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A Revista do Expresso

EDIÇÃO 2559
13/NOVEMBRO/2021

João Rendeiro
+
Entrevista
a Dave Grohl, dos
Ascensão Foo Fighters
“Ninguém é perfeito.
e fuga de um Nada é perfeito”
Por Lia Pereira
banqueiro J. M. Coetzee
Um Nobel no
caído em labirinto das línguas
Por Luciana Leiderfarb
desgraça Esplanadas
Roteiro para
aproveitar o inverno
História do filho de um sapateiro que Por Ana Maria Fonseca
se tornou dono do banco dos mais ricos.
Os negócios e os amigos, a relação com
a mulher, que conhece desde a infância,
e o ódio que tem aos meninos da Lapa,
que o desprezavam no Liceu Pedro Nunes
Por Diogo Cavaleiro e Isabel Vicente
PLUMA CAPRICHOSA

O SILÊNCIO É DE OURO E DIAMANTES


NÃO SERIAM OS MILITARES SOZINHOS, A ALMA PERDIDA NO CALOR CORROMPIDO DE ÁFRICA E DO CORAÇÃO DAS

O
TREVAS, A IMAGINAREM UM ESQUEMA TÃO RENTÁVEL. FALTA ESCAVAR MUITO MAIS E MUITO MAIS FORA DE PORTUGAL
controlado desde tempos imemoriais por judeus, este enorme de portugueses entre os quais militares é um
tráfico é profissional. Necessita de interlocutores e impedimento à descoberta da verdade. Em vez de
intermediários credenciados ou com vasta experiência diminuírem a gravidade dos factos e dos crimes, como
no ramo. Ninguém chega a Antuérpia com diamantes sempre fazem, os políticos têm a responsabilidade
brutos para vender, muito menos um grupelho de perante a nação de ponderarem a gravidade, exigirem
soldados corruptos aos quais poderiam ter sido justiça, esclarecimento e um juízo final e punitivo.
“oferecidos diamantes nas ruas da República Centro- Tal como aconteceu com o escândalo de Tancos e do
Africana”. Muito menos consegue manter o tráfico roubo das armas e encobrimento por oficiais e altos
lucrativo e evasivo sem se aliar a grupos estabelecidos responsáveis políticos, por considerarem que era
com parceiros estabelecidos. Ou seja, a rede pode mais importante recuperar as armas do que apurar
ter dezenas de testas-de-ferro portugueses, e gente culpados e sanções, ou seja, por serem cúmplices da
comandante supremo das Forças Armadas não foi que emprestou as contas, mas eles não são a parte ilegalidade e indiretamente dos crimes praticados, o
avisado pelo ministro da Defesa Nacional de que substantiva de uma rede que terá relevantes cabecilhas escândalo desta rede de tráfico não pode nem deve ser
estavam a ser investigados casos de corrupção dentro além do comando português nomeado. menorizado. Nem deve parar se for dar aos muros de
das Forças Armadas e dentro da força ao serviço das Os traficantes e criminosos do costume seriam Angola e da antiquíssima relação de Angola, com a sua
Nações Unidas em África. Não se tratava de pequena alertados para novos candidatos a traficantes que carga diamantífera e mineral, com os russos e judeus
corrupção de pequenas patentes, mas de uma rede ameaçariam o cartel e o vigiadíssimo preço dos das máfias do tráfico e do comércio. Os dois estão
de tráfico de diamantes, ouro, drogas, com todas as diamantes. Os diamantes serão desvalorizados se muitas vezes ligados, mas as polícias internacionais
características do crime organizado. Pequenas patentes demasiados diamantes forem postos a circular no conhecem protagonistas e parceiros milionários.
não aprendem a usar bitcoins de um dia para o outro. mercado, e os diamantes de sangue são canalizados Portugal atravessa um período de deliquescência
As Nações Unidas foram avisadas, com algum por redes laterais, ilegais, visto que os comerciantes política e emocional. Eleições sem líderes legitimados
atraso, após conhecimento oficial da investigação, e legais preferem não lhes tocar. E as grandes empresas de partidos, visto que do PCP e do PS ao PSD e ao CDS
o Governo decidiu não comunicar ao Presidente da legítimas do negócio, produtoras e distribuidoras, ninguém sabe quem vai ficar a chefiar no futuro, não
República, com a desculpa do “segredo de Justiça”. com a sul-africana De Beers à cabeça, monopolistas convidam à serenidade de que o país precisa. Deixar
Está, logicamente, implícita nesta afirmação a certeza e poderosas e dispondo de exércitos particulares e fugir criminosos depois de os ter deixado vender o
de que o Governo e o ministro da Defesa Nacional serviços de informações no mundo inteiro, seriam património para poderem ser fugitivos endinheirados,
consideram o Presidente da República e comandante também alertadas para os candidatos a traficantes e não convida à confiança no sistema judicial.
supremo das Forças Armadas incapaz de respeitar o respetivas ofertas sujas num mercado que não pode A Operação Miríade terá de ser exemplar do princípio
segredo de Justiça. desestabilizar ou perder reputação. ao fim. A rede terá de ser desmantelada e utilizada
O Presidente da República veio imediatamente dizer Ora, como numa das noticiadas escutas se fala em como exemplo de justiça exercida com rigor. E não
que o prestígio das Forças Armadas estava intacto 500 milhões de dólares numa transferência, uma pode ser desvalorizada, como está a ser, por militares
e, pelo contrário, reforçado com a investigação, que soma brutal, e vem à baila o nome de Angola, é de e civis. O recrutamento de comandos nos bairros
foi entregue pela Polícia Judiciária Militar à Polícia presumir que havia gente em Angola na jogada. problemáticos não desculpabiliza, porque o treino
Judiciária. Foi corroborado pela propaganda do Ou, pelo menos, familiar com a vasta experiência militar físico e psicológico deveria ser, exatamente, um
Governo em notícias otimistas. Quando se trata de angolana no tráfico de diamantes de alto coturno e modo de formar soldados ao serviço da pátria e não
sargentos, majores e capitães o prestígio fica intacto, altas transações, e o conhecimento íntimo que certas criminosos e mafiosos. Não se entregam armas a gente
o que quer dizer que o prestígio repousa sobre os personagens angolanas tiveram e têm do mercado, desta. À Polícia Judiciária e instâncias criminais devem
ombros de marechais, almirantes, generais e coronéis. do preçário, dos intermediários e dos interlocutores, ser dadas todas as condições materiais e políticas para
O facto de uma força de elite altamente treinada e legais e ilegais. Suspeita-se que a comandada pequena poderem operar e investigar, dentro e fora do país, em
industriada no ethos militar, altamente filtrada e rede de pequenas patentes se aliou a uma grande secretismo e independência. Em silêncio.
apurada e com a reputação histórica dos Comandos, rede criminosa e começou a trabalhar para os seus Visto que, em Portugal, ninguém confia em ninguém.
ser envolvida numa rede de grande criminalidade cabecilhas e deles obteve proteção. Presidente e ministros falem uma vez e calem-se de
ao serviço de uma missão internacional de paz, não A extensão, lateral e residual, para pagamento de vez. b
belisca, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros, trocos e uso de palavras-passes e cartões de crédito
o prestígio de Portugal. Conclui-se, logicamente, nada que podem gerar identidades falsas, ao phishing e o
belisca o prestígio de Portugal. mais sofisticado uso de bitcoins, reforça a suspeita.
A investigação começou por causa de uma de duas Não seriam os militares sozinhos, a alma perdida
denúncias, vinda de um intérprete que foi lesado no calor corrompido de África e do coração das
num negócio e não recebeu pagamento. Ou seja, trevas, a imaginarem um esquema tão rentável. A
nenhuma razão moral lhe assistiu, apenas o desejo da responsabilidade criminal não deverá parar aqui. Falta
vingança. Em toda a extensão da rede, que abarcava escavar muito mais e muito mais fora de Portugal. Não
dezenas ou centenas de pessoas, resta averiguar são “casos isolados”.
muita coisa, incluindo advogados, funcionários Claro que em tudo o que interfere com Angola,

/ CLARA
bancários e empresários em regime de escassez de Portugal retira as mãos da panela a ferver por motivos
probidade, nem um sobressalto limitou os crimes e políticos. Recorde-se que Isabel dos Santos esteve e
a cumplicidade. A ganância estendeu uma teia sem
quebra até um pagamento não ser cumprido.
talvez esteja ainda enfiada no negócio de diamantes e
comprou mesmo uma empresa legítima de joalharia, FERREIRA
O tráfico internacional de diamantes tem regras
precisas e é também um negócio de assassinos e
a De Grisogono, para canalizar as pedras. Hoje falida,
a empresa era controlada pelo marido, que decerto
ALVES
de gangsters, de máfias e de redes traquejadas que controlaria o negócio dos diamantes entre
lidam com reconhecidos interlocutores. De Angola outros, e apareceu morto num acidente
a Israel, da Rússia à Índia, da Libéria à África do Sul de mergulho subaquático no Dubai. Um
e desaguando em Antuérpia (ou Amesterdão, ou romancista não faria melhor.
Hong-Kong, ou Londres, ou Chicago, ou cidades de A tentativa de subestimar o episódio de
apeadeiro), sendo a cidade belga um centro vital deliquescência moral de um conjunto

E 3
SUMÁRIO
EDIÇÃO 2559 | 13/NOVEMBRO/2021

fisga +E Culturas Vícios

MAGDA WOSINSKA
9 | Erosão costeira
Estima-se que uma área
equivalente a 1320 campos
de futebol tenha
desaparecido de Portugal
Continental entre 1958 e
24 | João Rendeiro
Um empreendedor sob
ataque, é também um
ambicioso banqueiro com
quem a Justiça só jogou
ao contra-ataque. Perfil
53 | Paul Schrader
Conversa com o realizador
sobre “The Card Counter”,
um dos filmes do ano
56 | Manoel de Oliveira
75 | Esplanadas de inverno
Roteiro pelos melhores
lugares para aproveitar
os dias e as noites. Nestas
esplanadas citadinas, o frio
não faz parte da ementa
44
Dave Grohl
Entrevista ao líder de uma
2021. Atualmente, cerca de do self-made fugitivo O olhar do cineasta através das maiores bandas do
20% da costa portuguesa das suas fotografias 78 | Receita mundo, os Foo Fighters,
— uma extensão de 987 32 | J. M. Coetzee Por João Rodrigues que será também para
quilómetros — estão em O Nobel sul-africano 58 | Livros sempre o baterista dos
risco considera a tradução “Duas Solidões — O 79 | Restaurantes Nirvana. Considerado
espanhola dos seus últimos Romance na América Latina”, Por Fortunato da Câmara “o tipo mais simpático
12 | Déjà Vu livros como a versão original de Gabriel García Márquez do rock”, é igualmente um
O outro lado do vira dos mesmos. Conversa em e Mario Vargas Llosa 80 | Vinhos
Por João Paulo Martins dos mais trabalhadores.
Por Bruno Vieira Amaral exclusivo com o Expresso Quando a pandemia chegou,
sobre um movimento radical 62 | Cinema
14 | Os Cadernos e os Dias “The Doorman — Implacável”, 81 | Recomendações sentou-se a escrever
que critica o alastramento De “Boa Cama Boa Mesa” a história da sua vida
O fogo, o fogo, o fogo e o poder da língua inglesa de Ryûhey Kitamura
Por Gonçalo M. Tavares 82 | Design
38 | Franco 64 | Televisão
16 | Passeio Público “Dopesick”, de Danny Por Guta Moura Guedes
Na antiga residência de
45 Minutos com férias do ditador espanhol, Strong, na Disney+
84 | Moda
FICHA
Anne Teresa De Keersmaeker na Galiza, a sua terra natal, 66 | Música Por Gabriela Pinheiro TÉCNICA
“Com a covid-19 somos conta-se pela primeira “Hey What”, dos Low Diretor
bailarinos numa coreografia vez uma história atestada 86 | Tecnologia João Vieira Pereira
que não criámos” pelos tribunais. Corrupção, 70 | Teatro & Dança Por Hugo Séneca
Diretor-Adjunto
espoliação, falsificação e Festival Alkantara, em Lisboa
20 | Planetário extorsão numa visita ao 89 | Passatempos Miguel Cadete
mcadete@impresa.pt
As maravilhas recém-aberto Paço do Povo 72 | Exposições Por Marcos Cruz
de Annie Leibovitz Diretor de Arte
“Fracture Empire”, de Samson Marco Grieco
Por João Pacheco Kambalu, na Culturgest Editor
Ricardo Marques
rmarques@expresso.impresa.pt
Editor de Fotografia
João Carlos Santos

CRÓNICAS Coordenadores
João Miguel Salvador
jmsalvador@expresso.impresa.pt
3 Pluma Caprichosa por Clara Ferreira Alves | 22 Cartas Abertas por Comendador Marques de Correia Luís Guerra
52 Fraco Consolo por Pedro Mexia | 61 O Outro Lado dos Livros por Manuel Alberto Valente
lguerra@blitz.impresa.pt

Coordenadores Gerais de Arte


74 O Mito Lógico por Luís Pedro Nunes | 88 Diário de Um Psiquiatra por José Gameiro Jaime Figueiredo (Infografia)
90 Que Coisa São as Nuvens por José Tolentino Mendonça Mário Henriques (Desenho)

ILUSTRAÇÃO DA CAPA: HELDER OLIVEIRA

E 6
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fisga“QUEM SABE TUDO É PORQUE ANDA MUITO MAL INFORMADO”

O mar enrola na areia


ESTIMA-SE QUE UMA ÁREA EQUIVALENTE A 1320 CAMPOS DE FUTEBOL TENHA DESAPARECIDO
DE PORTUGAL CONTINENTAL ENTRE 1958 E 2021, SÓ DEVIDO À EROSÃO COSTEIRA. E ATUALMENTE
CERCA DE 20% DA COSTA PORTUGUESA — UMA EXTENSÃO DE 987 QUILÓMETROS — ESTÁ EM RISCO
TEXTO MARIA JOÃO BOURBON INFOGRAFIA CARLOS ESTEVES ILUSTRAÇÃO CRISTIANO SALGADO

Ano após ano, numa luta entre o mar e a terra, esse bairro seria demolido e as 50 famílias que aí
o primeiro ganhava. E a fronteira entre os dois viviam realojadas mais para o interior.
recuava. Mais um bocadinho. De tal forma que Este é apenas um exemplo dos efeitos nefastos
as casas do bairro dos pescadores de Esmoriz, no que o recuo da linha de costa portuguesa pode
concelho de Ovar, acabariam por ser invadidas ter nas populações locais. Que nem sempre se
pelo mar, capaz de galgar o enrocamento traduz no desaparecimento de uma praia ou
instalado para proteger a comunidade piscatória. duna, por vezes gera apenas uma movimentação
O desfecho desta história é conhecido: em 2014, dessa praia para o interior. “Há algumas

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fisga
praias junto a arribas no Algarve que poderão OS PRINCIPAIS MOTIVOS DA ALIMENTAÇÃO ARTIFICIAL DE PRAIA
desaparecer no futuro”, nota ao Expresso Óscar
Ferreira, do Centro de Investigação Marinha e EROSÃO COSTEIRA EM PORTUGAL EM PORTUGAL CONTINENTAL
Ambiental da Universidade do Algarve (UAlg). RESULTAM DA CONJUGAÇÃO Intervenções entre 1950 e 2017
“Mas muitas zonas costeiras arenosas continuam DE FATORES NATURAIS COM OS VOLUME (M3)
a ter possibilidade de migração, como na zona
de Cortegaça, a sul de Espinho. Está a recuar IMPACTOS DIRETOS E INDIRETOS > 1 milhão
500 - 1 milhão
há 50 anos, mas a praia continua lá. Apenas se DA ATIVIDADE HUMANA 100 - 500 mil
movimentou 200 ou 300 metros para o interior.” 50 - 100 mil PORTO
De acordo com a Agência Portuguesa do 24 INTERVENÇÕES
<50 mil
Ambiente (APA), estima-se que 1320 hectares
do território de Portugal Continental tenha 2783 milhões de m3
desaparecido apenas devido à erosão costeira agravando a erosão e os fenómenos de inundação
entre 1958 e 2021, o equivalente a 1320 campos costeira nas zonas baixas, os quais previsivelmente
de futebol. Atualmente, cerca de 20% da se tornarão mais frequentes e severos”. Ou seja,
AVEIRO
costa portuguesa — uma extensão de 987 o recuo da costa portuguesa deverá ser agravado 20 INTERVENÇÕES
quilómetros (km) — apresenta tendência para a pelos efeitos das alterações climáticas, com as
erosão, especialmente no litoral baixo-arenoso estimativas mais recentes a apontarem uma subida 12.079 milhões de m3
constituído por praias limitadas por dunas. média na ordem dos 1,14 metros até 2100.
“Existem locais onde o recuo neste período As consequências do recuo da costa portuguesa já
ascendeu a mais de 300 metros, tais como entre se fazem sentir. Daí “resulta o desaparecimento
Cortegaça e Furadouro (concelho de Ovar), entre da biodiversidade existente e degradação dos
Costa Nova e Vagueira (Ílhavo e Vagos) e Costa ecossistemas costeiros, como a vegetação dunar”,
da Caparica (Almada)”, adianta ao Expresso a aponta a APA. “Esta situação será particularmente
APA. Também na zona entre Cova-Gala e Lavos mais grave nos litorais sem capacidade de
(Figueira da Foz) o recuo foi próximo de 200 trasladação para terra.” Além disso — e como se
metros e no troço entre a praia do Forte Novo e verificou no bairro dos pescadores de Esmoriz,
de Faro (Loulé e Faro) entre 50 e 100 metros no mas também na Praia da Fuzeta (demolição de LISBOA E VALE DO TEJO
mesmo período. 71 casas em 2010, após a destruição de 44 por 6 INTERVENÇÕES

UM VALOR ECOLÓGICO E ECONÓMICO


uma tempestade) e em São Bartolomeu do Mar
(onde está programada a demolição de 27 casas)
5500 milhões de m3

Os principais motivos da erosão costeira em —, a erosão coloca em risco pessoas e bens


Portugal resultam da conjugação de fatores instalados na faixa costeira. E quando uma praia
naturais com os impactos diretos e indiretos da ou duna desaparece há um conjunto de serviços
atividade humana. O mais relevante — que se de turismo ou de lazer com impacto na economia
materializa de forma muito expressiva em Ovar, que podem desaparecer.
mas também em Espinho, a sul do Mondego e na “A população local nem sempre se apercebe, mas
Caparica — é a lacuna no fornecimento de areias há um investimento nacional contínuo de várias
provenientes dos rios. “A implementação de dezenas de milhões de euros por ano para proteção ALGARVE
barragens e a regularização dos caudais provocou costeira e para evitar riscos de perda de bens e 44 INTERVENÇÕES
uma retenção dos sedimentos nas albufeiras das
barragens e nos leitos dos rios, por isso não há a
até de vidas”, enquadra o investigador da UAlg,
realçando que o ordenamento costeiro, ainda
10.406 milhões de m3
exportação do sedimento para a praia”, explica incipiente em Portugal, deve ser parte da solução.
o investigador da UAlg. “Assim, verifica-se na De qualquer forma, se as “ações de gestão como
praia aquilo a que se chama balanço sedimentar a realimentação de praias, recuperação de dunas, FONTE: PINTO ET AL. (2018) “ALIMENTAÇÃO ARTIFICIAL DE PRAIAS
NA FAIXA COSTEIRA DE PORTUGAL CONTINENTAL (1950-2017)”
negativo — ou seja, sai mais areia do que aquela intervenção com proteção pesada, relocalização de
que entra — e inicia-se o processo de recuo da estruturas não fossem feitas, haveria um aumento
linha de costa. Todas essas zonas alimentadas generalizado do risco na zona costeira”. EROSÃO DA FAIXA COSTEIRA ARENOSA
diretamente pelos rios são afetadas.” Nos últimos 20 a 30 anos, tem-se privilegiado NO MUNDO
Segue-se a retenção de areias a montante de intervenções mais suaves e amigas do ambiente, Em percentagem
estruturas de defesa costeira (portuárias) e a como a alimentação artificial de praias, em
falta dessas areias a jusante — uma causa “mais detrimento das obras de engenharia pesada para 52
50
pontual, mas que também é importante” —, travar a erosão. Na verdade, Portugal é o quarto
especialmente nas zonas de Aveiro e Figueira da país europeu com maior número e volume de
40
Foz e em Vilamoura, nota. E, por fim, a subida alimentações artificiais de praia por quilómetros
do nível médio do mar. De acordo com a APA, de costa, apenas ultrapassado pela Holanda,
30
o seu impacto na erosão costeira “permanece Espanha e Alemanha. Só desde 2010 foram 28
25 24
alvo de alguma incerteza e controvérsia no seio depositados 18 milhões de metros cúbicos de
20 20
da comunidade técnica e científica”, pelo que areia na costa de Portugal continental, com os
os estudos realizados em Portugal partem do custos a rondarem os €45 milhões. A medida
10
princípio que a subida do nível médio do mar não resolve o problema, mas ajuda a mitigá-lo.
“apenas contribuirá com cerca de 10%-15% da “A recuperação de praias e dunas tem um valor
0
erosão verificada atualmente”. Apesar de dessa ecológico e económico extremamente forte”, EUA* EUROPA AUSTRÁLIA MUNDO PORTUGAL
incerteza, é relativamente consensual “que as refere Óscar Ferreira. “Especialmente num país *Costa Este e Golfo do México
zonas costeiras estarão sujeitas ao aumento como o nosso, que tem um desenvolvimento de FONTES: AGÊNCIA PORTUGUESA DO AMBIENTE; LUIJENDIJK ET AL. (2018)
contínuo do nível do mar ao longo do século XXI, turismo costeiro muito acentuado.” b “THE STATE OF THE WORLD’S BEACHES”

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fisga
DÉJÀ VU
O FUTURO FOI ONTEM
e não só. Figuras cimeiras da música De um dia para o outro, os Mamonas
popular brasileira, como Gilberto Gil, Assassinas “viralizaram”, muitos anos
Caetano ou Gal Costa — que colaborou antes de “viralizar” se tornar um verbo
com Marília — lamentaram a morte da de uso corrente. Nem todos gostaram
POR cantora de 26 anos. O acidente, no auge da proposta “sonoclasta” e irreverente
BRUNO da carreira de Marília Mendonça, que da banda. Algumas rádios proibiram as
VIEIRA tinha concertos previstos no final do ano canções do grupo (cancel culture avant
AMARAL em Portugal, trouxe à memória a tragédia la lettre) e Roberto Leal foi aos arames,
dos Mamonas Assassinas, banda de indignado com aquela violação do sagrado

O outro Guarulhos que irrompeu triunfantemente


no panorama musical brasileiro em 1995
património luso-brasileiro, mas acabou por
fazer as pazes com Dinho. E ainda bem que

lado do vira com um álbum que parodiava diversos


estilos musicais — do punk ao forró — e
o fez porque, a 2 de março de 1996, o avião
em que a banda seguia após um concerto
cujo humor das letras ia do grosseiro ao em Brasília despenhou-se na serra da
“Rainha da sofrência”, assim era infantil, do mau gosto escatológico ao Cantareira, perto de Guarulhos, vitimando
conhecida por antonomásia a cantora politicamente incorretíssimo. O vocalista todos os ocupantes. Por coincidência, para
e compositora Marília Mendonça, uma Dinho, a estrela do grupo e autor das letras, o dia 3 de março estava prevista a partida
das vozes mais populares do Brasil, que não poupava ninguém: gays cibernéticos, da banda para Portugal. Desprezados
nas suas canções dava voz às mulheres, baianos perdidos na grande cidade, pela crítica mais séria, desvalorizados por
contando o lado feminino das histórias de maconheiros doidões, trabalhadores outros músicos e criticados duramente
amor, traição, desilusões e “sofrência”. No braçais, cantores românticos cornudíssimos por grupos LGBT, os Mamonas Assassinas
dia 5 de novembro, o avião em que seguia e imigrantes portugueses donos de padaria tinham nos mais novos uma base de apoio
juntamente com outras quatro pessoas involuntariamente envolvidos em bacanais. incondicional, graças ao estilo desbocado,
despenhou-se perto de Caratinga, Minas ‘Vira-Vira’, sátira ao grande sucesso de às roupas coloridas que pareciam ter saído
Gerais. Não houve sobreviventes. Marília, Roberto Leal dos anos 70, foi a canção do guarda-roupa do “Sítio do Picapau
que muitos consideravam a Roberta que chamou a atenção do Brasil (e, pouco Amarelo” e ao carisma de Dinho, o perfeito
Miranda das novas gerações ou a Adele depois, dos portugueses) para o grupo que clown dos domingos televisivos. Mas
brasileira (embora os fãs de linha dura cantava estes versos capazes de rivalizar foi a tragédia final que os elevou ao
recusassem essas comparações), era um com a lírica camoniana: “Roda, roda e vira, estatuto de heróis de uma geração que
fenómeno nas redes sociais, com milhões solta a roda e vem/ Me passaram a mão com eles descobriu literalmente o outro
de seguidores e recordes de visualizações, na bunda/ E ainda não comi ninguém”. lado do vira. b

1996

E 12
17 novembro — 10:00

Temporada
21 / 22
jan — jun

2.ª PARTE

Lançamento
online
GULBENKIAN.PT
© pedro pina mecenas mecenas mecenas mecenas mecenas principal
concertos para piano e orquestra estágios gulbenkian para orquestra concertos de domingo ciclo piano gulbenkian música
fisga
OS CADERNOS E OS DIAS
HISTÓRIA FRAGMENTADA DO MUNDO

4.
Com uma arma de fogo, Carlo Michelstaedter (3 não sossegava com lamparinas ou velas pouco
de Junho de 1887-17 de Outubro de 1910), um intensas. Carlo Michelstaedter estava “sozinho no
POR enormíssimo filósofo italiano, matou-se; tinha 23 deserto”. Ele afirmava que só havia uma solução
GONÇALO anos. para a vida: “Fazer de si mesmo um archote.”
M. TAVARES
Era também desenhador; há um belo auto-retrato: Antes, Carlo Michelstaedter tinha-se inscrito na
homem de rosto autoconfiante — e toda a Faculdade de Viena, em Matemática.
autoconfiança é, muitas vezes, um autodesespero. As matemáticas põem alguma ordem no mundo,

O fogo, A 5 de Outubro de 1910 enviou a sua tese para


Florença, onde se havia inscrito na Faculdade de
mas o archote queima.

o fogo, o fogo Letras.


Na folha de rosto, ele desenhou uma lamparina e 5.
escreveu em grego: “Eu apaguei-me.” Em 1911, um ano depois do suicídio de Carlo,

1.
Há muitas formas de fazer um auto-retrato, e uma Russell, mestre das matemáticas e da filosofia,
lamparina que anuncia com antecedência o seu viu aproximar-se o rapaz estranho que sabemos
Londres. Um homem, cabelos brancos, barba apagamento é uma delas. hoje que se chamava Wittgenstein — nascido
branca; manifestações, clima. Ele segura um cartaz Filósofo brilhante, deu um tiro na cabeça 12 dias em Viena, numa das famílias mais nobres. Carlo
que diz, em inglês: depois de enviar a sua tese final e apenas um dia Michelstaedter pode ser visto como um dos seus
“Ambientalismo sem luta de classes é apenas depois de enviar os famosos “Apêndices Críticos” precursores.
jardinagem.” Uma frase de Chico Mendes. da sua tese e de ter uma discussão com a mãe. Wittgenstein adorava a aviação. Conta Russell que
O fogo que queimava a Amazónia continua a ser O que é mais forte no desespero (na sua criação ou Wittgenstein se aproximou dele, depois de uma
fogo que queima a Amazónia. no seu apaziguamento): a família ou a filosofia? aula, e perguntou: “O senhor poderia dizer-me, por
Carlo Michelstaedter protestava com o mundo favor, se sou um completo idiota ou não?”

2.
exterior; dizia, como lembra Roger-Pol Droit, que Russell perguntou por que razão queria ele saber
“a retórica, que passeia o Absoluto pelas ruas da isso?
Chico Mendes (1944-1988), activista ambiental cidade, é apenas uma vela para tranquilizar as Wittgenstein respondeu: “Se eu for completamente
brasileiro. Lutou a favor dos índios da Amazónia e borboletas na noite”. Ele não era uma borboleta, idiota, vou para a aviação; se não for
das suas terras. completamente idiota, vou para a filosofia.”
Aprendeu a ler com 19 anos de idade. De alguma maneira, a decisão pairava entre a
Respeitado internacionalmente pela sua luta. engenharia construtiva e a filosofia, pensamento
Recebeu um prémio da ONU. puro sem ponto de aplicação material. Entre o
Foi assassinado em 1988, com “tiros de escopeta, ao fazer das mãos (ou o desenho técnico) e o fazer da
sair de sua casa em Xapuri”. cabeça. Mudar o terreno exterior ou o terreno do
pensamento.

3.
Uns meses depois, o jovem Wittgenstein entregou
em mão um texto a Russell. Este leu, logo ali, a
Escopeta, arma de fogo, uma espingarda de cano primeira frase e disse: “Não deves ir para a aviação.”
curto. Para mim próprio, sempre pensei que a filosofia é
A estranha ideia de que as balas são fogo uma forma mental de fazer aviação.
concentrado. Metáfora, mas também um pouco de

6.
engenharia.
Fogo sem chama; um fogo que, em vez de se
distribuir pelo espaço, se transforma em puro peso Tanto fogo vem de cima, impossível contabilizá-lo.
mortal. Desde o início da aviação, os bombardeamentos
“Arma de fogo”, metáfora e engenharia — como se multiplicaram-se e as ameaças bíblicas, do fogo
tudo o que matasse fosse fogo ou a transformação que vinha dos céus, confirmaram-se — perderam
do fogo em matérias mais subtis, não tão vermelhas. estatuto divino (ou diabólico), ganharam
engenharia, matemática e metal.

7.
Tanto fogo vem de cima, tanto fogo vem de baixo;
todos os dias. Mas há dias em que o fogo vem para
cima de nós.
NA FOLHA DE ROSTO, ELE DESENHOU Não somos um archote; a vida, sim, é um archote.
UMA LAMPARINA E ESCREVEU Nós somos aquilo que vai ser queimado. b

EM GREGO: “EU APAGUEI-ME.” Despedimo-nos dela pelo fogo.


HÁ MUITAS FORMAS DE FAZER UM Companheira de nove anos, a minha cadela “Jeri”
AUTO-RETRATO, E UMA LAMPARINA morreu na quinta-feira dia 4 de Novembro

QUE ANUNCIA COM ANTECEDÊNCIA Gonçalo M. Tavares escreve de acordo


O SEU APAGAMENTO É UMA DELAS com a antiga ortografia

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fisga
PASSEIO PÚBLICO
45 MINUTOS COM

ANNE TERESA DE KEERSMAEKER


“COM A COVID-19 SOMOS
BAILARINOS NUMA COREOGRAFIA
QUE NÃO CRIÁMOS”
O NOME DE ANNE TERESA DE KEERSMAEKER FEZ NOVAMENTE HISTÓRIA AO VER RECONHECIDO VALOR
DE PATRIMÓNIO À SUA DANÇA CONTEMPORÂNEA COM O PRÉMIO EUROPEU HELENA VAZ DA SILVA

E 16
PASSEIO PÚBLICO
“COREOGRAFAR É ORGANIZAR
O ESPAÇO ENTRE NÓS, POR ISSO
É SEMPRE UMA QUESTÃO SOCIAL.
É ESCREVER AS PESSOAS”

da natureza, de que somos parte intrínseca, e da


consciência de pertencer a algo que está para além
de nós próprios.

Apesar de as suas peças não falarem diretamente


sobre alterações climáticas e a responsabilização
humana, são temas implícitos na sua noção de dança e
coreografia.
ENTREVISTA CLAUDIA GALHÓS Estamos num ponto de mudança da história da o que tem valor, o que é identidade... Não consigo
Humanidade. Estamos neste planeta com 8 mil encontrar-me aí. Acho que deve haver uma abertura
É longa a relação de Anne Teresa De Keersmaeker milhões de pessoas. A natureza não se distingue de para a diferença, sem julgamento. Trabalho há 40 anos
com Lisboa. Veio pela primeira vez em 1987, aos nós; somos parte dessa natureza. Se a destruirmos, como mulher artista, continuo a dançar, e nunca tive
Encontros Acarte, apresentar a icónica coreografia destruímo-nos a nós próprios. Temos uma história problemas por ser mulher. É verdade que, num certo
“Rosas danst Rosas” (1983). De então para cá tem de ecocídio, resultado da influência nefasta da momento, combinar vários papéis tornou-se muito
sido presença regular. A Companhia Nacional de economia, da forma como temos vindo a colonizar e complicado: ser uma artista criadora, ser companheira
Bailado tem no repertório uma raridade: o único explorar a natureza. Se não fizermos nada, a natureza e ser mãe. E vejo isso nas pessoas à minha volta.
bailado que Keersmaeker criou para uma companhia dará sinais de si. É um problema de larga escala que
que não a sua, “The Lisbon Piece” (1998). Foi ela precisa de ação política, e é urgente, se é que não é já É fundamental no seu trabalho a relação com a música.
também a inaugurar o programa “Artista na Cidade de demasiado tarde. Devemos fazer escolhas enquanto Acabou de estrear um novo solo em que dança
Lisboa”, em 2012. Recentemente aventurou-se num consumidores, mas temos um dever moral com as novamente Bach. Que paixão é esta?
território inesperado no seu percurso: no ano passado, gerações futuras de assumir uma atitude mais humilde A música de Bach contém tudo o que amo: a
coreografou o musical “West Side Story” para a na relação com o lugar que ocupamos. A natureza claridade, o detalhe, a ampla estrutura, tantas
Broadway. Agora acaba de receber o Prémio Europeu é mais do que um passeio pela floresta ou dar um emoções diferentes. É a celebração da vida. É sempre
Helena Vaz da Silva para a Divulgação do Património mergulho no mar. A natureza é a totalidade do sistema estruturada sem ser sistemática. Fiz 61 este ano,
Cultural e, aos 61 anos, volta a dançar Bach no solo que nos sustenta. A vida na terra vai continuar — a cheguei a uma altura determinante da minha vida.
“As Variações Goldberg” — chega à Culturgest, em questão é se nós, enquanto humanos, vamos estar lá. Adoro dançar e considero-me mais bailarina do que
Lisboa, em março de 2022. coreógrafa. “Violin Phase” (1981), o solo que fiz em
Qual é a sua relação com o feminismo? O seu percurso Nova Iorque há mais de 40 anos, quis dá-lo a uma
Este prémio distingue a dança que cria como artístico é marcado pela questão do feminino. nova geração de bailarinos. Ainda o danço, mas muito
património e como fazendo parte da tradição e herança Recentemente, na criação da coreografia de “West de vez em quando. Agora, queria criar uma dança que
FRANÇOIS GUILLOT/GETTY IMAGES

da dança e do bailado, facto particularmente relevante Side Story”, um musical da Broadway, foi confrontada celebrasse o que foi, onde estou e para onde vou. “As
tendo em conta a dificuldade que tem sido conseguir com o movimento Me Too devido a uma polémica Variações Goldberg” é o meu jubileu de ouro.
esse reconhecimento. Como vê esta valorização da gerada pela acusação de assédio sexual de que foi
dança experimental contemporânea que faz? alvo um dos bailarinos do New York City Ballet que fez Disse que “nada é mais contemporâneo do que o
Qual é a herança da dança? As pessoas dançam parte do elenco... corpo”. Vivemos tempos radicais, em que o corpo, nas
desde o início dos tempos. Qualquer pessoa Nos primeiros quatro ou cinco anos da minha artes e no espaço público, nas ruas, está muito presente
pode dançar, acredito mais nisso do que acredito companhia, a Rosas, havia só bailarinas porque eu era como manifesto. Estamos a sair de uma pandemia. Que
que qualquer pessoa pode fazer música. As uma mulher jovem e queria trabalhar com o que me conceção tem hoje do corpo?
grandes danças festivas são celebrações da nossa era próximo. As primeiríssimas peças, como “Fase” Nós acabámos de vir de um período extremo, em
humanidade. Podemos dançar sozinhos, juntos, (1982), eram sobre começar a criar uma diferença que experimentámos uma desconfiança do corpo.
num grande grupo de pessoas. É girar e rodopiar. Há no que é semelhante. Acho que era uma espécie Não apenas do corpo uns dos outros, mas do corpo
tantas definições possíveis, mas é certamente sobre de feminismo combatente e jubilatório, através do próprio, porque vamos acedendo a impressões do
a relação entre o indivíduo e o coletivo, fazendo corpo e através do movimento. Era afirmar: “Não que ocorre no exterior mas não sabemos o que
ressonância com algo muito ancestral, que vai à vais chegar e dizer-me o que eu tenho de fazer.” acontece no nosso interior, e temos de suspeitar
essência do que nos torna humanos. O corpo é o Mas fui sempre muito relutante em definir como da perceção sobre o que se passa dentro de nós.
instrumento mais natural e ecológico que temos. Os feminismo o que fazia. Era mais trabalhar o modo Precisamos de ser guiados, temos de entregar a
nossos corpos, mesmo de um modo mecânico, ou de como sou, falar sobre mim. Não queria ser identificada confiança do nosso interior à ciência, à política.
um modo essencial, são emocionais porque carregam com esse movimento. Todo o desenvolvimento Com a covid-19 somos bailarinos numa coreografia
vestígios de tantas experiências, não circunscritas às das minhas competências como coreógrafa foram que não criámos. A pandemia é sobre todas estas
nossas vidas, mas às vidas dos nossos antepassados. construídas através do trabalho com pessoas, questões que são tão cruciais para a dança: tocar,
Coreografar é organizar o espaço entre nós, por isso é idades, backgrounds, técnicas, corpos e culturas proximidade, respiração. Mesmo as máscaras que
sempre uma questão social. É escrever as pessoas. Na diferentes, com algo em comum: paixão pela dança, usamos... Todos passámos a usar um figurino no
filosofia oriental diz-se que primeiro há uma intenção, pelo movimento, e não havia preconceitos. Continuo quotidiano. Isto cria um confronto. Não é apenas
depois uma energia e depois uma forma. Dançar a pensar que a diferença cria movimento. E não sobre procedimentos sanitários; toca no nosso ADN,
é também uma forma de estar no mundo, de ler o devia gerar mal-entendidos. Penso que quando algo em quem somos, toca na nossa humanidade, como
mundo. Portanto, é também uma atividade intelectual. se torna idêntico, é o fim. Tudo tende para o meio, comunidade e como indivíduos. Temos o dever moral
E, pela sua própria definição, é natural e espiritual. Isso para uma mediania uniforme. Hoje há uma série de de ser otimistas, mas é um eufemismo dizer-se que
é talvez aquilo que mais me entristece: a destruição conceitos que estão baralhados — misturamos tudo, tem sido uma experiência intensa. b

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NO CAMINHO DAS ESTRELAS
POR JOÃO PACHECO

FLASHES PARIS-SOUTHAMPTON

As maravilhas
de Annie
WASHINGTON
Ao longo de 20 anos, Julie Green
Leibovitz
representou em pratos pintados a
última refeição escolhida por con-
denados à morte. Por estar a sofrer Poucas horas depois, John Lennon morreu assassinado. e quarenta capas da revista norte-americana com
de uma doença grave, a pintora Antes, foi fotografado por Annie Leibovitz. Nessas fotografias suas. E agora, aos 72 anos, continua a ser um
decidiu morrer em outubro através imagens, vemos o antigo Beatle nu e em posição fetal, a nome incontornável na fotografia mundial e leva meio
de eutanásia, depois de ter pintado abraçar e a beijar a mulher. Os dois estão no chão, foram século a fotografar. O retrato é fundamental no trabalho
o milésimo prato da série. Agora e fotografados de cima e parecem alheios à máquina. Yoko de Leibovitz, tendo fotografado pessoas como a cantora
até 23 de janeiro, 800 destes pratos
Ono usa camisola preta e jeans azuis. Os cabelos escuros Rihanna, a escritora Susan Sontag, o Papa Francisco ou a
podem ser vistos em Washington,
e compridos tapam-lhe os braços, espalhando-se pela artista Louise Bourgeois (na foto). A propósito, podemos
no Bellevue Arts Museum. A expo-
sição chama-se “The Last Supper”.
alcatifa clara até desaparecerem no topo da imagem. ainda ver no Porto até ao final de novembro a grande
Ou seja, “A Última Ceia”. Não sabemos se Yoko estará a reparar no beijo dado pelo exposição de Bourgeois “Deslaçar Um Tormento”, na
homem nu que a abraça. Não sabemos nada, exceto que Fundação de Serralves.
estamos a mais. É demasiado deles, aquele momento. Ou Por ter recebido o prémio de fotografia da Académie des
VENEZA
então não, porque decidiram partilhá-lo e parece encaixar Beaux-Arts, Leibovitz tem agora uma exposição com
Ir a Veneza e não ver o Teatro La na nossa memória, lembrando muita da iconografia cristã. mais de duzentas fotografias em Paris, até 5 de dezembro,
Fenice é como ir a Roma e não ver
Por outro lado, estas são fotografias que mudaram a forma no Pavillon Comtesse de Caen. No Reino Unido, até 23
o Papa. Bom, será exagero, até por-
como lidamos com as imagens, com a intimidade, com os de dezembro, a fotógrafa expõe na galeria Hauser &
que muitas vezes o Papa Francisco
está em viagem. Entre 20 e 30 de
estereótipos atribuídos a um homem e a uma mulher. Wirth de Southampton o trabalho “Wonderland”. É uma
novembro, o La Fenice tem a ópera A fotógrafa norte-americana Annie Leibovitz começou retrospetiva das maravilhas produzidas para o mundo da
em dois atos “Fidelio”, a única de cedo e já era famosa quando fotografou assim o casal moda, com a revista “Vogue” à cabeça. E ainda este mês a
Beethoven. No papel de Leonora Lennon-Ono, em 1980. Esta sessão fotográfica para editora Phaidon lançará um livro com o mesmo nome da
está a soprano Tamara Wilson. a “Rolling Stone” resultou numa das mais de cento exposição. Maravilha. b

