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Crise da habitação

A invasão
americana
Entre 2020 e 2021, duplicou o número
de norte-americanos que se mudou
para Portugal. O que é bom e barato para
alguns tornou-se caríssimo ou mesmo
A Revista do Expresso inacessível para a esmagadora maioria
EDIÇÃO 2631 dos portugueses. A cidade de Lisboa
31/MARÇO/2023 vive agora entre o sonho e o pesadelo

Em 2019, a família de
Megan e Ben Mitas
Grande entrevista
mudou-se da Florida para Marion Cotillard, na
Campo de Ourique. No pele de Cleópatra
ano passado, compraram Por Francisco Ferreira
um palacete na Lapa
em Paris

Brexit
A crise dos tomates
Por Paulo Anunciação
em Londres
PLUMA CAPRICHOSA

O CASALINHO MARCELO COSTA

T
IMPERA EM PORTUGAL, DESDE O IMPÉRIO, O ESPÍRITO DO SALVE-SE QUEM PUDER
grande partido. Teríamos o PS sucedendo ao PS, uma nos países mais avançados. Resta-nos vender o sol e o
coisa que se usa muito para os lados do México, até sal marinho das praias, e arrendar e doar a paisagem
lhe deram um nome do jargão, mexicanização da protegida. Quem pagará a água no futuro é problema que
política. O PS como uma emanação do PRI, o Partido não nos preocupa. As eleições são amanhã. E o ar, quem
Revolucionário Institucional, é preciso chamar os cuida dele? Ninguém.
bois pelos nomes, que nasceu como um partido Não temos sistemas de transportes viáveis, e pelo
revolucionário, claro, que queria mudar a sociedade e a menos ganhámos o epíteto de Cidade Verde em Lisboa.
política do México, mudar tudo, e se manteve 70 anos, Queremos o epíteto, não o verde despoluído. Um
setenta, no poder. canteiro sai mais barato do que comboios e elétricos
Chama-se a isto hegemonia. Chama-se também rápidos. Tudo está errado. Não se ganham eleições
estabilidade política, um valor muito apreciado por com investimentos certos que darão rendimentos aos
bandas lusitanas. Os Presidentes mexicanos foram os futuros políticos. Os nossos políticos trabalham para a
únicos na América Latina que conseguiram terminar os propaganda do instante, ou mesmo para ontem, porque
enho a impressão de que não foi bem isto que os nossos mandatos. Num território onde se matam uns aos outros, não construíram o passado que seria o mapa do presente.
constitucionalistas e pais fundadores da democracia e são viciados em golpes de estado, ditaduras militares Regressando ao sistema semipresidencialista, o que
dos cravos pensaram, quando decidiram inventar de esquerda e de direita, subversões revolucionárias, se tinha em vista era vigilância organizada e uma
o sistema semipresidencialista. Em Portugal, como guerras civis, milícias armadas, desordens militares magistratura de influência do Presidente. Litúrgica,
nunca temos bem a certeza do que é melhor para nós, e paramilitares, corrupção endémica e dominação um pouco majestática, impondo respeito institucional.
se uma coisa se outra, se carne se peixe, e na nossa dos estados pelo narcotráfico, fazendo de países O que temos? O sistema semipaternalista, em que o
moderadíssima rejeição do confronto, ficamos pelo democráticos países narcos, no continente do general Presidente vai ralhando com os ministros e o primeiro-
semi. Semi isto, semi aquilo, o melhor de dois mundos. Tapioca e do general Alcazar, o México é um quase ministro, impondo-lhes umas orelhas de burro e duas
E depois logo se vê, vamos pensar nisso. Vai morrer modelo de sossego. Quase. Porque é também o maior horas no canto da sala de aula (sistema educacional
longe. Nesta linha de pensamento sincrético e eclético, e mais violento dos países narcotraficantes, um dos primário nos tempos antigos) e depois fazendo as pazes
o croissant com leitão é uma das nossas melhores mais pútridos, com uma sociedade que em vez de se e dando uma pancadinha nas costas, escondida a régua.
invenções no território do dois em um. Talvez só batido manter impermeável à corrupção se transformou numa Primeiro, o Presidente critica com dureza a política de
pelo pastel de bacalhau, chamado bolo de bacalhau pirâmide hierárquica de corrompidos e corruptores, e habitação e acentua que esta maioria nasceu comatosa,
desde a vigência do acordo brasileiro, com queijo da onde os cartéis da droga, que se multiplicaram como depois o primeiro-ministro responde que uns fazem e os
serra. pãezinhos em Canaã, são quem mais ordena. E não o que não sabem fazer criticam.
Temos no sistema semi várias itinerâncias. O semi povo. O Estado de Direito não existe como estrutura A seguir, vão os dois para uma cimeira na América
aumento de salários e pensões, o semi apoio aos de manutenção da ordem e como recurso de justiça, Latina, algures na República Dominicana, e lemos por
mais “vulneráveis”, que é como se chamam agora as forças policiais e judiciais obedecem a quem paga aí que estão em lua de mel e fizeram as pazes. E que os
os pobres. E apenas os pobres com “famílias”, os e manda mais, o jornalismo livre e independente une uma crescente e pequeno-burguesa atração mútua.
singulares têm o pires das moedinhas, um semi é assassinado quando denuncia as ilegalidades e No neutro terreno da amizade, nada de segundas ideias.
dinheiro, a colunata do Teatro D. Maria no Rossio, irregularidades, e o poder político está nas mãos de Em resumo, em vez de um Presidente e um primeiro-
a canção exangue no metropolitano, o acordeão na grupos e camarilhas que transformaram as eleições num ministro temos um casalinho em férias nas Caraíbas,
esquina, e o cão para a caridade coletiva e a comoção processo meramente formal. num pacote all inclusive, duas refeições por dia e bebida
das massas. De passagem, o cão do sem-abrigo é Na verdade, o México é governado pelos cartéis e pelos tropical de boas-vindas, a tentar salvar o casamento
mais bem tratado do que certos animais que vemos americanos na sua guerra sem quartel contra os cartéis. através de uma segunda lua de mel. Um divórcio sairia
por aí em mãos possidentes de outros animais com O México fabrica e distribui as drogas e os americanos demasiado caro, e existem os filhos. Nós. Portanto,
força e poder proprietário. E com “recursos”. O cão são os clientes ricos. Não os únicos, os maiores e passeiam à beira-mar ao crepúsculo e tentam “resolver
vagabundo é amado, apesar da existência entediante a mais ricos. Podemos dizer que a mexicanização não as suas diferenças”.
observar pernas e pés. correu bem e a estabilidade não é um valor solitário. E depois foram à bola, ver a seleção jogar no
Regressando ao tema entediante do A vida humana, ali, vale pouco. E a justiça não existe. Luxemburgo. A bem da nação. b
semipresidencialismo, o que se propunha era uma Observe-se a fila de entrada clandestina nas linhas de
saudável partilha do poder, com sistemas de mútua fronteira com os Estados Unidos.
vigilância e acompanhamento. O Executivo legisla Nós por cá estamos mais ou menos bem. Temos
e vai executando, o Parlamento aprecia e legisla, o a Europa por cima, impedindo a selvajaria, não o
Presidente aprecia tudo e veta ou aprova. Largamente, suficiente para assegurar a saúde plena da democracia,
é um sistema inventado para impedir apropriações a defesa dos direitos humanos, a salvaguarda da
do poder político por atores isolados, por autocratas separação dos poderes, a desigualdade económica
disfarçados e por nostálgicos aspirando os vapores e e social, a corrupção política e moral, o tráfico de
emanações dos 48 anos. Leram bem, quarenta e oito influências, a criação de riqueza e a justa redistribuição.
anos. Nem a série policial “Law & Order” teve tantas Muito menos assegura a qualidade do ocupante do
temporadas. poder ou a inteligência coletiva. Impera em Portugal, / CLARA
É muito ano, embora certos chefes democratas andem
perto na longevidade política, sendo Aníbal Cavaco
desde o império, o espírito do salve-se quem puder. E
uma sofrível inteligência coletiva, que nos faz escolher FERREIRA
Silva um deles, entre ministro, primeiro-ministro
e Presidente, e António Costa, que está na política
o modelo errado de desenvolvimento. Partimos
atrasados e ficamos obsoletos. Exemplo? Quando o
ALVES
desde a tenra infância, pareça querer sobrepujar. Se a novo aeroporto fosse construído estaria obsoleto, por
Europa não o chamar, aí o teremos em 2026, vigoroso e razões da emergência climática. O mundo muda
desejoso de servir a pátria. muito em um ano, e aceleradamente, quanto
Se o PSD não acordar do torpor esvaziado, mais a mais numa década. Exemplo? Quando a
melancolia patológica em que sobrevive como se nada nossa ferrovia de alta velocidade estivesse
fosse, será assim. É uma espécie de semi segundo construída, o modelo estaria abandonado

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SUMÁRIO
EDIÇÃO 2631 | 31/MARÇO/2023

TIAGO MIRANDA
fisga +E Culturas Vícios

26
Escassez no reino
9 | Flores
Não é petróleo, nem são
armas, nem medicamentos.
São apenas flores, o 352º
produto mais comercializado
do mundo — um mercado
18 | Inteligência no e-mail
Tornar o trabalho mais fácil
ou mais produtivo — ficando
tudo o resto igual — é a
promessa da entrada de
ferramentas de inteligência
45 | Laura Poitras
Cineasta apresenta “Toda
a Beleza e a Carnificina”
48 | Luandino Vieira
O que terá pretendido dizer
63 | Folares da Páscoa
A tradição mantém-se
firme em Trás-os-Montes
e chega, pela mão de filhos
da terra, a Lisboa e ao Porto
Os supermercados
que vale 7,84 mil milhões artificial em várias tarefas com a publicação dos “50 68 | Receita
britânicos estão de euros por ano, onde os quotidianas Poemas”, de Mário António? Por João Rodrigues
com falta de legumes Países Baixos são reis. É de
20 | Portugal americano 50 | Livros “Dor Fantasma”, 70 | Restaurantes
frescos e a situação lá que Portugal mais importa,
de Rafael Gallo Por Fortunato da Câmara
mas também há produção Atraídos por preços muito
vai manter-se até maio. mais baixos do que nas
nacional: só o Montijo 54 | Cinema “Interdito 72 | Vinhos
Este é um diário representa cerca de 70% grandes cidades dos EUA,
a Cães e Italianos”, Por João Paulo Martins
num país sem tomate da floricultura em território os americanos encontram
de Alain Ughetto
português. A flor da moda no Sul da Europa a qualidade 73 | Recomendações
é a gerbera de vida que julgavam perdida 56 | Televisão “Projeto De “Boa Cama Boa Mesa”
32 | Rede Shell Delta”, de Tiago Pimentel,
12 | O Que Eu Andei na Opto 74 | Design
Para Aqui Chegar Em 1942, a polícia política Por Guta Moura Guedes
Um currículo visual começava a desmantelar 58 | Música “Did You
de Vasco Coelho Santos uma rede de espionagem 76 | Moda
FICHA que envolveu britânicos
Know That There’s a
Por Gabriela Pinheiro
Tunnel Under Ocean Blvd”,
TÉCNICA 14 | Planetário e muitos portugueses. de Lana Del Rey
O luxo do tempo Um processo guardado 78 | Tecnologia
Diretor Por Hugo Séneca
João Vieira Pereira Por João Pacheco na Torre do Tombo ajuda a 60 | Teatro & Dança
perceber o que aconteceu “Orlando”, de Virginia Woolf,
Diretor-Adjunto
no São Luiz, em Lisboa 81 | Passatempos
Miguel Cadete
mcadete@impresa.pt 38 | Marion Cotillard Por Marcos Cruz
Diretor de Arte
Numa longa conversa, 61 | Exposições “Dark Safari
a atriz fala sobre a carreira, — Obras da Coleção de Expressinho
Marco Grieco Livros e mais livros!
as suas referências Arte Contemporânea do
Editor
Ricardo Marques e a família que construiu Estado”, no Museu do Côa
rmarques@expresso.impresa.pt
Editor de Fotografia
João Carlos Santos
Coordenadores
João Miguel Salvador
jmsalvador@expresso.impresa.pt
CRÓNICAS
Luís Guerra 3 Pluma Caprichosa por Clara Ferreira Alves | 16 O Mito Lógico por Luís Pedro Nunes
44 Os Cadernos e os Dias Por Gonçalo M. Tavares | 53 O Outro Lado dos Livros por Manuel Alberto Valente
lguerra@blitz.impresa.pt

Coordenadores Gerais de Arte


Jaime Figueiredo (Infografia) 62 Fraco Consolo por Pedro Mexia | 80 Diário de Um Psiquiatra por José Gameiro
Mário Henriques (Desenho) 82 Estranho Ofício por Ricardo Araújo Pereira
FOTOGRAFIA DA CAPA: KERRY MURRAY/THE NEW YORK TIMES

E 6
fisga
“QUEM SABE TUDO É PORQUE ANDA MUITO MAL INFORMADO”

Bem me quer, C
hegou a primavera, a estação das alegrias.
Correção: das alergias, que reúnem uma
orquestra sinfónica onde os pólenes são

malmequer?
maestros. Composta por vários instrumentos
do corpo humano, os espirros e as tosses são as
melodias mais conhecidas, acrescentando-lhes
a percussão-comichão. Para as prevenir, a CUF
elaborou em 2021 uma lista de dez estratégias
onde, no ponto quinto, se lê: “Não tenha flores
NÃO É PETRÓLEO, NEM SÃO ARMAS, NEM MEDICAMENTOS. SÃO APENAS dentro de casa.”
FLORES, O 352º PRODUTO MAIS COMERCIALIZADO DO MUNDO — UM Então não é que, na estação das flores, não
MERCADO QUE VALE 7,84 MIL MILHÕES DE EUROS POR ANO, ONDE OS PAÍSES é aconselhável ter flores? Seja como for, na
experiência de Rui Algarvio, vice-presidente da
BAIXOS SÃO REIS. É DE LÁ QUE PORTUGAL MAIS IMPORTA, MAS TAMBÉM HÁ Associação Portuguesa de Produtores de Plantas
PRODUÇÃO NACIONAL: SÓ O MONTIJO REPRESENTA CERCA DE 70% DA e Flores Naturais (APPP-FN), pintar a casa com
FLORICULTURA EM TERRITÓRIO PORTUGUÊS. A FLOR DA MODA É A GERBERA pétalas que casam diversas cores do arco-
íris não é — nunca foi — tradição das famílias
TEXTO MATILDE ORTIGÃO DELGADO INFOGRAFIA CARLOS ESTEVES portuguesas. “Temos, isso sim, picos de venda
ILUSTRAÇÃO CRISTIANO SALGADO associados a datas específicas.”

E 9
fisga
MAIORES EXPORTADORES A NÍVEL MUNDIAL
Em %

Olhando para o calendário, há uma que rapidamente.” Como se não bastasse, na sua
sobressai. O dia de São Valentim, comummente Países Baixos 47,5 experiência, a chegada do calor representa, ao
denominado como Dia dos Namorados, é aquele Colômbia 16,8 mesmo tempo, a partida das pessoas — o que
que mais vende. Quem o diz é Odete Reino, Equador 9,88 faz com que, aquelas que já pouco consomem,
de 71 anos, florista há 55 porque “aconteceu Quénia 7,05 consumam ainda menos. Mas no inverno
assim”. Com um sorridente suspiro, explica que, Etiópia 2,26 acontece exatamente o contrário: é quando Odete
independentemente das voltas que o Sol dá em Portugal 0,25 diz receber mais clientes. O motivo esconde-se
torno da Terra, ao chegar a altura de iluminar atrás da escuridão trazida pela estação chuvosa
o dia 14 de fevereiro, os seus olhos inundam de e fria, quando as pessoas querem dar mais cor às
MAIORES IMPORTADORES A NÍVEL MUNDIAL
uma só flor, de uma só cor. São rosas, senhor. suas casas. Para que se mantenham assim, há um
Em %
Vermelhas e inesgotáveis — pelo menos na loja cuidado a ter: “É preciso mudar-lhes a água de
de um “bom florista”, segundo Odete: “Tem a dois em dois dias”, recomenda a florista. Mas isto
obrigação de não deixar que acabem, é preferível EUA 19,9 é quando se trata de flores avulso, porque para
que sobrem para o dia seguinte.” Alemanha 14,9 um bouquet, continua, “a história é outra”.
Ao contrário do que acontece com a maioria das Reino Unido 9,84 O segredo para um bom arranjo de flores, Odete
suas flores, de nacionalidade portuguesa, as rosas Países Baixos 9,82 Reino não revela. Limita-se a dizer que “primeiro
que chegam ao estabelecimento que Odete Reino Rússia 6,61 é preciso um bom par de mãos”, o resto vem com
edificou na também flor da idade são importadas França 5,38 a habilidade adquirida pela experiência somada
e florescem em solos equatorianos — não fosse o Portugal 0,29 aos anos do trabalho. Ainda assim, é costume
Equador, de acordo com o que escreve a Petala que venham “verduras”, assim lhes chama
Republic, o maior produtor de rosas do mundo. o vice-presidente da Associação Portuguesa
DE ONDE É QUE PORTUGAL IMPORTA?
Mas quando fica no vaso ao lado dos países que de Produtores de Plantas e Flores Naturais,
Em %
mais exportam, ganha medalha de bronze, com a almofadar as flores. “Os fetos são das mais
apenas e quase 10% da exportação mundial. Um importantes” e, como qualquer outra planta,
número, ainda que ligeiramente arredondado 47,5 requerem de cuidados especiais. No seu caso:
para cima, pequeno quando comparado com os água diariamente.
Países Baixos (47,5%), que detém o monopólio da 31,8 O mesmo acontece ainda na produção. Para
exportação e uma receita que, em 2020, chegou potenciar que, assuma-se a redundância, uma
aos 3,72 mil milhões de euros, num mercado 13 flor floresça, é preciso atentar que cada uma é
que, por ano, vale cerca de 7,84 mil milhões, cada qual e exige um cuidado indicado à sua
segundo aponta o Observatório de Complexidade especificidade. Exatamente por isso, o dia a dia de
Económica (OEC). PAÍSES ESPANHA EQUADOR Rui Algarvio é andar de estufa em estufa. “É isso
BAIXOS
Quase na mesma proporção, é ao país neerlandês mesmo”, ri-se, continuando: “As plantas são seres
que Portugal mais importa (47,7%), ainda vivos e precisam desse acompanhamento diário.”
PARA ONDE É QUE PORTUGAL EXPORTA?
segundo o OEC, aquele que é o 352º produto mais Das mais às menos populares — no caso
Em %
comercializado do mundo: as flores de corte — português, da “rainha” gerbera ao “desusado”
que no jargão da floricultura se refere àquelas que 78,6 gladíolo — são muitas as centenas de variedades
são cortadas das plantas de onde crescem e são, e espécies. Uma preferência que oscila, quase
posteriormente, comercializadas. Ainda assim, tanto quanto o próprio mercado inflacionado
voltando aos conhecimentos de Rui Algarvio, por pandemias e guerras: “A questão das cores
a qualidade da flor nacional tem crescido, também é critério e tudo depende do que está
tornando-se “extremamente competitiva” a na moda”, diz o vice-presidente da Associação
maior parte do ano, acentuando uma diminuição supramencionada. Se há 30 anos os cravos eram
da dependência exterior: “Já conseguimos os mais procurados — e aí talvez se deva alocar
substituir as flores que vêm dos Países Baixos”, 9,92
a responsabilidade à Revolução de Abril —,
acrescenta. 3,61 atualmente aquela que é “comercializada o ano
Para responder à procura do mercado interno, inteiro” é a gerbera, nas palavras de Rui Algarvio,
Portugal tem vindo a tornar-se cada vez mais PAÍSES ESPANHA EQUADOR “a rainha da produção do Montijo”.
BAIXOS
autossuficiente. Mas quando projetado para fora, Montijo, a região que detém cerca de 70% da
o país vai cambaleando na tabela, detendo uma FONTE: OBSERVATÓRIO DE COMPLEXIDADE ECONÓMICA (OEC), 2020 floricultura nacional, seguindo-se pela costa
pequena percentagem de 0,25%, que lhe valeu alentejana na área dedicada à flor de corte.
no ano de 2020 cerca de 11 milhões de euros. “São solos arenosos, o que ajuda os sistemas
MAIORES PRODUTORES DAS DIFERENTES
Geograficamente falando, para o país na ponta de drenagem”, esclarece o especialista. Claro
VARIEDADES DE FLORES
mais Ocidental da Europa, nas palavras do vice- está que, mais uma vez, a questão sazonal é
presidente da APPP-FN, “em termos de logística, uma questão e, nesse respeito, Portugal tem
demora algum tempo até as flores chegarem ao FLOR PAÍS dois graves problemas que limitam a qualidade
centro europeu e outras latitudes”. Eis a principal produtiva.
razão para, segundo os dados do Observatório ROSAS Equador Ainda nas palavras do vice-presidente da
de Complexidade Económica, a vizinha Espanha APPP-FN, os invernos “restritivos” carregam
ser o segundo país — ficando atrás, mais uma TULIPAS e PEÓNIAS Países Baixos consigo muita chuva e os verões, antagónica
vez, dos Países Baixos — que mais compra flores e exageradamente quentes, potenciam pragas
de corte portuguesas: fica mesmo ao lado e não CRAVOS Colômbia “complicadas”. Esta dualidade periódica
prejudica a qualidade da flor cortada, cuja vida representa um dos principais desincentivos
útil é tudo menos longa. ORQUÍDEAS Tailândia ao investimento de plantações noutras regiões
Uma efemeridade que, ao contrário do que se do país: “É uma indústria que exige um bom
possa pensar, é ainda mais encurtada no verão. investimento” para que se alinhe com o pilar da
Odete Reino explica: “As flores secam mais
FONTE: PETAL REPUBLIC, 2022
sustentabilidade. b

E 10
REVERSO
TRIBUTE
fisga
O QUE EU ANDEI PARA AQUI CHEGAR NÚMEROS
UM CURRÍCULO VISUAL PRIMOS
CONTAM MUITO

Vasco Coelho Santos


Cada um dos seus restaurantes tem uma especialidade, mas sempre de insígnia Euskalduna, que significa “basco”
na língua desse mesmo país que o acolheu e onde estagiou durante três anos — e “basco” na pronúncia portuense
1687
PARTICIPAÇÕES POR
não pode ser o mesmo que “Vasco”? Conquistou a primeira estrela Michelin e foi considerado um dos jovens VIOLÊNCIA JUVENIL
mais promissores do mundo pelo "Chef de l'Avenir" da Academia Internacional de Gastronomia.
Agora é Chef do Ano do “Boa Cama Boa Mesa” / MATILDE ORTIGÃO DELGADO
Crime
1987
Nasce para a cozinha
e os mais novos
De raízes portuenses nasceu aquele que Os casos de violência juvenil
viria a ser um dos chefes mais influentes do detetados pelas autoridades subiram
mundo. Mas antes de aspirar a tal, seguiu um no ano passado em 50%, de acordo
rumo diferente ao começar uma licenciatura
em Gestão. A um ano de ganhar o cunho
2023 com os dados do último Relatório
oficial de gestor, deixou o curso em águas de Saborear os prémios Anual de Segurança Interna: o
bacalhau para se dedicar àquilo que diz ser a número passou de 1120 para 1687
Inaugurado em fevereiro no
sua verdadeira paixão: a culinária. Porto, o mais recente projeto do participações ou queixas. Esta
chefe de 35 anos chama-se Kaigi violência protagonizada por grupos
2008 by Euskalduna, e resulta de uma juvenis entre os 15 e 25 anos e resulta
Cresce como fusão de comida portuguesa e de rivalidades entre grupos e do
japonesa. O “Guia Boa Cama Boa tráfico de droga.
cogumelo Mesa” já lhe concedeu, desde a
Do Norte, desceu à capital, onde abertura do primeiro restaurante,

44
começou a refogar o seu talento diversos Garfos de Prata e Ouro.
no Atelier de Cozinha Michel ao Agora é-lhe reconhecido o
mesmo tempo que trabalhava estatuto de Chef do Ano do
no Restaurante Olivier Avenida, “Boa Cama Boa Mesa”.
PRODUTOS QUE
do chefe Olivier. Para completar CABEM NUM CABAZ
a formação, estagiou no Tavares
Rico, ao lado do chefe José
Avillez, o primeiro português a IVA zero
a caminho
conseguir duas estrelas Michelin.

