava Lobato da sua
condição de fim de linha, de fim da picada.
A memória sobre as primeiras casas – tanto do Patrimônio como das Águas -
geralmente não é muito boa e forma parte do mito da origem que coincide com
o mito do sacrifício: “Casinhas assim toscas. Às vezes até, não eram de madeira
lavrada eram de [...] tipo no oeste americano” descreveria o farmacêutico Valdir.
Fora a precariedade dessas primeiras casas, dá para perceber o preconceito comum
à região contra as casas de madeira em geral. Parecia que a madeira representava a
barbárie, a floresta os bichos do mato [...] Ao contrário, a alvenaria se identifica com
a civilização: tijolos, cimento e telhas são elementos mais humanos. Até hoje - e
não somente em Lobato -, nas Águas e na cidade, as pessoas de posses moram em
casa de alvenaria e as casinhas de madeira quase sempre são as moradas dos pobres.
Também fica registrado na memória das Águas o estado das primeiras estradas,
que dificultava o comércio e o transporte, muitas vezes, isolava a comunidade e,
em caso de doentes em estado grave, punha em perigo a vida dos habitantes. A
questão das doenças, nesses primeiros anos, é assim relatada pelo farmacêutico
Valdir Cotrim Ribeiro:

Por falta de saneamento e através das crianças ficarem exposta a terra,


pouca educação das mães da época, então essas crianças [...] pegavam
muita verminose, dava muita disenteria, vômito e havia muitas infecções
por mosquitos, não graves, ferimentos. Mosquito picava e coçava e já em
contato com a terra [...]84.

81 Depoimento de João do Soutto Mello. Lobato, outubro de 2000.

82 Depoimento de Raimundo Saraiva Peixoto. Lobato, outubro de 2000.

83 Depoimento de Olírio Xavier Cotrim. Lobato, outubro de 2000.

84 Depoimento de Valdir Cotrim Ribeiro. Lobato, março de 2001.

90 −
Q U A N D O R E I N AVA S U A M A J E S TA D E , O C A F É ■

Às vezes, o mato da zona rural é associado ao medo das doenças e à escuridão,


tal como aparece na fala de Nair Marques de Oliveira, mãe de oito filhos e que
residiu na Água Araçá durante o período de implantação do Município:

Quando cheguei a Lobato, a impressão que eu achei foi muito ruim. Porque
a gente foi morar no sítio [...] tinha medo do sítio. Medo das crianças ficarem
doentes. Mais difícil era médico. Até também não tinha condução para ir ao
médico. O medo sabe? Aí se a gente fica angustiada porque vai escurecer.
[...] Porque vai escurecer e não tinha luz. Você tinha que ascender um
candeeiro a óleo ou então a lamparina85.

Fora as doenças, eram comuns os acidentes de trabalho, decorrentes das


atividades na zona rural. Valdir lembra que

Havia muito acidente, a madeira caia em cima da pessoa, matava aleijava.


[...] Acidentes de carroças, crianças caírem. Cavalos, que havia muitos
cavalos, a pessoa cair do cavalo e as carrocinhas chegavam assim, aos
sábados a fazer compra [...] Então acontecia que as e as pessoas que não
tinham noção das coisas pegavam e soltavam foguetes. Para quê? Saíam
aquelas carroças em disparada e pegavam crianças [...] Havia muito
acidente na época desse tipo86.

Quanto à presença dos índios na região, já registramos que não houve


depoimentos espontâneos que a comprovassem, o que não significa que os primeiros
habitantes da região não tivessem morado ali até 1948.
Finalmente, nem todos que chegavam a Lobato estavam em condições de
comprar um lote da Companhia de Terra ou dos picaretas intermediários. Dos 13
homens entrevistados, só 7 chegaram a comprar um lote de terra, casos de Manoel
e de Nilo, tardiamente, e nenhum deles está registrado na documentação da CMNP
como comprador direto. Entre os 7 entrevistados que chegaram a ser proprietários,
4 possuíam capital inicial e 3 dos 4 trabalhadores rurais (todos nordestinos) nunca
chegaram a ser proprietários87.

4. Chama-nos a atenção a rapidez com que foram vendidos os lotes rurais. Com
efeito, entre 29 de abril de 1948 e 26 de novembro de 1949, foram vendidos 355
lotes rurais sobre um total de 464, o que representava 78% de todo o território
vendido (direta ou indiretamente) pela Companhia Melhoramentos Norte do Paraná
(1979). De fato, o povoamento da zona rural foi bem mais lento que a venda dos

85 Depoimento de Nair Marques de Oliveira. Lobato, dezembro de 2000.

86 Depoimento de Valdir Cotrim Ribeiro. Lobato, março de 2001.

87 O único caso de um trabalhador rural que chegou a ser proprietário é o de Manoel que, como foi visto no capítulo
anterior, perdeu sua pequena propriedade.

− 91
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

seus lotes, evidenciando que muitos compravam terras para especular e jamais
pensaram em se radicar em Lobato. Isso fez que os novos habitantes vindos depois
de 1950, verdadeiros agricultores, tivessem de pagar um ágil considerável para
adquirir seus lotes rurais.
Com referência aos lotes urbanos, a sua venda transcorreu de uma forma
bem mais lenta que a dos lotes rurais. Parece-nos que a especulação dos lotes
urbanos, naquela época, era bem menos interessante do que a especulação da
terra destinada à agricultura. Se em 1948 foram vendidos 252 lotes rurais, ou
seja, 54,31% do total, quando abriram a venda de lotes urbanos foram vendidos
somente 48 no primeiro ano (1950), quer dizer, 9,34% do total. A venda de lotes
urbanos foi constante até 1972, com alguns picos entre 1950 e 1952 e entre
1960 e 1968 (COMPANHIA MELHORAMENTOS NORTE DO PARANÁ, 1979).
Esses dados explicam, parcialmente, o porquê de as Águas serem povoadas
muito mais rapidamente do que o Patrimônio e também nos dão pistas sobre a
existência da autonomia relativa das grandes Águas. Dentre as datas vendidas
na cidade, três quarteirões inteiros foram adquiridos pela Prefeitura de Lobato
para a construção do cemitério e de uma praça pública (a futura praça Monteiro
Lobato). Nessa praça se localizariam a prefeitura e a igreja. Como veremos em
momento oportuno, em 1954 a primeira capela de madeira foi construída sobre
a praça da cidade.
As primeiras casas foram construídas não antes da segunda metade de 1950, já
que só em outubro daquele ano seria aberto o Patrimônio. O Sr. Durval Colontonio 88
esclarece:

Foi em 1950. Nós entramos em julho de 1950. Só que quando nós entramos
aqui em Lobato era puro mato, a cidade não tinha nada de [...] era tudo
mata. Só tinha a primeira rua que era a Fernão Dias na entrada de Lobato,
de Flórida para Lobato, tinha a primeira rua aberta e o resto era picada com
balizas aonde ia sair as outras ruas. E em agosto, ah não!, em julho começou
também a derrubada do mato. Queimaram o mato mais queimaram muito
mal. Quer dizer, a madeira não estava seca não queimou nada. E aí foi
loteado as datas e a Companhia veio e cortou as datas em cima daquela
pauleira e os proprietários das datas ele tinha que vir aqui, limpar a data e
construir a sua casa.

Ao mesmo tempo em que acontecia a abertura do Patrimônio, estamos falando


em 1950, Lobato conseguiu se comunicar com o mundo exterior mediante uma
linha de ônibus que fazia diariamente o percurso de Arapongas – Lobato, Lobato –
Arapongas (via Astorga). Vejamos, novamente, o que o Sr. Durval esclarece sobre
o assunto:

88 Depoimento de Durval Colontonio. Lobato, junho de 2000.

92 −
Q U A N D O R E I N AVA S U A M A J E S TA D E , O C A F É ■

Assim que derrubaram o mato, queimaram, começou a surgir as primeiras


casas. É, mais antes de surgir as primeiras casas, eu quero falar sobre o
ônibus. Lobato não tinha assim casa para o motorista do ônibus se instalar.
Então ele ia até a Fazenda Moron e voltava para Arapongas. E a Fazenda
formou uma comissão, foi a Arapongas e conseguiu [...] uma casa que
estava desocupada na fazenda para o motorista morar. Então ele saía cedo
para Arapongas e voltava à tarde. Assim que surgiu as primeiras casas aqui
em Lobato então o motorista mudou aqui para a cidade. Mas a primeira
residência dele foi na fazenda89.

É interessante como os entrevistados, em suas crônicas locais, consideram


muito mais importante saber quem foram os primeiros povoadores de uma cidade
do que saber quem foram os primeiros moradores da zona rural, no nosso caso, das
Águas. Lembremos que tais informações são de pouca valia para a história social,
a não ser que esse tipo de dado cronológico contribua de alguma forma para a
interpretação dos fatos.
Destacamos que as primeiras construções urbanas eram estabelecimentos
comerciais destinados a abastecer os primeiros habitantes das Águas de Lobato, em
especial aqueles sítios e fazendas próximas ao Patrimônio. A professora Alice Cafofo
sustenta que o estabelecimento do seu pai, Thomaz Francisco, “Chico” Cafofo, era
a terceira construção da cidade e que as primeiras pertenciam a Carlos Bronhara e
a um tal “Salvador”, de cujo sobrenome não se lembra, mas que deve ser Salvador
de Souza Porto, que comprou uma data em 29 de agosto de 1950, aliás, o mesmo
dia em que o pai de Alice comprou o seu lote. Conferidas as datas em que foram
vendidos os lotes urbanos, o primeiro comprador foi Carlos Bronhara (21 de agosto
de 1950) e os segundos, os senhores Cafofo e Souza Porto, em 29 de agosto, ou
seja, oito dias depois de Bronhara (COMPANHIA MELHORAMENTOS NORTE DO
PARANA, 1979)90.
Essas foram as únicas vendas de agosto de 1950. Em setembro, todavia, foram
vendidas mais duas datas aos pernambucanos João Tenório Sobrinho e Adolfo
Cordeiro Vaz, ambos da Fazenda Moron. Em outubro, houve também duas vendas:
uma a Sebastião Veiga e Silva e outra a Hermínio Esper. No mês de novembro,
efetuaram-se 16 vendas e, pela sua atividade posterior, destaca-se o nome de Joaquim
Francisco Pinto (Joaquim Mineiro), o segundo prefeito do Município (1960-1964).
Finalmente, em dezembro, deparamo-nos com treze compradores entre os quais se
encontrava Samuel Martins Delgado, tio da atual prefeita de Lobato, Tânia Costa
Martins, e dono da primeira linha de ônibus que unia Lobato a Arapongas.
Esses dados só interessam aos habitantes de Lobato, a não ser que esses registros
não coincidam com a mini-história oficial do Município, tal como aparece na página
da Internet (ASSOCIAÇÃO DOS MUNICÍPIOS DO SETENTRIÃO PARANAENSE,
2008), no livro Municípios de Paraná, de João Carlos Vicente Ferreira (1996), e

89 Depoimento de Durval Colontonio. Lobato, junho de 2000.

90 Ver também o depoimento de Alice Cafofo.

− 93
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

no livro organizado por Faissal El-Khalib, em 1969. Todos esses escritos, por sua
vez, fundamentam-se (melhor seria dizer: copiam) em um texto de Jurandir Pires
Ferreira, de 1959, em que se lê: “Os primeiros moradores da localidade onde hoje
se encontra o município de Lobato estabeleceram-se ali no ano de 1948. Entre esses
pioneiros figuram os Srs. Ildefonso Martins Portelinha, Haride Cavalete e Oscar
Cotrin Ribeiro” (FERREIRA, 1959, p. 304).
Exatamente dez anos depois, em 1969, o livro Municípios de Paraná, na
página dedicada à localidade comenta: Lobato foi fundado em 1948 e, entre
seus primeiros moradores, podemos citar os senhores Oscar Coutrin Ribeiro,
Ildefonso Martins Portelinha e Haride Cavalete (EL-KHALIB, 1969, p. 163). Como
mencionamos, a mesma frase se repete, com pequenas variantes, no livro de
João Carlos Vicente Pereira, de 1996, e no site do Associação dos Municípios do
Setentrião Paranaense - Amusep, dos anos 2000 e 2003. (repete-se, inclusive, o
mesmo erro ortográfico ao citar o nome de Cotrim Ribeiro). É de destacar que a
professora Alice Cafofo, em seu depoimento oral, já nos havia alertado para essa
história bastante arbitrária:

Quando nós chegamos aqui de mudança aqui em Lobato tinha duas casas,
duas famílias morando. A nossa foi a terceira casa. E essas duas pessoas
que foram os primeiros moradores, o nome deles não aparece como os
fundadores de Lobato. Aparecem outras pessoas que vieram depois, e que
eram envolvidas na política então [...]91.

Ao ser questionada sobre o nome desses primeiros moradores, a professora


respondeu; “Carlos Bronhara e Salvador, mas não sei o sobrenome. Os dois tinham
casa de comércio”. E ela tem razão: em 1959, “as pessoas envolvidas na política”
eram as mesmas que estavam na prefeitura, pois Martins Portelinha era o prefeito e
Cotrim Ribeiro era vereador.
O farmacêutico baiano Oscar Cotrim Ribeiro adquiriu sua data em 11 de
setembro de 1951, ou seja, no ano da sua chegada a Lobato, e Portelinha Martins,
somente em 2 de dezembro de 1958, quer dizer, quando já era prefeito fazia
dois anos. Nenhum dos dois tinha comprado lotes rurais. O terceiro pioneiro, o
Sr. Haride Cavalete, não tem registros como comprador de lote rural ou de data
urbana junto à Companhia, mas, em 1961, consta como dono de uma residência
na primeira rua aberta em Lobato, chamada, naquela época, de Arapongas. Não
sabemos quais foram os motivos para que seu nome fosse registrado como pioneiro,
nessa mini-história oficial de Lobato, que começou nove anos depois da chegada
dos primeiros povoadores ao patrimônio.
O Sr. Durval Colontonio discorda, parcialmente, do relato da professora Alice
Cafofo, esclarecendo que a família Cafofo chegou em 1950 e não no ano anterior

91 Depoimento de Alice Cafofo. Lobato, novembro de 2000.

94 −
Q U A N D O R E I N AVA S U A M A J E S TA D E , O C A F É ■

e substitui o nome de Salvador pelos nomes de três irmãos de sobrenome Martins,


os quais teriam começado o primeiro comércio da cidade. Conferida a fonte da
Companhia Melhoramentos, comprovamos que, em 12 de janeiro de 1951, Lyrio
Martins, Adelino Martins e Álvaro Martins compraram uma data de 600m cada
um. Em todo caso, as famílias Bronhara, Souza Porto, Cafofo e os irmãos Martins
construíram os primeiros comércios em Lobato, provavelmente não antes de finais
de 1950 ou início de 1951, visto que o Patrimônio foi definitivamente queimado
em outubro de 1950.

5. Há ainda uma questão pendente entre pioneirismo urbano e pioneirismo rural.


Ora, em Lobato os primeiros proprietários urbanos foram as pessoas mencionadas,
mas, na zona rural, em fins de 1950, já havia uma população importante que morava
em algumas Águas e fazendas, tais como a Fazenda Moron e a Água Araçá. Como
já vimos, em julho de 1950, o irmão de Dona Olindina de Freitas, Adolfo Cordeiro
Vaz, era o administrador da Fazenda Moron e já havia derrubado o mato e plantado
os primeiros cafezais. Da mesma forma, quando a família de Antonio Colontonio, o
pai de Durval, chegou à Fazenda Bertucci, na Água Araçá, já havia ali uma lavoura
de 43.000 pés de café “orelha de onça”, “dentro da cova e em meio da quiçaça”,
tal como foi relatado no seu depoimento.
Também vimos como o senhor Durval se recorda de alguns moradores da
Água Araçá, tais como Joaquim Barbosa, Joaquim Bernardes e outros. Segundo ele,
bem poderiam ter chegado a essa Água na época em que compraram os seus lotes,
quer dizer, a partir de julho de 1948. Consultadas as fichas de vendas de lotes
rurais, efetivamente os senhores Joaquim Barbosa Sobrinho e Joaquim Bernardes
Alves, além de Lucelino Hilário Barbosa, José Manoel Batista e Gercina Barboza,
haviam comprado lotes na Água Araçá.
Como já dissemos, tudo isso, aparentemente, não é de grande interesse para
a historiografia acadêmica, a não ser para a memória coletiva local ou, talvez, para
entender os mecanismos com os quais se constrói esse tipo de memória local.
Afinal, o que significa ser o primeiro a chegar, o pioneiro ou, tal como se considera
o senhor Durval e que nos resulta mais simpático, o fundador? Que representa
isso no imaginário coletivo de uma pequena comunidade rural dividida em um
Patrimônio e várias Águas e Fazendas? Trata-se dos primeiros que povoaram as
Águas ou dos primeiros que levantaram um comércio no Patrimônio de Lobato? Ou
a intenção é designar, com esse termo, os pró-homens, os demiurgos que forjaram
a cidade e as suas instituições políticas? Trata-se simplesmente dos primeiros, dos
dirigentes ou dos heróis desbravadores do sertão? A julgar pelos nomes das ruas de
Lobato, os moradores da cidade envolvidos em política eram mais pioneiros do que
os primeiros habitantes das Águas.
As fontes orais e os escritos de Lobato mostram que o termo pioneiro é
polissêmico: Alice e Durval postulam que estiveram entre os primeiros que
chegaram à localidade, ao passo que Durval (entre outros) dá muita importância
− 95
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

ao fato de Portelinha ter sido o primeiro prefeito. Para a história oficial que começa
imediatamente após a ocupação, o pioneiro é a pessoa política e socialmente
relevante. Assim, já em 1959, Martins Portelinha e Cotrim Ribeiro se auto-apresentam
como “pioneiros” ou “primeiros moradores”. Também como já se mencionou, os
nomes de pioneiros, com os quais se nomeiam as ruas de Lobato, homenageiam as
figuras importantes da política urbana lobatense - ainda que não necessariamente
os mais ricos - e a data de chegada se perde em uma nebulosa, que vai de 1948 a
1956.
Acreditamos ter encontrado em Lobato dois significados para o que Nelson
Tomazi define como pioneiro. A primeira é o indivíduo que – como em Londrina
ou Maringá, por exemplo – se auto-apresentasse como pioneiro, na pessoa de
Satoru Inoue, da Água Grajaú. Como já mencionamos, o Sr. Durval usa o termo
“fundador”, só que esses fundadores não são os mais ricos da localidade, tais
como os irmãos Ferraz, donos da Fazenda Remanso, da Barra e Três Marias
ou José Moron, residentes em Marília 92, no estado de São Paulo, da Fazenda
homônima, ou a família Tanaka, dona de terras e de indústrias, e sim aqueles
que dominavam, de fato, a política local e que eram comerciantes, profissionais
liberais e, inclusive, agricultores-vereadores representantes dos interesses das
Águas.
Se para o professor Tomazi o pioneiro da região é um dirigente da Companhia
de Terras ou um empresário agrícola ou urbano, para João Laércio Lopes Leal
é qualquer morador que chegou à região nos primeiros tempos e que possui a
capacidade de relatar os acontecimentos do passado. Pioneiro é a pessoa que conta
histórias, define Lopes Leal. Essa visão não carece de interesse para a micro-história
local, ainda que possamos perguntar se, nesse caso, o arquétipo aproxima-se de
uma criatura inventada pelo próprio historiador93. A pesquisa em Lobato, todavia,
demonstra que os pioneiros ou, melhor, os fundadores, como quer o Sr. Durval, são
escolhidos entre os que chegaram nos primeiros oito anos e que, em sua maioria,
formaram parte da elite política e social da localidade; mas geralmente não inclui a
elite econômica. Ultimamente, acreditamos que essa antiga elite política virou uma
elite depositária da memória oficial do Município, uma espécie de reserva tanto
ética como histórica da região.

6. Ora, de onde vem o nome Lobato? O único dado que temos é que a denominação
constituiu uma homenagem ao escritor de Taubaté, estado de São Paulo, Monteiro
Lobato (1882 – 1948), falecido no ano de fundação do Município. O resto é
especulação. Segundo a obra já citada, O Paraná e seus municípios, de 1996, foi
o engenheiro russo Wladimir Babkov, agrimensor da Companhia, quem nomeou

92 É de notar que os irmãos Ferraz sempre estiveram mais ligados ao município de Colorado que ao de Lobato. José Moron,
originário de Marília, SP, também nunca chegou a residir no Município. Dessa forma, a sua influência social e política
não tem muito destaque.

93 João Laércio Lopes Leal, Maringá, 2000, naquela época Secretário de Cultura de Maringá.

96 −
Q U A N D O R E I N AVA S U A M A J E S TA D E , O C A F É ■

a cidade sob o topônimo de Lobato. Entretanto, na Enciclopédia dos Municípios


Brasileiros, de 1959, consta que não há referências à origem do nome do Município;
destaca-se apenas que esse nome pode ter sido iniciativa de algum dos dirigentes da
Companhia ou, talvez, da esposa de algum diretor, que gostasse da obra do famoso
escritor do Vale do Paraíba.
Como já foi mencionado no Capítulo 1, com referência aos nomes das Águas
de Lobato, segundo o livro da Companhia Melhoramentos Norte do Paraná (1977)
o batismo das Águas ficava a cargo do Departamento de Topografia e que os
povoados ou patrimônios eram batizados com o nome da aguada mais próxima,
o que, aliás, não foi só o caso de Lobato. No caso de alguns nomes das Águas de
Lobato, há mais variáveis que as mencionadas no livro da Companhia: Araçá pode
proceder do nome de um arbusto mirtáceo ou da cidade de Araçá, no interior da
Bahia. Por sua vez, a Água Grajaú pode ter sido batizada em homenagem à cidade
homônima do Maranhão garajau [sic], nome tupi que designa um cesto para levar
aves, peixes ou louças. O nome da Água Sílex, todavia, pode derivar do latim
pederneira - feito com sílice. Só que, freqüentemente, é grafado como Seleque, de
obscura procedência ou ainda como Celeste.
Como conclusão geral, podemos inferir que a toponímia lobatense, em parte,
faz referência a vocábulos do tupi-guarani, seguindo uma tradição bem ancorada
no Brasil, mencionando as cidades ou as regiões do interior do Brasil de onde,
possivelmente, eram oriundos os agrimensores e seus ajudantes. Enfim, a arte de
nomear plantas, animais, acidentes geográficos e cidades consiste em um fazer
bíblico, culturalmente determinado.
Destacamos que no Brasil – como aliás em toda a América anglo-saxã e
latina - os primeiros povoadores da região são desalojados ou exterminados e,
em seguida, homenageados com nomes de ruas, cidades, regiões ou acidentes
geográficos. Algumas vezes os nomes fazem parte da estratégia de apropriação
da região pelos vencedores (Sarandi, Colorado, Bandeirante...) e, outras vezes,
da preservação da memória dos primeiros habitantes (Pirapó, Grajaú, Ibitipoca).
Aliás, o município de Lobato encontra-se abraçado por um representante de
cada grupo: os rios Bandeirantes e Pirapó. O paulista conquistador e o guarani
conquistado abraçam simbolicamente o território desse pequeno Município,
onde indígenas, nordestinos, paulistas e mineiros deixaram suas marcas históricas
e sociais.

7. A operação de desalojar a floresta pelo café foi vista em Lobato, aliás, como em
toda a região, como o triunfo da civilização sobre a natureza. Como já foi dito,
depois de comprar a terra, era comum contratar um empreiteiro para desmatar o
lote, pagando esses gastos com a venda das toras de peroba, de gurucaia, de marfim
ou de cerejeira. À pergunta se ele próprio fez o desmatamento, o senhor Satoru
testemunhou:
− 97
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Ah não, empreitamos, aquele tempo falava de gato, neh. O empreiteiro que


pegava para derrubar, coviar, só a gente plantemos café, semeei só café na
cova. Pagava o empreiteiro para derrubar a mata, queimar, alinhamento,
tudo. Para entregar coviado [...]94.

Vale relembrar que, no caso da família do Sr. Durval, proprietária de um lote


de 10 alqueires, foram os seus próprios integrantes que realizaram a derrubada da
sua propriedade.
A propaganda da Companhia e dos picaretas insistia na fertilidade da terra da
região, celeiro do Brasil, e isso era uma verdade rigorosa. A picaretagem (por alguma
razão o nome entrou no vocabulário da gíria brasileira) consistia nas geadas que
atentavam periodicamente contra essa lavoura, que parece encontrar a sua fronteira
natural na divisa do rio Paranapanema. De qualquer forma, as fontes mencionam
que, apesar das geadas, em alguns anos o café deu bons lucros e, de fato, significou
a decolagem econômica e social da região. Aliás, ficou claro que, como no caso
de São Paulo, segundo os trabalhos de Verena Stolcke e de Thomas Holloway, o
café não era totalmente uma monocultura, já que, desde o início, havia lavouras
de milho, de algodão, de amendoim e de mamona, fato que diminuía um pouco o
impacto das geadas:

Tinha muita gente. Tinha plantio de café, de algodão de mamona, então era
o custeio do povo, era a vida do pessoal, vivia disso aí. A gente tocava a
porcentagem; pegava uma lavoura de café, pagava 40%, 50% para o dono
da propriedade. A plantação que dava no meio daquela lavoura era da
gente: feijão, arroz, milho. E depois algodão, mamona, era a porcentagem
também95.

Eu sou criado no café, quando veio de Japão só conhecia o café, quando


entrei a Paraná que conheci o algodão96.

Em algumas falas, esse tempo que transcorre entre 1948 e 1960 é um tempo
de fartura, sobretudo por conta da horta e da criação de porcos e de galinhas para
consumo próprio. Essa fartura compensava de certa forma a ameaça das geadas e a
precariedade das moradias e das estradas:

Em compensação, tinha muita coisa boa. Mesmo na lavoura. A gente tinha


lugar de plantar verdura, cebolinha, salsinha, melancia. E dava nome para
melancia, que eu agora esqueci. Era enorme, comprida, linda, linda. Eu
tinha até foto da época. Ali (em outro sítio) também era fartura. Graças a
Deus. Ali era onde tirava o leite. A gente tinha o leite, o queijo, o requeijão,
a carne. Tanto de gado, quanto de porco, de porco, frango Podia escolher.

94 Depoimento de Satoru Inoue. Lobato, outubro de 2000.

95 Depoimento de Raimundo Saraiva Peixoto. Lobato, outubro de 2000.

96 Depoimento de Satoru Inoue. Lobato, outubro de 2000.

98 −
Q U A N D O R E I N AVA S U A M A J E S TA D E , O C A F É ■

Batata, mandioca, além de outras coisas Batata doce sim. Agrião, arroz,
feijão. A gente mata porco, geralmente tem os porcos para engorda. Cada
época ele mata um boi e dividia: um quarto para mim, um quarto para
o cunhado. Tinha que fazer era: para conservar no óleo, salgar e secar.
Porque não tinha geladeira97.

Apesar de se cultivar muitos mantimentos nos sítios, a compra de sementes,


de comida, de ferramentas e de medicinas constituía um grande problema em
toda a década de 50. Os pobres faziam o percurso até Lobato a pé, e os produtos
eram, logicamente, mais caros que nas cidades maiores. Os que possuíam cavalo
e carroça podiam ir a Astorga ou a Arapongas e, excepcionalmente, a Londrina
e a Maringá. Colorado ou Flórida não contavam, porque naquela época eram
cidades tão pequenas quanto Lobato. Como Lobato era fim de linha, o motorista
de ônibus que fazia o percurso Lobato-Arapongas/Arapongas-Lobato pernoitava
no lugar. Dessa forma, os habitantes podiam fazer compras em Astorga ou em
Arapongas e voltar no mesmo dia. Claro, no caso de as chuvas não impedirem
a viagem.

8. O tema do trabalho da mulher e das crianças, assim como a presença de escolas,


de vendas, de campos de futebol e de capelinhas nas Águas da zona rural, será
abordado no momento oportuno. Ora, quanto à vida social, não só das Águas, mas
também da própria cidade de Lobato, recolhemos bastante material documental,
fotográfico e oral. Zailson Lemos relembra que desde inícios da década de 60, havia
dois clubes e um cinema em Lobato:

Os bailes existiam num clubezinho, após 62, aqui na esquerda onde é o


Banco do Brasil, tinha um salão de bailes. E tinha um cinema também, que
era um restaurante com um pavimento; seria: em cima era hotel, quartos,
em baixo funcionava o cinema e o restaurante98.

O mesmo entrevistado nos fala da existência de um clube japonês:

Tinha um clube japonês também. E a gente promovia bailes ali também.


Eu freqüentei vários bailes nesse clube. Existia uma colônia razoavelmente
aqui. Meu pai (Wilson, um dos primeiros farmacêuticos) era muito ligado
a eles. Quando faziam festas, japonês é muito fechado, pouca gente era
convidada. Meu pai sempre era convidado e eles faziam aquelas festas
tradicionais deles aqui que era corrida de saco, passavam por baixo do
encerado, aquela coisa animada 99.

97 Depoimento de Nair Marques de Oliveira. Lobato, dezembro de 2000.

98 Depoimento de Zailson Lemos. Lobato, outubro de 2000.

99 Depoimento de Zailson Lemos. Lobato, outubro de 2000.

− 99
■ NNAASS ÁÁGGUUAASS DDEE LLOOBBAT
ATOO

Figura 20: Clube da comunidade nipônica


Fonte: Clube ([196-]). Coleção Particular Zailson Lemos.

Figura 21: Bar da comunidade nipônica


Fonte: Bar ([196-]). Coleção Particular Zailson Lemos.

100 −
Q U A N D O R E I N AVA S U A M A J E S TA D E , O C A F É ■

À medida que a população foi crescendo, primeiro nas Águas e depois no


Patrimônio/cidade, aprimoraram-se as redes econômicas, sociais, culturais e
religiosas. Dessa forma, começaram a aparecer as primeiras escolas, a capela
de madeira, o cinema Marabá, o Clube Japonês, as vendas, as capelinhas e os
campinhos de futebol nas Águas. Com a construção das estradas rurais, com o
aumento do parque automotor e, claro, a partir do grande êxodo rural, a vida social
também foi se transferindo, gradualmente, das Águas para a cidade.

− 101
5

A CONSTRUÇÃO DOS
ESPAÇOS SOCIAIS:
as escolas e o perfil dos habitantes das águas

1. Havia na zona rural lobatense, espaços coletivos que procuravam suprir as


necessidades sociais dos moradores, tais como: escolas, vendas, capelas, açougues
e campos de futebol. No Quadro 1 encontramos as Águas ou fazendas com
construções dessa natureza, cuja existência foi relatada pelos antigos moradores
ou registrada em documentos do Município, sobretudo na Divisão de Educação e
nos documentos paroquiais como mostra o Quadro 2.
Algumas dessas construções estavam localizadas na parte alta do espigão,
entre duas Águas, e outras estavam junto às Águas; em alguns casos, todavia, não
nos foi possível estabelecer o local exato dessas construções, pois uma grande
parte da zona rural de Lobato se encontra atualmente tomada pela plantação
canavieira, produção que, com sua paisagem constante, dificulta aos antigos
moradores a localização dessas antigas construções. Em todo caso, na Figura 3
(Capítulo 1), foram inseridos alguns símbolos que representam essas construções,
ainda que sua existência e localização não sejam precisas. Assim como o quadro
acima, a localização dos espaços sociais na figura 3 também foi realizada de
acordo com informações presentes na documentação analisada. Entretanto, junto
à memória local, ficou registrado que “todas as Águas aqui tinham escola. Chegou
uma época que aqui em Lobato tinha 15.000 habitantes. Então teve época que
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

tinha escola em quase todas as Águas 100, relembra a professora aposentada Alice
Cafofo, recordação que, como se verá adiante, repete-se em relação à existência
dos campos de futebol. De fato, com o significativo número de vinte escolinhas
rurais (Quadro 2) não só a maior parte das Águas teve suas escolinhas, mas também
algumas fazendas.

Nº ÁGUA/FAZENDA ESPAÇO COLETIVO

Água Araçá Escola e Venda

Fazenda Santa Maria / Água Araçá Escola e Campo de Futebol

Água Grajaú Escola, Capela, Campo de Futebol

Água do Trigo Capela, Campo de Futebol

Fazenda N. S. Aparecida /Água do Trigo Escola

Fazenda Dona Cristina /Água do Trigo Escola

Água Paramirim / Potiguara Escola, Venda, Capela, Campo de Futebol

Água Pirapó Escola, Capela e Campo de Futebol

Fazenda Remanso /Água Pirapó Escola e Venda

Água Colorado / Fazenda São Carlos Escola e Capela

Água Caiatri Escola

Água Santa Terezinha Escola

Fazenda da Barra /Água Sarandi Escola

Fazenda Moron /Água Sarandi Escola, Venda, Capela

Água Ibitipoca Escola

Água Valmarina Escola, Venda, Capela, Campo de Futebol

Água Silex Escola, Venda e Capela

Quadro 1: Espaços Coletivos Rurais


Fonte: Divisão Municipal de Educação de Lobato (1957, 1959, 1961), Depoimentos orais; Paróquia
Sagrado Coração de Jesus (1975, 1999).

100 Depoimento de Alice Cafofo, Lobato, novembro de 2000.

104 −
A CONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS SOCIAIS: AS ESCOLAS E O PERFIL ... ■

ANO DA INFORMAÇÃO UNIDADES ÁGUA/FAZENDA

1952 01 Água Araçá

1955 01 Fazenda Moron

Anterior a 1956 02 Água Sílex

1957 01 Água Ibitipoca

1957 01 Água Colorado / Fazenda São Carlos

1958 01 Água Paramirim

1958 01 Fazenda Cristina

1960 01 Fazenda Remanso

1960 01 Água Grajaú

1961 01 Água Valmarina

1961 01 Água Caiatri

1964 01 Água Bandeirantes

1964 01 Água do Trigo / Fazenda Nossa Senhora Aparecida

1964 01 Água Pirapó

1964 01 Água Araçá / Fazenda Santa Maria

1964 01 Fazenda Santa Terezinha

1964 01 Água Sarandi

1965 01 Água Potiguara

1975 01 Escola Castelo Branco

Quadro 2: Fundação das escolas nas águas e fazendas de Lobato


Fonte: Divisão Municipal de Educação de Lobato (1957), Prefeitura Municipal de Lobato (2000),
Depoimentos orais, IBGE (1972a, 1972b, 1978a, 1978b).