VATICANO italiano Pietro Ruffo com a cartografia


preservada nesse mesmo arquivo.
PHOTO
MATON Habemus arte Sim, habemus arte, mas a exposição
temporária “Tutti. Umanità in cammino”
está longe de ser uma estreia da Igreja
Católica na promoção do trabalho de
Há uma nova galeria de arte artistas. O mecenato é até um dos papéis
contemporânea no coração da Santa menos polémicos que a instituição tem
Sé, na Biblioteca Apostólica Vaticana. A praticado ao longo dos séculos, com
Biblioteca chamou-se “Arquivo Secreto tantas encomendas fundamentais como
do Vaticano” até 2019 e é dirigida por exemplo os frescos de Michelangelo
pelo cardeal e poeta José Tolentino para a Capela Sistina. A exposição
Mendonça. A agência de notícias do dura até 25 de fevereiro, mas a grande
Vaticano atribui o financiamento do novidade será ou não confirmada nos
espaço aos herdeiros do empresário próximos tempos: os artistas convidados
de cinema e casinos Kirk Kerkorian, a expor na Biblioteca terão liberdade para
que comprou e vendeu a produtora de tocar temas incómodos para o Vaticano?
cinema MGM três vezes e era grande
amigo de Frank Sinatra, como se conta no
obituário publicado pelo jornal “The New
York Times”. Em honra do filantropo, a
É uma Última Ceia? Para estas invisíveis, Tereza Zelenková escolheu o títu- nova galeria chama-se Kerkorian.
lo “The Unseen”. A fotografia está na exposição “Known and Strange”, que A Santa Sé passa a estar no mapa da
conta com mais de 50 imagens de vários autores. São novas aquisições do arte contemporânea, agora que o Papa
Victoria and Albert Museum e podem ser vistas em Londres até 6 de novem- Francisco inaugurou a primeira exposição
bro de 2022. na Biblioteca, um diálogo do artista

E 20
C A RTA S A B E RTA S

ELE HÁ MUITOS PROBLEMAS,


TANTOS QUE EU NÃO SEI BEM POR
ONDE COMEÇAR A RESOLVÊ-LOS

E
VIVO NA TERRA HÁ MUITAS DÉCADAS E NUNCA VI TANTOS PROBLEMAS POR
RESOLVER DE UMA ASSENTADA. É UMA COISA INCRÍVEL, IMPENSÁVEL, MESMO

le há o problema do Chega. Será conseguem aquela classe e velocidade para explicar quem vai à
possível fazer um Governo de direita frente a cada momento e entender a importância da abordagem
integrado, apoiado ou alvo de um às curvas e o posicionamento dos candidatos para a reta final.
simples aceno do Chega? Esta é uma Já o cafarnaum do PS não necessita de mais do que um
análise importante e, pelo que vejo relatador de golfe ou de vela. É algo pausado, uma vez que
nos jornais, correm rios (e rangéis) Costa diz uma coisa e só passados dois dias Pedro Nuno
de tinta em defesa de uma e de outra Santos diz o contrário. Pessoas que não se colocam nem de
hipótese. Depois, ele há também o um lado nem de outro, tendo elas próprias o seu lado, como
problema da data das eleições, embora Manuel Alegre, é ainda mais raro falarem. Quando o fazem,
esse o dr. Marques Mendes tenha recomendando que olhem para a esquerda e para a direita, é
deixado explícito que 30 de janeiro com o espírito de quem recomenda cautela aos miúdos que vão
era uma boa altura para se fazer as pela primeira vez sozinhos à escola.
legislativas, seguindo, aliás, o provérbio: “Dia 30 de janeiro é Depois destes problemas, que são os mais importantes, há
para votar um dia porreiro!” outros. Um deles é o da pandemia, que está quase resolvido,
Ele há, ainda, o papel que o Presidente da República andou apesar de os números estarem a subir; outro é se devemos ou
a fazer antes de o Orçamento ter sido rejeitado: foi ele que, não apoiar Christian Lindner, chefe do Partido Democrático
por ter avisado que dissolvia o Parlamento, acabou por nos Liberal alemão (que se dispõe a fazer uma coligação de
conduzir a esta situação? Terá esta situação ocorrido apesar Governo com o SPD e os Verdes), para ministro das Finanças
dos seus avisos? Seremos todos uma criação ficcional do em Berlim. Isto porque Lindner se propõe voltar às regras
professor Marcelo? Enfim, as perguntas avolumam-se nas antigas do PEC (60% do PIB como valor máximo da dívida),
crónicas e nos comentários! E isto interessava ao dr. Costa ou tendo sido atacado por Stiglitz e Adam Tooze, que defendem
ele está verdadeiramente desiludido? É uma outra questão normas mais flexíveis. Tooze pensa que a abordagem feita
de que se ocupa o espaço público, e não sem razão, porque é pela Europa no ano da pandemia, 2020, era mais flexível,
uma questão tremendamente importante. A saber: a perfídia integradora e melhor. Mas o certo é que nem o SPD quer acabar
do primeiro-ministro foi de molde a convencer o Presidente com o travão constitucional à dívida que a Alemanha se impõe.
a avisar que dissolvia o Parlamento para, numa profecia Outro problema, com relativa importância, é o conflito entre
autorrealizada, ele poder sair por cima, sabendo que os o Reino Unido e a União Europeia, sendo que no meio disto se
adversários à esquerda ficavam sem pé e os à direita sem líder? sabe que a líder da UE usa um avião privado para se deslocar
Poderemos viver com esta dúvida? meia centena de quilómetros. Finalmente, há o clima, que tem
Ele há, igualmente, o problema de saber se o senhor Francisco a sua importância noticiosa, desde que haja manifestações à
Rodrigues dos Santos (que não é familiar daquele que pisca o porta. De resto, se as previsões dos sábios estiverem certas, o
olho no fim do telejornal) é um democrata ou um destacado mundo acaba e deixa de haver problemas. b
totalitário. O modo, a data e o como se faz um congresso que
pode chegar a reunir mais de uma dúzia de pessoas é uma
questão decisiva. O senhor Francisco, mais conhecido por
“Chicão” (mas não, certamente, devido à estatura), já conseguiu
a difícil proeza de colocar uma série de figuras a andar do
partido. Isto levanta uma nova questão que é preciso debater em
inúmeras colunas: estarão os cisionistas a demonstrar os seus
reprimidos princípios liberais e a aderir ao Iniciativa Liberal,
que, num instante, se enche com aquela meia dúzia a que
corresponde meio CDS? É outro problema a resolver!
O mais bicudo, já perceberam, é a luta entre Rio e Rangel, / COMENDADOR
que um deles ganhará por uma cabeça (não sei se a de Marco
António, se a de José Silvano), o que significa que a luta será
MARQUES
renhida e que precisaremos daqueles especialistas em relatar DE CORREIA
corridas de cavalos, cujo recordista, Ernâni Peres, do Turf Club
do Rio de Janeiro, entrou para o “Guinness” por conseguir
dizer 371 palavras por minuto, muito mais do que Portas ou
Marques Mendes, para não falar de Júdice e de outros que não

E 22
O self-made
fugitivo
Um empreendedor sob ataque: assim João Rendeiro
se vê. É também um ambicioso banqueiro
com quem a Justiça só jogou ao contra-ataque

TEXTO DIOGO CAVALEIRO E ISABEL VICENTE


ILUSTRAÇÃO HELDER OLIVEIRA

E 24
E 25
F
gente, as obras que não podiam ser vendidas foram Privado Português, uma das 90 empresas fundadoras
vendidas. Maria de Jesus Rendeiro era a fiel deposi- da EPIS. Foi ainda presidente do Conselho Consultivo
tária, tinha as contas arrestadas pela mesma Justiça entre 2010 e 2012”, é o que diz sobre Rendeiro.
que lhe confiou as obras. Contradições? Distrações? A EPIS pretende dar ferramentas aos jovens para
A constituição da mulher como arguida não fez serem eles próprios donos da sua vida. É assim que
com que Rendeiro enviasse nova mensagem pública Rendeiro também se vê: um self made man; um ho-
através do seu blogue “Arma Crítica”, como aquela mem que fez tudo por si, vindo de uma família hu-
em que anunciou que fugiu porque não confia na Jus- milde. “As pessoas que se fazem por si identificam-
tiça — e a fuga, garantiu, é o direito à sua legítima de- -se bastante umas com as outras, em detrimento das
fesa. Nos tribunais, já tinha tido espaço para a utilizar. pessoas que herdam dinheiro, que têm heranças do
A criatividade, a frieza e a destreza de Rendeiro trabalho dos outros”, disse ao “Jornal de Negócios”
são extraordinárias, diz uma fonte anónima ao Ex- em 2006. Em vários testemunhos há referência à fa-
presso (muitas pessoas falaram, a grande maioria mília na Murtosa, e ao seu pai, sapateiro. Mas o ho-
sob o compromisso de não ser identificada, e mui- mem que fundou o BPP (e que, segundo a Justiça,
tas simplesmente não quiserem sobretudo depois da dele se aproveitou) defende que foi sempre posto de
detenção de Maria Rendeiro deitar mais achas para lado. E que foi alvo de narrativas urdidas por tercei-
a fogueira). ros, unidos contra si.
Rendeiro é tão empreendedor na forma de encarar
a Justiça como foi empreendedor nas finanças. Na sua O MAL-AMADO COM INIMIGOS
vida, estudou e trabalhou em Portugal e em Inglater- “Houve um acordo político que incluiu José Sócrates,
ra, criou um fundo (a Gestifundo) que lhe rendeu di- Teixeira dos Santos e bancos concorrentes para elimi-
nheiro (na venda ao Totta) e constituiu um banco, o nar um concorrente incómodo, com o beneplácito de
oi um dos principais entusiastas a dar vida à organi- BPP, em 1996, que ficou conhecido como o banco dos Vítor Constâncio. Acedi, sem hesitação, a distanciar-
zação, mas a habitual foto de fato e gravata não está ricos, e do qual foi afastado pelo Banco de Portugal 12 -me, pelo futuro da instituição que criara há 12 anos
na galeria dos antigos presidentes. Nem com a pes- anos depois. Recusou sempre a qualificação de banco e era o sonho de uma vida. Ao distanciar-me desta
quisa pelo seu nome no site se chega a resultados. Só dos ricos, e até quis ganhar lastro com quem queria forma tornei-me o alvo fácil de todos os ataques, den-
procurando em documentos antigos é que surge al- empreender e não tinha condições. tro e fora dos media — um autêntico ‘saco de boxe’. O
gum rasto. “São preocupações centrais dos empresários o bode expiatório de todos os males do BPP e dos siste-
Na EPIS — Empresários pela Inclusão Social, é di- desenvolvimento de meritocracias, a mobilidade so- mas financeiros nacional e internacional. Nomeado
fícil estar perante indícios de quem foi o seu primei- cial e a criação de condições de igualdade de opor- banqueiro dos ricos, logo eu que sempre fora despre-
ro diretor, tal como, anos depois, é hoje difícil para as tunidades para todos, em particular os jovens. Por zado por Jardim Gonçalves e Ricardo Salgado.” A des-
autoridades judiciais portuguesas descobrirem o atual isso, é necessário que os empresários contribuam no crição é de Rendeiro, no livro “Em Defesa da Honra”,
paradeiro desse mesmo homem. Da EPIS não fugiu, sentido de melhorar o panorama destas questões em publicado este ano, descrevendo o período em que
foi sendo apagado; do país não só fugiu como o fez Portugal”, escrevia João Oliveira Rendeiro em maio abandonou o banco depois da derrocada, em 2008. Se
anunciando que não ia voltar. de 2007, no primeiro relatório e contas da EPIS, de- havia acordo, não se sabe; mas para o ex-banqueiro é
João Oliveira Rendeiro, o ex-banqueiro que dei- dicada a alunos portugueses que vivam em contex- certo que havia uma união contra si.
xou Portugal para não cumprir pena de prisão, está a tos socioeconómicos desfavorecidos e que, portanto, Os inimigos públicos do agora economista refor-
monte desde setembro. Por quanto tempo? Ninguém têm maior risco de insucesso escolar. O objetivo era mado, nascido a 22 de maio de 1952, são sobretudo os
tem resposta. Sempre se viu como um alvo e um bode limitar o abandono e os chumbos. que não atenderam ao seu pedido de socorro naque-
expiatório, em particular depois de a vida lhe come- O jantar constitutivo da EPIS, a 20 de novembro le ano, para salvar o BPP da crise de liquidez. Pedi-
çar a correr pior. Sugeria que nem todos compreen- de 2006, foi no Palácio Nacional da Ajuda. Fotografias ra uma ajuda de 750 milhões, depois da redução do
dem um empreendedor que tem poder. Sempre se viu houve muitas. Uma delas juntou o grande patrocina- rating da agência Moody’s que se seguiu à derrocada
como um pária, mas sempre quis alcançar um esta- dor da associação, Aníbal Cavaco Silva, a sua mulher, do Lehman Brothers. Os inimigos eram os donos do
tuto de pertença a uma comunidade onde não tinha Maria Cavaco Silva, e o casal João e Maria Rendeiro. poder na altura, alguns agora também a contas com
nascido. Conseguiu. Mas o que fez no Banco Privado Naquele ano, numa altura em que já não deveria es- a Justiça: o então primeiro-ministro José Sócrates,
Português (BPP) persegue-o. Tal como a justiça. tar tão permanentemente na Rua Mouzinho da Sil- ladeado pelo ex-presidente do Banco Espírito Santo,
O fundador do BPP foi para parte ainda incerta — veira, em Lisboa (passara de presidente executivo a Ricardo Salgado, e pelo ministro das Finanças à data,
África do Sul foi o país apontado em interrogatório presidente não executivo do BPP, ali sediado), Ren- Teixeira dos Santos.
pela sua mulher, Maria de Jesus, na última semana. deiro tornou-se uma peça central na constituição da Há ainda o Banco de Portugal (de Vítor Constân-
Fora do alcance da Justiça estão também as obras de EPIS. Foi ele um dos grandes responsáveis por logo cio e de Carlos Costa), que o investigou e condenou,
arte que estavam arrestadas e à guarda da sua mu- ter conseguido captar mais de 2 milhões de euros respetivamente, ao pagamento de 1,5 milhões de eu-
lher na Quinta Patiño. Primeiro, achava-se que três junto de quase uma centena de empresas portugue- ros, coima ainda por pagar. E a Comissão do Mercado
obras do americano Frank Stella tinham sido ven- sas. Era muito dinheiro dado por cada empresa, 25 de Valores Mobiliários, de Carlos Tavares, com uma
didas pela leiloeira Christie’s entre março e outu- mil euros, para uma associação que estava a nascer, coima de 1 milhão aplicada, também por ser saldada.
bro deste ano: uma delas no dia em que Rendeiro foi mesmo que com o patrocínio do então Chefe de Es- Os seus pares na banca não lhe escapam, igual-
condenado a 10 anos de prisão por fraude fiscal, outra tado. Tanto dinheiro que há quem hoje diga que era mente; não lhe davam grande credibilidade. Um ban-
quando anunciou aos tribunais onde havia processos um sinal da ambição de João Rendeiro. E uma forma queiro há anos no sector admite que havia muita in-
pendentes que estaria ausente até 30 de setembro, ti- de se rodear das pessoas certas. Uma forma de com- teligência em Rendeiro, mas que a ambição não era
nha já fugido. pensação porque, na banca, sentiu-se sempre como já possível medir. A mesma fonte, que pediu anoni-
Mas Rendeiro tem sabido surpreender. O ex-ban- desprezado pelos seus pares. mato, defende que Rendeiro quis construir uma nar-
queiro, filho de um sapateiro com loja em Campo Agora, é na EPIS que o seu nome não deixou ras- rativa de que o BPP estava a pisar os calos ao BES e
de Ourique, parece estar sempre uns quilómetros à to fácil de detetar. Foi o então banqueiro quem deu a BCP, quando as áreas de banca privada (clientes mais
frente da Justiça. Afinal, não foram três as obras ar- cara pela associação, mas a verdade é que, no site da abastados) até eram mais relevantes. E que os outros
restadas vendidas, mas oito, e o encaixe foi de 1,3 mi- mesma, não surge a sua imagem, como constam a banqueiros de pequena dimensão não usam os mes-
lhões de euros, ficou a saber-se no dia em que Maria de todos os seus sucessores (António Pires de Lima, mos argumentos. “Carlos Rodrigues também era de
Rendeiro, a guardiã das obras em nome da Justiça, Luís Palha da Silva, António Vitorino, Carlos Gomes um banco pequeno [BIG]. É um banco de nicho e uma
foi a tribunal dar explicações pelo desaparecimento da Silva e Leonor Beleza, a atual diretora). A Direção pessoa super-respeitada”, contrapõe a fonte, que fa-
e falsificações. da EPIS não respondeu ao Expresso sobre este desa- lou sob anonimato.
A mulher de Rendeiro, sua parceira desde a in- parecimento. “João Rendeiro foi presidente da Dire- “O facto de não ter sido um apoiante entusiástico
fância, ficou com pulseira eletrónica. Perante toda a ção entre 2007 e 2009, em representação do Banco de Santos Ferreira pesou no momento em que a banca

E 26
TIAGO MIRANDA

NUNO FOX
1 2

EX-BANQUEIRO 1 Maria de Jesus Rendeiro, casada com João Rendeiro, foi a tribunal explicar o desaparecimento de obras de arte que devia proteger,
2 tirando destaque ao protagonista, há anos a braços com a Justiça — tantos que já trabalhou com vários advogados, incluindo José Miguel Júdice,
que hoje condena a sua fuga. 3 Rendeiro sempre se quis acompanhar pela arte (na foto, “Bodileum”, de Daniel Richter), sendo que
4 o ex-Presidente da República Cavaco Silva, de quem é admirador, esteve em exposições ao seu lado (e patrocinou a criação da EPIS)

3 4
TIAGO MIRANDA

E 27
foi chamada a ajudar o BPP. Sempre fui independen- Fundação Ellipse, em Alcoitão, no que acabou por ser Recuando a 2015, a defesa de Júdice conseguiu
te. Nunca estive ligado a lóbis A, B ou C, à maçonaria a apreensão de cerca de 50 milhões de euros em obras desmistificar o que vinha na acusação do Ministé-
ou ao Opus Dei, o que incomodava seriamente algu- de arte, segundo afirmava à data o “DN”. rio Público, e todos os recursos que foram sendo fei-
mas pessoas. Nasce daí a noção de que não era con- Não seria a primeira vez nem a última que Ren- tos para reverter a absolvição foram infortúnios. É o
trolável, não obedecia (o meu ‘maior pecado’). O meu deiro estava no estrangeiro quando em Portugal ha- único processo conhecido onde Rendeiro foi absol-
único interesse era defender os interesses do banco. via episódios em que era o centro das atenções. Vári- vido. Neste processo do veículo Privado Financeiras,
Este é um fator que mais tarde teve influência quando os foram os momentos de ausência, sempre anunci- recorde-se, era acusado de burla qualificada por ter
o BPP se viu em apuros”, defende-se João Rendeiro, ados e consentidos pela Justiça, já que as medidas de enganado os acionistas deste veículo em cerca de 40
no seu último livro. coação aplicadas a Rendeiro não o impediam de sair. milhões de euros, por os ter atraído para um aumento
Mas há mais ódios que se lhes juntaram: os juízes Facilitismos de um ex-banqueiro? Pergunta com al- de capital quando sabia que o veículo — que investia
que o foram condenando em tribunal. Os jornalistas guma razão e até descrédito quem não tem o mesmo sobretudo em ações do BCP — estava falido. Os factos
são outras fontes de inimizade, segundo o próprio tratamento de certa forma laxista. Rendeiro habitu- da acusação remontam a 2008, precisamente duran-
Rendeiro. Isto sem esquecer os “meninos da Lapa”, ou a Justiça a estar ausente e a Justiça nada fez para o te a guerra de poder dentro do BCP. O tribunal con-
que diz que o desprezavam no “elitista” Liceu Pedro manter por perto. Ele saía, ele regressava. Foi assim siderou não só que se não tivesse havido aumento de
Nunes, onde era chamado de rufia e, acrescenta, era dezenas de vezes, sem espinhas nem ossos. A não ser capital o veículo teria falido (não estava falido), mas
uma “espécie de dalit”. a última vez. também que os arguidos ao fazerem um aumento de
Em quase todos os julgamentos, Rendeiro falhou capital estavam a tentar recuperar o investimento.
SEM LESADOS a leitura do acórdão. A primeira vez que isso aconte- Na verdade, os investidores conseguiram recu-
Nem todos estavam contra. Ao contrário de outros ceu num processo de natureza criminal foi no caso da perar o dinheiro investido sobretudo em ações do
banqueiros caídos em desgraça, o antigo líder do BPP Privado Financeiras, e curiosamente em que Rendei- BCP. Rendeiro, ausente, não deixou de estar presen-
não tem à perna um conjunto de lesados. Aliás, Ren- ro e os ex-administradores do BPP foram absolvidos. te ao marcar a sua posição no dia 5 de junho minutos
deiro sempre teve ascendência sobre a grande maioria Paulo Guichard estava no Brasil; só Salvador Fezas Vi- depois de a sentença ter sido lida. De Miami, enviou
dos clientes que perderam dinheiro na queda da enti- tal esteve presente. Rendeiro encontrava-se em Mia- uma declaração sobre a sua absolvição: “Esta decisão
dade bancária. A criação do fundo para os clientes de mi. Foi dia 5 de junho de 2015 e na altura a equipa de prova que a Justiça se faz nos tribunais e não na co-
retorno absoluto funcionou, e os clientes receberam advogados do ex-banqueiro era José Miguel Júdice e municação social. Todos os que apostaram — e foram
mais de 90% do que tinham investido. O que capita- João Medeiros. muitos — no populismo mediático e no julgamento
liza em seu favor. Isso o ex-banqueiro fez questão de Mas o patrocínio não iria durar muito mais tem- em praça pública perderam. Venceu a prova produzi-
dizer sempre que pôde. É por isso que, embora haja po. Júdice e os advogados do seu escritório deixaram da em Audiência de Julgamento, a Lei e o Direito e a
ainda um conjunto de lesados (cerca de 30, que não de defender Rendeiro após a vitória. O sócio-funda- convicção de que o julgamento se não faria nos media
foram ressarcidos pelos seus depósitos, acima de 100 dor da PLMJ deu ainda alguma assistência às advoga- mas sim no Tribunal.”
mil euros), reclamam não à porta de Rendeiro, mas à das que o sucederam na defesa do ex-banqueiro. Mas Mas não ficou por aqui. Sentia-se na mó de cima.
porta da Comissão Liquidatária do BPP. apenas durante alguns meses. Ironizou: “Neste momento de satisfação, o meu pen-
O presidente da Privado Clientes, também lesa- Contactado pelo Expresso, Júdice não quis fazer samento vai para os clientes do BPP, que, felizmente,
do, e pequeno acionista do BPP (enquanto acionista comentários sobre João Rendeiro e os últimos aconte- em mais de 90% dos casos, já receberam a totalidade
perdeu tudo o que tinha investido), Jaime Antunes, cimentos de uma fuga que condena. “Há muitos anos dos seus patrimónios. E para o Estado, que tem cober-
defende que foi o Banco de Portugal que não fez o seu que não sou advogado de João Rendeiro”, diz, acres- to o seu crédito de €450 milhões na massa insolvente
trabalho, quando tinha sido avisado pelos auditores centando apenas que quando o foi “fui advogado de do BPP.” Desta vez, Rendeiro não foi condenado, não
de sinais de que alguma coisa de errado havia no ban- um inocente”, pelo menos naquele processo-crime. foi considerado um criminoso. Nem ele nem todos os
co. O que interessa aos clientes, diz Jaime Antunes, é o Quanto aos outros em que Rendeiro foi condena- que foram absolvidos neste processo, a saber Paulo
que está agora a Comissão Liquidatária do BPP a fazer, do, José Miguel Júdice não quer mesmo comentar. Já Guichard e Salvador Fezas Vital.
onde está o dinheiro para pagar aos credores que não quanto à fuga, Júdice censura: “A Justiça tem de ser
foram ressarcidos, e não onde está Rendeiro, se fugiu, respeitada. A fuga é inadmissível. O Estado de Direito OS (MUITOS) CRIMES
se pagou as coimas ou não. Isso em nada ajuda os le- não é respeitado quando isto acontece.” Só que nem sempre tem sido assim. Pelo contrário.
sados a recuperar as perdas, argumentou. As sentenças judiciais apontam para crimes. Houve
E se lhe é indiferente onde anda Rendeiro, ter dinheiro que era do BPP que serviu para pagar pré-
sido condenado “significa que, afinal, houve algo de mios, mas que não eram assumidos como custos com
errado”, diz ao Expresso. Adianta que só quer que a pessoal. Estavam ocultados; e foram dirigidos para
“Justiça funcione”. “O episódio da fuga de Rendeiro
é um problema moral da Justiça, mas para os clientes Deixou a banca paraísos fiscais sem pagar o correspondente imposto
no devido tempo. Na queda do BPP, o papel do super-
é irrelevante”, argumenta. E sublinha, o que já disse
muitas vezes: “O que aconteceu no BPP foi uma di- em 2008, visor bancário e do Governo não é isento de críticas,
mas a Justiça não tem dúvidas de que Rendeiro e a cú-
mensão claramente política. O Governo de Sócrates
não quis salvar o banco dos ricos”, disse na mesma
com a queda pula decisória do BPP (Paulo Guichard e Fezas Vital,
sobretudo) cometeram abuso de confiança e fraude
linha do que fez aquando do lançamento do livro de
Rendeiro — e que o próprio diz.
do BPP, mas fiscal. Práticas irregulares, prestação de informação
falsa, manipulação de mercado são algumas das im-
Recentemente, Jaime Antunes esteve ao lado de
Rendeiro. Foi convidado a falar no lançamento do
continuou a putações, sendo que o primeiro caso que transitou em
julgado, que aponta para a prisão por 5 anos e 8 me-
último livro do ex-banqueiro. “Não éramos visitas
de casa um do outro”, garante, recusando terem sido
ser consultor, a ses, prende-se com a falsidade informática e falsifi-
cação de documentos. Em todos eles, há crimes em
amigos e ter conhecimento do que pelo banqueiro era
feito. “Como pequeno acionista nunca acompanhei a
viajar, a escrever. coautoria ou a solo.
“Uma vida de decência e honra que me levou até
vida interna do banco. Havia um núcleo duro de aci-
onistas”, confessa.
Rendeiro e onde as minhas capacidades me permitiram ir e na
qual fui feliz. Acreditem, vale a pena lutar por uma
As queixas de Rendeiro são contra a Justiça, mas,
apesar de há anos sob investigação e julgado por su-
mulher recebiam vida empreendedora”, escreveu no livro “A Defesa
da Honra”. Apesar de todos os processos, ao seu lado,
pervisores e tribunais, a limitação à liberdade foi
praticamente nula. “Estou fora do país, só regresso
pensões Rendeiro teve sempre a sua mulher. Não se divorci-
ou, como aconteceu com Paulo Guichard, cujo casa-
no sábado”, foi assim que, em novembro de 2010,
João Rendeiro ao Expresso afirmava não saber o que
de reforma mento não aguentou as agruras do BPP. “Gostaria de
assegurar a todos que tive uma vida extraordinária —
se passava quando a PJ fazia buscas à sua casa e à de €4 mil ao lado da sempre extraordinária Maria —, uma vida

E 28
REFORMADO Rendeiro como Estados Unidos, Suíça, Irlanda e Singapura. A
formou-se em Economia, em sua mulher cotitulava algumas das contas.
Portugal e Inglaterra. A venda
da sua Gestifundo ao Totta foi O MECENAS
o negócio que lhe deu dinheiro A mulher, que João Rendeiro conhecia desde a infân-
para, em 1996, fundar cia e com quem casou aos 20 anos, teve também um
o Banco Privado Português papel na arte. As doações de obras são em parceria.
“Doação de Maria de Jesus e João Rendeiro em 2000”
é a indicação dada sobre “A Linguagem”, obra de Ale-
xandre O’Neill, no Museu Nacional de Arte Contem-
porânea do Chiado. O casal também adquiriu “Per-
sonagens Preciosas”, de Fernando de Azevedo, que
oferecera a obra a José-Augusto França, para depois
a doarem àquele museu. Um “amplo núcleo surrea-
lista” tinha tido origem no então banqueiro.
“Rendeiro tinha uma ambição desmedida de se
tornar um dos mais relevantes homens de negócios
em Portugal e em Espanha e, como tal, ser social-
mente reconhecido e respeitado. Conseguir uma in-
fluência grande no BCP era fundamental para con-
cretizar este desígnio. Fundamental também era ser
um mecenas no campo das artes. Mais do que um
mecenas, uma autoridade aceite pelo mundo da cul-
tura”, escreve Francisco Pinto Balsemão no seu livro
“Memórias”. Lesado pela queda do BPP, de que foi
um dos acionistas, o presidente da Impresa, a dona do
Expresso, considera que Rendeiro tem a “mania das
grandezas”. Acusa-o de ser “uma pessoa completa-
mente insensível e persistentemente egocêntrica”.
“Isso não o ajuda a distinguir o bem do mal e permi-
te-lhe, julga ele, ficar em permanência ancorado no
seu total egoísmo”, continua.
“Gastando muito dinheiro, conseguiu criar, com
a ajuda de Alexandre Melo, então assessor cultural de
José Sócrates, uma coleção pessoal, cuja qualidade e
quantidade foram objeto de muita má-língua, so-
bretudo quando o proprietário caiu em desgraça. As
instalações do banco, num belo palacete da Rua Mou-
zinho da Silveira, em Lisboa, também estavam re-
cheadas de belos quadros”, acrescenta o livro de Bal-
ANA BAIÃO

semão. Só quem não foi ao BPP não se lembra de um


quadro enorme que forrava a parede do lado direito.
As juízas que o condenaram, em primeira ins-
tância, por fraude fiscal e branqueamento de capi-
tais acreditam que as obras de arte foram compradas
de grandes dificuldades que nunca obedeceu (ou de- o basquetebol era paixão antiga — e, de resto, ficava com dinheiro do banco: “Dizem as máximas da ex-
veu) nada a ninguém, mas uma vida plena em todos em casa na Quinta Patiño, a escrever e a ler, e evitava periência, ao dispor de qualquer cidadão minima-
os sentidos”, continuou. Em conjunto com a mulher, ir às sessões de julgamento onde estava a ser julgado. mente esclarecido, que parte das avultadas quantias
as pensões de reforma ascendem a 4 mil euros. Ago- Publicou vários livros — “Em Defesa da Honra” por si ilicitamente obtidas, no decurso do longo lapso
ra, o ex-banqueiro fugiu, a mulher permaneceu por e o “Arma Crítica”, em que concentra os textos que temporal da sua atuação criminosa a que se reporta a
Portugal, e também ela foi constituída arguida na in- foi escrevendo no blogue com aquele nome (uns de presente condenação, serviram para custear a respe-
vestigação criminal do desaparecimento das obras de análise económica e financeira, outros a atacar alvos tiva aquisição, pelo que tais objetos foram comprados
arte sob sua custódia. por si escolhidos). Antes disso, quando ainda não se com os proventos da sua atividade criminosa e cons-
Quando Rendeiro esteve em Inglaterra a estudar sabia dos crimes por si cometidos, tinha sido o pro- tituíram, igualmente, uma forma de dispersão e dis-
com uma bolsa, Maria de Jesus esperou um tempo e tagonista de um livro: “Testemunho de um Banquei- simulação do respetivo recebimento.”
depois acompanhou-o. Iria acompanhá-lo toda a sua ro”, de Myriam Gaspar. “A história de quem venceu A arte ficou dividida em três: a coleção do BPP,
vida, vendo-o na norte-americana McKinsey, (entre nos mercados” era uma frase que constava da capa. as suas obras de arte pessoais (as tais que deviam ter
1984 e 1985), onde trabalhou na área da banca, se- A sua vida plena continuou, apesar das investiga- sido protegidas pela mulher e não foram), e a coleção
guros e petróleo, e fazendo prospeção de novos cli- ções e inclusive condenações nos processos que ti- que criou, a Ellipse. “A Ellipse Foundation não é mi-
entes. Rendeiro foi desde cedo bom a vender ideias. nham saído do Banco de Portugal e da CMVM. “Vou a nha propriedade, mas é minha criação. Criação, aliás,
Veio depois o Gestifundo, o fundo que criou e vendeu Nova Iorque, vou a Bruxelas, vou a Londres, vou a to- de que muito me orgulho. Constituída por cerca de
posteriormente ao Totta, de onde diz que tirou grande dos os lados. Felizmente, contacto com amigos, clien- 900 peças de cerca de 300 artistas contemporâneos,
parte do seu dinheiro. O BPP veio depois, em último. tes, tenho uma atividade de consultoria internacional, a Coleção Ellipse é uma referência no mundo da Arte
A partir de 2008, João Rendeiro ficou sem o BPP e que desenvolvo com pessoas que querem ouvir o meu Contemporânea à escala mundial. Vale a pena visitar
sem poder exercer atividade financeira, mas não pa- conselho sobre isto ou aquilo. É uma vida normal, de o sítio da Fundação”. Rendeiro escreveu-o no blogue
rou. Virou-se para a consultoria em mercados inter- uma pessoa que fez toda a sua vida nesses mundos”, “Arma Crítica” em janeiro de 2011, um ano depois da
nacionais. Viajava e, por cá, pouco aparecia em pú- disse ao Sapo24, em novembro de 2016. Não era só entrada em liquidação do BPP, e três depois da sua
blico. Antes da fuga, os tempos livres eram passados o próprio que viajava, o dinheiro que movimentava queda. O banco caiu, ele queria continuar.
em passeios pelo paredão de Cascais ou pelo Guin- também andava em paraísos fiscais como as Ilhas Foi em maio de 2006, quando Rendeiro tinha 54
cho — o exercício físico é uma presença constante, Virgens Britânicas ou as Ilhas Caimão, e por países anos, que foi inaugurado o Art Center da Ellipse, em

E 29
Alcoitão. Segundo o relatório do BPP de 2008, a co- perante os factos que cometeu e a sua correspondente transação com o Finantia, o BPP acabou por ter de tri-
leção Ellipse tinha como acervo 783 obras, muita fo- gravidade, bem como uma notória ausência de auto- lhar o seu caminho sozinho. Na tentativa de o salvar,
tografia. O espaço com dois mil metros quadrados, crítica e autocensura”. Rendeiro tentou outra cartada, em 2008, uma fusão
como relatou a imprensa na altura, mostrava peças de “A sua atuação, que resultou provada, denuncia com um banco maior, sendo o BCP um deles. “Quan-
artistas estrangeiros como Louise Bourgeois, e incluía uma personalidade dominada pela ganância e pela do os bancos de investimento começaram a falir em
portugueses como Julião Sarmento, João Onofre, José avidez de angariação de fortuna pessoal, assumin- catadupa no estrangeiro, equacionámos uma fusão.
Pedro Croft ou Pedro Cabrita Reis. A coleção chegou a do-se como especialmente relevantes e avultados os Falei com o presidente do BCP sobre este cenário.
ser avaliada por um valor entre 40 a 45 milhões. Não rendimentos que indevidamente recebeu do ban- Santos Ferreira nomeou então o seu chefe de gabine-
se sabe o valor de hoje, mas os lesados do BPP, aque- co nos últimos dois anos em que prestou funções”, te, Miguel Maya, mais tarde CEO do BCP, para tratar
les que ainda não recuperaram o seu investimento, aponta a sentença — não muito diferente do que di- dos detalhes do negócio com Paulo Guichard. Ainda
olham para essas obras como fontes de receita. A Co- zem os antigos pares no sector da banca. tiveram algumas conversas, mas nada avançou. A ad-
missão Liquidatária espera conseguir as verbas, mas Rendeiro recebeu prémios do banco sem auto- ministração do BCP não entendia os méritos da fusão.
o processo arrasta-se há anos. rização da comissão de vencimentos do banco que Depois percebi porquê. Apareceram rumores de que
Ainda que se veja como um pária, a vida ligada fundara. “Obteve do BPP a expressiva quantia de 13,6 eu tinha imposto como condição ficar com um lugar-
às artes — e de quem não foi afastado, pese embora milhões de euros, que se traduziu no corresponden- -chave na administração do BCP. Asseguro que isso
as investigações — colocou-o numa comunidade de te prejuízo que provocou, com a sua conduta, ao pa- não estava em causa, embora com toda a franqueza
nicho, e levou-o a Nova Iorque, onde deu o patrocí- trimónio do banco.” A comissão liquidatária do BPP não visse na administração do BCP quem tivesse mais
nio a uma exposição. Foi em 2016. Na altura, Rendei- pede agora uma indemnização civil à cúpula decisó- méritos”, escreveu no último livro.
ro já tinha ordem do Tribunal para pagar as coimas ria do banco de quase 30 milhões de euros. O Estado Quem não via os seus méritos era precisamente
de 2,5 milhões dos supervisores, mas não o fazia, di- pede os 4,9 milhões de euros de impostos não pagos Alípio Dias, que, em 1994, quando era presidente do
zia, por ter os bens arrestados em processos-crime. por esses prémios pagos através de paraísos fiscais. Totta, disse ao Banco de Portugal, então comanda-
Aí, o ex-banqueiro foi apresentado como importante A ambição do economista e doutorado com uma do por António de Sousa, que tinha dúvidas sobre a
apoiante de “Anri Sala: Answer Me”, exposição em bolsa do British Council via-se nos negócios. Em atribuição de uma licença bancária a João Rendeiro.
exibição no New Museum, um museu de arte con- 2001, cinco anos depois de Rendeiro ter fundado o “Foi-me perguntado por escrito e naquela altura pelo
temporânea, em Manhattan. João Rendeiro e a sua BPP, surpreendeu a gestão e o núcleo duro acionista que me recordo disse que João Rendeiro não reunia
mulher eram apontados como patrocinadores. Jun- do banco Finantia, à data liderado por António Guer- as condições ou vocação para ter uma licença bancá-
tos, mais uma vez. reiro. Rendeiro, conta quem se lembra dos detalhes, ria.” Alípio Dias já conhecia Rendeiro de outras vidas
“Major support is provide by Maria de Jesus Ren- teve uma abordagem “extremamente hostil”: sem fa- e apesar de tudo “via nele mais capacidade e vocação
deiro and João Rendeiro”, lia-se na apresentação da lar com os principais acionistas, convenceu um grupo para gerir fundos” do que para ser banqueiro.
exposição na parte dedicada aos patrocinadores. Anri de minoritários, entre os quais investidores espanhóis O fundo que Rendeiro lançara no mercado de
Sala é um artista plástico albanês e em 2007 tinha es- e suíços, com cerca de 30% do capital, para uma uni- capitais era a Gestifundo e o lisboeta gabava-se, no
tado numa exposição coletiva na Fundação Ellipse. ão. A operação foi travada pelo Banco de Portugal e o primeiro livro que lançou “Testemunho de Um Ban-
A exposição em Nova Iorque era suportada funda- assunto morreu ali. Os acionistas maioritários do Fi- queiro”, que “as pessoas queriam subscrever o fun-
mentalmente por fotografias e vídeos que ocupavam nantia e a sua gestão ficaram contentes, Rendeiro não do à força”. “Atiravam cheques por baixo da porta”.
praticamente todo o museu. Entre os patrocinadores gostou. Perdeu a oportunidade de começar a ganhar Foi precisamente a Gestifundo que vendeu ao Totta
estavam a Luma Foundation, o Institut Français e a espaço no mercado da banca em Portugal. que lhe garantiu a autonomia financeira invejável à
V-A-C Foudantion. Antes disso (e depois disso), já havia o BCP. An- beira de fazer 40 anos. Ali ficou, mas a relação com o
Quando saiu a notícia sobre esta ligação, Rendeiro tes: Alípio Dias, ex-administrador do banco, afirma presidente, Alípio Dias, não foi fácil, e até houve au-
achou injustificado. “Vi, até fiquei bastante surpreen- ao Expresso que, tanto quanto lhe constou, Rendei- ditorias pelo meio com dúvidas sobre o trabalho de-
dido. Acho que a situação não justificava um relevo ro terá manifestado ao BCP, quando Jardim Gonçal- senvolvido por Rendeiro. Daí a não recomendação ao
tão grande. Com toda a franqueza achei um bocadi- ves era presidente do Conselho Geral e de Supervi- Banco de Portugal.
nho de provincianismo. Fiquei espantado com uma são, a intenção de uma fusão por absorção do BPP, Depois de ficar a gerir a Gestifundo, e de conti-
referência tão significativa. Acho que foi falta de no- mas a ideia nunca foi debatida. Depois: frustrada a nuar nessa função no Totta, decidiu sair. Sobre esse
tícias, se calhar o país está com falta de notícias. Po- papel, explicara ao “Jornal de Negócios” em 2006:
díamos fazer uma estatística: o número de notícias “Quando, sendo subordinado, você acha que pode
que saem sobre mim, sobre nada, sobre coisas que já fazer melhor do que a pessoa que está a mandar.” Foi
saíram dezenas de vezes, mas continuam a ser publi- daí que seguiu para o BPP. O banco de nicho, de in-
cadas como se fossem novidade. E isso é porquê?”,
questionou ao Sapo24. Uma “postura vestimento, que acabou tramado pelos mercados (e
pela gestão criminosa, dizem os tribunais). O alarme
Agora, as notícias sobre este filho único que as-
sumia ser mimado — e que não tem filhos — são so- arrogante”, no BPP soou no final de 2008. O prenúncio de mais
uma queda na banca chegou duas semanas depois
bre a sua fuga.
“uma notória da detenção de José Oliveira e Costa, condenado por
vários crimes enquanto presidente do então Banco
A ARROGÂNCIA E A AMBIÇÃO
De Lisboa para Nova Iorque ou Londres, foram muitas
ausência de Português de Negócios (BPN). Antes, rolavam já in-
vestigações sobre outro banco privado, o BCP, que
as viagens que fez, mas houve um envelope que por
cá ficou e por cá foi encontrado. Era precioso. Ali ca-
autocrítica e envolveu Jardim Gonçalves e os ex-administradores
da sua equipa, que envolvia offshores e aumentos de
biam 136 notas de 500 euros cada. 68 mil euros. Foi
logo considerado que aquele dinheiro resultava de
autocensura”: capital. Três bancos, três banqueiros com histórias
diferentes. Ou não?
atividade criminosa. Pretendia, ao manter o dinhei-
ro em casa, “obstaculizar a sua localização no siste-
qualificações “Para que é que lhe serve ter tanto dinheiro?”,
perguntou-lhe, em 2006, Anabela Mota Ribeiro,
ma bancário e a consequente perda de tal vantagem”,
disse o coletivo de juízas liderado por Tânia Loureiro
deixadas pelo para o “Jornal de Negócios”, quando tudo ainda es-
tava bem. “Serve-me para fazer coisas boas”, res-
Gomes que condenou o antigo banqueiro a 10 anos
de prisão por fraude fiscal, branqueamento e abuso
coletivo de pondeu João Rendeiro. Nesse ano, fazia o que queria
fazer. Mudar de vida não era algo que quisesse. “Mas
de confiança (ainda recorrível).
Nessa sentença, as juízas já denunciavam o seu
juízas que o porque é que havia de mudar de vida se gosto tanto
desta? Isso está completamente fora de questão.” Afi-
desinteresse pelo escrutínio da Justiça. Não se sabia
que ia fugir, mas era detetada a “ausência de arre-
condenou a 10 nal, mudou. b

pendimento e a postura arrogante e de desvalorização anos de prisão dcavaleiro@expresso.impresa.pt