O cabaz dos produtos com IVA a zero


2022 — que resulta de um acordo entre o
Jovem estrela Governo, a produção e a distribuição
Michelin e que vai custar 600 milhões euros
Inaugura um projeto no — será constituído por 44 produtos
Douro, o Seixo by Vasco alimentares básicos, com destaque
2010 Coelho Santos, na Quinta para as frutas, legumes, massa, peixe
Vasco em basco do Seixo. O seu restaurante e carne. O Governo promete uma
de assinatura, o Euskalduna
Decide voar para solo Studio, recebe uma comissão de acompanhamento
espanhol e, na panela, leva estrela Michelin e Vasco é composta por oito entidades.
o objetivo de aperfeiçoar considerado um dos mais

128
técnicas. No País Basco, promissores pelo “Chef
cruza-se com os renomados de l'Avenir” da Academia
chefes Andoni Aduriz e Internacional de Gastronomia.
Arzak, com quem estagiou
no Mugaritz e no Arzak, TIROTEIOS EM
respetiva e somente dois dos MASSA NOS EUA
mais sonantes restaurantes
do mundo. Na Catalunha,
trabalha no El Bulli, com o 2015 Morte na escola
chefe Ferran Adria.
Refina o clássico Uma mulher de 28 anos matou esta
Sob um olhar inovador, semana três crianças e três adultos
idealiza e torna-se, em numa escola em Nashville, no estado
2013 junho, sócio do restaurante 2016 norte-americano do Tennessee. A
Especiarias do mundo BaixóPito, localizado na Cataplana de restaurantes atiradora, que foi morta pela polícia,
Baixa da cidade do Porto.
No Porto, explora os paladares do mundo. Um conceito culinário que Euskalduna Studio, no Porto, torna-se era uma antiga aluna da escola e
Segue-se uma viagem gastronómica de meses. reinventa o único prato da o primeiro espaço de cozinha de planeou o ataque, que, segundo um
Da Europa à Ásia, destaca restaurantes como o ementa: o frango. autor, e no qual refina a sua identidade manifesto encontrado na sua casa,
Viajante, em Londres, e o 2am: Dessert Bar, em gastronómica. Desse projeto, nascem teria outros locais como possíveis
Singapura. Regressa cheio de novos sabores outros tantos: o espaço de partilha
e inicia o projeto Euskaluna, especializado Semea, em 2018, e, três anos depois, a alvos. Este é já o 128º tiroteio em
em jantares privados, nos quais cruza a sua padaria de fermentação natural Ogi, e a massa nos Estados Unidos desde o
experiência com os melhores ingredientes. peixaria moderna, Peixaria. início do ano. / RICARDO MARQUES

E 12
fisga
PLANETÁRIO
NO CAMINHO DAS ESTRELAS

POR
JOÃO
PACHECO

NOVA IORQUE

O brilho da
família Sassoon
O rapaz aqui retratado chamava-se Siegfried Sassoon e pousou
BENJAMIN WALDMANN

assim em 1896, vestido com uma página do “The Observer”.


Quando Siegfried nasceu, a família Sassoon era sinónimo de
uma grande fortuna, no Reino Unido. Eram judeus sefarditas,
com origens portuguesas, espanholas e no Norte de África. E
tinham enriquecido a partir de Bagdade, através do comércio
de várias mercadorias, incluindo ópio. Estabeleceram-se na
Índia e em Londres. E, em criança, o pai do rapaz da fotografia
gostava de tocar violino. Era o filho mais novo e tinha ficado ALMADA — BUENOS AIRES
órfão de pai aos seis anos. A mãe comprou-lhe dois violinos
Stradivarius, na ilusão de que o menino poderia tornar-se
concertista. Essa esperança materna não viria a realizar-se. Aliás,
a senhora acabou mesmo por deserdar o filho e cumpriu luto
O luxo do tempo
por o considerar morto, quando o viu casado com uma mulher
que não era judia. Anos depois, o neto da senhora que comprou
os Stradivarius participou na I Guerra Mundial e tornou-se um Além de ingredientes bem tratados, caminhada e aulas públicas dadas
autor reconhecido na literatura britânica, sobretudo através para fazer um bom arroz de grelos por especialistas em clarinete, em
de poemas de guerra. Agora, este retrato do poeta Siegfried convém ter um relógio a funcionar violoncelo e em violino. O concerto
Sassoon faz parte da exposição “The Sassoons” até 13 de agosto bem. O mesmo se aplica no caso de abertura será dedicado em parte
no Jewish Museum, em Nova Iorque. E na mesma cidade, a de ser importante chegar a horas a obras do compositor Antonio
Sotheby’s irá leiloar a 16 de maio a mais antiga bíblia hebraica a um aeroporto, sendo nesse caso Vivaldi (1678-1741), com “As Quatro
completa que se conhece. Se as previsões se confirmarem, o dispensáveis uns dentes de alho Estações” a serem interpretadas
preço de venda deverá andar entre os 28 e os 46 milhões de daqueles difíceis de descascar. Há pela orquestra barroca de Veneza “I
euros. Antes do leilão, esta raridade foi mostrada em Israel no quem diga saber com precisão Solisti Veneti”, a 27 de maio às 21
ANU, o Museu do Povo Judeu, em Telavive. E poderá agora quanto tempo são dez minutos ou horas, no Teatro Municipal Joaquim
ser vista na Sotheby’s de Los Angeles, de 30 de abril a 3 de uma hora, graças ao treino ou a um Benite. E a 3 de junho, o tempo
maio. E também na Sotheby’s em Nova Iorque, de 7 de maio jeito raro. Eu não sei, preciso mesmo será marcado pelo chamado novo
até ao dia do leilão. Esta bíblia chama-se “Codex Sassoon”, foi de ir vendo as horas e os minutos. tango, com as “Cuatro Estaciones
manuscrita no século IX Já para compreender a passagem Porteñas” de Astor Piazzolla
ou no século X e chegou do tempo, dá mais jeito esquecer (1921-1992) a serem tangadas à
a fazer parte do brilho da os ponteiros do relógio e ler sem mesma hora e no mesmo teatro. Os
família Sassoon. Ficou para obrigação. E comer cerejas, mas só protagonistas serão a cantora Ana
a História com o nome enquanto há cerejas a amadurecer Karina Rossi, Marcelo Nisinman
“Codex Sassoon” por ter nas árvores do país onde vivemos. E no bandoneón (na imagem), Tiago
pertencido a outra pessoa ouvir música. E reparar nos ritmos Pinto-Ribeiro no contrabaixo,
da família do rapaz aqui da natureza, mesmo com a maior Alberto Mesirca na guitarra elétrica,
retratado. Esse proprietário imprevisibilidade trazida pelas Rosa Maria Barrantes no piano
chamava-se David alterações climáticas. A próxima e David Castro-Balbi no violino.
CAMBRIDGE UNIVERSITY LIBRARY

Solomon Sassoon (1880- edição do Festival de Música dos Nessa noite de junho, os seis
1942) e foi um bibliófilo Capuchos acontecerá de 25 de maio músicos também vão interpretar
famoso, apaixonado em a 23 de junho em Almada, entre o temas de Marcelo Nisinman,
particular por manuscritos Convento dos Capuchos e o Teatro além de criações do compositor
em hebraico. Ao contrário Municipal Joaquim Benite. Este e músico Astor Piazzolla, um dos
do rapaz e futuro poeta ano, o tempo é o tema deste festival grandes génios que a Argentina
aqui retratado, que era com uma programação de luxo que viu nascer no século XX. Sim, o
antissemita. inclui concertos, conversas, uma tempo cavalga, tanto pelas boas

E 14
como pelas más memórias. E a 30 FLASHES LONDRES
de abril vão passar 46 anos desde
o dia em que na Argentina as Mães
da Praça de Maio desfilaram pela
Retratos de cães
primeira vez em frente ao palácio
presidencial, em Buenos Aires.
Queriam respostas sobre as filhas e Na loja do museu estão
filhos desaparecidos, num contexto à venda surpresas que
de ditadura militar. Em alguns podem interessar aos cães
casos eram mães e avós, porque dos visitantes. Mas, por
as filhas tiveram filhos enquanto motivos de segurança,
LOS ANGELES
estavam presas, que é o mesmo a única exceção é para

RICHARD SCHMIDT COLLECTION : THE DAVID HOCKNEY FOUNDATION


que dizer enquanto estavam vivas. Estes bichos foram postos cães-guia. De resto,
a saltar em 1982, por Keith
A tempo dessa efeméride ligada à os cães estão mesmo
Harring. E até 8 de outubro
maternidade e à coragem, estará proibidos de entrar na
exercitam-se no The Broad,
a caminho da Argentina o último onde fazem parte da exposi- exposição “Portraits of
avião que ainda existe, dos que ção “Keith Haring: Art Is for Dogs: From Gainsborough
foram usados nos chamados voos Everybody” [A Arte É para to Hockney” [Retratos de
da morte argentinos, organizados Todos], em Los Angeles. Antes Cães: De Gainsborough
para assassinar opositores políticos de morrer com sida, em 1990, a Hockney], que está até
e familiares, incluindo algumas das Keith Harring marcou o final do 15 de outubro na Wallace
Mães da Praça de Maio. Esse método século XX. Parece para todos Collection, em Londres. Lá
do regime dispensa adjetivos. os séculos, este salto sem eixo. dentro, entre os 50 retratos
Transportava-se as pessoas de avião escolhidos, há esculturas,
até a um ponto longe da costa, desenhos, pinturas e
depois de torturadas e drogadas. taxidermia. Os retratados
Eram atiradas dos céus para o mar, são cães e cadelas de
sem roupa. Todas morriam, claro. vários séculos, incluindo
O aparelho que vai agora regressar dois galgos romanos
à Argentina é um Short Skyvan e foi que foram esculpidos no
encontrado em Fort Lauderdale, na século I e que continuam fiéis até agora. britânico adotou um par de cães em
Florida. E como conta o jornalista Também merece ser visto um estudo 1987, chamou-lhes “Stanley” e “Boodgie”
argentino Uki Goñi num artigo de patas de cão, criado por Leonardo e retratou-os muitas vezes. Tal como
muito forte publicado há dias no MADRID da Vinci por volta de 1480. Já entre os David Hockney, já os autores de pinturas
jornal britânico “The Guardian”, Seria amor? Foram moldadas retratos mais recentes, os cães-guia rupestres tinham deixado na pedra
este avião deverá agora passar a em terracota no Mali, entre poderão passear-se perto desta pintura retratos de cães, há dezenas de milhares
estar exposto no Museo Sitio de o século XII e o século XVI. de David Hockney (na imagem). O pintor de anos. Quem lhes resiste?
Memoria ESMA, que existe desde E fazem agora parte de 300
2015 no mesmo espaço onde representações africanas da
funcionou um centro governamental cabeça, presentes na exposição
clandestino de detenção, de “Metamorfosis del ser” [Meta-
tortura e de extermínio. Quando morfoses do Ser]. Estas peças
foi descoberto na Florida, o avião pertencem à coleção Sánchez–
Ubiría, são agora mostradas pela PHOTO Em 2010, o
pertencia agora a uma empresa onde fotógrafo e
primeira vez e estão até 14 de MATON
ninguém fazia ideia do antigo uso pintor George
maio no Círculo de Bellas Artes,
dado a este Short Skyvan. Estava Woodman
em Madrid. O tema é problemá-
a ser utilizado para transportar tico e merece contextualização, trouxe de Itália
encomendas para as Bahamas. tendo em conta o colonialismo. esta imagem
Mas, estudados os registos de voo, E também a inspiração encon- do Museo
foi possível encontrar provas para trada a partir do século XX por Gypsotheca
julgar e condenar a tripulação artistas de fora de África, a Antonio Canova,
responsável por um voo da morte começar por Pablo Picasso. em Possagno.
feito dez dias antes do Natal de Agora, esta
1977. Nesse voo, foram assassinadas fotografia
12 pessoas, incluindo duas freiras LISBOA pintada faz parte
francesas, três Mães da Praça de São dez artistas a intervir em dez da exposição
Maio, três outros familiares de lojas consideradas históricas, “Betty
desaparecidos e quatro ativistas das poucas que resistem em Woodman
que tentavam ajudar as famílias. Lisboa. Longe daquela aldrabi- and George
Os corpos de cinco destas pessoas ce dos negócios com data de Woodman”, até
WOODMAN FAMILY FOUNDATION: DACS

foram encontrados numa vala fundação inventada para turista 10 de setembro


comum em 2005, a 340 quilómetros ver, há entre estes resistentes na Charleston
a Caza das Vellas Loreto e a
de Buenos Aires. Tinham sido em East Sussex,
Papelaria Fernandes. Até 22 de
sepultados sem identificação, depois no Reino Unido.
abril, entre o Chiado e o Largo do
de terem dado à costa. Mesmo sob Rato, a iniciativa é da EGEAC e Com pintura,
ditadura, o médico responsável a arte é de artistas como Luísa cerâmica,
pelas certidões de óbito foi corajoso Ferreira e Hugo Brazão. E Manuel fotografias e
e escreveu a verdade. Aquelas João Vieira, que transformou a boas memórias
pessoas tinham caído ao mar, de Barbearia Campos num retrato do que o casal
grande altitude. b crítico da História do país. de artistas viveu.

E 15
O MITO LÓGICO

REQUIEM PELOS CAFÉS

D
INTELECTUAIS E REVOLUCIONÁRIOS MUDARAM O MUNDO ESTIMULADOS PELO CAFÉ
EM CAFÉS. HOJE, “OCUPAS DE LAPTOP” BEBERRICAM O SEU “ORGÂNICO” EM SILÊNCIO

evido à morte do comendador certo. Mas o café, onde se podia mudar o mundo, inventado na Europa
Nabeiro falou-se muito da no século XVII, é hoje uma atração turística.
bebida café e até das nossas O consumo de café chegou de Constantinopla via Veneza (what
particularidades como portugueses else?) ainda no século XV e era a bebida dos sunitas, que os ajudava a
no que toca ao consumo de cafeína. manter-se acordados para rezar durante a noite. Para uma Europa de
Não vou aqui discutir qual é a homens meio embriagados que evitavam beber água por causa das
bebida — além da água — que doenças, o café foi algo mágico. Teve o seu boom na Inglaterra, mas
mais se bebe no planeta. Sim, há Carlos II, paranoico por os cafés serem antros de republicanos, tudo
um beef em relação ao tema. E é fez para acabar com eles. E fazia-lhe mais sentido beber chá, dado ter
provável que seja o chá. Tal deve-se a Índia como pérola do Império. Os cafés “evoluíram” para os clubes
ao facto de a China e a Índia serem de gentlemen, que ainda existem. Nos EUA, além de a questão dos
chazeiras, e só aí vai quase metade impostos do chá introduzido pelos ingleses ter sido um evento que
da população do planeta. Mas há uma parte — talvez a mais fascinante espoletou a independência, o aparecimento do café em pó fez com que
— que não foi homenageada (não tinha de ser) nestes dias: não de este fosse levado pelos colonos e tornasse os EUA num país de café.
onde vem ou quem bebe, mas onde se bebe café. O que em Portugal, Mas é quando falamos da Europa que o café se torna mágico. Não
para criar alguma confusão neste texto, também se chama café, o há capital ou grande cidade que não tenha ainda o seu grande café,
local onde há umas mesas e se pode pedir uma bica (ou qualquer onde se reuniam escritores, intelectuais, jovens idealistas. De Madrid
outro regionalismo) e ler um jornal ou juntar uns amigos à conversa; e a Paris, de Viena a Berlim, todas estas cidades mantêm os seus cafés,
onde — lembro-me bem — podíamos estar longas tardes sentados sem onde ainda ecoa o debate de séculos, a troca de ideias speedadas pelo
dizer/fazer grande coisa — extensos períodos de silêncio prostrado, café. Cada cidade tem o seu café histórico, que exibe os seus troféus,
conceito impossível de explicar hoje. Mas o que quero aqui realçar é de Kakfas a Sartres, de Hemingways a Joyces, de Fitzgeralds a Bretons,
o que devemos a esse locais. Neles nasceram ideais revolucionários, à grupeta Rousseau, Diderot, Voltaire, que nessa altura bebiam uma
rebeliões, conceitos perigosos que derrubaram reis, déspotas e coisa pastosa e oleosa que se chamava café mas dava um estalo
regimes; formaram-se ideias novas que iluminaram toda a Europa; mental. Estes cafés são hoje locais turísticos. Discutir? Isso faz-se no
filósofos, cientistas e escritores debateram e trocaram argumentos, Twitter. Os cafés tendem cada vez mais a ser um porto seguro para
uniram-se em “correntes de pensamento”, juntaram-se em utopias se interagir com o laptop ou o smartphone. Os cafés dos ideais até à
políticas tidas como perigosas para o statu quo, insultaram-se e morte, das grandes conspirações, desapareceram. Hoje, ninguém
esmurraram-se em cafés à volta do café, bebida que era tida como pode descartar que um daqueles seres concentrados a olhar para
intelectualmente estimulante, que libertava as ideias e que, ao um ecrã não seja um guerreiro do teclado a salvar o mundo. Nunca
contrário do álcool, não entorpecia os sentidos. Aliás, “curava” o saberemos. Está ali pelo wi-fi de borla (e pelo café orgânico, claro)
ressacas. O café (bebida e local) sempre esteve ligado ao intelecto e porque, consta, gosta de algum barulho para se concentrar (há
desafiador, à ciência, à escrita disruptiva do momento — os cafés com estudos). Afinal, ainda necessita de alguma humanidade para estar
café sempre foram o espaço da celebração da política, muitas vezes isolado. O local café, o antigo centro do mundo das ideias, já é só um
na clandestinidade. Foi nos cafés e com café que se (des)concertou a ligeiro barulho de fundo abafado pelos fones. b
Tomada da Bastilha ou onde Newton dissecou um golfinho para educar lpnunesxxx@gmail.com
a plebe. Por toda a Europa, em mesas do canto, envoltas em tabaco e
luz gordurosa, movimentos políticos e culturais ganharam forma — o
café iluminava a mente. Era em dois cafés, a Brasileira e o Martinho
da Arcada (com paragem numa taberna ou outra em “flagrante
delitro”), que Pessoa se reunia com os seus heterónimos. Não há
cidade deste país que não tenha (ou tenha tido) o seu café literário,
onde os seus intelectuais se terão juntado e formado uma corrente
cultural, congeminando uma resistência a ideias políticas carcomidas
pelo caruncho, de Faro a Coimbra, ao Porto ou a Braga. Mas o café, ou
a coffee house modernaça, mudou. E hoje é um local assético, banhado
/ LUÍS
com uma luz quase de hospital — onde são disponibilizadas dezenas PEDRO
de possibilidades de café (quando de inspiração nórdica) — e liderado
por um especialista (o barista), que tem um saber (a cultura do café —
NUNES
e tudo o que isso representa). Nas mesas, em vez de gente a conversar,
ou de uma ou outra pessoa só a “passar tempo” (conceito extinto),
há os chamados “ocupas de laptop”, com os seus portáteis ligados ao
mundo e aquele arzinho e nariz empinados de nómadas digitais. Bem,
o “vamos tomar um café?” ganhou múltiplas camadas semióticas, é

E 16
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ESTIMULANTES, COM NOVAS POSSIBILIDADES E PROMESSAS: TORNAR O TRABALHO MAIS
FÁCIL OU MAIS PRODUTIVO, DAR-LHE UMA VANTAGEM, FICANDO TUDO O RESTO IGUAL
TEXTO JOHN HERRMAN JORNALISTA DA “NEW YORK MAGAZINE”

C
este vídeo é um exemplo de como uma grande numa carta de três parágrafos? Está contente por-
empresa pensa que o software alimentado por um que o tipo de e-mails em massa, semipersonaliza-
grande modelo de linguagem, ou LLM (na sua sigla dos, que costuma receber de grandes marcas com
inglesa, Large Language Model), mudará os seus departamentos de marketing (ou de spammers e
negócios e produtos existentes, alguns dos quais phishers) estão agora ao alcance de todas as em-
já utilizamos — esses recursos serão onde a nova presas com uma conta Google? Está ansioso por
classe de ferramentas de IA enfrentará um teste à questionar se aquela carta de condolências ado-
sua utilidade real. rável que um amigo de longa data lhe enviou foi
A Google, na sua ânsia de mostrar uma gama inteiramente gerada por software ou se ele apenas
dispersa de novos recursos, também fez, sem premiu o botão “mais sincero” antes de a enviar?
querer, algo engraçado. Depois de automatizar a Por outras palavras, esses recursos resolvem
criação de uma campanha de marketing sem a um conjunto de problemas correndo o risco de
participação humana, o anfitrião termina o ví- criar outros. Por exemplo, em empresas já sobre-
deo enviando à sua equipa uma nota de agrade- carregadas por comunicação e processos inefi-
cimento gerada por computador. Obrigado pelo cientes, é fácil ver como reduzir o custo na criação
quê? A Google faz, agora, os decks e escreve todos de conteúdos pode produzir consequências estra-
om o lançamento de ferramentas como o DALL- esses e-mails de clientes. Tenho a certeza de que nhas e externalidades. O João consegue agora en-
-E e o ChatGPT, a Google — outrora o presumível também será capaz de escrever uma boa carta de viar quatro vezes mais e-mails do que no passado.
líder da indústria em investigação no campo da despedimento. Será que tem quatro vezes mais a dizer?
inteligência artificial (IA) — vê-se, de repente, a Mais interessante é a maneira como essas ca- No entanto, não se preocupe. A Google tam-
tentar acertar o passo. A ascensão do OpenAI foi, racterísticas parecem estar em conflito entre si. bém tem ferramentas de IA para lidar com isso:
supostamente, encarada como um “alerta verme- Por um lado, existem várias maneiras de gerar tex- ferramentas para resumir e-mails e textos longos,
lho” na empresa que estava há anos a trabalhar, tos de forma mais fácil e rápida: ferramentas para ferramentas para resumir conteúdos e ferramentas
silenciosamente e sem sucesso, em ferramentas compor e-mails completos a partir de resumos, para consumir e filtrar as enormes quantidades de
semelhantes. Agora, rapidamente, a Google está a ou seja, transformar uma pequena quantidade de material gerado no mundo, por pessoas ou talvez
readaptar a sua linha de produtos com IA. texto num monte de texto; ferramentas para su- por máquinas, e sintetizá-lo em algo útil, prático
No mês passado apresentou a sua abordagem a gerir respostas completas a e-mails em vez das já ou apenas legível.
uma versão chatty do seu motor de busca. Há dias populares respostas automáticas que os utilizado- No contexto do Gmail e de documentos cola-
partilhou mais detalhes sobre o Gmail e o Google res do Gmail usam há anos; ferramentas para ge- borativos, vemos sugestões de processos de auto-
Docs assistidos por IA. No Gmail existem ferra- rar e-mails personalizados para uma lista inteira mação em guerra uns com os outros, alimentan-
mentas que irão tentar compor ou editar e-mails de destinatários; e ferramentas para gerar textos do problemas que devem ser resolvidos com mais
inteiros, bem como ferramentas para analisar e enormes. Para pessoas cujo trabalho envolve ge- automação, à medida que a Google cria a procura
resumir longos segmentos de texto. No Docs exis- rar muito conteúdo, ou talvez para quem a criação pelos seus próprios produtos que podem solucio-
tem ferramentas para gerar texto a partir de ordens de muito conteúdo é um desempenho de trabalho nar esses problemas. É uma corrida às armas em
simples ou outros conteúdos. Uma longa discussão convincente, tal tem evidentes utilizações possí- todas as caixas de entrada! É a hiperinflação tex-
por e-mail é transformada em “resumo” e, em se- veis — se, claro, for bom naquilo que faz. tual em todos os escritórios! São centenas de reu-
guida, num slide deck, ilustrada com imagens ge- Por outro lado, para aqueles que podem inte- niões por dia agendadas, assistidas e resumidas
radas por computador. ragir com pessoas que têm esses empregos — ou por bots! Antes de a Google produzir esta visão,
Vale a pena assistir ao vídeo promocional da seja, aqueles que podem receber este novo con- Sam Altman, da OpenAI, brincou sobre como os
Google por dois motivos. Por oposição a ferramen- teúdo abundante —, esses recursos têm um signi- utilizadores do ChatGPT o descobriram sozinhos.
tas como o ChatGPT, que são bastante capazes mas ficado um pouco diferente. Mal pode esperar que À medida que esses recursos são lançados, a
funcionam principalmente como demonstrações os seus colegas de trabalho se tornem muito mais Google e os clientes da Google irão começar a des-
técnicas de uso geral e ferramentas de marketing, verbosos, transformando cada “parece-me bem” cobrir como as pessoas realmente os usam e quais