2. Observamos, pelo detalhamento de particularidades relativas à organização


material coletiva das Águas, que houve um intenso processo de construção da vida
social em um habitat rural novo. Em maior ou menor escala, a descrição desses
espaços e sua importância como locais de convivência coletiva demonstram o nível
de autonomia existente em cada um dos casos aqui apresentados e de que forma
essa autonomia permitia aos moradores locais se organizarem socialmente. Além
disso, o detalhamento das atividades - escolas, vendas, capelas, campos de futebol,
salões improvisados de baile -, bem como das sociabilidades praticadas pelos
moradores auxiliará na composição da figura que representa aspectos da formação
da sociedade das Águas de Lobato por meio de suas relações sociais e de suas
construções materiais coletivas.
− 105
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

3. Iniciaremos discorrendo sobre a ajuda que a CMNP recebeu da propaganda feita


boca-a-boca para a comercialização de propriedades e para a vinda de profissionais
especializados, de farmacêuticos, por exemplo, para a região Norte do Paraná. Iniciamos
essa discussão com uma biografia singular de um indivíduo que se transformou em
modelo de protagonista ativo do mundo vivido pelos primeiros moradores de Lobato.
O senhor biografado é Agripino Lúcio dos Santos101, cuja figura é ímpar entre os
entrevistados e chama atenção por sua experiência de vida e por contar, no dia da
entrevista, com 103 anos de idade - não confirmados por ele. Apesar de seu elevado
grau de surdez, ele mora sozinho em uma casa de alvenaria com quatro cômodos
e um banheiro. Sua história de vida ilustra, de forma clara e pontual, os anseios
daqueles que resolveram aproveitar as oportunidades surgidas no Norte paranaense,
principalmente a partir de 1940, com a introdução do sistema capitalista centrado
na produção em grande escala da cafeicultura e na venda de pequenas e médias
propriedades, na então área coberta quase que exclusivamente por mata nativa.
Agripino nunca possuiu um pedaço de terra para cultivo próprio na zona rural
de Lobato e, nas vezes em que lá morou, foi trabalhando para outros proprietários,
seja na lida com a lavoura, seja praticando seu ofício, o de furador de poços. Ele
narra que saiu de Feira de Santana na Bahia com vinte e dois anos de idade, mas é
impossível estabelecer a data ou a idade exata ao chegar a Lobato. De personalidade
arredia e contraditoriamente extrovertida, faz questão de deixar certos detalhes de
sua biografia implícitos em risos matreiros e em olhares fixos. Cultiva um certo
mistério em torno de sua vida, atitude que parece lhe dar prazer e, de certa forma,
serve para cultivar sua lucidez em idade tão avançada. Segundo ele,

Na Bahia? Na Bahia eu rodei logo. Meu trabalho era lutar no pé do


engenho, quando eu queria. Lutar no pé do engenho. Lá no engenho que
eu morava fazia cachaça, açúcar, rapadura, eu fazia isso tudo. Quando eu
não queria, que ele (o patrão) era bem de vida, que eu não queria, então
ele punha outro. Eu ia trabalhar com uma tropa de doze burros. Quando eu
não queria mais eu ia lutar com o gado, era isso. Eu fiz uma roça na Bahia
do tamanho dessas duas datas aqui. Tinha dia que eu ficava mais no mato
que eu trabalhar que não dava tempo102.

Agripino sorri o tempo todo ao relembrar esses detalhes de sua vida, fato que,
como já foi dito, evidencia um tom de mistério, como se ele escondesse algo pelo
puro prazer de não revelar maiores detalhes. Indagado sobre os motivos de sua vinda
para Lobato, ele, no entanto, é incisivo: veio em busca de dinheiro. Convidado por
um primo da esposa, denominado por ele como Zezinho barbeiro, Agripino conta
que foi convencido a vir para Lobato sob os seguintes argumentos:

101 Depoimento de Agripino Lúcio dos Santos. Lobato, outubro de 2001.

102 Depoimento de Agripino Lúcio dos Santos. Lobato, outubro de 2001.

106 −
A CONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS SOCIAIS: AS ESCOLAS E O PERFIL ... ■

É, (primo) de sua mãe. Veio o primo dela, e sempre telefonava que aqui era
bom de ganhar dinheiro, que aqui ganhava dinheiro no rodo. E nós viemos.
Aqui foi bom! Eu lhe digo: aqui foi bom! Esse Paraná aqui por onde eu
andava, aqui foi bom para ganhar dinheiro. Aqui um dia, o senhor chegava
aqui, o senhor saia aí na roça às pilhas de arroz estava tudo atravessada
assim em riba dos paus óh, ali. De milho, eles queimaram, tinha valor.
Nesse ponto aqui foi bom. Nesse tempo aqui, peão não passava fome. Peão
saía aí andando nas roças, banana, banana e mamão era à vontade, peão
enchia a barriga, peão caia no mundo103.

Com o objetivo de lucrar com todo o investimento que estava sendo feito
na região, Agripino se juntou ao senhor Martins, de sobrenome desconhecido,
trabalhando como furador de poços. Costumava furar poços entre vinte e cinco
e trinta metros de profundidade e os três ou quatro mil réis que eram pagos pelo
trabalho “era barato” e então, “muitas vezes, para terminar o serviço, quando não
achava [água], muitas vezes aí a gente estourava o preço porque queria acabar, tava
no fim, tinha que fazer essas “nojiças”.
Como furador de poços e depois como trabalhador autônomo da lavoura,
Agripino freqüentou o meio urbano emergente e a zona rural, o que fez dele pessoa
conhecida. Mas também ficou conhecido entre os moradores por apreciar brigas e
por ter recebido duas picadas de cobra – uma em cada perna – quando trabalhava
na fazenda Ferraz limpando um poço:

Eu vinha trabalhar, estava trabalhando lá, limpando um poço e vim no


carreador assim no pasto, quando eu cheguei, uma seca que estava que
quando eu venho um trioazinho [...] capim seco, eu passei só vi a pancada
nessa perna ‘tac’, que quando eu pulei ele pegou na outra. Foi duas... eu
virei para ele eu só disse assim: eu disse: ‘ei menina’, tratei ela sério: ‘ei
menina, tu me pegou, mas tu não é Deus, tu não pode mais do que Deus’,
foi o que eu disse para ele e pronto104.

Tal fato faz que ele nada revele ao ser questionado sobre suas atividades naquela
fazenda, pois, em sua lembrança, ficaram registradas, de forma mais contundente, as
picadas que levou da cobra em um “triozinho” coberto por capim seco. As picadas
resultaram em um atrofiamento dos seus membros inferiores; a partir de então,
passou a locomover-se com dificuldade. Homem de poucas palavras, certamente
descendente de escravos, Agripino revelou uma identidade que pode ser facilmente
reconhecida como a de um homem que preza a liberdade. Embora tenha trabalhado
na lavoura do café, furando poços, derrubando mato, construindo estradas, é visível
como ele faz questão de frisar o sentimento de liberdade que permeia sua vida:

103 Depoimento de Agripino Lúcio dos Santos. Lobato, outubro de 2001.

104 Depoimento de Agripino Lúcio dos Santos. Lobato, outubro de 2001.

− 107
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Era meu ofício quase era quase no mato, derrubando o mato. Quando foi
indo, foi indo que eu, quando eu não derrubava mato eu ia carpir café.
Quando o povo chamava, o situante que eu nunca gostei de trabalhar em
fazenda, não gostava, que o povo chamava de pé de ferro. Aqui situante
era pé de ferro: ‘vou botar um pé de ferro!’. E também nunca gostei de ficar
dentro da casa dele. Meu negócio era esse: que tivesse um rancho para
eu queimar a minha lata. Eu gostava de queimar a minha lata para lá, de
‘meano’ levanta ir para o trabalho, eu era assim. Até hoje, eu sô. Que eu lhe
digo a verdade, tenho minhas duas filhas, elas são boas para mim, ‘percure’
a elas que eu adoro muito lá dentro de casa? E são boas né. É porque minha
natureza [...] eu moro aqui não sei quantos anos, eu não vou na casa de
vizinhos, quem quiser me achar, que eu não tiver deitado aqui, ou sentado,
que nem o dia que o senhor viu que eu estava sentado ali, pode ir, só me
acha lá em cima no boteco de Alfredo aonde ela me achou, ali na Rosa, que
não tiver aqui, ou na casa de uma vizinha que tem lá em cima. Também,
tirando dessa, pronto 105.

Veio para o Município pensando em enriquecer com o volume vantajoso


de dinheiro que foi investido no Norte do Paraná, na década de 1950, mas não
conseguiu realizar seu sonho. Em seu depoimento foi possível inferir que ele
chegou a Lobato provavelmente em 1953, pois usa um fato coletivo para descrever
a possível data de sua chegada ao Patrimônio Lobato, ou seja, a cronologia de vida
desse homem não é dada por datas, e sim por fatos:

Quando eu cheguei aqui? Quando eu cheguei aqui tudo era mato. Ali onde
é o jardim, aquilo ali tudo era mato. Aquilo lá era mato ali tudo. Eu ajudei
ainda fazer uma igreja de pau que tinha ali no meio do jardim, eu ajudei
ainda ajudei abrir a estrada daqui para Colorado. Carro vinha de Arapongas,
tinha dia que só chegava até Santa Fé, era pior do que aqui. Chegava tinha
dia que a gente não podia, quem morava aqui quisesse, vinha que vim de
Santa Fé a pé. Quanto eu vim para aqui, no dia o carro só veio até Santa Fé.
Até aqui não veio. Veio eu e meu companheiro de lá aqui a pé 106.

Sabe-se que a Igreja de madeira a que ele se refere foi construída em 1954 e que
a estrada que ligou Lobato a Colorado data de 1953. Desse modo, estabelecemos
o ano de 1953 como provável ano de chegada de Agripino e de seu companheiro
anônimo a Lobato. O fato de ele estar trabalhando na construção da estrada revela
que o seu entrosamento com a população local já se encontrava em um nível
razoável de conhecimento mútuo.
O que revela a história desse baiano de Feira de Santana? Negro, que chegou a
Lobato sem dinheiro algum para investir, sem família, tendo apenas por referência um
primo e um companheiro cujos nomes nem cita em seu depoimento? A resposta a essas
questões é múltipla: a trajetória de vida de Agripino ilustra traços de interesses e de
anseios em lucrar com os investimentos que estavam sendo feitos no Norte do Paraná.
Ele, como tantos outros, tentou a sorte em uma região que, embora constantemente

105 Depoimento de Agripino Lúcio dos Santos. Lobato, outubro de 2001.

106 Depoimento de Agripino Lúcio dos Santos. Lobato, outubro de 2001.

108 −
A CONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS SOCIAIS: AS ESCOLAS E O PERFIL ... ■

caracterizada como agrícola, não deixava de ter espaço também para outros tipos de
atividades lucrativas, como a perfuração de um poço. Noutra perspectiva, o migrante
baiano é um indivíduo cujo exemplo maior está ligado à forma como preza e como
vive o sentimento de liberdade. Imbuída dessa última característica, a figura de Agripino
representa a capacidade de os seres humanos conduzirem suas vidas observando
as oportunidades e se lançando sobre elas, apesar dos riscos e das transformações
inerentes às mudanças. O relato de Agripino também revela a eficácia da propaganda
feita pela CMNP e pelo Estado, em diversas partes do país, sobre a imponência da
implantação da sociedade capitalista no Norte paranaense. Essa propaganda, como se
viu, deu-se não só por meio de cartazes e de propagandas encomendadas pela CMNP,
mas também por meio de cartas, no caso de Agripino, e, em outros casos, por meio de
conhecidos que vinham para Lobato e depois voltavam para seus Estados e convidavam
amigos e parentes para lá se estabelecerem. Vejamos outros casos:

Quando eu saí lá da Bahia eu vim direto para o Estado de São Paulo,


mas, já sabendo que já tinha uns conhecidos nossos que eram de lá, que
estavam morando aqui em Lobato, aí, eu vim aqui a procura deles. Cheguei
e encontrei, a aí ficamos aqui107.

O motivo principal foi o profissional. Nas cidades maiores a gente não tinha
condições, primeiro condição legal. Os farmacêuticos tinham mais direitos.
O meu direito se resumia onde não tivesse farmácia. Então São Paulo, se eu
quisesse, primeiro teria que ter condições financeiras. Mas não era o meu
caso. Então eu me vi forçado a vir para o Norte do Paraná, que se falava
muito naquela época, que era Terra da Promissão. E, de fato, aconteceu isso
e eu passei a exercer a profissão aqui. Lá eu trabalhei um certo tempo em
farmácia como funcionário108.

Porque a gente já tinha parentes, eu já tinha parentes em Astorga quando


[...] Então, por intermédio deles, nós viemos diretamente a Astorga109.

Não, eu tinha um irmão mais novo que eu sabe, ele veio na frente, eu era
casado, ele já era solteiro. Ele veio na frente. Ele gostou muito daqui e ele
informou para muita gente lá e muita gente interessou. E de lá nos viemos.
Um foi contando para o outro, você sabe como é mineiro, é o seguinte: um
conta para o outro, o outro vai na casa do outro, e oferecia: ‘vamos para lá,
porque lá não sei o que tem, tal, papá’. Aquele negócio. [...] aqui tinha uma
minerada danada, agora já tem menos110.

Senhores e jovens senhoras que hoje se encontram em Lobato recordam os


motivos e as esperanças que trouxeram seus pais para o Município emergente,
como é caso do Sargento Militar José Cavalcanti Silva e da hoje prefeita Tânia
Martins Costa:

107 Depoimento de Olirio Xavier Cotrim. Lobato, outubro de 2000.

108 Depoimento de Valdir Cotrim Ribeiro. Lobato, março de 2001.

109 Depoimento de Raimundo Saraiva Peixoto, Lobato, outubro de 2000.

110 Depoimento de João do Soutto Mello, Lobato, outubro de 2000.

− 109
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Meu pai nasceu em Pernambuco, no município chamado Pedra Buíque


que hoje já não existe mais essa cidade. Tem um outro nome que não me
recordo agora no momento e, que nome tem hoje. Então ele vem para o
Paraná, direto de Pernambuco para cá, ainda era menor na época, ele tinha
uma dezesseis, dezessete anos aproximadamente na época, e, ele veio para
cá e já havia alguns parentes dele aqui no norte do Paraná. Ele veio para
trabalhar na fazenda Moron111.

Olha, eu sou natural de uma cidadezinha do Rio Grande do Norte, de nome


Várzea é, o que trouxe a minha família para o Paraná, para essa região,
foi... o ponto de referência mesmo foi meu tio. Ele foi desbravador dessa
região, ele trabalhou na Companhia Norte Melhoramentos, participou da
derrubada dessas estradas: de Lobato a Arapongas, Arapongas a Londrina,
foi um pioneiro aqui na região, e devido a esse ponto de referência, o meu
pai, minha mãe, vieram se fixar nessa região em busca de dias melhores. A
gente vivia numa região empobrecida, uma região do Rio Grande do Norte,
apesar de que minha família no rio Grande do Norte é, não ser uma família
de miseráveis, uma família mais ou menos estável, mas tinha assim aquela
perspectiva de melhora. Então, nós viemos, meu pai veio em 1955 para
cá, ficou um ano e depois retornou ao nordeste para trazer a família. Eu
vim com 5 anos de idade, em 1956. Lobato tinha poucas casas e bastante
mata ainda, meu pai tinha uma casa comercial e aqui chegamos e até hoje
estamos aqui112.

A sistematização dos relatos que enfocam os interesses de vinda para o Norte


do Paraná tem sua razão de ser. O aspecto quantitativo das evidências aqui relatadas
confirma a eficácia da propaganda feita pelos órgãos responsáveis pela introdução
do capitalismo na região; recria, igualmente, o clima de euforia que acompanhou
as mudanças empreendidas pelos prováveis moradores ao se dirigirem a Lobato. Ou
seja, são características objetivas e subjetivas que acompanharam o deslocamento
humano para o Norte paranaense e que estão expressas nesses relatos, principalmente
por meio de traços da história de vida de Agripino Lúcio dos Santos.

4. Vê-se que os futuros moradores das Águas iniciaram a organização de suas


propriedades de forma a acomodar a lavoura cafeeira e o núcleo familiar, como
nas demais regiões em que o café estava sendo produzido. Esse rearranjo se deu
por meio da queima e da derrubada da mata existente, atividade cuja lembrança é
encontrada na maior parte dos depoimentos, cuja frase mais usual é aqui era tudo
mato. Dita ora em tom de gracejo, ora em tom assustado, essa frase aparece como
uma das mais efusivas lembranças dos entrevistados.
A questão da mata atribui a Lobato um caráter de fronteira não só pelo fato de
ser um Município limite das terras adquiridas pela CMNP, mas também por não ter
ligação com Colorado, município vizinho situado ao Norte de Lobato. É como se
Lobato representasse um fim de linha.

111 Depoimento de José Cavalcanti da Silva. Lobato, outubro de 2001. Na atualidade o Sgto. José está na Reserva da Polícia
Militar.

112 Depoimento de Tânia Martins Costa. Lobato, outubro de 2001.

110 −
A CONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS SOCIAIS: AS ESCOLAS E O PERFIL ... ■

Situação expressa com maestria pela conclusão que o depoente Zailson


Lemos deu para explicitar o porquê da vinda da família Lemos para Lobato
no início da década de 1950. Embora já tenha sido reproduzida na íntegra
anteriormente, é interessante lembrar aqui alguns detalhes. O memorialista fez
questão de frisar que o seu pai teria vindo para Lobato devido a contatos com
amigos que já estavam vivendo no município de Astorga, Norte paranaense.
Apesar de possuir uma pequena fazenda em Minas Gerais, o pai do memorialista
resolveu vendê-la após ter recebido carta de um amigo dizendo ser a região
Norte do Paraná o Celeiro do Brasil. E, ao chegar em Astorga, resolveu se
estabelecer no então incipiente Patrimônio Lobato, considerado naquela
época, nos idos dos anos 1950, como fim de linha da região. A interpretação
de Zailson para compreender a vinda do pai para Lobato se resume no fato de
que esse teria sido influenciado pelo momento de euforia vivido pelo Paraná
na naquele momento, como a propaganda de que as terras aqui eram muito
boas 113, por exemplo.
Segundo o Senhor João do Soutto Mello, caminhoneiro que trabalhou de
forma intensiva na derrubada da mata em Lobato, a madeira era retirada do interior
das matas por caminhões menores. Depois era levada até os caminhões de maior
capacidade, alguns inclusive podendo transportar até 15.000kg:

Tinha muito caminhoneiro. Tiravam as madeiras, as madeiras boas, as


madeira de lei, e o resto derrubavam e metiam fogo. Queimavam tudo.
Primeiro eles tiravam a madeira. Tinha carreador, fazia carreador. Chegava
lá, tirava. [...] tirava tudo com caminhão. Tinha um caminhão para explanar
a madeira. Explanar a madeira, tirar a madeira lá de dentro do lugar que só
um caminhãozinho podia, e punha para nós que tínhamos os caminhões
grandes114.

Outro dado importante sobre a técnica e os maquinários utilizados para extrair


as madeiras das matas era o uso de caminhões com carrocerias munidas de catracas
que puxavam as toras para os caminhões com cabo de aço. A madeira retirada
das matas existentes nas propriedades costumava ser transportada por meio de
balsas que levavam os caminhões de uma margem a outra do rio Pirapó para serem
entregues em serrarias dos municípios vizinhos. Uma atividade que não estava
isenta de perigos, como recorda o mesmo senhor João: “Entrei numa balsa um dia
e a balsa foi para frente. Quando o caminhão pegou a balsa, ele estava com três
toras dentro só, mais três ‘bichonas’. O recurso foi jogar as toras n’água, amarrar o
caminhão e soltarmos as toras”.
Ainda sobre o procedimento para a derrubada das matas, utilizava-se primeiro
a roçada e, em um segundo momento, derrubavam-se as árvores maiores com o

113 Depoimento de Zailson Lemos. Lobato outubro de 2000.

114 Depoimento de João do Soutto Mello. Lobato, outubro de 2000.

− 111
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

machado. Como visto anteriormente com o memorialista Raimundo Saraiva Peixoto


quando este lembrou que era comum as pessoas contratadas para fazerem o trabalho
de desmatamento venderem a madeira para as serrarias . Caminhões equipados com
correntes ajudavam na retirada das toras de dentro da mata quando as madeireiras
faziam as derrubadas assim como os proprietários dos lotes não havendo “esse negócio
que obrigava as pessoas a deixar [sic]” ressalta ele, cogitando o fato de que as normas
ambientais atuais prescrevem a manutenção de reservas florestais, em uma referência
à prática, naquele período, de não seguir a lei de desmatamento brasileira.
De acordo com informações datadas de 1959, 80% da indústria de Lobato se
sustentava com o ramo madeireiro (FERREIRA, 1959, p. 305). Considerando, de
acordo com dados do IBGE, que em 1960 a área de matas naturais e reflorestadas
cobria 4.930ha, o que representa mais de 50% da área total do Município, que
é de 9.755ha, é provável que realmente o comércio de madeira tenha sido
expressivo nesses primeiros anos. Essa atividade intensiva levaria, em 1970, a uma
redução quase total da mata quando os dados do IBGE registraram, naquele ano,
uma área de 1.495ha de matas naturais em Lobato (IBGE, 1970). Ou seja, houve
aproximadamente 85% de redução das matas lobatenses em um período de 10
anos, fato que leva à conclusão de que essa atividade acompanhava as frentes
agrícolas, principalmente nos períodos iniciais desse movimento, e se sustentava
sobre os recursos naturais existentes nas áreas comercializadas pelas empresas
colonizadoras. Embora haja evidências da exploração de madeira no Município,
essa prática não ficou registrada na memória local por sua importância monetária,
mas sim pela forma quase folclórica de não vislumbrar o sentido de transformação
ambiental com ou sem prejuízo para seus habitantes. Ficou registrada, sim, como
uma atividade lógica para as condições daquele momento, tendo em vista que
objetivavam acomodar principalmente a lavoura cafeeira.
Não obstante as condições acima apresentadas sobre as relações pessoais que
os moradores mantinham com a floresta, as informações ainda remetem a outros
pontos relativos à organização empreendida pelos habitantes. Como se viu, derrubar
a mata é a primeira das transformações por eles empreendidas e alguns o fizeram
em família enquanto outros contrataram empreiteiros. Organizavam, dessa forma,
o espaço interior da produção agrícola e também o da reprodução doméstica. Essa
primeira providência surge como uma estratégia de reprodução humana, praticada
conscientemente no início do povoamento da zona rural de Lobato.

5. Apesar do tom epopéico usado pelos memorialistas para descrever a derrubada


da mata, ficou registrado também que nem todos os que se dirigiram para Lobato
estavam esperançosos ou foram espontaneamente para lá. Alguns enfrentaram
momentos de intensa aflição e solidão nas Águas. Uma dessas pessoas é Nair
Marques de Oliveira, nascida em Conceição das Alagoas, estado de Minas Gerais.
Essa senhora morava na cidade de Astorga, no Paraná, quando se mudou para a
zona rural de Lobato, mais precisamente na Água Araçá. Já casada quando chegou
112 −
A CONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS SOCIAIS: AS ESCOLAS E O PERFIL ... ■

a Lobato, em 1952, ela conta que estranhou sobremaneira a vida na zona rural. A
má impressão que teve da nova moradia foi assim relatada:

Então eu cheguei, fomos morar no sítio que era do sogro. Tinha muito
medo de sítio. Porque quando vim de Minas para Astorga nós fomos para
a cidade. Ali não sofri tanto. Mas quando vim para o sítio passei muito
medo. Medo das crianças ficarem doentes. Mais difícil era médico. Até
também não tinha condução para ir ao médico. Sempre era difícil. Quem
trabalha na lavoura não tem dinheiro todo dia. A vida era muito difícil. E
eu sofria muito por causa das crianças. Com medo das crianças ficarem
doentes. Quando estava todo mundo com saúde, tudo bem. Até que ia
levando. Você acostuma um pouco. E o Jair sempre foi muito caprichoso.
Não deixava faltar as coisas em casa por eu não poderia sair para comprar
qualquer coisa115.

Na fazenda onde Nair foi morar, predominavam a produção cafeeira e a


criação do gado leiteiro. Pertencia ao senhor Joaquim Américo de Oliveira, seu
sogro. Havia uma colônia onde moravam 12 famílias, incluindo as do filho e da
filha do Sr. Joaquim. Quanto aos empregados da colônia, conta Nair:

Um cara lá que era mineiro. Os outros eram descendentes de italiano.


Baiano acho que sim. Tinha um senhor com nome de Sebastiãozinho, acho
que ele era baiano mas tinha o seu Domingos, tinha o seu Tonico que era
italiano; e tinha o outro irmão do seu Tonico que eu esqueci o nome dele,
são de família italiana, era aquela familiona116.

Somada a residência-sede, havia na fazenda, segundo ela, doze casas, a maioria


mais um rancho que uma casa realmente:

Um rancho é uma casa toda cheia de buraco, assim de madeira. A cobertura


é umas tábuas que quando geava lá fora, geava dentro de casa também. As
crianças eu tinha que colocar uma cobertura grossa em cima do berço.
Quando você tirava estava quebrando de gelo. Era terrível. Até aí tudo bem
sabe, mas quando vai chegando ali para as seis horas [da noite] é que era
ruim. O medo sabe? Aí se a gente fica angustiado porque vai escurecer117.

Uma das propriedades mais equipadas da zona rural, a fazenda onde morava
Dona Nair é constantemente lembrada como aquela que contou com um gerador
de luz, ainda nos primeiros anos da década de 1950, e com a primeira escola do
Município. Dona Nair chama o gerador de usina e, segundo ela, a sua instalação
melhorou muito sua vida:

115 Depoimento de Nair Marques de Oliveira. Lobato, dezembro de 2000.

116 Depoimento de Nair Marques de Oliveira. Lobato, dezembro de 2000.

117 Depoimento de Nair Marques de Oliveira. Lobato, dezembro de 2000.

− 113
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Ali já era melhor. Porque às seis horas [da tarde] ele ligava a luz que era
dentro do quarto. Mas quando dava umas 10:00h [da noite] ele apagava.
A hora em que ele ia dormir ele apagava a luz. Mas já era melhor. Porque,
às vezes, no começo da noite você deixava para dar janta, assim, seis, sete
horas [da noite] tinha que ascender o aparelho para dar luz. Ai ficava bom
porque já tinha luz118.

Antes da usina, os moradores usavam lamparina a querosene; posteriormente,


quando o gerador passou a funcionar, a escola que havia na colônia também passou
a ser iluminada. Na fazenda havia, ainda, produção de leite, do qual Nair e as
demais mulheres costumavam fazer queijo e requeijão. Além disso, as criações de
frango, de porco e de gado (cujo produto era dividido com os colonos da própria
fazenda ou com os vizinhos) abasteciam os proprietários e os colonos com uma
dieta rica e farta:

Olha, a vida toda meu marido gosta assim, muita carne. E lá, graças a
Deus, a gente tinha fartura. Além da carne, a gente fazia muita coisa que
era trazida da lavoura. Lá a gente colhia, a gente tinha verdura de toda
qualidade. Podia escolher: batata, mandioca, além de outras coisas que eles
traziam lá de baixo que eu não sei o nome. Umas batatas escuras que no
momento eu esqueci o nome119.

A dieta de sua família era realmente farta. Além do café da manhã, preparado
com leite, queijo e requeijão, havia também pão caseiro, alimentos que para
ela eram sagrados nessa primeira refeição. Uma simples fornada de pão revela
aspectos de um cotidiano cujo conteúdo histórico e social é altamente relevante
para a pesquisa em questão. Por meio desse relato, constatamos aspectos da
relativa autonomia existente entre a zona rural e a urbana. Trata-se de momentos
de atividades coletivas entre vizinhas e crianças e formas veladas de relações
sociais que visavam à promoção de encontros para dar conta de outros tipos de
relacionamentos, como veremos na seqüência.
Nair conta que era comum seu marido ir à cidade para comprar, entre outros
mantimentos, sacas de até 20kg a 25kg de farinha de trigo, que eram guardadas na
despensa até o momento em que “a gente arranjava umas comadres por ali, e fazia
aqueles pães sabe?” Noutros momentos, ela costumava reunir vizinhas, primas,
geralmente, para jantarem em sua casa:

Uma prima, que ela chama Iraci, tinha uma menina que é a Lucília, que
era amigona da Darci minha. Então, sabe, por causa dos filhos a gente
sempre faz coisas né? A gente reunia e fazia um jantar ou um almoço.
Frango, macarronada, maionese, essas coisas. E bebida, acho que fazia
suco120.

118 Depoimento de Nair Marques de Oliveira. Lobato, dezembro de 2000.

119 Depoimento de Nair Marques de Oliveira. Lobato, dezembro de 2000.

120 Depoimento de Nair Marques de Oliveira. Lobato, dezembro de 2000.

114 −
A CONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS SOCIAIS: AS ESCOLAS E O PERFIL ... ■

Mas, segundo ela, não era comum fazer festas na fazenda, ao menos não entre
os patrões. Quanto aos empregados, era freqüente a promoção de festejos, sobretudo
no interior da colônia, onde se divertiam. Mas ela acrescenta que não havia muita
familiaridade entre colonos e patrões; conhecia-os apenas de vista. Observamos a
existência de uma vida particular entre os moradores da colônia, fato que revela
um distanciamento entre as duas esferas; distanciamento esse que vai da distância
material (que, de fato, os separava), à distância social e, porque não, cultural.
Sobre o dia-a-dia na fazenda, Nair conta que cuidou da horta e da criação e
que suas atividades se restringiram ao âmbito doméstico:

Não cheguei a trabalhar na roça. Até porque não tinha muito tempo. Eu
toda sofri muito com meus filhos. Eu queria Ter dado tudo para eles. Toda
dificuldade que eu passei eu queria ver se eles não passavam dificuldade.
Eu estava sempre protegendo, compensado eles. [...] O serviço de casa
tinha que ser a gente que fazia, porque não tinha mesmo... E a gente dormia
muito cedo. Escurecia já colocava as crianças para dormir, porque não tinha
muita coisa para faze. Não tinha como passear. Às vezes dava uma volta
pelas lavouras, era bonito121.

O quadro pintado por Nair da vida nas Águas não é uma tela colorida ou cheia
de luz. Seu relato traz, sim, uma vivência de sofrimento e de muito medo, como
se pôde constatar nas citações anteriores. Essa vida de sofrimento é ainda mais
detalhada quando passa a se referir aos momentos de diversão.
Segundo ela, não era costume virem até a cidade para se divertirem nos finais
de semana, principalmente quando as crianças ainda eram pequenas e ainda não
tinham carro: “às vezes era muito difícil. Porque antes da gente ter nosso carrinho,
se quisesse vir tinha que vir a pé. Era longe, não dava para andar com bastante
criança. Então era preferível não vir”. Iam a casamentos e a outras comemorações
somente se se tratasse de parentes ou de amigos próximos. Dessa forma, poucas
eram as ocasiões em que Nair encontrava motivos para se divertir em Araçá e, ao
discorrer sobre aqueles momentos, evidencia uma aversão desmedida por tal local
e vida. Quando, no início da década de 1970, a família se mudou para a cidade
“para os filhos poderem estudar”, uma nova fase de sua vida teve início, uma fase
com a qual ela, sem dúvida, parece ter se entrosado muito mais.
O depoimento de Dona Nair revela que muitos se dedicaram à vida nas Águas
na esperança de dias melhores, resultantes dessa própria vivência; outros, entretanto,
viveram em mundos isolados de interesses financeiros ou empreendedores. O perfil
apresentado pelo relato de Nair demonstra alguns dos conflitos pessoais vividos
durante a fase de consolidação da sociedade das Águas. Ao apresentarmos traços da
vida de Nair, multiplicamos os tipos de relacionamentos existentes entre homens,
mulheres e meio-ambiente nas Águas de Lobato. Seu depoimento revela aspectos
subjetivos e muito pessoais sobre as experiências vividas nas Águas. Trata-se de um

121 Depoimento de Nair Marques de Oliveira. Lobato, dezembro de 2000.

− 115
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

elemento que surge como uma característica ainda inexplorada da vivência em uma
sociedade rural emergente: a não-adaptação a um novo espaço, principalmente
pelo fato de Nair ter vivido na zona urbana de Astorga. O isolamento espacial,
representado pela falta de um automóvel para levá-la e aos filhos à cidade, denota
a amargura que a distância entre a fazenda e a cidade, de aproximadamente 3km,
causava em Nair. Isolamento esse que ela sente também ao se referir às festas que
havia na colônia da fazenda e das quais não participava. Entre o medo da noite e as
atividades diárias, ela traça os conflitos e as sociabilidades praticadas por ela e por
outras famílias da fazenda, por exemplo, o encontro entre vizinhas para preparar
pães ou almoços a pedido dos filhos. Ao dividir a carne proveniente do gado do
pasto e também das caçadas do marido, surgem práticas de sociabilidades inscritas
em tempos anteriores à vinda para a fazenda, assim como são a reprodução de
um cotidiano já conhecido: a construção de hortas e a criação de porcos e de
galináceos ao redor da sede.
A existência incipiente da primeira escolinha, exatamente na fazenda de seu
sogro, e que Nair não cita em seu depoimento, e a construção do gerador de luz
são detalhes que representam o interesse do proprietário em organizá-la de forma
a torná-la o mais autônoma possível. A venda, do tipo armazém, uma outra escola,
fundada anos depois, e um campo de futebol são espaços coletivos que também
fizeram parte da estrutura organizacional que havia na Água Araçá e das quais
partilhavam não só os moradores da fazenda, mas também moradores vizinhos. A
existência desses espaços coletivos ou dessas organizações sociais básicas revela a
autonomia existente na fazenda e também na Água Araçá.

6. Alguns detalhes da vida de Nair Marques de Oliveira apontam ainda para o perfil
regional e cultural da população que migrou para o município de Lobato, como a
colônia que havia na fazenda em que vivia e na qual moravam descendentes de
italianos e migrantes baianos. Sem dúvida, o número de paulistas que se dirigia
para o Norte do Paraná durante o período analisado foi expressivo. Apesar disso,
no confronto entre os documentos da CMNP relativos à venda de propriedades
no Município, os registros de matrícula escolar de Lobato e as fontes orais, surgiu
um elemento não-contemplado na historiografia paranaense sobre o perfil regional
daqueles que migraram para o Município.
Embora essa historiografia destaque a importância da migração paulista para
o Norte do estado do Paraná, o confronto entre as fontes revelou que migrantes
do Norte e do Nordeste do País, bem como do estado de Minas Gerais, além de
imigrantes de outras nacionalidades, deslocaram-se em número significativo para o
Município, formando, inclusive, colônias nas Águas e nas fazendas.
Como a maior parte da população que se estabeleceu no Município não deixou
registro serial de sua passagem por Lobato, construiu-se um quadro, a partir do
local de origem de alguns alunos matriculados na zona rural, a fim de traçarmos
o perfil regional e a diversidade de regiões brasileiras representadas no corpo de
116 −
A CONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS SOCIAIS: AS ESCOLAS E O PERFIL ... ■

moradores do Município. Desse modo, realizamos um levantamento dos alunos


que freqüentaram as escolinhas da fazenda Remanso, localizada entre o rio Pirapó
e a Água Jacuriba, e dos alunos da escolinha que atendia aos moradores da Água
Ibitipoca.
Constatamos que o número de migrantes paulistas é, sem dúvida, maior que
o dos demais estados. Apesar disso, a existência de outros moradores, como os
migrantes cearenses da fazenda Remanso ou os pernambucanos da fazenda Moron,
não pode ser desprezada, pois demonstra exatamente a locomoção, a permanência
e a inserção dessas pessoas na construção da vida social de Lobato. Por outro lado,
notamos algumas falhas, como o lugar de nascimento de alguns alunos, que alterna,
alguma vezes, entre Bahia e Brasil; ou no caso específico do aluno Ângelo Lazaretti,
que nasceu em São Paulo, mas está registrado como italiano. Tudo isso, de fato,
dificulta ainda mais a apresentação de um quadro detalhado e sistematizado sobre
o perfil daqueles que habitaram as Águas.