E 30
No céu
não
se fala
inglês E 32
MICHELINE PELLETIER/CORBIS/GETTY IMAGES

J. M. Coetzee, o Nobel
sul-africano, considera a tradução
espanhola dos seus últimos livros
como a versão original dos mesmos.
Conversa, em exclusivo, com o
Expresso sobre um movimento
radical que critica o alastramento
e o poder da língua inglesa

TEXTO
LUCIANA LEIDERFARB

E 33
O
acrescentou. O que, acima de tudo, preocupa Co-
etzee é que o imenso sul esteja refém “dos guardi-
ões culturais do norte, que decidem que histórias
latino-americanas vão ser ou não traduzidas para
o inglês e que personalidades oriundas do sul vão
ser ou não promovidas; mais importante ainda, que
decidem que histórias escritas pelo sul sobre si pró-
prio serão ou não aceites no repertório da literatu-
ra mundial”, como explicou a Soledad Costantini,
a sua editora argentina, numa conversa pública em
Bilbau, em 2018. Na mesma ocasião, fez questão de
distinguir o “sul global”, isto é, filtrado e processa-
do pela globalização, de um hemisfério que, tendo
muitas variações em termos de clima, fauna e flo-
ra, “possui muitas filiações no que toca à história e
à cultura, incluindo uma longa e complexa história
de colonização”.
Nesse mesmo ano, J. M. Coetzee havia dado um
passo inusual, ao publicar “Siete Cuentos Morales”
que é uma língua? Somos a língua que falamos? Po- na Argentina, o país mais meridional do mundo, e
demos, simplesmente, num gesto semelhante ao de em castelhano. Estes contos, que já tinham apare-
despir um casaco, despirmo-nos da língua mater- cido em inglês dispersamente em publicações pe-
na? E pode um escritor fazê-lo, mesmo continuan- riódicas, tiveram de esperar bastante tempo para
do a escrever nela? Se existe um autor contempo- sair enquanto coleção na língua em que foram
râneo que se interrogou sobre isto como ninguém, escritos. Tal gesto carregava uma intenção e uma
esse autor é John Maxwell Coetzee. Não de início, mensagem: a de que, malgrado a inevitabilidade da
nos anos formativos ocupados pela construção de língua materna e a imersão precoce e involuntária
um caminho literário. Nem propriamente em voz num idioma — e, por conseguinte, num modo de
alta, não fosse ele o homem discreto e privado que, pensar —, é possível contrariar os desígnios dessa
em décadas, terá dado apenas uma mão cheia de imposição. É possível renegar uma língua, e ainda
entrevistas. Mas Coetzee, que recusou o palco que por cima fazê-lo em nome de uma ideia que se tem
ter ganho o Prémio Nobel da Literatura, em 2003, do mundo. O escritor sul-africano não conseguiu
lhe oferecia, e ignorou a atenção pública despertada deixar de escrever em inglês, mas optou por passar
por dois Booker Prize que nem se deu ao trabalho a publicar em castelhano. E porquê?
de recolher pessoalmente, foi menos silencioso na “A difusão do inglês é sobretudo uma ameaça
hora de fazer um movimento historicamente iné- para os restantes idiomas menos difundidos. À me-
dito: publicar os últimos dois livros em castelha- dida que o inglês se converte na língua franca uti-
no, baseado na decisão de transformar a tradução lizada no comércio mundial, os falantes distanci-
para a língua de Cervantes na versão original dos am-se dos seus idiomas nativos e adotam uma das
seus textos. chamadas ‘línguas do mundo’, em geral a inglesa,
O contexto geográfico que escolheu para o fa- e numa versão bastante simplificada”, explica Co-
zer também não é previsível, e para o esclarecer etzee ao Expresso, numa lenta conversa por escri-
impõe-se olhar para o itinerário pessoal do autor. to, a alternar entre o inglês e o castelhano, que teve
Sul-africano formado em Matemática na Cidade do lugar ao longo de 2021. “Uma língua é uma visão
Cabo, trabalhou em Londres como programador do mundo — isto é, o mundo é tal como é porque
informático da IBM e doutorou-se no Texas com o vemos através da língua —, e cada vez me sinto
uma tese sobre Samuel Beckett antes de regres- mais distante da visão do mundo proposta pelo in-
sar à África do Sul para ensinar inglês e literatura glês, que considero um idioma imperialista global.”
e de, mais tarde, optar por fazer isso mesmo em “Não tenho tempo para escrever um ensaio so-
Adelaide, na Austrália, onde reside. O Hemisfério bre a linguagem, mas a questão da língua materna
Sul chamou-o de volta sempre que ele empreendeu pode ver-se claramente no caso da Índia, onde há
viagem para norte, e é aí, mais do que em qualquer centenas de milhares de pessoas (oriundas de uma
outro lugar, que Coetzee se sente em casa. Em 2014, certa classe social) que se expressam totalmente em
isso traduziu-se no início de uma relação regular inglês, ainda que a língua da sua infância e dos pri-
com a Universidad Nacional de San Martín, em Bu- meiros anos de vida seja uma das línguas hindus.
enos Aires, onde, numa cátedra criada à sua medi- A noção de ‘língua materna’ torna-se problemática
da e com o seu nome, ministrava dois seminários neste ponto. O inglês tornou-se a língua global de
anuais sobre “Literaturas do Sul”, convidando co- facto, devido ao poder económico e político (e mi-
MICHELINE PELLETIER/CORBIS/GETTY IMAGES

legas sul-africanos e australianos a participar a fim litar) dos Estados Unidos, em particular na segunda
de estabelecer uma rede invisível que ligasse todos metade do século XX”, continua o autor. Por outro
estes países. E não sem uma costela crítica. lado, a própria noção de ‘língua materna’ é, para
“A definição de ‘sul’ que prevalece hoje em dia ele, discutível: “Devo dizer que, apesar de escre-
é formulada pelo norte. Não é uma definição que ver em inglês, o inglês não é a minha língua mater-
devamos aceitar sem questionamentos”, disse num na num sentido profundo. Por esta razão, a minha
DIVERSIDADE “A minha
ascendência é holandesa, alemã desses encontros na capital argentina, por sinal um atitude relativamente ao inglês é a de um outsider.”
e polaca. Não tenho uma gota no qual partilhava palco com os também sul-afri- “A minha ascendência é holandesa, alemã e po-
de sangue inglês nas veias. (...) canos Zoë Wicomb e Ivan Vladislavic. “Todos os laca. Não tenho uma gota de sangue inglês nas vei-
Escrevo e falo o inglês fluidamen- nossos contactos estão mediados por editoras do as. Os meus pais enviaram-me a escolas inglesas,
te, mas não tenho qualquer afeto Hemisfério Norte; eles decidem quem irá ser lido, onde a aprendizagem decorria em inglês (as En-
pela língua”, diz Coetzee traduzido e transmitido de um país para os outros”, glish-language schools, em que a escola é também

E 34
um meio de status social), uma prática que é muito já adiantar que tal não aconteceu. A edição ingle-
comum hoje em dia. Escrevo e falo o inglês fluida- sa da obra baseou-se no manuscrito inglês do es-
mente, mas não tenho qualquer afeto pela língua, critor, assim como muitas outras, entre as quais
e não me sinto nela emocionalmente em casa”, es- a portuguesa, realizada por J. Teixeira de Aguilar.
clarece Coetzee. Há anos diz saber que não há ver- Interrogada sobre o que terá motivado o mercado
dadeira razão para os seus livros terem de ser pu- editorial a optar justamente pela versão que o es-
blicados em inglês. “Repare que o inglês que utilizo critor pretendia deixar na sombra, a representante
nos meus últimos livros é até bastante neutral, abs- inglesa deste respondeu: “Nenhuma editora acei-
trato e desenraizado. Não tem raiz, poderia ser ou- tou a proposta de traduzir o livro do espanhol. So-
tra língua qualquer, traduz-se facilmente e pouco bretudo porque, por uma questão de consistência,
perde com isso. E não acho que o mundo de língua preferiram manter os mesmos tradutores das obras
inglesa me considere um dos seus representantes; anteriores de Coetzee.” Pela sua parte, o escritor
consideram-me tão estrangeiro como eu próprio confessa que as editoras internacionais eram “li-
me sinto nesse mundo.” vres” de fazer esta escolha ou seguir à letra as suas
Em 2021, J. M. Coetzee avançou ainda mais no indicações. Mas diz — e não é pouco — que o tra-
caminho de desprendimento da língua inglesa, balho com Elena Marengo deu origem a um texto
publicando o esperado último volume da Trilogia em castelhano que “reflete de modo preciso” as
de Jesus em castelhano. “A Morte de Jesus” — que suas intenções.
culmina a história iniciada em “A Infância de Je- Numa palavra, Coetzee precisou desse proces-
sus” e “Jesus na Escola” (todos editados em Portu- so de trabalho com a tradutora e com a língua de
gal pela D. Quixote) — aprofundava, por se tratar chegada para que o romance alcançasse a sua for-
de um romance, o gesto radical de apresentar uma ma final e definitiva, forma que não teria de outro
alternativa ao inglês como idioma de publicação. modo. “O romance ‘A Morte de Jesus’ foi escrito
Os contos anteriores tinham servido como ensaio e em inglês e traduzido para o espanhol com a mi-
preâmbulo de uma relação com uma tradutora com nha estreita colaboração. A versão em espanhol que
quem sentisse afinidade para trabalhar. Elena Ma- surgiu incorporou muita reescrita e é, em muitos
rengo, argentina e diretora do mestrado em Tradu- aspetos, diferente do original em inglês. Depois,
ção da Universidade de Belgrano, em Buenos Aires, retrabalhou-se a versão em inglês para a adaptar
tornava-se assim parceira de uma experiência sem à versão em espanhol. Portanto, considero esta úl-
precedentes no mundo da literatura moderna, em tima a versão primária, e a versão em inglês como
que um escritor de língua inglesa — por sinal um secundária”, especifica o escritor.
Nobel prolífico, com uma obra com mais de vin- A história desta ideia peregrina começou há
te títulos — pretende ser lido sobretudo em caste- uma década, quando a editora independente ar-
lhano, fixando a tradução para este idioma como gentina El Hilo de Ariadna convidou J. M. Coetzee
o ‘original’ a partir do qual as restantes traduções a publicar a coleção ‘Biblioteca Pessoal’, 12 livros,
serão realizadas. Mesmo para o inglês. prefaciados por ele, de autores essenciais na sua
Não está em causa se Coetzee foi ou não bem- vida literária — “não há nenhum escritor em quem
-sucedido neste projeto, isto é, se as traduções de Cervantes, Dostoiévski, Joyce ou Musil tenham dei-
“A Morte de Jesus” foram efetivamente feitas res- xado uma marca mais profunda do que em mim”,
peitando a sua vontade, a partir da versão caste- confessaria nessa oportunidade. Uma das tradu-
lhana. Aliás, e o leitor desculpará o spoiler, pode-se ções (“The Solid Mandala”, do australiano Patrick
White) foi atribuída a Elena Marengo, que consul-
tou Coetzee sobre alguns aspetos deste livro e con-
tinuou a trocar correspondência com o escritor.

“Apesar Anos depois, ambos se conheceram pessoalmen-


te em Buenos Aires, num encontro que juntou Co-

de escrever etzee aos tradutores de “Doubling the Point”, um


complexo volume de ensaios da sua autoria datado

em inglês, dos anos 90. Tratava-se do ponto de partida de uma


estreita relação entre um escritor e uma tradutora,

esta não é que prosseguiria com a versão castelhana de “The


Glass Abattoir”, que Marengo realizou. Este conto

a minha língua era, justamente, um dos sete “Moral Tales” que vi-
riam a tornar-se nos “Siete Cuentos Morales”, cuja

materna tradução para espanhol foi propositadamente edi-


tada muito antes do original em inglês. No entanto,

num sentido o romance “A Morte de Jesus” que, por vontade de


Coetzee fixava a tradução castelhana como original

profundo. A da obra — acima e antes do texto em inglês — situ-


ava toda a experiência num outro patamar.

minha atitude “Como tradutora, a situação foi nova e experi-


mental — para o dizer com sobriedade. No início

relativamente entrei em pânico e decidi recusar a proposta de


Coetzee. Depois, não sei bem como nem porquê,
mudei de opinião e literalmente mergulhei no pro-
ao inglês é a de jeto, embora nunca tenha perdido a noção de risco
que me provocava. É evidente que ninguém pode-
um outsider”, ria perceber cabalmente a pressão acrescida que a
situação insólita impôs, nem os meus esforços e os
afirma Coetzee de Coetzee em conciliar a intenção autoral com as

E 35
minhas modestas possibilidades. Mais tarde, com- para trás, ficam “limpos de passado” e só se possu- “Dom Quixote” a um grupo de órfãos. “Quem era
preendi que foi ele que correu o risco maior, ao em um ao outro e àquela língua que ainda não do- eu antes de começar a falar espanhol?”, “E se não
apresentar a sua obra sob uma roupagem por mim minam plenamente. “Estamos aqui pela mesma ra- houver novas vidas? E se eu morrer e não acordar?
confecionada”, diz Elena Marengo ao Expresso des- zão pela qual todas as outras pessoas estão. Deram- Quem serei eu se não acordar? Quem serei eu se
de Buenos Aires. -nos a possibilidade de viver e nós aceitámos essa morrer, simplesmente?”, interroga-se. Ele carre-
Durante a tradução, trabalhou quotidianamente possibilidade. É uma grande coisa, viver. É a maior ga uma mensagem, que outros clamarão estar em
com o escritor, ao ponto de trocarem vários e-mails de todas as coisas”, explica Simão a David. condições de a transmitir. Até ao fim, vai questio-
por dia durante quase três meses para discutir o Aprender uma língua é aprender a pensar nela, nar como se dizem as coisas noutra língua que não
texto “linha a linha”: “Foi um diálogo diário. Por dentro dela. E ambos se envolvem num diálogo so- aquela que o ocupa — e vai cantar uma “canção-
opção minha, além das consultas específicas, en- crático em que uma pergunta leva a uma resposta -mistério”, umas linhas do ciclo “Kindertotenlie-
viei a John os capítulos em espanhol. Ele lê o idio- mais profunda, e esta a outra pergunta. Estão a re- der” [Canções sobre a Morte das Crianças] de Gus-
ma, mas não o domina ao ponto de discriminar nomear as coisas e, nesse esforço, há um livro ca- tav Mahler sem saber de que língua se trata. A per-
questões de sintaxe e, sobretudo, conotações. Por pital para a moldagem do mundo, acima da cha- gunta “Por qué estoy aquí?”, a mais importante de
outro lado, o objetivo proposto era elaborar uma mada ‘educação formal’: um “Dom Quixote” de todas, surge-lhe, porém, em espanhol.
versão o mais ‘colada’ possível ao texto em inglês. Miguel de Cervantes numa versão ilustrada para Soledad Costantini, editora argentina de John
Esse caminho estreito e os consequentes desafi- crianças. David torna-se num rapaz interrogativo, M. Coetzee, vê a saída deste romance em castelha-
os implicaram que, muitas vezes, John tivesse que perplexo e insistente, avesso a imposições, cheio de no como uma evolução natural. “A ‘Trilogia’ está,
modificar o seu texto em inglês a fim de não forçar porquês, a quem é preciso dar respostas como esta: toda ela, situada no ‘além’ (para o dizer de algum
excessivamente a sintaxe ou a compreensão do es- “Uma regra é apenas uma regra. As regras não têm modo), num mundo depois da morte. Neste mun-
panhol. Mais: ele alterou muitas frases, parágrafos de se justificar a si próprias. Existem, simplesmen- do, acontece a língua franca não ser o inglês, mas o
e, em duas ocasiões, uma página quase inteira para te. Como os números. Não há porquê para os nú- espanhol. O espanhol é o idioma que todos devem
acomodar o inglês ao que mais convinha em espa- meros. Este universo é um universo de regras. Não aprender e falar. Os primeiros dois livros da Trilo-
nhol. Isto quer dizer que o original em inglês foi ele há porquê para o universo.” Porém, o mesmo não gia foram publicados em espanhol da forma usu-
próprio alterado durante a tradução.” acontece com as palavras. Com as palavras, podem al, enquanto traduções de livros primeiro editados
Para Elena Marengo, o aspeto mais inquietan- ocorrer fenómenos como o moinho de vento contra em inglês. Então, com o terceiro livro, John sugeriu
te prende-se com a definição do que é um original. o qual D. Quixote arremete ser na verdade um gi- que a atitude mais adequada — e também a mais
“Por melhor que a tradução estivesse feita, esta gante — e não o contrário, como se costuma achar radical — seria dar um passo ousado e publicá-lo
jamais poderia substituí-lo. Se o texto primordial — ou uma coisa poder ser verdadeira e ao mesmo na sua ‘língua natural’”, relata ela sobre uma tra-
em inglês desaparecesse, não haveria forma de o tempo não o ser (em “A Morte de Jesus”). Ou não dução que, face ao trabalho feito em conjunto por
apreciar nem de apreciar a tradução enquanto tal. haver “memória da memória”, ou as coisas não te- Coetzee e Elena Marengo, “constitui o verdadeiro
A versão em espanhol deixaria de ser uma ‘tradu- rem “de ser verdadeiras para serem verdade”. A romance, o romance final, o que entendo ser algo
ção’ e passaria a ser uma espécie de ‘texto origi- linguagem permite, exige, perguntas assim: “Quem único na literatura”.
nal’, o que geraria outro tipo de referências e asso- era eu antes de começar a falar espanhol?”, “Si- Como já aqui foi dito, o empreendimento fa-
ciações”, salienta. E mesmo tendo sempre intuí- món, como é morrer?”, “Porque é que eu tenho de lhou. “O livro ‘A Morte de Jesus’ publicou-se em
do que o empreendimento era “inviável” do ponto ser esse rapaz, Simón? Eu nunca quis ser esse rapaz 2019, em Espanha e na Argentina, e os agentes li-
de vista prático, ela concorda com o autor no que com esse nome.” terários ofereceram às editoras o texto em espanhol
toca ao posicionamento deste face à língua inglesa: No final da trilogia, David, esse rapaz raro e in- como o original a ser traduzido para aproximada-
“Como bem diz Anna Wierszbicka, ‘we are impri- quisitivo, com mais perguntas do que respostas, mente 20 idiomas. Na maioria dos casos, esta opção
soned in English’, estamos encarcerados, enjaula- cai doente, afetado por uma espécie de neuropa- não foi aceite: os editores internacionais preferiram
dos no inglês, até num sentido mais amplo. Não só tia que gradualmente o impede de se mexer. E, a esperar que saísse a versão em inglês e utilizar esse
os falantes de outras línguas nos vemos obrigados, partir da sua cama no hospital, passa a narrar o texto”, nota Soledad Costantini. A editora de El Hilo
cada vez mais, a ler, falar, publicar e até pensar em de Ariadna considera esta atitude “dececionante,
inglês. E não somos só nós que estamos encurrala- por não compreender o valor deste passo radical
dos: a jaula do inglês empobrece-nos a todos, in- que Coetzee estava a dar”, e afirma que a dimen-
clusive aos habitantes nativos do inglês, que agora
não precisam nem se dão à oportunidade de abrir- “[Coetzee] são geopolítica é uma questão essencial, uma vez
que, apesar de o escritor utilizar sempre o inglês
-se a outras línguas nem à sua em profundidade. O
seu repertório léxico, sintático e retórico tem vindo alterou para se expressar, “ele não pertence nem cultural
nem historicamente ao mundo anglófono, e sem-
a declinar bastante nas últimas décadas.”
Na verdade, a própria ‘Trilogia de Jesus’ não muitas frases, pre sustentou um olhar crítico face ao avance inu-
sitado desta cultura”.
está à margem desta visão geopolítica. É o próprio
Coetzee quem o diz ao Expresso: “A premissa básica parágrafos O norte tem andado a decidir o que o mundo
deve ou não conhecer e ler sobre o sul. Até há pou-
dos livros é que as pessoas se encontram de repente
numa ‘outra vida’ e têm de adaptar-se a ela. Nesta e, em duas co tempo, diz Costantini, um australiano só podia
ler obras latino-americanas se a tradução tivesse
outra vida, a língua falada não é o inglês (nem chi-
nês ou russo...), nem é uma espécie de ‘língua uni- ocasiões, uma sido encomendada por um editor de Londres ou de
Nova Iorque. Em grande parte, devemos essa mu-
versal’ como o esperanto, mas o espanhol. Há uma
certa convicção política no facto de criar um outro página inteira dança de paradigma ao caminho que John Max-
well Coetzee está a trilhar. É deste modo, com hu-
mundo — ou o mundo seguinte — no qual o idioma
oficial não é o inglês. Porque os falantes de inglês no para acomodar mor fino, que o grande escritor de 81 anos resume
a empreitada: “No início da ‘Infância de Jesus’, as
mundo de hoje vivem confortáveis na crença de que
o inglês é uma língua global, destinada a tornar-se o inglês ao que personagens principais desembarcam noutro mun-
do e são imediatamente enviadas para um acampa-
a língua universal do futuro.” Em “A Infância de Je-
sus”, somos levados pela mão de duas personagens, mais convinha mento onde tiram um curso intensivo de espanhol,
a língua do novo mundo. Porque é que enfatizo este
o pequeno David e o pai adotivo deste, Simão, ao ponto? Não para afirmar que, no céu, todos irão fa-
começo de uma nova vida em Novilla, onde rece-
bem nomes em espanhol e são urgidos a aprender
em espanhol”, lar espanhol. Mas para assinalar àqueles anglófo-
nos convictos de que no céu se fala inglês que, se lá
a língua. Vieram de barco, como tantos e tantos ho-
mens e mulheres ao longo da História, e começam
conta Elena chegarem, encontrarão uma surpresa.” b

do zero. Aos poucos, esquecem-se do que deixaram Marengo lleiderfarb@expresso.impresa.pt

E 36
É para a vida.
JOSÉ MIGUEL SARDO

E 38
Meirás
No Paço que
já não é
No interior da antiga
residência de férias
do ditador espanhol,
de Franco na Galiza, a sua terra
natal, conta-se pela
primeira vez uma história
atestada pelos tribunais.
Corrupção, espoliação,
falsificação e extorsão
numa visita ao
recém-aberto
Paço do Povo
TEXTO JOSÉ MIGUEL SARDO
E MARIA PIÑEIRO JORNALISTAS,
NA GALIZA

E 39
O
a iniciativa que, um ano depois, levaria a Xunta da Durante mais de um ano, esta iniciativa vai pagar as
Galiza a declarar o imóvel como BIC (Bem de Inte- dispendiosas obras às custas de contribuições “vo-
resse Cultural). Uma decisão que, sem retirar a pro- luntárias” forçadas com dinheiro de câmaras muni-
priedade aos Francos, obrigava a família a partilhar cipais, de munícipes assediados e mesmo com parte
o espaço com o público, nomeadamente com a obri- do salário dos trabalhadores, obrigados a contribuir
gação de organizar visitas regulares à propriedade. para a grande obra patriótica. Manuel Pérez Loren-
Desde julho, já não é um guia da Associação zo, o guia, é também o coautor do livro que reuniu
Francisco Franco mandatado pelos herdeiros do as provas decisivas para reabrir o debate público so-
ditador mas o próprio Benito Portela quem abre, to- bre a propriedade e iniciar o processo em tribunal
dos os dias, as pesadas portas do Paço para as pri- para contestar a titularidade reclamada pelos her-
meiras visitas guiadas desde a sentença judicial que deiros de Franco.
permitiu a devolução do imóvel ao Estado. E todos O livro “Meirás: Um Paço, Um Caudilho, Um Es-
os elementos do Paço que até há bem pouco ilustra- pólio”, coescrito com Carlos Babío Urqui, que tam-
vam a alegada grandeza do Caudilho durante o seu bém participa na visita guiada, revelava em 2017, com
percurso, do seu brasão pessoal aos vastos terrenos base em documentos de época quase perdidos nos ar-
e jardins, contam agora as engrenagens que levaram quivos, como o ditador efetuou várias compras fictíci-
o militar golpista a defraudar o próprio Estado que as, falsificando assinaturas ou obtendo-as pela força,
afirmava representar, como “uma simulação de uma para tentar passar para seu nome não só o Paço como
operação de compra e venda com o único objetivo vários terrenos circundantes. O combate dos histori-
imponente portão do Paço de Meirás já não é inul- de inscrever o imóvel a seu nome”, evocada na sen- adores e os nomes dos espoliados são agora parte da
trapassável. Francisco Franco tinha mandado co- tença de setembro de 2020. história que hoje se conta durante as visitas a Meirás.
locar as portas do quartel do Castelo do Alcázar de
Toledo na entrada principal do seu local de vera- UM SAQUEIO DE DÉCADAS DAS TORRES DE BAZÁN AO PAÇO DE FRANCO
neio, no norte da Galiza, onde instalou a sede de ve- “Bem-vindos àquela que é a vossa casa, ainda que Na visita fala-se do ditador, mas também da escritora
rão do regime de 1938 até pouco antes da sua morte, provisoriamente”, é assim que Manuel Pérez Loren- realista galega Emília Pardo-Bazán, a antiga proprie-
em 1975. O portão de ferro maciço que bloqueia o zo saúda o pequeno grupo de visitantes que atravessa tária do Paço neomedieval, idealizado por ela nos fi-
acesso à propriedade que o ditador remodelou à sua o pesado portão de entrada do Paço de Meirás. Se o nais do século XIX. O percurso guiado pelos histo-
medida — e em grande parte às custas do Estado — jovem historiador de Sada diz hoje a palavra “provi- riadores vai falar também de Josefa, uma das arren-
era o símbolo de uma vitória militar decisiva contra soriamente” e se a visita não vai percorrer a totalida- datárias de um terreno circundante que foi expulsa
as forças da República Espanhola, semanas depois de das duas imponentes torres é porque a devolução de casa sem qualquer compensação para que Fran-
de Franco lançar o golpe militar de 1936. Detrás do ordenada pela Justiça não inclui o recheio do Paço. co pudesse alargar os seus domínios. Sobre a facha-
mesmo portão, as tropas sublevadas da Academia “Os Francos poderiam a qualquer momento entrar da principal de uma das torres, é impossível não fa-
Militar de Toledo tinham resistido durante dois me- por aqui e levar os objetos e esculturas do imóvel”, zer coincidir na História as duas personalidades que
ses ao cerco das autoridades republicanas, até serem sublinha Manuel. O acesso do público à biblioteca as habitaram, quando Franco mandou gravar o seu
resgatadas pelo próprio Franco, que poucos dias de- construída por Franco, à sala de festas onde se reu- escudo familiar, totalmente inventado, sob o escudo
pois era proclamado chefe do Estado. nia o Conselho de Ministros da ditadura e mesmo às da proprietária original, também condessa, e a sua
O portão de ferro com marcas de balas dos tem- 19 casas de banho do edifício está dependente ainda “varanda das musas”, de inspiração romântica. “É
pos em que cantava a invencibilidade do “generalís- de um novo processo judicial sobre a titularidade do curioso pensar que o edifício está decorado com qua-
simo” revelou-se quase tão resistente durante a di- recheio, depois de o Ministério Público ter ordenado dros da família de Emília Pardo-Bazán e que Franco,
tadura como em democracia — passado em herança um inventário geral, também disputado pelos her- quando aqui chegou, decidiu mantê-los nas paredes,
à filha e aos sete netos do ditador, até ter finalmente deiros do ditador. Despejados por ordem do Supre- como se fossem os seus próprios familiares. De cer-
cedido em setembro do ano passado, desta vez sob mo, os Francos conseguiram, no entanto, ver reco- ta forma quis apropriar-se da linhagem da autora.”
o peso da Justiça e sem um único disparo. Depois de nhecido o seu direito aos bens móveis do Paço, uma A divisa da escritora, contemporânea de Émile Zola
décadas de protestos, vários processos em tribunal e vez que o Estado se tinha limitado a pedir a devolu- e Eça de Queirós, amiga de Teófilo Braga e íntima de
uma investigação histórica com provas e argumen- ção da propriedade sem precisar o recheio da mesma. Miguel de Unamuno — “a luz na batalha” —, perma-
tos decisivos sobre a apropriação indevida da família Ao longo da visita guiada, as estátuas do Pórtico nece inscrita num vitral no interior da casa, ao lado
Franco, os juízes do Supremo reconheciam o Estado da Glória da Catedral de Santiago de Compostela, a dos retratos e bustos sombrios do ditador. Uma das
como proprietário legítimo daquela que foi precisa- pia batismal românica do Convento de Moraime ou os imagens do Caudilho foi estrategicamente colocada
mente uma residência oficial durante o regime di- diversos conjuntos escultóricos antigos de que Franco no cimo da escadaria principal, sob um vitral com a
tatorial, doada a Franco enquanto chefe de Estado e e a mulher se foram apropriando ao longo do regime, árvore genealógica da família Pardo-Bazán.
gerida com dinheiro público. primeiro em nome do Estado e depois em seu próprio Quando Franco ambicionou inscrever-se na
Desde o início de julho e pela primeira vez des- nome, são hoje parte dos 697 bens móveis ainda dis- História de Espanha, também como senhor de um
de o fim da ditadura, a chave que abre o portão do putados em tribunal. As obras com que o Caudilho Paço galego, não imaginou que décadas mais tarde
Paço está nas mãos de um homem democratica- se coroou em Meirás são peças de um processo ain- o percurso através do que deixou de herança se tor-
mente eleito, Benito Portela, o presidente da Câma- da em aberto sobre um alegado saqueio de décadas, naria um retrato não das luzes mas das sombras da
ra de Sada e representante do novo proprietário do que se inicia com uma doação em 1938, quando um sua batalha pelo poder. Depois de passar pelo “pa-
imóvel, o Estado espanhol. “Se hoje este local é um grupo de personalidades da Corunha decide oferecer çinho”, uma réplica em ponto pequeno do primeiro
bem público é antes de mais graças aos coletivos um presente ao recém-proclamado chefe de Estado, Paço construído em Meirás, com água corrente e uma
de defesa da memória das vítimas do franquismo e um presente que Franco ambicionava há muito para verdadeira cozinha económica onde brincava a filha
também aos investigadores e historiadores que com- si, um Paço senhorial na sua terra natal. “Aceito com única do ditador, o guia detém-se em frente a um
pilaram as provas de uma espoliação, sem esquecer gosto, especialmente porque se trata de um presen- imponente banco de granito esculpido. “Aqui temos
o papel do poder público, que iniciou e apoiou o pro- te dos meus conterrâneos”, escrevia o ditador para um perfeito retrato da ditadura e do ditador”, afirma
cesso judicial”, recorda o alcaide. Benito fala de uma agradecer o obséquio das personalidades agrupadas Manuel. O banco é formado por várias peças esculpi-
“vitória rotunda que devolveu o Paço ao povo”, sem na então denominada Junta Pró-Paço do Caudilho. das que, à semelhança de outras que vamos cruzan-
esconder “um grande orgulho pessoal”. Na grande Depois da compra por 400 mil pesetas e da doa- do pelos jardins, foram montadas com uma ordem
corrente que permitiu a devolução do Paço de Meirás ção, a remodelação idealizada pelo casal Franco decidida pelo próprio ditador, por vezes distante da
ao Estado, desde uma investigação científica a um vai revelar-se megalómana, segundo os elementos sua função original. Neste banco, Franco colocou na
consenso histórico no Parlamento galego para pedir compilados pelos historiadores, obrigando a Junta base, como simples pilares a sustentarem a estrutura,
a devolução do Paço, o edil de Sada foi decisivo para Pró-Paço a recorrer à solidariedade dos concida- duas imponentes gárgulas originárias do Paço barro-
obter uma primeira vitória em 2007, quando lançou dãos com o lançamento de uma subscrição pública. co das Torres de Bendaña, cujos únicos vestígios se

E 40
residente em Meirás, tinha sido expulsa da sua casa
em 1939, quando o ditador decidiu expandir os seus
domínios a vários terrenos circundantes para cons-
truir uma estrada e isolar-se dos vizinhos. “De um dia
para o outro, um grupo de falangistas surge na casa da
minha avó para anunciar-lhe que tem uns dias para
abandonar os terrenos e a casa em que vivia, uma vez
que iria ser anexada aos domínios do Paço.”
Dois anos mais tarde, quando estala a Segunda
Guerra Mundial e Franco começa a temer que o seu
regime possa ceder ao avanço dos aliados, o ditador
decide passar para seu nome a propriedade que ini-
cialmente lhe tinha sido doada enquanto chefe de
Estado assim como os terrenos entretanto anexados.
Em 1941, a avó de Carlos Babío e dezenas de outros
EL SA RD O

proprietários e arrendatários expropriados são con-


vocados por um notário para assinarem a venda
JO SÉ MI GU

dos terrenos, sem pagamento, mas com ameaça de


represálias. Entre os convocados do notário esta-
va a herdeira de Emília Pardo-Bazán, que voltava a
assinar a venda do Paço, mas desta vez a Francisco
Franco como particular e por apenas 85 mil pesetas.
Era destes documentos que os descendentes do
ditador se valiam até hoje para defender o seu esta-
MEMÓRIA O busto de Franco colocado tuto de proprietários, o mesmo estatuto que os tinha
sob o vitral com a árvore genealógica levado em 2018 a colocar o imóvel à venda por 8 mi-
dos Pardo-Bazáns; Francisco Franco em 1948 lhões de euros. Foram estes documentos que condu-
ziram Babío da sua história familiar de expropriação à
investigação sobre a totalidade da espoliação do Paço
encontram hoje espalhados pela propriedade, como de Meirás. Aos arquivos recolhidos durante 22 anos
uma balaustrada e uma fonte barroca, bancos e vá- pelo investigador, que provam que a propriedade era
rias esculturas. Na tentativa de seduzir o ditador a es- gerida como uma residência oficial do Estado desde
colher a localidade de Dodro para se instalar na Gali- a instalação de Franco, somou-se a prova-chave do
za, os responsáveis locais tinham oferecido a Franco processo, obtida pelo Ministério Público, que levou
o Paço barroco-compostelano dos séculos XVI-XVII. a Justiça a anular a venda de 1941, considerando-a
Mas o Caudilho, decidido a instalar-se em Meirás, uma “simulação”: a primeira escritura de 1938, as-
optou por desmontar o edifício da sua localização sinada já pela ex-proprietária, que vendia o imóvel à
original e transportá-lo, peça por peça, para os seus Junta Pró-Paço com o fim de presenteá-lo ao chefe
novos domínios, onde nunca deixou de acumular os de Estado e não a Franco a título pessoal.
seus “troféus de guerra”, muitas vezes com um gos- No auto de acusação do processo judicial aberto
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to duvidoso, mas quase sempre sem escrúpulos em em julho de 2019 contra os herdeiros do ditador, o
tentar adaptar a lei à sua vontade. Ministério Público sublinhava a natureza do “acordo
À saída da capela do Paço, um cruzeiro de pedra fraudulento” de 1941, evocando “um negócio simu-
oriundo da cidade da Corunha conta também como lado” e uma “falsificação de um documento públi-
o poder de Franco podia revelar-se menos impla- co”. Um ano depois do início do processo, os tribu-
cável com alguns ilustres do que com os cidadãos nais reconheciam o Estado como o único proprietá-
comuns. O cruzeiro é uma réplica que a Câmara da rio do Paço de Meirás e não o ditador, que, com base
Corunha teve de mandar construir no final dos anos nas provas recolhidas pela investigação, teria agido

Ainda por 30 para evitar que o original, propriedade de uma fa-


mília ilustre da cidade, terminasse nas mãos do di-
como se estivesse acima de todas as leis.
A visita do Paço inclui ainda uma paragem junto

investigar tador. No interior da quinta que acolheu visitas ofi-


ciais de chefes de Estado como Salazar, em 1950, ou
ao terreno que pertencera a Josefa Portela e também
em frente a outro que ainda hoje pertence à família

está também o rei Abdulá de Marrocos, o ditador que se afirmava


como o mais alto representante do Estado era o mes-
Franco. “Este terreno pertencia a um cidadão nor-
te-americano que Franco não podia forçar a assinar

o paradeiro de mo que não hesitava em utilizá-lo em seu benefício


pessoal como patrão de uma empresa agrícola cria-
a venda. Então organizou com ele uma permuta por
outro terreno, e esse documento de permuta serve

vários objetos da em Meirás com o único objetivo de alimentar as


suas contas pessoais. Dos salários dos trabalhado-
hoje aos herdeiros como um certificado de compra”,
explica Manuel Pérez Lorenzo.