E 18
DESAFIO “A Paixão
da Criação” (1880),
de Leonid Pasternak

funcionam. O resultado mais provável é que tais pela automação correspondente do lado da Google
ferramentas irão revelar e exagerar a dinâmica que
existe nas empresas, reduzindo o valor institucio-
O João consegue na forma de filtros e ferramentas de classificação
da caixa de entrada. (Quanto ao significado dessa
nal de certas tarefas (fazer uma apresentação a que
ninguém vai prestar atenção) e enfatizando o valor
agora enviar longa batalha ou dança tecnológica para a utilida-
de e função do e-mail e para a experiência de nos
de outras (pensar em assuntos sobre os quais vale quatro vezes comunicarmos uns com os outros através do com-

mais e-mails
a pena fazer uma apresentação). Não há necessi- putador, deixo ao critério do leitor. Não é uma his-
dade — ou, antes, não há tempo — para apostar tória simples! E, pelos vistos, ainda não acabou.)
tudo. A Google, seguindo o exemplo do OpenAI, Estamos a atravessar um período de entusias-
está a lançar tudo isto no imediato. Vamos ver o
que acontece.
do que no mo em torno da IA, à medida que os utilizadores
encontram tecnologias genuinamente estimu-
Este não é um território inteiramente novo. A
comunicação nas redes sociais já é substancial-
passado. lantes, cada uma delas com novas possibilidades
e promessas: tornar o trabalho mais fácil ou mais
mente mediada pela IA, e o seu exemplo (plata-
formas que abordam o seu próprio conteúdo com
Será que tem produtivo, dar-lhe uma vantagem, ficando tudo
o resto igual. Os nossos encontros com máquinas
feeds algorítmicos alimentados por IA) contém al-
gumas sugestões sobre como isto pode acontecer
quatro vezes antropomórficas enfatizam a experiência privada e
um sentimento de propriedade enquanto conver-
noutros locais ou, pelo menos, como poderá ser.
Muitos serviços de e-mail já tentam priorizar men-
mais a dizer? sam connosco e respondem a comandos diretos.
Estas são, na sua maioria, ferramentas em modo
sagens consideradas urgentes ou relevantes. Não de demonstração, pré-implantação e pré-mone-
é difícil imaginar que uma caixa de entrada orde- tização, muitas vezes oferecidas gratuitamente,
nada possa ser substituída por um resumo escrito com prejuízo, de forma dissimulada, destinadas a
ou prever como tal mudança pode afetar a forma inspirar admiração e encantamento. Isso é ótimo,
como as pessoas escrevem os seus e-mails, para mas é, em última análise, marketing enganador.
serem, primeiramente, consumidos pela máqui- Tudo o resto não fica igual. Todos os outros vão
na que está entre os utilizadores e o seu público. também estar a usar essas ferramentas.
Durante anos, tensões semelhantes definiram Aqui, a Google fez-nos um favor, dando-nos
os produtos principais da Google. Nas últimas duas um vislumbre do que pode vir quando o entusias-
décadas, os sites têm acomodado as necessidades mo morrer: uma atualização concertada ou pelo
dos algoritmos de indexação e classificação au- menos uma mudança para a maquinaria produtiva
tomatizados da Google. Alguns seguindo as suas com a qual milhões de pessoas interagem todos os
diretrizes no processo para produzir o melhor e dias. Uma mudança de cima para baixo no modo
mais relevante conteúdo possível e outros simples- como trabalhamos, executada num pacote de sof-
mente inundando a internet com conteúdos seme- tware de cada vez. Um e-mail de agradecimento
lhantes para conseguir algum tráfego de pesquisa. de um gestor que já não precisa de si, escrito por
Um grande número — incluindo basicamente to- uma máquina. b
dos os principais editores e sites de comércio ele-
trónico — trabalha algures entre a letra e o espí- e@expresso.impresa.pt
rito da lei da Google. Durante anos, os utilizado-
res do Gmail assistiram a uma dinâmica parecida Tradução Joana Henriques
nas suas caixas de entrada, à medida que spam
e marketing consideravelmente automatizado, e Publicado pela primeira vez na “New York Magazine”
cada vez mais convincente, é bloqueado ou gerido 2022 Vox Media, LLC

E 19
Uma família
americana
em Lisboa
Há cada vez mais americanos a comprar casa
em Portugal. Atraídos por preços muito mais
baixos do que nas grandes cidades dos EUA,
encontram no Sul da Europa a qualidade de
vida que julgavam ter perdido. Mas este novo
sonho americano não agrada a muitos europeus
TEXTO RONDA KAYSEN “THE NEW YORK TIMES”

MUDANÇA Ben e Megan Mitas,


com os filhos, fotografados num jardim
em Campo de Ourique, em Lisboa,
no dia 10 de março. A família trocou
a Florida por Portugal em 2019

E 20
E 21
KERRY MURRAY
B
carro por uma oportunidade de viver numa cidade almoços são demorados e conseguem safar-se com
europeia vibrante a preços baratos. aplicativos de tradução e uma mão cheia de frases.
O que é barato para estes americanos é brutal- Dizem que, mesmo que tentem encetar uma con-
mente caro para os europeus do Sul, cujos salários versa, os locais rapidamente mudam para o inglês,
médios são substancialmente inferiores aos deles. uma vez que a língua está muito presente nas ci-
Os moradores competem com estrangeiros ricos por dades europeias. Mas os seus filhos chegam a casa
uma casa, em mercados já desvirtuados por ‘Airbnbs’ vindos de escolas bilingues, dando a pais como Ben
e investimento imobiliário corporativo. O resultado e Megan Mitas acesso a pequenos tradutores que os
é uma geração que não se consegue lançar por conta ajudam a navegar pelos momentos complicados em
própria, com mais de 90% dos europeus do Sul com que o Google Translate não é suficiente.
menos de 35 anos a viver em casa dos pais, taxas que “A sua principal preocupação é a migração
eclipsam os seus homólogos americanos. Aqueles do estilo de vida. Querem realmente viver aqui
que têm apartamentos enfrentam despejos e aumen- e ter um estilo de vida mais cosmopolita”, con-
tos imprevisíveis das rendas em cidades com leis de ta Luís Mendes, geógrafo urbano da Universidade
proteção do arrendamento fracas, como Lisboa, Bar- de Lisboa.
celona e Atenas. “É desolador”, diz Alkis Kafetzis, de
40 anos, coordenador de projeto do Instituto Eteron BATIZADO NO MAR EGEU
para a Investigação e Alterações Sociais, em Atenas, “Aqui o modo de vida é muito mais livre e agradá-
que estuda as desigualdades habitacionais. vel”, diz Christian, de 17 anos, enquanto a sua irmã
O aumento do investimento estrangeiro não Evangelia, de 8 anos, passa por ele de patins em li-
acontece por acaso. Portugal, Espanha e Grécia nha a caminho da sala de jantar para dar uma volta
en Mitas bebe um copo de vinho verde enquanto têm cortejado estrangeiros e empresas abastados, à mesa. “Todos são calmos, não estão sempre ‘faz
observa a filha a brincar num baloiço, numa tarde na esperança de atrair talento, reforçar as suas eco- isso, faz isto, faz aquilo’”. A família Mallios vem de
de janeiro. Comprou o vinho num quiosque, um nomias e estimular o desenvolvimento. Portugal e Colts Neck, Nova Jersey, uma comunidade rural no
dos omnipresentes quiosques que existem nos par- Espanha introduziram recentemente vistos para centro de Nova Jersey, com propriedades extensas
ques, um luxo de viver em Lisboa. Mitas e a mulher, nómadas digitais que permitem que trabalhadores e quintas de cavalos, incluindo uma que pertence
Megan, mudaram-se da Florida para Portugal em remotos vivam no país por um longo período de a Bruce Springsteen.
2019, alugando um apartamento de quatro quartos tempo, imitando um visto semelhante que existe na Chegaram à Grécia em julho de 2020, depois de
por €2500 (ou cerca de 2700 dólares) por mês em Grécia. Em Espanha, as vendas de casas a cidadãos Melissa e Demetrios Mallios terem comprado uma
Campo de Ourique, um bairro tranquilo com pe- americanos aumentaram 88% do primeiro semes- casa de €350 mil em Evia, uma ilha perto de Ate-
quenas lojas e restaurantes. No ano passado, com- tre de 2019 para o primeiro semestre de 2022. De nas. O negócio qualificou-os para um visto gold, um
praram uma casa do século XIX na Lapa, um bairro acordo com dados do Governo espanhol, os ame- programa de residência disponível em vários países
histórico empoleirado sobre o rio, com embaixadas ricanos foram dos que mais gastaram por metro europeus que dá aos compradores autorização de
e palácios do século XVIII e mansões com fachadas quadrado, sendo apenas ultrapassados pelos dina- residência a troco de um investimento financeiro
de azulejos, que vão renovar para ser a sua “casa marqueses nos valores pagos no primeiro semestre avultado em imóveis.
para toda a vida”, diz Megan Mitas, de 31 anos. de 2022. Nesse ano, cerca de 10 mil cidadãos ame- No ano letivo de 2021 a família viveu numa casa
Ben Mitas, de 40 anos, corretor de hipotecas, ricanos viviam em Portugal, um aumento impres- alugada em Atenas, enquanto os seus filhos fre-
viaja frequentemente para a Florida por causa do sionante de 239% em relação a 2017, segundo dados quentavam uma escola internacional. Em 2022,
trabalho, mas a sua vida é em Lisboa, onde os seus fornecidos pelo Governo português. Melissa e Demetrios Mallios colocaram a sua casa
dois filhos pequenos andam no pré-escolar e no Os americanos que aqui criam raízes abraçam em Nova Jersey à venda e compraram um aparta-
jardim de infância. A família sente-se bem aqui. um estilo de vida onde o clima é agradável, os mento de €1,45 milhões num condomínio em Ki-
Na capital portuguesa, os falantes de inglês estão, fissia, um subúrbio ao norte de Atenas, com ruas
aparentemente, em toda a parte. No dia em que Ben arborizadas e moradias multimilionárias escon-
Mitas levou a sua filha ao parque, duas mulheres didas atrás de altos muros de pedra. Em Kifissia, a
sentaram-se num banco próximo, com carrinhos quase €427 por metro quadrado, as casas de luxo
de bebé, enquanto conversavam em inglês.
Na tarde anterior, Rita Silva, investigadora da O que é barato vendem-se a cerca de 44% mais do que casas com-
paráveis no resto de Atenas, de acordo com a RE/
Habita!, uma organização pelos direitos à habi-
tação, inclinou-se, com os cotovelos nos joelhos, para estes MAX Europe.
Nas noites de domingo, as famílias passeiam
num sofá vermelho esfarrapado rodeado de estan-
tes de livros e banners pintados à mão na sede do americanos pelo centro de Kifissia, cheio de restaurantes, cafés
e lojas de luxo — Bottega Veneta, Max Mara e Wol-
grupo no moderno bairro do Intendente. Estava a
preparar-se para se reunir com moradores de Lis- é brutalmente ford, uma marca de lingerie austríaca. Os filhos de
Melissa e Demetrios frequentam agora uma esco-
boa que enfrentam despejos. Até a Habita! sente o
cerco a apertar: o senhorio da associação não irá caro para os la virtual privada, a Pearson Online Academy, que
lhes permite viajar entre as suas casas de Atenas e
renovar o contrato de aluguer, que expira no pró-
ximo ano. Lisboa “deixou de ser acessível para as europeus do Sul, Evia, mas não dá muitas oportunidades a Evangelia
para aprender grego e fazer amigos locais. “Sinto
pessoas que vivem e trabalham neste país”, diz a
investigadora. cujos salários falta de Nova Jersey”, confessa.
O seu irmão, no entanto, aprendeu a língua
Os norte-americanos, incapazes de pagar o tipo
de casas que querem no tipo de cidades onde que- médios são com os amigos da equipa de basquete. “É só ir di-
zendo “malakas” a cada frase e parece que somos
rem viver, como São Francisco e Nova Iorque, es- bastante fluentes”, diz, referindo-se a uma asneira
tão a mudar-se, em grande número, para o Sul da
Europa. Atraídos para a região pelo clima ameno e
substancialmente comum. E o seu pai, Demetrios Mallios, de 52 anos,
um investidor de capital de risco de descendência
pelo baixo custo de vida, ainda mais acessível por
causa de um dólar forte, muitos americanos apro-
inferiores grega, fala a língua.
Em Atenas, os preços das casas subiram 13% no
veitam para trocar um estilo de vida dependente do aos deles terceiro trimestre de 2022, em comparação com o

E 22
DIFICULDADE Uma
porta coberta de
cartazes de protesto
contra o aumento do
custo das rendas e das
casas em Lisboa.
Fotografia na zona do
Intendente

KERRY MURRAY

E 23
COMPLEXO Rita Silva, da
Habita!, uma organização
portuguesa que ajuda
inquilinos alvo de ações de
período homólogo, de acordo com o Banco da Gré- despejo, fotografada em
cia. Os norte-americanos estão cada vez mais inte- Lisboa, uma das cidades
ressados no programa de vistos gold grego, com os portuguesas onde mais se
pedidos a aumentarem uns impressionantes 740% sente a crise na habitação;
entre 2020 e 2021, de acordo com a Astons, uma Hugo Janes, fotografado
empresa de imigração de investimento. na zona da Expo, defende
Georg Petras, presidente-executivo da Engel & que os benefícios fiscais
Völkers na Grécia, diz que os americanos inunda- concedidos a estrangeiros
são uma “catástrofe” para
ram o mercado grego em 2022, representando um
os portugueses; Bisco
quarto das transações externas da sua empresa. Se a
Smith, um artista
tendência continuar, irão tornar-se o terceiro maior americano, no seu estúdio
grupo de compradores estrangeiros com que a sua em Lisboa. Smith está
KERRY MURRAY

empresa trabalha. A tensão está pintada pelas ruas preocupado com a


de Atenas, onde os graffiti escritos nas laterais dos imagem dos americanos
edifícios proclamam “Atenas não está à venda” e no país em que escolheu
“Não ao Airbnb”. viver
De acordo com o Eurostat, em 2021 os gregos ga-
nharam um salário médio bem abaixo dos €20 mil
ano e foram atingidos pela turbulência económica, ofereceu-lhe um trabalho em Barcelona por um pagar €500 mil em dinheiro por um imóvel pode
pela austeridade e pela inflação. Quase metade dos período de seis meses, que se tornou permanente. qualificar-se para um visto gold. De janeiro de
arrendatários gregos luta para conseguir pagar as Quando começaram a ter filhos, não fazia sentido 2022 a janeiro de 2023, o número de pais norte-
rendas, de acordo com um inquérito de 2022 feito voltarem para os Estados Unidos. A Califórnia era -americanos que procurou escolas na Internatio-
pelo Instituto Eteron. “Conseguir respirar e sentir muito cara e Chicago, onde Justyna Ward, de 36 nal Schools Database, uma página de internet,
um pouco de segurança no futuro é a exceção, não a anos, crescera, era uma cidade muito fria. Depois duplicou, estando a Espanha no topo da lista de
regra”, afirma Kafetzis, do Instituto Eteron. “Esta ge- de viver na Europa, não conseguiam imaginar ter destinos.
ração está sempre preocupada com o mês seguinte.” de abandonar o estilo de vida mediterrânico e a “Se conseguir ganhar €100 mil por ano, vai vi-
Aos 30 anos, Spiros Stamou é dono do táxi que riqueza cultural que passaram a valorizar em Es- ver muito bem aqui”, afirma Raf Jacobs, fundador
conduz, mas ainda vive com os pais, assim como os panha. “Para quê voltar?”, pergunta Justyna en- da Inspire Property Experts, uma consultora imo-
seus amigos. Enquanto conduz pelo centro de Ate- quanto se senta no sofá, a dar de mamar ao filho biliária que ajuda estrangeiros a estabelecer-se em
nas, lamenta a sua sorte. “Algumas pessoas tenta- recém-nascido, aproveitando uma vista deslum- Espanha. Em 2021, o salário médio espanhol foi in-
ram comprar casa própria, mas acabaram por vol- brante para o mar. ferior a €30 mil por ano. Em Barcelona, as rendas
tar para casa”, conta, frustrado por ser impossível Os estrangeiros estão a açambarcar as ca- têm vindo a aumentar durante a última década,
para alguém que ganha €600 por mês pagar um sas ao longo da costa espanhola, da Costa Bra- atingindo um máximo histórico de €1077 por mês
apartamento que custa €400 por mês. “O custo de va, no Norte, à Andaluzia, no Sul. O novo visto no último trimestre de 2022.
vida, tudo, está a ficar mais elevado”, diz. para nómadas digitais em Espanha permite que “A sociedade com casa própria está em crise
Mas para Melissa Mallios, de 38 anos, a Gré- trabalhadores remotos e freelancers vivam no em Espanha”, diz Carme Arcarazo, coordenadora
cia tem sido uma transformação. “Quando voltei país durante todo o ano, desde que obtenham a de ativismo do Sindicat de Llogaters, um sindica-
aos Estados Unidos, senti-me deslocada”, conta. maior parte do seu rendimento fora de Espanha e to de inquilinos de Barcelona. Os recém-chegados
Quando amigos e familiares lhe perguntam porque preencham outros requisitos. Se um estrangeiro nómadas não têm culpa da crise, comenta Jaime
decidiu deixar o seu país de origem, ela respon- Palomera, investigador de habitação do Instituto
de: “Mudei-me para ter uma vida bonita.” No ve- de Pesquisa Urbana de Barcelona. Empresas de in-
rão passado, converteu-se à Igreja Ortodoxa Grega vestimento como a Goldman Sachs e a Blackstone
numa cerimónia na sua casa da ilha. Vestindo um chegaram e compraram milhares de imóveis em
vestido branco, com o seu cabelo louro entrançado
no cimo da cabeça, envolto numa tiara de folha de Entre 2020 dificuldades na sequência da crise financeira glo-
bal, transformando casas em ativos titularizados,
ouro, foi batizada no mar Egeu.
e 2021, afirma. “Isto é muito maior do que qualquer nor-
te-americano a título individual que compra aqui
POR PIADA
O sol brilhava no Mediterrâneo enquanto Ryan o número de uma casa”, diz. “Independentemente da sua nacio-
nalidade, vai comprar aquela casa para viver ou vai
Ward descansava na varanda do quarto da sua casa,
aninhada na floresta acima da aldeia costeira Tossa norte-americanos comprá-la como um ativo para aumentar a renda
o mais possível?”
de Mar, em Espanha. “Na Califórnia, de onde ve-
nho, nunca poderia pagar um lugar como este”, que se mudou “A VIDA NÃO É JUSTA”
conta Ward, de 37 anos, que cresceu em Orange
County, Califórnia, onde o preço médio de venda para Portugal Em Lisboa, a renda média de um T2, a €1700 por
mês em fevereiro, subiu 39% em relação ao perío-
ronda o milhão de dólares.
Ryan Ward e a sua mulher, Justyna, compra- duplicou, numa do homólogo, e o preço médio de venda de um T2
aumentou 10%, para os €457.730, segundo a Casa-
ram a casa multifamiliar com piscina na Costa Bra-
va por €515 mil em fevereiro de 2021. O casal vive altura em que fari, uma empresa de dados imobiliários.
Entre 2020 e 2021, o número de norte-ameri-
com um bebé e um filho de 2 anos e meio no apar-
tamento de três quartos no andar de cima de um a migração canos que se mudou para Portugal duplicou, numa
altura em que a migração da Europa e da América
duplex. Alugam o apartamento do andar de baixo, do Sul caiu. As escolas privadas têm listas de espe-
com dois quartos, no Airbnb, e a casa completa en-
quanto viajam durante o verão, ganhando dinheiro
da Europa ra e estão a abrir novas escolas. Em 2019, o número
de americanos na Escola Internacional Americana
suficiente para pagar a hipoteca.
O casal chegou a Espanha em 2016 por pia-
e da América Carlucci, em Lisboa, aumentou 60%, diz Nate Cha-
pman, diretor da escola. Agora, os norte-america-
da — a empresa de marketing onde Ryan trabalha do Sul caiu nos representam um quarto dos alunos, acima dos

E 24
KERRY MURRAY

KERRY MURRAY
16% de há uma década. “Agora é um pouco como estar. Guertin, diretor de operações de uma startup estima que metade do seu rendimento seria para
uma corrida ao ouro”, afirma. de tecnologia inglesa, pressionou Hannah Reusser pagar a renda. Assim, está a pensar mudar-se para
Para os portugueses, com um salário médio para ter um prazo. Junho era realista? A arquite- o Brasil ou para o interior de Itália, onde o custo de
inferior a €20 mil por ano em 2021, a chegada de ta achou o prazo demasiado ambicioso, tendo em vida pode ser menor. Portugal “é barato para vo-
americanos e o consequente aumento dos preços conta os atrasos devido à pandemia e à escassez de cês, mas não para nós”, diz a um jornalista. “E isso
são insustentáveis. Rita Silva, da Habita!, diz que materiais. Uma hora depois, Amelia Guertin corria incomoda-me.”
as leis que protegiam o arrendamento, eliminadas pelas ruas de paralelepípedos, a caminho da sua Na noite anterior, cerca de uma dúzia de estran-
na sequência da crise financeira global, deixaram aula de língua portuguesa a poucos quarteirões de geiros e portugueses locais estiveram reunidos em
os inquilinos vulneráveis a despejos e a aumentos distância, preocupada com os prazos. “Em Portu- torno de uma grande mesa de madeira num restau-
insustentáveis de renda. Dentro da sede do grupo, gal, tem que se ter muita paciência”, diz. “Parece rante para o OneThousandClub, uma organização
as cadeiras dobráveis estão dispostas em círcu- estar tudo desorganizado, mas tenho confiança de que incentiva estrangeiros e portugueses a convi-
lo sob uma faixa amarela, com a frase “Casas são que vai ser feito.” ver. Mas a sala ficou em silêncio quando um dos
para morar”. No exterior, andaimes e guindastes No Da Noi, um pequeno restaurante no centro convidados portugueses, Hugo Janes, de 44 anos,
são tão comuns quanto o som das rodas das malas de Lisboa, os comensais apertam-se nas mesas e os perguntou quantos ficariam se o país não fosse um
dos turistas que se aglomeram ao longo da calçada que vieram apenas beber saem para a rua, falando paraíso fiscal para estrangeiros.
portuguesa, os icónicos paralelepípedos quadrados em inglês, alemão e francês. Misturando um Aperol O ambiente ficou defensivo à medida que os
da cidade. “Temos uma explosão de reinvestimento spritz, atrás do bar está Simão Martins, de 22 anos, convidados, uma mistura de franceses, belgas e
urbano. É tudo para o turismo, é tudo para o luxo”, estudante de economia da Universidade de Lis- americanos, defendiam o seu estatuto fiscal. No de-
diz a investigadora. boa. Trabalha a tempo inteiro, mas vive em casa da bate, os americanos argumentaram que pagavam
Em resposta à crescente crise habitacional, Por- mãe, como os seus amigos. “Não quero viver com impostos nos Estados Unidos. Estas políticas “são
tugal acabou com o seu programa de vistos gold em ela para sempre”, diz. Se tivesse a sua própria casa, uma catástrofe para os portugueses”, diz Janes,
fevereiro, parte de um vasto pacote de mudanças. gestor de produtos da Vodafone, a um jornalista,
No ano passado, os americanos compraram mais expressando um crescente ressentimento entre os
vistos gold portugueses do que qualquer outra na- seus compatriotas. “A vida não é justa, mas precisa
cionalidade no mundo, destronando os chineses. haver alguma justiça.”
Foi uma reversão dramática para os americanos
que, apenas quatro anos antes, não estavam entre Amelia Bisco Smith, de 42 anos, um artista de graffi-
ti americano que se mudou de Nova Iorque para
os cinco principais compradores dos vistos gold.
Outros programas de visto para estrangeiros com Guertin Lisboa com a sua mulher, Jasmine, de 39 anos, e o
seu filho, há quase um ano, tem sentimentos mis-
posses permanecem intactos.
Amelia Guertin tem entrado e saído do país du- tem entrado tos sobre a sua recém-descoberta cidade. “Está a
acontecer uma gentrificação geral de todo o país. E
rante o último ano, vivendo com um visto de turista
enquanto se candidata a um visto de longo prazo. e saído do país não me parece bem”, diz, sentado no seu estúdio
de 2 mil metros quadrados perto do Beato Creati-
Chegou a Portugal depois de ter vivido no Havai,
São Francisco e Nova Iorque, cidades que pareciam durante ve Hub, um centro de inovação. “Não quero ser o
americano que está aqui para se aproveitar ou des-
“descontroladamente inacessíveis”, conta. Imedia-
tamente, soube que queria estabelecer-se num lu- o último ano. locar as pessoas.”
No entanto, Lisboa tem sido uma cidade aco-
gar cosmopolita, mas também descontraído.
No início deste ano, debruçou-se sobre o seu Chegou a lhedora depois de um período difícil em Nova Ior-
que, quando ele e a mulher sobreviveram a dois
portátil com a arquiteta Hannah Reusser, no Rove,
um bar de Lisboa com sofás de veludo, canalização Portugal depois acidentes de carro graves. Desde que chegou a Lis-
boa, juntou-se a um grupo de pais chamado Ex-
exposta e uma iluminação sombria. Amelia Guer-
tin, de 31 anos, já tinha começado a demolição de de ter vivido pats Dudes and Dads, e o seu filho está a aprender
português na infantil. “Lisboa significa um porto
uma pequena casa que comprou em outubro pas- seguro”, conta. “A minha família precisava de um
sado por €320 mil na Aroeira, uma zona costeira a
sul de Lisboa, onde pode surfar.
no Havai, porto seguro e encontrámo-lo aqui.” b

A arquiteta discutia como tornar o espaço com


três quartos e duas casas de banho mais funcional,
São Francisco Tradução de Joana Henriques

sugerindo que reorganizasse a cozinha e a sala de e Nova Iorque Este artigo foi originalmente publicado no “New York Times”

E 25
Diário
num país
sem
tomates

E 26
Os supermercados
britânicos estão
com falta de legumes
frescos desde o final
de fevereiro. A escassez
vai manter-se até maio.
As causas serão múltiplas
(‘Brexit’, mau tempo,
custos energéticos),
mas o que não falta
mesmo são os nabos

TEXTO
PAULO ANUNCIAÇÃO
EM LONDRES

FOTOGRAFIAS
TIAGO MIRANDA

E 27
N
e queijo. O racionamento começou em janeiro de do Mediterrâneo. Quando era jovem, diz-me ele,
1940, com um sistema de pontos e de senhas, mas Stephen costumava organizar excursões regulares
prolongou-se até 1954. “A minha mãe dava-me os nos ferryboats que atravessam o Canal da Mancha.
vouchers do racionamento e eu ia buscar a mantei- Ele e os amigos enchiam a mala do carro com o ta-
ga e o queijo. Era sempre uma aventura”, diz-me baco e a cerveja que os franceses vendiam a metade
ela. Não tenho a certeza de que o racionamento em do preço britânico. Eram os chamados booze cruises
2023 provoque o mesmo nível de emoções. (ou cruzeiros da pinga). “Acho que vou voltar aos
cruzeiros da Mancha”, diz-me ele. “Vamos ao hi-