ALUNOS
ANO ESCOLA/ÁGUA ORIGEM
MATRICULADOS
33. São Paulo
10. Paraná
1957 Água Ibitipoca 48 03. Minas Gerais
01. Pernambuco
01. Ceará
22. São Paulo
14. Paraná
13. Ceará
1961 Fazenda Remanso 62 04. Minas Gerais
02. Pernambuco
02. Rio de Janeiro
03. Procedência não declarada

Quadro 3: Origem regional dos alunos matriculados nas escolas Ibitipoca e


Remanso
Fonte: Elaborado à partir de documentos da Divisão Municipal de Educação (1957, 1961).

Na fazenda onde vivia Dona Nair houve, entre 1952 e 1955, uma colônia na
qual viviam nove famílias, das quais oito foram dispensadas pelo dono da fazenda
após uma geada ocorrida em 1955. A itinerância praticada pela população que se
deslocou pela região nesse período pode ser representada ainda pela experiência
da família do senhor Raimundo Saraiva Peixoto:
− 117
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Depois que eu fiquei, morava junto a meu pai [...] nós moramos em vários
lugares [...] morei em Astorga, na Colônia primeiro. Depois nos mudamos
assim, definitivamente, para Lobato em 54. Nós moramos aqui em Água
Colorado, aí inauguramos uma lavoura de café. Em 58 mudei para Munhoz
de Mello, junto com ele, em 61 nós voltemos para Lobato novamente, nós
voltamos em definitivo. Eu fiquei na lavoura de café até o 72. 72 eu mudei
para Lobato e 73 eu entrei na prefeitura e estou aqui até hoje122.

Essa mesma itinerância foi praticada pelos migrantes pernambucanos, Olindina


Cordeiro de Freitas e Manoel Batista de Freitas, biografados anteriormente.
Adiantamos, contudo, que esses migrantes chegaram à fazenda no ano de
1950, provenientes diretamente de Pedra Buíque, no estado de Pernambuco, e
se estabeleceram como trabalhadores assalariados na fazenda Moron, que se
localizava ao Norte do Município. Seu Manoel e dona Olindina viveram na Moron
de 1950 até 1957, período em que a colônia, era formada por seis outras famílias de
migrantes nordestinos, muitos deles parentes do casal. Aos poucos, essas famílias
foram deixando a fazenda e se dirigindo para a cidade ou para outros municípios
emergentes, quando não para outros Estados também fundados nesse período.

7. O Livro de Batizados da Paróquia possui um interesse que extrapola os limites da


esfera religiosa. Se analisarmos a procedência dos pais dos batizados no primeiro
ano do registro, chegaremos a conclusões relevantes:

ESTADO Nº PAIS % Nº MÃES %


São Paulo 111 33,74 125 37,88
Minas Gerais 68 20,67 70 21,21
Pernambuco 46 13,98 40 12,12
Bahia 39 11,85 32 9,70
Paraná 17 5,17 21 6,36
Ceará 13 3,95 15 4,55
Alagoas 10 3,03 07 2,12
Sergipe 04 1,21 03 091
Paraíba O4 1,21 02 0,61
Rio Grande do N. 01 0,31 -- --
Piauí 04 1,21 04 1,21
Maranhão -- -- 01 0,30
Rio de Janeiro 02 0,61 01 0,30
Espírito Santo 02 0,61 02 0,61
... continuação /

122 Depoimento de Raimundo Saraiva Peixoto. Lobato, outubro de 2000.

118 −
A CONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS SOCIAIS: AS ESCOLAS E O PERFIL ... ■

/... continuação
Rio Grande do Sul 01 0,31 01 0,30
Japão 04 1,21 04 1,21
Lituânia 01 0,31 01 0,30
Argentina 01 0,31 -- --
França -- -- 01 0,31
Espanha 01 0,31 -- --
TOTAL 329 100% 330 100%

Quadro 4: Origem dos pais dos batizados em Lobato no ano de 1959


Fonte: Paróquia Sagrado Coração de Jesus (1999)123.

Como já foi mencionado, existe uma crença generalizada segundo a qual a


“imensa maioria” dos habitantes de Lobato, em particular, e do Norte Novo do
Paraná, em geral, provém do estado de São Paulo, em primeiro lugar, e de Minas
Gerais, em segundo. É verdade que o contingente desses estados geralmente supera
o 50% dos habitantes do Norte Novo. No caso de Lobato, o Livro de Batizados revela
que 54,41% dos homens e 59,09% das mulheres eram paulistanos ou mineiros. Mas,
ainda assim, seria uma distorção historiográfica esquecer a população nordestina
que esteve na base da produção da riqueza social na região 124.
Apoiados nas pesquisas demográficas sobre o Norte do Paraná, realizadas pela
professora France Luz (1980), temos a impressão de que o que assinalamos para
Lobato vale também para todo o Norte do Paraná. Apesar de paulistas e mineiros
formarem a grande maioria dos proprietários de lotes rurais e urbanos, a sua
população não ultrapassava os 50% do total.
Entre os nordestinos, os pernambucanos superam os baianos; ambos os grupos,
todavia, ultrapassam nitidamente todos os outros, inclusive os paranaenses. Merece
destaque, também, a quase total ausência, pelo menos para a época, de gaúchos
e de catarinenses em Lobato. Quanto aos estrangeiros, são relativamente pouco

123 O universo total de batizados para esse ano é de 381, mas só conseguimos deduzir a origem de 329 pais e 330 mães.
Ainda assim, entendemos que a amostra é representativa.

124 Ver, por exemplo, France Luz (1999, p. 129). Maringá: a fase de implantação: “Em geral os pioneiros já estavam acos-
tumados ao trabalho da terra. Vinham de regiões agrícolas de São Paulo, em busca de novas oportunidades no Norte de
Paraná” e também Stadniky e Barros Pinto (1999, p. 239). Contribuição ao estudo da presença nipo-brasileira no Norte
Novo de Paraná. “A colonização do Norte do Paraná é resultado de uma frente de expansão e ocupação procedente
do Estado de São Paulo”. Ambos os artigos se encontram em: Dias e Rollo Gonçalves (1999) em Maringá e o Norte
do Paraná. Estudos de história regional. Os exemplos dessas afirmações podem-se multiplicar infinitamente dentre da
historiografia tradicional sobre o Norte do Paraná. No caso da professora France Luz, a frase contradiz as suas próprias
estatísticas apresentadas em sua tese de Doutoramento defendida em 1988.

− 119
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

numerosos, ainda que se possa considerar que alguns moradores não professavam a
religião católica (PARÓQUIA SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, 1975) 125.
Nos registros paroquiais, contudo, encontramos outro dado importante: além
de ser mencionado o local de nascimento dos pais, também é registrado o local do
casamento religioso. Dessa forma, constatamos que muitos casais que batizaram
seus filhos em 1959 tinham se casado no seu estado de origem; muitos outros,
porém, são provenientes de São Paulo, de Minas Gerais, do Norte e do Nordeste
e se casaram em Jaguapitã, em Sabáudia, em Astorga, em Iguaraçu etc, ou seja,
no Norte do Paraná. Esse dado é confirmado também pelas entrevistas orais e é
relevante porque mostra que em Lobato houve a imigração direta do lugar de
origem e a migração por etapas ou escalas, em que os nordestinos ou mineiros,
por exemplo, permaneceram durante um período no estado de São Paulo, antes de
entrar no Norte do Paraná. Da mesma forma, há numerosos casos de migrantes que
chegaram primeiro ao Norte Velho do Paraná antes de entrar no Norte Novo.

8. Com referência à evolução populacional dos moradores das Águas, das fazendas
e da cidade de Lobato, o número de crianças batizadas na Paróquia permite ter
uma visão aproximada da evolução demográfica anual do Município. O Livro de
Batizados da Paróquia de Lobato começa os seus registros em janeiro de 1959 e a
estatística completa é a seguinte:

ANO Nº de BATIZADOS ANO Nº de BATIZADOS


1959 381 1970 258
1960 409 1971 250
1961 463 1972 247
1962 471 1973 173
1963 453 1974 90
1964 437 1975 111
1965 441 1976 115
1966 387 1977 49
1967 363 1978 80
1968 318 1979 109
1969 288

Quadro 5: Número de batizados por ano em Lobato: 1959 a 1979


Fonte: Paróquia Sagrado Coração de Jesus (1999).

125 Para 1959, o Livro de Batizados menciona o batismo de três japoneses adultos de uma mesma família. O Padre Ângelo,
no Livro Tombo, também menciona a conversão de algumas famílias japonesas ao catolicismo.

120 −
A CONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS SOCIAIS: AS ESCOLAS E O PERFIL ... ■

Como interpretar esses dados sem cair no óbvio e no banal? É evidente que, a
partir de 1969, diminui o número de batizados, devido ao grande êxodo rural de
Lobato e do Norte do Paraná. Além disso, há várias outras questões relevantes: a
redução do número de filhos por casal nessas quatro décadas; uma possível redução
do número de católicos e o aumento do número de crianças não-batizadas, que
pode ser justificada pelo crescimento das igrejas evangélicas. Há outras variáveis
pouco estudadas, por exemplo: Que tipo de população emigra de Lobato e qual
sua faixa etária? Não se trata de uma questão muito tranqüila, visto que, entre
1969 e 1973, o número de batizados diminuiu muito menos do que supunham
as estatísticas demográficas. A partir de 1973, constatamos uma queda vertiginosa
no número de batizados. Se confrontarmos esses dados com os das matrículas das
escolas e dos censos do IBGE, o panorama demográfico de Lobato e do Norte do
Paraná começa a mostrar características desconhecidas para a história tradicional
da região.
Comprovamos que, de 1959 a 1967, a média de batizados por ano é de 422,
começando em 1965 [sic] e terminando em 1973 [sic], um declínio lento e constante.
A partir desse último ano até 1979, ocorre um descenso muito acentuado. Se entre
1959 e 1967 essa média supera o número de 400 e se a média de 1968 até 1972
(inclusive) gira em torno de 272, nos sete anos seguintes essa média é de apenas
104 batizados por ano. Isso quer dizer que, nos primeiros oito anos da década de
60, o número de batizados em Lobato superava em mais de quatro vezes aquele dos
últimos sete anos da década de 70. É possível que, na década de 60, o número de
habitantes pudesse ter superado amplamente os pouco mais de 10.000 moradores
censados pelo IBGE em 1960126.
Uma outra conclusão provisória consiste na relativa redução dos batizados
a partir de meados da década de 60 - em especial, a partir de 1966 -, fato que
apontaria para o grande êxodo começado em 1969/70, que foi antecedido por
pequenos êxodos em plena década de 60127. Depois de cada geada, um número
importante de arrendatários era demitido e alguns proprietários vendiam seus
lotes para comprar unidades maiores no Norte Novíssimo. E isso sem considerar
a política de erradicação do café, que começou em 1966 e não, por exemplo, em
1970. Uma outra constatação reside no fato de que (se bem que pode ser defendida
a hipótese de que o grande êxodo começou realmente em meados de 69) houve,
a partir de 1973, uma nova aceleração da emigração. Em resumo, estaríamos na
presença de um êxodo em escala reduzida, a partir de meados da década de 60, do
êxodo maior de 1969/70 e de uma aceleração desse mesmo êxodo a partir de 1973.
Se compararmos o número de 247 batizados para 1972, com o de 90, em 1974,
fica evidente o que demonstramos. Ora, se elaborarmos as médias de batizados por
período, chegaremos à seguinte tabela:

126 Igualmente a questão é problemática: por um lado diminuiu o número de filhos por casal; por outro, um crescente
número de moradores abandonou a Igreja Católica [...].

127 O Programa da erradicação do café foi criado em 1961 e se efetiva em meados de 1960.

− 121
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

ANOS TOTAL BATIZADOS MÉDIA POR ANO


1959 – 1967 3.805 423
1968 – 1972 1361 262
1973 – 1979 0727 104

Quadro 6: Média do Número de Batizados por Década


Fonte: Paróquia Sagrado Coração de Jesus (1999).

Observamos que os nascimentos no primeiro período superam em mais de


quatro vezes os do último. Isso nos leva a pensar não só na erradicação do café
a partir de meados da década de 60 e no êxodo de 1969/70, mas também na
aceleração desse êxodo, ocorrida entre 1973 - 1979.
O número elevado de batizados entre 1959 e 1965, 436 por ano, ao qual
deveríamos acrescentar os nascimentos dos filhos de casais evangélicos, budistas,
espíritas e outras religiões, leva-nos à hipótese de que a quantidade de habitantes
de Lobato girava em torno de 15.000 ou 16.000, segundo a memória local, ou
seja, um número muito maior do que os 10.000 habitantes registrados pelos censos
oficiais. O censo era incompleto ou mal feito? 128 Será que parte da população rural
não constava desses censos? Ainda não há resposta para essa divergência entre os
dados do IBGE e as informações fornecidas pela memória coletiva da comunidade,
informações essas que também coincidem, aproximadamente, com aquelas não-
oficiais, registradas no livro editado pela Companhia Melhoramentos, no qual
constam 17.080 habitantes em 1968 (COMPANHIA MELHORAMENTOS NORTE
DO PARANÁ, 1977, p. 257)129. A obra Municípios do Paraná, de 1969, cita 15.846
habitantes, número aproximado daquele registrado no livro da Companhia, sem, no
entanto, apontar ano ou fonte (EL-KHALIB, 1969, p. 163).
Considerando que, entre 1959 e 1973, foram batizadas 5.337 crianças, às quais
acrescentamos 20% de crianças nascidas de pais evangélicos, budistas e de outras
religiões, ou, simplesmente, de crianças não-batizadas, chegaremos ao número
aproximado de 7.000 nascimentos em Lobato em apenas 15 anos. Ainda que se
tratasse de uma população jovem e que a Lobato chegassem muitos recém-casados,
em uma época em que as famílias numerosas ainda constituíam a norma, esse número
é excessivo para uma população de 10.000 habitantes em 1960 ou 7.000 em 1970.
A única explicação possível está no fato de que estamos frente a um universo social

128 Segundo a opinião autorizada do geógrafo e professor Dr. Dalton Áureo Moro, “em geral”, os dados dos censos do IBGE
são confiáveis. Ora, como explicar esses algarismos tão elevados do livro da Companhia para 1968 para o Município de
Lobato e, de forma proporcional, para todos os demais Municípios da região, colonizados pela mesma Companhia?

129 Esse número de 17.080 habitantes coincide com a memória coletiva de Lobato, porém não com os números oficiais e
extra-oficiais. Por exemplo, o Livro Tombo menciona para dezembro de 1967 somente 7.323 habitantes. Pelo número
de batizados, crianças matriculadas nas escolas, etc., acreditamos que os dados da Companhia Melhoramentos são
realmente confiáveis.

122 −
A CONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS SOCIAIS: AS ESCOLAS E O PERFIL ... ■

com uma altíssima mobilidade demográfica. O aumento demográfico de 10.000,


em 1960, para 17.000, em 1968, dever-se-ia tanto ao crescimento natural (nos
deparamos com um total de, aproximadamente, 4.500 nascimentos nesse período
de nove anos) quanto à imigração. Com efeito, a década de 60 para o Norte Novo
do Paraná conhecia não só a imigração, mas também pequenos êxodos para o
Oeste. Ainda assim, o debate não está fechado. Os números apresentados pela
memória local e pela Companhia Melhoramentos carecem de uma interpretação
mais acurada por parte de especialistas em demografia. Podemos apenas sugerir
que os moradores das Águas, em 1968, eram mais de 9.000 e menos de 15.000 130.

9. Nas fichas dos compradores de lotes rurais também detectamos algumas lacunas.
Muitos compradores das propriedades lobatenses constantes das fichas da CMNP
citam como cidade de residência o município de Arapongas ou outras cidades da
região, ainda que, muitas vezes, eles estivessem há apenas alguns dias morando
nessas cidades. Os casos a seguir comprovam essas informações equivocadas.
O senhor José Batista Sobral, que comprou da Companhia o lote n.º 281-A, em
19 de novembro de 1948, declarou que residia em Cambé, estado do Paraná. Consta,
todavia, em observação no Registro dos Lotes de compra da CMNP (1979), que esse
senhor de nacionalidade brasileira teria vindo de Fernandes Prestes, estado de São
Paulo, havia 32 dias. Nesse mesmo dia, outros compradores são registrados como
residentes em Astorga e em Rolândia. O primeiro, Nelson Rodrigues de Oliveira,
declarou ter vindo de Monte Alto, Minas Gerais, havia 32 dias, ao passo que José Luiz
de Souza, que viera de Santa Sofia, São Paulo, havia 16 dias, dizia-se residente em
Rolândia. Casos desse tipo se repetem nos registros rurais e urbanos, pondo em dúvida
a origem exata daqueles que se estabeleceram em Lobato como proprietários.
Esses exemplos evidenciam que o número de proprietários paulistas e mineiros
pode ter sido maior do que o da estatística formulada a partir dos dados da CMNP,
pois, embora alguns casos registrem a real origem dos compradores, outros, no
entanto, trazem-na obscurecida. Além disso, os registros de vendas rurais trazem
o local de residência com significado de origem do proprietário, mas os registros
urbanos apresentam somente a nacionalidade dos compradores, fato que dificulta
ainda mais a formação de quadro fidedigno sobre a origem dos compradores que
se estabeleceram em Lobato como proprietários. Apesar disso, um fato interessante
é não constar, nesses mesmos registros, vendas de lotes ou de datas a compradores
de origem nordestina. Sabe-se, porém, que havia um número significativo de
moradores dessas regiões em Lobato. Segundo o senhor João do Soutto Mello 131,
“quando nós chegamos aqui tinha muito é nortista”, e não mineiro ou paulista, e
sim “mais do nordeste”.

130 Estamos falando dos moradores das Águas e das Fazendas, sem incluir os da cidade de Lobato.

131 Depoimento de João do Soutto Mello. Lobato, outubro de 2000.

− 123
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Constatamos, portanto, que a população nordestina que se dirigiu para Lobato,


principalmente nos 10 primeiros anos da fundação, era migrante e raramente
se estabelecia como proprietária, fato que a coloca à margem do grupo social
comumente considerado fundador de um município. Coincidentemente, dos
19 entrevistados, 6 são nordestinos e 1 é descendente de nordestinos, ou seja,
aproximadamente 30% dos entrevistados.

NOME CHEGADA A ORIGEM


LOBATO
José Cavalcanti da Silva * Lobato-Paraná132
Nabio Tanaka 1949 Filipinas – registrado no Japão - Assaí PR
Alice Cafofo 1949 Batatais - São Paulo
Nair Marques de Oliveira 1949 Conceição dos Alagoas - Minas Gerais
Manoel Batista de Freitas 1950 Capim de Planta - município de Pesqueira -
Pernambuco133
Olindina Cordeiro de Freitas 1950 Pedra Buíque - Pernambuco134
Agripino Lucio dos Santos 1950 Feira de Santana - Bahia
Iracema Coletto Colontonio 1950 Borborema - São Paulo
Satoru Inoue 1951 Japão - Promissão – São Paulo
Raimundo Saraiva Peixoto 1952 Serrinha - Pernambuco
Darcy Américo de Oliveira 1952 Minas Gerais135
Durval Colontonio 1950 Olímpia - São Paulo
Valdir Cotrim 1952 Iguaí - Bahia
Olírio Xavier Cotrim 1953 Igaporã - município de Riacho de Santana – Bahia
João do Soutto Mello 1953 Passos - Minas Gerais
Zailson Lemos 1955 Passos - Minas Gerais
Tânia Martins Costa 1956 Várzea - Rio Grande do Norte
Nilo Lampugnoni 1958 Erexim - Rio Grande do Sul136
Henrique R. Oelke 1965 Hering (Alemanha) - São Paulo137

Quadro 7: Origem dos Entrevistados para a Pesquisa132133134135136137


Fonte: Depoimentos orais.

132 O sargento José Cavalcanti da Silva é Lobatense de origem. Sua entrevista versou principalmente sobre informações
referentes ao tempo em que seu pai, Valdemar Galdino e ocupou o cargo de Delegado na década de 60. O senhor
Valdemar chegou ao município ainda nos primeiros anos da década de 50, com 17 anos aproximadamente. Tanto o pai
do Sargento como sua mãe eram pernambucanos de origem. Depoimento de José Cavalcanti da Silva, 29 de setembro
de 2001.

133 Depoimento de Manoel Batista de Freitas. Lobato, setembro de 2001.

134 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

135 Depoimento de Darcy Américo de Oliveira. Lobato, outubro de 2001.

136 Depoimento de Henrique R. Oelke. Lobato, outubro de 2001.

137 Depoimento de Nilo Lampugnoni. Lobato, julho de 2002.

124 −
A CONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS SOCIAIS: AS ESCOLAS E O PERFIL ... ■

Os registros da CMNP também apontam que seis migrantes de origem japonesa


adquiriram lotes nas Águas de Lobato. Mas, segundo alguns entrevistados de
origem nipônica que viveram e que ainda vivem em Lobato, havia uma colônia de
japoneses formada por, aproximadamente, quarenta famílias. Um dos integrantes
dessa colônia é Nabio Tanaka, cujo nome não consta da lista da CMNP. Ele conta
que morava em Assaí, Paraná, quando um vendedor da Companhia esteve em sua
cidade oferecendo lotes rurais em Lobato. Seu pai, então com o dinheiro da colheita
de café realizada em Assaí, comprou, em 1949, cinqüenta alqueires de terra no
então emergente município paranaense: “Meu nome mesmo, 20 alqueires. Mas,
tem os irmãos mais novos, tudo, tudo comprou 50 alqueires” 138.
Em Lobato, Nabio e seus três irmãos iniciaram a plantação de café após terem
pagado para um empreiteiro derrubar a floresta da propriedade. Permaneceram
nela até 1959, quando, desiludidos pelas constantes geadas, arrendaram-na. Ainda
morando na zona rural, Nabio costumava ficar a semana toda trabalhando na
cerealista que seu irmão Okinari Tanaka montara na cidade, até que, em 1968,
mudou-se para Maringá com os irmãos para fundar uma fábrica de óleo, hoje
desativada. Sobre a colônia de japoneses, Nabio acredita que somente na Água em
que vivia havia aproximadamente dezesseis famílias, mas que “em Lobato inteiro
tinha mais de cinqüenta famílias”.
Outro integrante dessa colônia foi o senhor Satoro Inoue, morador ainda hoje
em sua propriedade na Água Grajaú. Como Nabio, o senhor Satoru também não
tem seu nome registrado nas fichas de venda de lotes em Lobato, mas sua história
de vida registra traços importantes da existência e das relações travadas entre
os moradores de origem nipônica na colônia. Ele conta que a Água Grajaú era
equipada com uma escola na qual se aprendia o português de manhã e o japonês à
tarde. Outros documentos orais e fontes, como os mapas do IBGE (1972a, 1972b,
1978a, 1978b) e o Livro Tombo da Paróquia de Lobato, comprovam que havia
também uma capela, um campo de futebol e uma venda naquela Água. De acordo
com o senhor Satoru, as aulas em língua nipônica eram de responsabilidade dos
moradores e ele próprio teria sido um dos professores a lecionar o idioma para as
crianças do núcleo japonês. Outra forma de reforçar e de reproduzir os aspectos
culturais nipônicos foram as sessões de filmes japoneses que aconteciam na própria
escolinha ou no clube que ficava na cidade:

É. Veio de Arapongas. Hoje mesmo acho que morando esse que trazia
cinema. É passavam filme japonês. Passava na escola no clube, na escola
ou alguma família dava a casa, juntemos sempre para assistir. Todo mês,
cinema de japonês também teve139.

138 Depoimento de Nabio Tanaka. Maringá, março de 2001.

139 Depoimento de Satoru Inoue. Lobato, outubro de 2000.

− 125
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Um clube, uma escola para ensinar o idioma japonês na Água e a própria


distribuição das construções na sede da fazenda do senhor Satoru são exemplos da
reprodução da cultura japonesa por parte daqueles moradores.
10. Quando realizamos o trabalho de campo na Água Grajaú, dona Miyoko,
esposa de Satoru, mostrou-nos as instalações da casa. Timidamente, relatou-nos
o quanto gosta de descansar no final do dia em uma sessão no escaldante ofurô
que há na casa. Construído em 1951, no mesmo ano em que chegaram a Lobato,
o ofurô possui dependência própria, localizada imediatamente ao lado do poço,
que também pertence à mesma data. Ambos são parte do ambiente doméstico e
predominantemente nipônico que há na casa do senhor Satoru e de dona Miyoko.
Outro aspecto que reproduz detalhes da cultura nipônica na fazenda Promissão
– fazenda do senhor Satoru e de dona Miyoko – é a quantidade de árvores existentes
junto à sede e as construções relativas à produção. Comparada com as demais
propriedades, essa fazenda parece mais um pomar e um jardim, tamanha é a
quantidade de frutas, de hortaliças e de árvores ornamentais.
Essa forma de ocupar o espaço da propriedade foi observada em outras
propriedades de descendentes de japoneses que vivem ainda hoje na Água Grajaú.
Além desse aspecto relativo à forma de ocupação dos espaços nas propriedades
nipônicas, a busca por elementos que denotam a existência da reprodução dessa
cultura pode ainda ser estabelecida, na memória do senhor Satoru e do senhor
Nabio, em relação à prática do budismo entre os integrantes dessa colônia. Segundo
os depoentes, um monge budista costumava visitar os moradores nipônicos a cada
dois meses: “quando encontrava em casa, avisava a turma e vinha lá em casa.
O padre posava lá em casa”, relembra Nabio, enquanto as reuniões aconteciam
geralmente na escola, recorda senhor Satoru.
Essas poucas informações sobre a existência de uma cultura nipônica,
reproduzida não só naquela época, mas também posteriormente, quando a cidade
de Lobato estava em pleno desenvolvimento, ilustram o quadro formado pela
vida social dos moradores das Águas e suas diversas formas de exteriorizar sua
religiosidade e sua própria cultura. De várias maneiras, como no caso dos encontros
budistas improvisados na escola japonesa, os moradores trouxeram para o espaço
das Águas formas de socialização do ambiente, e a religiosidade, sem dúvida, é
uma das características mais profundas dessa busca pela construção de um espaço
social.
Concluímos traçando com um paralelo entre essa informação e os dados
constantes do Registro de venda de lotes rurais e urbanos da CMNP. Embora os
paulistas tenham representado 60% dos compradores de propriedades em Lobato,
eles não foram os únicos responsáveis pela ocupação capitalista do Norte paranaense,
como foi amplamente divulgado. Essa informação equivocada desfavoreceu
historicamente os demais migrantes oriundos de outros estados. O fato de terem
sido trabalhadores braçais e não proprietários fez que eles não pertencessem ao
seleto grupo dos pioneiros. Ou seja, é costume considerar fundador ou pioneiro
126 −
A CONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS SOCIAIS: AS ESCOLAS E O PERFIL ... ■

apenas aquele que se estabeleceu como proprietário no município, atitude que,


como foi dito acima, marginaliza não só o trabalho desenvolvido por trabalhadores
braçais e autônomos da lavoura e da cidade, mas também o trabalho feminino e
infantil, tão presente em processos como o aqui analisado.
Confrontada com outras fontes, essa informação pode ser revista e ampliada,
pois os registros escolares e as fontes orais revelaram que moradores de diversas
regiões do país e do mundo também estiveram presentes em número significativo
no processo aqui analisado e enriqueceram o Município por meio da reprodução
de hábitos já conhecidos e ressignificados no contato com a nova região. O perfil
pessoal, regional e cultural desses moradores que participaram da construção da
sociedade das Águas apresenta, portanto, uma diversidade cultural, fato revelador e
esclarecedor de que nas Águas houve o predomínio paralelo de culturas diversas.
Os componentes dessas nacionalidades e regionalidades reproduziram nas
Águas elementos de um cotidiano conhecido, ao mesmo tempo em que conviviam
com a situação adversa da criação de uma sociedade, sobretudo por terem sido os
primeiros a produzirem o café, sem saberem qual seria o resultado dessa criação.
A introdução de elementos socioculturais já conhecidos funcionava de forma
estratégica, possibilitando aos seus moradores a recriação de um ambiente cujo
significado, em parte, pudesse fazer algum sentido.

− 127
6

A CONSTRUÇÃO DOS
ESPAÇOS SOCIAIS:
a presença das capelas

1. Em 12 de setembro de 1974, o padre Lino Zamperoni escreve no Livro Tombo


da Paróquia de Lobato:

Diaconias visitadas: Água do Trigo, Entrada do Colorado e Salto de Pirapó


(São João Batista). E, duas semanas mais tarde: Visita às diaconias Santa Rita
(Água Potiguara) São Sebastião (Água Seleque), diaconia Nossa Senhora de
Aparecida (Água Valmarina) e Santa Terezinha. E acrescenta: Identifiquei
o futuro diácono: o senhor Cosme Palodetti (PARÓQUIA SAGRADO
CORAÇÃO DE JESUS, 1975)140.

Essas anotações, aparentemente pouco importantes, comprovam que havia


vida religiosa não só em torno da Igreja Matriz e dos Templos Evangélicos da
cidade de Lobato, mas também nas Águas da zona rural. Em 1963, por exemplo,
comprovamos a existência de capelas nas Águas e, em 1967, encontramos nada
menos que 7 capelinhas rurais. Na década de 70, quando já havia começado o
grande êxodo rural, essas capelinhas se transformaram em diaconias a cargo de

140 A grande maioria dos dados utilizados neste capítulo foi extraída do Livro Tombo. Daqui em diante, se não houver
indicação específica, as citações são dessa fonte.
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

famílias de cristãos, como os Palodetti, na Água Paramirim/Potiguara, os Camparotto,


na Grajaú, os Campos, na Valmarina, os Favaro, na Água Flórida, e os Cerofueira,
no Salto de Pirapó. Algumas dessas capelas rurais – das quais, aliás, não resta uma
em pé - são anteriores à construção do segundo templo, começado em janeiro de
1960 e terminado, definitivamente, em março de 1963 141.
A construção da Igreja foi, sem dúvida, o resultado do esforço econômico
dos católicos lobatenses; foi atribuída, em primeiro lugar, aos primeiros vigários
de Lobato, os padres Maximiliano Sanavio e Ângelo Cerantolo. A primeira capela,
todavia, uma simples construção de tábuas de 8 x 15m, rematada por uma torre
baixinha, é mérito quase exclusivo da comunidade em uma época – estamos em
1954 - em que Lobato ainda não tinha vigário. Da Comissão responsável pela obra
faziam parte Mário Martins, Antonio Colontonio, Ernesto Gatti, Rizieri Carbelim,
Antonio Coletto, Remigio Garozzi e Adriano Antonio Pires. Essa “igreja de pau”,
como a denomina seu Agripino, foi construída em frente à praça Monteiro Lobato,
na data onde atualmente se encontra o Ginásio de Esportes. Notamos que a maioria
dos construtores dessa capela de madeira era habitante das Águas Araçá e do Trigo
e a construção das sete capelas rurais deve ter tido uma história muito semelhante.

2. Em 06 de janeiro de 1959, Dom Geraldo Fernandes, bispo de Londrina, institui


a Paróquia de Lobato. Seu território coincide em um todo com o do Município,
criado três anos antes, ou seja:

Começa na foz do Rio Bandeirante no Rio Pirapó, sobe o Rio Bandeirantes


até a foz de Água do Trigo, sobe esta até a cabeceira, daí em linha reta
procura a cabeceira do córrego Cajatri, desce por este até a foz no Riberão
Colorado, desce pelo Riberão Colorado até a foz no Rio Pirapó, desce o Rio
Pirapó até a foz do Rio Bandeirantes, ponto de partida desta demarcação
(PARÓQUIA SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, 1975).

O padre Ângelo Cerântola, segundo pároco de Lobato, registra no Livro Tombo


que a primeira missa foi celebrada em Lobato, em 1952, pelo Padre Luciano
Ambrosine, de Astorga. Esse padre era carlista (ou seja, da Congregação de São
Carlos Borromeu), assim como os três primeiros vigários, os padres Maximiliano,
Ângelo e Fulvio, os quais exerceram seu ministério em Lobato entre 1959 e 1972.
Aliás, essa congregação parece ter administrado diversas paróquias da região em
cidades como Flórida, Astorga, Munhoz de Mello, Iguaraçu e Londrina. O senhor
Durval relata que, já a partir de 1954, com a construção da capela de madeira,
vinha regularmente um padre de Iguaraçu celebrar missa e, a partir de 1956, vinha

141 A exceção é a capela de Santa Rita da Água Potiguara, de alvenaria e de construção mais bem tardia. Todas as outras
eram de madeira e foram demolidas. A capela da Água Potiguara substituiu uma outra localizada na Água Paramirim.
Em 1973, foi trasladada ao sítio da família Palodetti, pouco distante da localização anterior.

130 −
A C O N S T R U Ç Ã O D O S E S PA Ç O S S O C I A I S : A P R E S E N Ç A D A S C A P E L A S ■

o padre José Bedin, da Paróquia de Santa Fé 142. Confirmamos essa informação em


um livro recente de autoria do padre Lucas Azzopardi, atual pároco de Iguaraçu
(AZZOPARDI, 2002). Segundo ele, o primeiro vigário de Iguaraçu foi o padre
alemão Ambrósio Marks, que tomou posse da paróquia dessa cidade em 15 de
agosto de 1952 e que tinha sob a sua jurisdição as regiões de Santa Fé, Lobato,
Flórida, Munhoz de Mello e Ângulo (AZZOPARDI, 2002, p. 17-18).

Figura 22: Comissão para a construção da primeira Igreja


Católica de Lobato143 e ao fundo a lateral da Igreja, 1954
Fonte: Comissão (1954). Coleção Particular Durval Colontonio.

142 O padre José Bedin, de Santa Fé, era um sacerdote carmelita, natural de Venegazzú, Itália. Segundo Dulcilene Bram-
billa, foi “engenheiro, arquiteto, pintor construtor, marceneiro e técnico em contabilidade” e “construiu a igreja (de
Santa Fé) em tempo recorde com uma beleza arquitetônica que honrou a cidade e a região”. Essa igreja, construída na
mesma época em que foi edificada a Matriz de Lobato, ou seja, em 1960, foi derrubada por um ciclone, no dia 10 de
outubro de 1972, às 5h30min. Brambilla ([198-], p. 88, 203).