que teriam res agrícolas da exploração, especialmente deno-


minados “guardas civis hortelões”, às vacas leitei- UMA HISTÓRIA AINDA INCOMPLETA

desaparecido ras holandesas e sementes desviadas do Ministério


da Agricultura, o Estado financiava uma atividade
Dos jardins ao vestíbulo da casa, uma das poucas zo-
nas acessíveis do interior do edifício, a visita prosse-

durante um cujos lucros nunca regressavam aos cofres públicos. gue à sombra de um coqueiro do Chile, uma árvore
centenária e única na Galiza, com mais de 70 metros
A VITÓRIA DE JOSEFA PORTELA de altura. Segue-se um bosque de bambus e um cor-
estranho Entre o grupo de historiadores que ajudaram a com-
pletar a história do Paço de Meirás, Carlos Babío tem
redor de magnólias, onde a paisagem romântica ima-
ginada pela família Pardo-Bazán — com uma das tor-
incêndio no uma razão pessoal para falar de justiça histórica en-
quanto acompanha o grupo de visitantes. A avó do
res batizada como “A Quimera”, o título de uma obra
da escritora — se cruza com as obras de arte acumu-
Paço, em 1978 escritor e investigador, uma viúva com cinco filhos ladas pelos Francos. Na capela do Paço, redecorada

E 41
por Carmen Polo, a mulher do ditador, duas estátuas O historiador lembra como, em outubro de 2019, apenas “bens de uso pessoal”, uma designação que
de grande envergadura centram todas as atenções. As a remoção dos restos de Franco do seu mausoléu — o incluiria praticamente todo o recheio e mesmo os
duas figuras do século XII, originárias do Pórtico da Vale dos Caídos — foi realizada quase sem protestos bens protegidos, como as conhecidas estátuas. A
Glória da Catedral de Santiago de Compostela e que sociais. “Este Paço terá sempre de contar a história próxima audiência sobre a propriedade dos bens
representam os personagens bíblicos Abraão e Isaac, de Franco, mas em democracia, a história dos usos e móveis está prevista para o início de janeiro, no tri-
teriam sido mais um dos muitos presentes que en- práticas da ditadura, da corrupção à espoliação, e a bunal da Corunha, onde o Estado reclama 133 bens,
grossaram a fortuna pessoal dos Francos, desta vez vitória democrática que é fazer com que os tribunais 55 dos quais disputados pelos herdeiros de Franco.
por iniciativa do então presidente da Câmara de San- reconheçam a ilegalidade da situação.” O Ministério O Governo autonómico da Galiza reclama, por sua
tiago, que, em 1948, tinha dispensado o equivalente a da Presidência do Governo espanhol desbloqueou 50 parte, o estatuto de Bem de Interesse Cultural para
360 euros para poder realizar o obséquio ao ditador. mil euros para uma primeira exposição, denominada 49 bens, o que impediria, pelo menos, a sua remoção
Hoje, o município de Santiago tenta, pela via ju- “Meirás: O Caminho da Memória”, que está paten- para fora da comunidade e possivelmente do Paço.
dicial, reaver as duas peças, que chegaram a figurar te desde outubro no edifício e que recompila o novo O tempo da História é lento, e o capítulo do Paço
numa exposição da Câmara, nos anos 50, como “pro- guião da visita: das origens do Paço no século XIV às da ditadura está ainda longe de estar concluído na
priedade privada”. “É um processo que vai bastante torres da escritora Pardo-Bazán, passando pela era barra dos tribunais, mas a chave do edifício está na
avançado ao nível da recolha de elementos”, garan- franquista, sem esquecer o processo de devolução ao mão de Benito Portela, que espera “que seja o iní-
te Emílio Grandío Seoane. O professor de História da Estado com os seus argumentos históricos. cio de um processo para resgatar outros bens que
Universidade de Santiago faz parte do grupo de in- A incerteza da decisão judicial sobre o recheio de foram indevidamente apropriados por Franco e a
vestigadores envolvido nos processos judiciais que re- Meirás não impede que os protagonistas evoquem oligarquia que o rodeava”. O presidente da Câmara
clamam a devolução dos bens móveis do edifício, mas um modelo de intervenção que poderia abrir ou- de Sada e a Xunta da Galiza já apresentaram um re-
também de outra residência emblemática dos Fran- tros expedientes ao longo de todo o país, e mesmo curso contra a decisão da Justiça que reconhece um
cos na região, a Casa Cornide, na cidade da Corunha, além-fronteiras, na recuperação dos bens espolia- direito de indemnização aos herdeiros do ditador e
outro obséquio camarário ao “generalíssimo”. “Sem dos pelas ditaduras. Para o historiador Manuel Pérez desde o início de outubro que o município alargou o
uma sentença firme dos tribunais não podemos falar Lorenzo, que termina a visita com uma fotografia de horário de abertura ao público com três visitas diá-
de vitória, e esta nunca estará completa sem a devo- grupo frente às duas torres do Paço, “os passos fun- rias, de quarta-feira a domingo. Nas primeiras duas
lução de todos os bens de que os Francos se apropria- damentais que demos até hoje deveriam ser de difícil semanas de visitas em julho, 300 pessoas puderam
ram indevidamente”, sublinha o professor de História retorno se conseguirmos visualizar este espaço como percorrer a propriedade, entre representantes do Es-
Contemporânea, que tem razões para ser prudente. um espaço de cidadania e de Direito”. O investiga- tado, vários familiares de vítimas da ditadura e mes-
A sentença que obrigou à devolução do Paço, sem dor Carlos Babío prefere ressaltar a preocupação mo o grupo de 19 ativistas que se encontra ainda em
os bens que fazem parte do recheio, prevê também atual dos protagonistas: “É importante que o Esta- tribunal por ter invadido o espaço para reclamar a
uma indemnização aos Francos para compensar o di- do apresente um recurso judicial sobre os bens mó- sua devolução em 2017. Entre os primeiros visitantes,
nheiro investido em Meirás desde 1975, considerando veis e que, entretanto, o Governo autonómico possa a irmã de Humberto Baena, um dos últimos prisio-
que “não agiram com má-fé” ao ocuparem o espaço incorporar o atual inventário no estatuto de Bem de neiros executados pela ditadura, pôde deslocar-se
“de forma pública, pacífica, continuada e na quali- Interesse Cultural atribuído a Meirás. Isto evitaria ao local onde foi assinada a sentença de morte, du-
dade de donos durante quatro décadas”. Ainda por que os Francos pudessem retirar os bens do interior rante o último verão do regime em Meirás.
investigar está também o paradeiro de vários objetos do edifício, como as estátuas do Pórtico da Glória.” A cada nova visita do Paço completa-se a memó-
que teriam desaparecido durante um estranho incên- Até hoje, os herdeiros de Franco, pela voz dos ria e retoma-se a História, da Junta Pró-Paço do Cau-
dio em 1978, como uma virgem do século XII que de- seus advogados, afirmam querer retirar do Paço dilho, que financiou o presente ao chefe de Estado em
corava o retábulo da capela ou os 17 mil volumes da 1938, ao movimento fundado em 2017 para agrupar
biblioteca de Emília Pardo-Bazán, dos quais restam todos aqueles que seriam protagonistas da sua devo-
apenas cerca de 4 mil, segundo o único inventário ao lução, batizado Movimento Pró-Devolução do Paço
recheio realizado por ordem judicial em novembro.
Alguns desses milhares de livros teriam sido uti- No auto de Meirás. O Movimento, que inclui um representan-
te do Governo central, os municípios da Corunha e
lizados para decorar a casa onde nasceu Franco, em
Ferrol, a algumas dezenas de quilómetros da Coru- de acusação Sada, a Universidade da Corunha e associações de de-
fesa da memória das vítimas do franquismo, orgulha-
nha, em especial as obras de língua inglesa, selecio-
nadas por Carmen Polo, mesmo sem entender o do processo -se de ter conseguido reconciliar todos os interesses
em torno de um objetivo comum, algo extremamen-
idioma. “É claro que este é um lugar simbólico para
a família Franco, que lutou até ao final para o man- judicial aberto te raro num debate sobre a memória do franquismo,
habitualmente altamente polarizado em Espanha.
ter nos seus domínios, e por isso a decisão da Justiça
tem um valor importante. Tem de ser tomado como em julho Em julho de 2019, todas as forças políticas repre-
sentadas no Parlamento galego aprovavam em unís-
um lugar muito pessoal do ditador”, sublinha Emí-
lio Grandío, que também integra o grupo que analisa de 2019 contra sono uma proposta de lei para pedir ao Governo que
solicitasse a devolução ao Estado do Paço de Meirás,
o uso a dar a Meirás.
os herdeiros concluindo uma longa era de protestos e iniciando
outra era nos tribunais. Em junho deste ano, a vi-
O QUE FAZER DO PAÇO DE MEIRÁS?
No dia da visita ao Paço, vários dos protagonistas da do ditador, ce-presidente do Governo espanhol deslocava-se a
Meirás para participar na cerimónia oficial de de-
luta pela sua devolução estão reunidos em Sada, a
poucos quilómetros de Meirás, a discutir que futuro o Ministério volução do Paço ao Estado, oficializando um acordo
entre cinco administrações — Governo de Espanha,
dar à nova propriedade do Estado. No debate “Que
Fazer com os Lugares de Memória do Franquismo?” Público Xunta da Galiza, Deputación da Corunha, municípi-
os da Corunha e Sada —, governadas por cinco par-
fala-se da importância de recordar os espoliados e
as vítimas, mas também de revelar as práticas até sublinhava tidos políticos diferentes (PSOE, PP, Bloco Naciona-
lista Galego, Unidas Podemos e Sadamaioria), para
hoje menos documentadas da ditadura. Se alguns
temem que o regresso à cena da extrema-direita em a natureza partilhar a gestão da propriedade pública. “Não acho
que esta sentença judicial seja apenas uma conquis-
Espanha possa atrasar o processo histórico, outros, ta nossa, é também uma necessidade da sociedade
como Emílio Grandío, acreditam que o consenso em
torno da devolução de Meirás revela, antes de mais,
do “acordo que, em tempos de mudança, tem tendência a olhar
para o passado porque não entende o presente”,
uma sociedade espanhola mais madura para falar do
passado ditatorial, quatro décadas após a transição
fraudulento” confessa Emílio Grandío. b

para a democracia. de 1941 e@expresso.impresa.pt

E 42
Entrevista
Dave Grohl

Adoro a vida
e dou o meu
melhor para
não a perder”
Líder de uma das maiores bandas do mundo,
os Foo Fighters, Dave Grohl será também, para sempre,
o baterista dos Nirvana. Comummente considerado
“o tipo mais simpático do rock”, é certamente um dos mais
trabalhadores. Quando a pandemia chegou, sentou-se
a escrever a história da sua vida. Ao Expresso, abriu o livro

POR LIA PEREIRA

E 44
E 45
FOTOGRAFIAS MAGDA WOSINSKA
E
um punk mas, lido este seu primeiro que eu escreva.” E ela dava-me traba-
tomo (ele garante que tem muitas ou- lhos de casa: escrever sobre a minha
tras histórias para contar), uma coisa infância, ou sobre os Nirvana, ou so-
é certa: o que o liga à terra é a famí- bre ser pai, ou sobre os Foo Fighters.
lia, da mãe professora de liceu e eter- Eram textos pequenos, de cinco ou
na lutadora às filhas, Violet, Harper seis mil palavras. Foi fácil: uma vez
e Ophelia, por quem certa vez deu a por mês, escrevia duas ou três histó-
volta ao mundo num dia para assistir rias — até que o livro começou a ga-
a um baile de escola. nhar forma. É muito parecido com
fazer um disco: quando vamos para
Acaba de lançar “The Storyteller”, estúdio fazer um disco, temos uma
a sua autobiografia. Qual a sensação coleção de canções e não sabemos em
de ser, agora, um autor? Depois de que ordem é que vão aparecer. Mas
músico e autor de documentários, é queremos que haja uma sequência
também escritor... do início ao fim. Escrever o livro foi
Toda a minha vida escrevi coisas. como se estivesse a escrever canções,
Quando era mais novo e andava em e no final lá encontrámos uma ordem
digressão, tinha diários. Adorava cor- que fizesse sentido.
ram 10h da manhã em Los Angeles responder-me com amigos, mandan-
quando Dave Grohl atendeu a cha- do cartas escritas à mão e postais, e A sua editora dava-lhe indicações de
mada Zoom do Expresso. Acompa- quando apareceu o e-mail, adorava temas que ainda não tivesse aborda-
nhado por uma chávena da sua ‘dro- corresponder-me com o meu pai, do e sobre os quais deveria escrever?
ga’ de eleição, o café, o vocalista e que era escritor. Ele era jornalista e Um pouco. Às vezes eu escrevia sobre
patrão dos Foo Fighters respondeu escritor de discursos [para o Partido algo levezinho, episódios engraçados,
abertamente a todas as perguntas Republicano]. Eu mandava-lhe re- e ela dizia-me: “Tens de encontrar o
sobre a sua vida e carreira. O pretex- cados da estrada e ele mandava-me âmago disto, tens de perceber por-
to? A edição de “The Storyteller”, a recados de casa, e foi por essa altura que é que isto é importante emocio-
sua primeira autobiografia. Compos- que aprendi verdadeiramente a es- nalmente.” Então eu tentava perceber
to por pequenas histórias, relativas a crever. Penso que, sem o saber, o meu porque é que aquela história era rele-
momentos e pessoas determinantes pai estava a ensinar-me a escrever vante e qual a sua qualidade emocio-
no seu percurso, o livro já está dispo- na minha própria voz. E a certa altu- nal. Tive muita sorte: a minha edito-
nível em Portugal, com o título “The ra disse-me: “David, estás a tornar- ra tem mais ou menos a minha idade,
Storyteller — Histórias de Vida e de -te um grande escritor. A tua escrita cresceu na Virginia, como eu, ouve a
Música” (Ed. Marcador), e é, acima de tem impacto, e impacto é poder.” Isto mesma música que eu, e percebeu o
tudo, uma carta de agradecimento a para mim foi uma grande validação: o tipo de pessoa que eu sou. Criámos
todos os que lhe permitiram seguir o meu pai, que era um grande escritor, uma ótima relação e divertimo-nos
sonho de fazer do rock a sua missão. dizer-me que eu também me estava muito a fazer o livro. Mas foi difí-
Nascido há 52 anos numa pequena a tornar um escritor. Até agora nun- cil decidir o que pôr no livro ou não,
cidade do Ohio, e criado na pacata ca tinha tido tempo de escrever um porque quando cheguei às 350 pági-
(aos seus olhos de adolescente, en- livro e também acho que ainda não nas, ela disse: “Para de escrever!” E
fadonha) Springfield, no estado de estava pronto. Se há dez anos alguém eu: “Mas isto não é a história toda!”
Virginia, o músico norte-americano me oferecesse um contrato para es- E ela: “Não podes escrever a história
aproveitou o inesperado tempo livre crever um livro, se calhar eu diria: toda de uma vez, vais ter de escrever
trazido pela pandemia para parti- “Ainda não vivi o suficiente, deixem- outro livro!”
lhar episódios que o moldaram, das -me viver mais um pouco e depois já
historietas mais divertidas às perdas posso escrever.” Quando a pandemia Quais foram as recordações mais di-
mais pesadas. A entrada nos Nirvana apareceu, no ano passado, eu não ti- fíceis de revisitar?
e consequente ‘promoção’, de mú- nha nada para fazer. A banda tinha O capítulo mais difícil de escrever foi
sico que tocava em bares a bateris- acabado de gravar um disco, devía- o da morte do Kurt [Cobain, líder dos
ta da banda que revolucionou o rock mos entrar em digressão e foi tudo Nirvana, que se suicidou em 1994]. E
dos anos 90, tem naturalmente hon- cancelado. Foi aí que percebi: é agora estava com medo de o escrever, por
ras de destaque, assim como a mor- que me posso sentar e escrever todas isso esperei até ao último minuto, até
te de Kurt Cobain, o líder dos Nirva- estas memórias. E adorei, foi ótimo. que a minha editora me disse: “Tens
na para cujo suicídio Dave Grohl não de ter isto pronto amanhã.” Então
tem, ainda, respostas. “Toda a gente Quanto tempo demorou o livro a ser fechei a porta do quarto e comecei
tem tantas perguntas — e eu tam- escrito? a escrever. Foi difícil escrever sobre
bém tenho! — sobre a morte do Kurt. Foi escrito ao longo de um ano e meio. coisas de que nunca falei. Vê-las no altura, era falso alarme. Quando ele
Então não quis escrever sobre o que Mas não escrevi as histórias por or- papel trouxe-me muita clareza de es- efetivamente morreu, um mês de-
as pessoas quereriam saber, mas sim dem cronológica. Tudo começou com pírito, mas também tristeza, por ve- pois, ficou de certa forma apático,
traçar um quadro mais geral sobre uma página de Instagram chamada zes alívio... E, enquanto escrevia, tive sem conseguir reagir. Por isso es-
como lidar com a perda de alguém”, “Dave’s True Stories”. Fiz uma lista algumas revelações sobre coisas que creve que “não há formas certas ou
explicou ao Expresso o homem que de 30 ou 40 histórias para escrever nunca tinha explorado. Foi bom e de erradas de fazer o luto”...
acaba de ver os Foo Fighters, a banda nessa página, e quando me apercebi certa forma terapêutico falar sobre É estranho, porque quando perdemos
que criou após o fim dos Nirvana, e que a pandemia ia durar muito tem- estas coisas. alguém, é difícil sorrir. E quando sor-
na qual assumiu o papel de frontman, po, assinei um contrato com uma rimos, quase nos sentimos culpados.
entrar no Rock and Roll Hall of Fame. editora livreira e mandei essa lista Nesse capítulo, explica que chorou Mas vais ter de viver com isto para o
Depois de tanto sucesso, Dave Grohl à minha editora, dizendo-lhe: “Es- muito quando alguém lhe disse que resto da tua vida. Naquele momen-
não sabe se ainda se pode considerar colhe os temas sobre os quais queres Kurt Cobain tinha morrido. Mas, na to, ficas de coração partido, mas vais

E 46
É uma boa pergunta, não sei respon- enfiado numa carrinha pequenina,
der a isso. Era um mundo tão diferen- ou nos bastidores. Ou estamos sen-
te... Já foi há 30 anos, uau! tados lado a lado num avião, ou num
palco minúsculo... estamos sempre
Em 1992, deu uma entrevista ao jor- muito próximos uns dos outros. Mas
nal “Blitz”, antes do concerto dos quando os Nirvana se tornaram po-
Nirvana em Cascais. Na altura, dis- pulares, isso foi um desafio diferente
se que os Nirvana eram jovens, um para cada um de nós. Então, cada um
bocado estúpidos e faziam muito fugiu para os sítios onde se podia es-
barulho... conder. O Krist [Novoselic, baixista]
Acho que estava a falar por mim! foi para Seattle, eu para a Virginia e
[risos] o Kurt para Los Angeles. E essa foi a
primeira vez que nos separámos, em
Também dizia que, apesar do imen- vez de vivermos todos juntos num
so sucesso que tinham na altura, os apartamento pequenino, como tí-
Nirvana não eram líderes de qual- nhamos feito até então. A partir do
quer movimento musical. Era o que momento em que cada um teve a sua
sentia? casa, começou uma certa separação
No nosso mundo, na cena under- logística. Quando voltávamos a pe-
ground, o que andávamos a fazer não gar nos instrumentos e começáva-
era muito diferente do que os nossos mos a tocar, a sensação era ótima.
heróis faziam nas bandas punk rock Estava tudo na mesma. Acho que to-
que crescemos a adorar. Quando o dos estávamos só a tentar lidar com
“Nevermind” [álbum de 1992] se tor- este novo sucesso e era superestra-
nou popular, milhões de pessoas fica- nho. Quando começamos a carreira
ram expostas à nossa estética, à nos- de forma simples, andando em di-
sa cena, ao nosso entendimento do gressão com os amigos, de carrinha,
mundo. Talvez tenha sido a primeira isso torna-se uma base para tudo e
vez que milhões de pessoas tiveram faz com que dês mais valor ao que
contacto com o que se passava no un- vier a seguir. Então, se estiveres num
derground. Mas quando fomos fazer o avião, ficas: “Ó meu Deus, não te-
“Nevermind”, só fomos para o estú- nho de conduzir 15 horas, só tenho
dio gravar as canções que tínhamos de voar três, isto é incrível”, mesmo
ensaiado no nosso celeiro, em Taco- que sejam 4h da manhã! Isso faz com
ma, Washington. Não nos estávamos que dês valor às coisas para o resto da
a preparar para uma revolução, só tua vida, mas faz mesmo.
para uns dias no estúdio, e estava a
soar bem... Depois partimos em di- É muito próximo da sua família, so-
gressão, voltámos à carrinha e aos bretudo da sua mãe, a quem agra-
clubes e estava tudo bastante normal dece repetidamente no livro. O que
até o vídeo sair [o vídeo do primei- achou ela da sua autobiografia?
ro single, ‘Smells Like Teen Spirit’]. A minha mãe também era escritora.
As pessoas associaram aquelas ima- Era professora numa escola pública e
gens ao som e foi aí que tudo mudou. dava aulas de escrita criativa e de in-
Foi uma transição estranha, da nossa glês, aulas de falar em público... Eu ia
existência confortável no underground escrevendo estas histórias e, quando
para o mainstream. Veio a provar-se as acabava, mandava-lhas. Ela ado-
difícil, porque estranhamente sentía- rava-as! Ficava emocionada e ria-se,
mos que não pertencíamos ali. Quan- e gostava do meu estilo de escrita, da
do estás no top de vendas, acima do minha prosa. Quando tive o primei-
Michael Jackson, isso não faz sentido. ro exemplar do livro nas mãos, dei-o
É surreal, mesmo estranho. E acho à minha mãe, pu-lo no colo dela. E ela
que nunca nos chegámos a habituar disse: “Eu já li isso.” [risos] Mas fiquei
a isso. Foi sempre estranho para nós. muito orgulhoso por poder pôr-lhe
aquele livro no colo. Porque eu era
No livro conta que havia uma grande péssimo aluno, deixei a escola cedo,
ter de ser capaz de ultrapassar isso, traçar um quadro mais geral sobre separação entre os músicos. Quando nunca iria ser autor, escritor... O mais
por isso o processo de luto é estra- como lidar com a perda de alguém. não estavam em estúdio ou digres- bonito da minha relação com a mi-
nho. Porque não há instruções, não E foi bom escrevê-lo, porque acho são, cada um fazia a sua vida separa- nha mãe sempre foi a sua fé na mi-
há manual que te diga como o de- que nunca tinha dito aquelas coisas damente, praticamente sem contac- nha convicção para fazer o que quer
ves fazer. E é diferente para todas as a ninguém. Nunca saíram da minha tar os outros. Isso é normal? Muitas que fosse que quisesse fazer. Fazer
pessoas. O mais difícil nesse capítulo boca, mas saíram das minhas mãos. vezes o público pensa nos mem- um filme, por exemplo. Quando fiz o
é: eu sei o que é que as pessoas que- Ou do teclado. bros de uma banda como amigos, “Sound City” [documentário de Dave
riam que eu escrevesse. Toda a gen- mas nem sempre é necessariamente Grohl sobre os estúdios de gravação
te tem tantas perguntas — e eu tam- Como lidaria Kurt Cobain, clara- assim... do mesmo nome], disse-lhe: “Vou fa-
bém tenho! — sobre a morte do Kurt. mente uma alma hipersensível, à Não tem a ver com amizade, mas zer um filme.” E ela: “Ai vais?” E eu:
Então não quis escrever sobre o que pressão de hoje das redes sociais, por com proximidade. Quando és jovem “Sim, vou comprar uma mesa de gra-
as pessoas quereriam saber, mas sim exemplo? e tocas numa banda, estás sempre vação e contar a história do estúdio

E 47
e convidar pessoas para fazerem um Fica colado em nós mas passados uns
disco lá.” E ela disse: “Não vais co- tempos desaparece.
meçar o filme dizendo que compras-
te a consola. Contas a história, depois A autobiografia de Elton John, “Eu,
resgatas a consola!” Portanto, a mi- Elton”, é especialmente divertida
nha mãe basicamente escreveu o fil- graças a essa autodepreciação...
me. [risos] Ela é um génio, é incrível.
Mas encorajou-me. Disse-me: “For-
ça, faz isso. Vai correr bem.” É assim
Nunca tomei Temos de ter alguma autoconfiança
para fazermos pouco de nós mesmos.
Às vezes as pessoas mais inseguras
que mostra o seu amor. É na liberda-
de. Toda a sua vida a minha mãe me
cocaína, nem são as que se levam demasiado a sé-
rio. Eu também tenho as minhas in-
disciplinou através da liberdade.

Quando recebeu o convite para en-


heroína, nem speed, seguranças, como toda a gente, mas
não tenho dificuldade em fazer pouco
de mim mesmo. Olha para os vídeos
trar nos Nirvana, sentiu-se mal por
abandonar a sua banda anterior, os
Scream. E a sua mãe disse-lhe: “Sei
porque tinha medo. que fazemos, nos Foo Fighters! [risos]
Fizemos alguns que acho muito bo-
nitos e são verdadeiras obras de arte,
que gostas dos teus amigos, mas
também tens de pensar em ti.” Isso
Se tomasse essas mas a maior parte são, para mim,
como anúncios de rebuçados. Espera
foi inspirador? até veres o próximo! Ainda não saiu,
Foi inspirador e lembro-me que,
quando ela disse isso, eu fiquei tão
drogas como bebo mas é a coisa mais cómica que já fi-
zemos na vida.
surpreendido! Pensei: “Passaste a
vida a dar a toda a gente, como pro-
fessora, trabalhando tanto pela mi-
café, já estava Os Foo Fighters estão de vol-
ta aos grandes concertos. Qual é a
nha irmã e por mim... És a pessoa
mais altruísta e generosa que alguma morto” sensação?
Incrível. É espetacular. Há 25 anos
vez conheci na vida, e agora dizes-me que andamos em digressão e, de re-
‘tens de fazer o que é melhor para ti’.” pente, tudo para. Ficou um vazio,
Fiquei espantado mas, quando escre- um buraco dentro de mim. Porque
vi sobre isso [no livro], percebi que Mas isso é bom! Porque já vi muitos onde os Nirvana ‘explodiram’, a he- o grande luxo da minha vida é po-
foi isso que ela fez quando se divor- músicos jovens a ganharem dinhei- roína estava em todo o lado... der estar em palco e cantar convosco
ciou do meu pai. Ela percebeu: “Eh ro muito depressa e a gastá-lo mui- Nunca li esse livro! Mas Seattle era a ‘My Hero’, a ‘Best of You’... é essa
lá, é isto que tenho de fazer para so- to depressa, também. E quando tudo um sítio com muita heroína, sobre- energia partilhada que faz a vida tão
breviver.” E eu só percebi isso no ano desaparece, é complicado. Quan- tudo no meio musical. Em Washing- bonita. Quando isso nos foi tirado,
passado! 45 anos mais tarde! [risos] do és criado num lar muito simples, ton D.C. [onde Dave Grohl começou tive sonhos recorrentes. Sonhava que
onde a moeda corrente é a felicida- a sua carreira] não havia muita he- íamos para palco e ficávamos a olhar
Já o seu pai dizia-lhe para poupar, de, trabalhas muito e dás valor ao roína na cena da música. Eu não co- uns para os outros, à espera. Quando
pois o sucesso na música não iria que tens. nhecia ninguém que consumisse he- finalmente demos o primeiro con-
durar... roína. Seattle é uma cidade linda e certo [depois da pandemia] no Ma-
Pois foi! Mas ele tinha razão. O meu Dedica um capítulo do seu livro ao tem tanto para oferecer: arte, cultu- dison Square Garden [em Nova Ior-
pai também era músico, tocava flau- consumo excessivo de café. Foi o ra, comida, a personalidade da pró- que], entrei em palco e olhei para o
ta em orquestras e assim. Por isso, a medo de perder o controlo que o im- pria cidade. Mas também tem o seu público, à espera que começasse. E
sua ideia do que era ser um músico pediu de tomar drogas pesadas? lado negro. Quando o inverno chega, quando começou, foi um sonho tor-
profissional era diferente da minha. Sem dúvida. Quando era novo, fu- as nuvens surgem e está sempre es- nado realidade.
Eu podia andar de carrinha, ganhar mava erva e haxixe. Quando cheguei curo, durante três meses, há muito
sete dólares por dia e estava feliz. Já aos 21, parei. Dava-me ansiedade. alcoolismo e abuso de drogas. É um Depois de todo o sucesso que atingiu,
ele pensava que a música era uma Fumava tanto que tinha ataques de bocado obscura. ainda se considera um punk, ética
carreira, algo que eu nunca imaginei pânico. Nunca tomei cocaína, nem que norteou toda a sua juventude?
que pudesse vir a ser. Ele era esperto heroína, nem speed, porque dessas No livro partilha várias histórias de Isso é difícil de definir. Quando falas
e estava preocupado, só queria pro- drogas eu tinha medo. Se tomasse falhanços seus. É importante mos- em punk, falas de uma certa estética?
teger-me. Dizia: “Sabes que isto não essas drogas como bebo café, já esta- trar o que não corre bem? Ou de um certo tipo de música? Ou do
vai durar”, e isso assustava-me! Ain- va morto. [risos] Mas também adoro Claro, somos todos humanos. Tento aspeto? Se me sinto diferente da mai-
da me assusta! Dizia: “Encara cada a vida e tento dar o meu melhor para dizer às minhas filhas que é normal or parte das pessoas? Sim. Se celebro
cheque que receberes como se fosse não perdê-la. Há tanta coisa a que cometer erros: geralmente aprende- música que pode parecer excêntri-
o último.” E eu ainda faço isso! Ain- posso ansiar! Há tanta coisa para fa- mos com eles, de uma maneira ou ca? Sim. Se adoro a ideia de progres-
da tenho medo! Mas fico-lhe grato zer! Quando estou em estúdio, nem de outra. Ninguém é perfeito, nada é so e mudança? Sim. Se estou na capa
por isso, porque nunca fiquei malu- um copo de vinho gosto de beber, perfeito, e isso é inevitável na vida, da “Rolling Stone”? Sim. Isso fará de
co e dei em estourar o dinheiro todo. porque estou a trabalhar. Quando que nos oferece desafios: vais con- mim um punk rocker? Não sei. É es-
Ainda sou o filho de uma professora desligamos o gravador, é: “‘Bora lá, seguir superar uns e outros não, mas tranho. Ainda me sinto como quan-
de escola pública, que trabalhava mês vamos beber um copo!” Mas quan- nunca desistimos. Especialmente no do descobri o punk rock, aos 12 ou 13
a mês, salário a salário; isso ainda está do estou a trabalhar, preciso de es- rock and roll, acho que é bom ter anos. Acho que nasces com esse sen-
aqui dentro. Ainda trabalho como se tar completamente concentrado, o uma boa dose de humor e autode- timento, e sentes-te atraído por essas
tivesse um emprego no liceu! tempo todo. preciação, porque se nos levarmos coisas por alguma razão. Nesse aspe-
demasiado a sério, pode ser uma to, sim. Se tenho um bom carro? Sim.
O Moby, que teve uma infância po- No livro “Mais Pesado do que o Céu”, seca. [risos] Nos Foo Fighters, leva- [risos] E isso é punk rock? Não sei! b
bre, diz que ainda compara preços biografia de Kurt Cobain, transpare- mos a criação de música muito a sé-
no supermercado... ce a ideia de que em Seattle, a cidade rio, mas tudo o resto é como glitter. lipereira@blitz.impresa.pt

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“TÃO SIMPLES,
TÃO INTELIGENTE”
SEGURO DIRECTO NA VANGUARDA UMA HISTÓRIA DE MARCOS
Em novembro de 1996 surgia a marca que seria Com um percurso incontornável e
a pioneira em Portugal a comercializar seguros preenchido por marcos importantes, des-
automóvel em canais diretos, revolucionando o de o patrocínio do Rock in Rio Lisboa em 2008,
mundo das seguradoras. Falamos da Seguro ao lançamento do primeiro seguro verde em
Directo, marca que pertence ao Grupo Ageas Portugal, a Seguro Directo foi inclusivamente
Portugal e que, ao longo dos seus 25 anos de considerada uma das melhores empresas para
história e sucessos, se manteve ao lado dos trabalhar em 2012 e em 2013, pelo estudo da
portugueses, mantendo um crescimento e evo- revista “Exame” e da consultora Accenture. Fazendo uma breve retrospetiva, não se tor-
lução constantes. Afinal, se em 25 anos muita E com a inovação a acompanhar toda a jorna- na simples destacar o momento mais emble-
coisa muda na vida de cada pessoa, também a da da marca, foi no ano de 2014 que a Seguro mático na história da empresa, mas torna-se
Seguro Directo acompanha essa mudança. Directo inovou novamente na comercialização importante sublinhar a mudança de nome e
Vanguardista em Portugal na comercialização de seguros, permitindo aos clientes escolher imagem, em 2014, ao mudar de Seguro Direc-
de seguros automóvel, primeiro por telefone, algumas das coberturas e assistências, sem to para Direct, mudando também a imagem
depois onlinee, e posteriormente através de uma ficarem limitados aos pacotes predefinidos, e e posicionamento no mercado. Em 2019, volta
appp televisiva, a Seguro Directo tem, ao longo foi distinguida como a melhor seguradora dire- ao nome Seguro Directo, com uma forte cam-
dos tempos, lançado e adaptado os seus ser- ta em Portugal, no estudo “Escolha do Consu- panha publicitária baseada na proximidade e
viços sempre de acordo com as principais ne- midor”, em 2014, 2015, 2017 e 2018. Além disso, atendimento ao cliente, com a participação da
cessidades dos portugueses. Hoje, temos uma desenvolveu estudos, venceu prémios Escolha equipa de profissionais que diariamente dá voz
companhia na frente da inovação, não apenas do Consumidor, renovou a identidade visual e à marca. Apesar de ambicionar ser uma pla-
na forma como se relaciona com o cliente mas lançou um chatbott, permitindo a realização da taforma digital, esta campanha ambicionava,
também na forma como gere o seu negócio, compra de um seguro automóvel de forma ino- principalmente, demonstrar aos clientes que
com a missão de fazer diferente, de acrescen- vadora, e com ele recebeu a menção honrosa existem pessoas do outro lado que se importam
tar valor, de facilitar o dia a dia e de estar dis- na categoria de Best Digital Product and Custo- e que os acompanham nos momentos em que
ponível para todos os clientes. Para isso, conta mer Experience. Conquistou o prémio Escolha precisam.
com uma equipa motivada, atenta e disruptiva, de Excellentia, reforçou a proteção automóvel
e é precisamente esta aposta nas pessoas e na com novas coberturas e é o patrocinador oficial EM CONSTANTE AVANÇO
inovação que permite assegurar um nível de do prémio anual “Seguro Directo Carro do Ano”, Com o desenvolvimento tecnológico dos au-
crescimento constante. em parceria com o Expresso e a SIC Notícias. tomóveis, a Seguro Directo apresentou novos
PUBLICIDADE

FOTO PEPE BRIX


cia do serviço, dando autonomia ao utilizador.
Atualmente, a Seguro Directo faz parte de um
grupo segurador líder mundial, que integrou
no ano de 2016, contando com um capital de
190 anos de experiência no mercado segura-
dor, com uma estrutura de mais de 50 mil co-
laboradores, que integra o ranking do Top p 20
das seguradoras da Europa. Este fator permi-
te à marca proporcionar uma experiência de
seguros emocional e significativa na vida das
pessoas.
Sob a premissa “Tão simples, tão inteligente” a
Seguro Directo promete continuar a desenvol-
ver uma estratégia de acesso em mais plata-
formas e soluções inovadoras, de modo a per-
mitir uma maior simplicidade e autonomia no
acesso à simulação, à contratação e à gestão
das apólices de seguro por parte dos seus clien-
tes. Muita coisa mudou, mas ter um seguro sim-
ples e inteligente que acompanha as viagens
dos clientes é uma promessa que vai continuar
a guiar a marca nos próximos 25 anos: apostar
na melhoria continua, no desenvolvimento de
soluções e na otimização de processos orien-
tados ao cliente.