*
permercado Carrefour em Calais e em vez de álcool
enchemos o carro de tomates, pepinos e pimentos”.
Na última semana de fevereiro, fotografias posta- Chegou a hora dos salad cruises.
das na rede social Twitter continuam a mostrar a
desolação nas secções de legumes dos supermer-
cados britânicos. Mick Hucknall, estrela pop da
banda Simply Red, pede aos seus seguidores eu-
ropeus para postarem fotografias tiradas nos su-
permercados do continente. No espaço de poucas
horas, o Twitter enche-se de relatos da abundân-
cia nos mercados europeus, de Olhão até Tallinn. “Pensando bem, talvez tivesse sido melhor não des-
Lindsey Hilsum, a repórter de guerra do Channel 4 perdiçar aquela salada com Liz Truss”, escreve a ba-
News, partilha uma fotografia tirada num mercado ronesa Camilla Cavendish nas páginas do “Financial
o dia 18 de fevereiro, um sábado, as mensagens de de Kherson. Bancas cheias de pimentos amarelos, Times”. A desastrada Truss foi um dos três primei-
alerta começaram a circular no grupo WhatsApp dezenas de tomates viçosos, pepinos e outros legu- ros-ministros que os britânicos tiveram ao longo
da minha rua. “Já foram ao supermercado hoje? mes. “Não há escassez de tomates por aqui”, escre- de 2022. Durou 50 dias no cargo. Na parte final do
Parece que voltámos aos dias da pandemia com (a veu ela. “Mas também é verdade que eu estou em mandato, em outubro passado — numa altura em
falta do) papel higiénico. Saladas, nada. Tomates, Kherson, uma cidade ucraniana na linha da frente que parecia óbvio que a demissão teria de aconte-
nada. Verduras, nada.” Horas depois, as redes so- que é bombardeada cada dia pelos russos. Não es- cer, mais cedo ou mais tarde —, o semanário “The
ciais começam a encher-se com relatos semelhan- tou num supermercado britânico.” Economist” escreveu que a primeira-ministra tinha,
tes e fotografias tiradas um pouco por todo o país: então, “um prazo de validade inferior ao de uma al-

*
mostram as caixas vazias e as bancas desertas nas face”. O tabloide “Daily Star” aproveitou a deixa. No
secções de legumes dos mercados britânicos. O su- dia 14 de outubro, colocou sobre uma mesa uma al-
permercado Waitrose do meu bairro pôs letreiros O assunto é debatido no Parlamento. Thérèse Anne face fresquinha ao lado da fotografia oficial, emol-
pedindo desculpa pela escassez: “Em virtude do Coffey, ministra do Ambiente, da Alimentação e durada, de Liz Truss. E lançou a pergunta: quem vai
mau tempo no sul de Espanha e norte de África, dos Assuntos Rurais tenta explicar a crise. “Não durar mais — a alface ou a primeira-ministra? A
estes produtos estão temporariamente esgotados.” podemos controlar o clima em Espanha”, justificou questão divertiu os britânicos, sempre sensíveis a
ela. “Talvez seja a altura de passarmos a comer mais uma boa aposta. O decaimento da alface pôde ser
vegetais produzidos localmente, frescos e da época. acompanhado em direto através do live stream or-
Talvez nabos em vez de tomates.” Uma tirada pouco ganizado pelo jornal. No dia 20 Truss apresentou fi-
feliz. Tal como explicou de imediato a presidente da nalmente a demissão. A alface ainda não tinha má
NFU (Associação Nacional de Agricultores), os na- cara. Não tinha murchado. O “Daily Star” declarou
bos já estavam há muito fora de época. A senhora a alface como “vitoriosa”. Mas esta verdura infeliz,
Coffey, de 51 anos, está habituada à chacota. De- que se tornou um símbolo do pior (e mais breve) Go-
O problema é geral. As principais cadeias de super- putada desde 2010, tem exercido cargos governa- verno da história do país, “poderia muito bem ter
mercados começam a racionar as doses limitadas mentais há mais de três anos, incluindo o posto de alimentado um dos clientes que agora olham para
de legumes e verduras que conseguem encontrar. vice-primeira-ministra no brevíssimo Governo da as bancas vazias dos mercados”, escreve Cavendish.
Nas redes Tesco e Aldi, os clientes não podem com- amiga Liz Truss. Também foi ministra da Saúde. A

*
prar mais do que três unidades (ou embalagens) de nomeação, na altura, causou alguma polémica. Os
tomates, pepinos e alfaces. O supermercado Mor- críticos notaram de imediato, com uma enorme
risons, com 497 lojas por todo o país, acrescenta os pinga de sexismo, que a nomeação da senhora Cof- Parece claro que a enorme escassez de produtos
pimentos à lista e aplica um limite, mais severo, de fey que-fuma-charuto-e-bebe-e-poderia-mui- agrícolas frescos não pode justificar-se, apenas,
duas unidades por cabeça. A rede Asda alarga o ra- to-bem-perder-alguns-quilitos não seria talvez a com as inundações em Marrocos ou com o frio no
cionamento aos brócolos, couve-flor, framboesas e mais indicada num país que tem a segunda mai- sul da Península Ibérica. O Reino Unido importa
saladas pré-embaladas. Alguns supermercados da or taxa de obesidade da Europa ocidental (atrás de quase metade de toda a comida consumida no país.
Tesco, líder de mercado no país, usam fotos de la- Malta). Duvido que esses comentários seriam feitos Durante o inverno, 90% das alfaces e 95% dos to-
ranjas ou de pepinos para cobrir as bancas desertas. caso o novo ministro fosse um homem. mates vendidos nos mercados são importados. Par-
A penúria de tomates é a mais séria. As redes soci- te do problema, claro, foi o ‘Brexit’. Os produtores
ais adotaram as hashtags #tomatogate e #saladwars. nacionais enfrentam imensos problemas burocrá-
ticos na contratação de trabalhadores temporários.

*
Os enormes atrasos nas fronteiras transformaram o
Reino Unido num mercado pouco atraente para os
Telefono à minha sogra. Ela nasceu em Londres em produtores e vendedores europeus. Mas os produto-
1939, algumas semanas após o início da II Guerra res nacionais queixam-se também do aumento dos
Mundial. As memórias do tempo da guerra são, na- O meu vizinho Stephen tem 73 anos e adora cruzei- custos com a energia (e da falta de apoio governa-
turalmente, escassas. Mas ela recorda em particular ros. Duas ou três vezes por ano, Stephen e a mulher, mental), bem como dos preços irrealistas impostos
os tempos difíceis do pós-guerra e do racionamento ambos reformados, passam várias semanas em na- pelas grandes cadeias britânicas de supermercados,
de bens essenciais, como roupa, carne, açúcar, ovos vios de cruzeiro algures nas águas das Caraíbas ou que abusam da sua posição dominante no mercado.

E 28
O ‘Brexit’ não será o fator principal. Mas tem aju-
dado ao caos. As estufas aquecidas da Holanda
costumavam exportar toneladas de tomates para o
Reino Unido durante os meses de inverno. Mas os
exportadores têm dificuldade, agora, em encon-
trar camionistas dispostos a fazer a curta viagem
entre os dois países. Os camiões amontoam-se na
fronteira. As filas na viagem de regresso ao espaço
europeu estendem-se por quilómetros. Os camio-
nistas por vezes esperam mais de 70 horas. Alfon-
so Gálvez, secretário-geral da Associação Agrária
de Jovens Agricultores, em Espanha, explica: “Tem
havido problemas de logística e transporte porque
há falta de camionistas dispostos a servir o merca-
do britânico. Há muitas filas para entrar e sair do
país. A burocracia e o tempo de espera implicam
custos acrescidos e isso torna o mercado britânico
menos atraente.”

*
É raro o dia em que não ouvimos um número ou
um dado estatístico que revela como o ‘Brexit’ foi
um verdadeiro tiro no pé. Fora da União Europeia,
o país estará, talvez, ligeiramente mais soberano
— mas está também significativamente mais po-
bre. O primeiro-ministro Rishi Sunak parecia ge-
nuinamente aliviado e feliz quando anunciou, no
final de fevereiro, as mudanças práticas acordadas
com a UE quanto ao chamado protocolo irlandês:
“A Irlanda do Norte passou a estar, agora, numa si-
tuação única e privilegiada porque está ao mesmo
tempo no Reino Unido e na UE e é, por isso, a zona
económica mais empolgante do mundo”, disse. Ah,
a maravilha que é estar ao mesmo tempo no RU e
na UE — esse paraíso chamado ‘pré-Brexit’.

As inundações em Marrocos No “The Times”, a jornalista Katie Glass descreve


os progressos da pequena horta que ela instalou no

e o frio na Península Ibérica jardim da casa rural. Glass deixou Londres nos pri-
meiros meses da pandemia e mudou-se para So-

não justificam tudo. merset. Desde então ela tem escrito vários artigos
sobre a vida no campo (a maior parte das vezes, no

Quase metade de toda a comida entanto, o texto é sobre as saudades que ela tem
do frenesim da capital). A escassez de legumes no

consumida no Reino Unido mercado levou-a, agora, a criar uma pequena hor-
ta. Ela partilha a experiência com os leitores. Um

é importada. No inverno, jardineiro amigo, Charles Dowding, deu uma ajuda


(algumas dicas: desmanchar caixas de papelão mo-

90% das alfaces e 95% lhado e colocá-las na terra; Katie usou caixas velhas
de encomendas da Amazon; o papelão acabará por

dos tomates vêm do exterior desintegrar-se, mas serve para manter longe as er-
vas daninhas; cobrir com uns dez centímetros de

E 29
OS IMPOSTOS MAIS
ALTOS DE SEMPRE?
Os britânicos foram surpreendidos a meio substrato biológico agrícola; semear). “Não é preci- segundo ela, “comida básica de refeitório de esco-
de março com a notícia de que caminhavam so muito espaço”, explica Charles. “Vai ficar admi- la” (ela prefere, por exemplo, The Cinnamon Club,
a passos largos para a maior carga fiscal rada com a quantidade de legumes que vai cultivar que é um dos melhores restaurantes indianos de
das suas vidas. Números do Resolution num retalho de terra com 1,2 x 2 metros.” O artigo Londres e fica a poucos minutos do Parlamento).
Foundation, um think-tank britânico focado ocupa duas páginas do jornal e lista os legumes e
nos temas da desigualdade e nas famílias verduras que podem ser semeados já em março (al-
de menores rendimentos, mostravam que, face, rabanete, espinafre, agrião, cenoura) e outros
no ano fiscal 2024-2025, os impostos irão que convém esperar pelo solo mais quente de abril
atingir 37,3% do PIB. É o valor mais alto desde ou junho (rúcula, tomates, curgetes, beterraba).
o início das estatísticas em 1948. Os números
surgiram agora porque o Reino Unido tem um
calendário diferente da Europa (e de Portugal) O #tomatogate continua a inspirar muita gen-
e em março, mais precisamente no dia 15, te. Na secção Marketplace do Facebook brinca-
foi conhecido o Orçamento do Governo de lhões postam fotografias de tomates cheios de
Rishi Sunak com novas perspetivas para as viço. “Um tomate. Raro. Muito estimado pelo seu
evolução futura das contas públicas. A subida único dono. Vendo por £12 apenas”, leio num dos
dos impostos já começou no ano passado Aparentemente os britânicos estão a levar a coisa anúncios. Uma mulher que no perfil do Twitter
e tem a ver com o pacote de resposta à muito a sério. A jardinagem, recorde-se, é o hob- se apresenta como enfermeira no Serviço Naci-
pandemia apresentado por Sunak, então by mais popular no país. Nas sondagens de opinião, onal de Saúde (NHS) partilha com os seus 68 mil
ministro das Finanças de Boris Johnson. Ao mais ou menos dois terços da população costumam seguidores: “Fui obrigada a reforçar a seguran-
contrário do que aconteceu na generalidade autoclassificar-se como “jardineiros ativos” (já ago- ça em casa. Tenho dois pimentos e um pacote de
dos países, onde os Governos abriram ra: o que será um “jardineiro passivo”?). Segundo o tomates no frigorífico.” Os opositores do ‘Brexit’,
os cordões à bolsa no apoio a empresas censos de 2021, 88% dos lares britânicos têm um jar- como Dave MacLeod (mais de 103 mil seguidores
e famílias, o Governo britânico anunciou dim privado ou um jardim partilhado entre vizinhos. no Twitter), ironizam com as prateleiras vazias:
logo aumentos de impostos a aplicar no Parte desses jardins tem sido transformada, nos últi- “Mais um grande benefício do ‘Brexit’. Como não
futuro para ajudar a reequilibrar as contas. mos tempos, em hortas de cultivo. A RHS (Sociedade há comida para comprar, agora não é preciso fa-
Foi precisamente a tentativa de travar Real de Horticultura), fundada em 1804, anunciou zer fila nas lojas.”
essa subida já prevista — nomeadamente que as vendas de sementes e as pesquisas nas pági-
o agravamento na taxa de imposto sobre nas sobre fruta e legumes no website oficial da socie-
o lucro das empresas (o nosso IRC) — que dade subiram 20% relativamente ao mesmo período
precipitou a minicrise financeira em outubro do ano passado. Cadeias de artigos de casa e jardim
de 2022 que acabou com a saída, primeiro, como a Homebase e a B&Q confirmam a tendência.
do ministro das Finanças, Kwasi Kwarteng,e, Nas últimas semanas, as pessoas compraram mais
depois, da própria primeira-ministra Liz Truss. coberturas e estufas para cultivo do que o habitual. O APS Group, o maior produtor de tomates do Rei-
Como aconteceu na maior parte dos países, A Homebase registou um aumento de 38% nas ven- no Unido (o grupo é responsável por 40% da pro-
o Reino Unido viveu uma recessão em 2020, das de sementes e kits de cultivo. Durante a II Guerra dução nacional de tomates), confirmou que neste
o ano da chegada da pandemia. Nesse ano, Mundial, o Ministério da Agricultura mobilizou os inverno deixou muitas estufas sem cultivo. Foi a
a economia caiu 9,3%, o défice orçamental britânicos na “Dig for Victory” (Cavar, rumo à vitó- primeira vez que isso aconteceu na história da em-
disparou para 12,8% e a dívida pública passou ria), uma campanha de propaganda que apelava ao presa, fundada em 1949. A razão: o aumento dos
a barreira dos 100%, o que não acontecia cultivo em massa de fruta e legumes. Até os jardins custos da energia, dos adubos e polinizadores, da
desde a II Guerra Mundial. É nesse contexto em volta da Torre de Londres foram transformados mão de obra e do empacotamento.
que Sunak, a par do pacote de combate à em hortas. O Governo atual não ainda chegou a esse

*
covid-19 e aos seus efeitos, avança com uma ponto. Mas a hashtag #digforvictory no Instagram
série de medidas futuras para dar confiança tem neste momento mais de 49 mil postagens.
aos investidores no plano orçamental. Em À hora em que escrevo, as lojas online das maiores
2021 e 2022, o PIB britânico cresceu mais de cadeias de supermercados britânicos continuam a
11% e recuperou da queda da pandemia, o classificar vários frutos e verduras como “tempo-
défice caiu para cerca de um terço e a dívida rariamente não disponíveis” ou “esgotados”. O ra-
já baixou dos 90%. A má notícia é que, ao cionamento mantém-se. “Os miúdos de hoje têm
contrário do que se esperava há uns meses, toda a sorte do mundo”, escreve o colunista Sam
o PIB fechou 2022 já no vermelho e deverá Freedman, senior fellow do grupo de reflexão Ins-
ter uma recessão — embora moderada — Ainda a senhora Coffey. A ministra continua em titute for Government. “No meu tempo não havia
este ano. A inflação disparou e está ainda maré de azar. A televisão mostra uma entrevista racionamento e eu não podia escapar à salada. Que
acima de 10%. O Banco de Inglaterra, com o produtor Richard Parry, conhecido como grande injustiça.”
num aperto da política monetária comum o “rei dos nabos”. A quinta dele tem 120 hectares
aos principais bancos centrais mundiais, onde ele costumava produzir 30 milhões de na-
aumentou a taxa diretora em mais de quatro bos — “o suficiente para abastecer todos os super-
pontos percentuais desde janeiro de 2022. mercados britânicos”, diz. Mas agora deixou de os
Está atualmente em 4,25%. Para as famílias cultivar. “O negócio deixou de ser viável por causa
britânicas, à carga fiscal elevada — e aos dos preços da energia e da escassez de mão de obra.
cortes que estão já a avançar em alguns Acho que a ministra escolheu a hortaliça errada.”
serviços públicos — junta-se a pressão dos Duvido que ela se importe com a falta de nabos. O meu sogro fez o serviço militar na Malásia e ao
preços e a subida do custo dos créditos. Nada Os jornalistas parlamentares descrevem-na como longo da vida viajou por quatro continentes. Se-
de muito diferente do que se vive na Europa uma verdadeira gourmet. Aparentemente Coffey ria de esperar que esse contacto com gastrono-
ou nos EUA. 2023 é o ano onde todos estes despreza os restaurantes que funcionam dentro do mias diferentes lhe tivesse aberto o paladar. Mas
efeitos se vão cruzar. / JOÃO SILVESTRE complexo parlamentar de Westminster que servem, ele sempre viveu completamente desinteressado

E 30
canais de televisão britânicos têm pelo menos um
A jardinagem é o hobby programa diário sobre a arte de cozinhar onde se
repete o evangelho da dieta equilibrada e da impor-
mais popular no país e tância dos legumes. A comida é o novo rock’n’roll e
alguns superchefes britânicos são celebridades glo-
88% dos lares britânicos bais. Londres é muitas vezes descrita como a capital
gastronómica do mundo (com algum exagero: tan-
têm um jardim privado to Nova Iorque como — sobretudo — Paris têm mais
restaurantes com estrelas Michelin). O aumento da
ou partilhado. Parte desses qualidade está ligado indiscutivelmente às comu-
nidades imigrantes. O próprio fish and chips — ge-
jardins tem sido transformada ralmente considerado como o prato nacional e uma
das joias da tradição britânica atual — está ligado
em hortas de cultivo à imigração judaica proveniente da Península Ibé-
rica. Em 1544, um médico da corte inglesa, Manu-
el Brudo (também conhecido como Brudo Lusita-
no), publicou o tratado gastronómico “De Ratione
Victus”. Brudo descreve pela primeira vez a moda
do peixe — frito em óleo muito quente, depois de
pela comida. A relação dos ingleses com a comi- décadas um prato de beans on toast, se possível passado por farinha e ovo batido — que os judeus
da, explica a antropóloga social Kate Fox, é como cada dia: uma torrada com uma lata Heinz de fei- sefarditas terão levado para Inglaterra. Os judeus
a de um casamento sem amor. Os ingleses não jões cozinhados com molho de tomate. A atual es- cozinhavam o peixe na sexta-feira e comiam-no
atribuem à comida a mesma prioridade que ou- cassez de verduras deixá-lo-ia certamente indife- frio no dia seguinte, durante o descanso religioso
tras nações lhe atribuem. Os ingleses, como o rente. Ele viveu até aos 93 anos. do sabat. Décadas mais tarde, o peixe “à moda dos
meu sogro, olham com desconfiança para alguém judeus portugueses”, começou a ser vendido nas

*
que demonstre um interesse enorme pela comida. ruas de Londres. As chips, batata frita, só chegaram
Esse interesse é visto como estranho e mesmo algo muito mais tarde, no final do século XIX. b
imoral. Eles simplesmente comem para sobrevi- As coisas são diferentes agora. O interesse pela
ver. O almoço preferido do meu sogro foi durante comida aumentou nas últimas décadas. Todos os e@expresso.impresa.pt
ANA BRÍGIDA

DEFESA Com a ameaça de uma invasão alemã e espanhola


a Portugal, os britânicos organizaram clandestinamente
uma rede de recolha de informações e circulação de agentes
e mensagens entre os dois lados da fronteira. A petrolífera britânica
Shell, com delegações em todo o país, era a fachada ideal

E 32
rede
Uma

goradaEm janeiro de 1942, a polícia política começava


a desmantelar uma rede de espionagem que
ficaria conhecida por rede Shell. Um processo
guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo
ajuda a perceber os contornos desta organização,
que envolveu britânicos e muitos portugueses.
Entre estes últimos destaca-se a participação
do então jornalista desportivo e selecionador
nacional Cândido de Oliveira, que viria
a ser um dos pais do conhecido jornal “A Bola”

TEXTO
MARGARIDA DE MAGALHÃES RAMALHO
INVESTIGADORA DO HTC

E 33
O
BIBLIOTECA LUZ SORIANO/ATENEU CASAPIANO
inspetor da Administração-Geral dos Correios e
Telégrafos, Cândido Fernandes Plácido de Olivei-
ra, foi preso em Lisboa a 1 de março de 1942. Natu-
ral de Fronteira, em Portalegre, Cândido era, desde
1926, selecionador nacional de futebol. Nem o fac-
to de ser jornalista de “O Século” e uma das figuras
mais amadas e respeitadas do futebol português o
salvou das garras da Polícia de Vigilância e Defesa
do Estado (PVDE), que não só o espancou aquando
da sua detenção, partindo-lhe alguns dentes, como
o enviou, mais tarde, para o sinistro campo de con-
centração do Tarrafal, em Cabo Verde.
Cândido de Oliveira fora recrutado, em agosto
de 1940 — quando a invasão de Portugal por tro-
pas espanholas e alemãs parecia iminente —, por
um francês de apelido Colson que trabalhava na
Legação inglesa e que se dizia representante de
De Gaulle. O objetivo era “organizar uma linha de
comunicação com agentes escalonados em diver-
sas localidades, linha através da qual, circulassem
mensagens ou agentes que fossem necessários fa-
zer entrar ou sair do país. Que paralelamente a esta,
devia existir uma outra linha de comunicação por
meio de postos de rádio, instalados em diversos
postos da costa, postos que se destinariam a trans-
mitir mensagens para navios e aviões”. DOCUMENTOS Pagelas com o currículo de Cândido de Oliveira (em cima).
Uma guerra, por norma, é tudo menos cavalhei- A ficha do antigo selecionador no Registo Geral de Presos (em baixo, à esq.)
e um ofício do consulado britânico do Porto para Rogerson, louvando a sua
resca e as regras pelas quais os Governos envolvi-
atuação, em 1940, no acolhimento dos refugiados em Vilar Formoso
dos se regem são, durante esses períodos, alteradas,
subvertidas e todos os meios são válidos para der-
rotar o inimigo. Durante a II Guerra Mundial, en-
quanto a França se rendia, Winston Churchill jun-
tava três organismos preexistentes formando a Spe-
cial Operations Executive (SOE). Conhecida como
The Secret Churchill’s Army esta organização tinha
como objetivo operar nos territórios ocupados es-
ROGERSON FAMILY COLLECTION/MUSEU DE VILAR FORMOSO

piando, promovendo a resistência e desencadeando


atos de sabotagem.
Declarando-se neutro no início da guerra, Por-
tugal manter-se-ia, com a sua neutralidade estrita,
ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO

no fio da navalha até 1943. A partir desse ano, com a


vitória aliada no horizonte, passaria a apoiar clara-
mente a sua velha aliada. A posição de Salazar, po-
rém, não impediu, que, no final de 1940, a Alema-
nha equacionasse uma ocupação do território luso.
Para a História ficou conhecida por Operação Félix.
Previa, com o apoio de Franco, um ataque por terra
a Gibraltar que se estenderia a Portugal para con-
trolo do litoral luso.
Por sorte, as negociações entre Hitler e o ditador
espanhol (que tanto beneficiara do apoio alemão e