143 Participantes da Comissão da esquerda para a direita: Ernesto Gatti (lavrador empreiteiro); Mário Martins (proprietário
de uma máquina de arroz); Antonio Colontonio (administrador da Fazenda São José e pai de Durval Colontonio); Ricieri
Carbelin (proprietário de um sítio na Água Araçá, recebido como pagamento por serviços prestados ao senhor José
Sandin no estado de São Paulo); Antonio Coleto (pai de Iracema Coletto) e de Garoso (morador e proprietário na Água
do Trigo). Foto de meados da década de 1950, tirada ao lado da primeira Igreja católica construída em Lobato.

− 131
■ NNAASS ÁÁGGUUAASS DDEE LLOOBBAT
ATOO

Figura 23: Lateral da Igreja Matriz, Pe. Ângelo


Cerântola em celebração litúrgica, [196-]
Fonte: Lateral ([196-]). Coleção Particular Luiza Akiko
Suguihara.

Figura 24: Festividades religiosas I144


Fonte: Festividades ([196-]a). Coleção Particular Luiza
Akiko Suguihara.

144 Festividades religiosas em que os moradores das Águas se dirigiam à cidade representados por cores diversas.

132 −
A C O N S T R U Ç Ã O D O S E S PA Ç O S S O C I A I S : A P R E S E N Ç A D A S C A P E L A S ■

Figura 25: Festividades religiosas II


Fonte: Festividades ([1960-]b). Coleção Particular Luiza
Akiko Suguihara.

O Livro de Tombo da Paróquia de Lobato menciona que em 1952 foi rezada a


primeira missa pelo Pe. Luciano, de Astorga, debaixo de uma tenda. Cabe destacar
que a anotação é do Padre Ângelo e não pode ser anterior a 1961, o que, talvez,
justifique a ausência de uma data mais precisa. Ainda segundo o padre Lucas
Azzopardi, o nome completo seria Luciano Ambrosine (e não Luciano “Ambrosio”,
como, às vezes, aparece citado) da ordem dos padres Carlistas. Dada essa menção
tardia sobre a data da primeira missa, até seria possível a presença de padres em
Lobato com anterioridade a 1952. Por exemplo, o Padre Lucas menciona:

Existe uma opinião geral e que constitua uma pré-história de que, antes de
nossa Paróquia (ou seja, Iguaraçú) ser definitivamente atendida por Astorga,
a nossa vasta região geográfica – que incluía Santa Fé, Lobato, Flórida,
Ângulo, Munhoz de Mello e outros lugares – estava sob os cuidados
espirituais de um Padre que vinha de Arapongas. Esse padre não é nada
mais, nada menos do que o padre alemão, Pe. Bernardo Merkel SAC. Por
um tempo, até que se foram organizando as paróquias, esse padre atendia
todo este vasto território, à cavalo, além de atender, é claro, Sabáudia,
Astorga, etc. (AZZOPARDI, 2002, p. 17).

De 16 a 22 de outubro de 1954, na época em que o padre Ambrosio Marks,


de Iguaraçu, tomava conta da recentemente construída capela de Lobato, Dom
− 133
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Geraldo Proença Sigaud, bispo de Jacarezinho, realizou uma visita pastoral à


região. As fontes mencionam que em Lobato o bispo administrou o Sacramento
da Crisma a 776 pessoas, aliás, o número mais alto de toda a região, superando,
inclusive, o número de crismandos da própria Igreja Matriz de Iguaraçu. Nessa
mesma visita pastoral, Dom Geraldo aconselhou o padre Marks a rezar missa nas
capelas principais uma vez por mês (aos domingos à tarde). Não resta dúvida de que
Lobato estava incluída na lista dessas capelas principais, embora não haja, ainda,
evidências sobre a existência de capelas nas Águas na década de 50 (AZZOPARDI,
2002, p. 18-19).
Em síntese, podemos afirmar que, possivelmente, o padre Bernardo Merkel,
de Arapongas, foi o primeiro sacerdote que, sempre com posteridade a outubro
de 1950, visitou Lobato. Entre 1952 e 1954, provavelmente foi o padre Luciano
Ambrosine, de Astorga, o vigário que visitava Lobato; em todo caso, parece ter sido
ele o responsável pela celebração da primeira missa em uma data indeterminada
do ano 1952. Já com toda certeza podemos estabelecer que o lugar, especialmente
a partir da construção da capela de madeira em 1954, foi visitado regularmente
pelo padre Ambrosio Marks, de Iguaraçu, e, como já mencionamos, a partir de 26
de outubro de 1956, data em que foi criada a paróquia de Santa Fé, pelo padre-
arquiteto José Bedin145.
3. O padre Maximiliano Sanavio tomou posse da recentemente criada Paróquia
de Lobato em 25 de janeiro de 1959. Anteriormente, havia sido Reitor do Seminário
dos Padres Carlistas em Astorga e, posteriormente, já na década de 1970, teria sido
vigário de Santa Fé, primeiro, e Vigário Episcopal da Zona Pastoral de Astorga,
depois. Nesse mesmo 25 de janeiro de 1959, chegaram a Lobato o bispo Geraldo
Fernandes, de Londrina, os padres José Bedin, de Santa Fé, e Luiz Corsa, de Flórida,
e, segundo o Livro Tombo, todas as autoridades locais e uma multidão de povo. A
igreja de madeira que media 8m de largura por 15m de comprimento era insuficiente
para tanto povo. Nesse mesmo dia, foram batizadas 13 crianças que inauguraram o
Primeiro Livro de Batizados de Lobato. Transcrevemos seus nomes e os lugares de
origem dos seus pais:
1. Aparecida, nascida em 11/10/1958. Filha de Manoel Vidal Floriano e Maria
Cândida Floriano, ambos de Minas Gerais e casados em Iguaraçu.
2. Maria Rosa, nascida em 12/10/1958. Filha de Antonio Oliveira Neves e
Maria Cecília Neves, ambos de Alagoas.
3. Osmarina, nascida em 03/12/1958. Filha de Avelino Alves Cardoso e
Lazzara Garcia, ambos de Minas Gerais.
4. Saturnino, nascido em 21/11/1958. Filho de Antonio Tavares Morais, de
Pernambuco, e de Maria Guilhermina, do Ceará.

145 Acreditamos que o padre Lucas comete um pequeno erro ao considerar que a paróquia de Lobato foi criada a partir do
desmembramento da de Iguaraçu. Na realidade, Santa Fé, desmembrada em 1956, compreendia também a região de
Lobato e de Flórida.

134 −
A C O N S T R U Ç Ã O D O S E S PA Ç O S S O C I A I S : A P R E S E N Ç A D A S C A P E L A S ■

5. Vera Lúcia, nascida em 25/11/1958. Filha de Porfírio José Pereira, da Bahia,


e de Maria Aparecida Costa, de São Paulo.
6. Helena Aparecida, nascida em 15/12/1958. Filha de José Gomes Cruz e de
Benedita Deolinda da Silva, ambos de Minas Gerais.
7. Nadir, nascida em 11/11/1958. Filha de Pedro Gonçalves Rodrigues, de São
Paulo e de Maria Barbosa Rodrigues, de Minas Gerais.
8. Maria Neusa, nascida em 16/11/1958. Filha de Claudiomiro Inácio e de
Odete Ferreira, ambos de São Paulo.
9. Valdevino, nascido em 30/09/1958. Filho de Francisco de Assis e de Maria
Pereira, ambos de Minas Gerais.
10. Roberto, nascido em 09/11/1958. Filho de José Batalha e de Aparecida
Nunes, ambos de São Paulo.
11. Terezinha, nascida em 14/12/1958. Filha de Ulisses Laguna Silveira e de
Maria Rita Lagoa, ambos de São Paulo.
12. Maria de Lourdes, nascida em 06/12/1958. Filha de José T. Dos Santos, do
Paraná, e de Maria Gomes Lima, de Pernambuco.
13. Arivaldo, nascido em 07/12/1958. Filho de Lauro Caris, de Minas Gerais,
e de Percília Francisca Caris, de São Paulo (PARÓQUIA SAGRADO
CORAÇÃO DE JESUS, 1975).

Uma vez mais constatamos nessa pequena amostra a presença dos moradores
nortistas, nordestinos, mineiros e paulistas.
Como relatamos, a primeira capela se localizava na praça Monteiro Lobato, no
lugar onde se encontra agora o Ginásio. Por lógica, também a Igreja de alvenaria
deveria ser construída ali. Entretanto, houve uma divergência entre o Padre
Maximiliano e a Prefeitura Municipal acerca de umas barracas de madeira que
se encontravam em frente a essa capela, as quais o Prefeito Ildefonso Portelinha
queria erradicar, atitude com a qual o padre Maximiliano não concordava. O pleito
foi solucionado com uma troca de terrenos entre a Prefeitura e a Paróquia, troca
sancionada pela Companhia Melhoramentos do Norte de Paraná. Com efeito, em
23 de agosto de 1960, a Prefeitura de Lobato doou um terreno de 10.360m 2 à Mitra
Diocesana de Londrina, ou seja, as datas de 1 a 6 e de 8 a 18 da quadra 11. Nessa
época, os nomes das ruas que as compreendiam eram: Palmeiras (NE); Ponta Grossa
(SE), Pirapó (SO) e Paraná (NO). Estiveram presentes nessa transação, o prefeito
Ildefonso Martins Portelinha, como donatário, o padre Maximiliano Sanavio,
representando a Diocese de Londrina, as testemunhas Juvenal de Oliveira Motta
e Sebastião Baroni e, como anuentes por parte da Companhia Melhoramentos, os
procuradores Aristides de Souza Mello e Vladimir Revensky 146.

146 Esses anuentes da Companhia deviam autorizar o cancelamento da doação à Prefeitura desse mesmo terreno, feita dois
anos antes.

− 135
■ NNAASS ÁÁGGUUAASS DDEE LLOOBBAT
ATOO

Figura 26: Igreja Sagrado Coração de Jesus


Fonte: Igreja (1964). Coleção Particular Joaquim Francisco Pinto147.

Figura 27: Igreja Sagrado Coração de Jesus, nos dias


atuais
Fonte: Igreja ([200-]). Coleção Particular Joaquim Francisco Pinto.

147 O Sr. Joaquim Francisco Pinto foi Prefeito de Lobato na gestão 1961-1964.

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A C O N S T R U Ç Ã O D O S E S PA Ç O S S O C I A I S : A P R E S E N Ç A D A S C A P E L A S ■

O padre Maximiliano ficou em Lobato até meados de 1961 e, posteriormente,


transferiu-se para Santa Fé. Em seu lugar tomou posse o padre Ângelo Cerântola,
que foi pároco até janeiro de 1971, ou seja, esteve no período do auge do
café, no momento em que havia mais habitantes e vida social no Município
com destaque para a vida comunitária nas numerosas Águas da zona rural. Esse
padre fundou a Banda Paroquial em 1962; concluiu a Igreja no ano seguinte;
fundou a Biblioteca Paroquial em 1964 e, em 1966, começou a construir a Casa
Canônica. Em 1967, a Prefeitura de Lobato construiu no terreno da Igreja um
Jardim de Infantes, com quase 100 crianças e uma Escola de Corte e Costura.
Ainda em 18 de janeiro de 1970 (10 anos depois de iniciada a construção da
Igreja), foi colocada a pedra inaugural da Torre, a qual foi inaugurada em 15 de
agosto do mesmo ano.

4. A fonte que utilizamos menciona que, no ano de 1967, foram inauguradas 3


capelas na zona rural; Capela de Santa Rita, em 23 de abril, na estrada de Paramirim,
Capela São Sebastião, em 30 do mesmo mês, na venda da Água Seleque, Capela
de São João Batista, em 7 de setembro, no Salto Pirapó. Essas capelas, parece-nos,
foram fundadas e mantidas por “Irmandades”, ainda que posteriormente, na década
de 1970, intentassem convertê-las em Diaconias. Com fundamento no Livro Tombo
da Paróquia (PARÓQUIA SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, 1975), podemos
reconstruir o quadro seguinte:

ÁGUA CAPELA/DIACONIA DATA DA FUNDAÇÃO

Paramirim /Potiguara Santa Rita 23/04/1967

Seleque São Sebastião 30/04/1967

Salto Pirapó São João Batista 07/0971967

Água do Trigo Santa Maria (anterior a 1963?)

Colorado São Antônio (anterior a 1963?)

Valmarina Nossa Senhora Aparecida (anterior a 1963?)

Santa Terezinha ? (anterior a 1963?)

Quadro 8: Localização das Capelas rurais e data de fundação


Fonte: Paróquia Sagrado Coração de Jesus (1956-1975).

− 137
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

1967 não foi o ano da fundação das primeiras capelas nas Águas. Segundo
a mesma fonte mencionada, em 1963, ou antes, parece que houve três capelas,
possivelmente as das Águas do Trigo, do Colorado e do Valmarina pelo seu
tamanho e importância. Destacamos que antes de abril de 1967 já havia
algumas capelas rurais no Município, segundo o que menciona, em janeiro de
1967, o padre Ângelo no Livro Tombo: “11 a 16 de janeiro de 1967. Visita
pastoral do bispo Dom Romeu Alberti de Apucarana que se realizou na matriz,
nas capelas e nas Águas do Município” (PARÓQUIA SAGRADO CORAÇÃO
DE JESUS, 1975). A evidência resulta importante: a visita do bispo não só
mostra a existência de capelas anteriores a 1967, mas também a presença de
comunidades religiosas em Águas desprovidas de capelas. As recomendações
do bispo também coincidem:

3.ª (recomendação) Que se formem as várias comunidades de bem [sic]


rurais em torno das respectivas capelas já existentes ou por existirem,
dentro de territórios razoavelmente delimitados sob a responsabilidade
de comissões pastorais paulatinamente integrados pelos vários membros
(PARÓQUIA SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, 1975).

Na sexta recomendação, o bispo chama as comunidades religiosas das Águas


de “pequenas igrejas domésticas” (PARÓQUIA SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS,
1975). Ora, esse tipo de comunidade começa a existir com anterioridade à fundação
das capelas; por exemplo, a primeira comunhão era celebrada nas escolas das
Águas, tal como o menciona o padre Ângelo: “29/07/1962. Primeira comunhão das
escolas isoladas com mais de 250 crianças” (PARÓQUIA SAGRADO CORAÇÃO
DE JESUS, 1975). Na década de 1960, padre Ângelo menciona continuamente a
questão da construção da igreja matriz (1959 a 1963) e a da torre (1967-1970).
Nesse sentido, as Águas não merecem muita atenção, a não ser como possíveis
fontes de ingresso para essas construções. Vejamos mais uma anotação: “16 e 17
de maio de 1970: festas em todas as Capelas da Paróquia em benefício da torre”
(PARÓQUIA SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, 1975). Uma vez mais, a cidade de
Lobato é construída a partir das Águas.
Evidentemente que a construção de capelas como as das Águas Paramirim,
Seleque e Salto Pirapó é bastante tardia, já que três anos depois da sua
inauguração já começava o grande êxodo da zona rural. Talvez mais importante
do que a existência dessas capelas rurais fosse a existência das chamadas
“igrejas domésticas”, que poderiam funcionar nas escolas isoladas ou nas
casas dos Camparotto, na Água Grajaú, dos Palodetti, na Água Potiguara, dos
Campos, na Valmarina, dos Favaro, na Água Flórida (Água Colorado), dos
Cerofuera, no Salto Pirapó (PARÓQUIA SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS,
1975).
138 −
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Figura 28: Capela Santa Rita, 1973


Fonte: Capela ([2001]). Coleção Particular Andreas L. Doeswijk.

5. Em 2 e 3 de março de 1963, foi inaugurada solenemente a Igreja Matriz. Esteve


presente o bispo de Londrina, Dom Geraldo Fernandes, o padre Santo Bernardi,
superior provincial dos Padres Carlistas, o padre Maximiliano, agora vigário de Santa
Fé, o padre Luiz Corsa, de Flórida, o padre Guido Pirello, de Munhoz de Mello,
e o vigário de Colorado. Estavam também presentes as autoridades municipais,
lideradas pelo Prefeito Joaquim Francisco Pinto – comerciante pioneiro conhecido
como “Joaquim Mineiro”. Uma semana depois dessa solene inauguração da Igreja
Matriz, dois vereadores, Nelson Rodrigues de Oliveira e José Antunes Filho,
apresentam um projeto de lei que pretendia conceder uma subvenção à Paróquia a
fim de possibilitar a construção da torre. Tanto o Presidente da Câmara Waldevino
Pereira de Carvalho quanto o Secretário Oscar Cotrim Ribeiro foi contra essa
iniciativa. Ambos alegaram que o Projeto era inconstitucional e que a Prefeitura,
ao menos para o ano de 1963, não dispunha de verbas e, no caso de aprovação do
referido Projeto, outras obras (por exemplo, a construção da Rodoviária e a ajuda
financeira à Santa Casa da Misericórdia de Astorga) seriam paralisadas. Depois de
um princípio de acordo para inserir a subvenção no orçamento do ano seguinte,
− 139
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

1964, o vereador Sebastião Augusto Valim esclareceu que o Padre Ângelo ainda não
cogitava começar a construção da torre naquele ano, fato que levou à formação de
uma Comissão para estudar melhor o Projeto (CÂMARA MUNICIPAL DE LOBATO,
1963a, f. 197). Essa decisão de Padre Ângelo foi confirmada no mês seguinte com
uma carta dirigida à Câmara. De sua parte, a Comissão designada ad hoc emitiu um
parecer desfavorável e o Projeto foi rejeitado por três votos contra e dois a favor,
estes últimos por parte de seus autores, enquanto Antunes Filho manifestou que a
Comissão foi contrária à subvenção “por motivo de política” (CÂMARA MUNICIPAL
DE LOBATO, 1963b, f. 3). Ainda na sessão seguinte, o Projeto foi novamente
rejeitado, dessa vez com cinco votos contra e os mesmos dois votos favoráveis
(CÂMARA MUNICIPAL DE LOBATO, 1963b, f. 6). Ora, lendo cuidadosamente as
Atas da Câmara, apesar das acusações do vereador Antunes Filho, não parece haver
neste episódio da subvenção da Torre alguma questão religiosa de partidários e de
inimigos da Paróquia de Lobato. Em um primeiro momento, Pereira de Carvalho
menciona a inconstitucionalidade do Projeto; em seguida, todos concordam em
outorgar a subvenção para o ano seguinte, e a decisão de Padre Ângelo de não
começar com a referida construção decidiu o voto da maioria.
De 11 a 16 de janeiro de 1967, o bispo de Apucarana, Dom Romeu Alberti,
realizou a visita pastoral a Lobato. 148 Essa visita de quase uma semana não se
restringiu somente à cidade de Lobato, mas se estendeu também às capelas das
Águas. Nos conselhos do bispo ao padre Ângelo, nota-se uma grande preocupação
em integrar as comunidades religiosas das Águas em torno da Igreja Matriz. Dessa
forma, algumas das recomendações com referência ao que chama “pequenas igrejas
domésticas” rezavam assim (PARÓQUIA SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, 1975):

3. Que se formem as várias comunidades de bem [sic] rurais em torno das


respectivas capelas, já existentes ou por existirem, dentro dos territórios
razoavelmente delimitados, sob a responsabilidade de comissões pastorais
paulatinamente integrados pelos vários membros;
4. Que as supramencionadas comissões pastorais se reúnam periodicamente
com o Reverendo Pároco, afim de, sob sua orientação, apresentarem a
revisão de suas atividades e prepararem o plano de sua ação conjunta.

É possível que essas recomendações manifestassem a preocupação de que nas


Águas estivesse se desenvolvendo uma vida religiosa independente da Paróquia
de Lobato. O outro elemento que chama a atenção é que Dom Romeu fala em
“comunidades” e em “pequenas igrejas domésticas”. Isso confirma nossa hipótese
de que havia uma autêntica vida social em cada uma das Águas - a qual se manifesta
no plano religioso - e de que a denominação generalizada de “comunidades das
Águas” poderia ter uma origem religiosa149.

148 Com efeito, a partir do três de março de 1965, Lobato começou a pertencer à nova diocese de Apucarana.

149 Agradeço essa observação ao professor José Henrique Rollo Gonçalves.

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6. De janeiro de 1971 a meados de 1972, o padre Fulvio Patassini foi o terceiro


vigário de Lobato e o último dos três Padres Carlistas a exercer o ministério na
localidade, pois em junho de 1972 a Congregação entregou a Paróquia ao bispado
de Apucarana, e o padre Tarcísio Chicco veio a ser o primeiro presbítero diocesano,
vigário de Lobato. A lista completa de todos os vigários da Paróquia de Lobato ficou
assim composta:

PADRES PERÍODO DO MINISTÉRIO


Pe. Maximiliano Sanavio 25/01/1959 a 20/08/1961
Pe. Ângelo Cerântola 20/08/1961 a 17/01/1971
Pe. Fulvio Patassini 20/01/1979 a 13/06/1972
Pe. Tarcísio Chicco 13/06/1972 a 02/02/1974
Pe. Henrique Basílio Jung 17/02/1974 a 01/09/1974
Pe. Lino Zamperoni 01/09/1974 a 29/02/1976
Diácono Belarmino Fonseca 03/03/1975 a 07/02/1977
Pe. Miguel Pace 29/02/1976 a 02/11/1976
Pe. João Benedito dos Reis 02/11/1976 a 13/05/1979
Pe. Simeón Ibarra Torres 13/05/1979 a 01/02/1981

Quadro 9: Sacerdotes que exerceram o ministério em Lobato: 1959-1981


Fonte: Elaborado a partir dos documentos da Paróquia Sagrado Coração de Jesus de Lobato. Livro
Tombo (1975), Livro de Batizados (1999)150.

A aparente continuidade dos ministros na Paróquia, como sugere a tabela, ao


menos para as décadas de 70 e 80, não reflete a realidade da época. Por exemplo,
os padres Henrique, Lino, Miguel e João Benedito não parecem ter morado na Casa
Paroquial e, normalmente, vinham uma vez por semana a Lobato para celebrar a
missa. Por outro lado, ao contrário do que consta na tabela, poderíamos considerar
que Lobato já tinha seus vigários com anterioridade a 1959, pois a comunidade
foi atendida por Iguaraçu até 1956 e por Santa Fé de 1956 até inícios de 1959.
Decidimos incluir na lista dos padres de Lobato o diácono Belarmino Fonseca, que
exerceu seu ministério durante quase três anos, em uma época em que os padres
não residiam em Lobato e vinham de Santa Fé ou de Flórida uma vez por semana
para a celebração eucarística e para ministrar outros sacramentos, como batizados

150 Elaboração de Andréas Doeswijk a partir de documentos da Paróquia Sagrado Coração de Jesus de Lobato, como o
Livro Tombo e o Livro de Batizados. Em caso de ausência de dados sobre a data de saída, fizemos coincidir essa com
a chegada do novo pároco. Destaque: elaboramos a listagem de sacerdotes responsáveis por Lobato a partir da criação
da paróquia em 1959. Porém, os primeiros padres que visitaram e atenderam a comunidade católica da incipiente cida-
dezinha foram, provavelmente, Bernardo Merkel e, com certeza, Luciano Ambrosine, Ambrosio Marks e José Bedin, de
Astorga, de Iguaraçu e de Santa Fé, respectivamente.

− 141
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

e casamentos. Na década de 1970, sobretudo a partir de 1972, as anotações


no Livro Tombo são relativamente escassas, o que dificulta a reconstituição da
memória social de Lobato em uma época de mudanças estruturais e de êxodos.
Em forma crescente, vão desaparecendo as menções às capelas e às comunidades
religiosas das Águas, sobretudo daqueles padres que parecem nunca ter morado
em Lobato.

7. Com referência às outras confissões cristãs com uma presença relevante em


Lobato, estão as comunidades e os templos da Congregação Cristã e da Assembléia
de Deus. A Congregação Cristã do Brasil comprou, em 26 de novembro de 1952, o
lote urbano 10/5 de 600m2, pagando por ele C$4.200,00, ou seja, um preço bem mais
barato que o valor comercial da época (COMPANHIA MELHORAMENTOS NORTE
DO PARANÁ, 1979). Segundo a mesma fonte da Companhia Melhoramentos, a
Igreja Evangélica Assembléia de Deus comprou a data de seu templo atual em 27
de maio de 1959, no mesmo ano em que o Prefeito Portelinha comprou os 5.200m2
de terra para o Jardim Público - hoje quase que totalmente ocupado pelo Ginásio
de Esportes. Segundo o livro Histórico de Lobato, da professora Ana V. Brito de
Souza, a primeira Igreja era de madeira e foi construída em 1960, quer dizer, no
ano seguinte à compra do terreno. Trinta anos mais tarde, em 1990, essa construção
foi substituída pelo templo atual, situado em frente ao Jardim Público e à Rodoviária
(SOUZA, 1990).
O senhor Henrique Oelke151 foi dirigente, diácono e presbítero da Igreja
Assembléia de Deus entre 1966 e 1984, ou seja, durante 18 anos. Nascido em
Hering, Alemanha, em 1922, chegou com a sua família ao Brasil em 1926 para
trabalhar em uma fazenda de café perto de Jaboticabal. Em 1951, já casado, migrou
para Imbiaçaba, Paraná, onde o sogro havia comprado um sítio de 20 alqueires, o
qual ele, o senhor Henrique, ajudou a abrir derrubando o mato. Em 1965 comprou
seu próprio sítio na Água Araçá, em Lobato, para cultivar café, milho, arroz, mamona
e criar algumas vacas de leite. O senhor Oelke, nascido em berço luterano, passou
a freqüentar a Igreja Assembléia de Deus de Lobato a partir de 1966, após uma
doença que matou seu filho Alberto. Nesse mesmo ano, foram batizados e o senhor
Henrique virou Dirigente da Igreja. Ele recorda que na década de 60 só havia de 12
a 15 pessoas que a freqüentavam; hoje são 52 pessoas, além dos congregados.
Quanto às atividades religiosas da semana, o senhor Henrique esclarece que
no primeiro dia da semana: Domingo temos a Escola Bíblica de manhã. Às sete
horas temos o culto de família. Terça-feira, culto de oração com o ensinamento da
palavra. Quinta-feira, culto de libertação. (Sempre às dezenove horas e meia da
tarde). Só no domingo que é às sete e meia da manhã. São esses os trabalhos que
tem.

151 Depoimento de Henrique R. Oelke. Lobato outubro de 2001.

142 −
A C O N S T R U Ç Ã O D O S E S PA Ç O S S O C I A I S : A P R E S E N Ç A D A S C A P E L A S ■

E, com referência à vida religiosa das mulheres, o esclarecimento foi que


as “mulheres têm o círculo de oração. Então nas quartas-feiras é o trabalho das
mulheres. Então elas, e no domingo, elas ensinam as crianças e na quarta-feira o
círculo de oração das irmãs”152.
Como já foi mencionado, nas décadas de 50 e 60 morava em Lobato uma
importante comunidade japonesa. De acordo com os Registros de venda da CMNP,
havia 6 proprietários de lotes rurais e 9 proprietários de lotes urbanos de origem
nipônica. Se a eles somarmos os que adquiriram lotes rurais e urbanos de terceiros e
os não-proprietários, a presença da comunidade nipônica resulta mais que relevante,
fato comprovado pelo já citado Clube japonês, onde se realizavam festas (com
brincadeiras como “corrida do saco” e “passar por baixo do encerado”), bailes e
onde eram exibidos filmes japoneses. Ora, o senhor Satoru chamou a atenção para
a transformação ocorrida na religião praticada pelos japoneses desde a fundação
de Lobato. Segundo ele, nos anos 50, predominava o budismo na colônia, essa
prática era reforçada de tempo em tempo com a visita de um monge budista, mas
atualmente, "todavia, as crianças são católicas" 153.
Além das práticas religiosas descritas, havia em Lobato o “Centro Espírita Jesus
de Nazaré”, localizado à rua Wilson de Lima Lemos. Os dois farmacêuticos de
Lobato, Oscar e Valdir Cotrim Ribeiro, eram lideranças espíritas e o segundo, em
depoimento, nos informou o seguinte:

Tem o terreno, tinha um salão velho... Naquele tempo o pessoal mudava


muito, morava aqui, depois ‘tem um lugar melhor’, ia para tal lugar, e com
isso, porque o espiritismo, não entrando no âmago da questão, tem que
ter gente, condições [...] Porque a pessoa vai levar de livre e espontânea
vontade, não é propriamente como um fanatismo, não é nada disso. É uma
questão liberal, a pessoa vai porque quer154.

O senhor Valdir contou que às vezes as reuniões contavam com até 50 pessoas,
porém, com o tempo, “esse salão foi acabando e no fim mudaram quase todos,
ficou só eu e meu irmão e nós ficamos tomando conta dali, mas sem funcionar
porque depois começou a cair tudo”. Finalmente, resolveram demolir o prédio
e manter o terreno cercado por um muro e um portão. Quanto à crença espírita
em geral, ele acredita na reencarnação e possui um determinado espírito racional,
científico e liberal frente às grandes questões da vida humana. Mais que uma religião
transcendental, as suas práticas revelam um humanismo fundamentado em alguns
princípios espirituais cristãos.
Vários depoimentos comprovam a profunda fé religiosa dos habitantes de
Lobato. Por exemplo, a senhora Olindina mostra em sua fala sua grande crença

152 Depoimento de Henrique R. Oelke. Lobato outubro de 2001.

153 Depoimento de Satoru Inoue. Lobato, outubro de 2000.

154 Depoimento de Valdir Cotrim Ribeiro. Lobato março de 2001.

− 143
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

na ajuda divina na luta contra as dificuldades encontradas ao longo de uma vida.


Mas, no caso dessa senhora profundamente católica e cristã, a religião não funciona
como um par de muletas para realizar a travessia do deserto nem como uma
barganha para obter vantagens materiais, segundo o estilo neopentecostal atual,
senão como inspiração para lutar pela sua família e se realizar como mulher e
cidadã. Impressiona como Olindina agradece a Deus não só pelas coisas boas que
aconteceram na sua vida, mas também pelos momentos ruins: “Mas eu agradeço a
Deus, por eu ter passado o que eu passei, que assim dei valor a mim própria” 155.
Deixamos registrado o desejo das pessoas de serem protagonistas e não
simples coadjuvantes. Por exemplo, os padres Maximiliano e Ângelo seguramente
se esforçaram ao máximo para realizar a construção da Igreja de alvenaria, com
a qual o povo lobatense colaborou generosamente. Na memória dos fundadores
da localidade, entretanto, permanece com muito mais relevo a epopéia de 1954,
quando eles próprios construíram a primeira capela de madeira. Já citamos algumas
das lembranças do senhor Durval e podemos acrescentar as de outros, como as
de seu Agripino, que associa a construção da capela à abertura da estrada para
Colorado: “Eu ajudei ainda fazer uma igreja de pau que tinha ali no meio do jardim,
eu ajudei ainda abrir a estrada para Colorado” 156. O senhor Henrique Oelke também
enfatiza o sacrifício que significou construir o templo de 1990: “Custou trabalho
porque, sabe, a igreja não é rica, a igreja é pobre. Então aí foi com ofertas de uns e
de outros voluntários né, que foi construído”157. Parece que a estratégia das últimas
gestões municipais também vai ao encontro daquilo que estamos afirmando, pois
optaram pela construção de bairros com o sistema de mutirão, que se fundamenta
no trabalho solidário das pessoas para baratear os custos de produção e valorizar o
trabalho da comunidade. Em lugar de colaborar economicamente para a construção
da Igreja, elas passam a construir a Igreja; em lugar de receber de graça uma casa
feita, transformaram-se em protagonistas das suas próprias vidas e ações e passaram
a valorizar mais a importância da casa nova.
Para construir as suas capelas rurais, os moradores das Águas do Trigo,
Paramirim/Potiguara, Seleque, Salto Pirapó, Colorado, Valmarina e Santa Terezinha
mostraram a mesma solidariedade daqueles moradores da Água Araçá, que
construíram a primeira capela de Lobato em 1954, cinco anos antes da chegada
do primeiro vigário. Desse modo, a esfera religiosa ou as igrejas domésticas
participavam ativamente da (re)construção de um espaço social chamado Água no
Norte Novo do Paraná.

155 Depoimento de Olindina Cordeiro de Freitas. Lobato, outubro de 2001.

156 Depoimento de Agripino Lucio dos Santos. Lobato, outubro de 2001.

157 Depoimento de Henrique R. Oelke. Lobato outubro de 2001.

144 −
7

VIGIAR E PUNIR

1. Em 08 de maio de 1967, o Delegado João Soutto de Mello, figura bem conhecida


em Lobato por ter sido Vereador, Vice-prefeito, Prefeito e Delegado de Polícia,
mandou o soldado Valdemar Galdino da Silva ir atrás de Mandraque, famoso
por fazer desaparecer as coisas, com a seguinte missiva para as delegacias dos
Municípios vizinhos:

Excmo. Snr. Delegado de Polícia.


Com este tem a onra de apresentar a V. Excia o soldado Valdemar Galdino
da Silva, deste Destacamento Policial, que mesmo vai a este localidade
afim de localizar o indivíduo Timóteo de Cinturião (vulgo “Mandraque”)
que mesmo levou-se uma radiola de marca Philips de propriedade de Jaime
Pereira de Carvalho, foi levado pelo mesmo umas folhas de cheque de
talões do Snr. Moacir Satori, e também discos. Ao ensejo presento VVSS os
meus protestos de elevada estima e distinta consideração.
João Soutto de Mello. Delegado Policial de Lobato (DELEGACIA DE
POLICIA DE LOBATO, 1990).

Quem era esse soldado Valdemar? De onde veio e por que decidiu entrar
na polícia se sua primeira intenção foi a de adquirir uma chácara das terras da
Companhia Melhoramentos? O filho de Valdemar, Sargento José Cavalcanti da
Silva, narrou a história do seu pai a quem devota uma admiração notável. Nascido
em maio de 1933 em Pedra de Buíque, Pernambuco, chegou a Lobato aos 17 anos
de idade, ou seja, em 1950. O lugar de chegada foi a Fazenda Moron, administrada
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

por outro pernambucano, Adolfo Ferreira Vaz, do qual falamos anteriormente.


Trabalhou na lavoura, com gado leiteiro e até “gostava de fazer um rolinho com
compra e venda de gado”158, porém o que mais desejava na vida era “entrar um
dia na instituição policial a igual que seus irmãos Temeriano e José Galdino”. Com
efeito, em Pernambuco há dinastias de policiais em que o ofício passa de pai para
filho durante várias gerações.
Seu Valdemar mudou-se de Lobato para Arapongas onde casou com a
pernambucana Neuza Albuquerque da Silva; dali, em 1957, foi para Curitiba onde
ingressou na Polícia Militar, voltando já formado para Arapongas. Retornou a
Lobato em 1962 e, no ano seguinte, o encontramos como soldado do Destacamento
da Polícia Militar do Município. Em 1969, é nomeado Comandante do mesmo
Destacamento, cargo que ocupou até a sua aposentadoria em 1984. Posteriormente,
em 1979, novamente é nomeado Comandante, dessa vez da Polícia Civil de Lobato.
Faleceu, prematuramente, em 1994.
Como veremos mais à frente, a maioria dos crimes - que normalmente
não passavam de infrações - consistia em arruaças, embriaguez, rixas em bares
(eventualmente com armas brancas), em festas e em bailes; em contadas ocasiões,
ocorria furto de gado e, como naquela época a maioria das pessoas morava nas
Águas e Fazendas, a maior parte das infrações também acontecia ali. Segundo
o Sargento José, um dos grandes problemas que a polícia, na época do seu pai
Valdemar, tinha de enfrentar era a falta de meios de locomoção adequados para
chegar rapidamente ao local do crime:

O policial não tinha meio de transporte. Então, às vezes, onde acontecia...