VINTE CINCO
Com a missão de continuar a fazer um traba-
lho exemplar, a Seguro Directo encontra-se a
desenhar novidades que passam pelo produto
e pelo próprio posicionamento de marca, man-
produtos, como foi o caso das duas novas co- situação de avaria, acidente ou manutenção tendo uma comunicação simples com o cliente,
berturas, lançadas no final do ano passado, do veículo. E, claro, não ficamos por aqui, com um discurso amigável e direto. Com o in-
que vieram reforçar a proposta de valor da tratando-se apenas de exemplos do que tem tuito de simplificar a jornada do cliente e ga-
Seguro Directo e que se encontram alinhadas vindo a desenvolver e a oferecer porque, de rantir essa proximidade, está inclusivamente a
com o objetivo da marca - ter uma proteção facto, a Seguro Directo conta já com 25 anos desenvolver soluções suportadas por inteligên-
mais abrangente e relevante para os clientes. de sucessos, mantendo a proximidade que a cia artificial.
Falamos da proteção de pneu, com a substi- distingue com o cliente. Enquanto o trabalho é feito, as celebrações
tuição dos dois pneus do mesmo eixo quando não ficam esquecidas. Este ano, em tom de
um se danifica; e a substituição da bateria do UMA MARCA QUE DESCOMPLICA celebração do seu aniversário, a Seguro Di-
automóvel, no caso de a mesma se encontrar Ao longo destes 25 anos, assistiu-se a uma ne- recto proporcionou um momento musical,
no fim de vida. Por outro lado, e a pensar na cessidade de simplificar a linguagem do sector, lançou um passatempo nas redes sociais com
cobertura de Assistência em Viagem para Veí- tornando os conceitos mais descomplicados, oferta de mais de 25 prémios, lançou uma
culos Elétricos (ao abrigo do seguro de danos fomentando uma maior facilidade e rapidez campanha de 25% de desconto e ainda uma
próprios e sendo opcional para outros se- nas respostas às necessidades imediatas. Para campanha nos meios de comunicação so-
guros), no caso do veículo elétrico ficar sem além do desenvolvimento de funcionalidades cial para reforçar a sua presença de marca.
bateria durante uma viagem em Portugal, é cujo objetivo passa por acelerar a resposta ao A forma como comemora o seu aniversário é
enviado um veículo ao local para efetuar uma cliente, trabalhando por superar as suas ex- um espelho do foco que sempre manteve nos
recarga rápida de energia; e é utilizado um pectativas, a Seguro Directo destacou-se no seus clientes e no lado humano e de proximi-
veículo de substituição a combustão, duran- desenvolvimento de produtos em cocriação dade que a Seguro Directo transpôs em todo
te sete dias, desde que não se trate de uma com alguns clientes, focando-se na excelên- o seu percurso.
FRACO CONSOLO

“Considerações
sobre o Pecado,
o Sofrimento,
a Esperança
e o Verdadeiro
Caminho”,
de Franz Kafka

MAIORIA MINORIA

T
NÃO ME LEMBRO DE TER SIDO ALGUMA VEZ ATRAÍDO PARA UMA POSIÇÃO MAIORITÁRIA PORQUE
ME SENTIA DESCONFORTÁVEL EM MINORIA, MAS LEMBRO-ME DE ME SENTIR DESCONFORTÁVEL

oda a gente prefere as maiorias, mas a privacidade. Não sou ludita, mas não tenho nenhum deslumbramento
alguns orgulham-se de estar em minoria. pela tecnologia. Não suporto novilínguas, nem as mercantis nem as
A minha experiência é que estar em activistas. Sou da pequena minoria que não acha que em matéria de
maioria ou minoria é uma contabilidade ortografia “tanto faz”.
que anima ou assusta, mas não esclarece. Estar em maioria reforça o ego e enfraquece a lucidez. Estar em minoria
Como exercício, comecei então a anotar traz uma certa distinção e uma certa solidão. Mas se as maiorias ou
num caderno as minhas concordâncias e as minorias nos ajudam com as preferências, não nos ajudam com as
dissensões, ou algumas delas. certezas. Estou com a maioria no apreço por uma certa ideia de decência
Socialmente, sou um burguês, como a comum, mas vejo-me minoritário em matérias como a deontologia dos
maioria das pessoas que conheço, mas ex-amigos ou a vingança. Tendo para uma tonalidade elegíaca e sei que
não me dou ao trabalho de fingir que não há uma minoria que se reconhece nisso.
sou, como uma minoria dos burgueses que Simpatizo com línguas minoritárias, facções minoritárias, nações
conheço. Sou da maioria católica, maioria muito vaga, sociológica, e de derrotadas, heresias, votos de vencido. Como a maioria, aprecio a
uma minoria que julga que o catolicismo é uma metafísica e não uma coragem e a empatia; como a minoria, valorizo a delicadeza e a gratidão.
intendência. Não me sinto especialmente patriota, mas sinto-me sem Penso mais ou menos como a maioria dos homens quanto às mulheres e
dúvida português. Ideologicamente, sou uma minoria sem expressão quase sempre o oposto da maioria das mulheres quanto aos homens. Por
em certos meios que frequento e uma larga maioria noutros dos quais vezes, faço parte de maiorias que me prejudicam.
fujo. Sou da antiga maioria, agora em colapso, que abomina os extremos. Uma das frases que mais me impressionou até hoje diz: “Na luta entre ti e
Em eleições, já acompanhei 60% e 0,6% dos eleitores. Integro maiorias o mundo, apoia o mundo.” b
alargadas no desprezo por determinadas figuras contemporâneas, mas pedromexia@gmail.com
não me reconheço nos heróis mediáticos mais celebrados, oportunistas Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia
uns, outros fundamentalistas. Defendo concepções que a maioria
considera um defeito, como o conservadorismo e o pessimismo. Não
me lembro de ter sido alguma vez atraído para uma posição maioritária
porque me sentia desconfortável em minoria, mas lembro-me de me
sentir desconfortável.
Sou tragicamente minoritário na crença de que o sentimento trágico
da vida faz muita falta. Tenho um catálogo minoritário, e estranho, de
categorias humanas que abomino, como os cátaros e os filisteus. Sou
da minoria que considera a auto-estima uma auto-ilusão. Sou de uma
maioria sexual e de uma minoria emocional. Como a maioria das pessoas,
identifico-me com a época em que vivo, mas, como uma minoria, nem
sempre. Não partilho de muitos gostos maioritários, estéticos ou outros,
mas estou sempre a descobrir imensas minorias. Prefiro a melancolia
/ PEDRO
à farsa, a subtileza à proclamação, os epílogos verdadeiros aos finais MEXIA
felizes, e não creio que esteja em maioria. Estando a mais de meio da
vida, sou maioritário junto das gerações mais velhas e minoritário junto
das mais novas em dezenas de assuntos, o mais importante dos quais é

E 52
Motorista da solidão
STEPHANE CARDINALE/CORBIS/GETTY IMAGES

Aos 75 anos, Paul Schrader, ‘eterno’ argumentista de “Taxi Driver”, realiza um thriller
hipnótico sobre um profissional de póquer, ex-militar, a ajustar contas com o passado.
“The Card Counter — O Jogador” é um dos filmes do ano e estreia-se quinta-feira
TEXTO FRANCISCO FERREIRA

E 53
E
sozinho, conhecem-lhe a cara, mas das personagens mais complexas, ou que ainda acalentam fazer.
ninguém lhe conhece amigos. Faz sibilinas, assustadoras de Paul São solitários, à espera de que
parte do jogo, faz parte daquelas Schrader, argumentista e cineasta algo aconteça, e o póquer é isso
regras, eu conheci alguns jogadores ‘canonizado’, em 1976 pelo guião — um jogo da espera. Usam o que
de póquer assim em Los Angeles, de “Taxi Driver”, de Scorsese (este fazem como uma máscara com a
parecem zombies”, contou Paul último surge agora nos créditos de qual escondem as suas emoções.
Schrader numa mesa-redonda no “The Card Counter — O Jogador”, Sentem-se a ser comidos vivos pela
último Festival de Zurique. “Mas à cabeça da lista de produtores raiva. E não escapam ao destino.”
nunca fui jogador de arriscar a executivos). Por falar em destino, convém reparar
minha casa. Sempre joguei com Se pensarmos em Travis Bickle, que a primeira carta a entrar em
le é um jogador profissional e corre cautela. Como William, aliás.” a personagem de Robert De Niro “The Card Counter” é uma rainha de
a América de lés a lés, de casino em O papel é de Oscar Isaac — e é em “Taxi Driver”, ou no bem espadas, que traz maus agoiros para
casino, ao sabor dos calendários dos fabuloso. Em criança, William mais recente Ernst Toller (Ethan quem neles acredita.
torneios de póquer. Diz que se chama tinha pavor a tudo o que fosse Hawke), o reverendo angustiado, e Ora a solidão (acompanhada por uma
William Tell, nome de lenda, embora confinamento, 10 anos na cadeia também ele atraído pelo martírio, aversão a si próprio, se quisermos ir
se venha a saber que o batismo não mudaram-lhe contudo essa de “First Reformed”/“No Coração mais longe) é um dos temas, senão
é verdadeiro. Homem de disciplinas perceção. O passado da personagem da Escuridão”, é possível traçar mesmo o tema, mais importante
rígidas, veste-se sempre no mesmo é matéria que este filme vai expurgar pontos de contacto óbvios entre essas do trabalho de Schrader. Os seus
tom, hospeda-se sempre no mesmo “como qualquer coisa que vai ter criações de Paul Schrader e William guiões começam habitualmente por
tipo de motéis, cobrindo com lençóis de ser arrancada a ferros”. William Tell. “Todos eles edificaram fortalezas aí, com criaturas sombrias, embora
o recheio dos quartos, num maníaco abraçou as rotinas da prisão, e de solidão à sua volta”, continuou nem sempre isso se tenha verificado.
processo de higienização. “Fala depois as do jogo, como quem Schrader. “Esconderam-se da vida O primeiro filme de Schrader como
pouco, quase nada, está sempre abraça uma filosofia de vida. E é uma por qualquer coisa que fizeram realizador, por exemplo, o notável

E 54
Haddish), outra jogadora profissional
que já reparou antes em William
“Este filme vem da sem manifestações de qualquer fé
religiosa. “Meditações” é um livro
e lhe propõe uma parceria, quem atração pelo abismo focado no que significam coisas
sabe se até algo mais; depois, Cirk
(Tye Sheridan), rapaz sem vocação
de um homem que pragmáticas e essenciais como o
controlo das emoções, a gestão do
para o jogo mas que localiza William talvez não tenha tempo, a disciplina diária, etc. — é
naqueles meandros, sabendo muito um manual de autoajuda em defesa
mais dele do que ele imagina. É coragem para se das práticas do estoicismo.
que Cirk quer vingar-se e matar
um major do exército chamado
matar. Esse abismo é É muito interessante deixar William
longe das ressonâncias crísticas e
John “Gordo” (Willem Dafoe), que uma metáfora. Mas já recuar uns quantos séculos a.C.,
até à Grécia antiga, observando-o
levou o seu pai ao suicídio. E o dito
major, ex-superior hierárquico de
o era em ‘Taxi Driver’, à luz da filosofia estoica. É que
William nos seus tempos de militar, que foi um filme tudo para William se torna uma
foi também o responsável pelos 10 questão de comportamentos com
anos que este passou na cadeia, após que eu escrevi causas e consequências, medidas
condenação, sabe-se entretanto,
por crimes de tortura cometidos
como um exercício com a frieza com que se calcula a
probabilidade de uma aposta no
na prisão iraquiana de Abu Ghraib. de autoterapia” póquer. “Este filme fala de pulsões
Ou seja, se com La Linda William humanas muito terrenas, sem
vai pôr à prova a castidade que lhe PAUL SCHRADER nada de transcendental. William
ARGUMENTISTA E REALIZADOR
rege a vida, com Cirk vai testar uma foi punido pelo Governo dos EUA,
inesperada relação pai-filho que quis vingar-se dessa punição, e a
evoluirá para caso de vida ou de vontade de vingança de Cirk vai
morte, tal como sucedia, já agora, despertá-lo para qualquer coisa
coincidência ou não, na lenda era um filme sobre a “redenção” adormecida e muito perigosa. Ele
de William Tell, em que este era ou, mais enredado ainda, sobre o pensa que, através do rapaz, talvez
obrigado a atingir com uma seta a “purgatório”, como se esta fosse a possa recomeçar uma vida a sério.
maçã colocada em cima da cabeça história de um castigo temporário Acho isto muito interessante,
do filho, correndo o risco de o matar. ou de um processo de purificação. porque nós também estamos a viver
“Escrevi o papel de William a pensar Há inclusive um momento fabuloso tempos em que muita gente com
nos primeiros torturadores de Abu do filme em que deixamos por poder recusa-se a assumir as suas
Ghraib, uma das maiores infâmias da instantes hotéis e casinos e La Linda responsabilidades. A ideia destes
Guerra do Golfo. E é na cadeia que ele leva William pela mão, ao longo de dois polos opostos no filme, William
aprende a jogar póquer, que é agora um passeio noturno num parque e Cirk, vem muito deste sentimento,
o seu sustento, ou seja: está tudo iluminado, e que, à falta de melhor, desta impotência que nós sentimos
ligado, ele continua a lidar com listas podia funcionar por instantes como nos dias de hoje.”
HEIDI HARTWIG FOCUS FEATURES

e números, como os prisioneiros que uma metáfora do paraíso. Se calhar, “The Card Counter — O
Oscar Isaac apresenta-se os têm. Continua a viver uma espécie Contudo, não serão estas Jogador” é o filme em que Paul
em “The Card Counter de não-vida...” aproximações à religião um tanto Schrader vem recordar que, afinal,
— O Jogador” forçadas no caso específico de “The somos nós os nossos principais
no papel do jogador REDENÇÃO OU ESTOICISMO? Card Counter”? Isto é, não terá inimigos, somos nós os principais
profissional William Tell Paul Schrader, ao contrário de Schrader, mesmo sem sair de uma responsáveis pelo mal que nos
Scorsese ou de qualquer outro nome esfera em que a fé e a culpa estão acontece, pelo desespero e angústia
da Nova Hollywood dos ‘Movie presentes, procurado desta vez em que caímos, pela luz ao fundo
Brats’, cresceu sob uma educação outro tipo de reflexão e outro tipo do túnel que não vemos. “Sim,
religiosa muito estrita, os pais de protagonista, sem as ‘levitações’ somos o resultado das nossas
“Blue Collar” (1978), em que faziam parte de uma comunidade de de “First Reformed”? Vale a pena próprias contradições. E há um
Richard Pryor e Harvey Keitel, dois cristãos calvinistas, ainda hoje ele se perder-se tempo neste assunto. De preço a pagar por elas. Isso é o que
operários, chocavam de frente com a delicia a contar que só o deixaram facto, se olharmos de perto para William tentará, infelizmente em
corrupção dos sindicatos da indústria ir ao cinema quando fez 18 anos. William Tell, se pensarmos na vão, mostrar a Cirk ao propor-lhe o
automóvel de Detroit do fim dos Este aspeto moldou, como é óbvio, personagem com uma objetividade caminho para uma racionalidade de
seventies, era muito mais um filme a carreira do então jovem crítico de alheia ao conhecimento que se tem que ele também precisa”, conclui o
sobre a traição à amizade, a perda de cinema, que se tornaria guionista da obra de Schrader, a verdade é realizador. Depois, é Schrader quem
valores essenciais e a luta impotente pouco depois (no já citado “Taxi que ele não tem sinais evidentes, não resiste e, com os cordelinhos
contra o poder daquele período Driver”), autor, aliás, de um primeiro nem sequer insinuados, de uma da dramaturgia na mão, olha para o
específico da América. “The Card livro, “Transcendental Style in Film”, aproximação à religião nem qualquer botão do apocalipse, lembrando-se
Counter”, pelo contrário, “vem da que abordava uma estética teológica ‘vontade de santidade’. Parece-nos de que matéria o Homem é feito...
atração pelo abismo de um homem no cinema. E esse aspeto moldou muito mais um ‘samurai de Las Mas essa é outra história. b
que talvez não tenha coragem para se também, compreensivelmente, a Vegas’ ou coisa que o valha — e
matar. Esse abismo é uma metáfora. maneira como os seus filmes têm esta aproximação ao Japão nem é
Mas já o era em ‘Taxi Driver’, que foi vindo a ser recebidos. É certo que descabida, recorde-se que Schrader
um filme que eu escrevi como um “First Reformed” tinha uma relação já fez um enorme filme sobre
exercício de autoterapia”. direta com a Igreja, a fé e a religião Mishima! Mais: há um momento que THE CARD COUNTER
William protege-se como pode na cristã, não há dúvida sobre isso, nem intrigou no início em que Schrader — O JOGADOR
sua ‘carapaça imaginária’ de cimento isso é novidade na obra de Schrader. fixa William ainda na cadeia a ler De Paul Schrader
armado, nisto o cimento começa a E, para não fugir à regra, muita gente as “Meditações” de Marco Aurélio, Com Oscar Isaac, Tiffany Haddish,
abrir fissuras com a entrada de duas foi levada a escrever, em setembro livro de escritos e pensamentos que, Tye Sheridan (EUA)
personagens muito importantes no passado, no Festival de Veneza, que tal como este filme, são endereçados Drama / Classificação a definir
filme: primeiro, La Linda (Tiffany “The Card Counter — O Jogador” à primeira pessoa (ao narrador), (estreia-se dia 18)

E 55
O objeto
como
abstração
As fotografias de Manoel de Oliveira
implicam ideias. Após Serralves, no Porto,
é a vez de os lisboetas apreciarem
este olhar moderno do cineasta
TEXTO JORGE CALADO

O
o desportista e cineasta que nasceu
com o cinema e a teoria da relati-
vidade restrita e que na juventude
experimentara as grandes veloci-
dades em corridas de automóveis e
na pilotagem de aviões acrobáticos.
(Declaração de interesses: estreei-
-me como espectador de cinema no
dia do meu 5º aniversário; a prenda
dos meus pais foi uma ida ao Éden
que separa a fotografia do cinema para ver o “Aniki-Bóbó”, uma das
não é o tempo nem o espaço, mas o recordações mais gratas da minha
movimento (que é uma combinação infância.) A exposição da Casa do
destes dois). Os americanos acerta- Cinema Manuel de Oliveira/Funda-
ram em cheio quando chamaram ao ção de Serralves “Manoel de Oliveira
cinema “moving pictures” ou “mo- Fotógrafo” pode agora ser visitada no
vies”. Num famoso ensaio de 1766 átrio da Biblioteca de Arte da Fun-
sobre Laocoonte, Gotthold Lessing dação Calouste Gulbenkian (até 17
distribuiu as artes pelos domínios do de janeiro de 2022). Só lamento que
espaço (como a pintura) e do tempo o papel (grosso) usado no catálogo
(como a poesia), mas a descoberta tenha prejudicado as reproduções
relativista do contínuo do espaço- fotográficas e que o volume e as ca- Faina Fluvial” (1931) — mais tarde Fotográfica do Grémio Português de
-tempo na transição dos séculos XIX/ pas se desagreguem após um par de musicada por Luís de Freitas Branco Fotografia. O motivador terá sido
XX veio complicar as coisas. Goethe, manipulações. —, seguida de outras curtas até ao António Mendes, o diretor de foto-
aliás, já baralhara a classificação com filme de contornos neorrealistas grafia das suas primeiras metragens,
a sua proposta de que a “arquitetura CINEMA OU FOTOGRAFIA? “Aniki-Bóbó” (1942). (A luz precede de “Douro” até “Bóbó”. Após um
é música congelada”. (A música, por Oliveira bateu todos os recordes de sempre o som, tal como ao trovão se estágio nos estúdios da Agfa em Le-
seu turno, seria arquitetura liquefei- criatividade longeva. Foi na oita- segue o relâmpago — outra questão verkusen (Alemanha) no outono de
ta.) Enquanto a fotografia, como a va década de vida que iniciou a de velocidade.) Oliveira só voltaria ao 1955 para aprendizagem da cor, Oli-
memória, é tempo congelado numa explosão miraculosa de praticamente cinema em 1956 com a curta “O Pin- veira passaria a assumir a cinemato-
(quase) eternidade, o cinema é foto- um grande filme por ano, e assim tor e a Cidade”, a primeira película grafia (direção fotográfica) dos seus
grafia animada pela velocidade. In- continuou até “O Gebo e a Sombra” portuguesa a cores. Curiosamente, filmes — o que aconteceu logo com
trigantemente, é a velocidade da luz (2012). O canto do cisne dar-se-ia o cineasta por vocação aproveitou “O Pintor e a Cidade”, galardoado
que controla os conceitos relativistas com a curta-metragem “O Velho do aquele hiato — final dos anos 1930 com o Prémio SNI (Secretariado Na-
(e sem luz não haveria nem fotografia Restelo” (2014), estreada em Portugal a início dos anos 1950 — para se cional de Informação) para a Melhor
nem cinema). no dia em que perfez 106 anos de dedicar à fotografia, experimentando Fotografia — e deixaria de fotografar.
Vem isto a despropósito da fotografia idade. Começara 83 anos antes com estéticas e participando ativamente A opção seria agora dar vida, isto é,
de Manoel de Oliveira (1908-2015), a curta-metragem muda “Douro, nos Salões Internacionais de Arte tempo ao tempo nos longos planos

E 56
foram os títulos que o artista daria às fotograma apenas uma foto subtraída
Oliveira não usava imagens não publicadas. É signifi- a um filme? Várias fotografias expos-
a máquina cativo o facto de Oliveira atribuir tas podem ser lidas como fotogra-
títulos poéticos e metafóricos às suas mas de películas imagináveis. O que
fotográfica para fotos salonistas: ‘Calmaria’, ‘Última imediatamente me saltou à vista em
captar o familiar, Etapa’, ‘A Sombra Segue o Homem’,
etc. A maior parte das fotografias
“Manoel de Oliveira Fotógrafo” foi a
dialética entre dois tipos de imagens:
mas sim como da exposição são apresentadas sem por um lado, a valorização do objeto,
título e sem data (o que dispensaria a da forma mais do que da função,
instrumento profusão de tabelas, ainda por cima quer sejam pratos, frascos ou um par
de construção aplicadas a um nível baixo, obrigan- de óculos; por outro, a homenagem
do o visitante a dobrar-se sempre à Natureza em estado puro. Tal dico-
ou descoberta que quiser saber do que se trata). tomia aponta para a obra do alemão
do que é estranho Houve o cuidado de complementar o
que se exibe nas paredes com mate-
Albert Renger-Patzsch (1897-1966),
um dos cultores da Nova Objetivi-
e insólito rial adjuvante em vitrinas próximas: dade em fotografia, cujo “Die Welt
catálogos de Salões Internacionais ist Schön” (“O Mundo É Belo”, 1928)
de Arte Fotográfica (1939, 41) e é um conjunto de cem fotografias
um exemplar (1943) de “O Sécu- onde as formas vegetais convivem
lo Ilustrado” com reproduções de harmoniosamente com a clareza
imagens de Manoel de Oliveira (MO); geométrica dos objetos produzidos
a 2ª edição (1938) do catálogo da industrialmente. (O título original do
exposição “Photography 1839-1937”, livro era “Die Dinge” ou “As Coisas”,
organizada por Beaumont Newhall mas o editor não o aceitou.)
no MoMA de Nova Iorque; provas Oliveira não usava a máquina foto-
de contacto; fotos de casting (MO) gráfica para captar o familiar, mas
e de rodagem (António Mendes) de sim como instrumento de constru-
“Aniki-Bóbó”; a Leica IIIf e respeti- ção ou descoberta do que é estranho
va mala; desenhos de António Cruz e insólito. Fora do seu contexto,
para o filme “Saltimbancos” (não um objeto não passa de uma forma
portuense via o cinema como afim de realizado); guião original de “O Es- esquisita e abstrata, seja ela o urinol
uma ‘exposição de fotografias’ (sem tranho Caso de Angélica” (a história a que Marcel Duchamp deu o nome
nunca o ter afirmado explicitamen- fantasmagórica de uma noiva morta de “Fountain” (“Fonte”, 1917), ou o
te) — um conceito que é, no mínimo, cuja ideia remonta a 1952 mas que só prato com cubos de gelo fotografado
interessante. foi realizada em 2010); etc. (É pena a por Oliveira a que podia ter dado o
indispensável legendagem pecar por título de navio. Coincidência ou não,
O ESPÓLIO FOTOGRÁFICO difícil visibilidade; letras afixadas em a imobilidade dos objetos fotografa-
As fotos dos alões e outras, algumas vidro cobrindo os objetos não terá dos viria a quadrar-se com os longos
publicadas nos anos 1940, estavam sido a melhor decisão.) planos do seu cinema. António Preto
ACERVO MANOEL DE OLIVEIRA/SERRALVES

há muito esquecidas. Contam-se Na exposição, é notória a preocupa- vê nesta imobilidade “um retrato do
pelas (poucas) centenas — em vez de ção em ligar a produção fotográfica país”...
milhares — as fotos que Oliveira terá de Oliveira à sua filmografia — o que Como fotógrafo, Manoel de Oliveira
feito com propósitos estritamente terá prejudicado uma avaliação mais não inventou nada de novo, mas
Autorretrato no farolim fotográficos: creio que a maior parte objetiva das suas ‘imagens fixas’. no seu melhor as fotos que criou
do seu automóvel, datado da nunca terá sido impressa, existindo Sequenciação e montagem ignoram revelam um olhar moderno capaz de
década de 40, com António apenas como negativos ou provas de as afinidades estilísticas das imagens ombrear com os de alguns grandes
Mendes (à dir.). Ao fundo, contacto. Inevitavelmente, aparecem (que variaram ao longo de pouco mais europeus do seu tempo. Mais ex-
a casa onde Oliveira nasceu misturadas com fotos de família ou de uma dezena de anos) para recordar traordinário ainda: com as múltiplas
de preparação para os filmes que as cumplicidades familiares e evocar reflexões e distorções, o autorretrato
tinha em mente. Todas são, porém, filmes que não foram feitos ou que no farolim do seu automóvel, na
documentos preciosos para o enten- só mais tarde seriam concretizados. companhia de António Mendes e
do seu cinema. Um cinema profundo dimento da construção e desen- Mesmo assim, é evidente que Manuel com a casa onde nasceu ao fundo
a baixa velocidade, como é o caso de volvimento da linguagem visual do de Oliveira estava bem informado (cerca de 1940), não ficaria deslo-
“Benilde ou a Virgem Mãe” (1974), grande realizador. Nesta primeira sobre as correntes fotográficas coevas cado no “America by Car” (2010),
baseado na peça homónima de José aproximação ao estudo da obra e a emergente historiografia da arte o livro de Lee Friedlander com
Régio. (Curiosamente, no filme an- fotográfica de Manoel de Oliveira, fotográfica, como demonstra, aliás, a fotografias da primeira década deste
terior, “O Passado e o Presente”, de o curador António Preto, diretor da posse do livro de Beaumont Newhall. século. Após este projeto e exposi-
1972, a câmara comportara-se como Casa do Cinema Manoel de Oliveira, ção, a história da fotografia portu-
uma ‘borboleta’ irrequieta.) distingue as provas de autor vintage, O CARÁCTER DAS FOTOGRAFIAS guesa no século XX ficou um pouco
Se o cinema são imagens em movi- reveladas e impressas pelo próprio ou As fotografias de Manoel de Oli- mais completa. b
mento, as da fotografia são imóveis. na Photo Stand — a loja da Rua de Sá veira implicam ideias, são muitas
Para Oliveira, a essência do cine- da Bandeira que era a meca portu- vezes encenadas e raramente são
ma não residia no movimento mas ense dos fotógrafos amadores —, das documentais. Um aide-mémoire
sim no contexto. Um plano é uma tiragens modernas a jato de tinta (a que aponta para o futuro. Nas artes,
fotografia e vice-versa; importante, partir da digitalização dos respetivos são ténues as linhas que separam MANOEL DE OLIVEIRA
porém, é o modo como os planos negativos), em dimensões sensi- as ‘naturezas-mortas’ dos tableaux FOTÓGRAFO
se relacionam uns com os outros. velmente maiores. O que se perdeu vivants, quero dizer, o que distingue Gulbenkian, Lisboa,
Sou tentado a pensar que o cineasta no esquecimento (ou nunca existiu) a fotografia do cinema... Não será um até 17 de janeiro de 2022

E 57
Li A realidade toda
vros Em 1967, García Márquez visitou o Peru e foi recebido
por Vargas Llosa. E entre ambos desenrolou-se
a conversa pública e definidora agora transcrita em livro
TEXTO LUÍS M. FARIA
Coordenação Luciana Leiderfarb
lleiderfarb@expresso.impresa.pt

E 58
“D A conversa é menos
uas Solidões”, transcrição de dos elementos que consideraríamos escrever, “a afinar o instrumento
uma conversa entre Mario reais em sentido estrito, mitos locais para dizer as coisas”, como explica
Vargas Llosa e Gabriel García e fantasias individuais, segundo se um diálogo entre Márquez. Virtudes de escrita à
Márquez, regista um momento
especial dentro de um momento
depreende do que Márquez explica a
Llosa (a indistinção entre essas duas
autores do que uma parte, ambos rejeitam aquilo a que
chamam ‘literatura de evasão’,
especial. Este último é o boom da “realidades”, tratando ambas como entrevista a um assumindo-se como escritores ligados
literatura latino-americana que igualmente reais, produz o chamado a uma realidade histórica, política.
começou nos anos 60 (há quem diga ‘realismo mágico’ a que Márquez grande escritor que Márquez lembra a Llosa que ele
um pouco antes, mas é discutível)
e teve em “Cem Anos de Solidão”
ficou associado. Convém notar que
o termo não foi originalmente criado
por acaso (ou não) falou dos escritores como “abutres
a alimentar-se de uma sociedade
um dos seus picos — talvez o maior nessa altura, remontando aos anos 20 é feita por outro em decomposição” e convida-o a
de todos. Publicado em 1967, o livro e a um contexto diferente). desenvolver a ideia. Llosa diz então
conta a história de sete gerações de “Cem Anos” foi um êxito instantâneo, que uma sociedade estabilizada e
uma família em Macondo, uma aldeia com milhares de cópias vendidas em enquanto se escreve), de convicções próspera “estimula muito menos
inventada, inspirada naquela onde poucos meses, e quando Márquez e obsessões, das companhias o escritor do que uma sociedade
García Márquez viveu na infância, chegou a Lima meses depois era um americanas que exploraram a América que se acha, como a sociedade
incorporando como realidade, além autor muito festejado. Llosa também Latina e de protestos e massacres a latino-americana contemporânea,
o era no Peru, tendo publicado “A que isso terá dado origem, de certezas corroída por crises internas de alguma
Casa Verde” e ganho um conhecido e dúvidas sobre eventos históricos... maneira perto do apocalipse”, e
premio literário. Os dois autores, Márquez refere uma série de episódios conclui: “Acho que estas sociedades
portanto, podiam ser considerados que roçam o inacreditável, vários dos que se parecem um pouco com os
do mesmo nível, como de facto quais refletidos no seu mais famoso cadáveres são as que excitam mais
estavam e sempre viriam a estar nas romance. os escritores, que lhes fornecem
décadas seguintes, recebendo ambos “Eu acho que particularmente em temas.” Lidas após tudo o que
o Nobel. Mas García Márquez foi ao ‘Cem Anos de Solidão’ sou um sabemos ter-se passado depois — as
Peru na qualidade de convidado, e escritor realista, porque acho que ditaduras fascistas latino-americanas,
Vargas Llosa, que além de escritor foi na América Latina tudo é possível, o fim das ilusões liberais em relação
professor de literatura e tinha uma tudo é real”, diz. “É um problema a Cuba, o modo como Llosa se
cabeça analítica, deu-lhe prioridade, técnico na medida em que o escritor afastou de Castro e Márquez lhe
como as circunstâncias exigiam. A tem dificuldade em transcrever os permaneceu fiel, o advento de
conversa é assim menos um diálogo acontecimentos que são reais na Reagan e de Thatcher e todos o seus
entre autores do que uma entrevista a América Latina porque num livro seguidores, o regresso de extremos
um grande escritor que por acaso (ou ninguém acreditaria (...) Vivemos de desigualdade que se julgava
não) é feita por outro. rodeados dessas coisas extraordinárias terem desaparecido em sociedades
A conversa decorreu na Universidade e fantásticas e os escritores insistem desenvolvidas — essas afirmações
Nacional de Engenharia, em setembro em contar-nos realidades imediatas ganham sentidos acrescidos. Hoje
de 1967, e parece ter despertado sem nenhuma importância. Acho que em dia, evidentemente, há outros
um interesse enorme, acabando temos de trabalhar na investigação problemas, e as obras dos dois
por ser dividida em dois dias. Lê-la da linguagem e de formas técnicas escritores estão mais libertas do
hoje provoca diversos sentimentos. do relato, a fim de que toda a circunstancialismo histórico do
Um, relativamente trivial, é o de fantástica realidade latino-americana que alguma vez estiveram. Num
estima por uma amizade recente e corresponda na realidade à vida texto posterior de Vargas Llosa que
preciosa que estava a nascer e que latino-americana.” o presente livro inclui, ele especula
ainda duraria alguns anos antes de as Dá o exemplo de coronéis “que sobre o que poderá sobreviver da
divergências políticas a perturbarem fizeram trinta e quatro guerras civis e obra de García Márquez. Quanto à
e uma questão pessoal a encerrar as perderam todas” e de um ditador obra-prima de 1967, pelo menos, não
subitamente. Outro sentimento é que usava um pêndulo para descobrir existem dúvidas. b
o de estar de facto a assistir a algo se a comida estava envenenada.
de importante, uma daquelas raras “Se o pêndulo se inclinasse para a
ocasiões em que um grande autor esquerda, não comia, e se inclinasse
que acabou de escrever uma obra para a direita, comia.” Quando
de génio com características muito houve uma epidemia de varíola, esse
especiais explica aquilo que fez. Ainda homem mandou cobrir de vermelho
que a explicação não seja total (nunca os candeeiros públicos. Márquez
poderia sê-lo, claro) e que nem tudo rejeita os escritores que se limitam
FOTOGRAFIAS LEONARDO CENDAMO/GETTY IMAGES

o que ele diz seja absolutamente a dizer que uma tal pessoa é doida
verdade, é verdade o suficiente para ou fornecem outras explicações
deitar nova luz sobre uma obra que racionais, acusando-os de falsear a
muitos leitores leram há décadas, realidade. “Eu acho que aquilo que
Aquando da conversa de 1967,
fazendo ter vontade de voltar a há a fazer é assumi-la de frente, que é
Mario Vargas Llosa (n. 1936) e
Gabriel García Márquez pegar-lhe. uma forma de realidade que pode dar QQQQ
(1927-2014) eram autores Ao longo do diálogo, fala-se de vida algo à literatura universal”, afirma. DUAS SOLIDÕES — O ROMANCE
celebrados: o primeiro (à esq.) literária, de romances de cavalaria, Há uma passagem do diálogo em NA AMÉRICA LATINA
havia publicado “A Casa da influência de Faulkner e de outros que Márquez vira o jogo contra o Gabriel García Márquez
Verde”, o segundo (à dir.), escritores, do impulso criativo, do seu interlocutor. Estava-se a falar e Mario Vargas Llosa
“Cem Anos de Solidão” fundo político da literatura que sobre Jorge Luís Borges, sobre os D. Quixote, 2021, trad. de J. Teixeira
escrevem (Márquez acha que ele deve quais ambos manifestam admiração, de Aguilar, 175 págs., €14,90
existir, mas de forma inconsciente sobretudo por ele os ensinar a Entrevista

E 59
O mar não foge

E ainda...

GETTY IMAGES
QQQQ TEATRO COMPLETO
O SONHO DA CHINA Samuel Beckett

LEONARDO CENDAMO/GETTY IMAGES


Ma Jian Edições 70, 2021, 476 págs., €27,90
Quetzal, 2021, trad. de Maria Marques, É a primeira vez que, em Portugal, é
160 págs., €16,60 reunida a obra teatral do dramaturgo
Romance irlandês, com traduções de Francisco
O israelita Amos Oz Frazão, Jorge Silva Melo, Luís Miguel
(1936-2018) ganhou o O personagem central do primeiro Cintra, Margarida Vale de Gato,
Prémio Femina um ano romance de Ma Jian publicado em Miguel Esteves Cardoso, Pedro
antes de publicar este livro Portugal, Ma Daode, é funcionário su- Marques, Rui Lage e Vasco Gato.
perior de uma cidade de província. Tem
motorista, gabinete com um quarto e

Y
oel é um espião, e é a a barba antes de chegar a uma casa de banho privativa, vários telemó- AS QUE NÃO
personagem central do casa onde ninguém o espera, um veis e outras tantas amantes. Vive com
MORREM
Anne Boyer
romance “Conhecer Uma pai absorto com a estranheza a mulher num “enorme duplex” cheio
Tinta-da-China,
Mulher”. Porém, esta não é uma provocada pela filha adolescente, das “caixas de presentes que recebeu
2021, 301 págs.,
história de espiões. Bem à medida umas avós que, de tanto em troca de favores políticos”. A filha €17,90
de Amos Oz, trata-se, antes, de conviverem, começam a parecer- estuda numa universidade inglesa. A
um novelo de relações humanas se entre si. avaliar pelas centenas de milhares de Pulitzer 2020 de não-ficção,
em que tudo o que aparenta O cenário geográfico é Israel, mas funcionários punidos na última década este livro da poeta norte-americana
ser funcional esconde uma um Israel suburbano de prédios e por corrupção, Ma Daode é mais do que relata o confronto com o cancro
perturbação, um desvio. Escrito casarios e pequenos jardins, que uma caricatura. O que o distingue é o e critica a indústria em torno da
em 1989, sete anos depois da poderia ser outro lugar qualquer cargo: diretor da Repartição do Sonho doença.
publicação do romance epistolar não fossem as alusões às guerras da China, criada após a ascensão de Xi
“A Caixa Negra” e a dois anos e ao serviço militar obrigatório, Jinping à chefia do Partido Comunis-
Top Livros Semana 43
de o autor escrever “A Terceira além de pontuais menções a ta, em 2012. O “sonho” refere-se ao De 25/10 a 31/10
Condição”, o livro concretiza festividades judaicas. O livro “rejuvenescimento da nação”. Parafra- Ficção
aquilo que, a partir de certo coloca-nos perante a claustrofobia seando Donald Trump, que foi princi- Semana
anterior
ponto, passa a constituir o ideal que as relações humanas por vezes pescamente recebido em Pequim, Xi
seu literário: o modo como um carregam, o encerro das rotinas, os quer “tornar a China grande outra vez”. 1 1 Astérix e o Grifo
Jean-Yves Ferri
microcosmos interpessoal irradia silêncios ressonantes. “Há vários Na prática, trata-se de um “sonho co-
uma potente universalidade. anos que ninguém levantava a voz munal”, que segundo Ma Daode, implica O Jardim dos Animais com Alma
2 2 José Rodrigues dos Santos
Somos todos semelhantes e no apartamento. Pai, mãe e filha “eliminar as lembranças e os sonhos
Inês de Castro
totalmente diversos, somos tinham todo o cuidado para não privados”. Comparado a “1984”, de Or- 3 - Isabel Stilwell
todos loucos dentro da nossa se incomodarem uns aos outros. well, este romance saiu em 2018, o ano
O Diário de Um Banana 16
normalidade. Mais uma vez, Sempre que falavam, faziam-no em que a Assembleia Nacional Popular 4 - — Arrasa ou Baza!
uma família surge dissecada delicadamente. Os territórios emendou a Constituição para permitir Jeff Kinney
ao pormenor. E, mais uma estavam bem demarcados.” Amos a Xi manter-se indefinidamente no po- 5 3 O Sonho
Nicholas Sparks
vez, o que fica a descoberto é a Oz preparava-se, lentamente, para der: 2958 deputados votaram a favor,
As categorias consideradas para a elaboração deste top
impossibilidade cabal de conhecer escrever “Uma História de Amor e 3 abstiveram-se e 2 votaram contra. foram: Literatura; Infantil e Juvenil; BD e Literatura Importada
o outro, por mais perto que se Trevas”, sendo que as trevas são, O diretor Ma, o autor e o presidente
encontre. sempre, o reverso do amor. entraram na idade adulta durante a Não ficção
Não é por acaso que um dos / LUCIANA LEIDERFARB década da Grande Revolução Cultural Semana
anterior
leitmotifs do livro é a frase “o Proletária (1966-76). Revolução Cul-
1 - O Poder da Geografia
mar não foge”. Porque não há tural, “uma porra”, recorda o Ma Daode Tim Marshall
como fugir à realidade, aqui acerca dos sanguinários confrontos Torne-se Um Decifrador...
materializada por um casal, entre as fações de Guardas Vermelhas. 2 2
Alexandre Monteiro
uma filha, a morte da mulher e “Aquilo era luta armada”. Ma Jian vive
3 4 Memórias
o suposto segredo dessa morte. em Londres, exilado. O seu livro mais Francisco Pinto Balsemão
Ele, espião profissional, admirado aclamado, “Red Dust”, faz lembrar “Pela Maddie: Basta de Mentiras!
4 1 Gonçalo Amaral
por ser um verdadeiro ‘detetor de Estrada Fora”, de Jack Kerouac. É uma
mentiras’, terá de reconhecer o viagem solitária pela China, iniciada O Médico da Casa
5 3 José Carlos Almeida Nunes
falhanço dessa habilidade quando num comboio para o remoto Xinjiang.
posta ao serviço dos que lhe são QQQQ “O Sonho da China” não tem a mesma As categorias consideradas para a elaboração deste top
foram: Ciências; História e Política; Arte; Direito,
mais próximos. Como é o seu CONHECER UMA MULHER inocência. É uma sátira pessimista, as- Economia e Informática; Turismo, Lazer e Autoajuda

hábito, Amos Oz foca a lente na Amos Oz sumida como um protesto: “nasceu da Estes tops foram elaborados pela GfK Portugal, através
do estudo de um grupo estável de pontos de venda
profundidade dos gestos simples: D. Quixote, 2021, trad. de Luísa Feijó e minha raiva contra as falsas utopias que pertencentes a dois canas de distribuição: hipermercados/
supermercados e livrarias/outros. Esta monitorização
uma filha a limpar os óculos da Maria João Delgado, 308 págs., €16,60 escravizaram e infantilizaram a China a é feita semanalmente, após a recolha da informação
eletrónica (EPOS) do sell-out dos pontos de venda.
mãe morta, um marido a fazer Romance partir de 1949”. / ANTÓNIO CAEIRO A cobertura estimada do painel GfK de livros é de 85%.