E 34
italiano durante a Guerra Civil espanhola) não fo- segredo afim de evitar que os nomes das pessoas
ram fáceis. Por outro lado, o nosso embaixador em
Madrid, Pedro Teotónio Pereira envidaria todos os
No final de 1940, em questão chegassem às mãos das organizações
alemãs. (…) Havia certos preparativos a fazer. Estes
seus esforços para dissuadir Franco a alinhar com o
Eixo. Quem o refere é o então embaixador america-
a Alemanha patriotas necessitavam de certo material para se de-
fenderem do invasor. Um dos pontos principais das
no em Madrid, Carlton Hayes no seu livro “Wartime
Mission in Spain1942-1945”.
equacionou minhas instruções, e que transmiti a todos os ami-
gos, era que o nosso trabalho não tinha nem podia
Graças a esse esforço era assinado, em junho de
1940, um Protocolo Adicional ao Tratado de Não-A-
uma ocupação ter, nenhum fim político. Tratava-se simplesmente
duma resistência contra o invasor.”
gressão estabelecido no ano anterior entre Portugal
e Espanha. Sobre este documento escreveria Teotó-
do território Salazar e a polícia política não viram, no en-
tanto, a coisa sob esse prisma. É que apesar dessas
nio Pereira: “Por este Protocolo, Portugal e Espanha
mostravam a sua firme convicção de deter Hitler
luso. Para a instruções — se é que as houve — os britânicos es-
tavam dispostos a colocar armamento e explosivos
nos Pirenéus e, se necessário fosse, de lutar lado a
lado contra a invasão da península.”
História ficou nas mãos de portugueses que poderiam, com gran-
de probabilidade, pertencer à oposição. E, de fac-
Se para Portugal — como refere o investigador
Bernardo Futscher Pereira — era a recondução da
conhecida por to, não estavam muito longe da verdade. Se alguns
elementos apenas queriam ajudar a defender o país
Espanha à neutralidade, para os países do Eixo o
protocolo foi “vendido” como um afastamento de
Operação Félix. ou apenas “ganhar uns cobres”, a grande maioria
era gente de esquerda havendo mesmo membros
Portugal de Inglaterra. Assim, ficavam todos con-
tentes… Apesar desta vitória da diplomacia portu-
Previa, com o ou simpatizantes do Partido Comunista Português.
Não é de estranhar, por isso, que Salazar achas-
guesa, o perigo continuava a espreitar e se Hitler
decidisse mesmo avançar com a Operação Félix,
apoio de Franco, se que a sua velha aliada o tinha apunhalado pelas
costas... Sem poder punir os britânicos como cer-
quem sabe como Franco se comportaria. Por essa
razão, a Grã-Bretanha e Portugal, representado pe-
um ataque por tamente desejaria, acabaria por descarregar a sua
fúria nos portugueses, como se verá adiante.
los capitães Câmara Pina e Humberto Delgado, iam
mantendo reuniões discretas para estabelecer um
terra a Gibraltar, A companhia petrolífera britânica Shell, com
delegações em todo o país, era a fachada ideal para
plano de contenção a um eventual avanço hispâni-
co-alemão. As negociações, como de costume, ar-
que se encobrir as atividades da rede. Seria, por isso, entre
os seus funcionários portugueses que se começaria
rastavam-se e os britânicos desesperavam.
É nesse contexto que o SOE decidiu avançar so-
estenderia a recrutar pessoas. Estas, por sua vez iriam aliciar
amigos e conhecidos que, pelas suas profissões ti-
zinho e montar em Portugal, clandestinamente uma
rede que assegurasse a recolha de informações, a
a Portugal vessem acesso a informação privilegiada nos cami-
nhos de ferro, nos portos, nas alfândegas, etc.
circulação de agentes e mensagens, entre os dois É assim que Rogerson recruta, por exemplo, Ma-
lados da fronteira, e um plano de sabotagens que nuel Conde, comerciante na Guarda a quem irá pe-
dificultasse a possível invasão. dir o “plano das estradas fronteiriças daquela região
Assim, em janeiro de 1941, é enviado para Lis- da Guarda e bem assim as fotografias das pontes de
boa o major John Grosvenor Beevor. Oficialmente, caminho de ferro e de peões que ligam Vilar Formo-
Beevor vinha como adjunto do adido militar britâ- so à Guarda. Isto com a finalidade de serem estuda-
nico. A sua missão era, porém, bem mais comple- dos planos da sua dinamitação”. Conde levar-lhe ia
xa: montar a rede e articular-se com o MI6 e MI9 já o material pedido. Mas mostra-se reticente em fazer
a operar em Portugal. ir pelo ar a nova ponte sobre o Coa. Ao que tudo in-
Alertada pelos serviços secretos alemães, a PVDE dica, tratava-se da Ponte de São Roque, em Caste-
começa ainda em 1941 a farejar e, no início do ano lo Bom, reconstruída em 1938, e inserida no traça-
seguinte, faz as primeiras detenções. Interrogatórios do da então EN8 que ligava Vilar Formoso a Aveiro.
apertados levam a que os detidos confessem o que Conde, por sua vez, vai aliciar outras pessoas,
sabiam. A partir daí foi fácil à PVDE apanhar o fio nomeadamente, Arnaldo da Silva Marques e Nabais
da meada e desfiá-la. Pereira de Vilar Formoso e Martins Vasco de Alfaia-
Os processos relativos a este caso — organiza- tes. Estes, também angariam gente, como foi o caso
dos em oito volumes de centenas de páginas cada de Abílio Miguel, “O Espanhol”, proprietário de
— encontram-se no Arquivo Nacional da Torre do uma concorrida tasca em Vilar Formoso e Concei-
Tombo (PIDE/SC/PC/90/42) e são um manancial ção de Jesus Lopes taberneira em Almeida.
de informação, alguma já publicada por vários his- O grupo de Manuel Conde — composto por de-
toriadores. Mas, o que pretendiam exatamente os zenas de pessoas — operava, grosso modo, entre a
britânicos? Guarda, Vilar Formoso e Pinhel. Começaria por es-
Interrogado pela PVDE em abril de 1942, Cecil tabelecer “casas seguras”, providas de mantimen-
Scott Rogerson, delegado da Shell no Porto e um tos e roupas em Poço Velho, Nave de Haver, Aldeia
membro ativo da comunidade britânica naquela da Fonte, São Pedro de Rio Seco, Vale de Lamula,
cidade tendo-se distinguido no acolhimento aos Castelo Bom e Almeida. Estas casas serviriam de
refugiados na fronteira de Vilar Formoso escreveria apoio a agentes que entrassem clandestinamente
no seu depoimento: em Portugal.
“Em fevereiro ou março do ano passado, quan- Arnaldo Marques, um dos homens recrutado por
do parecia iminente uma invasão alemã da Penín- Conde, com acesso ao gabinete de transmissões da
sula Ibérica, fui convidado pelo senhor major Bee- estação de Vilar Formoso ficaria encarregue de re-
vor, adido militar adjunto em Lisboa, para o auxi- colher informações sobre exportações para Espa-
liar. Tratava-se de encontrar patriotas portugueses nha, Alemanha e Suíça. Marques contrataria ain-
dispostos a resistir a uma ocupação alemã e com da, um fogueteiro espanhol para distribuir propa-
quem se podia contar neste país para cooperar em ganda aliada no seu país, nomeadamente sobre a
qualquer medida que se viesse a tomar contra o in- Divisão Azul, a milícia que Franco enviara para a
vasor. Um dos pontos mais importantes era guardar frente russa.

E 35
poderá significar este imbróglio, pois que a cir-
cunstância da alfândega ter ordens expressas para
não verificar o conteúdo dos vagões que constituem
aquele comboio, significa que de algum imbróglio
se trata.”
Manuel Conde seria, a 22 de janeiro de 1942, um
dos primeiros a serem presos. No seu depoimento
referiria vários nomes. Seriam todos detidos. Uns
acabariam por sair em liberdade por terem tido um
papel menor, outros não teriam a mesma sorte e se-
riam enviados para o Aljube. No mesmo dia, a PVDE
prendia em Barcelos, Artur Cândido Roriz. Aliciado
por um inglês de nome John Smith começaria por
distribuir propaganda aliada passando, depois, a
fornecer informação confidencial ao Centro Britâ-
nico de Informações do Porto.
Como Conde, Roriz tinha também a sua rede
de contactos. Carlos Oliveira Martins, comandante
dos bombeiros da Corporação de Esposende seria
um deles. Pouco tempo antes, o seu quartel recebe-
ra uma gratificação britânica de 500 escudos pelos
socorros prestados a dois aviões ingleses caídos nas
ANA BRÍGIDA

PUBLICAÇÃO Coleção de praias da Guilheta e de Fão. Este elo acabaria por


exemplares da revista “Stadium” facilitar o envolvimento de Martins a quem, entre
outras coisas, foram pedidas informações sobre os
alemães residentes na região. Também um funcio-
nário da câmara — de “apelido Silva e que usava
Outros dos trabalhos do grupo eram enviar por óculos” — seria referido no depoimento de Roriz
correio para o Norte de África embalagens com pro-
paganda, esconder bidons de gasolina e estar pre-
A colaboração por lhe ter fornecido uma planta da costa entre Vila
do Conde e Âncora.
parados, para, se fosse caso disso, sabotar “mate-
rial que circula para a Alemanha”. É possível que o
de Cândido Nem sempre os depoimentos coincidiam. Foi
o que aconteceu com o de Roriz e o do capitão da
incêndio de um armazém da Estação de Vilar For-
moso, em junho de 1942, fosse uma das últimas
de Oliveira, Guarda Fiscal do Porto de Leixões, António Maria
de Sousa Pinto. Segundo o primeiro, este tinha sido
ações da rede, então já ferida de morte. Pelos jor-
nais da época, sujeitos à censura, pouco se fica a
o selecionador recrutado por ele para lhe dar informações sobre as
cargas dos barcos que zarpavam para a Alemanha
saber. Contava Manuel Andrade, um comerciante
de Vilar Formoso, já falecido, que a mercadoria que
nacional, com e que recebera por isso caixas de vinho do Porto.
Apesar de Sousa Pinto negar quase tudo, lá se foi
ardeu tinha como destino a Alemanha. O incêndio
acabaria por ter grandes proporções devido à exis-
os britânicos percebendo que sempre tinha feito qualquer coisa
e que recebera duas caixas...
tência de matérias inflamáveis. Conta quem assistiu
que as explosões eram ouvidas a dezenas de quiló-
duraria quase Roriz explicaria ainda que reportava ao Centro
Britânico de Informações cujos responsáveis, se-
metros. O desastre só não foi maior graças ao san-
gue frio do maquinista Albano Monteiro dos Santos,
dois anos. gundo ele, eram Hubert Jennings, Geoffrey Tait,
Reginald Cobb e o barão de Vilalva. Seriam todos
que levou um comboio já carregado com produtos
inflamáveis, em risco de explodir, para uma linha
Durante esse detidos para averiguações.
Através do processo de Pompeu Alvarenga, de
mais afastada.
Numa das instruções enviadas a Manuel Conde
tempo, além Aveiro, ficam a conhecer-se algumas curiosidades.
Como não era permitido usar nas lapelas distintivos
pedia-se o nome dos germanófilos da região “Só
nos interessam os poucos que existem entre as pes-
de outras tarefas, que identificassem os países beligerantes desenvol-
veu-se no Porto “um meio de propaganda curioso:
soas de destaque são francamente germanófilos”. E
numa outra comunicação, a 28 de julho de 1941, fri-
reativaria nos relógios de bolso pintavam no mostrador ou na
parte de dentro do vidro um V a vermelho, sendo
sava-se: “Interessam-nos todas as autoridades civis
e militares, polícia, guarda-fiscal, legião, pessoas de
com dinheiro já grande o número de pessoas que o usam”. Outra,
mais interessante, é que, “em Eixo, uma pequena
destaque, etc. Não se esqueça que +++ ou --- só se
emprega em casos excecionais.” Embora não seja
britânico vila perto desta cidade (Aveiro) cujos sentimentos
são todos anglófilos, num prédio, à beira da princi-
explícito o significado dos sinais, não é difícil ima-
ginar o sentido...
a revista pal estrada que atravessa a povoação, foi colocado
um grande cartaz TOGETHER (dos que para aqui
Na lista de nomes relativa à cidade da Guarda
constava um advogado, um farmacêutico, o reitor
desportiva me enviaram) com o seguinte letreiro: Eixo deseja
a vitória da Inglaterra”. O aproveitamento do nome
do liceu, um capitão da guarda, o médico de Vila
Fernando, outro da Guarda, um regente agrícola,
“Stadium” da terra idêntico à designação genérica das potên-
cias contrárias aos Aliados não podia ser melhor...
um engenheiro das Estradas, o desenhador da Fe- A colaboração de Cândido de Oliveira, o sele-
deração de Municípios e um político local. cionador nacional, com os britânicos duraria quase
Entre os papéis apreendidos pela polícia nas dois anos. Durante esse tempo, além de outras tare-
suas rusgas encontrava-se a cópia duma mensa- fas, reativaria com dinheiro britânico a revista des-
gem enviada para Rogerson. “(…) Pela fronteira portiva “Stadium”. Nas suas páginas, e para além de
de Vilar Formoso entrou ontem um comboio com alguma propaganda subtil passavam, ao que parece,
armamento e munições destinado a Lisboa e que mensagens encriptadas nos textos. A caixa do cor-
ia acompanhado de oficiais alemães. Verá o que reio da revista servia ainda para receber mensagens

E 36
e instruções. As respostas eram enviadas para o Clu- que sendo encarada a hipótese de uma incursão na parte a possibilidade de Casais estar, na verdade a
be Inglês de Lisboa, ao cuidado de Patrick Grosvenor. barra do Tejo, tendo por fim a destruição dos depó- soldo dos alemães.
O correio seria, Maximiano Varges que trabalhava na sitos de óleo e gasolina, por exemplo, ela poderia ser Desmantelada a rede, havia que punir os envol-
revista. Como outros, Varges, que também era fun- feita e retirarem as vedetas, antes que a defesa pu- vidos. Na impossibilidade de tomar medidas mais
cionário dos caminhos de ferro, recolheria informa- desse reagir”. drásticas contra os britânicos, Salazar obriga Beevor
ções sobre cargas e destino de mercadorias despa- A rede também chegou Alentejo e Algarve, no- e outros implicados a sair do país. Os portugueses
chadas da Estação do Rossio, Santa Apolónia e Setil. meadamente à zona de Tavira, sendo gerida por Ce- seriam punidos administrativamente sem direito
O pagamento destas informações, poderia oscilar cil Brown, guarda-livros da britânica Mina de São a julgamento. É o próprio Salazar que explica este
entre 200 e 500 escudos por serviço. Uma pequena Domingos. O objetivo, desta vez, era recolher in- procedimento na carta que envia ao seu ministro
fortuna para quem tinha salários miseráveis. formações sobre o que se passava em Espanha. Para em Londres, Armindo Monteiro. “As penas são to-
Cândido de Oliveira foi também incumbido de este serviço, foram recrutados desempregados que das impostas por via administrativa, para se evitar a
encontrar três casas isoladas perto da costa e pró- viviam do contrabando. publicidade e o escândalo do julgamento, impossí-
ximas de Lisboa. A ideia era instalar nelas, postos Um dos que trabalharam para a rede seria An- vel de conduzir sem aparecer a nu a organização tal
radio telefónicos de pequeno alcance capazes de tónio Vargas de Mértola. Segundo este, Cecil Brown qual era, isto é, com a chefia em órgãos oficiais in-
receberem mensagens de barcos e aviões que pas- tinha-o encarregado de estabelecer ligações com gleses. Apesar do nosso desejo de confiar ao tribunal
sassem nas imediações. Cândido apalavraria uma “espanhóis pertencentes às forças marxistas que Militar Especial o julgamento destes casos, deixan-
casa na Praia do Guincho e pretendia encontrar finda a Guerra Civil espanhola se acoitaram nas ser- do o Governo estranho à apreciação da responsabi-
mais duas, uma na Caparica e outra na Arrábida. O ras Morena e Nevada”. Como o número destes ho- lidade e à aplicação das sanções, no caso presente
desmantelamento da rede interromperia esta tare- mens era de cerca de oito mil e estavam familiari- pareceu não poderem seguir-se os trâmites normais
fa bem como a localização definitiva de locais, nas zados com o uso de armas, a legação britânica teria para não deixar a descoberto a ação inglesa.”
regiões de Torres Vedras, Ribeira de Santarém e Vila pedido a Brown para os procurar “para lhes forne- As penas impostas variaram. Muitos seriam en-
Nova de Milfontes onde pudessem aterrar paraque- cer dinheiro e armamento e tê-los preparado a atuar viados para o Tarrafal. Cândido de Oliveira é um
distas especializados em sabotagens, paraquedas no momento próprio”. Esta informação, como ou- deles. Sobre a sua experiência escreveria no seu li-
com material necessário e propaganda. tras, nomeadamente do envolvimento de membros vro “Tarrafal, O Pântano da Morte”: “Dentro do
Questionado sobre um eventual desembarque do PCP na rede terá, seguramente assustado Salazar campo não se vive! Aguarda-se a morte! É a mor-
aliado nas margens do Guadiana responderia o que e a sua polícia política para quem estes espanhóis te lenta, mas certa. Apenas uma questão de tem-
lhe tinha sido dito pelos ingleses. “(...) Na altura eram “bandidos e assassinos marxistas”... po...” Cândido de Oliveira conseguiria sobreviver a
própria seria feito um raid por vedetas rápidas, ul- Por incrível que pareça, um ramo da Legião Por- 18 meses de inferno, mas a sua saúde nunca recu-
tra velozes, que subiriam o Guadiana lançando na tuguesa, através de um seu dirigente Ribeiro Casais, peraria e acabaria por falecer prematuramente em
margem portuguesa forças que seriam imediata- chegaria a oferecer, no verão de 1941 os seus prés- Estocolmo, em 1958, quando fazia a cobertura dos
mente recolhidas em casas previamente prepara- timos a Beevor. No entanto, esta união antinatu- Jogos Olímpicos. b
das para tal fim.” Segundo os seus contactos britâ- ra não resultaria e acabaria também por precipitar
nicos, “a velocidade dessas vedetas era tão grande o desmoronamento da rede, não estando posta de e@expresso.impresa.pt

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O mundo está a mudar e nós fazemos parte desta mudança.

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Todas as semanas, cinco ideias e cinco personalidades

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LIONEL HAHN/GETTY IMAGES

E 38
Entrevista
Marion Cotillard

A comédia
para mim
ainda é
um continente
desconhecido.
Isso excita-me”

Conhecida pelos papéis dramáticos, mostra agora


uma nova faceta na pele de Cleópatra. Numa longa
conversa, em que também apresenta “Astérix
e Obélix: O Império do Meio”, a atriz fala sobre a
carreira, as suas referências e a família que construiu

POR FRANCISCO FERREIRA

E 39
F
De facto, está muito ligada a papéis
dramáticos intensos, isto é, ao opos-
to do que lhe foi pedido aqui. Papéis
como este acabam por ter uma natu-
reza libertadora?
Para mim, foi isso que aconteceu. Eu
não estou nada habituada a fazer isto.
E duvido que o tivesse feito se o Gui-
llaume não fosse o realizador. Mas
mesmo com tão poucas cenas, tive de
procurar a autenticidade da minha
Cleópatra. Seguindo, claro, um certo
tom já de si carregado, com um cer-
to lado cartoonesco, porque este fil-
me é uma comédia com historial nes-
sa matéria.

Porque é que não apostam mais no


seu sentido de humor?
oi graças a uma comédia popu- É uma boa pergunta. A verdade é que
lar, “Astérix e Obélix: O Império do leio muito mais dramas que comé-
Meio”, que Marion Cotillard, atriz dias. E eu gosto de vê-las. Também
dramática, nos falou com demora do gostava de participar mais nelas. Mas
seu trabalho. E também levantou um não me chegam às mãos. Talvez isso
pouco o véu da sua vida. O encontro vá acontecer agora, quem sabe...
foi inesperado. Na última edição dos
encontros Unifrance, em Paris, nin- Teve de ser Guillaume, o seu marido,
guém estava à espera dela. Resolveu a convencê-la. Ele é, além disso, um
aparecer sem aviso prévio para pro- ator com quem já contracenou di-
mover o novo episódio da franchise versas vezes...
mais conhecida do cinema francês, Pois. Eu diria que dormir com o As-
em que ela faz de Cleópatra, num térix tem as suas vantagens! (risos)
papel secundário. Episódio esse — e
a nota não é despicienda — realiza- Isto de encarnar a Cleópatra, per-
do pelo seu marido, o também ator sonagem tão emblemática até no
e cineasta Guillaume Canet, ele que, próprio cinema, levanta hoje em dia
além dessas funções, também inter- alguma questão particular? Qual é a
preta Astérix. O filme estreou-se en- sua opinião sobre ela?
tretanto naquele país e foi o êxito que Não me pus a estudar a sua vida, tal
as bilheteiras francesas aguardavam como o faria seguramente se tives-
no seu mercado interno. Levou até à se um papel mais longo. Foquei-me
data 4,5 milhões de franceses às salas, apenas no lado caricatural dela no
nada de extravagante no país onde o filme. “Astérix e Cleópatra” já era o
cinema nasceu, mas nada mau, con- meu livro preferido da BD quando
tudo, para os tempos pós-pandemia era miúda. E também o meu filme
que correm. Em Portugal estreia-se animado preferido. Sempre a imagi-
na próxima quinta-feira, 6 de abril. nei muito poderosa, muito dinâmica
e um bocadinho tresloucada.
Deve ter-se divertido a fazer de passou por eles. Têm a mesma frescu- loucura. E até acabou por interpretar
Cleópatra. Pode uma personagem Acha que há um segredo nesta capa- ra que tinham em 1959 (ano em que a Astérix, algo que ele não tinha pla-
como esta comparar-se à preparação cidade de Astérix e Obélix perpetua- primeira edição foi lançada). neado. Percebeu depressa o que podia
de um grande papel dramático? rem a sua existência no tempo? Eles acrescentar à saga como filme de co-
Não pode. É verdade que aquilo que continuam a passar de geração em Este filme foi dedicado aos seus fi- média e de aventuras, desenvolveu o
mais contou aqui foi o divertimen- geração. lhos, Marcel e Louise. Porquê? tema das viagens, pôs de novo as per-
to, claro. Até porque o meu papel é Para mim vem tudo das personagens. O Guillaume responderia melhor do sonagens de Astérix e Obélix no centro
muito curto. O que é engraçado nesse Da empatia. São adoráveis. Vivem que eu, mas acho que a dedicatória da trama, algo que nem sempre acon-
caso é que eu não estou nada habitua- aventuras e abrem mentalidades, per- existe porque todos nós temos Astérix teceu nos episódios anteriores. Mas
da à comédia. Não é a minha zona de mitem-nos sonhar com outras cultu- e Obélix na nossa cultura. É um fenó- teve de ultrapassa imensos obstáculos.
conforto, coisa que, de resto, eu nem ras. Astérix e Obélix são à sua maneira meno que passa de geração em geração
sei bem o que é. Acho que fugi sem- muito divertidos. E muito curiosos. E em França. Noutros países também. E O que é que o salvou?
pre dessa zona. O drama é um mun- os livros continuam vívidos, a jovia- o Guillaume quis tanto fazer este fil- A meditação. Salvou-o uma aplicação
do que eu conheço. A comédia não. lidade não se perdeu. O tempo não me, tanto... Passou anos nisto. Foi uma de telemóvel. Tornou-se um pouco

E 40
MICHAEL TRAN/AFP VIA GETTY IMAGES

como a personagem do filme, desco- que eu embarcasse nesta aventura. subordinado de Júlio César. Quando um tanto a isso. Ele lesionou-se mesmo
brindo medicinas paralelas. Acho que o diverti. Ficou tudo em fa- Canet o convidou para o papel, contou antes de começarmos a filmar, o papel
mília. Os nossos filhos também tive- o cineasta noutra entrevista, o fute- dele foi um bocadinho reduzido por
E também teve de lidar com um ‘no- ram direito a uma aparição. bolista sueco franziu o sobrolho antes causa disso. Não podia jogar futebol
vo’ Obélix. de aceitar, retorquindo: “Acha mesmo nem deveria ter vindo à rodagem. Mas
Sim, Gilles Lellouche, que está formi- Outra marca de fábrica deste saga de que um César como eu pode interpre- teimou e veio, contrariando os médi-
dável. Gille teve a coragem de substi- filmes Astérix com atores de carne e tar o braço-direito de César? E quanto cos. Já tinha dado a palavra ao Guillau-
tuir o igualmente formidável Gérard osso são os cameo. Há um que salta à é que paga?”) me. E todos nós apreciámos isso.
Depardieu (que decidiu não voltar à vista neste episódio: o do futebolista
personagem). Zlatan Ibrahimović. Como é que rea- Ele queria entrar no filme? Qual é a sua personagem favorita da
giu à chegada dele? Eu acho que ele não só queria como BD?
A ideia de interpretar Cleópatra veio Pedi-lhe para tirar uma selfie! (Em “As- adorou a experiência. Não estava nada à Humm... Eu escolheria o Assurance-
de si ou de Guillaume? térix e Obélix: O Império do Meio”, espera de ser convidado. É um grande fã tourix. Não passaria um dia com ele,
Veio dele. Meteu-me nisto. Queria Zlatan faz o papel de Antivirus, um de kung fu e a personagem adaptou-se nem mesmo uma hora, mas...