‘Não, fulano foi esfaqueado lá na Fazenda Ferraz’, então o camarada, às
vezes, se embrenhava no mato e o policial tinha que arrumar uma carona
e ir até lá, às vezes usava um jeep é, e de jeep chegava lá e tinha que se
embrenhar no mato159.

Os bailes das Águas de Lobato significavam não só uma oportunidade de lazer,


mas também a possibilidade de brigas. Questionado se seu pai ia a esses bailes, José
respondeu:

Geralmente ia. Então qualquer diversão do povo era nos bailes. Todo
baile que tinha era convidado a ir, às vezes pela profissão, às vezes para
participar do baile porque ele era muito querido e popular entre as pessoas
e todos os sábados tinha um baile numa água. Era a animação do povo era
o baile e, fatalmente, no fim do baile dava uma briga, uma, duas ou mais
brigas, variava de lugar em lugar160.

158 Depoimento de José Cavalcanti Silva. Lobato, outubro de 2001.

159 Depoimento de José Cavalcanti Silva. Lobato, outubro de 2001.

160 Depoimento de José Cavalcanti Silva. Lobato, outubro de 2001.

146 −
VIGIAR E PUNIR ■

Os pleitos eram dirimidos geralmente à faca: “Então a maioria desse pessoal


tinha como companheira inseparável uma faca. Então, geralmente, o maior número
de ocorrências era de embriaguez e, sempre, porte de arma branca", esclarece José.
Esse porte de armas é confirmado também pelo mineiro João Soutto de Mello 161,
Delegado de Polícia nos anos 60:

Ah, às vezes achava aí dez, doze peixeiras de uma vez. Daquelas peixeironas
danadas. Aquilo que se pegar a gente espeta aqui e sai do outro lado”. “Um
dia chegamos numa festinha que foi uma coisa interessante: nós fomos à
Fazenda São Tiago, tomar uma água. E você, de noite, você ia, passava
a mão assim, sabe, e quando passei a mão peguei uma faca. ‘Uai, uma
peixeira aqui!’. Os caras quando viram a polícia chegar jogaram todas as
facas lá dentro. Aí eu passei a mão e peguei outra. Aí o soldado que estava
comigo falou, ‘vamos pegar outra que tem mais aqui’. Pegamos umas cinco
ou seis facas ali.

Outras ocasiões de briga eram as partidas de futebol. O seu Olírio Cotrim 162
jogava no time da Igreja, chamado “Os Marianos”; ao ser questionado sobre brigas
durante os jogos de futebol nas Águas, contou: “Dava, briga dava; quando um
marcava um gol e o juiz não marcava direito o pau torava, pancadaria. [...] Saía
embora correndo e já falava: ‘domingo vocês vão e vocês vão nos pagar’. Aí o outro
já amanhecia doente no domingo. Era uma barbaridade”.
O seu Agripino163 também se recorda das brigas, porém, dessa vez, entre os
torcedores. Com seu jeito carismático de cativar a atenção da audiência, narrou a
seguinte situação:

Eu, falar a verdade, eu brigava também. Eu vou negar? Home! Quando é


um dia, eu tava no campo e veio um jogador de lá, do Alto Alegre [cidade
vizinha a Lobato], ai eles fizeram um jogo e a torcida dele estava assim
encostado de nóis. Ele antes de gritar: cadê os jogador daqui? ele gritou:
cadê os homens?. Ele tava tocando o rádio eu virei meti-lhe o pé no rádio.
Eu meti-lhe o pé no rádio, peãozada tomou conta, o pau quebrou e eu saí
fora e digo: brigam lá vocês!

Já na própria cidade de Lobato, as infrações mais freqüentes eram de


embriaguez, de arruaças na praça Monteiro Lobato ou na avenida Presidente
Vargas, eventualmente seguidas de desacato à autoridade policial na iminência de
possível prisão, que não costumava durar mais de um dia, ou melhor, de uma noite:
“Sarava da pinga e já soltava.”, diz o Sr. João do Soutto Mello, dada sua experiência

161 Depoimento de João do Soutto Mello, Lobato outubro de 2000.

162 Depoimento de Olírio Xavier Cotrim, Lobato outubro de 2000.

163 Depoimento de Agripino Lucio dos Santos. Lobato, outubro de 2001.

− 147
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

como ex-delegado de Lobato. Como em muitos outros lugares, também os bares


costumavam se constituir em cenários de desavenças e de encrencas. Em 1961, por
exemplo, o Sr. A L. S.164 apresenta a seguinte queixa:

Aos nove dias do mês de outubro do ano de mil novecentos e sessenta


e um, nésta cidade de Lobato, na Delegacia de Polícia onde presente-se
encontrava o Snr. João de Soutto Mello Delegado de polícia em exercicio.
Comigo, escrivão do Seu cargo ao final assinado, compareceu o Snr. A
L S, Brasileiro, casado, maior, capaz, Residente e Domiciliado no Lugar,
Cidade de Lobato, neste Município o qual apresentou queixa contra J. de
tal, Vulgo J. Alfaiate. Filho de, digo, também Residente na mesma cidade
de Lobato, também casado brasileiro, maior, capaz, de que: no Dia Sete
do corrente mês e ano, aproximadamente às Dez horas da noite (22 horas)
no bar na venida desta Cidade, Local onde reside o agressor. Queixoso A
L S. foi agredido pelo Snr J. de tal por motivo de política com uma arma
branca a qual é inginorada não Sabendo a Espécie da arma. Outrossim a
mesma vitima que é o Senhor A L. S. Diz – que tinha se atarracado em Luta
corporal, com Snr J. de tal, o agressor, Quando recebeu um Ferro na Escosta
do Primo do agressor (DELEGACIA DE POLICIA DE LOBATO, 1963).

Havia brigas nos bailes, nas partidas de futebol, nos bares de Lobato e, às vezes,
até nas festas do Salão Paroquial. Mas, ainda que algumas lembranças parecessem
enfatizar a violência, outras insistiam no fato de que Lobato era uma grande família,
na qual reinava a paz. É óbvio que a memória de um delegado de polícia tenderá
a enfatizar os conflitos, ao passo que a memória popular postulará que todo tempo
passado foi melhor. Também havia roubos de galinhas, de sacas de café ou de algum
bezerro ou cavalo, porém em uma proporção mais que modesta. Os registros, por
vezes, são cômicos, porém não para as vítimas dos roubos. Vejamos, por exemplo,
esta queixa registrada na Delegacia de Policia de Lobato, em 20 de abril de 1957:

Compareceu o Snr Haride Cavaletti. Apresentou qeicha que no dia (18)


do mesmo meis robara se da sua rezidencia na Avenida Arapongas no seu
quintal o na sua casa, os individuos A F. G., P. R. e G. S. robara no dia 18
de Abril 12 galinhas de queichoso para fazer faras. Como no dia de Sexta
Feira da Pachão tinha Patrulha Solicito desta Autoridade de Lobato o Snr.
Delegado toma Providencia contra os Individuos. Assina. Haride Cavaletti.
Aliás, em uma localidade tão tranqüila como Lobato, o roubo de galinhas
parecia constituir um clássico imune ao passo do tempo: quase 20 anos
depois, o elegado Valdemar recebe a queixa de uma senhora contra um
cidadão de Santa Fé que fugiu com a sua filha por nome M. N. I. Em uma
observação, o Delegado esclarece:
Queiro certificar ao Superior que este tal de Q., ou T., tem por costume
roubar galinha, pois nesta cidade o mesmo roubou galinhas de várias
pessoas, foi encontrado um saco de galinha numa casa velha nesta cidade
por um garoto, dito que foi o rapaz quem o deixou. Assina: Valdemar
Galdino da Silva (DELEGACIA DE POLICIA DE LOBATO, 1963).

164 Optamos por fornecer só as iniciais das pessoas envolvidas.

148 −
VIGIAR E PUNIR ■

O filho de seu Valdemar sintetiza bem o perfil dos roubos na Lobato dos velhos
tempos:

Isso era o tipo de roubo comum no Município. Era roubo de galinhas, de


gado, de cavalo... Mas não tinha tanto furto de dinheiro, furto de roupa,
esse tipo de coisas não tinha [...] Mas o que era comum mesmo era roubo
de galinhas, de produtos agrícolas, não de insumos, produtos mesmos,
fardo de algodão, sacas de amendoim, de mamona ou de [...] eram raros
mas era o mais comum acontecer165.

Quando um daqueles roubos menores ocorria entre vizinhos, costumava


romper seriamente as relações sociais entre eles. O caso denunciado em 18 de
dezembro de 1961 ante o Delegado João de Soutto Mello resulta até cômico:

A. B. contra seus vizinhos J. V. S. e S. N.


Que na manhã de hoje foi desaparecido um cabrito de Sua Casa e logo mas
seu cachorro apareceu com o rabo do cabrito e logo seus vizinhos já estava
diferente com o Sr. A de B (DELEGACIA DE POLICIA DE LOBATO, 1963).

Aliás, muitas das queixas que se registram são de brigas entre vizinhos, tanto na
cidade como nas Águas. Essas brigas ocorriam muitas vezes por questões de limites
e algumas vezes por roubo de animais. Ora, os escassos documentos que ainda
são conservados na Delegacia não são suficientes para desenhar uma estatística
da freqüência desses crimes, transgressões ou brigas, mas são suficientes para
descrever alguns casos em particular. Em 1976, por exemplo, João Aguitone, da
Água Paramirim, na beira do rio Pirapó, denuncia o esfaqueamento de uma cabra e
o roubo de um cabrito e de vários porcos. Embora não chegue a acusar alguém de
forma direta, faz questão de declarar que “um ‘vulgo’ M., daquela data em diante
ficava expressamente proibido de passar dentro da sua propriedade agrícola e muito
menos onde existe o mangueirão (DELEGACIA DE POLICIA DE LOBATO, 1990).
Apesar dos casos mencionados, esses roubos não eram muito freqüentes na
Lobato dos anos 50 e 60. Se esses pequenos crimes contra a propriedade predominam
no Livro de Queixas, no Registro de Presos Correcionais do período de 1957 a 1961
as infrações mais comuns eram a desordem, a embriaguez e o desacato à autoridade,
transgressões todas que fazem referência ao isolamento social dos habitantes das
águas e das fazendas e às normas sociais vigentes nessa época e nesse lugar.

2. Na cidade de Lobato um destacamento da Polícia Militar mantinha a ordem e, se


necessário, deslocava-se para as fazendas e Águas da zona rural para prender algum
infrator. Para manter o controle da ordem pública, em muitas águas um inspetor de

165 Depoimento de José Cavalcanti Silva. Lobato, outubro de 2001.

− 149
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

quarteirão era nomeado pelo Delegado do destacamento. Segundo o Sargento José


Cavalcanti,

Um Inspetor de quarteirão ele foi uma coisa criada na cidade grande.


Porque nas cidades pequenas não existe quarteirão. O quarteirão que nós
entendemos vais de uma esquina a outra. O que acontece é que nas águas,
como ficava difícil para a polícia atuar nas várias águas por falta de meio
de locomoção então foi instituído o inspetor de quarteirão nessas águas.
Geralmente era uma pessoa respeitada naquela comunidade. Eram várias
comunidades, ali tinha as pessoas que o indicavam né, quem poderia ser
uma pessoa que era respeitada e, às vezes, até temida na área que vivia. Se
precisasse ela podia atuar até com poder de polícia. Então foi criado esse
tipo de polícia alternativa, pode-se dizer assim166.

Ainda que o inspetor de quarteirão pudesse prender algum infrator, isso era raro.
O comum era se comunicar com Lobato para que os policiais fossem prender o infrator.
Segundo o senhor Durval e o Sargento José, o cargo de inspetor não era remunerado e
era aceito mais pelo prestígio conferido. José filosofa com uma certa nostalgia:

Status. Status, porque ali ele se sentia uma autoridade. Então o inspetor
de quarterão de certa forma era uma autoridade, então ele tinha um status
como autoridade. E de ali os motivos que moviam uma pessoa naquele
tempo não são os motivos que existem hoje. Eles realmente achavam que
podiam contribuir167.

Eis aqui uma lista de inspetores que conseguimos reconstruir:

DATA INSPETOR / GUARDA / AGENTE QUARTEIRÃO RURAL / DELEGADO


LOBATO
22/03/1957 Severino J. das Chagas I. Fazenda Mourão Sebastião Diaz
25/03/1957 Antonio F. Lopes I. Água Ibitipoca Idem
23/03/1957 Martin Garozzi I. Água do Trigo Idem
23/05/1957 Raimundo Macedo I. Fazenda Remanso Idem
19/08/1957 José D. Santana Olimpio. I. Água Celeste e Valmarina Idem
20/11/1957 José Luiz de Magalhães. G. Lobato João Soutto Mello
28/12/1957 Eduardo Belarmino Leôncio / I. Valmarina Idem
30/04/1958 José Luiz Magalhães / G. Lobato Antonio F. Lopes
22/08/1958 Luiz Alves de Souza / G. Lobato Idem
04/05/1959 Sebastião José Pinto / I. Lobato Henrique Siquieri
... continuação /

166 Depoimento de José Cavalcanti Silva. Lobato, outubro de 2001.

167 Depoimento de José Cavalcanti Silva. Lobato, outubro de 2001.

150 −
VIGIAR E PUNIR ■

/... continuação
03/05/1959 Benedito Batista do Amaral / I. Lobato Idem
12/06/1959 Cipriano de Aguiar Sales / I. Lobato Idem
02/11/1959 José Venâncio da Silva / I Lobato Olimpio M. de
Barros
10/02/1960 Vicente Gomes Ferreira / I. Salto de Pirapó Henrique Siquieri
Port.5/1960 Avelino Morandi / I. Água Sílex Idem
Port.6/1960 Augusto Borges / I Lobato Idem
Port.7/1960 Abílio Zuntini / I. Lobato Idem
Port.8/1960 Guilherme B. de Freitas / I. Salto de Pirapó Amilton Feltz
12/10/1960 Alfonso Ramos / G Lobato Idem
08/02/1961 Osvaldo Crespo Morato / G Lobato João Soutto Mello
15/07/1961 Edgar Antunes de Oliveira / G Lobato Idem
02/12/1961 Antonio G. Granito / Ag.R. 168
Balsa Sta. Rita Pirapó Idem
10/01/1962 Shingi Inatomi / Agente Res. Lobato (?) Idem
10/01/1962 Alfredo de Souza Lima / Ag. R. Fazenda Remanso Idem
12/05/1962 José de Meira / Ag. R. Lobato (?) Idem
28/08/1962 João Pinto da Silva / Ag. R. Lobato (?) Idem
11/10/1962 Rafael Riskalla / Ag. Res. Lobato (?) Idem
01/11/1962 Sebastião A. da Silva / Ag. Res. Lobato (?) Idem
11/11/1962 Sebastião A Gomes /Ag.R. Lobato (?) Idem
24/11/1962 Marcionelio C. de Sales.Ag. Res. Lobato (?) Idem
05/08/1964 Cícero Soares Leitão / Ag. Res. Lobato (?) Idem
17/07/1965 Jorge D. de Andrade / Ag. R. Lobato (?) Idem
24/07/1965 José F. Moreira / Ag. Res. Água Valmarina Idem
12/05/1966 Francisco Bueno / G. Lobato Idem
09/07/1966 José Ramos da Silva / I. Água Valmarina Idem
20/07/1966 (Falta o nome / há uma foto / I.) Fazenda Cristina Idem
25/07/1966 Iago Romanini / I. Água Ibitipoca Idem
30/11/1966 Pedro Fabretti / I. Água do Trigo Idem
05/05/1967 Ernesto Nunes Barbosa / I. Lobato (?) Idem
12/03/1969 João Aguitoni / I . Foi secretário da Polícia Ág. Pirapó / Paramirim Versedino Chicozzi
04/05/1970 Luiz Ferreira de Mello/I. Água Valmarina Idem

Quadro 10: Livro de nomeação de inspetores de quarteirão, guardas e


agentes: 1957-1973168
Fonte: Elaborado a partir de documentos da Delegacia de Polícia de Lobato (1973)169.

168 Agente Reservado da Delegacia de Polícia de Lobato. Lobato (?). Acreditamos que o lugar de ação de muitos desses
agentes reservados sejam as Águas ou fazendas, já que a cidade não necessitava de tantos agentes responsáveis. O
formulário impresso omite maior precisão.

169 No livro aparecem algumas anotações como “Exonerado por analfabeto” e “Exonerado por não ser verdadeiro mante-
nedor da Ordem conforme o pedido do Dr. Legista desta cidade de Lobato”, o que indica que nem todos eram capazes
de exercer essa função tão delicada nas Águas.

− 151
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Essa lista de inspetores de quarteirão, de guardas e de agentes responsáveis entre


os anos de 1957 e 1970 evidencia que nem todas as Águas e Fazendas possuíam um
representante da autoridade entre os habitantes do bairro rural. Com efeito, nesse
lapso de tempo, só as Águas Ibitipoca, Trigo, Silex (Celeste), Valmarina, Salto do
Pirapó e Paramirim e as fazendas Moron, Cristina e Remanso tiveram inspetores
de quarteirão. É possível, todavia, que em algumas outras águas e fazendas tenha
havido inspetores nomeados com anterioridade a março de 1957. Por outro lado,
as águas Araçá e Grajaú ou a fazenda Santa Terezinha, todas próximas à cidade
de Lobato, não tiveram inspetor porque estavam próximas de um lugar policiado.
Menos compreensível é o fato de nas águas Cajatri, Colorado e Sarandi, bem como
nas fazendas Felicidade ou Ferraz não ter havido esse representante da autoridade,
visto que nelas habitava uma população vultosa de acordo com o número de
alunos matriculados em suas escolas. Aliás, a fazenda Ferraz, por exemplo, é citada
em vários depoimentos e documentos policiais como um lugar onde ocorriam
contravenções, inclusive três homicídios constantes na história de Lobato.

3. Em 5 de setembro de 1969, em plena vigência da Ata Institucional n. 5, a Polícia


Militar de Lobato recebeu a seguinte circular da Polícia Militar do estado do Paraná
(POLÍCIA, 1960).

Of. Circular
Sr. Comandante do Destacamento;
I. - Pelo presente, retero o conteúdo do ofício datado do 2 do corrente,
onde contêm o seguinte: dando atendimento a determinação do sr. Cél.
Comandante Geral da corporação, contida em radiograma nr. 54, ésse
Comando de Destacamentio Policial Militar, deverá informar a êste comando
diariamente, qualquer anormalidade nos setores, políticos, tranquilidade
pública, terras devolutas, atos de terrorismo e subversivos.
II. – No caso acima mencionado, faz-se claro, onde grifado, as palavras;
deverá informar a êste comando diariamente.

Notamos que, durante a ditadura militar, à Polícia Militar era atribuído um


trabalho de serviço de inteligência, de controle social e político. Não nos chama
a atenção nesse Ofício Circular a exigência sobre o controle dos atos políticos,
terroristas ou subversivos, mas a obrigação de denunciar qualquer anormalidade nos
setores das terras devolutas. Que significava isso? Que havia perigo de comandos
guerrilheiros se embrenharem na mata do Norte do Paraná, a exemplo da guerrilha
do Araguaia? Ou seria a lembrança da Revolta de 1956 dos posseiros de Porecatu, o
que levara a chefia da Polícia Militar de Curitiba a extremar os cuidados na região?
Acreditamos que a alusão às terras devolutas poderia se referir, dentro da linguagem
das autoridades militares da época, à subversão econômica, que consistia em se
apropriar de terras fiscais para começar uma pequena lavoura, o que praticaram
todos os posseiros no Brasil desde tempos imemoriais.
152 −
VIGIAR E PUNIR ■

Ainda em setembro de 1976, ou seja, dois anos depois de começado o degelo


político por parte do governo chefiado pelo General Ernesto Geisel, a Polícia Militar
de Lobato continuava informando a Curitiba sobre a qualificação dos candidatos a
Prefeitos e a Vice-Prefeitos. Ora, de fato, são fornecidos somente os dados pessoais
e o número dos anos de residência em Lobato das duas chapas de candidatos
a prefeito pela ARENA (José Amaral Costa e Sebastião Gomes e João de Soutto
Mello e Rogério Francisco dos Santos, respectivamente). Não há quaisquer outros
comentários, elogiosos ou críticos. Como o MDB (posteriormente transformado em
PMDB) ainda não tinha oficializado uma chapa, não há menção de candidatos
políticos desse partido.
Uma outra incumbência atribuída às vezes à Polícia era a questão do controle
da prostituição com a finalidade de evitar a propagação de doenças venéreas. A
Polícia devia fichar os nomes das prostitutas e obrigá-las a se submeter a um exame
médico quinzenal. Vejamos esta circular da Secretaria de Saúde Pública. 5.º Distrito
Sanitário - Posto de Saúde de Lobato, datada em 2 de dezembro de 1958 (LOBATO,
1958):

Sr. Delegado de Polícia:

De acordo com o conceito de Saúde Pública, e no cumprimento da Circular


Nr. 8/58, datada de 16 de Outubro pp., usando das atribuições que me
confere, venho a presença de V. S., solicitar vs. Cooperação no sentido
de serem intimadas todas as meretrizes existentes e fichadas pela Polícia
désta Cidade, para comparecerem no consultório médico desta Unidade
Sanitária para serem submetidas a rigoroso exame médico todas quinzenas,
no sentido de serem debeladas e tratadas das enfermedades em que forem
portadoras e também como medida profilática, no combate das mais
comuns das enfermidades transmitidas atravéz do coito ou conjunção
carnal que são as moléstias Venérias representadas com maior freqüência
pela ‘SÍFILIS’.
Sem mais certo que poderei contar com a valiosa cooperação de V. S., em
pról desta campanha de educação sanitária contra principalmente a ‘SÍFILIS’
que ainda constitue-se num dos maiores flagelos da humanidade.
No comprimento de mais um dever de Saúde Pública, aproveito o ensejo
para apresentar-lhe minhas cordiais saudações, subscrevendo-me de V. S.
mui,

ATENCIOSAMENTE
(assinatura ilegível)
Médico Chefe do Posto de Higiene
Ilmo. Sr. Antonio Ferreira Lópes
M. D. Delegado de Polícia. Lobato.

Com efeito, assuntos relativos à prostituição tornam-se objeto de debate


por parte do poder público lobatense em anos posteriores. Na sessão da Câmara
Municipal de 30 de junho de 1964, foi discutida, inclusive, a transferência da Casa
de Tolerância que havia na cidade para fora dos limites do Município ou sua total
extinção. Esse assunto voltou a ser debatido na Câmara Municipal em 12/04/1965,
− 153
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

quando mais uma vez foi solicitado que se fizesse, o mais breve possível, a mudança
da casa de meretriz (CÂMARA MUNICIPAL DE LOBATO, 1965, f. 131). Na décima
nona sessão, voltou-se a deliberar sobre essa mudança, cogitando-se, inclusive, a
compra, pela Prefeitura, da propriedade onde estava instalada a Casa de Tolerância.
Caso o proprietário viesse a adquirir outro imóvel na cidade, este ficaria obrigado a
fazer um atestado junto à Delegacia de Polícia do Município (CÂMARA MUNICIPAL
DE LOBATO, 1965, f. 146). Em 20 de janeiro de 1967, o assunto volta a ser
debatido, agora com um abaixo-assinado pedindo a proibição do funcionamento
e posterior concessão de novo alvará de licença à Casa de Meretrício (CÂMARA
MUNICIPAL DE LOBATO, 1965, f. 146). Na maior parte das vezes, as solicitações
contra a Casa eram feitas em nome da moral e dos bons costumes da cidade e
da população. Não há nas atas qualquer referência a proprietários que tivessem
tomado conhecimento de que tramitava junto à Câmara pedido de fechamento
de seu estabelecimento. Inferimos, a partir da menção aos meios legais nos quais
a instituição podia se amparar, que a Câmara podia fazer pouco em relação aos
pedidos feitos pelos grupos religiosos que se organizavam e pediam o fechamento
da Casa. A persistência do assunto nos debates da Câmara demonstrou a força do
estabelecimento em permanecer no Município, talvez por causa dos dispositivos
legais que a amparassem, embora houvesse vontades contrárias à sua existência.
Evidentemente, a presença da prostituição em Lobato e a sua institucionalização
pela estrutura policial levam à realidade de uma população agrícola com uma alta
taxa de masculinidade, própria de um espaço de fronteira. Essa população coincide
parcialmente com a classe considerada perigosa, a de lavradores das Águas e das
fazendas, que se constituíra na freguesia desordeira que ia para a cadeia - ainda que
só no fim de semana porque segunda-feira tinha de continuar o trabalho no eito.

4. Deixando de lado algumas anedotas esparsas, mais ou menos pitorescas, podemos


nos perguntar se é possível reconstruir com algum rigor o mundo de transgressões
na cidade e nas Águas de Lobato. Além dos depoimentos orais, contamos com
quatro fontes policiais inéditas: o Registro de Queixas, (março de 1957 a outubro de
1961); o Registro dos Presos Correcionais (1957 a 1961 e 1972 a 1979); o Registro
de Ocorrências (1961 e de 1985 a 1990) e, finalmente, Papéis Policiais Avulsos,
que compreendem correspondências e ordens emanadas das autoridades militares
ou policiais. A documentação é fragmentária e incompleta, mas, de qualquer forma,
o universo resulta relevante. Na listagem de presos correcionais, por exemplo,
estamos na presença de registros que abarcam 22 anos e envolvem 54 indivíduos.
Se a esses dados acrescentarmos os 21 casos do Registro de Ocorrências (1961),
chegaremos, para o período de 1957 a 1961, a 75 casos. O Registro de 1972 a
1979 compreende 169 casos e o Registro de Ocorrências de 1985 a 1990 apresenta
124 casos. Ao compararmos esses dados estatísticos, chegamos a várias conclusões
sobre a evolução do crime e das infrações em Lobato. Destacamos o seguinte:
os Registros não apresentam uma estrutura padronizada, o que dificulta bastante
154 −
VIGIAR E PUNIR ■

a comparação entre os dados estatísticos de cada época. De qualquer forma, o


exame de 368 casos de infrações, ao longo de um período de 34 anos, permitiu-nos
vislumbrar, a partir da perspectiva das classes menos favorecidas, a história social
do Município.
Com referência às queixas apresentadas na Delegacia de Policia de Lobato
entre 19 de março de 1957 e 9 de outubro de 1961, estamos na presença de 27
ocorrências. Entre elas, 12 casos envolvem algum tipo de agressão (ou ameaça
de agressão) contra a integridade física; 11 casos mencionam um delito contra a
propriedade privada e 6 casos envolvem a integridade moral das pessoas; em 2 casos,
denuncia-se tanto a violência física quanto a violação de direitos de propriedade
privada. Entre as 12 queixas que denunciam violência física, só se mencionam 5
casos em que, de fato, houve agressão física real; as demais foram ameaças de
agressão verbal ou ameaças com facas e armas de fogo. Nos casos de agressão real,
estes são também diferenciados: uma vez com faca, outra com uma arma de fogo,
uma terceira vez com um ferro e, finalmente, dois casos em que se jogou bebida
no rosto de uma pessoa. Por outro lado, as ameaças que não chegaram às vias de
fato foram verbais, ora ameaçando com facas (4 casos), ora com armas de fogo (2
casos). Nos tempos dos pioneiros, o uso de peixeiras e de armas de fogo poderia
constituir uma necessidade para quem trabalhava em regiões não-desbravadas;
logicamente esse costume de portar armas levava ao seu uso no caso de rixas e de
desavenças, geralmente sob a influência do uso excessivo do álcool. Como veremos
mais adiante, em toda a história de Lobato as infrações mais comuns serão: fazer
arruaças em estado de embriaguez, segundo o vocabulário da época.
Houve, nesses cinco anos, 11 queixas contra os direitos da propriedade
privada: 4 por roubo, 4 por invasão de propriedade ou por questão de divisas, 2
por danos e prejuízos e 1 por fraude. A maioria dessas infrações ocorreu nas Águas,
o que não é estranho, posto que, efetivamente, a maioria da população morava ali
em uma proporção de sete para um, aproximadamente. Um desses casos merece ser
transcrito na íntegra (DELEGACIA DE LOBATO, 1963):

Delegacia de Lobato.
No dia 28 de Janeiro de 1960
Compareceu nesta Delegacia de Lobato o Sr. A K. M. com 57 anos de idade
residente em Arapongas. Sendo proprietário neste município, situado na
Água Ibitipoca. Prestou queixa contra seus colonios de nomes Sr. J. R. d.
S., S. e P. R. d. S., A S. d. C., F. A d. S. e seus irmãos. Que o queixoso Sr.
A K. M. Declara que seus Colonos fugiram de sua propriedade. Sem nada
antecipar. Algem-se quer. E apoderandose de 2, Duas porcas grandes de
cria e mais 3 treis chapas de Fogão que os mesmo acuparão aindo sem os
quais sem A dar satisfação aa propietario. (Assinado: A K. M).

Estamos aqui na presença de um acontecimento social que jamais seria


mencionado nas crônicas locais que tendem a glorificar os pioneiros proprietários,
fundadores de uma cidade ou comunidade. A denúncia revela uma história local de
− 155
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

famílias de colonos que adotam a fuga do lugar como estratégia de sobrevivência.


Por que essas famílias fugiram da Água Ibitipoca sem avisar o dono da propriedade?
Ou será que não era exatamente uma fuga, mas simplesmente a busca por melhores
oportunidades?
Não constatamos na denúncia uma falta de pagamento da renda ou um
roubo maior, visto que as duas porcas seguramente foram criadas pelos colonos
fugitivos e as “treis chapas de fogão” não chegam a configurar um latrocínio de
certa importância. É possível, inclusive, que só tenha havido um roubo do ponto
de vista do dono do campo e que a verdadeira mágoa tenha sido o abandono da
propriedade por parte dos colonos, sem que o proprietário pudesse substituí-los
em tempo. Em todo caso, a referência chama a atenção para um fato relevante: em
Lobato havia colonos arrendatários e havia conflitos sociais decorrentes das relações
laborais entre proprietários e não-proprietários. No passado, a vida nas Águas não
era um mar de rosas. Aliás, o fato de os colonos fugirem (independentemente
do motivo) nos remete ao filme Gaijin, de Tizuka Yamazaki, em que famílias de
colonos japoneses fogem de uma fazenda de São Paulo para escapar da exploração
e da repressão.
Por último, estamos na presença de 6 queixas que envolvem questões de
honra ou honorabilidade. Embora todos envolvam mulheres, há diferenças. Há um
pai que denuncia o desfloramento da sua filha por parte de seu patrão; outro que
acusa a um rapaz de ter seqüestrado a sua filha de criação; um marido apresenta
queixa contra um cidadão que “mexeu com sua mulher oferecendo dinheiro”;
outro “por ter xingado a mulher do queixoso, chamando-a de negra”; ainda há um
queixoso que quer registrar a sua acusação contra um terceiro que teve relações
com sua mulher e, por último, um administrador de Fazenda que registra uma
queixa contra uma mulher “que desrespeita as famílias ali residentes, até mesmo
andando em companhia de menores” (DELEGACIA DE POLÍCIA DE LOBATO,
1963, 1964).
Notamos que as queixas de agressão contra a integridade física e patrimonial se
referem a ações exclusivamente masculinas (ao menos por parte dos agressores), ao
passo que todas as queixas contra a integridade moral envolvem as mulheres (filhas
desonradas ou seqüestradas; esposas ofendidas ou infiéis; mulheres que ofendem
publicamente a moral coletiva). Não há casos de mulheres que denunciam homens
por qualquer infração a qualquer código moral. O uso da força e as questões de
propriedade privada parecem estar no mundo dos homens enquanto a moral e
a decência são territórios especificamente femininos. Levantamos essa questão
porque não acreditamos que ela seja específica de Lobato, mas sim própria dos
códigos sociais e éticos dessas décadas no Norte do Paraná no seu conjunto.
Um segundo Registro que analisamos é dos, assim chamados, Presos
Correcionais. A lista compreende abril de 1957 a abril de 1961, ou seja, praticamente
a mesma época da lista de queixas registradas na polícia. Estamos aqui na presença
156 −
VIGIAR E PUNIR ■

de 54 casos, que, na realidade, referem-se somente a 50 pessoas 170. Decidimos


omitir os nomes dos infratores para preservar a sua privacidade. Observamos
que essa lista não menciona a idade dos infratores nem a sua profissão, o que
é lamentável. Por analogia com documentos que relacionam essas variáveis,
deduzimos que estamos em presença de homens relativamente jovens (entre 18 e
40 anos), solteiros e casados, com uma grande incidência de lavradores, ou seja, de
diversos tipos de agricultores e de assalariados rurais. Com referência à origem dos
infratores, construímos a seguinte tabela:

ESTADO DE ORIGEM NÚMERO DE CASOS NÚMERO DE PESSOAS


Minas Gerais 19 17
Bahia 12 10
São Paulo 06 06
Paraná 05 05
Ceará 03 03
Pernambuco 03 03
Alagoas 01 01
Maranhão 01 01
Rio de Janeiro 01 01
Colômbia 01 01
Ignorada 01 01
Não-mencionada 01 01
TOTAL 54 50

Quadro 11: Origem dos presos correcionais por estado ou país. Lobato, 1957-
1961
Fonte: Elaborado a partir de documentos da Delegacia de Polícia de Lobato (1961).

Chama-nos a atenção a grande proporção de mineiros e de baianos entre os


presos correcionais. Mineiros e nordestinos juntos representam 35 pessoas, ou seja,
70% do total. Por outro lado, o índice de pessoas nascidas nos estados de São Paulo,
Paraná e Rio de Janeiro é baixo. Juntas, elas representam somente 12 pessoas, ou
seja, 24% do total. Comparando esses números com a percentagem da origem dos
pais dos batizados em Lobato no ano de 1959, observamos que 39,52% procedem
desses três estados do Sul do Brasil. Ora, longe de tirar conclusões precipitadas,
fundamentadas nesse tipo de estatística, antecipamos que essa incidência depende,

170 Os números 35, 45 e 48; os números 40 e 46 e os números 53 e 54 se referem às mesmas pessoas.

− 157
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

em grande medida, do fato de esses mineiros e nordestinos pertencerem à classe


rural de trabalhadores não-proprietários. Em Lobato, como, aliás, em todo o Brasil
e até hoje, a justiça é classista e os trabalhadores constituem a classe perigosa,
inclusive quando seu principal delito parece ser o de beber em excesso e o de causar
arruaças nos seus dias de folga, assunto que será objeto de análise posteriormente.
Um outro esclarecimento cabe em relação ao contexto: devido à índole não-grave
da maioria dos delitos, o termo preso correcional deve ser interpretado à altura. Por
outras estatísticas, sabemos que a prisão não costumava durar mais de um dia, ou
melhor, uma noite. A frase do Delegado João de Soutto Mello, “Sarava da pinga e
já soltava”, ilustra bem a prática da época.