E 60
O outro lado
dos livros
POR MANUEL
ALBERTO VALENTE

Avenida de Roma
A afirmação de uma juventude que já
não cabia nos espartilhos do regime

H
á dias, um amigo estrangeiro que habita na zona e que, aos
poucos, se vai familiarizando com a cultura portuguesa,
nomeadamente frequentando alfarrabistas, perguntou-me por
que razão, no já longínquo ano de 1961, um escritor português (Artur
Portela Filho) escrevera um livro a que dera o título de “Avenida de
Roma”. O seu espanto tinha a ver com o facto de nada existir naquela
avenida que justificasse a atenção de um narrador. Tive pois de recuar
50 anos e contar-lhe, a traços largos, que a Avenida de Roma era então
o “segundo centro” de Lisboa, com os seus míticos cafés, os seus
restaurantes abertos até altas horas (a Alga, lembram-se?), as suas noites
fervilhantes de movimento e criatividade. O contrário do que se verifica
hoje. Falei-lhe, por exemplo, do Vává e de como ali nasceu o Novo
Cinema Português — com Paulo
Rocha (que habitava no mesmo
edifício), Fernando Lopes, Seixas
Santos, Lauro António, António
Pedro de Vasconcelos (que morava
quase em frente e era conhecido
pelo “perninhas”), discutindo
todas as noites às mesas do café
os filmes que tinham visto, as
críticas dos “Cahiers du Cinéma”
ou do “Positif”, enquanto na mesa
ao lado o grupo dos ‘associativos’
comentava a atualidade política
ou os artigos do “Le Monde” ou do
“Nouvel Observateur”. Eram os anos
da primeira grande crise académica,
da minissaia e dos Sheiks, da
afirmação de uma juventude que
já não cabia nos espartilhos do
regime e de uma sociedade cinzenta
e castradora. Dessas noites longas “Avenida de Roma” (Guimarães Ed.,
do Vává, recordo uma em que se 1961), contos de Artur Portela Filho
discutia acesamente um qualquer
filme que estava em exibição. O então jovem José Luís Nunes, mais tarde
deputado constituinte do Partido Socialista, precocemente falecido,
famoso pelo gesto de coçar o nariz com uma acrobática articulação do
braço direito, perorava entusiasticamente sobre o filme quando um
dos presentes, descobrindo algo que não batia certo no discurso, lhe
perguntou:
— Olha lá, mas tu já viste o filme?
Ao que ele respondeu com uma deixa que ficou famosa:
— Não sejas reacionário! Desde quando é que é preciso ver um filme
para poder falar dele?
Tudo isto justificava, expliquei ao meu amigo, o título do livro de Artur
Portela Filho. Até porque a grande protagonista de muitos dos contos era
precisamente a cidade moderna, com os seus cinemas, as suas esplanadas,
os seus cafés. Tudo aquilo que era então a Avenida de Roma, numa Lisboa
baça e pachorrenta, mas cheia de vontade de ser outra coisa. b
Ci
ne
ma
Coordenação João Miguel Salvador
jmsalvador@expresso.impresa.pt

Ruby Rose interpreta Ali, uma sargento dos


fuzileiros que integra a equipa de segurança
da embaixadora americana na Roménia

Assalto à coincidência
Pode “The
A
inda a procissão vai no adro, e já o espectador dá porteiro do edifício: Borz (Hennie), um fulano musculado
por si a questionar as opções (de argumento, de que, depois de improvisar em tronco nu uma palestra
Doorman” ser outro casting…) tomadas pelo novo filme de Ryûhey sobre Rachmaninoff (isto acontece mesmo), lhe faz saber
Kitamura, que, para efeitos de sinopse, pode ser descrito que ela chegou na altura certa, dado que o edifício irá
“Die Hard”? como um encapotado remake série C do “Die Hard” de fechar durante alguns dias para obras.
Eis o novo filme John McTiernan. Para elencarmos as perplexidades que
ele nos suscita, convém começar pelo começo, isto é,
Dentro dele, ficarão apenas Borz, um casal de idosos e
um pai viúvo com dois filhos que — a vida está cheia de
do japonês por aquela sequência que nos instala na Bucareste dos coincidências — é nada mais nada menos do que o marido
nossos dias para nos apresentar à protagonista. Falamos da falecida irmã de Ali. Por simples conveniência do
Ryûhey Kitamura de Ali, uma sargento dos fuzileiros que integra a equipa de argumento, ele convidará Ali para jantar em sua casa na
TEXTO VASCO segurança da embaixadora americana na Roménia, e que mais inconveniente das noites: aquela em que o edifício
BAPTISTA MARQUES é interpretada por uma Ruby Rose a tal ponto fotogénica será encerrado e em que Borz tratará de se revelar como
e bem maquilhada que se torna difícil acreditar nas suas um agente infiltrado, a soldo de um traficante de arte
competências militares. francês (Reno). O que pretende ele? Deitar a mão a um
Elas serão, porém, espetacularmente exemplificadas punhado de valiosos quadros que — a vida está cheia de
quando a embaixadora é vítima de um atentado terrorista coincidências — foram escondidos no apartamento do
(que, apesar das sucessivas acrobacias de Ali, redundará cunhado da protagonista, que, graças a mais uma incrível
na morte de toda a gente menos ela). No fim deste casualidade, fora dar uma volta pelo prédio quando a
prefácio, são pelo menos três as perguntas que ficam trupe do traficante decidiu aparecer para jantar.
sem resposta: porque foi a embaixadora assassinada por O que se segue é um thriller que, como já se terá
terroristas? Quem eram eles? E, sobretudo, que obscuros percebido, precisa de acumular as coincidências para
motivos terão levado os argumentistas a ficcionar chegar onde quer: à composição de um tosco sucedâneo
um atentado na Roménia? O Sudão do Sul já estava de “Die Hard”, que, do seu modelo, guarda apenas a
Q reservado? estrutura narrativa (centrada na operação de resgate
THE DOORMAN — Pouco importa. Duas sequências mais tarde, já Ali está do cunhado e dos seus filhos). Quanto ao resto, o filme
IMPLACÁVEL ao balcão de um bar nova-iorquino, na companhia de limita-se a encenar, sem qualquer engenho, uma série
De Ryûhey Kitamura um veterano da Guerra do Vietname que, após escutar de sequências de ação que nos convidam a assistir à
Com Ruby Rose, Jean Reno, Aksel o relato das suas agruras (o trauma resultante do progressiva eliminação dos raptores (que são a tal ponto
Hennie (EUA) atentado, a misteriosa morte da sua irmã...), se dispõe a ineptos que, por pouco, não se eliminam a si próprios).
Ação/Drama/Thriller / Classificação arranjar-lhe um trabalho como porteira num complexo Ficamos, pois, com uma refeição requentada à pressa, que
a definir de apartamentos de luxo. É aí que ela conhece o outro nasceu para servir como fundo de catálogo. b

E 62
E ainda...
SOB AS ESTRELAS DE PARIS
De Claus Drexel
Q QQQ Drama francês, passado em Paris, so-
O SOM QUE DESCE CRÓNICAS DE FRANÇA DO É DEMAIS PARA MIM bre uma mulher, Christine (Catherine
NA TERRA LIBERTY, KANSAS EVENING SUN De Alice Filippi Frot) que encontra uma criança eri-
De Sérgio Graciano De Wes Anderson A realizadora italiana (nome de se- treia de oito anos, perdida na capital.
Com Gabriela Barros, José Condessa, Com Benicio del Toro, Tilda Swinton, gunda linha em títulos como “Spectre” Apesar das dificuldades que enfrenta
Margarida Marinho (Portugal) Léa Seydoux (EUA/Alemanha) ou “Inferno”) atira-se à empreitada — entre bancos alimentares e as ruas
Drama M/12 Comédia M/14
de adaptar o romance homónimo de —, decide abrigar o pequeno Suli
ESTREIA Quando, num aquartelamento ESTREIA Se o prestígio de um realiza- Eleonora Gaggero (Presença). Opor- (Mahamadou Yaffa). Toma como sua
no mato, em zona de luta armada de dor se medir pela quantidade de atrizes tunidade para conhecer a história a missão de encontrar a mãe do me-
Angola anos 60, um soldado com farta e atores de grande nome, talento e de uma jovem que sofre de uma rara nino e não será fácil demovê-la. Uma
cabeleira encaracolada (juba, dir-se- gabarito que com ele querem traba- doença degenerativa, Marta (Ludovi- viagem emocionante pelo submundo
-ia...) se dirige a um capitão para lhe di- lhar, então, a avaliar pelo elenco deste ca Francesconi), e da sua vontade de parisiense. Em cartaz.
zer já nem sei o quê, a minha capacidade filme, o de Wes Anderson está mesmo encontrar o amor. Arturo (Giuseppe
de acreditar nos acontecimentos de lá em cima. Em alguns casos são quase Maggio) é o rapaz dos seus sonhos.
“O Som que Desce na Terra”, de Sérgio só aparições, mas nunca é indiferente Beatrice (Gaggero) a rival.
Graciano, apagou-se e não voltou a que esteja lá Tilda Swinton ou a Maria
reacender até que o filme se extinguis- Francisca. Não é só o toque pessoal, a
se. Como é possível figurar soldados na trouvaille de um pequeno gesto, o su-
Guerra Colonial naqueles preparos? blinhar de um sotaque, o trabalho de in-
Não houve, ao menos, o cuidado de terpretação propriamente dito que, no
disciplinar atores e figurantes a terem caso particular do universo-Anderson,
cortes de cabelo regulamentares? é a assunção de um ‘boneco’ reconhe-
Não houve, não. Como não houve em cível em termos de grande referencial.
inúmeros outros pormenores (o uso de É, sobretudo, um gesto de cumplicida- FAMINTO
pistolas no teatro da guerra, um cabo e de para connosco, uma piscadela de I AM GRETA De Scott Cooper
um tenente-coronel a jantar à mesma olho. Nós sabemos quem eles são, eles De Nathan Grossman Filme de terror e mistério, prota-
mesa, a mina que rebenta na proximi- sabem que nós sabemos, vamos brincar O documentário segue a jovem ati- gonizado por Keri Russell, Jesse
dade do aquartelamento e os soldados ao faz de conta. Brincar. Nunca a dupla vista Greta Thunberg entre agosto Plemons e Jeremy Thomas, sobre
que vão a correr como se fossem acudir significação da palavra inglesa play de 2018, quando iniciou a sua greve uma professora que descobre um
a um acidente numa esquina de Lisboa, encontrou melhor materialização que escolar pelo clima, e setembro do segredo sobrenatural no seio da
nem armas levam...) que não são se- nos filmes de Wes Anderson, com a sua ano seguinte — quando atravessou família de um dos alunos. O instinto
cundários se queremos credibilizar uma imagética constantemente surpreen- o Atlântico a bordo de um veleiro protetor leva-a a decidir tomar con-
narrativa — a começar logo na alavanca dente, as suas histórias absurdas, irra- para discursar na cimeira do clima da ta do rapaz, mas a decisão pode pôr
para toda a história. A mulher de um ofi- zoáveis, extravagantes, um estilo quase ONU. Em sala. a sua vida em perigo. Em exibição.
cial de carreira (capitão dos Comandos), burlesco, mas, porque estilizado, de pé
desaparecido em combate, parte para atrás, fazendo de nós crianças grandes.
Angola à procura do marido? Onde é Se alguém vos contraditar que não ESTRELAS DA SEMANA
que se viu tal despautério? Claro, a fic- acredita, digam-lhe que é tudo a fingir, Jorge Vasco
Francisco
ção introduz as mensagens gravadas de acordem o prazer lúdico da fantasia. No Ferreira
Leitão Baptista
Ramos Marques
familiares que ela leva para os soldados caso particular de “Crónicas de França
no terreno, no fundo o verdadeiro tema do Liberty, Kansas Evening Sun” é uma Crónicas de França do Liberty, Kansas Evening Sun QQ QQQ
do filme (a tarefa que Maria Estefânia fantasia com âncora num sítio específi- Duna Q QQQ QQ
Anacoreta, do Movimento Nacional Fe- co (França), numa época determinada Era Uma Vez a Máfia QQQ QQQ
minino, a si mesma impôs em 1967, his- (a segunda metade dos anos 60) e na
tória real que está na base da conceção atividade jornalística de um punhado de Eternals (Eternos) QQ
de “O Som que Desce na Terra”). Melhor luminárias sediado na imaginária cidade Fabian — Going to the Dogs QQQQ
seria ter ficado por aí, sempre se evitava de Ennui-Sur-Blasé (um nome pira- A Família Addams 2 QQ
a cena caricata da senhora a dirigir-se midal, pelo trocadilho e pelo excesso)
A Noite Passada em Soho QQ QQQ QQ
a um guiché com um letreiro a dizer e que conta histórias para um jornal…
que era ali o Estado Maior... E aquele do Kansas. As histórias são a matéria Uma Paixão Simples QQQ QQ
final, tão abrupto como falho de senso? do filme, uma sequência de sketches O Som Que Desce na Terra Q
Parece recurso de escribas em crise de onde se brinca com a contestação
Spencer Q QQQQ
conclusão, mata-se o bicho e ala que estudantil, a arte moderna, a refinada
se faz tarde! Dói ver os esforços dos culinária de um cozinheiro da polícia e Terra Nova QQQ
atores — a estrelinha é para eles — para mais umas tantas coisas que quem for The Card Counter — O Jogador QQQQ QQQQ
segurar uma ficção cheia de buracos e ver o filme, verá. Decorrem em espaços Três Andares QQQQ QQQQ QQQ
que, lá no fundo, tinha um bom ponto de visuais deslumbrantes, tanto no uso de
partida. Mas não há maneira de os cerzir. cenários de carpinteiro e tinta como de O Último Duelo Q QQQQ
/ JORGE LEITÃO RAMOS efeitos digitais. Puro prazer. / J.L.R. DE b MÍNIMO A QQQQQ MÁXIMO EXPRESSO

E 63
“É
uma história de crime, sobre o órgão federal de controlo dos impunes. Muitas pessoas pensam
esta empresa criminosa narcóticos), a série acompanha os que já saíram.”
que está a fazer milhões principais protagonistas de uma Mas esta é também a história das
de dólares a mentir a pacientes investigação que demonstrou vítimas. Seguindo a personagem de
e médicos sobre os perigos de como a família Sackler e o seu Michael Keaton, um médico rural
um medicamento”, avança o medicamento OxyContin criaram a da Virgínia, ficamos a conhecer uma
criador Danny Strong no início da “pior epidemia de drogas da história “comunidade mineira angustiada”
entrevista ao Expresso. “Dopesick”, da América”. que se tornou no epicentro da crise.
drama inspirado em eventos reais, “[A série] quer documentar os Por entre as paisagens naturais e
desvenda ao longo de oito episódios crimes da Purdue Pharma para que frias do sudeste norte-americano,
a complexa teia de mentiras na as pessoas possam ver o nível de vemos como as condições de
origem da crise de dependência fraude e criminalidade envolvidos trabalho duras, pródigas em
de opioides que matou 50 mil no OxyCotin. Todo o medicamento lesões e acidentes, tornaram estas
pessoas por overdose só em 2019. era baseado na mentira de que pessoas na demografia ideal para
Coordenação João Miguel Salvador Das salas de reuniões da Purdue era menos viciante que outros promover uma droga que se dizia
jmsalvador@expresso.impresa.pt Pharma aos escritórios da DEA opioides e, por isso, tudo o que a revolucionária e fazer milhões às
(Drug Enforcement Administration, empresa fez em torno deste era uma custas de vidas destruídas.
mentira, desde o marketing aos “Dopesick” — o termo inglês que
dados científicos que ‘provavam’ dá nome à série, emprestado do
que não era viciante”, acrescenta o livro homónimo que a inspirou —

História também realizador e argumentista.


“A extensão da criminalidade desta
família é simplesmente chocante
para mim. As pessoas precisavam
é afinal o termo usado por quem
caiu no vício para descrever os
incapacitantes sintomas físicos e
psicológicos de quem tenta deixar

de uma
de saber o que aconteceu, o medicamento, uma agonia
especialmente quando se tornou tão grande que a certa altura os
aparente que os Sacklers vão sair pacientes continuam a tomar o
opioide para simplesmente evitar
o síndrome de abstinência. “Tenho

ressaca
esperança que a série também possa
mostrar terapias. Nós falamos
sobre tratamentos nos dois
episódios finais para que as
pessoas possam ver que existe

americana Rosario Dawson


interpreta Bridget
Meyer. É sobre esta
agente da DEA uma
“Dopesick” mergulha no epicentro da crise das histórias que
Danny Strong conta
dos opioides nos Estados Unidos e segue em “Dopesick”

o rasto da investigação que mostrou como


uma única família transformou milhões
de pessoas em toxicodependentes
TEXTO CLÁUDIA MONARCA ALMEIDA
DISNEY+

DOPESICK
De Danny Strong
Michael Keaton, Peter Sarsgaard,
Michael Stuhlbarg, Kaitlyn Dever,
Rosario Dawson
Disney+, em streaming
(Temporada 1)

E 64
“A série quer
E ainda...

documentar os
crimes da Purdue
Pharma para
que as pessoas
possam ver o nível TICK, TICK... BOOM!
de fraude e De Lin-Manuel Miranda
Netflix, estreia sexta
criminalidade Adaptação televisiva do musical
envolvido no autobiográfico sobre o compositor
e dramaturgo norte-americano
OxyCotyn” Jonathan Larson. Andrew Garfield é
DANNY STRONG o protagonista.
CRIADOR DA SÉRIE

efetivamente um caminho para


fora e para a frente da dependência.
Penso que isso pode ser algo que
nos ajuda, enquanto país, a virar a
página nesta crise.”
As consequências da dependência THE NORTH WATER
estão inequivocamente apresentadas De Andrew Haigh
HBO Portugal, em streaming
na série. Contada de forma não
(Temporada 1)
linear, consegue num só corte
saltar no tempo e mostrar como Drama histórico de aventura, passa-
jovens inocentes são atirados para do em 1859 e baseado no romance
o vício, prostituição e desespero. de Ian McGuire. Tudo acontece num
Esta estrutura narrativa, considera navio chamado “The Volunteer”.
o criador, “embora desafiante,
era a única forma de contar esta
história”. “Queria contar a história
da acusação, da agente da DEA,
da Purdue e das vítimas. E todas
elas acontecem em períodos de
tempo diferentes. Se as tivéssemos
apresentado de forma linear, os
procuradores só apareciam no
episódio sete e não acho que a série
fosse tão dramaticamente cativante LA BREA
sem a investigação como espinha De David Appelbaum
TVCine Action, quartas, 22h10;
dorsal. Além disso, as audiências
TVCine+, em streaming
são sagazes. Foram feitos muitos
(Temporada 1)
documentários e programas de TV
nos últimos cinco anos com este Série de ficção científica passada em
tipo de saltos no tempo. Não é uma Los Angeles, onde um enorme bura-
ideia revolucionária.” co engole parte da cidade — revelan-
A série dramática não está, do uma terra primitiva desconhecida.
no entanto, classificada como
documentário, ainda que Danny
Strong discorde. “Na verdade,
vejo-a como uma série documental,
porque ainda que estas sejam
personagens compósitas não
deixam de representar a verdade.
Na sua base está o que aconteceu
a muitas pessoas cujas histórias li. SERENGETI
Além de que inclui muitas das ações Opto, estreia terça
(Temporada 2)
reais da Purdue.” A dar vida a estas
personagens estão Michael Keaton, Série documental da BBC, gravada
Peter Sarsgaard, Michael Stuhlbarg, no santuário da vida selvagem da
Will Poulter, John Hoogenakker, África Oriental, mostra como vivem
Kaitlyn Dever e Rosario Dawson. b os animais nesta terra lendária.
Coordenação Luís Guerra
lguerra@blitz.impresa.pt

NATHAN KEAY
Alan Sparhawke e Mimi Parker,
o casal Low desde 1993

nossa volta. No ano passado, houve

O ponto onde
também os enormes protestos Black
Lives Matter. Foi como um grande
despertar profundo da América sobre
a necessidade urgente de pensarmos o
que deveríamos fazer. Ainda estamos

tudo rebenta
a sair dos anos Trump... foi uma época
horrível para a qual a pandemia foi
a cereja em cima do bolo. E houve
todos aqueles medos que vieram à
superfície: o que irá acontecer se não
puder sair daqui? Se não puder estar
Ao 13º álbum, os Low consumam uma metamorfose com a minha família e com os meus
amigos? ‘Days Like These’ foi escrita
iniciada em “Double Negative”. Fazem-no com ainda imediatamente antes da pandemia
e era um olhar sobre quão ridícula a
maior dissonância. “Derrubada a porta, quisemos conhecer atmosfera política e social se havia
o que haveria do outro lado”, confirmam ao Expresso tornado. E sobre quem, na realidade,
somos e tudo aquilo que supúnhamos
TEXTO JOÃO LISBOA indiscutível, enquanto raça, género...
Darmo-nos conta, quando já somos

H
á três anos e ao 12ª álbum, invertido: “It’s more let it out than mais velhos, de que a nossa forma de
os Low — Mimi Parker, let it go, it’s not the end, it’s just the ver as coisas está errada, é bastante
Alan Sparhawk e, então end of hope.” Agora que, com “Hey estranho.”
ainda, Steve Garrington — despiam What”, se dispõem a cartografar o O ponto de viragem estética na
definitivamente a pele do slowcore território então descoberto, Alan e música dos Low ter coincidido com as
(que, na verdade, sempre haviam Mimi conseguem já traçar as linhas convulsões que sacudiram os EUA (e
rejeitado) e entregavam-se a um que unem esse tempo com o do o resto do mundo) não deverá servir,
exercício de autêntica metamorfose: pesadelo pandémico que se lhe seguiu porém, como explicação de causa
“Double Negative”, um dos mais e que esteve também como pano de e efeito pronta a usar: “Fazemos a
assombrosos álbuns de 2018, fundo do novo álbum: “Tínhamos música que, agora, fazemos porque
soterrava as canções em avalanches tudo isso na cabeça, evidentemente”, tivemos bastante tempo para a pensar
de estridência e dissonância, dizem ao Expresso. “Porém, somos e trabalhámos com muitas pessoas
eletrocutava melodias e harmonias e, ambos muito pouco deliberados no diferentes. A cada passo, aprendemos
QQQQ numa reação quase instintiva aos anos que escrevemos. Não planeamos os um pouco mais e fomos ganhando
HEY WHAT da peste-Trump, autorizava que, pelo tópicos sobre que vamos escrever. confiança e clarificando o nosso rumo.
Low meio da tempestade eletroacústica, O que acaba por surgir são as ‘Double Negative’ foi uma grande
Sub Pop/Popstock se decifrasse uma espécie de SOS nossas reações ao que acontece à mudança. Já tínhamos trabalhado em

E 66
‘Ones and Sixes’ com BJ Burton, que próprios discos: David Bowie, The
nos tinha feito entrever uma nova Clash, Hüsker Dü, R.E.M., Violent
direção e, nesse álbum, mergulhámos Femmes, todos a que pudéssemos
de cabeça, sem qualquer hesitação. deitar a mão.” Tudo isso ter tido lugar
Agora, procurámos ir além disso, em Duluth, Minnesota, chão sagrado
transcender essas técnicas e do Nobel da Literatura de há seis anos,
abordagens.” Na verdade, apesar de não terá feito pairar um permanente
antes terem experimentado confiar-se fantasma sobre as cabeças de Alan e
a diversos produtores da nata norte- Mimi? “Só um bocadinho... Quando
americana — Kramer, Steve Albini, já era mais velho, costumava ir
Jeff Tweedy, Dave Fridmann —, foi aborrecer o dono de uma loja de
BJ Burton quem lhes desbloqueou instrumentos e ele contava-me que
M/12
a visão: “É um engenheiro de som tinha frequentado a mesma escola
muito audacioso, sempre interessado do Bob Dylan e recordava-se de
em descobrir novas sonoridades e histórias que lá tinham acontecido.
conduzir ao limite as possibilidades Quando fomos para a universidade,
tecnológicas. Desde os Beatles — ou em Duluth, aí sim, tive a noção de
até os Pere Ubu — que essa vontade de que, embora de uma forma discreta, a
tirar o máximo partido do potencial cidade orgulha-se de Dylan. A minha
dos estúdios é uma das áreas mais rendição a ele, contudo, só aconteceu
interessantes. Tornou-se um grande há cerca de 15 anos. Antes disso,
amigo e colaborador nosso.” escutava Joy Division, Bauhaus, The
Há várias formas possíveis de Cure, Brian Eno, La Monte Young,
olhar para a relação entre “Double Swans, Velvet Underground.” E, no
Negative” e “Hey What”: se um meio dessa floresta de referências,
poderia ser encarado como a fase quando sentiram ter encontrado
aguda do desenvolvimento de uma a sua via? “Isso acontece quando
infeção no interior de um corpo escrevemos a nossa primeira canção.
belíssimo, o outro representaria Desejamos ser originais e trilhar um
a passagem a um estado crónico caminho próprio. Às vezes, de uma
no qual, embora ainda presente, forma tão obsessiva que chega a
a doença está já sob controlo; o cegar-nos para o facto de, se calhar,
primeiro encontro com uma nova sermos iguais a todos os outros!
linguagem e a posterior capacidade [risos] Mas sentimos que descobrimos
de a dominar e utilizar com fluência... qualquer coisa que estava escondida e
Mimi entusiasma-se: “Uau! É mais ninguém conhecia.”
certamente uma forma muito Como, agora mesmo, voltou a
interessante de colocar a questão. suceder. Ao ponto de as fontes
Também poderia dizer que foi uma sonoras se terem tornado dificilmente
semente que plantámos e que, identificáveis. “É mais um resultado
agora, desabrochou numa lindíssima da forma como, hoje, abordamos
flor. Uma lindíssima e ruidosa flor. a música. Temos as canções —
Quem sabe o que virá a seguir? Por textos, melodia, acordes —, mas o
enquanto, satisfaz-nos continuar a objetivo é chegar a algo que nunca
ir para o estúdio e descobrir o que tenhamos ouvido antes. Gosto de
possamos lá achar. Em ‘Double tocar guitarra, mas há qualquer
Negative’, deitámos abaixo algumas coisa na expressividade dela que não M/6
barreiras, descobrimos coisas novas e, quero que soe como uma guitarra.
desta vez, tentámos apanhar alguns Tecnologicamente, podemos explorar
desses destroços e pensar no que imensas vias para dilatarmos os
poderíamos ser capazes de construir limites do que é possível e nos
a partir daí. Derrubada a porta, aproximarmos do ponto onde tudo
quisemos conhecer o que haveria do rebenta e coisas interessantes
outro lado.” acontecem.” E como, afinal, ao longo
O que estava, entretanto, no ponto de quase três décadas, não tem parado
de partida, em 1993, quando os Low de acontecer: “Fazemos música
MÚSICA PYOTR ILYICH TCHAIKOVSKY COREOGRAFIA MARIUS PETIPA
iniciaram a caminhada? “Quando juntos há 28 anos, já tocámos com
era miúdo, a música, para mim, era imensas bandas. No entanto, há casos
magia. Nessa altura — final dos anos especiais — como aconteceu com os
70, início de 80 — vivíamos numa Dirty Three ou com os Swans — em
comunidade agrícola, bastante longe que sentimos ter sido um privilégio
da cidade. A informação acerca do raro conhecer e ter estado com
que se passava era muito escassa. artistas tão extraordinários. Mesmo
Lembro-me de ouvir os discos dos agora, já bastante mais velhos, como
Doors do meu pai e até... os Emerson, não estremecer quando descobrimos,
Lake & Palmer ou ‘In-A-Gadda-Da- por exemplo, Alice Coltrane? Porque
Vida’, dos Iron Butterfly! Isto, antes nunca a tínhamos ouvido? De onde
de começarmos a comprar os nossos saiu ela?” b

M/6
QQQQ QQQQQ
TALK MEMORY OOKII GEKKOU
BadBadNotGood Vanishing Twin
XL/Popstock Fire Records

Os BadBadNotGood (BBNG) são um Quando, em junho de há dois anos,


(agora) trio de jazz de Toronto cujo os Vanishing Twin publicaram “The
nome surge em créditos de registos de Age of Immunology”, estavam muito
gente tão diversa quanto Kaytranada, longe de imaginar que, apenas seis
Snoop Dogg, Little Simz, Kendrick meses depois, esse título poderia
Lamar, Thundercat ou Ghostface vir a ser considerado profético.
Killah, para mencionar apenas uma Desconhecíamos então quase tudo
breve amostra de uma extensa lista sobre zoonoses, morcegos e pangolins,
Os britânicos Black Country, New Road de colaborações enquanto músicos por isso apenas nos concentrámos
atuam dia 20 no Coliseu de Lisboa de sessão, compositores e/ou nas referências da banda ao livro
D.R.

produtores. A menção de tal facto homónimo de David Napier, professor


serve apenas para lhes sublinhar de Antropologia Médica no University

De volta à Avenida a proficiência e a capacidade de


encaixe de uma vincada identidade
musical em contextos muito diversos,
College de Londres, que, em 2003,
alertava para a arrepiante ideia —
indiscutivelmente pandémica — de

D
epois de um ano de Lava La Rue (dia 19, 23h30, qualidade a que recorrem uma vez que, tal como o organismo humano
interregno, o festival Super Capitólio) e do duo Wet Leg (dia mais em “Talk Memory”, o álbum que se defende através da eliminação de
Bock em Stock regressa 20, 23h10, Estação Ferroviária sucede a “IV” (2016) e que marca a corpos estranhos e micro-organismos
à Avenida da Liberdade para dar do Rossio), que com apenas dois estreia do grupo na XL Recordings. infecciosos, o mesmo deveria ocorrer
música aos lisboetas. Mantendo a singles ameaça tornar-se uma das Alexander Sowinski (bateria e na sociedade expulsando e eliminando
tradição, o evento leva a algumas revelações do ano. percussão), Chester Hansen (baixo e todos os elementos não autóctones.
das salas mais emblemáticas da A programação da sala Santa teclados) e Leland Whitty (saxofones O próprio grupo, composto por
capital valores seguros e novas Casa, na Garagem da EPAL, soprano e tenor, flauta, guitarra, baixo elementos provenientes da Bélgica,
apostas das fações mais alternativas terá curadoria de Riot no dia e teclados) desdobram-se de forma a Japão, Itália, França e EUA que se
dos mais variados géneros musicais. 19 — com atuações de Pimenta compensar a ‘deserção’ de Matthew haviam cruzado no Reino Unido
O cartaz será encabeçado por duas Caseira (20h15) e João Não & Lil Tavares, teclista que deixou a banda em vésperas do Brexit, era já uma
bandas londrinas, que levam ao Noon (22h20) — e de Samuel Úria para seguir carreira em nome próprio. primeira declaração de combate.
palco do Coliseu dos Recreios as no dia 20 — com concertos de O trio recorre, no entanto, à sua vasta Que, curiosamente, se manifestava
suas abordagens muito próprias Jónatas Pires (20h15) e Monday lista de contactos para expandir através de um improvável cocktail
ao rock: os Django Django (dia 19, (22h20). Ambas as noites do “Talk Memory” com os significativos sonoro de krautrock, Sun Ra, library
22h15) regressam a um evento onde festival terminam, no Coliseu, com talentos de músicos como Terrace music, Martin Denny, Can e Morricone,
já foram felizes para apresentar as prestações de duas duplas de Martin, Karriem Riggins ou Brandee acondicionado na acolhedora
o quarto e mais recente disco de peso: na primeira, os ex-Heróis do Younger, nomes recorrentes embalagem de uns Stereolab/
originais, “Glowing in the Dark”, e Mar Rui Pregal da Cunha e Paulo quando se fala de uma nova geração Broadcast de última geração. “Ookii
o coletivo revelação Black Country, Pedro Gonçalves apresentam-se de criativos jazz, bem como dos Gekkou” (em japonês, “Big Moonlight”)
New Road (dia 20, 22h) vem em formato DJ set (00h45), na veteranos Laraaji, guru new age, e aprofunda e dilata o horizonte desta
defender o disco de estreia, “For the segunda, será a vez de Moullinex Arthur Verocai, o mítico arranjador enigmática terra incógnita assente
First Time”, editado em fevereiro e Anna Prior, que conhecemos brasileiro que veste de seda e cordas sobre infinitas fantasias Dada-
deste ano, e, quem sabe, levantar como baterista dos Metronomy e um terço do álbum. Em “Talk Memory”, abstraccionistas, space-age, free
o véu sobre um segundo longa- se encontra neste momento a viver os BBNG combinam o lado elétrico de jazz em lento processo de dissolução,
duração que tem edição prevista em Lisboa, (00h30) juntarem Miles Davis, os altos planos espirituais orientalismos em contraluz, o
para fevereiro do próximo ano. esforços para fazer dançar os de Alice Coltrane ou Pharoah infatigável dínamo rítmico de Valentina
Entre espetáculos de artistas “da festivaleiros. Paralelamente à Sanders com o lado mais laboratorial Magaletti, evocações distorcidas de
casa” como Tomás Wallenstein, programação musical, a sala do psicadelismo à la Stereolab, afrofunk e samples de ronronar felino.
dos Capitão Fausto, a solo (dia 3 do Cinema São Jorge será demonstrando uma capacidade Uma microscópica música molecular
19, 20h40, Teatro Tivoli), Mundo palco de uma série de debates, de harmonização de diferentes em interminável mutação às mãos
Segundo & Sam The Kid (dia 19, subordinados ao tema “A música linguagens derivada do estudo do (agora) quarteto composto pela
20h45, Coliseu), Cláudia Pascoal de regresso no pós-pandemia”. atento do ecletismo ‘sampladélico’ mastermind Cathy Lucas, Magaletti,
(dia 20, 22h50, Cinema São Jorge) / MÁRIO RUI VIEIRA de produtores de hip-hop como DJ Susumu Mukai e Phil MFU, armados de
ou David & Miguel (dia 20, 23h, Shadow, Madlib ou J Dilla. E é na xilofone, glockenspiel, sintetizadores,
Teatro Tivoli), destacam-se ainda subtil tensão que se estabelece mellotron, guitarra, baixo e bateria,
concertos dos dinamarqueses entre essa reverência académica com o recrutamento externo de
Iceage (dia 19, 23h, Teatro Tivoli), pelo passado e a genuína atenção às cordas e sopros eventuais (e da special
que gravaram o novo álbum “Seek SUPER BOCK EM STOCK cadências presentes que se descobre guest star Lætitia Sadier, em
Shelter” nos Estúdios Namouche, Vários locais, Lisboa, 19 e 20 o brilho intenso deste álbum. guitarra). Caleidoscópio do ano.
em Lisboa, da rapper britânica www.superbockemstock.pt / RUI MIGUEL ABREU / JOÃO LISBOA

E 68
E ainda...

RITA CARMO
QQQQ
A POET’S LOVE
(PROKOFIEV: ROMEO & JULIET RUI VELOSO
+ SCHUMANN: DICHTERLIEBE) Super Bock Arena — Pavilhão Rosa
Timothy Ridout (viola), Mota, Porto, hoje e amanhã
Frank Dupree (piano) Passando em revista 40 anos de car-
Harmonia Mundi
reira e canções como ‘Porto Sentido’
ou ‘Chico Fininho’, Rui Veloso apresen-
Para valer a pena, as transcrições e ta-se no Porto em formato acústico e
versões de obras muito escutadas intimista. Repete a dose a 26 e 27 no
têm de trazer algo de interessante. Campo Pequeno, em Lisboa.
Não será possível regravar mais uma
versão da famosíssima canção ‘Ne
Me Quitte Pas’, de Jacques Brel,
sem ter uma novidade, mesmo que
seja pequena. Pois há aqui muitas
novidades nos engenhosos arranjos
da autoria do violetista Vadim
Borisovsky para ‘Romeu e Julieta’, de
Prokofiev, o bailado inspirado na peça
shakespeariana. Explorando o leque
completo das técnicas do arco e as
sonoridades próprias do instrumento, BONGA
aquele que é considerado como Altice Arena, Lisboa, sexta;
Super Bock Arena — Pavilhão Rosa
o ‘pai’ da viola na Rússia escreveu
Mota, Porto, dia 20
arranjos de mais de 250 obras,
desde peças de Bach até à música Bonga marca 50 anos de carreira
contemporânea russa. Foi membro com espetáculos na Sala Tejo da
fundador do Quarteto Beethoven, Altice Arena, em Lisboa, e na Super
intérprete privilegiado da música de Bock Arena — Pavilhão Rosa Mota,
câmara de Shostakovich e, quando no Porto. Terá como convidados
perguntaram ao músico russo o que Paulo Flores e Jovens do Hungo.
mais apreciava no violetista, a resposta
foi esta: “O que mais me atrai na
personalidade de Borisovsky? Tudo!” ANA MOURA
O que encontramos ainda na gravação Multiusos, Guimarães, hoje
de jovens como o violetista britânico Ana Moura sobe esta noite ao palco
Timothy Ridout e o pianista alemão do Multiusos vimaranense para um
Frank Dupree? Ridout enriqueceu o concerto no qual não só apresentará
repertório de viola com as transcrições canções do próximo álbum, com
que fez sobre as 16 canções do ciclo edição agendada para dezembro,
de Schumann, ‘Dichterliebe’ (op. como grandes êxitos passados.
48), numa reinterpretação de peças
muitíssimo apreciadas. Os poemas
de Heine inspiraram Schumann e o
conceito explorado por Ridout foi o
de trocar a voz de um cantor por um
instrumento, a viola. O risco é grande,
pois os ouvintes estão acostumados
à tradicional associação entre o piano
e a poesia das maravilhosas páginas
da literatura romântica. Pela paleta
emocional e as cores expressivas RICHARD STRAUSS:
da viola houve uma verdadeira
ENOCH ARDEN
CCB, Lisboa, amanhã
apropriação da partitura de Schumann
em canções como ‘Im wunderschönen Nunca antes ouvido em Portugal, o
Monat Mai’ , ‘Ein Jüngling liebt ein melodrama composto por Strauss
Mädchen’ e ‘Die alten, bösen Lieder’, para o poema narrativo “Enoch Ar-
mas a tradução musical não foi tão den”, de Alfred Tennyson, será levado
bem conseguida em Lieder mais ao palco pela atriz Rita Blanco e o
vagarosos. / ANA ROCHA pianista Nuno Vieira de Almeida.
“O
s nossos corpos são os em direção a um ritual de união
nossos arquivos.” Este é em amor e erotismo. A peça
o título da performance renasce, ainda em antestreia,
que o coreógrafo congolês Faustin nesta edição do Alkantara (20 e
Linyekula apresentou na Tate 21 de novembro, Teatro Nacional
Modern (Londres) no ano passado. D. Maria II). Há muito convívio
Há muito que este exímio contador entre opostos neste Alkantara 2021:
de histórias traz para os seus há a radicalidade dos discursos
espetáculos, para o seu corpo e artísticos que são manifestos
os corpos que com ele partilham políticos — o tema do festival é
o palco, visões críticas, poéticas “dar o corpo aos manifestos para
e políticas da história de África construir o futuro” — que ao
em geral e do seu país natal em mesmo tempo rasgam espaços
particular, o Zaire, atual República comuns de partilha. Os paradoxos
Coordenação Cristina Margato Democrática do Congo. É de Faustin convivem também entre registos
cmargato@expresso.impresa.pt o espetáculo de abertura do Festival mais subtis ou mais exuberantes
Alkantara, “Histoire(s) du Théâtre no modelo performativo adotado.
II” (13 e 14, Culturgest), onde viaja “She Gave It to Me I Got it from
até à fundação do Ballet Nacional Her”, de Clara Amaral (Biblioteca
do Zaire, em 1974, e às memórias Palácio Galveias, 13, 14, 16 e 17)
do primeiro bailado criado, “A é a coreografia intimista de um
Epopeia de Lyanja”. Em “Histoire(s) livro. No outro extremo temos, por
du Théâtre II”, Faustin conta com exemplo, “Jezebel”, de Cherish
a colaboração de bailarinos que Menzo (13 a 15, CCB), que expõe
dançaram aquela peça histórica o fenómeno iniciado nos anos
para nos comover e confrontar 1990 do vídeo vixens (modelos
perante a dimensão pessoal femininas hipersexualizadas
e humana do acontecimento. em vídeos de música; uma das
Numa escala mais expandida, mais conhecidas é Nicki Minaj).
esta é também a história de mais Deste universo que traz às artes
um país africano, que por via do performativas questões fraturantes
corpo, criando uma companhia de da atualidade, também participa a
bailado, edificava uma identidade coreógrafa camaronesa-finlandesa
nacional e fazia propaganda desse Sonya Lindfors com a performance
ideário. “Histoire(s) du Théâtre II” “Cosmic Latte” (26 e 27, TBA), peça
era para ter sido apresentada há que constrói um futuro utópico de
um ano mas a pandemia cancelou. mudança radical do mundo a partir
Há outros espetáculos neste do conceito de afro-futurismo.
Alkantara que também chegam O tema das alterações climáticas
O Alkantara recebe com atraso devido à covid-19: é o surge em muitas das propostas.
o trabalho que Faustin caso da canadiana Dana Michel e A nova criação de grupo de Vera
Linyekula apresentou “Cutlass Spring” (25 e 26, Teatro Mantero, “O Susto é um Mundo”
na Tate Modern (Londres) São Luiz), a performance-ensaio (25 a 27, Culturgest), toca em todas
no ano passado sobre a sua identidade sexual. estas questões, como o fanatismo,
São apenas duas das 20 propostas o ecocídio ou o fascismo. Este
AGATHE POPENEY

artísticas marcantes que compõem Alkantara torna manifesto que se


o programa da edição deste ano do conseguirmos aceder à beleza da
Festival Alkantara, com direção diferença radical de cada pessoa,
de Carla Nobre Sousa e David conseguimos vislumbrar unicórnios.

Corpos políticos
Cebecinha, que decorre entre É essa a revelação maravilhosa de
13 e 28 de novembro em vários “Gentle Unicorn” (13 a 16, Teatro
espaços de Lisboa. Em setembro, o D. Maria II), da italiana Chiara
“Interferências” — um programa Bersani. No seu corpo compacto
de mostra de performances de pequeníssima escala (resultado
experimentais de novíssimos da doença osteogénese imperfeita
Radical e delicado, em 2021 o festival artistas de representatividades que afeta a formação óssea) guia
Alkantara celebra os unicórnios heterogéneas — revelou “Atlas da
Boca”, de Gaya de Medeiros. Peça
os espectadores numa viagem para
fora de todos os estereótipos. Há
TEXTO CLAUDIA GALHÓS de investigação de dois corpos trans anos que Chiara trabalha sobre
(Ary Zara e Gaya Medeiros) que ali a sua obsessão: o corpo político.
concretizam a sua potência poética: “Gentle Unicorn” é um espetáculo
são combativos e desafiadores, comovente. Um precioso exercício
reivindicativos e radicais, de diálogo franco sem palavras.
despojados de artifícios e expostos Para isso, ela também investigou
na sua profunda vulnerabilidade. qual seria o som que produziria
FESTIVAL ALKANTARA O público acompanha-os num um unicórnio. No final, Chiara dá a
Vários locais, Lisboa, até dia 28 percurso coreográfico, que é escutar o chamamento amoroso dos
alkantara.pt simultaneamente bruto e delicado, unicórnios. b

E 70
E ainda...
MIGUEL BARTOLOMEU

UM, DOIS, TRÊS!