E 41
Esse é o bardo cantor que irrita toda
a gente, não é?
Sim, e neste filme em especial acho-o
fantástico. É um artista incompreen-
Cresci numa família
dido. E o Philippe Katerine, que o in-
terpreta, é fabuloso. Eu admiro-o há
generosa, descomplexada,
muito tempo como músico, tem um
estilo inconfundível e as suas apa-
rições no cinema são cada vez mais
de espírito aberto.
frequentes e completas. Antes da ro-
dagem fizemos uma leitura com o
elenco todo, foi tão divertido. Perce-
Depois percebi que
bemos logo que este bardo ia ser es-
pecial (Katerine tem, de resto, o papel o mundo ciumento, egoísta
protagonista de “Voyages en Italie”,
novo filme de Sophie Letourneur que
se estreou este ano em Roterdão).
e injusto não estava
É verdade que a audiência fica com a
sensação de que vocês se divertiram
à altura daquele em
bastante mas, por outro lado, “Asté-
rix e Obélix: O Império do Meio” foi que tinha sido educada”
feito com o objetivo de triunfar no
box-office. A indústria espera dele
uma boa performance neste campo.
Isto é uma pressão suplementar para
os atores?
Temos de nos divertir sem deixarmos
de ser profissionais, fazendo o me- É engraçado, são ambos artistas de Sem dúvida! Nunca pensei nisso, mas Sem dúvida, e estou sempre a dar-
lhor que podemos. Quanto à estreia banda desenhada que procuraram o seria fantástico. Eles são tão bons ato- -me conta disso pelos meus filhos.
do filme (chegou às salas francesas cinema e fizeram filmes. res que podem fazer o que quiserem. Quando o mais velho nasceu, à me-
a 1 de fevereiro, leva agora dois me- dida que ele ia crescendo, eu estava
ses em cartaz), estamos todos muito Mas voltemos à comédia. Uma das coisas mais engraçadas des- sempre a observá-lo, a vigiá-lo a cada
nervosos. Há pressão, sim. A verdade A comédia para mim ainda é um con- te episódio é o jogo de palavras com instante, quase como se ele fosse uma
é esta e não vale de nada escondê-la. tinente desconhecido. Isso excita- os nomes, como o da personagem experiência de laboratório. Eram as
O investimento foi muito elevado. E a -me. E assusta-me ao mesmo tempo. de Ramzy Bedia, aquele Épidemaïs, minhas preocupações de mãe princi-
situação não está a ser favorável para vendedor de Louboutix... Mas a sua piante e desajeitada. E lembro-me de
as salas depois da pandemia. Mas to- Quem são os seus heróis neste personagem é ‘apenas’ Cleópatra. pensar como é fascinante aquilo que
dos nós acreditamos que vai mudar departamento? Não lhe deram um nome gaélico. Não nós aprendemos sem disso nos dar-
em 2023. E sabe que já há sinais disso Essa é mesmo difícil de responder. ficou com pena de não ter um? mos conta conscientemente: a desco-
aqui? Muitos filmes de autor franceses Os meus amigos de longa data, os berta das palavras e a maneira como
estreados nestes últimos dois ou três Alguém que esteja a trabalhar neste mais chegados, têm a mania de me as usamos, o modo como construí-
meses, filmes mais pequenos, estão a momento e que a divirta? chamar “ionx”. Acho que “Ma- mos os nossos pensamentos, etc. Não
ter carreiras surpreendentes. Os olhos Bom, eu adoro o Will Ferrell. É um rionx” seria o meu nome gaélico sei o que acharão agora os espectado-
agora estão todos em cima de “Asté- dos meus favoritos. E o Steve Carell. aproximado. res mais novos deste Astérix. Mas eles
rix...”, claro. Os produtores, os distri- Eles conseguem fazer-me rir às gar- vão seguramente ter uma perspetiva
buidores, os investidores... Aguardam galhadas e ao mesmo tempo como- A canção ‘Dancing Queen’ é outra sobre as personagens que é diferen-
resultados. A França inteira está à nos- vem-me. Não é este o melhor feeling piada que o filme repete. Também te da minha.
sa espera. quando estamos a ver uma comédia? gosta dos Abba?
Eles trazem-me emoções muito va- Não gosto: adoro! Continuo a ouvi- Os seus filhos já a viram no papel de
Gostava de banda desenhada em riadas. São autênticos e isso faz-me -los. Não é fácil escolher a canção de Cleópatra, no filme completo?
criança? rir. Ou chorar. que gosto mais. Mas tenho um fra- Já, e a reação foi engraçada.
Eu não posso dizer que era fã. Mas co por uma delas: ‘The Name of the
gostava muito de Calvin & Hobbes. Também chora nos filmes? Game’. Não quer contar?
Esses devorava. Ainda são as minhas Ah, sim. Sou difícil de agradar, mas Bom, o meu filho Marcel, o mais ve-
BD favoritas. Depois há artistas a que quando um filme me leva... Leva tam- “Astérix e Obélix: O Império do lho, veio ver-me ao escritório e disse-
dou imenso valor, Riad Sattouf, por bém o meu coração. Meio” é um filme destinado, mas não -me como quem conta um segredo:
exemplo, não sei se no seu país as exclusivamente, a uma audiência jo- “Tenho medo que fiques triste mas a
pessoas estão familiarizadas com o Acha que o Will Ferrell e o Steve vem. E essa juventude permite-nos verdade é que acho que não estás lá
trabalho dele. E a Marjane Satrapi, Carell podiam estar num filme co- com frequência olhar para o mundo muito bem no filme do papá.” No final
que nos ensinou pelos seus desenhos mo “Astérix e Obélix: O Império do pelos olhos deles e de outra maneira, desse dia perguntei depois à minha
a descobrir um país inteiro (o Irão). Meio”? não acha? filha o que ela tinha achado. Fez-me

E 42
uma estranha careta. Fiquei a cismar Conservatório onde estudei, quatro outros do que pelas minhas próprias adolescência. E que ainda me causam
um bocado com a reação deles. Só de- anos. Os meus pais são ambos ato- palavras. desconforto.
pois percebi que nem um nem outro res de teatro, o meu pai é também
suportaram ver-me na cena em que encenador. Seguir o caminho dos pais nem sem- Depois o cinema desviou-a do
eu beijo na boca o Vincent Cassel (que pre é seguir o melhor caminho, con- palco...
faz de Júlio César). E era teatro o que mais via? corda? Pois foi esse o caminho que E passaram muitos anos. Mas em ju-
Não era só uma questão de ver. Eu escolheu. nho do ano passado, acertei contas e
Quais foram os filmes que a marcaram vivia para o teatro. E para a família. Mas isso tem muito que ver com a passei por uma experiência de palco
na infância e lhe mudaram a vida? Estive sempre muito próxima dos vida do meu pai, todos os espetá- extraordinária, um oratório dramático
“O Homem Elefante”, acima de qual- meus pais e dos meus dois irmãos. culos que ele fazia para as crianças, de Arthur Honegger, “Jeanne d’Arc au
quer outro. David Lynch. Foi mui- Cresci numa família generosa, des- todas as digressões com a sua tru- bûcher”, encenado pelos La Fura dels
to importante. “O Grande Ditador” complexada, de espírito aberto. Tan- pe. Ele viajava pelo mundo inteiro e Baus. Éramos 200 no palco, orquestra
abriu-me os olhos para o mundo, to assim foi que, depois, tive uma escrevia-me, a mim e aos meus ir- incluída. Aquela companhia é fabu-
como todos os outros filmes de Char- adolescência difícil, em crise. Foi mãos. Fascinavam-me aqueles pos- losa. O libretto do oratório é de Paul
les Chaplin, de um modo geral. Eu quando percebi que o mundo ciu- tais e cartas, aquelas viagens. Fa- Claudel. Não é canto. É uma prosódia.
comecei a ver televisão tarde, nós não mento, egoísta e injusto não estava à ziam-me sonhar. Fascinava-me ver A fala é acertada ao ritmo da música.
tínhamos TV em casa quando eu era altura do mundo em que tinha sido como os adultos se divertiam a con- E acertar esse ritmo deu uma carga
pequenina. Compraram depois uma educada. tar histórias. de trabalhos, exigiu uma técnica es-
quando eu já tinha sete anos. Mas ía- pecífica que fui apurando em vários
mos ao cinema. E o teatro ajudou-a? É tímida? Há quem diga que é. Não é espetáculos, em diferentes produções
Precisamente. Porque era eu e não que seja defeito. e com diferentes maestros. Digo-lhe
Em Paris? era. Era eu, mas também lá estava a Não é bem timidez. São reservas, que foi um dos trabalhos mais gratifi-
Primeiro em Paris, depois em Or- personagem. E há uma certa altura reminiscências de medo, receio de cantes que fiz como atriz. b
leães, onde o meu pai foi profes- em que começa a ser mais fácil para certas pessoas, de certas coisas, re-
sor de arte dramática, no mesmo mim exprimir-me pelas palavras dos flexos que ficaram em mim desde a e@expresso.impresa.pt

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OS CADERNOS E OS DIAS

BOTOX, DISTOPIA BOTÓXICA


E AS PALAVRAS MANSAS

E

O ROSTO QUE PARECE CADA VEZ MAIS NOVO ENTENDE CADA VEZ MENOS

ste país progride, sem dúvida!”, escuta-se por aí. A tese, segundo o artigo, tem por base as ideias de Darwin, que assumiu que há
“uma ligação entre a memória muscular do rosto e o processamento das emoções
1. no cérebro”; havendo, portanto, ligação entre a pele — o mais superficial — e as
A decência da linguagem e a forma prudente emoções — aquilo que aparentemente está mais no fundo-fundo do corpo humano
(ou mentirosa, sob certos pontos de vista) (e já Paul Valéry dizia que “a pele é o mais profundo”, etc.).
como se fala dos outros ou dos acontecimentos
foi descrita uma vez como essa arte do verbo 4.
em que um diz ao outro “que tem uma mente Com o botox a generalizar-se, estaremos, pois, diante do fim da empatia ou
aberta” quando afinal o que ele tem é “um então, pelo menos, diante da redução drástica dessa capacidade humana de
buraco na cabeça”, eventualmente provocado entender o que o outro está a sentir. E estaremos também, segundo o estudo,
por uma bala certeira. diante da dificuldade de exprimir, em si próprio, as emoções — não no exterior,
Esse modo de dizer sempre o melhor possível mas no próprio organismo interno.
diante do terrível, arte da retórica benigna, (Lembro-me bem do refrão de uma música brasileira, cantada por Arnaldo
é uma arte que vem, talvez, dos primórdios da civilização, dos coveiros ou das Antunes, entre outros, ‘Socorro, Não Estou Sentindo Nada’: “Socorro, não estou
profissões que, perto da morte, aparecem imediatamente antes (o padre que sentindo nada,/ Nem medo, nem calor, nem fogo,/ Não vai dar mais pra chorar/
celebra o ultimíssimo sacramento ou o médico que diz para os familiares do Nem pra rir.”)
doente “vamos ver”, quando sabe perfeitamente que “já não há nada a fazer”).
Essa arte de dar a melhor notícia possível diante do mais terrível acontecimento 5.
individual terá passado, então, destas profissões limite para a central profissão do O rosto que parece cada vez mais novo entende cada vez menos.
político, aquele que deveria gerir os meios e não tanto o fim. Socorro, não percebo o rosto que está à minha frente! — como se um outro rosto
Portanto, já não se trata, na retórica política, de gerir o fim — o apocalipse geral ou humano fosse uma língua num alfabeto que desconheço.
individual —, trata-se, sim, de trazer essas palavras mansas para o meio da vida Eis, a disseminar-se a grande velocidade, uma distopia botóxica: os velhos
doméstica e de com elas descrever falsamente o terrível. rostos são agora falsos rostos jovens, mas com os músculos faciais reduzidos a
De um país, como um todo, também se vai dizendo — quando o buraco na cabeça um estacionamento eterno; músculos paradíssimos e burros que de tão belos e
é evidente — que o país não está todo esburacado, mas, sim, que é uma mente parados nada sentem e nada entendem.
muitíssimo aberta para o mundo.
6.
2. E sim, claro, há uma relação possível entre o botox atirado para o rosto que
Uma investigação recente mostra que “o impacto das injecções de botox na testa” não quer envelhecer e as belas palavras de retórica atiradas para cima dos
pode “modificar a forma como o cérebro interpreta e processa as emoções das acontecimentos mais desagradáveis.
outras pessoas”. À superfície, as palavras dos políticos que julgam amansar, com a sua mansidão,
Segundo parece, ocorrem, com as injecções do botox, “disrupções na resposta a realidade tumultuosa são modos de paralisar a própria face e de nada entender
neuromuscular”. A tese é simples, e o artigo recente explica com detalhe: “Quando do mundo. E, com o tempo, provocam também uma avaria irresolúvel na
vemos uma expressão zangada ou feliz no rosto de outra pessoa, estendemos capacidade política de empatia com a população.
ou contraímos os músculos do nosso próprio rosto a fim de reproduzirmos a A retórica política, que embeleza e rejuvenesce falsamente o que está velho
expressão.” A nossa testa, e todos os muitos músculos do rosto, reproduzem o que e podre, é um botox verbal que parece apenas superficial, mas destrói
os nossos olhos vêem na pessoa que está à nossa frente, e este “é um processo que evidentemente o cérebro emocional da política e dos políticos.
decorre de forma inconsciente”. Socorro, não entendo nada; socorro, não sinto nada. b
Segundo o artigo, os músculos faciais, ao imitarem, em modo de puro espelho
involuntário, a tensão do rosto de quem está à nossa frente, enviam para o cérebro Gonçalo M. Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
essa informação, e daí nasce a compreensão do estado afectivo do outro.
E daí, claro, nasce depois, também, a empatia.

3.
A notícia diz que uma equipa de investigadores da Universidade da Califórnia utilizou
“injecções de botox num grupo de 10 participantes do sexo feminino com idades
compreendidas entre os 33 e os 40 anos”, e essa injecção provocou “uma paralisia
temporária no músculo glabelar (responsável pelo franzir do rosto)”.
Mais tarde, os cientistas “mediram a actividade cerebral”, através de sessões de
ressonância magnética funcional, enquanto estas pessoas, injectadas com botox,
observavam fotografias de rostos felizes, tristes ou neutros. / GONÇALO
Segundo o artigo, os dados da investigação tornaram claro que a “actividade
na amígdala” e no giro fusiforme, “parte do córtex temporal inferior que ajuda
M. TAVARES
no reconhecimento do objecto e do rosto”, havia mudado — estes sistemas
humanos haviam perdido precisão e capacidade de entendimento após a injecção.
Concluíram assim que o botox injectado na cara, ao paralisar “os músculos da
face”, inibe a “forma como o cérebro processa os rostos emocionais”.
Lembre-se que o botox era originalmente usado para doenças como “espasmos
musculares”, porque é “capaz de impedir a contração muscular e actua
promovendo a paralisia temporária do músculo”.

E 44
Nan Goldin
num autorretrato
da década de 70

Em vez
de morrer
Leão de Ouro em Veneza e nomeado para os Óscares, um retrato
de Nan Goldin com vários capítulos, onde também se escrevem
cinco décadas da história da América. A cineasta Laura Poitras
falou ao Expresso sobre “Toda a Beleza e a Carnificina”
TEXTO FRANCISCO FERREIRA

E 45
A
cineasta norte-americana Laura
Poitras (n. Boston, 1964) já tinha
desafiado o Estado norte-americano
em “Citizenfour” (2014), em torno
de Edward Snowden, no filme que
a lançou para a linha da frente e até
lhe deu um Óscar. Dois anos depois
documentou em “Risk” a sofredora
clausura de Julien Assange no caso
da WikiLeaks sem colher os mesmos
resultados, nem sequer a aprovação
do próprio Assange. Foi pois sem
surpresa que esta tão vincada veia
política do trabalho de Poitras
despertou a atenção do coletivo PAIN
(“Prescription Addiction Intervention
Now”), fundado pela fotógrafa Nan
Goldin em 2017.
Movida pelos mais elementares
princípios de justiça, esta
associação tentou nestes últimos
anos responsabilizar e levar aos
tribunais a família Sackler, os ex-
donos da Purdue Pharma, empresa
farmacêutica que comercializou
(e banalizou criminosamente) o
terrível oxycontin, por cá tratado de
oxicodona. Este opioide mais forte
Fundado pela fotógrafa Nan Goldin,
que a morfina, e que ficou conhecido videoconferência, e a resposta foi seu trabalho. E tentei pois demonstrar
o coletivo PAIN tentou levar aos tribunais
como a “heroína dos pobres”, os ex-donos da Purdue Pharma, empresa clara: “Para mim, é com o PAIN que que, se Nan decide atacar os Sacklers,
causou uma catástrofe sanitária de farmacêutica que banalizou a oxicodona, tudo começa.” Poitras sublinhou que é porque a batalha dela na sociedade
proporções gigantescas nos Estados opioide mais forte que a morfina não queria falar em nome de Nan, americana vem de longe, do tempo
Unidos que ainda hoje ensombra o acredita que a fotógrafa respeitava o das primeiras fotos e mesmo antes
país. Apresentado como analgésico seu trabalho antes de a chamar para disso, da sua casa, da raiz familiar, do
para dores crónicas por publicidade o filme e, acima de tudo, “o meu ambiente em que cresceu.”
enganosa, a oxicodona viciou milhões que retratou e se retratou a si própria foco político no presente, em que De facto, é na biografia que a política
de americanos e levou à morte por naquele meio — em especial desde a procurei responder aos problemas começa para Nan. “Toda a Beleza e a
overdose de pelo menos 400.000 segunda metade dos anos 80 em que em tempo real e abordar pessoas que Carnificina” é isso mesmo, um filme
pessoas desde o ano 2000. a sida ceifava a eito —, não suportou confrontaram o poder nos EUA”. político que alimenta a sua motivação
Alex Gibney tratou deste assunto o servilismo degradante dos que “Claro que conhecia o trabalho de à medida que respiga no passado e
com demora na minissérie de dois se ajoelharam ao mecenato e aos Nan desde que comecei a estudar nos arquivos da fotógrafa. Um filme
episódios lançada pela HBO em cheques da família multimilionária. cinema no final dos anos 80. O sobre Nan, acima de tudo, dividido
2021, “The Crime of the Century”. E levou o seu coletivo a denunciar a seu trabalho fotográfico é visceral, em vários capítulos e em que o maior
Viciada em oxicodona durante mesquinhez, a baixeza intelectual e extremamente cinemático. Confesso deles — dedicado à ação do PAIN — se
um tratamento ficou, também, a moral do mundo da arte, em ações de que não esperava encontrar uma vai entrelaçando em todos os outros,
própria Nan Goldin, que se viu às protesto performativas que fizeram artista da sua envergadura à frente não como um acaso, mas como uma
portas da morte à medida que os correr muita tinta e deram os seus desta batalha. Mas eu sabia que este consequência. O resultado emocional
Sackler enriqueciam como nababos frutos, já que o nome dos Sacklers seria também um filme sobre ela e que sai desta linha de montagem é
e cunhavam o seu nome nas galerias acabou por ser banido de todos os o seu trabalho. Acontece que eu não forte e convincente. Equilibra uma
dos mais prestigiados museus do museus. gosto de filmes biográficos, das suas insurreição contra a sociedade nestes
mundo, do Louvre à National Gallery, convenções, nem sei reagir como tempos obedientes e resignados em
do Metropolitan ao Guggenheim, A POLÍTICA ESTÁ NA BIOGRAFIA um curador que responde a uma que vivemos com dores de alma que
graças a exorbitantes donativos. Teria Laura Poitras realizado “Toda a encomenda. Prefiro falar de retratos. vêm de longe, cicatrizes que não
Ora, Nan Goldin, nome incontornável Beleza e a Carnificina” (foi Nan Goldin Decidi logo que não teria ninguém ficaram fechadas para Nan Goldin
da cena underground nova-iorquina que a convidou) se a ação do PAIN a comentar as fotografias dela, por no seu próprio círculo familiar. É um
e do seu quotidiano na intimidade não fizesse parte do programa? Foi exemplo”, explica, avançando com as filme coral, coletivo, mas que está
crua, fotógrafa de reputação mundial esta a primeira pergunta que fizemos suas intenções para o filme. “Quis que constantemente a bater à porta da
precisamente pela dignidade com à cineasta americana, há dias, por a audiência se ligasse diretamente ao intimidade.

E 46
ABR 2023

Eugene O’Neill
Longa Jornada Para a Noite
erradas são mantidas secretas. E isso
destrói as pessoas.” Quando Laura
O passado
Poitras aceitou realizar este filme,
estava longe de imaginar a carga
emotiva que ele iria atingir (e que é o presente,
não é?
decerto contribuiu para o seu triunfo
internacional desde a conquista,
inesperada, do Leão de Ouro em
Veneza). Vem esta carga (e a frase
citada acima) de uma figura que se

É o futuro,
torna quase uma protagonista ausente
do filme e em particular do seu
desfecho, a irmã mais velha de Nan:

também.
Barbara Goldin.
No muito célebre e autobiográfico
álbum de fotos “The Ballad of Sexual
Dependency”, um dos expoentes
da fotografia americana dos anos
80, Nan já havia evocado o suicídio
da irmã mas sem a frontalidade
e o cuidado que se verifica neste
filme. Poitras vai lidar em “Toda a
Beleza e a Carnificina” com a crise
da sida, a crise das overdoses, a crise
de caráter do mundo da arte... Mas
é na forma como a cineasta gere
os tempos e as emoções de outra
‘crise’ — a das dependências afetivas
— que ela prova, de facto, ser uma
documentarista de nível. Nan lamenta
amargamente o desaparecimento da
irmã, jovem artista que não chegou
TEATRO
SÃO JOÃO As Bruxas de Salém
a eclodir, incompreendida pelos
pais e pelo seu tempo, erradamente
16 MAR
—2 ABR de Arthur Miller
internada num sanatório. Em abril de
1964, não aguenta a pressão e lança-
produção
Teatro Nacional São João
M/12 anos
Nuno Cardoso / encenação
ESTREIA

se para debaixo de um comboio nos


arrabaldes de Washington. Tinha 18
TEATRO
A Última Gravação
Por aqui passa afinal em surdina anos. Nan já tinha completado 10.
toda uma história de subculturas A família tenta esconder o drama CARLOS
ALBERTO
da América destes últimos 50 anos,
e em particular uma história de
à criança. Mas Nan percebe tudo
o que acontece à irmã. E se a mais 13—23 ABR de Krapp
de Samuel Beckett
Nova Iorque — cristalizada, como velha morre, a mais nova renasce, coprodução
Centro Cultural de Belém
ponto de referência, nesse fabuloso revoltando-se contra o modelo da Teatro Nacional São João
“Variety” (1983), filme de Bette
Gordon em que Nan teve um papel
classe média, contra a família — até
que Nan deixa Washington e parte à
M/12 anos

Nuno Carinhas / encenação


ESTREIA

secundário e simbólico. Mas também conquista de Nova Iorque. Descobrirá


encontramos na montagem de Poitras depois que a vida e o trabalho até
o combate contra a sida da Act Up
nos anos 80. E vários amigos de Nan
podem ser a mesma coisa — e ser
uma arte necessária para aquela
TEATRO
SÃO JOÃO Longa Jornada
já desaparecidos, Cookie ou David
Armstrong. O filme folheia-se por
geração, naquele tempo. “Em vez de
morrer, comecei a tirar fotos”, contou
20 ABR
—7 MAI Para a Noite
vezes como um álbum de memórias.
“Nan falou-me muito desse aspeto:
um dia Nan noutro contexto. Barbara
é o fantasma, o continente negro
coprodução
Ensemble – Sociedade
de Actores
de Eugene O’Neill
de como o mundo teria sido um lugar
muito melhor para todos nós se os
de “Toda a Beleza e a Carnificina”.
Ficamos com a sensação de que todo
Teatro Nacional São João
M/14 anos
Ricardo Pais / encenação
ESTREIA

amigos dela tivessem sobrevivido.” o trabalho de Nan Goldin, no fundo,


E há qualquer coisa de épico lhe é dedicado. b
MOSTEIRO
MUSIC4L
Filipe Pinto-Ribeiro (piano)
nesse gesto, prossegue a cineasta, Esther Hoppe (violino)

“porque um retrato de Nan torna- DE SÃO Christian Poltéra (violoncelo)

BENTO DA
MENTE
prelúdio científico
se espontaneamente numa crítica Vítor Cardoso

abrangente da sociedade.”
VITÓRIA obras de

TODA A BELEZA 27 ABR Ciclo de concertos MOZART


“AS COISAS ERRADAS SÃO E A CARNIFICINA M/6 anos
com prelúdios JOAQUÍN TURINA
MANTIDAS SECRETAS” De Laura Poitras científicos DMITRI SCHOSTAKOVICH
É uma frase de “Toda a Beleza e a Com Nan Goldin, David Velasco,
Carnificina”, vem dos arquivos, tal Megan Kapler (EUA)
como o título desta obra. “As coisas Documentário M/12
O
nze anos passaram desde que o
escritor angolano Luandino Vieira
publicou “50 Poemas”, de Mário
António (Nóssomos, 2012). Com esse
gesto, aquele que é o maior vulto da
literatura angolana, além de herói
da resistência que sofreu no Tarrafal
a repressão colonial, reconciliou-se
com quem esteve do outro lado da
barricada. Criou uma ponte por
onde podem passar todos os que
contribuíram para a formação da
literatura e da cultura angolanas.
Um gesto exemplar que passou O ‘acervo de prisão’

NUNO GONÇALVES
despercebido mas que vale mais do de Luandino Vieira
que anos de discursos, comissões e está, a partir de
encontros inúteis sobre a chamada agora, disponível
lusofonia. Um gesto que é ainda em arquivo digital
mais exemplar em relação às pola-
rizações políticas que atravessam,
hoje, a sociedade angolana.