5. Vejamos agora os tipos de contravenções e a sua freqüência: desordem (33 ou


61,11%); embriaguez (31 ou 57,40%); desacato (11 ou 20,37%) 171; andar armado
(2); furto (1); difamação (1) (estes últimos chamam a atenção, justamente pela sua
escassa ocorrência). Realmente, um caso de roubo em quatro anos é pouco para
uma população que tinha, em 1960, mais de 10.000 habitantes.
Na seqüência do exame dessas tabelas, construídas a partir do material
presente na Delegacia de Lobato, constatamos uma grande proporção de presos
correcionais residentes nas Águas e nas fazendas da zona rural. Dos 54 casos
mencionados, 22 pessoas são de Lobato, 15 são das Águas, 9 são das fazendas,
5 são forasteiras e 3 não têm suas residências mencionadas. Se somarmos os
infratores residentes nas Águas com aqueles das fazendas, teríamos um total de
24 casos, quer dizer, um número maior que os 22 casos em que se declara que a
residência é Lobato. Ainda assim, como veremos, a imensa maioria dos infratores
declara ser “lavradora”, de maneira que, muito provavelmente, entre esses 22
casos em que as pessoas envolvidas aparecem como residentes de Lobato, uma
boa proporção delas trabalhava (ou mesmo residia) na zona rural, especialmente
nas fazendas.
Uma outra tabela que pode nos ajudar a visualizar melhor o mundo dos
infratores de Lobato, nesse caso do ano de 1961, é a que se encontra no chamado
Livro de Registro de Ocorrências da Delegacia de Lobato. Apesar de esse Livro ter
um título diferente do Livro de Registro de Presos Correcionais que acabamos de
examinar, ele é a continuação daquele e não é muito diferente, visto que também
aqui os infratores ficam na cadeia uma noite, geralmente aquela de sábado para
domingo, para serem liberados na manhã seguinte, já dissipados os eflúvios etílicos
da cachaça. A novidade desse Registro consiste no fato de que a procedência e a
residência dos infratores são omitidas; em compensação, a idade e o estado civil
dos acusados são mencionados.

171 As percentagens não são excludentes. Por exemplo, “embriaguez” freqüentemente se associa a “desordem”, e assim por
diante.

158 −
VIGIAR E PUNIR ■

Entre 3 de abril de 1961 e em 11 de julho do mesmo ano, ou seja, dêem


apenas três meses, houve 21 prisões realizadas, das quais 10 por embriaguez; 11
por desordem; 3 por porte ilegal de armas; 2 por desacato à autoridade; 1 por
atentado ao pudor; 1 por roubo e 1 não-especificado. Novamente, como entre 1957
e 1961, são freqüentes os casos combinados de embriaguez e de desordem e de
embriaguez e de porte de arma. Quanto à profissão dos detidos, é significativo que
17 (81%) sejam lavradores, 2 figurem como operários, 1 como artesão e 1 não tenha
a profissão especificada. Ora, o termo lavrador era abrangente e podia significar um
pequeno proprietário, um arrendatário rural, um peão assalariado que trabalhava na
zona rural, na agricultura ou na pecuária. Pelo depoimento das pessoas consultadas,
entretanto, acreditamos que se tratava de uma maioria esmagadora de assalariados
rurais. Um outro dado dessa tabela de 1961 é a identificação do estado civil dos
infratores. Não eram detidos apenas os solteiros por embriaguez e por desordem,
mas também, e na mesma proporção numérica, os casados. Com efeito, estamos
em presença de 11 homens casados e de 10 solteiros. As mulheres, uma vez mais,
brilham pela sua ausência.
Com referência à idade – outra novidade dessa tabela –, observamos que varia
de 19 a 43 anos; a faixa entre 19 e 36 compreende 18 casos (85,71%). Nos outros
3 casos, os homens envolvidos têm 40, 41 e 45 anos, respectivamente. A média
de idade é de 28 anos e 3 meses, de forma que não estamos diante de casos de
delinqüência juvenil. Por último, a permanência na prisão, na esmagadora maioria
dos casos, é de apenas um dia. Aqui podemos juntar os 21 casos de 1961 com os
últimos 37 do quadro anterior , o que totalizará 58 ocorrências. Ora, em 52 casos
(89,65%), o detento é solto no dia seguinte à entrada na prisão; dos 6 casos restantes,
em 4 ele é liberado no mesmo dia e em 2 a data de liberação não é registrada.
Embora o universo de 21 casos, que abarca somente três meses, não resulte
muito grande, as suas tendências podem ser estendidas à tabela anterior, que
abarca 54 casos e compreende 4 anos. Entre 1957 e 1961, os infratores típicos são
castigados com uma noite de prisão; trata-se de lavradores, geralmente assalariados
rurais, de quase 30 anos, embriagados e causadores de desordens; muitas vezes
andam armados e desafiam a autoridade policial.

6. Entre dezembro de 1972 e dezembro de 1979, o Registro de Presos Correcionais


apresenta uma lista de 169 casos172. Segundo os nossos cálculos, a partir de meados
de 1969 começa a reconversão econômica na região do Norte do Paraná e a principal
conseqüência social é o êxodo massivo dos habitantes das Águas e das fazendas.
Primeiramente vai embora uma parte dos arrendatários e dos assalariados das
fazendas, fato que também ocorre, de forma mais gradual e lenta, com os pequenos

172 É interessante assinalar que os dados presentes nesse documento – Registro de Presos Correcionais - não são simétricos.
Em alguns casos registrados os dados estão incompletos com referência à residência, à natureza do crime e às datas
de entrada e de saída da cadeia. Aliás, em alguns casos registrados não se conservaram nem mesmo os registros dos
incidentes ocorridos.

− 159
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

e medianos agricultores das Águas. Em 1970, segundo as estatísticas oficiais do


IGBE, ainda moravam 4.663 pessoas na zona rural de Lobato, número que desce a
1.684 em 1980 e a uns 600, na atualidade.
O principal elemento da reconversão econômica consistiu, primeiramente, na
gradual erradicação do café e na sua lenta substituição pela pecuária e pela lavoura
do algodão, do amendoim e do milho; posteriormente, no final da década de 70,
ocorreu o mesmo com a lavoura da cana. A história agrária do Norte do Paraná de
1970 à atualidade não foi realizada ainda e a maioria dos autores de história regional
pressupõe que o café foi substituído pelas lavouras de soja e de trigo, em primeiro
lugar e, subsidiariamente, pela lavoura de cana-de-açúcar e pela pecuária.
Ora, as estatísticas de 1980 revelam outra realidade. Em ordem de importância
econômica, encontramos o algodão e a cana, com o café ainda em um terceiro lugar,
enquanto durante toda a década de 1970 o café tinha conservado o segundo lugar
(depois do algodão). Também na década de 70, adquire auge a pecuária bovina
(ainda que devamos alertar que essa atividade já começou em plena década de 1950).
Desse modo, em 1980, Lobato já contava com um plantel de mais de 33.000 cabeças
de gado, a maioria destinado ao corte, visto que a indústria láctea ainda não tinha
cobrado o impulso que teria depois. Por outra parte, a avicultura e a suinocultura não
foram muito relevantes na reconversão econômica lobatense (PARANÁ, 1979).
Interessa-nos o modo como se refletem essas mudanças na esfera econômica
dos padrões referentes aos presos correcionais. A primeira conclusão consiste no
fato de que o impacto pareceu bem menor do que o esperado. Por exemplo, se em
1961 os denominados lavradores representavam 81% dos infratores, na década de
70 ainda constituem nada menos que 63% dos casos em que se menciona a profissão
do infrator. Se a esses 100 lavradores se somam outros 18 casos de assalariados
rurais de diferentes ofícios (campeiro, tratorista etc.), chegamos a 75,21%. Ou
seja, na década de 1970, em plena época da reconversão econômica, 3 em cada 4
infratores eram trabalhadores rurais e a imensa maioria dedicava-se às lavouras, já
que a cria de gado para corte ocupava, realmente, pouca mão-de-obra.
Convém esclarecer o que se entende, exatamente, por lavrador. Perguntamos
isso a várias pessoas da comunidade e as respostas divergem bastante, ainda que
sempre estejam relacionadas às atividades agrícolas propriamente ditas. Assim o Sr.
Durval define essa profissão:

Lavrador é o seguinte: tem o proprietário, o pequeno proprietário, que


trabalha na propriedade, planta café e hoje já mudou, já não tem mais
café. Então trabalha no lote dele, ganhar o pão de cada dia, então ele é um
lavrador. E tem um lavrador, quando ele arrenda umas terras do proprietário,
arrenda esse pequeno lote, arrenda e trabalha acima desse terreno. Então é
lavrador também, não precisa ser proprietário para ser lavrador173.

173 Depoimento de Durval Colontonio. Lobato, setembro de 2001.

160 −
VIGIAR E PUNIR ■

Segundo ele, o lavrador seria sinônimo de um trabalhador agrícola, pequeno


proprietário, arrendatário, meeiro, porcenteiro ou colono, mas não um trabalhador
assalariado denominado “diarista”. Essa versão do Sr. Durval coincide em tudo
com a profissão que a Companhia Melhoramentos atribuía à grande maioria de
compradores de lotes urbanos, de 1950 a 1971. Com efeito, 183 de um total de 281
são caracterizados como “lavradores” (COMPANHIA MELHORAMENTOS NORTE
DO PARANÁ, 1979). Ora, segundo a nossa pesquisa, essa denominação não era
compartilhada pela polícia que incluía também o diarista ou trabalhador assalariado
da lavoura na categoria de lavrador. Se assim não o fosse, seria alarmante o número
elevado de pequenos proprietários ou arrendatários entre os presos correcionais,
já que dificilmente eles constituiriam, senão a classe perigosa, ao menos a classe
desordeira do Município. Vejamos o depoimento do Sargento José:

Lavrador, para a linguagem policial, ou mesmo na comum, seria a pessoa


que trabalhava com a terra. Pela origem da palavra, o lavrador seria,
basicamente, a pessoa que lavra, que trabalha a terra, essa é a denominação
de lavrador. Qualquer pessoa que trabalha com a terra174.

Quanto à distinção entre um proprietário, um arrendatário ou um assalariado,


José respondeu que “antigamente não existia uma distinção. A não ser que o
proprietário seria tratado como agricultor ou pecuarista”. Até prova em contrário,
acreditamos que esses lavradores, entre 1948 e 1980, eram considerados, em sua
maioria, os principais transgressores da ordem pública em Lobato; eram assalariados
rurais que trabalhavam na lavoura.
Qual era a residência desses infratores da década de 70? Vimos que entre
1957 e 1961 a maioria morava na zona rural. Ora, em plena época da reconversão
econômica, ainda surpreende a quantidade de infratores que declaram morar nas
águas e nas fazendas. Vejamos as estatísticas:

RESIDÊNCIA REGISTRADA QUANTIDADE


Cidade de Lobato 71
Zona Rural de Lobato 50
Forasteiros 19
Residência desconhecida 29
TOTAL 169

Quadro 12: Registro de residência dos presos correcionais da Polícia Militar de


Lobato, 1972 a 1979
Fonte: Elaborado a partir de documentos da Delegacia de Polícia de Lobato (1979).

174 Depoimento de José Cavalcanti da Silva. Lobato outubro de 2001.

− 161
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Se eliminarmos os 29 casos de residência desconhecida e os 19 forasteiros


(entre os quais há vários casos de residentes em fazendas e em Águas de municípios
vizinhos), teremos, em plena década de 70, ainda 41,32% dos presos correcionais
residentes na zona rural e o restante – entre os quais muitos lavradores –, na cidade
de Lobato. Com referência ao estado civil, dos 123 casos mencionados no Registro,
60 são casados, 61 solteiros e dois viúvos. Novamente, como no caso da década
anterior, surpreende o alto número de casados, praticamente a metade do universo
total. Com referência à idade média do infrator, esta aumentou de 28 anos, em
1961, para quase 31 na década de 70.
Talvez fosse um exagero falar em uma classe perigosa em Lobato. Mas havia
aquelas pessoas que incomodavam e essas eram, em primeiro lugar, os desordeiros
rurais, muitos deles nordestinos e mineiros do Norte, catalogados pela polícia
como lavradores. Curiosamente, finalizado o ciclo do café e com o crescente
esvaziamento da zona rural, no período posterior a 1975, essa perspectiva se
revelaria persistente.

7. É interessante comparar os tipos de delito entre 1957 e 1961 com os de 1972 a


1979 para visualizarmos a sua evolução no tempo:

PERÍODO 1957 a 1961 1972 a 1979


TIPO DE INFRAÇÃO NÚMERO % NÚMERO %
Desordem: 15 20,00 14 08,53
Embriaguez 11 14,66 45 27,43
Desacato à autoridade 06 08,00 06 03,65
Andar armado 01 01,33 00 00.
Desordem e embriaguez 22 29,33 21 12,80
Desordem e desacato 02 02,66 00 00.
Embriaguez e desacato 02 02,66 02 01,21
Embriaguez e andar armado 02 02,66 00 00.
Embriaguez, desordem, desacato 02 02,66 00 00.
Embriaguez, desordem e andar armado 02 02,66 00 00.
Desordem, fuga e desacato 01 01,33 00 00.
Furto / roubo 02 02,66 06 03,65
Roubo / vadiagem 00 00. 01 00,60
Malandragem / vigarismo 01 01,33 02 01,21
Contravenção (trânsito) 01 01,33 00 00.
... continuação /

162 −
VIGIAR E PUNIR ■

/... continuação
Difamação / calúnia 01 01,33 05 03,04
Atentado ao pudor 01 01,33 01 00,60
Escândalo 00 00. 02 01,21
Embriaguez / escândalo 00 00. 01 00,61
Desrespeito 00 00. 02 01,21
Estupro / tentativa de estupro 00 00. 01 00,60
Averiguação de antecedentes 00 00. 06 03,65
Maus tratos à família 00 00. 02 01,21
Maus tratos à família / embriaguez 00 00. 01 00,60
Agressão / vias de fato / briga 00 00. 15 09,14
Briga / esfaqueamento 00 00. 01 00,60
Agressão / briga / embriaguez 00 00. 13 07,92
Vadiagem 00 00. 13 07,92
Embriaguez e vadiagem 00 00. 02 01,21
Não especificado 03 04. 05 03,04
TOTAL 75 100 % 169 100 %

Quadro 13: Dados comparativos entre as infrações cometidas em Lobato


entre os períodos: 1957 a 1961 e 1972 a 1979
Fonte: Elaborado à partir de documentos da Delegacia de Polícia de Lobato (1990).

Antes de interpretarmos qualquer tipo de dado, devemos observar que há vários


elementos arbitrários que dificultam a sua comparação. Por exemplo, o que era uma
infração em 1957 (fazer arruaça sábado à noite nas ruas da cidade, por exemplo)
pode bem deixar de sê-lo em 1979. Por outro lado, novas infrações são codificadas:
o mau trato à família ou à esposa, que, na época anterior era considerado no âmbito
privado, e o conceito de vadiagem, que ainda não figura como infração na primeira
época, o que não significa a sua ausência.
Ainda assim, há mudanças qualitativas e numéricas no padrão das infrações
de Lobato assim como há continuidades persistentes. Enquanto as infrações mais
freqüentes de 1957 a 1961 eram os casos de desordem (61,11%), de embriaguez
(56,94%175) e de desacato à autoridade (18,05%), de 1972 a 1979 nos deparamos
com 21,33% de desordem, 51,58% de embriaguez e 4,86% de desacato. Em

175 O fato de a soma das percentagens superar generosamente o 100% se deve, em muitos casos, aos delitos como embria-
guez e desordem, que são mencionados em conjunto.

− 163
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

compensação, aparecem no último período a vadiagem (9,73%) e a agressão/briga


(17,06%)176.
Olhadas em perspectiva, as infrações que envolvem desordem, embriaguez
e desacato à autoridade persistem, mas vão perdendo importância numérica.
Isso poderia apontar para uma maior contenção social para com a população de
lavradores, de bóias frias e de outros assalariados do lugar e a diminuição - absoluta
e relativa – da classe perigosa de Lobato: os assim chamados lavradores.

8. Que conclusões poderiam ser extraídas do exame da esparsa e fragmentada


documentação policial? Seguramente que serão avaliações provisórias e que dizem
respeito mais a uma tendência presente em todo o Norte do Paraná onde existem
Águas e Fazendas, onde houve lavouras de café e, posteriormente, uma grande
reconversão de recursos econômicos e humanos, infelizmente nessa ordem de
prioridades. Em primeiro lugar, aparecem nas ocorrências e em outros documentos
policiais os crimes pequenos: arruaça, beberagem, desacato, furto de galinhas,
ofensa à honorabilidade do vizinho ou da vizinha; em resumo, nada de muito
grave. Se Lobato não era o paraíso, também não era o inferno. E quanto aos crimes
considerados graves? Os três homicídios de que nos falam o Sr. Durval e o Sargento
José Cavalcanti não estão registrados nos documentos da polícia ou se perderam
para sempre? Será que houve outros crimes mais graves do que o de um peão
que passou um mês trabalhando no mato e que em um fim de semana bebeu e
lançou seus gritos pela Avenida Presidente Vargas? Não houve grilagem de terras
ou questões graves por limites das propriedades agrícolas, para citarmos apenas
alguns casos possíveis? Nada nos dizem as fontes escritas e muito menos as orais.
As pessoas preferem se lembrar dos acontecimentos agradáveis da sua saga familiar
ou da sua trajetória pessoal. Mas de algo lembram, sim, ainda que, às vezes, reste
gravidade ao acontecido. Assim o Sr. Durval, depois de postular que Lobato sempre
foi uma cidade pacata, admitiu:

Olha houve (brigas) sim. No começo de Lobato houve até uma morte aqui,
discussão besta. Um matou o outro. Outro foi na Fazenda Ferraz e outro
foi ali, perto dessa escolinha lá entre Flórida e Lobato, na Água Colorado.
Mas é coisinha é, teve um assassinato ali na Água Valmarina. Então são
coisinhas, e, em proporção da cidade grande, não é nada177.

O Sargento José também reconhece que houve alguns crimes graves e também
menciona os três homicídios. Lembra-se, ainda, possivelmente pelos relatos de seu

176 Em outros documentos voltamos a encontrar no mesmo período infrações mais comuns como: embriaguez, desordem,
agressão ou vias de fato, furto, desacato à autoridade e maus tratos à família. Num certo sentido, ainda que os documen-
tos apresentem lacunas ou imprecisões quanto aos dados dos casos registrados, o resultado é um número significativo
de infrações cometidas no município.

177 Depoimento de Durval Colontonio. Lobato, junho de 2001.

164 −
VIGIAR E PUNIR ■

pai, que houve fraudes com referência aos limites das propriedades rurais, sobretudo
nas recém-conquistadas ao mato e dos proprietários ausentes: “Era comum a pessoa
adulterar a marca, o limite da terra, quando construía a cerca a construía um metro
dentro da propriedade do outro [...] Mas dizer que eram fatos assim comuns, não,
mas [...] aconteciam”. Uma razão, aliás, a principal, para que os crimes mais graves
não apareçam nas fontes policiais da localidade está no fato de que os processos
dos delitos maiores eram transferidos à Comarca de Astorga.

− 165
8

O GRANDE ÊXODO
E A RECONVERSÃO
ECONÔMICA, 1969 –
1975

1. O conjunto de 20 escolinhas reflete o auge demográfico e social da sociedade


das Águas. Eis o que relatam as professoras Alice Cafofo e Tânia Martins Costa e o
senhor Raimundo Saraiva Peixoto (suas apresentações serão feitas posteriormente)
sobre essa mobilidade da população para outros municípios emergentes. Para
Alice178,

As escolas do sítio muitas fecharam porque não tinha aluno, tinha dia que
saíam, quatro, cinco, dez mudanças de Lobato. Bom isso na época de uma
geada, eles falaram para vocês quando foi? 76 que deu uma geada muito
grande aí a população de Lobato em pouco tempo, só casa fechando,
fechando.

Tânia179 relembra que

178 Depoimento de Alice Cafofo. Lobato, novembro de 2000.

179 Depoimento de Tânia Martins Costa. Lobato, outubro de 2001.


■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Em Lobato tinha uma população de quase 16 mil habitantes, 15 mil


habitantes, e com a geada, aí foi radicado o café e entrou então pra
substituir a plantação de café, mamona, algodão, amendoim, que tinha
muito, foi entrando então o gado, a pastagem, e agora mais recente, a cana.
Então, isso expulsou o homem do campo, os maiores foram comprando,
os maiores proprietários foram comprando as menores, propriedades. Hoje
Lobato tem uma grande área de proprietários que não residem em Lobato,
isso aí foi expulsando a população. Expulsando, expulsando a população
que ia para o Mato Grosso, tinha um negócio de ir para o Mato Grosso.

Mato Grosso, entretanto, não foi o único destino tomado pela população;
muitos foram ‘embora para Assis Chateaubriand, a tudo quanto é lugar no Paraná e
até, às vezes, fora do estado, foram mudando’, é a forma como o senhor Raimundo
explica a mobilidade demográfica lobatense. O crescimento da produção pecuária e
o conseqüente deslocamento de muitos moradores das Águas para a cidade fizeram
que os vereadores refletissem sobre o material com o qual as escolas deveriam ser
construídas em 1969. O vereador Benedito Siqueira Ita (CÂMARA MUNICIPAL DE
LOBATO, 1969, f. 58) era da opinião que deveriam ser construídas com tábuas,
pelo fato de o Município estar “em fase de desenvolvimento pecuário, o que vem
diminuir o número de alunos que então as escolas deveriam serem construídas de
tábuas, de tipo móvel, para que sejam em qualquer tempo transferidas para lares
onde há maior freqüência de alunos’. Outros, todavia, sugeriram a alvenaria.
Inicia-se, então, o deslocamento ou a desativação de escolinhas na zona rural,
fato ilustrativo da reorganização do espaço social das Águas sob novas perspectivas
e interesses e de uma nova fase na organização espacial e social do Norte do Paraná
que, de receptor de migrantes, passa a ser uma região de migração.
Os motivos que trouxeram para Lobato as famílias de Durval e Iracema,
Olindina e Manoel, bem como as dos memorialistas Agripino, Nabio, Satoru,
Darcy, Nair, Nilo, Henrique, João, José, Raimundo, Olírio, Tânia, Alice, Valdir e
Zailson, em certo sentido, não diferem muito dos de outros trabalhadores da lavoura
e dos demais trabalhadores que para lá se dirigiram. Todos esses memorialistas e
seus depoimentos revelaram traços de como se deu a organização espacial e a
evolução social das Águas e de como, em sua maioria, vieram para trabalhar tendo o
conhecimento como suporte das relações. Imbuídos desses conhecimentos, dirigiam-
se a uma região onde estava se formando uma nova sociedade para lá oferecerem
seus préstimos, contando com um provável sucesso financeiro que possibilitaria um
também provável enraizamento na região. Nesse sentido, aqueles que se dirigiam
para Lobato não o faziam na certeza de que haveria um estabelecimento definitivo,
mas na esperança de que isso aconteceria. Isso transformou esses homens e mulheres
em pessoas que vieram para o Norte do Paraná contemplando em seu horizonte
a possibilidade da tentativa. Desse modo, é possível que nem mesmo aqueles
que se estabeleceram em Lobato como proprietários estivessem certos de que tal
empreitada seria positiva, fato que nos leva a considerar a questão da incerteza
168 −
O GRANDE ÊXODO E A RECONVERSÃO ECONÔMICA, 1969 – 1975 ■

como o aspecto mais relevante do fenômeno da introdução ostensiva da sociedade


capitalista no Norte do Paraná.
Esse sentimento, sem dúvida, foi predominante na sociedade das Águas e,
as constantes geadas que deixaram os pés de café no toco a tornaram ainda mais
forte, pois havia um universo de incertezas que pairava sobre essa sociedade que
perdurou durante todas as fases do processo de construção do Município. Na fase
da estruturação da sociedade das Águas, aproximadamente até o ano de 1956, esse
sentimento se mesclava com o sentimento otimista da esperança. Seus moradores
se davam o direito de esperar dias melhores a cada momento de suas vidas e
nem mesmo as constantes geadas os desanimavam. Em um segundo momento, os
sentimentos de incerteza e de esperança se revelam na tentativa de reorganização
da estrutura agrícola a que estava vinculada a propriedade quando são introduzidas
novas culturas, como as pastagens e a oleaginosas, sobretudo a partir dos anos
70, quando a produção cafeeira se encontra em processo de erradicação devido
ao excesso do produto no mercado internacional e também às constantes geadas
ocorridas no período.
Durante esse segundo momento de reorganização da zona rural também se
encontrava o maior número de moradores nas Águas. Um dos motivos para o
aumento populacional se deve ao fato de que, no primeiro decênio de vida na
zona rural, muitos moradores, como Iracema e Durval, que chegaram jovens e
solteiros a Lobato, encontram-se casados e construindo família. Geralmente os
novos casais tinham um filho a cada dois anos, o que formava famílias com, em
média, oito membros180. Entre os entrevistados que constituíram família e citaram
os filhos durante a entrevista, a média é de cinco filhos por casal, e a maior parte
nasceu entre os anos de 1955 e 1962. Dessa forma, a partir de 1960, a vida nas
Águas, e mesmo na cidade, está mais movimentada devido ao número de habitantes
nascidos em Lobato e em idade escolar. Antes disso, quando a produção cafeeira,
constantemente castigada pelas geadas, ainda era aquela na qual mais se investia,
o hábito de cultivar plantações diversificadas foi a base de sustentação de muitas
famílias lavradoras, como relembra Durval Colontonio 181:

Ah sim! De fato, você vê, em 53 veio uma geada forte, e esses 43 mil pés
de café já estava para produzir a fruta dos quatro anos, levou no tronco!
Queimou todo o café, aí tivemos que formar o café de novo, começar tudo
de novo. E como a gente não tinha outra renda, a minha família não tinha
outra renda, a gente tocava dez mil pés de café, e o patrão então consentiu
então de plantar quatro ruas de arroz e uma rua de café. Então a gente
batia as máquinas assim, quatro ruas de arroz nas ruas de café geado, que
estava cortado no tronco. E, por sinal, correu um ano muito bem. A gente

180 Durval e Iracema Colontonio: quatro filhas; Manoel e Olindina de Freitas: sete filhos; Agripino Lúcio dos Santos: cinco
filhos; Olírio Xavier Cotrim: dez filhos; Satoru Inoue: dez filhos; João do Soutto Mello: sete filhos; Nair Marques de
Oliveira: oito filhos.

181 Depoimento de Durval Colontonio. Lobato, junho de 2001.

− 169
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

tirou uma safra de arroz muito boa e faltou arroz lá no Estado de São Paulo,
Fernandópolis, veio os caminhões aqui buscar arroz e nós vendíamos a
safra todinha. Tudo empilhado na roça ficou um ano todinho empilhado na
roça, o arroz de palha, depois que o caminhão feio aí foi bater e vendemos
esse arroz para Fernandópolis.

Na verdade, a erradicação do café atinge os seus pioneiros em plena década


de 50. Por exemplo, a Fazenda Moron, propriedade do Sr. José Moron, que residia
em Marília, São Paulo, já começa a substituir o café a partir da geada de 1955, ou
seja, seis anos depois do plantio daquela cultura industrial, como lembrou o Sr.
Manoel Batista ao discorrer sobre a geada de 1953, ainda durante a primeira safra
de café. Segundo ele, o proprietário da Moron teria estabelecido um prazo de dois
anos para insistirem com o café. Outra geada, porém, teria levado também essa
colheita e restou aos empregados saírem da fazenda, muitos dos quais se dirigiram
para Arapongas. Quanto à produção da fazenda, seus proprietários resolveram
transformar tudo em pasto e abandonar o café. O caso da Fazenda Moron não era
o único. Não é verdade que o café começou a ser substituído a partir de meados
ou fins da década de 60. O Sr. Nilo Lampugnani, quando comprou a Fazenda
Bandeirantes, de propriedade de Antonio Cavalari, na Água Ibitipoca, no ano 1958,
também decidiu terminar os contratos dos arrendatários, não iniciar uma lavoura
de café e se concentrar nas lavouras de milho e de algodão e na criação de gado de
leite e de corte. Dezesseis anos de experiência com lavouras de café em Astorga e
Lobato levaram o Seu Nilo182 à conclusão de que a lavoura não era rentável:

Nós viemos para Lobato (em 1958) porque meu pai tinha um sítio no
Município de Astorga, e era café, ne, mais aí veio a geada do 55 e matou
tudo. E aí ele disse, vamos a pegar a colheita deste ano e comprar um
pedaço de terra e vocês formam o capim, põem o gado e começam a
mexer com capim. [..] Eu entrei aqui, eu sempre plantava, digamos, dez,
15 alqueires de milho e uns dois, três alqueires de arroz. Mas a atividade
era a pecuária.

Em um terceiro momento, em fins da década de 60, quando se iniciou o êxodo


municipal, observa-se um aspecto da itinerância praticada no Norte paranaense, não
só por trabalhadores volantes da lavoura e da cidade, mas também por pequenos
proprietários que não alcançaram o sucesso esperado com a vinda para Lobato. A
fundação de novos patrimônios no Oeste paranaense e a possibilidade de trocar uma
parcela de cinco, dez, quinze ou vinte alqueires em Lobato por uma propriedade
de maior porte em municípios emergentes, como Altônia e Cruzeiro do Sul, ou em
outros estados brasileiros, como Mato Grosso ou Rondônia, são alguns dos motivos
que concorreram para o declínio populacional lobatense. Sobre esse momento,
Durval diz que

182 Depoimento de Nilo Lampugnoni. Lobato, julho de 2002.

170 −
O GRANDE ÊXODO E A RECONVERSÃO ECONÔMICA, 1969 – 1975 ■

A declinação de Lobato começou pelo seguinte: porque veio a erradicação


do café, então tinha proprietário que comprava o lote vizinho para depois
entrar no banco e erradicar o café, e aquele que vendeu o café para ser
erradicado ele comprou terra em outros lugares mais pra frente aí, Assis
Chateaubriand, Pérola do Oeste, Altônia, e o povo foi saindo assim,
quer dizer, os próprios proprietários que estavam mais bem colocados
compravam do vizinho erradicavam o café e plantavam pasto. Então, assim
começou a diminuir as famílias183.

De acordo com esse relato, o declínio populacional teria acontecido lá pelos


idos de 1960, todavia, como se viu durante os resultados apresentados, Lobato
sofreu um declínio populacional no final, não no início do período especificado
por Durval. Entre os anos de 1953 e 1968, as Águas se encontravam em pleno auge
de sua dinâmica social; durante esses anos se intensificaram as construções que
visavam atender ao todo coletivo. A partir de 1969, as Águas começam a sofrer
com o declínio populacional e escolas são desativadas ou transferidas de local para
atenderem em Águas nas quais ainda havia número suficiente de alunos. Capelas
passam também por mudanças de local e, como se viu pelos mapas do IBGE,
somente três campos de futebol são registrados na zona rural entre 1972 e 1978. É
significativo frisar que a produção cafeeira certamente não foi o único motivo para
a vinda de inúmeras famílias de diversas regiões brasileiras e de nacionalidades
distintas para o Norte do Paraná. O declínio dessa produção, contudo, foi um dos
fatores mais importantes para a reconfiguração do espaço social das Águas. Ao
serem introduzidas novas culturas, como pastagens, que não necessitam de vultosa
mão-de-obra, a exemplo da produção cafeeira, grande parte da população rural e
municipal se deslocou para outras regiões dentro do país e também para outros
municípios fundados naquele período, fato que levou à reorganização do espaço
social das Águas.

3. Os entrevistados acreditam que a geada foi uma das causas dessa decadência e
desse êxodo, seguida das políticas públicas de erradicação do café. O seu Satoru 184,
com sua experiência adquirida em 50 anos de trabalho na Água de Grajaú, comenta
laconicamente que “Depois veio a geada e matou tudo o café. Pra manter a despesa
plantemos mamona que salvou bastante aqui os lobatenses. [...] Matava o café,
brotou, tudo brotou. [...] 53, 58, 62 [...] sempre em 4 ou 5 anos vem uma geada”.
Como uma pessoa acostumada à adversidade, o agricultor japonês, até a data
da entrevista em 2000, possuía um hectare de café junto a plantações de acerola,
amoreira para bicho de seda, gado de corte e gado leiteiro. O caso particular de seu
Satoru ilustra o que ocorreu com a lavoura no município de Lobato. A reconversão
produtiva significou, como nos outros municípios do Norte de Paraná, uma grande
reconcentração de terras e o fim da tão elogiada reforma agrária capitalista da

183 Depoimento de Durval Colontonio. Lobato, junho de 2001.

184 Depoimento de Satoru Inoue. Lobato, outubro de 2000.

− 171
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

CMNP. Lobato185, todavia, não virou um sertão verde de trigo e de soja; a maioria
de suas terras destinou-se à criação de gado, com destaque para o gado leiteiro, a
cana-de-açúcar e a uma variedade grande de outras culturas, como recorda Zailson
Lemos:

Olha na nossa região, passou o ciclo de café, entrou a pecuária. Aqui não
teve como hoje trigo, soja, muito pouco. Isso aí é mais lá em Maringá. Então
aqui o pessoal foi arrancando o café. Teve período de algodão, mamona.
Lobato foi um dos maiores produtores de mamona do Paraná. Algodão
também186.

Nem toda a culpa se deve às condições climáticas; a política da erradicação do


café também leva seu quinhão nesse processo de ”culpas” como considera o Senhor
Raimundo: “Acho que o governo pagava naquele tempo para arrancar o café, então
aí foi acabando, aí foi ficando a lavoura de algodão, de mamona, de amendoim,
então, até hoje, é isso daí. Acabou, dificilmente...” 187 O Senhor Raimundo também
menciona um outro vilão, culpado pelo sumiço do café: a presença do sindicalismo
rural, raramente mencionado nas fontes registradas:

Bom, infelizmente, quando começaram os donos das propriedades a acabar


com a lavoura do café, foi quando veio o sindicato. Não foi falado aí, mas
veio o sindicato e aquele sindicato, eh... Desanimou muita gente... Era
muito rígido, queria todo para os empregados, aí começou a arrancação
do café.