De Ferenc Molnár
Teatro do Bairro, Lisboa, até 5 de dezembro
O senhor Norrison, presidente de um LISPECTOR,
banco com um escritório na Europa, está
INSTANTÂNEO CÉNICO
De Maria Duarte, Isadora Alves
prestes a apanhar um comboio que o
e João Rodrigues
levará para junto da família — a mulher
Galeria Monumental, Lisboa, hoje
e as filhas — com quem vai passar uma
semana de férias; elas partiram nessa ma- Um trabalho de Maria Duarte, Isadora
nhã. Mal dá as últimas ordens no banco, Alves e João Rodrigues a partir de
dizem-lhe que a menina Lydia chegou e Clarice Lispector e da imagem da
quer falar com ele. É a filha de um casal escritora brasileira tal como nos
americano, milionário, e amigo da família. chega durante a última entrevista
O senhor Norrison espera, ainda, fazer que concedeu a um canal de
bons negócios com eles. Lydia, que acaba televisão, e como assim se podem
de passar seis meses na Europa em casa formar diversas linhas de sentido.
dos Norrison, devia acompanhar o ban-
queiro nessa tarde. Não pode ser; os pais
dela vieram de surpresa, estão a chegar JOYEUX
dentro de uma hora, e para cúmulo Lydia
ANNIVERSAIRE
De André Tecedeiro
casou em segredo e está grávida. O jo-
Casa do Capitão, Lisboa,
vem marido é um chofer de táxi chamado
até dia 20
Antal Patas, ferozmente anticapitalista,
pobre — e honesto, diz ela. Lydia precisa Para celebrar os 15 anos da
de ajuda para não chocar a mãe. Depois companhia Meia Volta e Depois
de, num primeiro momento, evitar a à Esquerda Quando Eu Disser,
apoplexia, o senhor Norrison mete mãos à André Tecedeiro escreveu cinco
obra. Vai transformar o rapaz, reconstruí- monólogos a partir do tema
-lo. Como? “Com os meus meios. Hu- “aniversário”, um para cada artista
manos e materiais”, é explicação que dá; associado da companhia. Criação e
e só tem uma hora. A peça mostra numa interpretação de Alfredo Martins,
hora, justamente, aquilo que se passa Anabela Almeida, Cláudia Gaiolas,
para esta espécie de truque de magia. A Luís Godinho e Sara Duarte.
operação começa na roupa interior e nas
meias, passa pelos fatos, pelos sapatos,
pelo sobretudo, pelos acessórios; passa
pelo nome, que se vê acrescentado com
POWERED BY
um apelido nobre; passa, ainda, pela
renúncia ao sindicato operário e respeti-
MUSTAFA ERDOGAN

vas funções, e à inscrição num clube de


golfe para ricos; e passa por reservas de
quartos, suítes e casas, em hotéis de luxo
e estâncias na Suíça. A comédia, escrita
em 1929, foi adaptada ao cinema por Billy
Wilder (1961). Para António Pires, que en-
cena esta produção do Teatro do Bairro, THE THINGS WE CARRY 
uma das coisas que o atraiu, de imediato, De Francisco Camacho
Auditório da Biblioteca de Marvila,
 
foi ter pensado num grande ator como
Lisboa, terça e quarta !"#
Adriano Luz para representar o senhor
Norrison, outra foi a maneira como Molnár A performance “The Things We   
mostra que tudo e, principalmente, todos, Carry” resulta do trabalho de   !         "
se podem comprar; que ninguém levanta comunidades artísticas de duas #$% &$  $ '$  (
a voz perante quem tem mais dinheiro e cidades portuárias, Istambul (onde   $$ ) & (
poder. Tudo isto fazendo as pessoas rir, foi estreada) e Lisboa. Direção  *'% $
e que a moral é uma coisa inexistente. artística de Francisco Camacho,
Não é. Mas o ritmo e a leveza do tom cocriação e performance de Leyla
recobrem a reflexão moral com “o manto Postalcioglu, Mihran Tomasyan e   
diáfano da fantasia”. / JOÃO CARNEIRO Berke Can Özcan.
e@expresso.impresa.pt

Palestrador e artista,
Kambalu vem
desenvolvendo uma
produção que aflora uma
matriz pós-colonial
VERA MARMELO

Um salto entre mundos


Natural do Malawi,
E
m quase tudo, Samson coberto com capas de mestrado predeterminados, um pouco ao
Kambalu (1975) parece estar de Oxford e bandeiras com nomes jeito dos situacionistas. Essa relação
Samson Kambalu é entre dois mundos. Nascido como “Blue Primer State” ou confirma-se e desdobra-se no
no Malawi, foi ali que se formou em “Supermarket Republic” reforça peculiar caso Kambalu/Sanguinetti.
um eficiente, embora belas artes e etnomusicologia, mas um trânsito cultural que é também Em 2015, o malawiano fotografou o
por vezes tortuoso, foi no Reino Unido que prosseguiu
um percurso académico com
autobiográfico. Quase no fim, há
figuras recortadas em cartão de
arquivo do situacionista Gianfranco
Sanguinetti que havia sido vendido
manipulador passagem pelo Chelsea College of negros com uniforme colonial à biblioteca Beinecke, em Yale, por
Arts e por Yale. Palestrador e artista, colocados ao lado de uma girafa uma boa maquia, utilizando-o para
de referências Kambalu vem desenvolvendo e postais habitados por híbridas a sua participação na exposição “All
uma produção que reflete estes sinaléticas geométricas. Mas uma the World Futures”, que Okwui
TEXTO CELSO MARTINS
cruzamentos culturais de diferentes parte particularmente relevante Enwezor comissariou para a Bienal
modos, aflorando desde logo uma da sua produção está nos seus de Veneza. Sanguinetti acabou a
matriz pós-colonial. pequenos filmes de menos de um processar Kambalu e a Bienal. Em “A
Veja-se o trabalho que abre minuto nos quais ele tanto chama a Game of War: Kambalu v Sanguinetti
a exposição e que venceu si a cultura da irmandade nyau da Trial at Ostend” (2021) Kambalu
recentemente o prémio de sua terra natal, como a tradição da transforma a sua própria audição no
intervenção no quarto plinto da performance de artistas ocidentais tribunal numa disputa que mistura
praça de Trafalgar em Londres, surgidos nos anos 60, ou a influência ética política e teoria da arte e que
uma maquete de uma escultura do dadaísmo como convocando questiona o campo artístico, a autoria
evocativa da figura do pastor e uma dimensão mágico-derrisiva e a legitimação e elabora em torno
ativista anticolonialista do Malawi, transversal a várias culturas. Todos dos conceitos de ‘dádiva’ (potlatch) e
John Chilembwe, de chapéu em eles são o resultado de performances ‘desvio’ (détournement), tão caros aos
desafio ao poder colonial, aqui suas nas quais a repetição, o situacionistas. Na exposição, essa obra
acompanhada por um conjunto de gesto ritualizado, mas também o funciona como o momento apoteótico
fotografias alteradas da sua igreja absurdo e o insólito geram uma de um mecanismo que podíamos
QQQQ destruída. Ao longo do percurso arte de intenção desconcertante e designar como uma paráfrase
FRACTURE EMPIRE vão-se desenrolando as marcas de culturalmente descentrada. performativa através do qual
Samson Kambalu um passado coletivo contraditório Kambalu é um eficiente, embora Kambalu absorve, recria e devolve as
Culturgest, Lisboa, ou tornado híbrido no presente. por vezes tortuoso, manipulador contradições do mundo em forma de
até 6 de fevereiro de 2022 Um gigante e caricatural elefante de referências e de contextos dádiva. b

E 72
fragmentos com batidas de máquina de “cruzar a obra de Júlio Pomar

E ainda...
escrever, a obras que anunciam temas com a de outros artistas (neste
fundamentais como a “Biblioteca” (1948), caso, Menez e Sónia Almeida),
antes de nos aparecerem cidades e de modo a estabelecer novas
portos nos ritmos que correspondem à relações entre a obra do pintor
imagem de marca da pintora. O azulejo e a contemporaneidade”.
que bem conhecia surge numa obra sin-
gular de 1941, realizada no exílio brasileiro,
num trabalho que, para além da figura CEIJA STOJKA
de um painel cerâmico na variedade MU.SA — Museu de Artes de Sintra, de
QQQQQ dos seus fragmentos, descobrimos uma 14 de novembro a 2 de janeiro de 2022
VIEIRA DA SILVA & ARPAD espécie de fantasma. Tal como nas fotos A obra de Ceija Stojka (1933-2013),
SZENES NA COLECÇÃO com pose atravessadas por um corpo artista Rom austríaca que aos 12 anos
FUNDAÇÃO ILÍDIO PINHO anónimo que mal fica registado, figura foi libertada de um campo de concen-
Museu Arpad Szenes — Vieira da Silva, que descobrimos porque os seus pés es- tração nazi, tem sido alvo de grandes
Lisboa, até 16 de janeiro de 2022 tão claramente representados na pintura. exposições europeias nos últimos
Na criação de espaço há todo um jogo anos (La Maison Rouge, Paris, 2019;
A pequena galeria de exposições tempo- entre a prisão e a liberdade (“A gaiola e os Museu Reina Sofia, Madrid, 2020). MOON FOULARD
rárias da Fundação Arpad Szenes-Vieira pássaros”, 1948; na imagem), a cidade, o No âmbito do LEFFEST, apresenta-se Rodrigo Hernández
da Silva tem sido sempre um lugar para tempo e a erosão (“Cidade Roída”, 1958), pela primeira vez no MU.SA, em Sintra, Culturgest, Porto,
grandes exposições — esta é mais uma bem como o trauma de 68 (“Barricadas”) uma exposição da pintora, entre “pin- até 5 de dezembro
delas. Grande não pelo número de obras, no contraste entre frágeis muros e a am- turas leves” e “pinturas sombrias”. No universo do artista
mas pelo acerto das mesmas, criando biguidade informe de uma atmosfera que mexicano Rodrigo Hernández
um espaço onde revemos o conhecido faz cheirar, para quem o sentiu, o perfume (n. 1983) convivem a arte e o
e descobrimos o desconhecido na obra do gás lacrimogéneo. Na passagem de IMAGEM EM FUGA: artesanato, a alta cultura e as
maioritária de Vieira e na presença mais Arpad a Vieira mudamos do íntimo ao pú-
JÚLIO POMAR, MENEZ manifestações populares. Ex-
E SÓNIA ALMEIDA
discreta mas significativa e eficaz de blico, do campo à cidade, da construção à posição em torno de uma figura
Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa,
Arpad, com três peças — duas de interior desconstrução — a cada passo o mundo da moda italiana, Emilio Pucci
até 10 de abril de 2022
e uma bela e tensa paisagem. Descobri- muda mas permanece com a coerência (1914-1992), com desenho,
mos a versatilidade de Vieira: desde um rara que constrói a riqueza desta exposi- Continuação do programa de ex- pintura, mural, escultura e insta-
brinquedo raro, uma colagem utilizando ção. / JOSÉ LUÍS PORFÍRIO posições deste museu que procura lação como suportes.

Entrada livre
GULBENKIAN.PT Exposição organizada pela Fundação de Serralves
Casa do Cinema Manoel de Oliveira
O MITO LÓGICO

100% DE MUSK = 0% FOME

E
SIM, PODEM-SE FAZER CONTAS. ACABAR DE FORMA SUSTENTADA COM A FOME
NO MUNDO ATÉ 2030 CUSTA TODA A FORTUNA DE ELON MUSK. FAZEMOS A TROCA?

lon Musk, o CEO da Tesla, arruaceiro do Recentemente, juntou-se Madagáscar, que está longe de ainda ser o
Twitter e homem mais rico do planeta filme de animação da Disney e é hoje um dos países do mundo que
ao momento em que escrevo (mais de mais sofre com as alterações climáticas. E fome. Não se governam em
300 mil milhões de euros) disse, num África? Depois de séculos de colonização, de ser peça de xadrez na
bate-boca com o responsável das Nações Guerra Fria e posteriormente o mercado onde potências como a China
Unidas, que se garantisse de forma saquearam matérias-primas, o continente africano vai ser agora
transparente que 2% da sua fortuna (uns largado a si próprio e às alterações climáticas — provocadas pelos
5 mil milhões de euros) acabassem com países industrializados.
a fome no mundo ele passava o cheque. No Twitter, Musk diz-se paladino do ambiente talvez porque vende
Escreveu. Mas há detalhes a ter em conta. carros elétricos; teme o poder da inteligência artificial mas quer
Foi de facto o diretor do programa contra colocar um chip nas nossas cabeças; quer tornar Marte habitável,
a fome que lançou o tema ao congratular um local seguro para ser Noé, e gastar o equivalente ao PIB de meio
o Musk por ter alcançado os 300 mil milhões e desafiou-o a salvar planeta sem ter provavelmente visitado Madagáscar, onde há uma
a vida de 42 milhões de pessoas que estão em risco iminente de década poderia ter-se exilado e viver num Éden bíblico e não num
morrer de fome. Musk, um filantropo conhecido mais por anunciar casulo de oxigénio reciclado num planeta hostil. Vai para além da
doações do que as fazer, respondeu que sim, que daria esse dinheiro minha compreensão.
se provasse de forma transparente que tal montante acabaria com Se não estamos no mercado de bitcoins o melhor é ignorar os tuítes
“a fome no mundo”. Estupidamente, a CNN fez um título a dar a de Musk? Há poucos dias, já depois de não ter resolvido o problema
entender que 42 milhões de pessoas são “a” fome no mundo (corrigiu da fome na Terra, Musk fez uma sondagem na rede social a perguntar
posteriormente). São “apenas” os que estão a morrer agora. E era se devia ter de vender 10% das suas ações só para ter de pagar o tal
insano pensar que o dinheiro que já metemos na TAP e no Novobanco “imposto dos bilionários” que os democratas querem criar. Imposto
poderia salvar o mundo deste flagelo. O contribuinte português que está na agenda de Biden e visa ser usado para combater as
conseguia salvar o planeta nos Orçamentos da ‘geringonça’. Era um alterações climáticas — as tais que preocupam horrivelmente Musk.
Nobel da Paz para o António Costa. Ouçamos o pobre homem da Tesla: “Não tenho salário nem retiro
Houve quem achasse que Musk estava coberto de dinheiro e de bónus de lado algum. Apenas tenho ações. Se me quiserem cobrar
razão. Não sei se o homem que lidera o programa da ONU é boa imposto vou ter de vender 10%.” As ações servem para se gabar de
ou má pessoa, se gere bem ou mal o seu departamento. Mas não ser o mais rico do planeta, mas já não existem para serem taxáveis.
consigo não estar no lado dele. Aposto as minhas bitcoins como Musk Alguma coisa está a correr mal quando há um tipo com 300 mil
nunca colocou a hipótese de dar um tusto para o programa contra milhões de euros, um mundo com 700 milhões de pessoas que vão
a fome: num tuíte exibiu que tinha dinheiro para matar “a fome dormir com fome todas as noites, e ele ainda se dá ao luxo de gozar
do mundo”, qual Deus da abundância, e deu a entender que se a com a situação.
ONU fosse gerida por um Musk não haveria fome no planeta. Nunca P.S. — Segundo o “Global Hunger Index”, reduzir de forma sustentada
imaginei ter tanto hate mail, tantos Musketes a exigir que eu me e sustentável a fome no mundo até 2030 custa por volta de 330 mil
penitenciasse publicamente quando questionei esta treta toda. “Ele milhões de dólares. Exatamente um Elon Musk de novembro de 2021.
é que foi provocado!” O drama era quem tinha iniciado o beef. Isso Sondagem: eu faço a troca. E você? b
sim importava: foi o homem das Nações Unidas na CNN a dizer que lpnunesxxx@gmail.com
há 42 milhões de pessoas em vias morrer de fome as we speak, e que
precisam desesperadamente dos tais 6 US bi (lixadas estas conversões
para euros), o equivalente a um dia de ganhos de Musk nessa semana.
O homem da Tesla só respondeu à “provocação”. O tanas. Musk
não compreende o que é a “fome no mundo” e imagina que se pode
resolver com drones a largar Big Macs sobre aldeias agradecidas.
As Nações Unidas têm pela frente um cenário desolador: cortes
brutais dos países doadores (a era Trump foi devastadora), a
pandemia que colapsou as economias mais frágeis levando à rutura
de comunidades inteiras, novos cenários de conflitos armados que
levam a ondas de refugiados e a áreas do planeta a sofrer duramente
/ LUÍS
com as alterações climáticas. O homem que gere o programa da luta PEDRO
contra a fome da ONU não tem vida fácil. Dados da Oxfam, uma
confederação internacional de organizações da luta contra a fome
NUNES
e pobreza, referem que morrem 11 pessoas por minuto devido à
desnutrição. E ainda não tinham em conta a catástrofe que se veio a
desenrolar no Afeganistão em agosto. Grande parte da África está em
situação de catástrofe no mapa-múndi pós-pandémico. Países com
problemas crónicos como a Somália (o pior de todos) ou o Sudão.

E 74
vícios
“PESSOAS SEM VÍCIOS TÊM POUCAS VIRTUDES”

No Porto e junto ao mar, a


esplanada da Praia da Luz
tem mantas disponíveis para
os fins de dia mais frescos

Sol de inverno
Com mantas aconchegantes, elegantes aquecedores,
bebidas quentes, vinhos e cocktails para acompanhar
petiscos retemperadores, nestas esplanadas citadinas
o frio não faz parte da ementa
TEXTO ANA MARIA FONSECA BOA CAMA BOA MESA
E 75
S
e a pandemia trouxe algum benefício aos es-
paços de restauração nacionais foi a ideia —
há muito presente em quem viaja — de que
estar ao ar livre é para todo o ano. Ainda mais face
ao inverno “ameno” do nosso país quando com-
parado com o Norte da Europa. Esplanadas e espa-
ços exteriores ganharam renovado protagonismo e
continuam a merecê-lo, mesmo com chuva e frio.
Almoçar, jantar ou bebericar um cocktail du-
rante a tarde? Se a sala do Praia no Parque, em ple-
no Parque Eduardo VII, com uma apetecível larei-
ra, é um convite a desfrutar dos dias frios fora de
casa, a esplanada, um terraço rodeado de verde,
protegido do vento e aberto ao sol de inverno, não
se fica atrás. Aproveite os aquecedores elegantes e
as mantas quentinhas se for caso disso, e ponha-
-se à fresca no conforto dos sofás corridos ou das
cadeiras que adotam o design original das cadeiras
Gonçalo, da década de 50. Há uma secção de ali-
mentos crus, dos legumes ao sushi, passando pelo
carpaccio, e diversas opções mais compostas — e
quentes — para partilhar. Acompanhe com vinho
ou cocktails.
No interior do The Insólito a decoração extrava-
gante é um ponto a favor. Lá fora ganha a vista fa-
bulosa para o Castelo de São Jorge. No coração do
Bairro Alto e ao lado do miradouro de São Pedro
de Alcântara funciona no último andar de um pa-
lacete ao qual se acede por um dos elevadores mais
antigos ainda em funcionamento na capital. Prove
a “Tosta de mexilhão grelhado”, a “Lula gigante
com caldo de amêndoa” ou o “Rib eye grelhado”,
na companhia de um dos irreverentes cocktails a
aludir ao imaginário onírico de “Alice no País das
Maravilhas”.
Se as águas tranquilas do Tejo o inspiram parti-
cularmente, suba ao SUD Lisboa Terrazza, aprecie
a vista incrível sobre o rio e a Ponte 25 de Abril que
entra pelas janelas enquanto desfruta do conceito
de partilha transversal às ementas preparadas para
os vários momentos do dia. Divide-se em vários es-
paços, resguardados do vento, frio e chuva e par-
ticularmente apelativos ao pôr do sol. A piscina é
que terá de ficar para dias mais amenos.
Também da paisagem sobre o Tejo se alimenta
o horizonte do Ferroviário. Com diversas formas de
aquecer as temperaturas baixas, dos aquecedores
aos almoços bem compostos, da dança à música Apetece-lhe algo completamente diferente? e da chuva, abertos a almoços, snacks e bebidas du-
ao vivo, no espaço cool e descontraído do Ferrovi- Troque a vista de rio pela do oceano. Coberto e res- rante a tarde e jantar. Ao fim de semana domina o
ário pode sempre apostar num cocktail, como o “1ª guardado da brisa marítima, entre o mar e a avenida brunch, que à semelhança da restante carta do KUG
classe”, o “miss Xabregas” e o “cabaret da roxa”. Marginal, em São João do Estoril, o Liquid Lounge — Kitchen Urban Garden, tem assinatura do chef
No exterior do renascido Café In, a sala princi- Bar aproveita a localização única, no alto da falésia, Rui Paula. Também no centro, o recente Álibi cru-
pal da esplanada tem no centro o bar de cocktails, com uma vista de 360 graus, e promete surpreen- za a esplanada e o jardim vertical com uma ampla
e uma cabina do DJ. Além do menu executivo de der com o DroneBoatService, um serviço de entrega panorâmica sobre a cidade. A carta promove a par-
almoço há snacks durante toda a tarde e uma carta de bebidas através de drone, aos barcos fundeados tilha e o convívio em propostas como a “Tempura
de bebidas com dezenas de referências entre cham- ao largo. Em terra ou no mar, o mote é aproveitar o de polvo” o “Creme de espargos brancos com azei-
panhes, vinhos e cocktails de autor, que pode bebe- momento e, independentemente de fazer chuva ou te de trufas e amendoins”, o “Arroz do mar” ou a
ricar no lounge com camas balinesas. Deixe-se fi- sol, deixar-se levar pelo embalo do mar e por bebi- “Vazia, black angus” ou “Tomawhak maturados”.
car até à hora do jantar, quando entram em cena o das sugestivas como “lucky lyu kick”, “apple drive Novidade para a temporada de outono/inver-
marisco fresco e os pratos da cozinha portuguesa. me nuts”, “sailor punch” ou o “tales of Thailand”, no é a decoração do Tenra by Digby, inserido no
Entre o rio e o mar, em Oeiras, suba ao último vencedor da 1ª competição da cocktail week. Além do Torel Avantgarde e uma varanda sobre o Douro,
piso do Templo dos Poetas e delicie-se com a vista bar há um bistro com propostas como focaccia, bur- Porto e Gaia. Com uma aposta nas carnes de pro-
abrangente sobre o Tejo, o Atlântico e o Cabo Es- rata trufada e tagliere italiano e uma pequena seleção dutores nacionais, pode contar com almoço exe-
pichel a partir do enorme terraço do Verso Rooftop de comida caseira de fusão vietnamita e saudável. cutivo, jantares brindados pelas luzes da cidade
Lounge. Cocktails, gins, vinho, cerveja ou sumos refletidas no rio e brunch ao fim de semana. Ape-
naturais alinham-se com generosas tostas, wraps OÁSIS NO PORTO tecível seja qual for a estação, a Praia da Luz, mes-
e saladas. Atente nos hambúrgueres e nos risottos. Um enorme jardim em plena cidade, com dois es- mo em frente ao mar, tem mantinhas disponíveis
Ao fim de semana há brunch, mediante reserva. paços amplos, confortáveis e resguardados do vento para as aragens mais atrevidas. Se estiver sol, as

E 76
Do Liquid Lounge Bar, no Estoril, no alto
da falésia e com uma vista de 360 graus
(com um serviço de entrega de bebidas
através de drone, aos barcos fundeados
ao largo) ao Praia no Parque, em Lisboa,
não faltam propostas citadinas para os dias
frios. O Digby, no hotel Torel Avantgarde
da Invicta, conta com espaços renovados

LISBOA
Praia no Parque
Alameda Cardeal Cerejeira, Lisboa
Tel. 968 842 888
The Insólito
Rua de São Pedro de Alcântara, 83, Lisboa
Tel. 213 461 381
SUD Lisboa Terrazza
Avenida de Brasília, Pavilhão Poente, Lisboa
Tel. 211 592 700
Ferroviário
Rua de Santa Apolónia, Lisboa
Tel. 217 651 869
Café In
Avenida Brasília, Pavilhão Nascente, 311, Lisboa
Tel. 213 626 249
Verso Rooftop Lounge
Templo da Poesia, Parque dos Poetas,
Rua José de Azambuja Proença, Oeiras
Tel. 968 774 652
Liquid Lounge Bar
Avenida Marginal, 5579, São João do Estoril
Tel. 914 097 418

PORTO
KUG — Kitchen Urban Garden
Rua de Dom Manuel II, 178, Porto
Tel. 226 000 744
espreguiçadeiras, sofás e ambiente em tons claros enorme terraço panorâmico, elegante e confortá- Álibi
são perfeitos para esquecer que é inverno. Caso vel, com vista para o rio e para a ribeira do Porto. A Rua dos Caldeireiros 135, Porto
chova, resguarde-se no piso térreo ou no cimei- oferta gastronómica é eclética, viajando das carnes Tel. 917 188 402
ro, brindados pelo mesmo enquadramento, onde aos peixes e mariscos; da comida asiática com assi- Tenra by Digby
além da carta de Luís Américo cheia de propostas natura do grupo Romando às pizzas gourmet. Pode Rua da Restauração 336, Porto
aconchegantes tem outra esplanada debruçada so- ainda fazer uma incursão pelos queijos, nacionais Tel. 222 449 615
bre o Atlântico. e internacionais, a cargo da Fromagerie Portugue-
sa. No final, aprecie um charuto no Cigar Club, em
Praia da Luz
Avenida Brasil, Porto
DE OLHOS POSTOS NA INVICTA harmonia com um vinho do Porto. Tel. 226 173 234
Passe a ponte para encontrar na margem sul a Nesta margem, as esplanadas do WOW — World
melhor vista sobre a Invicta. O edifício envidra- of Wine são perfeitas para se aconchegar ao sol Esplanada do Teleférico
çado da Esplanada do Teleférico, colada à Ponte de inverno. Caso os pingos de chuva comecem a Rua Rocha Leão, Vila Nova de Gaia
Tel. 220 996 290
D. Luís, deixa ver tudo, do rio à cidade, sem que cair, abrigue-se dentro de portas, em espaços en-
frio ou chuva incomodem. Tanto se presta a um vidraçados que mantêm para deleite dos sentidos Enoteca 17.56
café como a petiscos servidos ao longo do dia (há a panorâmica ímpar da cidade que daqui se avista. Rua de Serpa Pinto 44B, Vila Nova de Gaia
tábuas de queijos e enchidos, saladas, hambúr- Brunch, no VP, com lareiras no exterior; propos- Tel. 222 448 500
gueres e sandes) ou a uma bebida para aquecer e tas vegetarianas no Root&Vine e peixe no Golden WOW — World of Wine
descontrair. Catch, ambos com aconchegantes mantas na espla- Rua do Choupelo, 39, Vila Nova de Gaia.
Descendo até ao Cais de Gaia encontra a Eno- nada, são algumas opções possíveis neste mundo Tel. 220 121 200
teca 17.56, espaço de restauração da Real Compa- de vinhos que é também um universo de propostas Saiba mais em
nhia Velha. A amplitude do interior estende-se ao gastronómicas. b www.boacamaboamesa.expresso.pt

E 77
R ECE I TA
POR JOÃO RODRIGUES
(PROJECTO MATÉRIA)

PRODUTOS
& PRODUTORES
Quinta Leonor
Os produtos que saem da terra da
Quinta Leonor, na Madeira, não
são vendidos ao público, mas sim
entregues à Escola do 1º Ciclo do
Jardim da Serra, à Conferência de
São Vicente de Paulo e a outras
instituições de solidariedade social
do concelho e de fora dele. Porque,
mais do que um produtor, Manuel
Neto é uma espécie de guardião ou
conservador de alguns produtos que
outrora se encontravam abundan-
temente nas hortas da ilha mas que
cada vez mais estão a ser votados ao
abandono. E, por isso, a quinta não
tem um propósito comercial. Ainda
assim, é possível ao cidadão comum
provar algumas destas relíquias.
Quando entramos nos portões deste
terreno, atualmente propriedade do
Governo Regional, este ex-profes-
sor de Filosofia, primeiro presidente
da Junta de Freguesia local, está de-
TIAGO MIRANDA

bruçado sobre alguns inhames que


tirou momentos antes da terra. Ma-
nuel mostra-nos cinco variedades
de inhames. Ali faz-se, também, uma
inventariação de árvores de fruto
regionais — macieiras (cerca de 30
variedades), pereiras e cerejeiras

Batata-doce gratinada —, bem como produção de batata,


batata-doce, cereais e leguminosas.
O seu filho, Marco, gere a pequena

Tempo de preparação 1 hora | Tempo de confeção 1h30 quinta biológica familiar seguindo os
princípios da agricultura sincrónica,
e aqui já é possível adquirir os produ-
tos da quinta.
INGREDIENTES um pouco de parmesão ralado. Repetir o processo
8 batatas-doces / 1 l de natas / 600 g de parmesão ralado / 6 até não haver mais batatas e ir sempre calcando PROJECTO MATÉRIA
dentes de alho / 1 raminho de tomilho / Sal q.b. / Pimenta q.b. bem para que fique tudo compactado. É um projeto sem fins lucrativos,
Colocar papel de prata a cobrir e levar ao forno a desenvolvido pelo chefe João
Descascar e laminar bem finas as batatas-doces. 180 graus Celsius durante 1h30. Rodrigues, que pretende promover
os produtores nacionais com boas
Ferver as natas com os dentes de alho e o ramo de Retirar do forno 15 minutos antes de estar pronto,
práticas agrícolas e produção animal
tomilho ripado. Depois de bem fervidas, temperar tirar a prata e colocar parmesão por cima. Levar em respeito pela natureza e meio
com sal e pimenta e passar num coador. de novo ao forno os 15 minutos que faltam e ambiente, enquanto elementos
Colocar as natas e dispor as batatas em camadas e deixar gratinar bem o queijo. fundamentais da cultura portuguesa.
temperar com sal e pimenta. Voltar a pôr natas e Servir de imediato. b Ler mais em projectomateria.pt

E 78
R ESTAU RAN T ES
POR FORTUNATO DA CÂMARA

Sabor tecido com rigor Nos pratos de peixe brilharam o


“Robalo, batata fumada e algas” (€25),
três pequenas tranches de pescado de
ACEPIPE
A Baixa alfacinha tem mais vida em novas moradas. alto mar, suculento e valorizado com
um clássico molho beurre blanc (tão
O estado
O Terroir oferece a emoção de uma cozinha plena em voga) e óleo de algas, com a parce- do gosto
ria de puré de abóbora assada, de no-
tas anisadas e folhos de alho-francês. O
e o futuro
“Peixe da lota, couve lombarda e alho Entrou na agenda de alguns
assado” (€22) era uma asa de raia im- países europeus em meados
dos anos 70, em França,
pecavelmente arranjada, lascas altas
deslocou-se para o norte
e húmidas, com declinações de cou- da Europa e chegou à Ásia,
ve: folhas verdes a envolverem folhas com enfoque no Japão. A
de couve branca assadas, um aveluda- “Educação do Gosto” é um
do puré de couve a ligar tudo e o to- programa civilizacional que a
que final de um molho de alho assado. Europa ainda não olhou com
O “Novilho, curgete e tomate” (€29) a devida importância. Dar às
apresentou dois nacos rosados da vazia, crianças a oportunidade de
perceberem os alimentos
com um molho escuro da carne (demi
que as rodeiam, de onde vi-
glace) de grande categoria, curgete e eram, a importância que têm
tomate em puré e em lamelas, belas e em cada cultura e sobretudo
entrelaçadas. A “Bochecha, gnocchi como são diferentes entre
TIAGO MIRANDA

de batata-doce e alface cogolho” (€24) si e o quanto podem ser


trazia um pó verde vivo a salpicar a saborosos quando ‘compre-
monotonia cromática da carne, que se endidos’ (saber cozinhá-los,
delia em tenrura, sabor profundo nas explorar variedades do mes-
mo alimento, a época certa,
lascas e molho reluzente do estufado e
etc.). A abordagem inicial dos

A
s paralelas que desenham com No “Couvert” (€4,5/pax), duas o contraste do coração crocante da al- franceses incidia entre ‘boas’
retidão a planície central da fatias de pão de cerveja com mantei- face. Ao lado uma tacinha com gnoc- e ‘más’ práticas alimentares,
capital, estendendo-a até ao ga noisette e um fio de mel vertido no chi impecáveis (tostadinhos), salteados definia o gosto pelas frontei-
grande terreiro sobre o rio, andavam momento. O sabor acre do miolo hú- com cogumelos shimeji. ras e identidade de cada país,
adormecidas. Topónimos de “Ouro” mido do pão e as suaves notas ave- A carta de vinhos é o que é o vinho apelando ao maior consu-
e “Prata” intercalados com profissões lanadas da manteiga formaram um na restauração pós-covid. O seguro de mo de frutas e legumes. A
antigas pronunciam artérias de vida contraste simples e feliz. Antes veio o vida para faturar mais (demasiado...) evolução de outros estudos
franceses mudou o foco.
que o surto e o susto afugentaram. ‘couvert do chefe’, com três acepipes sobre o que a pandemia levou. Serviço A criança deve ter o poder
Correeiros, douradores, sapateiros e graciosos: tira de brioche e tártaro de bom, seguro e atento, sem vacilar com de educar o seu gosto, ao
fanqueiros são ofícios do passado, dos camarão; mexilhão envolto em pi- a sala cheia, e ritmo frenético da cozi- aprender sobre diversidade
quais apenas resta um ou outro ves- cle de cenoura fumada, com o bival- nha, a servir rápido para a complexi- e tolerância. Na Dinamarca
tígio. O pulsar de agora é turístico e ve quase oculto sob a força gustativa dade da carta. Duas sobremesas deli- surgiu em 2015 um programa
o comércio indiferenciado. Neste re- do fermentado; e por fim uma tarte ciosas e tecnicamente irrepreensíveis, de educação alimentar (dos
gresso às tábuas do palco pombalino estaladiça com um creme de porco a valeram por cartas inteiras noutros 6 aos 15 anos) que inclui visi-
tas a quintas e a preparação
surgiram moradas novas a animarem e chalota confitada em boa parceria. lugares: o “Abacaxi, arroz e especia-
de receitas simples, mas com
zonas esmorecidas de comércio diur- As entradas foram o belíssimo “Cho- rias” (€7) trazia o fruto numa flor de o toque pessoal de cada um.
no. A Rua dos Fanqueiros já teve portas co, feijão branco e chocolate” (€12), ‘pétalas’ tostadas e uma espuma de Hoje vive-se em perma-
e andares a transbordarem de tecidos, com um sedoso puré da leguminosa e arroz ao redor que se opava ao ser un- nente dieta por iliteracia
malhas e atoalhados. As poucas que chocolate branco, discreto, mas a per- gida pela calda morna de especiarias, alimentar. Através do gosto,
ainda resistem estão quase dissimu- fumar o prato, fatias finas de choco e de notas picantes e cítricas a gengi- cruza-se geografia e história
ladas numa manta de retalhos comer- um poderoso e impressivo molho de bre. O “Chocolate, café e rum” (€9) e descobre-se o outro pela
cial. Em tempos de breu foi chegando choco assado. O “Grão-de-bico, caril era um bolo espumoso com creme de cultura alimentar. Quiçá boa
parte dos problemas futuros
um pouco mais de luz com o restau- e groselhas” (€9) era uma panqueca limão no topo e um elegante sabayon
(gastos de saúde e clima) e
rante indiano Oven. E o vizinho Ter- de pasta de grão, a lembrar húmus, aromático com café e rum. dos conflitos atuais fossem
roir, aberto há cerca de um ano, andou pontilhada de maionese de caril e no Beleza sensível nos pratos que pa- apaziguados se a “Educação
a apalpar terreno, mas fixou agora os topo a acidez das bagas vermelhas em recem pequenos quadros com vida do Gosto” já fosse uma ques-
pés na terra com nova sala, nova carta picle. Contraditório perfeito entre to- e muito sabor. Tiago Rosa tece com tão europeia dos Estados.
e um novo chefe de cozinha. dos os elementos. No “Bife tártaro e grande rigor uma carta de nível eleva-
ostra” (€14), cubinhos de novilho bem do, mostrando que é um jovem chefe
temperados envoltos em folhas vege- de futuro muito promissor que faz en-
TERROIR tais, na base um molho branco com a cantar este Terroir. b
Rua dos Fanqueiros, 186 — Lisboa frescura das ostras, e à parte duas uni-
Tel. 218 873 823 ou 926 312 647 dades de bom calibre, com um creme Desde 1976, a crítica gastronómica
Serve apenas jantares sobre os bivalves, brevemente gratina- do Expresso é feita a partir de visitas
Encerra ao domingo e à segunda-feira do a maçarico, mantendo-os crus e a anónimas, sendo pagas pelo jornal
reterem todo o mar na alma. todas as refeições e deslocações

E 79
VI N H OS
POR JOÃO PAULO MARTINS

GETTY IMAGES
Para o norte e a trepar os montes
A reboque do clima, enquanto for possível

E
nquanto escrevo este texto está ainda a dou inteira razão à autora inglesa. Uma gran- Quando é que antigamente se achava possível
decorrer a Cimeira de Glasgow sobre o de surpresa. Mas a coisa não ficou por aqui. falar de vinhas a 1000 metros? Sempre houve
clima e as desgraças que se avizinham Em finais de 90 e começos deste século veio casos excecionais, como as vinhas de Salta, na
se não ganharmos juízo. Este tema é um dos a notícia bombástica: o sudoeste da Inglaterra Argentina, que chegam aos 3000 metros, mas,
assuntos recorrentes das notícias e espera- estava a produzir espumante e, dizia-se, com aqui na Europa, e em Portugal, nunca foi as-
-se que, de tanto ouvirmos falar nele, façamos classe suficiente para se bater com os france- sunto. No entanto, é para aí que caminhamos,
também (pelo menos) a nossa parte de reciclar, ses. E é verdade, a ver pelos que já provei. Esta- sempre à procura de melhores condições para
reduzir e reutilizar. O clima tem mudado de- mos assim a caminhar cada vez mais para nor- que a vinha cresça harmoniosamente. Mas a
masiado depressa e os vinhos e as vinhas tam- te, a uma velocidade idêntica à que, no sul, faz subida da vinha em altitude tem de obrigar
bém se ressentem. Repare-se: nos anos 80, era avançar o deserto, o clima quente que obriga também quem de direito a atualizar os esta-
um dado adquirido que a vinha era uma cultu- a repensar a vinha. Este assunto ‘sulista’ inte- tutos das regiões, que permitam, por exem-
ra que, muito dificilmente, poderia passar a la- ressa-nos particularmente porque nos vai ba- plo, que as vinhas acima dos 700 metros te-
titude da Borgonha. É verdade que a região de ter à porta mais dia menos dia e temos de ter nham direito a denominação de origem e não
Champagne fica um pouco mais a norte, mas resposta. O que podemos então fazer? Várias apenas a serem comercializadas como vinhos
a maturação das uvas também não era um as- coisas: na vinha, temos de escolher porta-en- regionais. É que, a ver pela velocidade a que o
sunto preocupante, uma vez que se vindimam xertos resistentes à seca e castas que também clima muda, daqui a nada essas zonas acima
ali uvas com 10° de álcool provável. Eis senão elas lidem bem com a canícula; temos de re- dos 700 metros vão valorizar-se tremenda-
quando, já nos anos 90, surgem as primeiras aprender a condução e a gestão da canópia — mente. Não podemos esquecer que a vinha não
notícias de vinhos brancos de Chardonnay... aportuguesamento de canopy, que se refere à funciona em modo rápido, planta hoje e colhe
na Bélgica. A surpresa foi tão grande que até vegetação/cobertura da cepa —, uma vez que amanhã; isso são as alfaces e os rabanetes. O
Jancis Robinson confessou que, por o ter pro- mais calor implica uma maior proteção dos crescimento e maturação de uma vinha exige
vado às cegas, pensou tratar-se de um bran- cachos. O calor vai também obrigar a trepar tempo e decisões acertadas, mas é bom que as
co da Borgonha. Também provei este branco e os montes, a plantar vinha a maior altitude. instituições ajudem. b
(OS PREÇOS, MERAMENTE INDICATIVOS,
FORAM FORNECIDOS PELOS PRODUTORES)

Quinta do Cume Gloria Reynolds tinto 2011 Já Te Disse branco 2020


Grande Reserva Região: Reg. Alentejano Região: Reg. Alentejano
tinto 2018 Produtor: Reynolds Wine Growers Produtor: BMCC
Região: Douro Casta: Alicante Bouschet Casta: Viognier
Produtor: Quinta do Cume Enologia: Nelson Martins Enologia: Joachim Roque
Castas: muitas castas PVP: €52,90 PVP: €25
misturadas em vinhas velhas O vinho estagiou 24 meses em A casta é francesa e chegou a estar
Enologia: Jean-Hugues Gros carvalho francês. Começa a ser raro um quase em extinção, mas hoje está
PVP: €44 produtor colocar o vinho à venda após expandida por todo o mundo e
Após a fermentação em inox, o tantos anos de estágio. 5000 garrafas. adaptou-se bem ao Alentejo.
vinho estagiou 18 meses em Dica: A casta é hoje um ex-líbris do Precisa de boa ‘mão’ para não gerar
barricas novas de carvalho. Alentejo e cada vez há mais vinhos vinhos pesados.
Produziram-se cerca de 5200 varietais feitos com ela. Cor incrível e Dica: Bom trabalho de vinha e adega
garrafas e 300 magnuns. grande vigor para um vinho com 10 geraram este branco cheio, com
Dica: Muito boa finura de aroma anos. Taninos firmes e grande estrutura vigor, mas com acidez notável que
e sabor, um tinto elegante, asseguram-lhe mais vida em cave. lhe mantém a frescura. É um projeto
distinto e cheio de classe. Grande surpresa. novo na região.