À volta da
Para compreender o significado de
tal gesto será preciso recuar no tem-
po. É que um dos aspetos que mais
impressiona na história da literatura
angolana foi lançado por Mário An-
tónio (Maquela do Zombo, 1934-Lis-

crioulidade
boa, 1989). Refiro-me à valorização
da segunda metade do século XIX,
enquanto momento decisivo na for-
mação da literatura angolana. Atra-
vés dessa valorização, será possível
reconstituir não só ideias precoces
de angolanidade, de autonomia e de
independência, de antirracismo e de O que terá Luandino Vieira pretendido dizer com a publicação
denúncia das novas formas de escra-
vatura ou trabalho forçado. dos “50 Poemas”, de Mário António? Que dois escritores
Todos esses temas foram explorados
por Mário António num pequeno livro
em lados opostos da barricada se podem reconciliar
de 1961. Infelizmente, em Portugal, TEXTO DIOGO RAMADA CURTO HISTORIADOR
as discussões recentes sobre racismo
são mais tributárias do imperialismo
de uma razão universal, difundida a Santos ou Zetho Cunha Gonçalves. depurada e contenção poética. Em um cânone experimental. Conten-
partir dos grandes centros universi- Sem querer ser exaustivo, sei bem todo o trabalho já empreendido, ção, concisão, equilíbrio, rigor e
tários norte-americanos, do que da que a literatura angolana merece ser rigoroso e discreto, sente-se a mão aprofundamento são as palavras que
atenção prestada aos vários modos de analisada a partir de outros ângulos, de Luandino. Em cada livro da Nós- melhor definem o projeto editorial
resistência assumidos pela literatura pois é sustentada por muitos outros somos parece existir uma oficina de que está em curso. Para cada autor,
angolana desde o século XIX. escritores: Pepetela, Ruy Duarte de escrita feita de muitos cruzamentos. um estudo, uma bibliografia. Vida e
Contudo, o problema específico da Carvalho, Uanhenga Xitu, Ana Paula Luandino, tanto nos seus contos obra, com os principais factos. Sem
literatura angolana e da sua história, Tavares, Agualusa, José Luís Men- como nos “Papéis da Prisão: Apon- espalhafato nem traço de interven-
que pretendo tratar, é mais recente. donça, Ondjaki e outros. tamentos, Diários, Correspondência cionismos comprometidos com a
Centra-se na poesia, tomando por A editora Nóssomos, com os seus (1962-1971)” (Caminho, 2015; acer- ocasião, à mistura com os egos dos
base um dos autores publicados pela livros impressos em papel de boa vo digital: luandino.ces.uc.pt), dera promotores, tão-pouco existem ce-
editora Nóssomos: Mário António. gramagem, muitos deles com ca- o mote para essa experimentação. dências a foguetórios mediáticos.
Deixo de lado João-Maria Vilano- pas e ilustrações com desenhos e Mas agora, em pequena escala, com
va, Arnaldo Santos e outros poetas aguarelas de Luandino Vieira, abriu livros de poesia e prosa que não vão O CASO DE MÁRIO ANTÓNIO
publicados pela mesma editora, novos horizontes. Os livros já pu- além das 80 páginas, será possível A respeito de Mário António Fer-
António Jacinto, Aires de Almeida blicados são um exemplo de criação apreciar melhor a construção de nandes de Oliveira, Francisco Soares

E 48
MUSEU DO ORIENTE
ABRIL
www.foriente.pt
chamou a atenção para o processo de será possível ver nesse apelo, ao que
mudança em curso na literatura an- é híbrido ou mestiço, uma simples INAUGURAÇÃO 13 ABRIL | ATÉ 10 SETEMBRO
golana desde a década de 1980. Isto é,
“num meio cultural onde o realismo,
defesa do lusotropicalismo inspira-
do em Gilberto Freyre, que negava
NA SENDA DOS
o engajamento e o negritudinismo se a existência de racismo no império LEQUES ORIENTAIS
alcandoravam ao estatuto de cânone português. É que foi frente a um tal
literário” começaram a ganhar entendimento da crioulidade que ATÉ 21 MAIO | GRATUITO

EXPOSIÇÕES
relevo novas poéticas da crioulidade Alfredo Margarido acabou por tratar UMA BARREIRA
e da angolanidade. Mário António
assumiu o estatuto de precursor no
Mário António como um traidor,
vendido ao colaboracionismo com
CONTRA O PACÍFICO
FOTOGRAFIAS DE ALICE F. MARTINS
confronto com o registo realista. A Adriano Moreira e emparelhando
sua crioulidade, desde a década de com Geraldo Bessa Vítor. ATÉ 28 MAIO
1950, abriu as portas à lírica publica-
da em Angola nos anos 80.
O modo como Margarido se referiu
a Mário António, descartando-o da
HISTÓRIAS
Dessas vozes líricas, sempre segundo genealogia da literatura angolana, DE UM IMPÉRIO
Soares, fizeram parte a poesia de tem paralelo com as denúncias de COLECÇÃO TÁVORA SEQUEIRA PINTO
Arlindo Barbeitos e de David Mestre, neocolonialismo imputadas pelo
seguida das experiências literárias de mesmo Margarido à lusofonia em RECITAL DE PIANO | 1 ABRIL | AUDITÓRIO
José Luís Mendonça, João Maimona tempos pós-coloniais. De um teor GRATUITO
e Lopito Feijóo. De notar, ainda, que
no bilinguismo — tanto de Maimona
completamente diferente parecem
ser as interpretações suscitadas pelo
RACHMANINOV
CLASSE DE PIANO DO CONSERVATÓRIO
como de Sousa Jamba, que escrevem estudo de Francisco Soares e pela NACIONAL
ESPECTÁCULOS

em português e, respetivamente, em cuidada edição de Luandino Vieira.


francês e inglês — também se en- O primeiro viu no elogio do criou- CONCERTO | 21 E 22 ABRIL | AUDITÓRIO
contram as marcas da mesma criou-
lidade. Nas citações de Rimbaud,
lismo e das mestiçagens de Mário
António uma matriz que, em lingua-
RODRIGO LEÃO –
Pessoa, Claudel, Saint-John Perse, gem pós-moderna e pós-colonial, se PIANO PARA PIANO
à mistura com tradições crioulas, afigura muito inspiradora das novas
RECITAL DE PIANO E VIOLINO | 27 ABRIL
bantu e até das quadras populares tendências estéticas. A este respeito, AUDITÓRIO | GRATUITO
foi, mais recentemente, sublinhado
SONATAS DE BEETHOVEN
portuguesas, construíram-se uni-
versalidades “sobre singularidades o sentido positivo da crioulidade a
© João Vasco

incontornáveis e mestiçadas”. propósito da música cabo-verdiana, E BRAHMS


Mário António já topara esses cruza- sem com isso deixar de denunciar as CICLO DE CONCERTOS ANTENA 2
mentos, por exemplo, num texto de formas mais arreigadas de racismo
1973. No “Diário de Notícias” escre- (Rui Cidra, “Funaná, Raça e Mascu-
OFICINAS | 3, 4 E 5 ABRIL
veu que a jovem geração de escrito- linidade: Uma Trajetória Colonial e
res angolanos, identificados como Pós-Colonial”, Outro Modo, 2021). FÉRIAS DE PÁSCOA
sendo de 1950, se inspirara tanto em Quanto a Luandino, o que terá ele PARA CRIANÇAS [4 AOS 13 ANOS]
Neruda como em Mallarmé, Rilke pretendido dizer com a publicação
ou Manuel Bandeira. Sem grandes dos “50 Poemas”, de Mário António, OFICINA | 12 E 19 ABRIL
SERVIÇO EDUCATIVO • VISITAS E OFICINAS

antecedentes em Angola, a não ser o com prefácio de Eugénio Lisboa? Para O QUE É O HAIKU?
de Tomás Vieira da Cruz (Quissange responder à última questão, não se M/16 ANOS
— Saudade Negra, 1932), a mesma esqueça que um dos contos de Mário
OFICINA | 15 ABRIL
geração só prestava homenagem à António, publicado numa antologia
“autenticidade” de Óscar Ribas. angolana em 1961, foi ilustrado com ENCADERNAÇÃO JAPONESA:
Proscrito por Alfredo Margarido, um linóleo desenhado por Luandino. KIKKO TOJI
mas recuperado por Luandino na Este dado, associado às insistentes M/16 ANOS
sua editora, bem como por Fran- referências que Luandino lhe fez nos
cisco Soares, que prefaciou a sua seus escritos do Tarrafal, sobretudo à OFICINA | 15, 16 E 29 ABRIL
obra poética na Imprensa Nacional, sua obra de historiador, pode ajudar CAIXAS EM CERÂMICA –
Mário António levanta celeuma,
sobretudo pela sua valorização do
a perceber como dois escritores, que
estiveram em lados opostos da barri-
MODELAÇÃO CRIATIVA
M/16 ANOS
crioulismo. Um dos seus livros inti- cada, se podem reconciliar.
tulou-se “Luanda — ‘Ilha’ Crioula” E, mesmo que a morte prematura VISITA | 16 ABRIL
(Agência Geral do Ultramar, 1968). de Mário António, em 1989, tenha EM CONVERSA COM AS PEÇAS
Outros apelos a essa condição mes- impossibilitado um reencontro ao BUDA SHAKYAMUNI
tiça encontram-se espalhados pelas vivo dessas duas figuras, a grandeza PARA CRIANÇAS [M/6 ANOS]
suas obras. Por exemplo, no poema de Luandino salta à vista. Para ele,
“Ninguém se ri como nós”, escreveu concluo, não se trata de negar a vio- OFICINA | 18 ABRIL
sobre o “Riso largo na noite/ Crioula lência, o racismo, a exploração e o KON’NICHIWA NIHON |
espuma de desforra e espanto!” E
continuou: “Adotámos a Cerveja/
extrativismo coloniais, tudo aspetos
sobre os quais escreveu. Mas, ape-
DESCOBRIR O JAPÃO
M/16 ANOS
Cafrealizámo-la” (Rosto de Europa, nas, de procurar estabelecer pontes
Lisboa, Editora Pax, 1968). com todos aqueles que — mesmo de
A defesa das crioulidades por parte forma mitigada, como sucedeu com
de Mário António nunca se mostrou Mário António — contribuíram para
contrária à busca de uma identidade a formação da literatura e da cultura
mecenas espectáculos seguradora oficial apoio bilheteira online
angolana. O problema é saber se angolanas. b

CONTACTOS Av. Brasília Doca de Alcântara (Norte) | Tel. 213 585 200 | info@foriente.pt
BILHETEIRA Tel. 213 585 244 | bilheteira@foriente.pt
Este é terceiro livro

N
a primeira frase deste belíssimo
do paulistano Rafael Gallo romance, Rômulo Castelo
(n. 1981), depois de “Réveillon pousa as mãos num piano de
e outros Dias” (contos, 2012)

Li
concerto. Os seus dedos deslizam
e “Rebentar” (romance, 2015)
sobre as teclas como “potentes
cavalos-marinhos de volta à água

vros
aonde pertencem”. O seu lugar é
ali, debruçado sobre o instrumento
que lhe ocupa a vida quase inteira,
arrancando da partitura o genial
fogo-de-artifício sonoro de Franz
Liszt, seu ídolo. Mas aquelas mãos
às vezes também se assemelham a
escorpiões, prontos a picar quem deles
Coordenação Luciana Leiderfarb se aproxima. A procura da beleza e o
lleiderfarb@expresso.impresa.pt veneno. A obsessão com a pauta —
esse código que transforma “milhares
de alvos circulares” no milagre que
é a música — e a indiferença, ou o
desprezo (mais tarde a raiva), por tudo
o que fica para lá dela. Eis as fronteiras
do mundo limitado em que se move o
protagonista de “Dor Fantasma”.
A poucas semanas de iniciar uma
tournée na Europa, que o consagrará
como um dos maiores intérpretes de
Liszt, Rômulo prepara em segredo uma
“grande surpresa”, o mais estrepitoso
dos encores: o “Rondeau Fantastique”
do compositor húngaro, durante muito
tempo considerado “intocável”, por
causa da absurda exigência técnica
e da dificuldade de respeitar uma
cadência de 120 batidas por minuto.
Ao longo dos anos, Rômulo trabalhou
obsessivamente a peça, numa “imensa
soma de vésperas”, até atingir a mais
absoluta perfeição, esse ideal que o pai
— respeitado maestro — lhe transmitiu
desde criança, junto com o culto da
disciplina. “Cada gesto, cada detalhe,
exatamente como deve ser; em tudo,
somente o que é certo. Nenhum
equívoco, nada a ser indultado. O zelo
exige rigor.”
No seu caso, a disciplina integra-se na
própria existência quotidiana. Todos
os dias, acorda às 6h40 e fecha-se
pouco depois na sua sala de estudo,
de onde só sai para dar aulas de piano
na universidade. Aquela sala é uma
espécie de bunker no meio da casa,

Zelo e rigor com uma enorme porta de metal,


oito metros quadrados de espaço
absolutamente estanque e isolamento
acústico total. “A sala de estudos:
caixa-forte entranhada na alvenaria do
lar, arquitetura da impenetrabilidade.”
É ali que ele fica a sós, sentado diante
O escritor brasileiro Rafael Gallo venceu o Prémio José do Steinway, em frente a uma réplica
do retrato de Liszt pintado por Henri
Saramago 2022 com um romance poderoso sobre a queda Lehmann, em 1839.
de um pianista intratável e obcecado com a perfeição Do lado de fora ficam os outros círculos
da vida, o vasto mundo das obrigações
WILIAN OLIVATO

TEXTO JOSÉ MÁRIO SILVA sociais que o afastam, sempre para


seu grande pesar, do teclado e do
tiquetaque do metrónomo. O primeiro
círculo é o do próprio lar, onde a

E 50
relação tensa com Marisa prenuncia Ou moralista. Mas Rafael Gallo
claramente um divórcio, desenlace escapa a esses alçapões com perícia
talvez inevitável para uma situação e donaire. Os contratempos vão-se
de paz podre, e a presença do filho sucedendo, o mundo moderno que
Franz, rapazinho com deficiência o pianista tanto despreza monta-lhe
mental, não acende nele o mínimo finalmente o cerco (sujeitando-o à
resquício de humanidade, ou de amor fúria das redes sociais e a um exemplo
paternal, só indiferença e uma espécie clássico da chamada ‘cultura de
de asco diante do que considera um cancelamento’), tudo se desmorona
castigo, uma negação de tudo o que até não sobrar pedra sobre pedra,
poderia ter idealizado para a sua mas Rômulo nunca deixa de ser
descendência. Outros círculos são Rômulo. Em dois ou três momentos
ocupados pelo pai, internado numa há indícios de que acabará por
casa de repouso; os outros professores vergar-se de alguma maneira, abdicar
da escola, de quem é incapaz de se da sua intransigência, sujeitar-se à
tornar amigo; uma ex-namorada, ordem das coisas que o esmagou,
com quem troca mensagens de vez mas Rafael Gallo tem a decência de o
em quando; e uma aluna com perfil poupar a isso, mesmo depois de ter
de stalker, ignorada olimpicamente. esticado a corda até ao limite. Com
Na verdade, as interações com estes o seu desfecho inesperado e cru, a
círculos só confirmam a ideia com que cena do concerto de homenagem,
ficamos desde as primeiras páginas. em que o pianista dá por si ao lado do
Rômulo Castelo não é apenas um filho, a estropiar a melodia do ‘Hino
homem esquivo, brusco, bruto, rígido, à Alegria’, de Beethoven, é a esse
autocentrado e intratável. Ele é um título de uma eficácia exemplar. Tal
ser antissocial, um homem que virou como, de resto, a extraordinariamente
costas ao mundo contemporâneo intensa cena final do livro, ao mesmo
e não faz o mínimo esforço para o tempo precisa e concisa.
entender. Quando alguém lhe mostra Lorena, a ex-namorada, aproxima-se
vídeos em sucessão num telemóvel, do cerne do que está aqui em causa
Rômulo fica a pensar no paradoxo de quando diz, a propósito de uma perda
uma avalanche de informação que pessoal: “O luto nunca chega a um
“invade, contínua, a vida das pessoas, fechamento. (...) É igual quando uma
mas se dissolve à mesma medida”. O ferida cicatriza; para mim, a cicatriz
acesso imediato a tudo não o fascina, ainda é uma forma de a ferida se
assusta-o. Receia uma realidade mostrar.” Todo o livro se constrói
que se apresenta simultaneamente em torno desta ideia. No que faz, no
como ilimitada e espectral, sem que diz, no que pensa, no que omite,
hierarquia nem separações claras Rômulo Castelo surge-nos como uma
entre o que é factual e o que é ilusório. ferida que se recusa a cicatrizar. Há
“Depois da chamada modernidade nisto um lado trágico, depressivo,
líquida, parecemos adentrar a pós- por vezes malsão. Mas também há
modernidade gasosa. Constante dignidade e uma certa coragem, além
evaporação. Nada permanece, nada de muita melancolia.
nos desloca de verdade; o fluxo O zelo e rigor que Rômulo coloca no
sequer causa impacto, não tem peso.” estudo de Liszt é o que Rafael Gallo
Homem que parece saído de outro aplica à estrutura cuidada da sua
tempo, o émulo de Liszt é incapaz de narrativa, à feitura muito polida da
lidar com o presente. A meio de uma sua prosa. Aliás, não é difícil imaginar
conversa, o professor de composição o romancista diante do computador,
diz-lhe: “É o século XXI, Rômulo, não os dedos sobre o teclado (mas este
é um abismo.” Ao que ele responde, só com teclas brancas), ouvindo
muito sério: “Às vezes tenho dúvidas a “pulsação inabalável” de um
se há mesmo muita diferença.” imaginário metrónomo — esse objeto
Ainda cedo na narrativa, por volta que “fabrica seu próprio tempo para
da página 70, acontece a disrupção, além das horas”. b
a cesura. Num acidente estúpido, o
pianista é atropelado por uma moto e
perde a mão direita. Todos os sonhos
de grandeza se esfumam e com eles
os alicerces que sustinham Rômulo. QQQQ
Três quartos do romance são então DOR
dedicados à análise, extremamente FANTASMA
minuciosa, da forma como o Rafael Gallo
protagonista reage a esta perda. Porto Editora,
Havia, claro, o risco de o livro cair nas 2023,
armadilhas de um retrato psicológico 278 págs., €18,85
demasiado exaustivo. Ou previsível. Romance
E ainda...
Estaline tinha uma
biblioteca com
milhares de títulos,
muitos deles anotados

QQQQQ LÚCIALIMA
TODA A TERRA Maria Velho da Costa
Ruy Belo Assírio & Alvim, 2023,
Assírio & Alvim, 2023, 240 págs., €16,65 436 págs., €18,85
Poesia
GETTY IMAGES
Romance de 1983, a fazer agora 40
anos de publicação, é um livro “onde
“Para nascer, pouca terra; para morrer, ninguém se encontra”, vencedor
toda a terra”, diz a epígrafe tirada de do Prémio D. Dinis da Fundação da
Vieira; mas se há nesta colectânea de Casa de Mateus. Nesta reedição

Afinal, havia um leitor 1976, penúltimo livro de Ruy Belo, uma


dimensão espacial (a Praia da Conso-
lação, seu refúgio, a cidade de Ma-
conserva a capa original, com a obra
que Paula Rego ofereceu à autora.

F
ora da hagiografia oficial políticos (conhece o teu inimigo...). drid, onde dava aulas na Universidade
comunista, Estaline foi visto Cerca de 400 livros contêm Complutense), o motivo fundamental é ENSAIOS
durante muito tempo como anotações. Muitas consistem em a passagem do tempo. “Terra” significa Robert Musil
Relógio D’Água, 2023,
um homem intelectualmente meros sublinhados ou outros mundo, o estar-no-mundo, mas tam-
312 págs., €23,50
limitado, que conquistou o poder sinais que chamam a atenção para bém morte. Os poemas foram escritos
não através do seu carisma ou do determinadas passagens. Também por volta dos 40 anos, mas ninguém
seu brilho oratório mas do controlo são frequentes expressões breves diria, tantas são as referências à idade
do aparelho partidário. Vontade de aprovação ou desaprovação. e ao envelhecimento, tão constantes Com seleção, tradução e prefácio
firme, persistência, capacidade de Não há nenhuma grande surpresa a premonição (“vivi o tempo mínimo de António Sousa Ribeiro, estes “En-
trabalho, sim; nível intelectual, nem nada que permita duvidar da devido”), a antecipação do túmulo nos saios” surgiram entre 1911 e 1937 e
nem por isso. Esta imagem foi sinceridade ideológica do ditador, lençóis da cama, a ideia de fim como estão entre dezenas deste período.
desmentida por biografias como antes pelo contrário. Roberts “solução”, tão insistente o “ubi sunt”:
a de Simon Sebag Montefiore, e reconhece que ele não era um onde estão os mortos, os desapare-
o presente livro, escrito por um pensador original ou profundo, cidos, os emigrados, os afogados, as Top Livros Semana 11
De 13/3 a 19/3
especialista em história soviética, mas essencialmente alguém que vítimas da guerra, as imagens de infân- Ficção
cancela-a de vez. A biblioteca usava as ideias de outros. “Por isso cia, a exaltação do Verão? Em “Toda Semana
pessoal de Estaline mostra que lia tanto”, conclui. a Terra”, o “lastro que a consciência anterior

ele não só lia bastante como lia “A Biblioteca de Estaline”, além impõe ao pensamento” é, de um lado, o 1 1
Retrato de Uma Desconhecida
Daniel Silva
de uma forma eclética, embora de contar a história de uma quotidiano reduzido ao mais corriqueiro
conservadora. Roberts descreve-o coleção, fala do seu proprietário (lavar os dentes, sentar-se num café) 2 4
O Meu Pai É Meu
Eduardo Sá e Paulo Galindro
como “um intelectual dotado enquanto comentador, árbitro e, do outro, o discurso de grande fôlego
de inteligência emocional e de cultural e “editor-chefe da URSS” que vai do decassílabo ao versículo, 3 - Quando Me Tornei Teu Pai
Susannah Shane e Britta Teckentrup
sensibilidade” (“foi o poder da (no sentido de alguém que mexe em verso livre, sem pontuação, com
sua ligação emocional a crenças nos textos, algo que ele gostava anáforas, homofonias, assonâncias Os Meus Dias na Livraria Morisaki
4 -
Satoshi Yagisawa
firmemente consolidadas que lhe de fazer). Como qualquer leitor, (uma retórica tributária do barroco e do
A Breve Vida das Flores
permitiu sustentar décadas de um lia por prazer e proveito. No seu modernismo, como lembra o prefácio 5 5
Valérie Perrin
regime brutal”, explica). caso, de forma caracteristicamente de Luís Adriano Carlos). Ritmicamente As categorias consideradas para a elaboração deste top
Tendo levado uma vida irregular ativa e metódica. Se prova fosse esmagador, mesmo quando exasperan- foram: Literatura; Infantil e Juvenil, BD e Literatura Importada

até quase aos 40 anos, só após necessária de que os livros, por te, esse mecanismo lírico sustenta uma
Não ficção
o triunfo da revolução Estaline si sós, não tornam uma pessoa linha melódica e suscita um auto-en-
Semana
pôde finalmente dispor de um melhor ou pior... / LUÍS M. FARIA gendramento feito de reincidências e anterior
sítio para instalar uma coleção oposições. Isso é notório nos poemas Hábitos Atómicos
1 2
de livros e de meios para a sobre encontros ou desencontros James Clear
rechear. Mas aí desforrou-se. amorosos, dos quais se destaca o as- Poupe com a Pitada do Pai
2 1
Na sua dacha próxima de sombroso ‘Muriel’, poemas nos quais o Rui Marques
Moscovo, os volumes atingiram sujeito conhece pela primeira vez quem Por Onde Irá a História?
3 4
as duas dezenas de milhares. já perdeu ou recupera uma imagem que Miguel Monjardino
As preferências de Estaline iam nem sequer existe. E se são diversas as 4 -
O Dever de Deslumbrar
para a política e a História, mas Filipa Martins
personagens históricas convocadas, de
também lhe interessavam outros Garcilaso de la Vega a Salvador Allen- 5 -
A Cortina de Ferro
Anne Applebaum
temas, incluindo a diplomacia e de, o centro do livro é o ‘eu’ em perda,
os assuntos militares, e lia ficção, QQQQQ elegíaco, pré-póstumo, já sem deus e As categorias consideradas para a elaboração deste top
foram: Ciências; História e Política; Arte; Direito,
Economia e Informática; Turismo, Lazer e Autoajuda
em especial os clássicos, russos A BIBLIOTECA DE ESTALINE agora sem esperança, que ensaia “uma
e internacionais. Há secções Geoffrey Roberts forma de me despedir” e que, se quer Estes tops foram elaborados pela GfK Portugal, através
do estudo de um grupo estável de pontos de venda
autónomas dedicadas a autores Zigurate, 2023, trad. de Frederico ainda alguma coisa, logo acrescenta pertencentes a dois canais de distribuição: hipermercados/
supermercados e livrarias/outros. Esta monitorização
como Lenine, Marx e Engels, Pedreira, 379 págs., €23,90 que “quero só isso nem isso quero”. é feita semanalmente, após a recolha da informação
eletrónica (EPOS) do sell-out dos pontos de venda.
bem como a vários dos seus rivais Ensaio / PEDRO MEXIA A cobertura estimada do painel GfK de livros é de 85%.