4. A reconversão produtiva, a concentração das terras e a tecnificação da agricultura


produziram o grande êxodo rural e urbano a partir de meados da década de 60,
com uma aceleração no início da década seguinte. Os impactos econômico, social
e moral desse fenômeno não poderiam ser subestimados: os comércios, as escolas
rurais e o cinema Marabá foram fechando as suas portas; as igrejas e os clubes
se confrontaram com a diminuição drástica da sua freguesia; parte da vida social
dos que ficaram foi transferida para a cidades maiores e nas Águas a vida social
praticamente desapareceu:

Iam para Assis Chateaubriand, Altônia, Pérola, outros iam para Mato Grosso.
Matto Grosso está cheio de gente de Paraná188.

185 Não nos foi possível, dadas as grandes limitações de tempo e de financiamento que enfrentamos, entrar nos detalhes da
reconversão econômica da região. Por isso só mencionaremos algumas especificidades de Lobato.

186 Depoimento de Zailson Lemos. Lobato, outubro de 2000.

187 Depoimento de Raimundo Saraiva Peixoto. Lobato, outubro de 2000.

188 Depoimento de Valdir Cotrim Ribeiro. Lobato, março de 2001.

172 −
O GRANDE ÊXODO E A RECONVERSÃO ECONÔMICA, 1969 – 1975 ■

Saía na avenida ali assim, você contava os caminhões indo embora e


fechando tudo. Rumo a Assis Chateaubriand, Altônia, não sei o que. Aí
Lobato ficou assim. Nós chegamos aqui em 745 mais ou menos; você
andava na avenida, tudo fechado189.

Mudar muda no mundo inteiro, foi uma mudança assim... [...] Uma mudança
houve, porque o comércio caiu bastante os alunos também com a mudança
foram embora. As escolas do sítio muitas fecharam porque não tinha aluno.
Tinha dia que saíam 4, 5, 10 mudanças de Lobato190.

Acreditamos que em Lobato, como em todo o Norte Novo do Paraná, houve


muitos pequenos êxodos depois de cada geada das décadas de 1950 e 1960. Só
que, até 1969, essas saídas eram amplamente compensadas pela chegada de novas
famílias de trabalhadores que entravam na região, via estado de São Paulo, oriundas,
em grande proporção, de Minas Gerais, do Nordeste e do Norte. O êxodo definitivo
só começou em meados de 1969. A diminuição drástica nos livros de matrículas
das escolas rurais das Águas, em março de 1970, demonstra o que afirmamos.
Mas esse Grande Êxodo ainda demorou uns seis anos para se estabilizar. A grande
saída ocorreu entre meados de 1969 e meados de 1975. Nas décadas de 80 e 90, a
comunidade teve uma pequena recuperação. Depois do êxodo, foram construídas
estradas de asfalto – as assim chamadas casquinha de ovo - fato que melhorou a
comunicação de Lobato com o resto do mundo. Na década de 90, a instalação
da indústria de laticínios Líder passou a fornecer emprego a um grande grupo de
habitantes. Ainda assim, segundo a prefeita Tânia, faltam outras indústrias para que
a população possa ter mais opções de trabalho.

5. Mostramos, mediante as falas e os documentos primários dos lobatenses, algo


como uma identidade local, uma Gestalt ou imaginário coletivo das Águas; a maneira
como os moradores representam a sua história. A divisão do período em três etapas
é útil para visualizar melhor a história social do Município. Com a palavra barbárie
não queremos denominar uma conduta social da época e, menos ainda, caracterizar
a natureza anterior a sua devastação ecológica. É uma forma de adotar o ponto de
vista das pessoas que consideravam a sua experiência de pioneiros como a luta
da civilização do café contra a barbárie da floresta, dos animais selvagens, das
doenças, do medo, do isolamento e da precariedade de casinhas de tábuas e de
estradas que não eram mais que picadas. Nas falas dos moradores, percebemos o
mito de origem associado ao mito do sacrifício.
Ao contrário, o período que transcorre entre 1955 e 1970, em geral, é visto como
a idade de ouro, por mais que, de fato, o flagelo das geadas tenha sido periódico
desde a fundação do patrimônio. Por um breve momento, os argonautas da Marcha
para o Oeste, ao consolidarem o império de sua Majestade, o Café, acreditavam

189 Depoimento de Zailson Lemos. Lobato, outubro de 2000.

190 Depoimento de Alice Cafofo. Lobato, novembro de 2000.

− 173
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

ter encontrado o velocino de ouro. Desenganaram-se. E a maioria continuou a


sua caminhada. Foi o tempo das esperanças, da vida social e da juventude (Como
vimos, até os transgressores eram mais jovens). O fim de festa foi originado pelas
geadas, pela deterioração dos preços do café ou pela má vontade dos políticos. Em
todo caso, o mau veio de fora. A presença de uma fronteira oeste, ainda aberta, fez
o resto: as pessoas ainda tinham para onde migrar. A última etapa faz lembrar um
pouco a tese do historiador holandês Leonard Huizinga. Depois da primavera e
do verão, não chegou o inverno da morte, mas um outono aceitável. A cidade não
está destruída. Não há casas vazias. Mediante uma política de criação de fontes de
trabalho, a localidade ressurgiu e pode-se consolidar mais ainda. A cidade voltou
a ser um bom lugar para morar. A zona rural talvez nem tanto, visto que as Águas
e as Fazendas deixaram de formar vilas rurais com uma vida própria para voltar a
ser o que eram: acidentes geográficos escassamente habitados. Com efeito, se por
volta de 1968 15.000 pessoas moravam nas Águas e menos de 2.000 na cidade,
agora estamos em presença de um quadro totalmente subvertido, ou seja, com
aproximadamente 4.000 pessoas morando na cidade e somente 600 moradores na
zona rural.
É a história de uma comunidade ausente. Ao olharmos as fotografias dos prédios
das escolinhas, deparamo-nos com o fato de que as crianças que freqüentaram as
aulas não moram mais em Lobato. Estão em algum lugar no Oeste e sua história
lobatense não durou mais de cinco, dez ou quinze anos. A localização de sítios
arqueológicos demonstrou a presença indígena na região. Depois chegaram os
nordestinos, os mineiros, os paulistas e outros, porém a maioria não chegou para
ficar porque sua majestade, o café, não agüentava muito bem o clima da região.
Então Lobato foi pequeno, grande e pequeno outra vez...

174 −
9

HISTÓRIA LOCAL,
MICROANÁLISE E
FONTES ORAIS:
a história regional revisitada

1. Ainda hoje, a história local e regional não desfruta de um grande prestígio


no meio acadêmico das universidades públicas brasileiras. Freqüentemente,
projetos de pós-graduação e de pesquisa em geral são rejeitados e privilegiam-
se investigações de abordagens temáticas ou teorizantes mais abrangentes. Para a
maioria dos historiadores acadêmicos, segundo uma descrição irônica do professor
Rollo Gonçalves, a História Regional seria

Coisa de barnabés aposentados, jornalistas provincianos ou militares de


pijama e de chinelos. Enfim, eruditos locais que sabem detalhes e mais
detalhes acerca de um lugarejo ou um tipo qualquer de espaço reduzido,
mas que não têm compromissos com as crenças e as regras científicas
mais comezinhas. Os historiadores regionais eram, na opinião dominante,
herdeiros histriônicos dos cardápios metodológicos dos velhos positivistas,
que consideravam o estabelecimento da veracidade petrificada dos fatos o
supremo dever do historiador (ROLLO GONÇAVES, 1995, p. 21).

Há também um certo imperialismo de metrópoles acadêmicas, como Buenos


Aires ou o eixo Rio de Janeiro - São Paulo, as quais consideram que os objetos
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

referidos a seus âmbitos são História e as temáticas interioranas, história regional.


A pesquisa sobre um bairro de São Paulo, de Buenos Aires ou do Rio, todavia, não
seria também história regional? Há ainda o problema - mais aparente que real – em
entender que os temas históricos regionais são mais difíceis de serem adaptados a
paradigmas consagrados internacionalmente. À primeira vista, o historiador que
pretende escrever sobre a história da classe operária de São Paulo nas primeiras
décadas do século XX ou sobre a feitiçaria no Rio de Janeiro na época colonial
poder-ia-se apropriar facilmente de modelos historiográficos, como os de Edward
P. Thompson ou de Carlo Ginzburg. Por outro lado, tomar como paradigma a
Montaillou, de Le Roy Ladurie, para escrever a história de um pequeno município
do Norte Novo do Paraná, na segunda metade do século recentemente finalizado,
pareceria constituir uma operação bastante surrealista, não só devido ao recorte
local e regional, mas também à brecha temporal que separa ambas as histórias.
Pareceu-nos que adotar a tradição esquecida das pesquisas regionais dos
sociólogos uspianos da década de 40 a 60 (Emílio Willems, Oracy Nogueira,
Maria Isaura Pereira de Queiroz ou Antonio Candido) seria mais viável e, por
isso, resgatamos parte dessa tradição: de fato, a pesquisa da cultura material e do
quotidiano, mas não o fundamento estrutural-funcionalista que sustenta essa tradição.
Nesse sentido, tivemos de remar contra a corrente daquilo que os historiadores que
se ajustam às modas do momento costumam considerar academicamente correto.
Rollo Gonçalves, questionando a negação do uso da categoria “comunidade” por
parte dos historiadores, chega a afirmar que:

Entre nós a recusa in limine das categorias sociológicas tornava-se uma


espécie de selo de autenticação do fazer histórico. Reclamar dos conceitos
desencarnados, dos sobrevôos transtemporais, das constantes ausências de
remissões factuais e de outros traços atribuídos aos estudos sociológicos
virou maneira de legitimar o campo específico dos historiadores (ROLLO
GONÇAVES, 1995, p. 27)191.

Destacamos que a tradição esquecida das pesquisas sociológicas da USP não


pecava excessivamente pelas limitações ou defeitos que os historiadores atribuíam
aos sociólogos. N’Os Parceiros do Rio Bonito, de Antonio Candido (2001), por
exemplo, a investigação sobre a cultura material da comunidade caipira de Bofete,
São Paulo, não revela o uso nem de conceitos desencarnados, nem de sobrevôos
atemporais e, menos ainda, de ausências a remissões factuais. Estamos, sim, na
presença de um estudo de caso de alguma forma auto-sustentado. Há uma pesquisa
sobre a história anterior da comunidade caipira do interior de São Paulo, mas não
fica muito claro qual é a representatividade de Bofete, dentro do contexto social
desse interior paulistano. Da mesma forma, há uma excelente história (etnológica)

191 O autor assinala algumas exceções importantes, como as representadas pelos artigos de Brasil Pinheiro Machado, que
utilizou amplamente as categorias próprias da sociologia.

176 −
HISTÓRIA LOCAL, MICROANÁLISE E FONTES ORAIS ■

regional, mas a forma de apresentar o texto é tradicional no sentido de que parte


das descrições e das explicações gerais para seu estudo de caso. Na micro-história,
o jogo de escalas opera em forma inversa; parte da redução da escala para a sua
contextualização atribuidora de sentido. Possivelmente, a característica mais
marcante do trabalho de Antonio Candido (2001) foi “a paixão pelo concreto” e foi
justamente esse elemento que fez de seus Parceiros uma obra imune ao passo dos
tempos. Segundo Candido, em entrevista concedida a Jackson (2002):

Os parceiros do Rio Bonito é uma pesquisa extremamente empírica,


um contato direto com a realidade, eu diria até que com uma bagagem
teórica modesta. Me disseram que o Florestan Fernandes disse uma vez
que o meu livro não é de sociologia, mas de etnografia, por ser descrição
sem interpretação. Talvez ele tinha razão. [...] De modo que, se há uma
orientação geral na minha atividade, tanto no campo da sociologia como
no campo da literatura, eu diria que é a paixão do concreto. Na literatura,
o texto; na sociologia, o contato direto com os fatos sociais (JACKSON,
2002, p. 125-126).

2. Abandonada a tradição sociológica das décadas de 50 e de 60 - praticada por


Maria Isaura Pereira de Queiroz, Emílio Willems, Antonio Candido, Florestan
Fernandes, Edgard Carone e Décio de Almeida Prado, entre outros -, a história
local e regional no Brasil continuou sendo reduzida à crônica, na qual imperam o
particular e a mesmice e, como fato novo, começou a aparecer uma historiografia
economicista e/ou demográfica de ocupação territorial, de correntes migratórias, de
frentes pioneiras e de outras abordagens estruturalistas, em que os sujeitos sociais
se encontravam descentrados ou com uma presença real escassa ou nula.
Dessa forma, nas décadas de 70 e 80, passamos a nos defrontar com duas
presenças historiográficas totalmente diferentes: a primeira, extra-acadêmica e
subjetiva, exaltava os feitios dos demiurgos de uma localidade ou região, e uma nova
história acadêmica, economicista, estruturalista, vagamente marxista, demográfica,
porém sem protagonistas históricos com rostos humanos e, freqüentemente, sem
conflitos sociais e políticos.
Não restam dúvidas de que os desbravadores da história regional do Norte
do Paraná foram os professores Nadir Cancian (1981), Iolanda Casagrande (1981),
France Luz (1980), Ana Yara Dania Paulino Lopes (1982), Evandir Codato (1981) e
Sandino Hoff (1983), entre outros, cuja opção teórica foi por um modelo estruturalista
e economicista e por uma tradição demográfica francesa da Universidade Federal
de Curitiba e de alguns cenáculos uspianos. Ambas as vertentes partiram sempre da
descrição do universo maior para desembocar no objeto regional.
Quanto às especificidades da região, elas quase sempre foram tratadas como
ilustrações particulares de generalizações teóricas e empíricas. Com o sujeito
social ausente - ou reduzido a coletivos abstratos como massa, corrente migratória,
paulistas e mineiros, pioneiros, população - os objetos como ocupação territorial,
− 177
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

frente pioneira ou estrutura fundiária transformaram-se em quase-sujeitos históricos,


em que as experiências humanas concretas de homens e de mulheres, os conflitos
sociais entre as companhias colonizadoras, pioneiros, agricultores, posseiros,
arrendatários e assalariados estavam ausentes ou não mereciam um lugar de
destaque nessa historiografia que se pretendia marxista 192.
Ressaltamos que essa historiografia regional das décadas de 70 e 80 constituiu-
se na primeira abordagem acadêmica séria para interpretar a história da região.
Também funcionou como sustento factual para outro tipo de historiografia, mais
humanista, social e crítica, como é o caso das produções de Nelson Dácio Tomazi
(1989, 1997), de Lucio Tadeu Mota (1994) e de Henrique Rollo Gonçalves (1995),
os quais elaboraram uma avaliação crítica da produção historiográfica sobre o Norte
do Paraná, discorrendo sobre temáticas como a presença dos indígenas na região,
o mito do vazio demográfico prévio à ocupação promovida pelas companhias
colonizadoras, a leitura política dos espaços regionais, a construção da idéia de
pioneiro por parte dos agentes da Companhia Melhoramentos do Norte do Paraná e
a interpretação crítica do significado da reforma agrária capitalista que transformou
a região.
Esse modelo estruturalista, objetivista, economicista, demográfico e de uma
vaga inspiração marxista não-humanista começou a predominar nas ciências
humanas no Brasil a partir da década de 1970. Inspirou-se em algumas leituras
teóricas de um Marx depenado, de Caio Prado Junior, de Adeline Daumard, de
José de Souza Martins, de João Manoel Cardoso Mello e de autores que escreveram
sobre a história do café, como Romário Martins, Pierre Monbeig e Stanley Stein.
A partir do trabalho de Nadir Cancian, cujo trabalho de pesquisa data de 1977,
a bibliografia secundária se reitera com pouca criatividade e interpretação. Essa
tradição de desbravadores (na verdade deveria se falar em desbravadoras, já
que quase todas são mulheres) apresentou uma grande virtude, que também foi
a sua principal fraqueza. A fundamentação teórica que apresentava - marxista,
estruturalista, demográfica ou espacial - não era relevante, nem foi aprofundada,
porque foram os documentos primários (representados pelos relatórios oficiais dos
Governos do Paraná, da União e do Instituto do Café, fontes do IBGE e Relatórios
das Companhias de Colonização) que, de fato, converteram-se no marco teórico
interpretativo. Dessa forma, esses trabalhos fundamentaram-se, firmemente, aliás,
sobre uma documentação copiosa e relevante, mas pagaram o preço por terem
caído na armadilha dos discursos oficiais e privados que pretendiam analisar e, às
vezes, criticar. Acreditamos que essa documentação oficial funcionou como marco
teórico e como limite das pesquisas (em menor grau nos casos de Nadir Cancian e

192 Não nos queremos erigir em donos da alfândega da ortodoxia marxista. Porém, com a parcial exceção de Anna Yara
P. Lopes (1982), não conseguimos enxergar nessa historiografia algum tipo de fundamento marxista coerentizado, nem
do marxismo estruturalista então de moda e, menos ainda, de um marxismo humanista, o qual, no caso da obra de
Thompson e Hobsbawm, já não eram totalmente desconhecidos nos médios acadêmicos do Brasil. Uma teoria marxista
pode privilegiar os aspectos econômicos ou sociais, mas dificilmente consideraria às fontes primárias como o arcabouço
teórico da sua pesquisa.

178 −
HISTÓRIA LOCAL, MICROANÁLISE E FONTES ORAIS ■

de Ana Yara Lopes e, em um grau extremo, nos casos de France Luz e de Sandino
Hoff). O documento se auto-interpretava e chegava a constituir a verdade sobre
as etapas da expansão do capitalismo na região e as conseqüências econômicas e
demográficas que essa expansão carregava em seu bojo.
Uma outra consideração cabe ser debatida aqui ainda que superficialmente.
Essa tradição historiográfica de 1977 a 1988 fazia história regional ou utilizava
a região como ilustração daquilo que acontecia no Brasil como um todo? A
nossa resposta já está embutida na formulação da pergunta. A história é regional
pela limitação geográfica; não é regional, todavia, pelas suas perspectivas
de identidades sociais ou culturais. A região é definida espacialmente, por
exemplo, quando compreendida entre determinados rios. Ora, a formação de
uma sociedade regional parece ser mais o produto da ação do Estado e das
Companhias Colonizadoras que o resultado da ação de homens e de mulheres
que ressignificaram as suas práticas para reproduzir as suas vidas sociais em
um habitat novo. Socialmente, a historiografia da tradição inaugurada por
Cancian (1981) não é regional por um pré-conceito acadêmico da época - mas
que os sociólogos da USP vinham rejeitando desde finais da década de 1940.
Para ser cientificamente respeitáveis, os historiadores não podiam nem descer
ao reino do particular, nem incursionar pela história social, abandonando –
nem que fosse temporariamente – a economia, a demografia e a abordagem
macroestrutural.
Uma frase da Folha de Londrina de 1973 expressa não somente o que os
pioneiros consideravam (e consideram) a história da região, mas também o que os
próprios historiadores acadêmicos consideravam:

O café povoou o Norte do Paraná, levantou cidades e acelerou o


desenvolvimento econômico do Estado. Num contexto novo o café
desencadeou, no Paraná, o mesmo progresso que promovera em São Paulo
(TOMAZI, 1973, p. 112).

Um caso extremo de mimetização com o discurso oficial do Estado e da


Companhia Melhoramentos sobre a região - com o agravante de que foi publicado
em 1991, em uma coletânea organizada por Francisco Paz, que se pretendia inserida
na ‘nova história’ - o encontramos em um parágrafo de Ana Cleide Cezário, citado
por Tomazi:

Os norte-paranaenses elaboram um conjunto de representações simbólicas


no qual a atuação dos ingleses e paulistas, a repartição eqüitativa das terras,
a igualdade de oportunidades, entre outros fatores notáveis, fornecem um
referencial de um acontecimento histórico que, embora recente, se reveste
de um sentido épico e grandioso capaz de conferir uma identidade comum
para os primeiros moradores, realçando o sentido democrático da fronteira
(CEZARIO apud TOMAZI, 1997, p. 305).

− 179
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

Vale a pena citar um comentário de Nelson Tomazi in extenso, já que intenta


sintetizar em uma frase todo um projeto historiográfico:

A legitimação retrospectiva procura sempre as origens da região: quem


foram os primeiros moradores, os ‘pioneiros’, o que encontraram quando
chegaram, quais foram os dissabores e quanto lutaram, para se fixar na
terra, como constituíram as suas habitações, etc. Estes elementos definem
a ‘região’ com uma territorialidade prévia. E esse recorte espacial fixo,
consagrado, muitas vezes imaginário, legitima um recorte historiográfico,
como também o lugar dos historiadores que o desenvolvem e o defendem,
criando assim verdadeiros nichos de saber e ‘especialistas’ na defesa daquela
historiografia ‘regional’. Isso vale para o ‘Nordeste’, o ‘Oeste Paulista’, para
o ‘Paraná’, para o ‘Norte do Paraná’ e para muitas outras regiões (TOMAZI,
1997, p. 119).

Concordamos plenamente com o espírito crítico com que o ilustre sociólogo


londrinense encara a historiografia da nossa região. Discordamos, todavia,
de alguns detalhes. Para nós, o problema não está em pesquisar microtemas,
tais como: quem foram os primeiros moradores, como construíram a sua vida
material e social no meio do mato ou as peripécias das suas lutas e expectativas.
A maioria desses pioneiros não passou a formar parte da classe dominante
nem explorou a ninguém. Ora, Tomazi tem razão quando denuncia o uso que
fazem a historiografia oficial, a construída pelo Estado, as companhias e até as
universidades, da trajetória dos primeiros moradores da região seja para legitimar
um falso conceito de identidade regional sem classes e conflitos sociais, seja
para legitimar o domínio econômico, político e ideológico de grupos que se
apropriaram da história dos pioneiros autoconstituindo-se nos seus únicos e
legítimos herdeiros.
Um perfeito exemplo daquilo a que nos referimos é oferecido pela publicação
do livro: Maringá. Meio Século de História, (1997). Na parte primeira, Os Pioneiros,
aparecem os que chegaram primeiro, mas também pioneiros urbanos que arribaram
na década de 50 e 60 ou mais tarde ainda, dependendo de quem é amigo do rei
(o ex-prefeito Jairo Gianotto, no caso). Apesar do predomínio de empresários bem-
sucedidos, há um pouco de tudo como em galpão: o primeiro educador, o primeiro
marceneiro, o primeiro palhaço [sic] etc. Ora, o exercício de dominação política e
ideológica se evidencia claramente na Parte II: Os Contemporâneos, em que não
há mais espaço para pessoas humildes ou amas de casa, a não ser para os quadros
hegemonizados por empresários, comerciantes e profissionais bem-sucedidos, os
mesmos que aparecem nas colunas sociais dos diários da região: burgueses com
tendência à obesidade, flanqueados por suas ornamentais esposas, ou seja, os atuais
donos da cidade.
Apesar das limitações teóricas e metodológicas que apontamos para essa primeira
história regional - e a principal delas, em todos os autores citados e sem exceção
180 −
HISTÓRIA LOCAL, MICROANÁLISE E FONTES ORAIS ■

(TOMAZI, 1997, 261)193, consiste na reprodução (consciente ou inconsciente)


do discurso ufanista das companhias colonizadoras -, essa produção estabeleceu
as bases para uma historiografia acadêmica. Era se de esperar que, depois dessa
história econômico-demográfica, surgisse uma sadia história sobre temas regionais.
Uma história social que compreendesse registros econômicos, políticos, culturais
e simbólicos, que incorporasse os elementos teórico-metodológicos do marxismo-
humanismo britânico, a etno-história da Escola dos Annales, a micro-história de
origem italiana e, porque não, que tentasse retomar a rica tradição dos sociólogos
uspianos. Só que isso, a nosso ver, não aconteceu senão muito esporadicamente.
Talvez ainda haja tempo, antes que novos furacões universalistas arrasem, de novo,
a região.

3. Depois do surto de histórias regionais estrutural-economicistas e da sua crítica


historiográfica correspondente, realizada pelo sociólogo Nelson Dacio Tomazi e
pelo historiador José Henrique Rollo Gonçalves, chegou a noite para a historiografia
regional e local, ao menos para a nossa região e para parte dos historiadores do
Norte do Paraná. Com poucas e geralmente não muito bem-sucedidas exceções
(SILVA, 1993), os professores universitários revelam pouco interesse por assuntos
regionais e os alunos não são encorajados a empreenderem a escrita de uma boa
história social de, por exemplo, seu município, região ou sobre alguma temática
econômica, social, cultural ou política do Norte do Paraná. Ainda hoje, nos casos de
pesquisas de alunos de graduação e de pós-graduação, os trabalhos são orientados de
tal forma que a região não ultrapassa a categoria de ilustração do geral. Thompson,
Ginzburg, ou Antonio Candido são lidos como se as suas obras não apresentassem
a mais remota relação com algo que poderia ser chamado de história local ou
regional, como as (micro)-histórias sociais de Santa Fé, de Astorga, de Lobato, de
um bairro de Londrina, de Maringá, ou a história social da comunidade kaigangue,
de Manoel Ribas. Muitas contextualizações, sobretudo as de caráter economicista,
acabam de matar a criança da história regional no seu macroberço.
Uma parte dos historiadores do Norte do Paraná - e no Brasil inteiro não é
muito diferente - considera-se cidadão do mundo e por isso estuda Adam Smith,
Marx, Voltaire, Nietzsche, Foucault ou - no caso de apresentar uma preferência
mais historiográfica - Braudel, Thompson, Elias ou Ginzburg 194. Eles dificilmente

193 Concordamos com Tomazi (1997), sobre o caráter inovador e o rigor do trabalho científico de Nadir Cancian (1980).
Mas dificilmente podemos concordar com a inesperada benevolência de Nelson Tomazi (1997) quando afirma: “Apesar
de, em alguns poucos momentos, reproduzir elementos discursivos que aqui estamos questionando, pode-se dizer que
este trabalho é uma linha divisória em termos de produção acadêmica até então”. Toda a tese de Cancian reproduz
aquilo que o sociólogo de Londrina está criticando, tanto como os outros autores – esses sim fortemente questionados
por Tomazi – que a tomam por modelo e a imitam. Não é melhor conservar a memória de uma pessoa de carne e
osso, que cristalizá-la em um mito? Ou estamos novamente na presença de um exercício de dominação, desta vez não
econômica?

194 A maioria dos artigos publicados na revista Matizes & Comentários, da Unioeste/Cascavel, dirigida pelo historiador
Marco Antonio Lopes, seria uma boa ilustração dessa historiografia de intelectuais.

− 181
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

se rebaixariam a tratar temas regionais porque na Igreja dos historiadores há alto


e baixo clero, mártires e confessores. Há uma dificuldade em perceber que a
história regional e a escala reduzida gozam, na atualidade, de um prestígio inédito
justamente nesses países centrais que eles tanto admiram...
Outra parte da cofradia da musa Clio (a qual também é uma deusa) se dedica
a pesquisas de corte culturalista e, nesse caso, o recorte temático pode se referir
a algum “fenômeno cultural” ocorrido em alguma parte do mundo, do Brasil e,
inclusive, da região do Norte do Paraná. Esse recorte culturalista é um reflexo da
tendência hegemônica na escola dos Annales, na fase compreendida entre 1968
e 1988, de uma moda já superada e autocriticada na República de Marianne.
A cultura é deslocada e isolada do social, quando, na realidade, forma parte
dele, junto aos elementos econômicos, políticos ou simbólicos. Poucos desses
historiadores perceberam que autores que eles muito admiram – como Ginzburg,
Levi, Thompson e Le Roy Ladurie – realizaram fecundas pesquisas microanalíticas
adequadas a contextos históricos regionais.

4. No Brasil, a micro-história italiana teve uma recepção teórica notável. O texto


de Ginzburg, O queijo e os vermes, passou a formar parte de todo programa da
disciplina de Teoria da História de professores que se pretendiam aggiornados e
cientes das exigências da última moda. Pouco mudou, todavia, com referência
à postura negativa para com a historiografia regional. A maioria dos leitores de
Ginzburg e de Levi não percebeu que, na realidade, a micro-história se aplica
sempre a um contexto regional. Essa região pode ser do Norte da Itália (Ginzburg
e Levi), dos Pirineus (Le Roy Ladurie) ou dos bosques de Windsor e de Hampshire
(Thompson). Por outro lado, a história nacional não poderia ser, em primeiro lugar,
o fruto de uma somatória de histórias regionais?
O que é bom para Itália, França e Inglaterra também deveria ser bom para o
Brasil, para o Paraná ou para Lobato. Isso, porém, não reflete a realidade no que
tange à história regional. Os projetos de história regional de alunos de graduação
e de pós-graduação ou são rejeitados ou são orientados a se fundamentarem
em um arsenal teórico impróprio para resolver os impasses das suas pesquisas.
Parece que o mundo das representações sempre tem prioridade sobre o mundo
das experiências históricas concretas. Aqui o problema não está na consciência,
definitivamente adquirida, de que sempre lidamos com representações, mas
na tendência generalizada que faz que os analistas dos discursos esqueçam as
interpretações das experiências concretas que narram esses discursos. 195 Está
claro que as representações sempre passam a mediar as nossas aproximações à
realidade (todo pensamento e discurso sobre a realidade é uma representação), mas

195 Por exemplo, um projeto de pesquisa de mestrado, cujo objeto era a deslocação de uma população rural a causa da
construção de uma barragem, se fundamentava, teoricamente, no mundo de representações de Chartier e não sobre
autores que teorizam as experiências coletivas de movimentos sociais.

182 −
HISTÓRIA LOCAL, MICROANÁLISE E FONTES ORAIS ■

a historiografia não pode ser reduzida a uma representação de representações com


esquecimento ou desprezo do mundo das experiências, ou ainda “A micro-história
procura analisar como funciona a sociedade na sua base e, através desses dados,
generalizar conclusões com o intuito de gerar perguntas e respostas capazes de
serem comparáveis em outros contextos (PROSOPOGRAFIA, 2002).
Ultimamente, Ronaldo Vainfas descobriu que vários historiadores brasileiros,
inclusive ele próprio, tinham feito micro-história. Assim, na última página do seu
livro Micro-história, os protagonistas anônimos da história (2002), ele passa a
elencar alguns historiadores - com a costumeira e meticulosa exclusão de sociólogos,
antropólogos e etnógrafos que não merecem compartilhar o Walhalla de Clio:

Talvez o primeiro livro a fazer um exercício microanalítico – sem querer,


segundo a própria autora – tenha sido Laura Mello e Souza em O diabo
e a terra de Santa Cruz, 1986 [...]. Seguindo-lhe os passos, fiz incursões
micro-analíticas em Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição
no Brasil Colonial, 1989. Já Plínio Gomes parece ter feito micro-história
de propósito, estudando Hennequim, uma espécie de Menocchio luso-
brasileiro, em Um herege vai ao paraíso: cosmologia de um ex-colono
condenado pela Inquisição, 1997. Luiz Mott fez a biografia de uma ex-
escrava, ex-prostituta e visionária no Brasil colonial que reúne todos os
ingredientes de uma micro-história: Rosa Egipcíaca: uma santa negra no
Brasil Colonial, 1992 (VAINFAS, 2002, p. 162)

Esses descobrimentos tardios de novos-velhos micro-historiadores às vezes


resultam engraçados, outras vezes, algo oportunistas e, em algumas ocasiões,
patéticos. Normalmente os italianos Ginzburg, Grendi e Levi são considerados
os criadores dessa nova vertente historiográfica, a qual Jacques Revel tenta,
desesperadamente, anexar à tradição dos Annales. Ora, foram os próprios micro-
historiadores italianos que incluíram As peculiaridades dos ingleses, de Thompson,
em uma coleção de micro-historiadores publicada por Einaudi; da mesma forma,
Le Roy Ladurie, com seu genial Montaillou, também passou a se constituir em uma
(tardia) referência micro-histórica obrigatória. Também é verdade que as obras O
queijo e os vermes e A herança imaterial foram escritas com anterioridade à data
em que seus autores as transformaram, teoricamente falando, em micro-histórias.
Por outra parte e por ironia da história, Luis González y González, autor mexicano,
publicou, em 1968, Pueblo em vilo, Microhistoria de San José de Gracia. Apesar
das reivindicações do duplamente González como o inventor real do gênero, ele,
todavia, não faz micro-história no sentido como a categoria foi teorizada nas décadas
de 80 e 90 pelos historiadores italianos. O historiador local mexicano opina, por
exemplo, que: Em micro-história não vale a pena teorizar ou abstrair (OJEDA,
2001, p. 33). Estamos, então, frente ao curioso cenário em que historiadores como
Ginzburg, Levi, Thompson, Le Roy Ladurie, Mello de Souza e Vainfas faziam micro-
história sem suspeitarem de que a faziam e em que Luis González y González
pretendia fazer micro-história, mas, ao negar a importância da reflexão teórica para
− 183
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

a história local, dificilmente pode ser considerado um micro-historiador no sentido


acadêmico do termo.