E 80
as nossas recomendações Saiba mais sobre estas e outras sugestões em
boacamaboamesa.expresso.pt

setúbal O Zagaia
Rua Dr. Peixoto Correia, 33,
490 Taberna STB Sesimbra. Tel. 212 233 117
Avenida Luísa Todi, 490, Setúbal. Provocador nas criações, o
Tel. 265 109 960 restaurante reflete esta nova
Vieiras, ostras do Sado, tártaro de abordagem em propostas como
atum bluephin, arroz de lingueirão, croquetes de choco e maionese
polvo e bacalhau assados e tam- de alho negro, saladinha de polvo e
bém carnes maturadas são apenas feijão branco ou lingueirão e molho
algumas das diversas opções, além holandês. Nos principais, o arroz de
de três dezenas de propostas de carabineiro e algas. Termine com
petiscos e dos pratos principais, caramelo salgado e amendoim.
sendo a ementa sazonal. Preço médio: €25.
Preço médio: €20.
Dona Isilda
Carvão Ryõri Rua da Serrinha, Palmela.
Praça Marquês de Pombal, 2 A, Tel. 212 333 255
Setúbal. Tel. 265 522 272
Bao com tártaro de atum bluephin,
ostras do Sado, carabineiros, gam-
ba violeta, bruxa-do-mar e ouriço-
-do-mar da Arrábida brilham na
ementa. A carta inclui ainda carne
mertolenga maturada e berbigão
mesclado. Preço médio: €30.
Hotel Casa Palmela O buffet é pantagruélico, com uma
Ostradomus Quinta do Esteval, EN 10, km 33,5, Setúbal. Tel. 265 249 650 mesa de enchidos e outra de quei-
Avenida Luísa Todi, 414, Setúbal. Recantos de silêncio e panorâmicas entre a vegetação da serra da Arrábida são locais de piquenique para jos nacionais DOP, com mais de
Tel. 265 220 996 os hóspedes. Há trilhos para experimentar a pé, de bicicleta ou a cavalo. Fazem-se massagens no meio da uma vintena de opções, a que se
Natureza. Sofás, no exterior, convidam a esperar o pôr do sol junto ao pit fire. A história da quinta remonta seguem uma área de pratos frios,
ao século XVII, e há azulejos e mobiliário antigo invulgar para admirar. No restaurante Zimbral serve-se outra de saladas e o buffet de pra-
cozinha de inspiração nacional e internacional. A partir de €170. tos quentes a partir do receituário
tradicional. Preço médio: €20.

Alma Nómada Cais da Estação Casa Mateus A Escola


Food Experience Avenida General Humberto Largo Anselmo Braamcamp, 4, EN 253, Cachopos.
Monte Branco, Porto Covo. Delgado, 16, Sines. Sesimbra. Tel. 963 650 939 Tel. 265 612 816
As ostras do Sado são “rainhas” Tel. 965 754 882 Tel. 269 636 271 Os pratos mais emblemáticos Destaque para as empadas, como
nesta casa. Surgem declinadas das A cavala, a ostra, o arroz de A ementa dá ênfase aos pratos e de Sesimbra são o caril verde de a de coelho bravo com arroz de pi-
mais variadas formas. Mas a oferta carabineiro, o bacalhau a baixa petiscos feitos a partir do peixe e camarão tigre, o mero, berbigão e nhão, e para o arroz de choco com
contempla plumas de porco preto temperatura e o creme de carda- marisco, sem dispensar diversas batata-doce. Num espírito tradi- camarão, massa e cherne; perdiz
alentejano, peixe gratinado com momo com baunilha de São Tomé carnes. Incontornável é o “prato cional, mantém-se a caldeirada à na púcara e espetada mista de
gambas e espinafres ou moqueca e sorbet de pera fumada fazem da casa”: arroz de lingueirão com pescador e nos pratos de carne o javali e veado são outros exemplos.
de camarão. Preço médio: €20. sonhar. Preço médio: €35. choco frito. Preço médio: €25. rabo de boi. Preço médio: €30. Preço médio: €30.

CELEBRAR SÃO MARTINHO O Miguel


ENTRE AZEITÃO E PALMELA Avenida José Mourinho,
16, Setúbal.
Com estreia este sábado na Tel. 265 573 332
SIC Notícias, e repetições ao A esplanada enquadra na
perfeição a oferta gastronómi-
longo da semana também na
ca do restaurante, que aposta num
SIC Mulher, na SIC Radical e na
ambiente náutico. Ganhou fama o
SIC Internacional, o programa choco frito inteiro e a qualidade dos
parte à descoberta da penín- peixes frescos e mariscos. Depois
sula de Setúbal para provar o da saladinha de ovas, invista no
vinho e celebrar o São Martinho alguns dos tesouros naturais da pregado com arroz de lingueirão,
e o Dia Mundial do Enoturismo. serra da Arrábida e aproveite no arroz de marisco ou na massinha
Entre Azeitão e Palmela, há para dormir junto às vinhas e de sapateira desfiada. Para os
história e tradições, mas tam- passear no Percurso Pedestre entusiastas, há cabeça de garoupa
bém gastronomia influenciada Jardins de Vinhas, uma Peque- à lagareiro. Preço médio: €30.
pelo mar e pela serra. Além dos na Rota com 11 quilómetros,
queijos e tortas, Azeitão é tam- que pode ser iniciado em SELO DE QUALIDADE Em parceria com o Recheio, este
bém a casa de produtores do qualquer uma das cinco adegas símbolo é a garantia de que o restaurante em destaque utiliza
produtos das melhores origens e criteriosamente selecionados
Moscatel de Setúbal. Conheça que compõem o roteiro.

E 81
D ESI GN
POR GUTA MOURA GUEDES

Mesmo aqui ao pé
Em Marrocos há uma geração de ‘designers’
que precisa de indústria para expressar
a sua criatividade e competência

E
mbora por regra não me entusiasme Portugal mas, se olharmos com atenção,
falar da existência de um design de onde podemos encontrar muitas afini-
um país — português, marroquino, dades e pontes. Se na dinâmica da con-
inglês, norte-americano, por exemplo — temporaneidade as diferenças podem ser
de onde possa emanar uma identidade maiores, muito se devendo ao facto de
nacional concreta, recusar a existência em Portugal existir neste momento uma
de linguagens e metodologias específi- indústria excelente em vários domínios,
cas a cada contexto geográfico e cultural mas nomeadamente no têxtil, no mobi-
seria, também, absurdo. Os valores lo- liário, no vidro e na cerâmica, por exem-
cais, quando embebidos no processo cri- plo, naquilo que remonta às tradições e
ativo, permitem solidificar a construção às competências artesanais, muito de co-
da imagem de um país, seja ele qual for. mum podemos encontrar. A vitalidade e
E isso passa quer pela adopção de méto- originalidade do artesanato dos dois pa-
dos de produção tradicionais aplicados íses é enorme e constitui um activo para
às indústrias actuais, quer pela utilização ambos — e os designers já o sabem.
de matérias-primas locais e da sua apli- Os designers portugueses, desde os
cação na indústria existente, quer pela anos sessenta e conscientemente, traba-
leitura criativa de todo um património lham sobre uma matéria que é um misto
histórico e cultural. entre passado e presente, e sobre ela e com
Fui recentemente a Casablanca. Mes- ela, definem os objectos do presente e do
mo aqui ao pé, pode-se dizer, apenas a 55 futuro. Há uma força criativa que inova e A designer marroquina Kenza
minutos de avião. A grande diferença é, que é aliada de uma indústria de enorme Echouafni, filha da mulher que iniciou
De cima para baixo: a peça o ateliê Houria Tazi, que trabalha com
como é óbvio, a mudança de continen- qualidade e capaz de responder a qualquer
“Caruma”, de Eneida Tavares, o jarro bordadeiras, tem vindo a desenvolver
te. Passamos num ápice da Europa para desafio. Foi o que fui mostrar em Casa-
“Planified Glass”, de Jorge Carreira, um percurso de inovação no
as jarras de porcelana de Paulo a África e esses 55 minutos não nos pre- blanca. E lá, em Marrocos, mesmo aqui ao artesanato marroquino mantendo as
Sellmayer e a “Dragon Marker”, de param para isso. Fui apresentar o design pé, há uma geração de designers que preci- competências tradicionais.
Bruno MM, são exemplos de uma português, e a indústria portuguesa que sa de mais indústria para poder expressar a Sublinhando também o papel do
nova geração de designers lhe está associada, em Marrocos a con- sua criatividade e competência mas que se design na sustentabilidade ambiental
portugueses que inova tendo em vite do AICEP e da Embaixada de Portu- debruça já sobre como inovar o artesanato. e social, trabalhando com migrantes.
conta o passado e o futuro gal em Marrocos, num claro reconheci- Um desafio interessante para ambos A conhecer
mento do valor desta disciplina para a os países onde o design pode ter um pa-
nossa imagem. Mas fui também conhe- pel fundamental. b
cer um pouco mais sobre este país fasci-
nante e a sua comunidade criativa, am- Guta Moura Guedes escreve de acordo
bos aparentemente muito diferentes de com a antiga ortografia

E 82
M O DA
POR GABRIELA PINHEIRO

Dicas & Regras


Bem-vindos ao gangue
A não adesão a esta tendência é
considerada crime aos olhos da lei do estilo

L
embram-se dos looks irrepreen- são mais estilizadas e, entre natureza
síveis e dominantes dos gangs- e tecnologia, os materiais são bastante
ters das décadas de 20 e 30 imor- mais diversificados, o que permite ca-
talizados nos filmes? Todos os deta- sar na perfeição estilo e conforto, es-
lhes eram minuciosamente cuidados sencial para enfrentar um dia árduo
e imperava a excelência dos cortes em de trabalho. Os botões são opcionais
cada peça de roupa ou acessório. Ago- e, na missão de marcar a cintura, po-
ra imagine o mesmo lookbook adapta- dem ser preteridos a favor de fivelas,
do a 2021. A verdade é que nem sequer molas ou cintos. Perfeitamente inte-
vai ter de recorrer à imaginação, basta grado neste gangue, o colete conti-
rever os desfiles que definiram as ten- nua a dar nas vistas e, como as outras
dências da estação. O mesmo rigor da peças da tendência, mantém entre os

FOTOGRAFIAS GETTY IMAGES


alta alfaiataria foi recuperado e, ago- aliados roupa dentro do mesmo esti-
ra, os cortes clássicos a vincar as cin- lo, mas também relações igualmente
turas e a realçar os ombros deixam a boas com peças de streetwear ou mais
sua marca tanto em visuais masculi- sofisticadas, como boyfriend jeans e
nos como femininos, com destaque vestidos acetinados, no exemplo fe-
para blazers e vestidos traçados, asser- minino, ou calças desportivas em al-
toados ou cruzados. As soluções atuais godão, no caso dos homens. b

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E 84
Sérgio
Godinho

Nando Reis Capicua

Elisa
Lucinda

Simone
de Oliveira
António
Zambujo
Maria
do Rosário
Pedreira
Frederico
Lourenço
Mario
Vargas
Llosa
por videoconferência
T ECN O LOGIA
POR HUGO SÉNECA

Tudo o que as
bactérias nos dão

A tecnologia desenvolvida por Ana


Paula Piedade e Catarina Pinho na
Universidade de Coimbra promete criar
um novo segmento nas tecnologias:
além de objetos que mudam ao longo
do tempo consoante as interações
a que são sujeitos — e por isso se
trata de impressão 4D e não 3D —,
os protótipos desenvolvidos entre a
histórica universidade e o Politécnico
de Leiria distinguem-se por recorrerem
a celulose produzida por bactérias. Não

O jogo dos 5s vai começar só regressam ao estado inicial depois


de cada alteração registada como os
objetos produzidos por este processo
são biodegradáveis. As investigadoras
Os novos trunfos da República dos Jogadores usaram duas estirpes de bactérias (se-
lecionadas após análise dos genomas)

A
que se mantêm confidenciais devido a
Republic of Gamers (ROG) promete ajudar os afi- do processador em 10 graus. Ainda nas características co- questões de proteção industrial, e que
cionados dos jogos a passar para o próximo nível muns aos dois dispositivos, destaque para o ecrã AMOLED se distinguem por produzirem celulose
tecnológico com os telemóveis ROG Phone 5s e de 17,22 centímetros (6,78 polegadas) com taxas de atuali- a partir de detritos alimentares. Os
ROG Phone 5s Pro. Ambos os modelos têm processadores zação de 144 Hertz (H), capacidade de resposta de 1 milis- objetos produzidos pela impressão 4D
Snapdragon 886+5G, aptos a garantir as ligações às redes segundo, e ainda uma taxa de deteção de toque de 360 H. poderão estar devidamente prepara-
móveis de quinta geração, funcionalidades acrescidas para O ecrã está protegido por vidro Gorilla Glass Victus. Com dos para reagir a variações de tem-
peratura, luz ou grau de acidez, entre
os videojogos, e memória RAM de 18 GigaBytes (GB). Além baterias que superam a média dos telemóveis que existem
outros fatores. Algo que poderá ser útil
do gestor de desempenho Armory Crate, a marca especi- no mercado, disponibilizam 6000 miliamperes hora. A para produzir peças de roupa que se
alizada em videojogos da Asus disponibiliza nestes dois versão Pro distingue-se pela inclusão de comandos Air- adaptam à transpiração, objetos que
Phones 5s sistemas de arrefecimento GameCool 5 com o Trigger 5, similares aos dos comandos de consola. Preços: reagem à força mecânica, ou dispositi-
AeroActive Cooler 5, que prometem descer a temperatura a partir de €999. b vos médicos, entre outras aplicações.

BOXES AO RUBRO CRIPTOPORTO ADEUS, FACEBOOK! REDES WI-FI... ELÉTRICAS


A Google garantiu novo aliado para a disputa A Binance e o Futebol Clube do Porto Dados apurados pela Marktest revelam que A Devolo juntou a tecnologia Powerline, que
do mercado de TV em Portugal: a NOS assinaram um acordo para o lançamento dos 19,6% dos portugueses deixaram de usar estabelece comunicações através da rede
acaba de anunciar o lançamento de um Porto Fan Tokens. Estes tokens (ou redes sociais nos tempos mais recentes. elétrica, à tecnologia de redes sem fios
dispositivo que assegura a emissão de TV representações virtuais) vão poder ser Segundo o estudo “Os Portugueses e as Wi-Fi e acabou a anunciar um extensor de
com sistema operativo Android TV e usados pelos adeptos do clube da Invicta Redes Sociais”, é o Facebook que mais se redes domésticas com a Magic 2 WiFi 6. O
capacidade para reproduzir vídeos de para descarregarem conteúdos cifrados em ressente desta tendência, com 26% das novo dispositivo garante 1800 Megabits por
ultra-alta resolução (4K). A box Nvidia Shield NFT (representações virtuais não fungíveis, respostas que confirmam o abandono. O top segundo (Mbps) no Wi-Fi, mas está apto a
TV 4K disponibiliza mais de 5000 apps de que não é possível copiar), desbloquearem 5 do abandono conta ainda com Snapchat alcançar 2400 Mbps no Powerline. Além de
entretenimento e distingue-se por facilitar a recompensas ou participarem em (25,2%), Twitter (17,7%), LinkedIn (15,1%) e estabelecer conexões nas frequências mais
integração com dispositivos Android. Para sondagens promovidas pelo clube. Pinterest (14,2%). A falta de interesse adequadas a cada momento, os dispositivos
quem já é cliente da NOS, a box tem um No futuro, prevê-se que os Fan Tokens (36,8%) foi a justificação mais invocada da Devolo garantem a mobilidade das
custo mensal de €4,99. Além da NOS, possam ser usados para compras pelos inquiridos pela Marketest. O estudo conexões. Preço: a partir de €239,90 para
também a Altice disponibiliza boxes Android. ou até em cartões bancários. teve por base 800 entrevistas. um kit de dois extensores.

E 86
SAIBA
MAIS

O FUTURO
DA MOBILIDADE
É ELÉTRICO
O Expresso e a EDP apresentam a Carta Elétrica, um projeto
que vai acelerar a transição para uma nova mobilidade.
Ao longo dos próximos meses, reunimos especialistas,
esclarecemos mitos, debatemos as principais tendências
e apresentamos as melhores soluções para uma mobilidade
mais elétrica e mais sustentável.

HÁ UM NOVO CÓDIGO NA ESTRADA.

PARCEIRO
TÉCNICO
DIÁRIO DE UM
PSIQUIATRA
POR JOSÉ GAMEIRO

As fotografias
O momento ficou registado a preto e branco,
VINHO VERDE descolorando o raminho de flores. E foi assim
NA COREIA DO SUL que um novo capítulo da sua vida começou

P
Com exportações consolidadas para 35
Seja responsável. Beba com moderação.

países nos cinco continentes – e já com uma assadas algumas semanas, resolveu voltar aos álbuns. Algumas histórias de
forte presença no Japão –, a VERCOOPE amores pouco sentidos, unilaterais, apareciam nalgumas fotografias soltas,
conquistou um novo mercado asiático. A sem importância de relevo, a não ser uma banhada de autoestima. Havia
parceria com um importador sul-coreano um pelo qual sentia uma enorme curiosidade. Não era de facto um álbum, mas
arrancou em outubro e o vinho verde Pavão umas folhas retiradas dele. Guardara-as há muitos anos e tinha-as passado à
está a ser distribuído através dos canais on clandestinidade, para que essa parte da vida nunca pudesse ser branqueada por si,
tradee e off trade
e em todo o território, sendo nem por outros. Podia simplesmente tê-las destruído, mas nunca quisera fazê-lo,
Seul o principal centro de distribuição e porque sabia que um dia se arrependeria.
consumo. " Abriu finalmente as folhas! As fotografias mostravam uma jovem, mas uma
vercoope.pt mulher para a época, embora tivesse cara e corpo de menina. Tinha na altura
vinte e poucos anos. Lá estava de saia de peito, com soquinhas, calças de ganga e
t-shirt, calções, minissaia, biquíni, tudo a que tinha direito naquela idade. Tudo,
PREMIAR A menos direito a um grande amor que se apossara dela. Uma paixão arrebatadora,
prazenteira, louca, que a levara a fazer na vida tudo o que antes nem depois fizera.
ARQUITETURA Era um amor proibido, se é que os pode haver. Na verdade, nunca se pode proibir
O arquiteto Paulo Sérgio Brito de amar, porque o amor toma conta de nós e ninguém pode impedir. Podemos é
Costa, do gabinete Risco Singular, contrariá-lo, amarfanhá-lo, não o querer, ou não o poder demonstrar.
com o seu projeto residencial A mãe dissera-lhe muitas vezes que no amor há um que ama e outro que se
Santos House, reuniu o consenso deixa amar e ela sentia que era um pouco o que se estava a passar consigo. Por
unânime do júri do e tornou-se o isso era um amor sofrido! Não é que não fosse totalmente correspondido. Ela
quinto vencedor da 5.ª edição do achava que era, apesar de tudo, mas de uma forma muito particular dadas as
Margres Architecture Award. Pela circunstâncias que o rodeavam. Não era presente, como ela tanto desejava, nem
qualidade dos projetos a concurso lhe abria as portas para que algum dia o fosse, separava-os uma geração, formas
foram ainda atribuídas duas de estar diferentes, um divórcio e filhos. Porém, as fotografias mostram-na feliz,
menções honrosas: ao projeto porque para ela todos os pedacinhos que pudesse desfrutar desse amor eram
“Housing Building”, desenhado muito importantes. Era a sua alma gémea, mas fugidia...
pelo ateliê RVDM Arquitetos, Aqui o via na fotografia a gravar “Amo-te”, numa árvore junto ao rio, num
e ao “Penrose Dock”, de Frank passeio que dera com ele e outra amiga rumo ao Alentejo. Se escrevia numa árvore
O’Mahony, da Wilson Architecture. era para que esse amor prevalecesse no tempo. Noutra estavam os dois a entrar
margres.com
no Mosteiro de Alcobaça, mas, engraçado, Maria caminhava agora atrás dele,
parecendo manter a distância com que a vida a separava dele, muitas vezes. Mas
surge então uma fotografia que salva novamente a situação. Estava a passear com
a sua cabeça no seu ombro e ele num gesto ternurento a abraçá-la. Mais à frente
via-se sentada no meio das suas pernas. Afinal, ligava-os uma intimidade muito
grande. Aquilo é que era um amor! Talvez, porque fosse difícil, ou talvez não...
PLANTAR Por alguma razão especial, ela nunca se desfizera dessas fotografias, mesmo
PARA AJUDAR mudando de casa tantas vezes. Ela sentia e pressentia que um amor assim só se
vive uma vez na vida e que esse, mesmo que nunca o fosse, era o amor da sua
A Antarte realizou um jantar vida. Ao revisitar agora aquelas fotografias, senti-as atuais, sentia que passados 35
seguido de um leilão onde anos aquele amor nunca a abandonara, nunca tinha deixado de facto de o ser, que
foram angariados €37.150, que lá estava arrumadinho no coração, mas que durante esses anos todos, pensando
revertem na totalidade para melhor, de vez em quando, era rei e lhe vinha ocupar o coração por inteiro. E não
o Centro Materno Infantil do se sentia mal nem culpada por isso. Não era nada que se pudesse controlar! Nunca
Norte. Criado pela marca em fora infiel no seu casamento e procurou nunca desestabilizar a vida de ninguém.
2019 e apadrinhado pelo Nobel Mas a vida não se vive de amores platónicos, mas de amores reais, diários,
da Paz, José Ramos-Horta, cúmplices, numa vida que nos vai mostrando como estes, os verdadeiros, são bem
o “Árvore Solidária” contou mais difíceis. Andava a tentar fazer o luto do tal amor platónico quando um dia,
com o contributo de várias sem que nada o fizesse prever, um velho amigo a esperava na estação, vinda ela de
personalidades e empresas dar aulas. Maria não via o amigo há bastante tempo e mostrou-se admirada com
(como Katty Xiomara e a Bordall tal surpresa. Vinha com o irmão mais novo. O momento ficara registado numa
Pinheiro) que decoraram 15 foto a preto e branco que descolorava o raminho de flores, tão meigamente trazido
árvores-cabide da marca. A de uma qualquer beirinha de terra. E foi assim que um novo capítulo da sua vida
apresentação do leilão esteve começou. b
a cargo de Júlio Magalhães e josemanuelgameiro@sapo.pt
do leiloeiro Fernando Matos
Almeida.
antarte.pt
PASSAT E M POS
POR MARCOS CRUZ

Sudoku Fácil Palavras cruzadas nº 2391

2 6 4
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
5 8 3 9
8 4 1 1
7 5
2
7 5 6 4 3 8 9 1
1 5 3
9 1 4
4
2 8 5 6
6 9 5 5

Sudoku Médio 6
5 9
7
1 4 5 3
2 7 4 8
3 5 7
9
4 1
7 2 6 10
9 1 6
5 6 2 8 11
8 3
Horizontais Verticais Soluções nº 2390
1. Era o estreito de Dardanelos 1. O rei que mandou matar inocentes. HORIZONTAIS
Soluções 2. Formada pelos melhores. Tem efeito Branqueia 2. Não vão à final 1. neologismos
Fácil Médio 3. Era branco o que D. Manuel ofereceu 3. O biólogo sueco que classificou 2. empate; Eaco
5 3 1 4 9 2 8 7 6 3 2 1 9 4 5 6 7 8
ao Papa 4. Fim grego. Em plena feira animais e plantas. Comemora um 3. coisa; Acra 4. eco;
9 7 6 5 8 3 2 4 1 7 8 9 2 3 6 1 5 4
5. Passa-se no tempo de uma rotação. nascimento 4. Estuda costumes com varrer 5. si; valões
8 4 2 7 1 6 3 9 5 5 6 4 7 1 8 2 9 3
2 6 7 8 5 9 4 1 3 4 5 6 3 2 9 7 8 1 É total 6. Começo de entendimento. fins morais 5. Interceta a circunferência 6. soai 7. inconstante
8. da; rara 9. alvitreiro
1 9 8 3 2 4 6 5 7 2 1 3 6 8 7 5 4 9 Vem no fim. Iniciais da profissão que em dois pontos. Personifica o povo
10. encaradas 11. Enzo;
3 5 4 6 7 1 9 2 8 8 9 7 4 5 1 3 6 2 estabelece a ligação com o público americano 6. Enfeita. Pode valer
rã; ora
6 1 3 2 4 5 7 8 9 1 4 5 8 7 3 9 2 6
7. Planta que constitui uma excelente de quê 7. Resulta da combinação
7 2 9 1 3 8 5 6 4 6 3 2 5 9 4 8 1 7
forragem. Lidera a oposição do amarelo, rosa e preto. A artéria VERTICAIS
4 8 5 9 6 7 1 3 2 9 7 8 1 6 2 4 3 5
8. Oferecei. Não existe na Lua. que leva o sangue a todo o corpo 1. necessidade
Piora no meio 9. São velhas para 8. Negativa. Sufixo 9. Era governada 2. emocional 3. ópio;
os adolescentes. Sobe na discussão por um Bei. Versejar 10. Guardião AC; vez 4. lãs; violino
10. O namorado arrasta-a. Junto dois do templo. O lado do vento 5. Otava; tc 6. ge;
Palavras Cruzadas Premiados do nº 2389 alastrar 7. aro; era
a dois 11. O homem que enfrentou 11. Têm pistas
“O Prazer de Guiar”, de João Pedro Marques, para 8. secretária 9. mares;
o Mostrengo de Pessoa. São anéis
Célia Oliveira, de Lisboa; “Gente Feita de Terra”, nardo 10. ocar; troar
de Carla M. Soares, para Maria Teresa Cecílio, 11. só; alia, sã
de Lisboa; “Pónei”, de R. J. Palacio, para Eugénio
Mendes, de Vermoil. Participe no passatempo das Palavras Cruzadas enviando as soluções por correio para
Rua Calvet de Magalhães, 242, 2770-022 Paço de Arcos ou por e-mail para passatempos@expresso.impresa.pt

E 89
QUE COISA SÃO AS NUVENS

O CRISTIANISMO PRECISA
DA IMAGINAÇÃO

U
O MAIOR OBSTÁCULO NÃO É O ATEÍSMO SECULAR, MAS O ACHATAMENTO DA
REALIDADE PRODUZIDO PELA BANALIDADE QUE, ENTRETANTO, SE GLOBALIZOU

ma das canções icónicas do século Uma das coisas em que insiste é que hoje muitos se distanciam
XX é ‘Imagine’, de John Lennon. do cristianismo, porque simplesmente o consideram de um
Foi primeiramente publicada num aborrecimento total, divorciado da existência que conhecem,
álbum de 1971, já depois do fim distante das questões que os habitam, com pouco a dizer
da carreira dos Beatles. Creio que sobre as lutas, esperanças e alegrias onde, em concreto, se
todos nos recordamos dos seus movem. É como se o cristianismo contemporâneo falhasse aí,
versos iniciais, escritos por Yoko na capacidade de tocar a realidade das pessoas. Esta crise é,
Ono: “Imagine there’s no heaven/ na verdade, uma crise da imaginação, porque é esta que nos
It’s easy if you try”. Ora, refletindo permite entrar no mundo de alguém e compreendê-lo a partir
sobre o número crescente daqueles de dentro. Por isso, o autor escreve que o maior obstáculo
que na Europa se declaram sem ao cristianismo não é o ateísmo secular, mas a pobreza
religião, o teólogo inglês Timothy simbólica, a perda de profundidade do olhar, o achatamento
Radcliffe escolhe partir dessa canção. E diz: sim, há que da realidade produzido pela banalidade que, entretanto, se
reconhecer que é mais fácil do que supúnhamos imaginar globalizou. Mas há também um mea culpa que o cristianismo
a superação ou a substituição práticas da gramática do precisa de assumir, pois uma das suas tentações correntes é o
religioso, considerado hoje antiquado como uma máquina escapismo providencialista, escusando-se ao confronto com
de escrever. Ele narra, por exemplo, centenas de conversas a complexidade, o risco e a crueza da experiência que viver
com avós e pais embaraçados, que se culpabilizam por não representa. Em vez dessa fuga, sugere Radcliffe, necessitamos
conseguirem transmitir o sentimento religioso às novas de testemunhas “que nos abram, com honestidade, à
gerações, para quem essa linguagem aparece frequentemente complexidade da experiência humana, do enamoramento ou
desativada, desprovida de significado. É como se o cristianismo dos dilemas morais. Então, com olhos novos, perceberemos
pertencesse a outro mundo e a sua expressão acontecesse numa que é precisamente aí que podemos procurar Deus”.
estranha língua desconhecida. E não nasceu ontem este fosso, A transmissão do religioso precisa de superar este défice de
que a modernidade tem vindo a acelerar, e que se esconde imaginação. Um caminho possível é acolher o contributo
debaixo desse heterogéneo e complexo chapéu chamado desses mestres da imaginação, verdadeiros especialistas
“secularização”. em Humanidade, que são os escritores, os artistas e os
Radcliffe é um dos mais estimulantes pensadores cristãos da criadores. E dá o exemplo de Charles Dickens: “Dickens
atualidade, professor em Oxford, já mestre geral da Ordem tem uma capacidade extraordinária de ler o coração
Dominicana, e acaba de ver traduzido em Portugal um texto humano. Compreende como é fácil errar e ver-se metido em
seu imprescindível: “A Arte de Viver Em Deus. A Imaginação sarilhos. Quando leio os seus romances, sinto-me a crescer
Cristã Para Elevar o Real” (Edições Paulinas, 2021). O título humanamente, como alguém que entende o coração e a mente
em português soa um bocado explicativo. O inglês vai direto do homem”. E acrescenta: “Se me torno verdadeiramente
ao assunto: “Alive in God. A Christian Imagination”. E é esse o humano, então estou mais apto a encontrar Cristo, que é o mais
estilo convincente de Radcliffe. humano de todos.” b

A TRANSMISSÃO DO RELIGIOSO
PRECISA DE SUPERAR ESTE DÉFICE
DE IMAGINAÇÃO. UM CAMINHO
POSSÍVEL É ACOLHER O
CONTRIBUTO DESSES MESTRES DA
IMAGINAÇÃO, VERDADEIROS
ESPECIALISTAS EM HUMANIDADE, / JOSÉ
QUE SÃO OS ESCRITORES, TOLENTINO
OS ARTISTAS E OS CRIADORES MENDONÇA

E 90
SPA PREMEIA AINDA SEM PÚBLICO AUTORES E ARTISTAS
LITERATURA | ARTES VISUAIS | TELEVISÃO | RÁDIO | TEATRO | CINEMA | MÚSICA | DANÇA

DO ANO DE 2020 E PROMETE REGRESSO EM 2022


PRÉMIO Este ano, pela segunda vez, o ciclo pandémico impediu a SPA de organizar a gala anual para a entrega dos prémios a

AUTORES criadores de todas disciplinas. Em vez da gala, realiza-se no dia 16 de Novembro na Aula Magna da Reitoria da
Universidade de Lisboa, um concerto comemorativo da vida e da obra de Paulo Carvalho, que está a comemorar seis
décadas de intensa carreira musical. Paralelamente, o júri nacional reuniu-se, a convite da cooperativa dos autores

2021
portugueses, e distinguiu os melhores autores e intérpretes em todas as disciplinas seleccionadas.
Acredita a SPA que em 2022 já haverá condições para se realizar a gala anual que será o ponto de encontro dos
autores e artistas e o momento certo para distinguirmos os mais importantes criadores de 2021, com obra feita e
reconhecida. A SPA aproveita este momento para destacar o trabalho dos júris, para felicitar todos os premiados
cujos nomes estão agora a ser difundidos, formulando votos no sentido de que estas distinções possam contribuir
para prestigiar o seu trabalho criador e ajudar a promover as suas obras junto do público que considera a cultura
essencial e insubstituível na sua vida quotidiana.
Infelizmente, as medidas preventivas que o actual ciclo de contaminação viral continua a impor ainda não permitem
organizar um acto cultural adequado à entrega criteriosa e individualizada dos prémios a todos os autores
MELHOR LIVRO DE FICÇÃO NARRATIVA distinguidos. Esse dia irá chegar com um doloroso atraso que só a compreensão da adversidade nos obriga a
"GENTE ACENANDO PARA ALGUÉM QUE FOGE" DE PAULO FARIA compreender e aceitar.
EDITORA MINOTAURO A SPA, que está a reorganizar os seus espaços e serviços na exacta medida das soluções que o momento impõe, tudo
está a fazer para que a cultura reocupe o seu lugar legítimo e insubstituível na vida da comunidade. No próximo ano
"A Melhor Máquina Viva" de José Gardeazabal | Companhia das Letras
"Está Frio Lá Fora…" de António Panarra | Guerra & Paz voltarão a ser atribuídos o Prémio Vida e Obra e o prémio para a melhor programação cultural autárquica do ano de
2021.
MELHOR LIVRO DE POESIA Para além de felicitar calorosamente os distinguidos, a SPA manifesta o seu desejo de que a crise política que afecta
"A MATÉRIA ESCURA E OUTROS POEMAS" DE JORGE SOUSA BRAGA
agora o país e ensombra a própria vida democrática possa ser convenientemente superada por via de um acto
ASSÍRIO & ALVIM eleitoral livre, digno e muito participado, tendo consciência de que isso é essencial para dignificar e engrandecer a
"Putrefacção e fósforo" de José Emílio-Nelson | Abysmo própria vida artística e cultural em toda a sua diversidade.
"A faca que une" de António Amaral Tavares | Do Lado Esquerdo Em 2021, apesar do êxito alcançado com o exemplar processo de vacinação coordenado pelo vice-almirante Gouveia
e Melo, a cooperativa dos autores portugueses e os autores e artistas voltam a pagar o preço muito elevado e
MELHOR LIVRO PARA INFÂNCIA E JUVENTUDE penalizador de um confinamento que se prolongou no tempo para além do que era desejável. A sociedade
"1º DIREITO" DE RICARDO HENRIQUES - ILUSTRAÇÃO: NICOLAU portuguesa, também por razões económicas e sociais, precisa de reencontrar o ritmo normal e natural da sua
PATO LÓGICO actividade cultural para que ninguém fique privado de poder partilhar o que cria, produz e difunde. Que o triunfo
reconhecido e aplaudido de algumas dezenas de autores e artistas possa ser a festa estimulante da comunidade
"Noa" de Susana Cardoso Ferreira - Ilustração: Raquel Costa | Oficina do Livro
"Inácia, a galinha sindicalista" de Dora Santos Rosa Ilustração: Felisbela Fonseca - Tigre de Papel criativa que procura nos palcos e nos estúdios o seu lugar certo e o seu tempo natural de criação e reconhecimento
público. É também por isso e para isso que, nos tempos bons como nos maus, a SPA, com quase um século de vida,
existe e é reconhecida nacional e internacionalmente.

José Jorge Letria


MELHOR ESPECTÁCULO Presidente da SPA
"A PAIXÃO SEGUNDO JOÃO" ENCENAÇÃO DE PEDRO LACERDA
"Catarina e a beleza de matar fascistas" Encenação Tiago Rodrigues
"Subitamente no Verão passado" Encenação Bruno Bravo

MELHOR ACTRIZ
"ANA MOREIRA" EM FORA DE CAMPO
"Carolina Salles" em Subitamente no verão passado
"Custódia Gallego" em Maria, A Mãe
MELHOR ARGUMENTO
"ORDEM MORAL" DE CARLOS SABOGA
MELHOR ACTOR
"Mosquito" de Gonçalo Waddington e Fernanda Polacow
"PEDRO LACERDA" EM PAIXÃO SEGUNDO JOÃO
"Patrick" de Gonçalo Waddington e João Leitão
"Cláudio da Silva" em Lorenzaccio
"João Pedro Mamede" em A máquina Hamlet MELHOR FILME
"ORDEM MORAL" DE MÁRIO BARROSO
MELHOR TEXTO PORTUGUÊS REPRESENTADO "Listen" de Ana Rocha de Sousa
"A RECONQUISTA DE OLIVENZA" DE RICARDO NEVES-NEVES "Patrick" de Gonçalo Waddington
"Catarina e a beleza de matar fascistas" de Tiago Rodrigues
"Ned Kelly" de Pedro Alves
MELHOR ACTRIZ
LÚCIA MONIZ EM LISTEN
Maria de Medeiros em Ordem Moral
Catarina Wallenstein em O ano da morte de Ricardo Reis

MELHOR TEMA DE MÚSICA POPULAR MELHOR ACTOR


"TUDO NO AMOR" DE CLÃ - AUTORES: HÉLDER GONÇALVES E SÉRGIO GODINHO MARCELLO URGEGHE EM ORDEM MORAL
"Kriolu" de Dino D'Santiago (com participação de Julinho KSD) Autores: Claudino Pereira, Ricardo Pereira em Golpe de Sol
Júlio Lopes, Kalaf Epalanga, J. Barbosa e Pedro Maurício Ruben Garcia em Listen
"Eram 27 Metros de Salto" de NOISERV Autor: NOISERV

MELHOR TRABALHO DE MÚSICA ERUDITA


"POSLÚDIO" DE TIAGO DERRIÇA
MELHOR PROGRAMA DE INFORMAÇÃO
"NowState" de Gonçalo Gato
"JORNAL 2" RTP
"303 - Circ. Praça Constituição" de Nuno Lobo
AUTORIA: DIRECÇÃO DE INFORMAÇÃO
MELHOR TRABALHO DE MÚSICA POPULAR "Radar XS" RTP2
"VIAS DE EXTINÇÃO" DE BENJAMIM Autoria: Andrea Basílio, Andreia Friaças, Magda Valente e Sofia Esperto
"Véspera" de Clã "Esquecidos" SIC Notícias e Médicos Sem Fronteiras Coordenação: Sandra Varandas e Rute Vasco
"Máquina de Vénus" de Blacksea Não Maya

MELHOR PROGRAMA DE FICÇÃO


"TERRA NOVA" RTP - AUTORIA DE ARTUR RIBEIRO E NUNO DUARTE
REALIZAÇÃO DE JOAQUIM LEITÃO
MELHOR EXPOSIÇÃO DE ARTES PLÁSTICAS "Crónicas dos bons malandros" RTP - Autoria de Jorge Paixão da Costa, Mário Botequilha e
"MELANCOLIA PROGRAMADA" DE GABRIEL ABRANTES | MAAT Mário Zambujal - Realização de Jorge Paixão da Costa
"Linda Funda" de Nuno Sousa Vieira | Fundação Carmona e Costa
"Esperança" SIC - Autoria de Pedro Varela, Pedro Goulão e Frederico Pombares Realização de Pedro Varela
"Objectos em eterno colapso" de João Ferro Martins | Galerias Municipais - Pavilhão Branco

MELHOR TRABALHO DE FOTOGRAFIA MELHOR PROGRAMA DE ENTRETENIMENTO


"ECLIPSE" DE ANTÓNIO JÚLIO DUARTE | GALERIA BRUNO MÚRIAS "HERDEIROS DE SARAMAGO" RTP - AUTORIA DE CARLOS VAZ MARQUES
"Ballad of today" de André Cepeda | MAAT REALIZAÇÃO DE GRAÇA CASTANHEIRA
"Da periferia vê-se a cidade" de Catarina Botelho | Galerias Municipais - Pavilhão Branco
"Eléctrico" RTP/ANTENA 3 - Autoria: Henrique Amaro, André Tentúgal Realização de André Tentúgal
MELHOR TRABALHO DE CENOGRÁFICO "Isto é a gozar com quem trabalha" SIC - Autoria de Ricardo Araújo Pereira, José Diogo Quintela,
"NED KELLY" DE PEDRO SILVA Miguel Góis, Cláudio Almeida, Manuel Cardoso, Cátia Domingues, Guilherme Fonseca e Joana Marques
"A reconquista de Olivenza" de Catarina Barros Realização de Teotónio Bernardo
"Subitamente no verão passado" de Stéphane Alberto

MELHOR PROGRAMA DE RÁDIO MELHOR COREOGRAFIA


"RADICAIS LIVRES" DE RUI PEGO, JAIME NOGUEIRA PINTO E PEDRO TADEU | ANTENA1 "ONIRONAUTA" DE TÂNIA CARVALHO
"A fuga da arte" de Ricardo Saló | Antena2 "Mal - Embriaguez divina" de Marlene Monteiro Freitas
"E o resto é história" de Rui Ramos e João Miguel Tavares | Rádio Observador "Os três irmãos" de Victor Hugo Pontes

JÚRI LITERATURA: Luísa Mellid Franco | Rita Pimenta | Teresa Carvalho CINEMA: Inês Lourenço | Jorge Leitão Ramos | Rui Tendinha RÁDIO: António Sala | Henrique Amaro | João David Nunes
TEATRO: Gonçalo Frota | Helena Simões | Rui Monteiro TELEVISÃO: Ana Zanatti | Isabel Medina | Paulo Sérgio Santos DANÇA: Cláudia Galhós | Daniel Tércio | Maria José Fazenda
MÚSICA: Eurico Carrapatoso | Miguel Angelo ! Paulo Furtado ARTES VISUAIS: Fernanda Fragateiro | Luísa Ferreira | Pedro Calapez

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