5. Finalmente, queremos dizer duas ou três palavras sobre o uso das fontes orais
aplicadas à história regional. Construir e utilizar fontes orais no processo de
produção de uma história regional e, sobretudo, nos casos em que se quer resgatar
experiências sociais, a cultura material ou aspectos etno-históricos, significa utilizar
um instrumental de uma riqueza virtual incomparável. Contrariamente ao que
mentalidades preguiçosas e ignorantes tendem a propagar, não se trata de um
método menor, fácil de ser levado à prática e que prescinde de refinação teórica. Ao
contrário, a construção e o uso de depoimentos orais exigem mais preparo teórico
e vigilância epistemológica que o trabalho com fontes documentais impressas
ou manuscritas e isso se deve a dois motivos básicos. Primeiramente, trata-se de
fontes autoconstruídas pelo historiador da oralidade e, se ele mesmo utilizará esse
material como fundamento para seu discurso histórico, o perigo de torcer as fontes
para efeitos de demonstração de possíveis hipóteses não resulta imaginário, se bem
que nenhum tipo de fonte historiográfica está imune a manipulações arbitrárias ou
desonestas. Em segundo lugar, é preciso manusear cuidadosamente as fontes orais,
pois os métodos para trabalhar com elas e o próprio estatuto da oralidade ainda se
encontram em vias de construção. Por exemplo, quem é o autor e o proprietário
intelectual do depoimento oral: o entrevistador, o entrevistado ou ambos segundo
acordos previamente estabelecidos? Até que ponto a presença de um entrevistador
estranho ao depoente não induz (apesar dos cuidados mais extremados) ao livre
fluxo da memória? Até que ponto a transcrição do discurso falado para o papel não
modifica radicalmente o produto final? Como falar em história oral, se o produto
desse processo é apresentado ao leitor, não só de forma escrita, mas já classificado,
interpretado e, às vezes, engessado e domesticado pelo historiador? Acreditamos
que para trabalharmos adequadamente com fontes orais devemos nos prevenir
contra perigos, tais como: memorialismo, populismo conservador, armadilhas da
memória e tendência a trabalhar com escassas exigências teóricas e hermenêuticas.
Antes de mais nada, é no memorialismo, ou seja, na simples conservação do
anedótico, do pitoresco, do aleatório e do excepcional, que radica um dos maiores
inimigos da história oral. Uma pesquisa fundamentada nesse tipo de fonte deverá
partir de problemas, de hipóteses e de marcos teóricos específicos como qualquer
outra pesquisa em ciências sociais. Não são os discursos gravados que orientam
a pesquisa e impõem a trama histórica, senão um planejamento prévio e uma
interpretação a posteriori.
Se o memorialismo é o inimigo número um da história oral, o populismo
conservador lhe segue, imediatamente, visto que enfatiza o caráter ideológico do
conteúdo da pesquisa, mostrando uma excessiva complacência frente aos discursos
do sentido comum. Para agradar aos depoentes, os historiadores legitimam aquilo
estabelecido e tradicional, perdendo a oportunidade de conhecer outras histórias.
184 −
HISTÓRIA LOCAL, MICROANÁLISE E FONTES ORAIS ■

Lembrar o passado tanto pode significar uma atividade prazerosa e terapêutica


quanto uma traumática confrontação com a realidade do presente. Todos aqueles
que trabalham com depoimentos orais já se defrontaram com as armadilhas da
memória. Segundo os especialistas, a memória é lacunar, seletiva e, por vezes,
traiçoeira e mentirosa. Por outra parte, todo monumento de memória está construído
sobre os cacos do esquecimento. Segundo Joutard (1999), analisar os esquecimentos
é uma tarefa tão importante quanto analisar as lembranças; para Paul Ricoeur
(1997), história, memória e esquecimento formam um tríptico inseparável, em
que a faculdade de “lembrar” aquilo que estava “esquecido” ou em estado latente
forma parte da condição histórica dos seres humanos, que são humanos exatamente
porque são capazes de lembrar e de representar para si e para outros. O homem é
um prisioneiro da memória, da história e do esquecimento.
Superando todos esses obstáculos e com base nas nossas experiências de
pesquisa em Fernández Oro (Argentina) e Lobato (Norte do Paraná), consideramos
que a construção e o uso das fontes orais oferecem uma oportunidade ímpar de
resgatar o mundo das experiências subjetivas, sobretudo no plano micro-histórico
regional. Esse resgate das experiências coletivas de homens, de mulheres, de
crianças, de idosos, de trabalhadores e de proprietários foi uma tentativa (não
sabemos se sempre bem sucedida) de resgatar também para a memória regional
o mundo subjetivo, feminino, religioso, trabalhista e transgressivo, contestando –
em parte ao menos – a hegemonia da memória objetiva, racional e masculina,
aquela que se fundamenta nos documentos oficiais para estender a sua dominação
econômica, política e ideológica até o dia de hoje. Depois de se apropriar da Mata
Atlântica, os detentores dessa memória postulam possuir o domínio exclusivo das
lembranças do passado.

6. A nossa pesquisa em Lobato nos ensinou que, em geral, os memorialistas são


altamente capazes de contar o seu passado em um relato suficientemente coerente
como que para acreditar nos seus núcleos discursivos centrais. Ainda que falem
o que podem falar ou aquilo que acham que devem falar (e não sempre o que
nós gostaríamos de ouvir), não encontramos tantas distorções entre a memória
oral e os documentos escritos da época, como nos querem fazer acreditar
alguns recentes críticos desse gênero histórico novo. Há uma rápida elaboração
(induzida) de mitemas com referência, por exemplo, aos pioneiros do Patrimônio.
Recompilamos, também, lembranças que contradizem, frontal ou indiretamente,
esses mitemas. Encontramos em Lobato historiadores locais, possuidores de uma
prodigiosa memória que, em muitas oportunidades, foram perfeitamente capazes
de expressar uma visão crítica do passado e, freqüentemente, com mais sagacidade
que a revelada por historiadores acadêmicos. Isso se manifesta, por exemplo, na
terminologia diferente à utilizada pela história oficial da região. O Sr. Durval não se
apresenta como pioneiro, mas como fundador de Lobato; a expressão comunidade
(encobridora de possíveis conflitos e de diferenças sociais) praticamente não é
− 185
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

utilizada de forma espontânea (a não ser em um contexto religioso) e a atual prefeita


Tânia, em lugar de idealizar o passado, salienta que é o presente que conseguiu
harmonizar as diferenças sociais e de origem, consideradas causas de conflitos nas
primeiras décadas.
Lobato também nos ensinou que um projeto histórico fundamentado em
fontes orais tem de ser planejado com esmero; a escolha dos depoentes não deve
ser realizada sem critério, mas projetada com acuidade, selecionando homens
e mulheres de diferentes estados do Brasil, de diferentes profissões e classes
sociais, para obter uma amostra o mais representativa possível. Resulta totalmente
imprescindível visitar os entrevistados com devida antecipação para poder lhes
informar sobre as intenções da pesquisa e para estabelecer uma relação cordial
entre uma pessoa que conta as suas experiências e outra que está interessada nelas
para objetivos explicitados com clareza. A experiência também nos mostrou que,
no decorrer do processo de entrevistas, a direção da pesquisa vai se alterando e
afinando. Se nas primeiras entrevistas o acento recai sobre a história global da
localidade, sobre aspectos econômicos, políticos e institucionais, com o avanço do
tempo as perguntas se voltam mais para o cotidiano da etno-história de homens e de
mulheres, para a sua (re)produção cultural e para a criação do espaço social.
O derradeiro tópico consiste na conclusão seguinte: Lobato e outras pesquisas
semelhantes comprovaram que o método do uso tanto da micro-história como da
oralidade se adapta muito bem às exigências e às expectativas da história regional.
A história econômica e estrutural da região foi realizada não só por historiadores,
mas também por geógrafos humanos. O que resta fazer é a construção da história
sociocultural. Ora, nada melhor que a junção dos documentos primários locais com
os depoimentos orais para construir essa história. Tanto a micro-história quanto
o trabalho com fontes orais possui como território privilegiado o mundo social e
cultural.

186 −
CONCLUSÕES E
PROPOSTAS

1. Podemos nos perguntar se esta pesquisa sobre as Águas de Lobato contribui, de


alguma forma, para uma nova abordagem da história regional. Esperamos que a
combinação de fontes orais com uma história regional renovada pela micro-história
e a recuperação da tradição sociológica para a história legitimem esta publicação.
Por três razões, optamos pela não-reprodução, uma vez mais, do relato acadêmico,
agora oficial, da ocupação do Norte do Paraná. Primeiramente, porque esse relato
já é conhecido e pode ser facilmente encontrado pelos pesquisadores; em segundo
lugar, por causa dos reparos que expusemos no sentido de se tratar de uma história
que, fundamentalmente, reproduz o discurso oficial do Estado e da Companhia
Melhoramentos do Norte do Paraná, ainda que encaixado num “leito teórico” em
aparente contradição com a ideologia que inspirava esses documentos. Finalmente
quisemos dar prioridade às experiências de homens e de mulheres que chegaram
às Águas de Lobato, os quais lutaram, tiveram êxito ou fracassaram, envolveram-
se em conflitos, tiveram sonhos, poucas vezes concretizados, e, em sua grande
maioria, foram embora de Lobato, continuando a grande marcha para o Oeste.
Priorizar, para nós, significa relatar primeiramente o trabalho e as horas daqueles
que construíram as Águas de Lobato.
Se adotássemos o caminho tradicional que vai do geral ao particular, teríamos
chegado à história dessas sociedades rurais sem fôlego, reduzindo essa micro-história
a uma ilustração particular daquilo que é realmente importante: a expansão agrária
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

capitalista da região, as reconversões econômicas, as transformações demográficas


e os discursos político-ideológicos sobre a identidade regional dos pés vermelhos
como subvariante do Bicho do Paraná; ou, ainda, alguma formulação identitária-
ideológica semelhante, expressa em um jargão academicamente correto. Quisemos,
então, dar prioridade às experiências de homens e de mulheres; quisemos descrever
o universo dos entrevistados, falar das suas experiências com a lavoura, a educação,
a vida religiosa, os conflitos e, inclusive, engatar uma reflexão sobre a construção
de uma pequena história oficial municipal, em que os primeiros foram substituídos
por outros que, nesse momento, formavam parte da primeira elite política (porém,
não-econômica) que detinha o poder local. No geral, tentamos privilegiar o mundo
particular das experiências subjetivas em detrimento das chamadas realidades
objetivas.
Em nossa exposição, pode parecer que as geadas e as políticas de erradicação
do café, o êxodo e a própria construção da vida social nas Águas só ocorressem em
Lobato. Todas essas experiências e lutas, na chegada à região ou na consolidação
e na perda das propriedades, todavia, podem ser estendidas para a sociedade da
região. Tínhamos conhecimento do número de imigrantes e de emigrantes, mas
preferimos dar prioridade as suas experiências, mostrar seus rostos de homens e de
mulheres, paulistas, mineiros e nordestinos, que viveram nessas frentes pioneiras
do café e nessas correntes migratórias, econômica e numericamente analisadas,
mas incompreendidas em sua dimensão social.
Dessa forma, em nossa pesquisa, a história objetiva, a das migrações ou a
história agrária só ocupou uma modesta parte. Nossa intenção foi entrar de chofre
no território da construção dos espaços sociais das Águas e mostrar como um termo
considerado geográfico pelos cientistas sociais do Norte do Paraná foi, também,
um espaço construído por uma experiência histórica concreta de homens e de
mulheres oriundos de diferentes partes do Brasil, fato assim narrado por Tânia
Martins Costa196:

Ah, sim. Lobato realmente tinha muito nordestino, paulista, mineiro e foi
muito importante a cultura deles. A cultura do paulista, do mineiro e do
nordestino, do baiano, do pernambucano, do meu caso que é o Rio Grande
do Norte. Eu acho que essa mistura deu certo.

2. Em suma, com as discussões presentes em cada capítulo, apontamos traços


da história do Paraná e levantamos alguns pontos ainda não-explorados pela
historiografia existente. Em De acidente geográfico a experiência histórica,
por exemplo, esclarecemos as bases teóricas e subjetivas que acompanharam a
transformação do termo Águas, cujo predomínio como um conceito geográfico é
explícito em um termo histórico-social. Mostramos que seus moradores, enquanto

196 Depoimento de Tânia Martins Costa. Lobato, outubro de 2001.

188 −
C O N C L U S Õ E S E P R O P O S TA S ■

reproduziram suas vidas, também experienciaram o cotidiano das Águas, produzindo


um espaço social com memória e identidade próprias, muitas vezes distintas dos
ideais capitalistas que, de fato, estiveram presentes naquele momento histórico. Esse
cotidiano foi construído sobre um espaço natural que necessitou de transformação
para atender aos interesses daqueles que lá estabeleceram. Para discorrermos sobre
a transformação socioespacial, ampliamos o conceito geográfico que a palavra
Águas carreia, de forma a representarmos também o sentido social do uso comum
do termo entre os moradores.
Os capítulos Água Araçá: narrativa construída a partir dos relatos de Iracema
e de Durval e Um cotidiano de tentativas e de incertezas em fazendas e em Águas
de Lobato: as experiências de Olindina e de Manoel, descrevem, em minúcias, a
trajetória de vida de alguns moradores como forma de ilustrar a experiência e o
cotidiano adverso e incerto vivido nas Águas. São experiências que revelam não
só um intenso empreendedorismo, característico do momento vivido pela então
incipiente sociedade lobatense do Norte paranaense, mas também os momentos
de sofrimento, de incerteza e de um constante reconstruir sociocultural. O número
de informações orais e o nível elevado de autonomia das Águas Araçá e Sarandi,
representados pela Fazenda Moron, foram decisivos para a escolha desses dois
espaços como representativos do universo social construído na zona rural de
Lobato.
O capítulo quatro Quando reinava sua majestade, o café: a (re)ocupação
espacial das Águas discorre sobre os habitantes das Águas e a forma como eles
dividiram a sua história social e individual: a chegada ao lugar em que tudo era
mato, entre 1948 e1956, aproximadamente; a do auge da lavoura do café, que
coincide, claro está, com a construção do espaço social nas e das Águas, e que
começa a declinar, de forma progressiva, a partir de meados de 1969; e a do declínio
ou decadência. Por causa das geadas e da política de erradicação, o café começa a
desaparecer e as famílias de agricultores continuam a sua travessia para o Oeste do
Paraná e para regiões de Mato Grosso e de Rondônia. Nesse momento da pesquisa,
descobrimos a importância da migração nordestina, nortista e do Norte de Minas
Gerais, que fez ou não escala no estado de São Paulo. Dessa forma, é questionável
continuar sustentando a tese de que a corrente migratória que ocupou a região
procedia, na sua imensa maioria, de São Paulo e de Minas Gerais. Essa parte da
história encontra a sua continuidade natural no capítulo que trata do êxodo rural e
de suas conseqüências sociais.
No capítulo em que abordamos a construção dos espaços sociais das escolas
das Águas, utilizamos os depoimentos orais de quatro professoras que chegaram ao
Município nos primeiros anos da sua fundação e dados dos Livros de Matrículas
das Escolas rurais e urbanas. Nesses livros constam não só os nomes e a residência
dos alunos inscritos na escola, mas também os nomes e a procedência de seus pais.
Nele, consta, por exemplo, o grande contingente de mineiros e de nordestinos
que moravam nas Águas de Lobato entre 1948 e 1975. Essas fontes orais destacam
também as iniciativas das famílias dos agricultores na implantação de escolas rurais,
− 189
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

lá onde o Estado e o município de Astorga demoravam demais. As aulas eram


ministradas em locais improvisados, às vezes pelos mesmos agricultores, às vezes
por suas filhas ainda adolescentes. Por volta de 1955, havia um notável atraso na
população a ser escolarizada. Freqüentemente, as idades dos matriculados nas três
primeiras séries variavam de 7 a 15 anos e, por outra parte, a maioria dos alunos
não ultrapassava o limite da primeira série. Já a partir de 1956, quando Lobato foi
elevado a Município, começou a construção de um grande número de escolas, de
maneira que todas as Águas e Fazendas razoavelmente habitadas passaram a ter
uma escola de madeira com uma professora única que tentava alfabetizar de 20 a
120 crianças.
A presença das capelas nas Águas e das práticas religiosas fundamentou-se, em
primeiro lugar, nos documentos manuscritos da Paróquia de Lobato: o Livro Tombo
e os Livros de Batizados. Essa documentação primária foi complementada com
alguns depoimentos que, espontaneamente, relataram experiências religiosas locais
referidas às igrejas católica, evangélica e budista. A memória local nos relata que
a construção da primeira capela de pau, em 1954, foi uma iniciativa da população
em uma época em que Lobato ainda não tinha pároco. Já a construção da matriz, de
1959 a 1963, foi obra dos primeiros padres. O Livro Tombo e os depoimentos orais
nos relatam também que sete Águas possuíam uma capelinha e práticas religiosas
descentralizadas, como outras tantas evidências da autonomia social das Águas.
A construção do espaço social em Lobato ofereceu-nos uma certa dificuldade,
porque fundamenta-se em fontes policiais nem sempre completas ou fáceis de
serem transformadas em discurso de história social. Nossa opção historiográfica foi
(re)construir uma série de quadros levando em conta o tipo de infração, a origem,
a idade, o estado civil, a profissão e a residência dos infratores. Para nós, o aspecto
mais relevante dessa parte foi a comparação entre os tipos de infração e o perfil
dos infratores, entre 1957 e 1961 e entre 1972 e 1979. Os períodos comparados
representam a época do auge do café e da reconversão econômica já em pleno
andamento. Esperávamos que as mudanças na sociedade correspondessem às
mudanças nos padrões das infrações. Isso, todavia, não ocorreu. Nessa primeira
época, o infrator médio era um lavrador, morador em um sítio ou em uma fazenda,
casado ou solteiro, de 28 anos de idade, cujo delito era alguma transgressão contra
a ordem pública, como: embriaguez, arruaça e desacato às autoridades. Na década
de 70, o infrator tinha por volta de 31 anos, ainda era, muitas vezes, um lavrador
(agricultor ou assalariado rural) e continuava privilegiando os delitos contra a ordem
pública, ainda que tivesse sofisticado seus crimes.
A interpretação das tabelas mostra que viver em uma Água ou Fazenda na
cidade de Lobato não significava viver no paraíso. A justiça era extremamente
classista tanto em 1957 como em 1975; a classe perigosa era (e continuou sendo
por muito tempo) o lavrador, que tinha necessidade de escapar do seu isolamento
físico e social nos fins de semana, por meio da bebida. Isso significa que a sociedade
civil e política do Paraná têm uma dívida social não só com a classe trabalhadora
agrária de Lobato, mas também com todo o Norte do Paraná.
190 −
C O N C L U S Õ E S E P R O P O S TA S ■

Finalmente, introduzimos um capítulo de conteúdo historiográfico e teórico,


pois entendemos que as fontes orais e documentais de caráter regional merecem
uma abordagem à parte. Revisamos a historiografia regional das décadas de 70 e 80,
caracterizada pelo estruturalismo e pela ausência quase total da história social, época
em que a prática dessa historiografia estava se expandindo nos centros acadêmicos
do eixo Rio – São Paulo. Constatamos que, posteriormente, quando a história social
já fazia parte de todos os programas de teorias da história da região, não houve uma
produção de vulto dessa nova história, excetuando-se alguns trabalhos de cunho
mais historiográfico que histórico.

3. Viver em Lobato entre 1948 e 1975 significou abandonar a contenção social da


sociedade regional de origem, com seus laços comunitários, tradições e festas. A
luta pela sobrevivência (falta de escola, de medicina e de luz elétrica, junto com
a saudade do lugar de origem) era compensada pela esperança de melhorar de
vida - utopia que, freqüentemente, não se realizou. Só uma minoria alcançou um
sentimento de bem-estar material razoável; muitos conseguiram criar seus filhos
e dar-lhes uma educação adequada. Viver em Lobato não significou morar no
paraíso, nem em comunidades rurais idílicas. Significou criar pequenas sociedades
(mais nas Águas que nas Fazendas) que amalgamavam elementos culturais das suas
sociedades de origem a elementos novos, próprios do Norte do Paraná.
A história regional, em geral, e os depoimentos pessoais das histórias de vida,
em particular, tendem a ocultar as divisões classistas no interior das sociedades
analisadas, em prol da constução de uma identidade social regional, em que não
há ricos, pobres, conflitos e vítimas das reconversões econômicas próprias do
capitalismo, como a que ocorreu, por exemplo, na etapa do grande êxodo do Norte
do Paraná.
A experiência de chegar às Águas de Lobato para recriar as condições básicas da
existência material e simbólica significou, sobretudo até 1956, luta, improvisação,
carências materiais e afetivas, transformação de hábitos alimentares e assim por
diante. Significou reproduzir condições mínimas de existência em uma fronteira
que se caracterizou pela ausência, quase total, da ação do Estado e do Município.
Significou ser pioneiro, sim, mas com especificidades bem diferentes daquelas da
história oficial do Estado, das companhias colonizadoras, de cronistas locais e até
da maioria dos historiadores acadêmicos dessa geração que, infelizmente, não vêm
tendo continuidade.
O termo pioneiro parece-nos extremamente polissêmico. Pode se referir tanto
à elite dominante de uma região - especialmente àquela que estava ligada aos
interesses - basicamente econômicos, porém ideologizados a posteriori - quanto a
um grupo de trabalhadores e de pequenos proprietários que chegaram à região na
época da sua abertura. Moradores que tiveram uma série de experiências desses
primeiros tempos e que agora, em sua velhice, são capazes de reproduzir suas
− 191
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

experiências em relatos. Nesse sentido, o ponto de vista pode mudar e um mitema


pode se transformar em um instrumento para entendermos melhor a complexidade
desse passado tão recente e, ao mesmo tempo, tão longínquo.
Para as mulheres e homens que começaram a chegar a Lobato a partir de 1948,
Viver nas Águas significava morar em uma geografia e em uma estrutura econômica
e social dadas, mas, também, e, principalmente, (re)produzir a própria vida social e
material como protagonistas da sua história.
A história do Norte Novo do Paraná foi muito mais que uma ilustração
específica da história da expansão do capitalismo no Brasil. No território que havia
sido de índios e de posseiros, viviam homens e mulheres, e não somente rubiáceas
introduzidas no Brasil por Mello Palheta, em 1727. A sociedade de Lobato e, por
extensão, de todo o Norte Novo do Paraná – parafraseando a Thompson (1987) –,
“tanto se fez como foi feita”. Ou seja, ela tanto sofreu as condições econômicas
objetivas como (re)construiu laços sociais e culturais reveladores de uma identidade
regional própria. Essa nova identidade não é principalmente paulista e mineira,
mas o resultado da fusão da cultura nordestina com a mineira e paulista, em um
novo habitat paranaense. Essa nova identidade do Norte do Paraná é fruto de
representações próprias e alheias, sobretudo, de experiências de trabalho e de
exploração, de isolamento, de integração e de conquista de diversos tipos de
direitos.
Lobato e o Norte Novo do Paraná uniram as diferentes culturas do Brasil e
do mundo - um mérito nada pequeno se olharmos o fenômeno da ausência de
integração dos imigrantes nas sociedades industriais do mundo mais industrializado
-, porém, ao mesmo tempo, não puderam evitar a crescente divisão entre ricos e
pobres...

192 −
REFERÊNCIAS

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IBGE. Colorado. 1. ed. [S.l.]: IBGE, 1978b. 1 mapa, color. 51x55cm. Escala 1:50.000.
IBGE. Paranacity. 1. ed. [S.l.]: IBGE, 1978a. 1 mapa, color. 51x55cm. Escala 1:50.000.
IBGE. Nova Esperança. 1972a. 1 mapa, color. 51x55cm. Escala 1:50.000.
IBGE. Santa Fé. 1. ed. [S.l.]: IBGE, 1972b. 1 mapa, color. 51x55cm. Escala 1:50.000.
194 −
REFERÊNCIAS ■

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Joaquim Francisco Pinto.
IGREJA Sagrado Coração de Jesus, nos dias atuais. [200-]. 1 fotografia, color., 9cm x 14cm.
Coleção Particular Joaquim Franscisco Pinto.
LATERAL da igreja matriz. [1960?]. 1 fotografia, p&b, 9cm x 14cm. Coleção Particular Luiza
Suguihara.
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PARANÁ. Lei nº 2804 de 31 de julho de 1956. Cria o município de Lobato, desmembrado do
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PARANÁ. Secretaria de Estado do Desenvolvimento Urbano-SEDU. Instituto de Assistência aos
Municípios do Estado do Paraná – Famepar. Programa Estadual de Desenvolvimento Urbano –
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PARANA. Secretaria dos Transportes. Município de Lobato. Mapa Rodoviário de Lobato. [S.l.]:
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PARANA. Secretaria de Estado do Planejamento. Departamento Estadual de Estatísticas
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PARÓQUIA SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS. Livro Tombo, 1956-1975. Lobato, 1975.
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POLÍCIA Militar do Estado do Paraná. Oficio Circular. Recebido por Polícia Militar de Lobato
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PREFEITURA MUNICIPAL DE LOBATO. Elaboração do plano de manejo da RPPN de Lobato –
projeto n.º 01/2000 – CPC. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2000.
PREFEITURA Municipal de Lobato I. ([195-]a). 1. fotografia, p&b. Coleção Particular Divisão
Municipal de Educação.
PREFEITURA Municipal de Lobato I. ([195-]b). 1. fotografia, p&b. Coleção Particular Divisão
Municipal de Educação.
PRIMEIRO ônibus de Lobato. [1950?]. 1 fotografia, p&b, 9cm x 14cm. Coleção Particular Luiza
Suguihara.
SENHOR Durval Colontonio. [2002]. 1 fotografia, color., 10 x 15 cm. Coleção Particular
Andreas L. Doeswijk.
SENHOR Olírio Xavier Cotrim. [2000]. 1 fotografia, color., 10 x 15 cm. Coleção Particular
Andreas L. Doeswijk.
SENHOR Agripino Lúcio dos Santos. [2002]. 1 fotografia, color., 10 x 15 cm. Coleção
Particular Andreas L. Doeswijk.
SENHOR Satoru e dona Miyoko Inoue. [2001]. 1 fotografia, color., 10 x 15 cm. Coleção
Particular Andreas L. Doeswijk.
SENHOR Nilo Lampugnoni. [2002]. 1 fotografia, color., 10 x 15 cm. Coleção Particular
Andreas L. Doeswijk.
SENHOR Henrique R. Oelke. [2001]. 1 fotografia, color., 10 x 15 cm. Coleção Particular
Andreas L. Doeswijk.
− 195
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

SENHOR João do Soutto Mello. [2000]. 1 fotografia, color., 10 x 15 cm. Coleção


Particular Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Étno-história – Universidade Estadual de
Maringá.
SENHOR Raimundo Saraiva Peixoto. [2000]. 1 fotografia, color., 10 x 15 cm. Coleção
Particular Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Étno-história – Universidade Estadual de
Maringá.
SENHORA Nair Marques de Oliveira. [2000]. 1 fotografia, color., 10 x 15 cm. Coleção
Particular Andreas L. Doeswijk.
SENHORA Iracema Coleto Colontonio. [2008]. 1 fotografia, color., 10 x 15 cm. Coleção
Particular Durval Colontonio.
SENHORA Olindina Cordeiro de Freitas e Senhor Manoel Batista de Freitas. [2000]. 1
fotografia, color., 10 x 15 cm. Coleção Particular Manoel Batista de Freitas.
SENHORITA Alice Cafoto. [2000]. 1 fotografia, color., 10 x 15 cm. Coleção Particular
Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Étno-história – Universidade Estadual de Maringá.
SENHORITA Tânia Martins Costa. [2008]. 1 fotografia, color., 10 x 15 cm. Coleção Particular
Tânia Martins Costa.
SOUZA, A. V. Brito. Histórico de Lobato. Lobato: [s.n.], 1990.
TIME de Futebol. [196-]. 1 fotografia, p&b, 9cm x 14cm. Coleção Particular Zailson Lemos.
TORCEDORES e reservas em dia de jogo de futebol. [196-]. 1 fotografia, p&b, 9cm x 14cm.
Coleção Particular Zailson Lemos.
TULHA de Café da Fazenda Bertucci. [2001]. 1 fotografia, color., 10cm x 15 cm. Coleção
Particular Andreas L. Doeswijk.
VISTA de um lote recortado a partir da Água Araçá. [2001]. Uma fotografia, color, 10cm x 15
cm. Coleção Particular Andreas L. Doeswijk.

Fontes Secundárias
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Apucarana: Gráfica Diocesana, 2002.
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BRAMBILLA, D. Santa Fé revive sua história. Maringá: Gráfica Clichetec, [198-] .
CANCIAN, N. A Cafeicultura Paranaense – 1900-1970. Curitiba: Grajipar/SECE-PR, 1981.
CANDIDO, A. Os parceiros do rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a tranformação dos
meios de vida. 9. ed. São Paulo: Duas cidades: Ed. 34, 2001.
CASAGRANDE, I. Trabalhador volante (“bóia–fria”) no Paraná: características históricas e
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CODATO, E. A colonização agrícola de Três Barras, 1932-1970. 1981. Dissertação (Mestrado)-
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1981.
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Companhia das Letras, 2002.
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MOTA, L. T. As guerras dos índios Kaingang: a história épica dos índios Kaingang no Paraná
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NOELLI, F. S.; MOTA, L. T. A pré-história da região onde se encontra Maringá, Paraná. In:
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experiência mexicana. Revista de Pós-Grduação em História da UNESP, Assis, n. 9, p. 33,
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ROLLO GONÇALVES, J. H. História regional & ideologias: em torno de algumas coreografias
políticas do Norte Paranaense – 1930/1980. 1995. Dissertação (Mestrado em História)-
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1995.
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Paraná – de 1945 a la fin des annees 70. 1993. 541 f. Tese (Doutorado em Sociologia)- Ecole
des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, 1993.
− 197
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

SMITH, N. Desenvolvimento desigual: natureza, capital e produção do espaço. Rio de Janeiro:


Bertrand Brasil, 1988.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
TOMAZI, N. “Norte do Paraná” histórias e fantasmagorias. 1997. Tese (Doutorado)-
Departamento de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do
Paraná, Curitiba, 1997.
_____. Certeza de lucro e direito de propriedade: o mito da Companhia de Terras Norte do
Paraná. 1989. Dissertação (Mestrado)- Departamento de História do Instituto de Letras, História
e Psicologia de Assis, Universidade Estadual de São Paulo, Assis, 1989.
VAINFAS, R. Os protagonistas anônimos da história: micro-história. Rio de Janeiro: Campus,
2002.
VIEIRA, I. M. Jacus e Picaretas (A história de uma colonização). Maringá: Gráfica Bertoni, 1999.
WACHOWICZ, R. C. Povoamento do ‘valuto’ do Itararé ao Cinzas. In: _____. Norte velho,
norte pioneiro. Curitiba: [s.n.], 1987.

198 −
ANEXO
Entrevistados em Lobato entre 2000 e 2002:

1. RAIMUNDO SARAIVA PEIXOTO


LUGAR DE NASCIMENTO: Serrinha - PE
DATA DE NASCIMENTO: 30 de março de 1936
CHEGADA A LOBATO: 1954 (chegou a Astorga em 16/02/1952)
PROFISSÃO: Lavrador/Arrendatátrio

2. ZAILSON LEMOS
LUGAR DE NASCIMENTO: Passos - MG
DATA DE NASCIMENTO: 22 de maio de 1941
CHEGADA A LOBATO: 1955 (a família chegou em 1951)
PROFISSÃO: Farmacêutico

3. SATORU INOUE
LUGAR DE NASCIMENTO: Sapporo, Japão
DATA DE NASCIMENTO: 11 de setembro de 1924
CHEGADA A LOBATO: 20 de agosto de 1951 (chegou ao Brasil em 1930)
PROFISSÃO: Agricultor

4. JOÃO DO SOUTO MELO


LUGAR DE NASCIMENTO: Passos - MG
DATA DE NASCIMENTO: 25 de dezembro de 1925
CHEGADA A LOBATO: 1953 (direto de Minas Gerais)
PROFISSÃO: Dono de caminhão/Delegado de Polícia/Prefeito

5. OLÍRIO XAVIER COTRIN


LUGAR DE NASCIMENTO: Igaporã, município de Riacho da Santana - BA
DATA DE NASCIMENTO: 5 de julho de 1933
CHEGADA A LOBATO: 1953 (chegou aos 17 anos, ou seja, em 1950!)
PROFISSÃO: Lavrador/ Operário
■ N A S Á G U A S D E L O B AT O

6. NAIR MARQUES OLIVEIRA


LUGAR DE NASCIMENTO: Conceição dos Alagoas – MG
DATA DE NASCIMENTO: 19/11/1938
CHEGADA A LOBATO: 1952 (chegou a Astorga em 1950)
PROFISSÃO: Ama de casa

7. ALICE CAFOFO
LUGAR DE NASCIMENTO: Batatais - SP
DATA DE NASCIMENTO: 18 de abril de 1941
CHEGADA A LOBATO: dezembro de 1949 (chegou da zona rural de Astorga)
PROFISSÃO: Professora

8. VALDIR COTRIM RIBEIRO


LUGAR DE NASCIMENTO: 14 de setembro de 1927
DATA DE NASCIMENTO: Sibira Maia - BA
CHEGADA A LOBATO: 1952 (chegou da cidade de São Paulo, onde residiu desde
1945)
PROFISSÃO: Oficial de Farmácia

9. DURVAL COLONTONIO
LUGAR DE NASCIMENTO: Olímpia - SP, perto de Rio Preto
DATA DE NASCIMENTO: 19 de setembro de l929
CHEGADA A LOBATO: julho de 1950
PROFISSÃO: Agricultor/Vereador/Industrial

10. MANOEL BATISTA DE FREITAS


LUGAR DE NASCIMENTO: Capim de Planta, município de Pesqueira - PE
DATA DE NASCIMENTO: 15 de julho de 1928
CHEGADA A LOBATO: 14 de setembro de 1950
PROFISSÃO: Lavrador/Agricultor/Pedreiro

11. DARCI AMÉRICO DE OLIVEIRA


LUGAR DE NASCIMENTO: Conceição dos Alagoas
DATA DE NASCIMENTO: 7 outubro de 1939
CHEGADA A LOBATO: 1952 (a família residia em Astorga, desde 1949)
PROFISSÃO: Professora

12. AGRIPINO LÚCIO DOS SANTOS


LUGAR DE NASCIMENTO: Feira de Santana - BA
DATA DE NASCIMENTO: agosto de 1899 (segundo as filhas Fátima e Helena;
segundo a documentação feita em Lobato teria nascido em agosto de 1914)
CHEGADA A LOBATO: provavelmente em 1950
PROFISSÃO: Poceiro/ Lavrador

13. HENRIQUE R. OELKE


LUGAR DE NASCIMENTO: Hering, Alemanha
DATA DE NASCIMENTO: 12 de janeiro de 1922
CHEGADA A LOBATO: 14 de janeiro 1965 (chegou de Alemanha, a Córrego Rico,
São Paulo, em 1926 e a Imbiaçaba - PR, em 1951)
PROFISSÃO: Agricultor/Pastor/Comerciante

14. IRACEMA COLETO COLONTONIO


LUGAR DE NASCIMENTO: Borborema, São Paulo
DATA DE NASCIMENTO: 29 de novembro de 1935
CHEGADA A LOBATO: 1950 (chegou a São Martinho, perto de Rolândia em 1949)
PROFISSÃO: Ama de casa/Pequena empresária têxtil
200 −
ANEXO ■

15. OLINDINA CORDEIRO DE FREITAS


LUGAR DE NASCIMENTO: sítio Duarte, município de Pedra - PE
DATA DE NASCIMENTO: 28/08/1929
CHEGADA A LOBATO: 14 de setembro de 1950
PROFISSÃO: Ama de casa/Funcionária da creche

16. VALDEMAR GALDINO DA SILVA


LUGAR DE NASCIMENTO: Pedra de Buíque - PE
DATA DE NASCIMENTO: maio de 1933
CHEGADA A LOBATO: 1950 (provavelmente)
PROFISSÃO: Lavrador/Delegado de Polícia

17. TÁNIA MARTINS COSTA


LUGAR DE NASCIMENTO: Várzea, Rio Grande do Norte
DATA DE NASCIMENTO: 1951
CHEGADA A LOBATO: 1956 (o pai, Asteclíades, chegou em 1955)
PROFISSÃO: Professora/Inspetora/Prefeita

18. NABIO TANAKA


LUGAR DE NASCIMENTO: Okimin Danaoko, Filipinas
DATA DE NASCIMENTO: 30/101921
CHEGADA A LOBATO: 1949 (em 1930 a Canindé - SP, logo migraram a Assaí - PR)
PROFISSÃO: Agricultor/Comerciante/Industrial

19. NILO LAMPUGNANI


LUGAR DE NASCIMENTO: Erexim - RS
DATA DE NASCIMENTO: 27/08/1921
CHEGADA A LOBATO: 1958 (em 1942 chegou à região de Astorga)
PROFISSÃO: Agricultor/Fazendeiro

− 201

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