E 52
O outro lado
dos livros
POR MANUEL
ALBERTO VALENTE

O mundo está perigoso (II)


Fiquei agora a saber que sou
um agente da extrema-direita

S
e algumas dúvidas tivesse sobre o poder da imprensa escrita, as reações
à minha crónica de há quinze dias — “O mundo está perigoso” —
dissipá-las-iam rapidamente. Lembrar-se-ão os leitores habituais
de que, a propósito das ‘correções’ introduzidas nas obras do escritor
britânico Roald Dahl, me pronunciava sobre o flagelo da cultura woke, que
toda a gente sabe ter nascido nas universidades norte-americanas. Sabe-o
certamente Salman Rushdie, que, como referi, qualificou tal propósito como
absurdo. (Na altura, não era ainda público que, na mesma onda, estavam a
ser censuradas — sim, censuradas, não tenhamos medo de dar o nome aos
bois — as obras juvenis de Enid Blyton “Os Cinco” e “Os Sete”, que fizeram a
delícia de milhões de adolescentes.)
Na citada crónica invocava as posições desassombradas sobre o assunto
assumidas por duas jovens escritoras portuguesas — a Raquel Patriarca e a
Ana Bárbara Pedrosa —, cujas posições políticas (sobretudo da segunda) são
amplamente conhecidas. E a Ana Bárbara, sem papas na língua, afirmava
mesmo esta coisa elementar: “A
censura não é mais fofa nem mais
branda por ser de esquerda.” Fiquei
agora a saber que eu (e, portanto,
elas também) sou um agente da
extrema-direita infiltrado nos meios
democráticos — atoarda que só
não é grave porque dá uma enorme
vontade de rir; embora comprove o
acerto do título que então escolhi.
E de onde vieram as tais
reações? Como não podia deixar de
ser, dos Estados Unidos. Primeiro
foi um professor universitário
lusodescendente, de seu nome
GETTY IMAGES

Viktor Mendes, a perguntar-me


se eu considerava censura o seu
combate de anos para que a palavra
chairman fosse substituída pela
A escritora inglesa Enid Blyton palavra chairperson. A língua
inglesa não é a minha especialidade
(pertenço a uma geração francófona), mas o pouco que sei permite-me
responder-lhe que não acho censura... acho apenas uma tolice.
Mas o tom subiu com a intervenção de um senhor chamado Pedro
Schacht, que não tenho o prazer de conhecer; mas fiquei a saber que vive
em Columbus (Ohio), que sem meias medidas e à velha maneira salazarista
(agora ao contrário) me chama no Facebook “papagaio da extrema-direita”
e que me acusa de nada saber sobre as universidades norte-americanas
nem sobre a agenda legislativa da dita extrema-direita na Florida e no
Ohio. Como ao longo da vida já me chamaram tudo (até agente do KGB),
estes ataques não me perturbam o sono. Só vêm confirmar que tenho razão
ao dizer que vivemos num mundo perigoso, onde pretensos militantes da
democracia fazem o jogo — eles, sim — da extrema-direita e depois, como é
habitual, viram o bico ao prego e acusam de o fazer quem hoje, como ontem,
defende o direito à liberdade de expressão e de pensamento. Para mim,
confesso, vêm de carrinho... b
Ci
ne
ma
Coordenação João Miguel Salvador
jmsalvador@expresso.impresa.pt

Longa-metragem de Alain
Ughetto recorre à técnica de
‘stop motion’, onde se dá vida a
bonecos articulados — movidos
e fotografados milímetro
a milímetro para depois darem
a ilusão do movimento

Bonecos cartão, deste modo nos instalando


num lugar confessional — afinal o
lugar de onde o filme brota. Mas o
autor, até pelo apelido identificado
de que aquele mundo é fabricado, a
narrativa sobre uma realidade dura
está constantemente salpicada de
detalhes de humor (a pergunta, à

com gente
— Ughetto —, não vai contar a sua avó, “o que é que comiam?” pode
história, mas a do avô, da avó, da coincidir com as mãos de Alain
família, das gentes e dos lugares de Ughetto a pintar um presuntinho
onde vieram. E mais do que contá- de madeira e a avó a responder que
la, construí-la. Num primeiro gesto era polenta com leite, deixando
de magia, vai à aldeia piemontesa nas entrelinhas que presunto, nem

dentro onde tudo começou — Ugheterra,


a terra dos Ughetto — e as escarpas
que olha, a terra que recolhe, os
casebres destruídos onde viviam os
aldeãos, camponeses de magra terra,
filmados com um olhar vindo do
pensar...; e quando os aldeãos estão a
construir uma casa, serram deveras
chapas de cartão; e o bosque, onde a
‘bruxa’ do lugar escarafuncha, é feito
de brócolos). Mas, no fundo, essa
narrativa é uma saga.
A saga de
Q
uem entra no cinema para ver céu, confundem-nos quanto à sua É uma saga que atravessa um século,
“Interdito a Cães e Italianos”, realidade, são lugares verdadeiros uma saga de homens que, em tempo
uma família de supõe-se saber ao que vai: ou modelos em estúdio? Porque de inverno e escassez de comida,
emigrantes num um filme de animação, fabricado
segundo a pacientíssima técnica
o narrador/autor tanto trouxe de
lá pedaços de carvão e castanhas
emigravam sazonalmente para
França onde eram limpa-chaminés,
admirável filme do stop motion, em que bonecos verdadeiras, como uma vaca trapeiros, homens do lixo, pegavam
articulados utilizando minúsculos evidentemente de brincar… Segundo no trabalho que houvesse (“são
de animação adereços, em cenários de brincar, gesto de magia: em meia dúzia de trabalhadores sem qualquer
são movidos e fotografados planos, arquiteta-se a marioneta da dignidade profissional, aguentam
TEXTO JORGE LEITÃO RAMOS
milímetro a milímetro para que avó Cesira, de súbito movente, com tudo” — lê a avó, num jornal) — e
depois, quando as imagens passam voz, gosto (“Que lindo lenço!”), até as crianças eram postas à jorna.
24 (ou 25) vezes por segundo, nos memória (“Naquela época, os Depois, começaram a trabalhar em
deem a ilusão do movimento. Por pobres não andavam desmazelados. grandes estaleiros de construção,
isso talvez se espantem com esse Não pediam esmola. Viviam como o Túnel do Simplon, antes
início em que há mãos que cortam, modestamente e contentavam-se”). da Guerra de 14/18 os levar para
QQQQ colam, perfuram, constroem E a história arranca, fundada na os campos de batalha. Logo
INTERDITO A CÃES E ITALIANOS enquanto uma voz, a enunciar na nossa vontade de acreditar que os chegou o fascismo e, nas aldeias,
De Alain Ughetto primeira pessoa, vai contando que bonecos podem ser gente vera e os “todos os patifes, por ambição e
Com as vozes de Alain Ughetto, passou a infância de lugar em lugar cartões pintados, casas, espoletada interesse, tornaram-se fascistas”
Ariane Ascaride, Stefano Paganini por causa da profissão paterna pelo diálogo entre o cineasta e a (pelo menos é o que conta a avó
(França/Itália/Suíça/Bélgica/Portugal) e que, para vencer a solidão, ia avó que ele construiu e animou. Cesira) e a urgência de passar para
Animação fazendo coisas com tesoura, cola e Em contínuo, marcada pela ideia o outro lado da fronteira se tornou

E 54
QQQ
REGRESSO A SEUL
De Davy Chou
Com Park Ji-min, Oh Kwang-rok, Guka Han
(França/Alemanha/Bélgica/Coreia do Sul)
Drama M/14

Não é apenas um filme muito bonito


sobre o desenraizamento, mas come-
ça por aí. As ferramentas de trabalho
de Davy Chou não são as ferramentas
da sociologia. Já o sabíamos desde
“Diamond Island”, auspiciosa estreia
na longa, rodada em Phnom Penh.
Este cineasta francês, filho de cam-
bojanos que fugiram da ditadura de
Pol Pot, lida com o desenraizamento
à sua maneira, procurando a melan-
colia. Neste sentido, não dispensa
uma raiz autobiográfica por interposta
personagem à procura da sua origem,
embora a geografia e o contexto
permanente. E, sempre claro, a sejam distintos da história do cineas-
trabalhar no duro, nas tarefas que os ta. A heroína do filme, Freddie (Park
franceses não queriam. E, sempre, Ji-min), é também ela francesa, mas
com a existência pontuada por de origem coreana. Foi dada para
mortos, crianças em que o médico adoção ainda bebé, um casal francês
não chegou a tempo, acidentes de trouxe-a para a Europa. Quando
trabalho, a vida. E filhos a nascer. o filme começa, Freddie acaba de
A frase ‘interdito a cães e italianos’ chegar sozinha ao seu país de origem.
vão encontrá-la, um dia, à porta de Tem uma indeterminada vontade
uma casa de pasto, em França — e é de encontrar os pais biológicos.
uma frase que fala por si. Leva no bolso a morada do centro
O filme conta a história de uma de adoção que a acolheu, vinte e tal
família, mas é, sobretudo, um gesto anos antes. Quer decifrar um passado
de ternura, uma homenagem sem que não conhece mas que a magoa
fanfarra nem cantochão, só gestos em silêncio. Por isso odeia aniversá-
brandos, sotto voce e, já que estamos rios. “Regresso a Seul” não sublinha o
em metáfora musical, a cappela. A drama, prefere ir medindo o pulso às
animação é exaltante, mas toda em sensações. Freddie vive de ecos. Este
simplicidade, conjugando a ilusão efeito é claro quando ela encontra o
de realidade e o jogo de brincar pai coreano. Ou quando se afunda nas
com os materiais e com os cordéis noites de Seul regadas a soju. Davy
da fantasia. É um milagre a força Chou não se queda na gravidade
das emoções que “Interdito a Cães do tema social, não vitimiza Freddie
e Italianos” consegue produzir sem nem julga o orgulho que ela usa como
que, por um instante que seja, nos defesa. Pelo contrário, oferece-lhe
deixem esquecer o artificialismo um destino sentimental digno de
do engenho, trabalho de artesão, romance, recheado de contradições
com financiamento e força de e reviravoltas, num leque temporal
trabalho de cinco países (França, de sete anos entre a primeira metade
Itália, Suíça, Bélgica e Portugal), em da década passada e a chegada da
que o nosso, através da Ocidental pandemia. Freddie hesita, tropeça,
Filmes, de Luís Correia, foi muito engana e é enganada, supera-se, até
minoritário. Natural, todavia, o aprender a “fazer desaparecer quem
gosto de ter participado na empresa: quiser com um estalar de dedos”. Vai
de Annecy a Tóquio, “Interdito lambendo as feridas, até ao desfecho.
a Cães e Italianos” tem ganho É uma personagem por inteiro. Gos-
prémios, é um dos grandes filmes de támos de passar duas horas com ela.
animação do ano. b / FRANCISCO FERREIRA
O
prenúncio do enigma é

Insónia antecedido nos diálogos


lançados nos primeiros
minutos do enredo. “Alguma vez
sonhaste que estavas a flutuar e, de
repente, começas a cair e acordas?”

do sonho
A pergunta vem de Violeta,
personagem interpretada por Bruna
Quintas, que se dirige ao pai, Samuel
Vargas (o ator Miguel Borges).
Em notório desconforto, este não
responde. Por baixo de um avental,
tenta fazer jus às palavras nele
inscritas — “Melhor Pai do Mundo”
Coordenação João Miguel Salvador Em “Projeto Delta”, a nova aposta de ficção — ao servir um pequeno-almoço
jmsalvador@expresso.impresa.pt transformado num sorriso.
científica da Opto, são os sonhos que mantêm Mas a ressentida relação entre os dois
Violeta acordada. Mas o que é a realidade? suga o ar da sala, encolhendo-a num
plano cada vez mais claustrofóbico.
TEXTO MATILDE ORTIGÃO DELGADO À medida que aperta, Samuel repete
estar sem tempo. Rapidamente
despede-se da filha e, num sopro,
profere a sua última palavra: “LIRA”.
Violeta acorda — afinal, tudo não
passou de um sonho. Para pequeno-
almoço, agora mais simples, pouco
sorridente e descolorido, coloca
numa taça leite e cereais, por esta
ordem. O pai já não estava em cena.
O pai já não estava em casa. Havia
sido encontrado no fundo de um
Bruna Quintas é a
precipício.
protagonista da nova
série da Opto e conta É um início que começa num fim de
ao Expresso como foi vida — ou tentativa. Samuel ainda
interpretar Violeta, está vivo, mas em coma no hospital.
uma jovem que batalha Destranca-se a pergunta em torno
contra uma forte da qual a ficção científica portuguesa
depressão que chega à Opto — o serviço de
streaming do Grupo Impresa (do qual
também fazem parte o Expresso e a
SIC) — vai girar. O pai terá mesmo
tentado tirar a própria vida ou algo
maior quis que assim parecesse?
Violeta vai tentar responder,
enquanto lida com as síndromes
depressivas que, além do foro
psíquico, se manifestam também na
sua fisicalidade, “muito encolhida”
e “fechada”. Assim a descreve a atriz
Bruna Quintas ao Expresso.
No olhar mórbido e cansado,
escondido atrás do cabelo que
despenteia, Violeta parece guardar o
fardo de estar sempre acompanhada
de si mesma. Os sintomas da sua
depressão habituaram-na a isso
mesmo: estar sozinha, fazendo-se
refém de um aparente desapego.
Desde a relação amarga com a
mãe e inexistente com a irmã à
relação distante com os amigos —
distância essa que terá de encurtar
ao reconhecer que sozinha não
OPTO

consegue encontrar, no fundo de um


poço de mistério, as respostas que
procura.
Recorda as palavras que o pai lhe
segredou no sonho: “Tudo aquilo que

E 56
galinheiro
eixos de relação mentais começam
Samuel ainda está a surgir: aquilo com que sonhou na
vivo, mas em coma noite da quase fatalidade não pode
ter sido pura coincidência. Quer
no hospital. rever as cassetes, mas alguém as

o
Destranca-se a levou.
Ao que aparenta, elas também
pergunta: o pai terá interessam à dupla de detetives
antagónicos que trabalham para
mesmo tentado aquilo que dizem chamar-se
tirar a própria vida ONIR (Observatório Nacional das
Instituições Radiofónicas). Composta
ou algo maior quis por Liliana (Mariana Monteiro),
que assim dedicada à missão, e Abel (José
Raposo), preocupado com a sua
parecesse? refeição seguinte, os dois investigam
não se sabe ao certo o quê.
“Acho que isso é especial: o
espectador descobrir ao mesmo
tempo que nós enquanto
personagens”, continua a dizer
Bruna Quintas, que avalia os
momentos de rodagem como uma
“carga emocional muito forte”,
embora a companhia dos seus
colegas de contracena — que além
de Igor Regalla incluem Ana Lopes
no papel de Helena e David Esteves
sou... que fui está naquele quarto.” como Bruno — tenha dado uma
Quando fala em quarto, “naquele leveza que acabava por transformar
quarto”, refere-se ao sótão que a filha tudo em “muita risada”. O quarteto,
volta agora a visitar. Tudo lhe parece viciado em consolas de jogos, larga
mais pequeno desde a última vez que a realidade virtual para, nas suas
lá esteve — afinal, a porta era-lhe bicicletas, se conduzir num universo
sempre fechada. Quem a acompanha “muito desafiante de compreender”,
é Daniel (Igor Regalla), um dos três segundo a atriz. Fala agora desta
amigos que conhece desde criança e nova dimensão de aposta para a
aquele que sempre se tentou descolar produção fictícia nacional, cuja
do cunho “distante”. narrativa é guiada por viagens ao
Entre caixotes, uma cama, pó e muita subconsciente.
tralha, os dois encontram várias Com auxílio dos comprimidos
cassetes VHS, que a protagonista receitados pela sua psicoterapeuta,
decide colocar num leitor. No ecrã Violeta começa a frequentar, um
de uma televisão antiga assistem tanto obsessivamente, o outro lado
a um filme caseiro onde, por rara do seu pano de consciência. Saltando
vez, Violeta sorri. As memórias, de de sonho em sonho, procura ter neles
tão nubladas pelas lágrimas que um controlo lúcido, que a ajude a
lhe pesam nas pálpebras, parecem dar significado ao que aconteceu ao
quase sonhadas. Mas rapidamente se pai, relacionando-o com a críptica
esvanecem com uma outra gravação palavra “LIRA”. Cada vez mais
que atropela. A imagem é agora a mergulhada nesse paralelo, enfrenta
daquele mesmo quarto. o dilema de não saber distinguir o
“Experiência 78, tentativa 120.” que é ou não real. Ao mesmo tempo,
Podia ser o número de vezes que, adquire outras habilidades psíquicas
em criança, a agora jovem em idade e acaba por saber mais do que aquilo
pré-adulta tentou recuperar a que achava querer. Há experiências
atenção do pai. Mas é, ao invés, a fala governamentais secretas e uma nova
desconexa de Samuel Vargas, entre dimensão chamada Éter... b
curtas sestas, acordares abruptos e
golpes com uma navalha na mão, que
lhe dava a garantia: “Isto é real.”

SONHO LÚCIDO PROJETO DELTA


Quando Violeta decide regressar às De Tiago Pimentel
visitas sistemáticas ao consultório de Com Bruna Quintas, Igor Regalla, Ana Lopes,
psicoterapia da dra. Cristina (Carla David Esteves, José Raposo, Mariana Monteiro
Andrino), onde relata as suas noites Opto, em streaming
de pouco sono mas muito sonho, (Temporada 1)
“Did You Know That Nilsson, antes de rogar: “open me
There’s a Tunnel Under up, tell me you like me/ fuck me to
Ocean Blvd” é o nono death, love me until I love myself”),
álbum de Lana Del Rey mas também sobre a vontade de
se libertar das expectativas que os
outros criaram de si ao longo da
vida (“I’m a princess, I’m divisive”,
assume, numa desbragada ‘A&W’).
É quando as canções parecem
começar a contagiar-se umas às
outras que nos perdemos num
labirinto de ideias, no qual a beleza
da palavra cantada não basta para
impedir o esmorecer da excitação
Coordenação Luís Guerra inicial. Claro que, pelo caminho,
lguerra@blitz.impresa.pt há momentos de tirar o fôlego,
como a deslumbrante parceria com
Jon Batiste em ‘Candy Necklace’,
a sensibilidade a meia luz de
‘Kintsugi’, a beleza clássica de ‘Paris,
Texas’ (sobre partir de uma relação
sem olhar para trás quando se sabe
que chegou a hora de ir) ou uma
apaixonadíssima ‘Margaret’, escrita
como presente para Jack Antonoff,
produtor dos seus discos desde
“Norman Fucking Rockwell!”.
Lana Del Rey assume que o processo
de criação de “Did You Know That
There’s a Tunnel Under Ocean Blvd”
foi bastante direto e espontâneo. O
que nele sobressai, acima de tudo,
é a sua admirável capacidade de
transformar aquilo que parecem

Labirinto interior
deambulações sentimentais em
canções com princípio, meio e
fim. O grande problema reside no
facto de já não conseguir valer-
se do fator surpresa para nos
agarrar, perdendo-se em conceitos
Cada vez mais
O
percurso musical de Lana como coprodutor e coautor de cinco explorados e repisados em discos
Del Rey afigura-se como um canções. Apoiado amplamente anteriores que não lhe permitem
voltada para dentro, dos mais curiosos, e menos na omnipresença do piano, que o criar algo de verdadeiramente
óbvios, da última década. Em pouco dota de uma consistência estética memorável. Ter estado muito
Lana Del Rey serve mais de dez anos, transformou a sua admirável, troca-nos as voltas presente nos últimos anos — quatro
um emaranhado de feraz paixão pelas canções em nove
álbuns, e se ainda muito no início
num ou outro momento, mas não
deixa de esbarrar na dificuldade
álbuns em quatro anos é obra —
contribui para uma saturação que,
canções que se lhe apontaram falta de genuinidade de afugentar o tédio que se vai certamente, soará a sacrilégio aos
por subverter a sonoridade mais infiltrando no decorrer dos seus ouvidos dos admiradores mais fiéis,
perdem em autofagia alternativa do disco de estreia com quase 80 minutos. mas a verdade é que essa constância
TEXTO MÁRIO RUI VIEIRA uma abordagem abertamente pop Percebemos que o que temos pela implica dificuldade na hora de
no segundo, “Born to Die”, editado frente é uma das experiências mais digerir dezenas de canções que
em 2012, de “Normal Fucking pessoais da artista quando, logo resvalam para melodias repetitivas e
Rockwell!” (2019) a esta parte tem a abrir, nos deparamos com ‘The acabam a triturar-se umas às outras.
sido enaltecida como uma das mais Grants’, uma sentida homenagem Talvez seja apenas a monotonia
expressivas e relevantes cantautoras à família, que junta espiritualidade da maturidade a instalar-se, mas
norte-americanas. Ainda com dois — e coros gospel a condizer — às a atitude desafiante que Lana
trabalhos relativamente frescos memórias que guardará daqueles expressava em trabalhos do passado
— “Chemtrails Over the Country que lhe são próximos quando parece ir dando lugar a uma certa
Club” e “Blue Banisters” saíram, desaparecerem da sua vida. Daí inaptidão de selecionar material
com um intervalo de poucos meses, em diante, entre observações que verdadeiramente valha por si —
em 2021 — Del Rey regressa com mundanas, encontramos uma não temos dúvidas de que, limando
“Did You Know That There’s a intensa reflexão sobre sentimentos algumas arestas e desbastando
QQQ Tunnel Under Ocean Blvd”, uma tão íntimos quanto a solidão e a falta certas superfluidades, “Did You
DID YOU KNOW THAT THERE’S longa, palavrosa e labiríntica obra, de autoestima (“When’s it gonna be Know That There’s a Tunnel Under
A TUNNEL UNDER OCEAN BLVD que começou a ser construída my turn?” questiona-se, na faixa- Ocean Blvd” se revelaria uma escuta
Lana Del Rey com a ajuda de Mike Hermosa, seu título, assumidamente inspirada bem mais prazerosa. b
Polydor/Universal ex-companheiro, agora creditado por ‘Don’t Forget Me’, de Harry mrvieira@blitz.impresa.pt

E 58
E ainda...

PAIXÃO SEGUNDO
FESTIVAL SÓNAR LISBOA SÃO MATEUS
Pavilhão Carlos Lopes e Estufa Fria, Lisboa, Coro e Orquestra Gulbenkian/
até domingo Martina Batič
sonarlisboa.pt Gulbenkian, Lisboa,
quarta e quinta, 20h

Criado em Barcelona em 1994, o A “Paixão segundo São Mateus”,


festival Sónar tem-se estabelecido de Bach, sob a batuta da maestrina
como uma referência global no que eslovena Martina Batič, diretora
toca à música eletrónica. Não só o musical do Coro da Radio France.
evento catalão atrai público de todo
o mundo como se foi expandindo, ao
longo dos anos, para outros países e
continentes (exemplo disso são as
JOHNNY VOLCANO

edições na Colômbia, Islândia ou Hong


Kong). Em 2022, ano zero do pós-
pandemia, o Sónar chegou a Portugal
e, na sua primeira edição deste lado da
fronteira, reuniu, em vários espaços,
espetáculos, exposições e debates.
Arca (que este ano estará no MEO MATT ELLIOTT
Kalorama, em Lisboa), Thundercat, Nina Auditório Charlot, Setúbal, hoje, 21h;
M.Ou.Co, Porto, amanhã, 21h
Kravitz e os nacionais Pongo, Moullinex
ou Branko foram alguns dos destaques. O cantor e compositor britânico
Unindo música, tecnologia e volta a Portugal para apresentar “The
criatividade, esta segunda edição End of Days”, álbum hoje editado
do Sónar Lisboa serve, também, de e no qual, além da voz e guitarra
celebração dos 30 anos do evento habituais, se junta o saxofone.
“pai”, o Sónar catalão. Este ano
simplifica-se a nível de espaços,
com todos os concertos e DJ sets MÚSICA PARA
concentrados em apenas dois locais:
A SEXTA-FEIRA SANTA
Orquestra Sinfónica
o Pavilhão Carlos Lopes e a Estufa
e Coro Casa da Música
Fria, ambos no Parque Eduardo VII.
Casa da Música, Porto, hoje, 21h30
Entre “sons emergentes e artistas
consagrados”, o festival apresenta Mozart e Wagner num programa
uma programação diurna (o “Sónar by dirigido por Stefan Blunier, com
Day”) e uma noturna (“Sónar by Night”), Kateryna Kasper (soprano) e
distribuídas por quatro palcos. Hoje, Christian Miedl (barítono).
a música começa às 21h30 e tem nos
ingleses James Holden (23h) e Max
Cooper (24h), no projeto francês I
Hate Models (3h) e na dupla Skream
B2B Mala (3h) alguns dos chamarizes.
Amanhã, as portas abrem às 14h, com o
destaque a recair na sul-coreana Peggy
Gou (20h), no português DJ Nigga Fox
(18h) ou em Sherelle x KodeX (19h),
colaboração da jovem artista britânica
dEUS
Coliseu de Lisboa, domingo, 21h
com um dos maiores vultos do dubstep.
Também no sábado, há concertos Data única em Portugal para a banda
de WhoMadeWho (00h; na foto) e belga, frequentadora habitual de
Throes + The Shine (5h). No domingo, terras nacionais. O grupo de Tom
a segunda edição portuguesa do Barman, fundado no início dos anos
Sónar chega ao fim com o australiano 90, vem apresentar o novo álbum,
Chet Faker, em DJ set (20h30), e os “How To Replace It”, um caso de —
portugueses Sensible Soccers (19h25), nas palavras de Lia Pereira nestas
Yen Sung (17h) e Rui Vargas B2B páginas — “sensualidade sem prazo
Gusta-vo (19h30). / LIA PEREIRA de validade”.
Coordenação Cristina Margato
cmargato@expresso.impresa.pt

D.R.
A cena é ocupada por uma cabine de som, na qual uma narradora vai dizendo o fio da ação, e por uma zona de projeções

A desconstrução de Orlando
Refazendo
E
m 1989, uma jovem Katie vindo a desenvolver e que é, também, europeia, constata: “Ele era uma
Mitchell via o seu primeiro um dos traços distintivos da sua mulher.” Atravessa, assim, os séculos
a personagem espetáculo na Schaubühne, em produção. seguintes, como mulher, e como
Berlim. Era “Orlando”, em alemão, “Orlando — Uma Biografia” foi alguém que navega, calmamente, as
de Virginia na versão de Robert Wilson (em publicado em 1928, e baseia-se, águas das identidades de género, e os
Woolf entre colaboração com Darryl Pinckney); grandemente, na figura e na vida meandros das preferências sexuais.
a atriz era Jutta Lampe. Para a de Vita Sackville-West (1892-1962). Orlando, depois de ser mulher, não
a representação encenadora britânica, e apesar de, Virginia Woolf e Vita Sackville-West acumula apenas a experiência da
confessadamente, não ter a certeza tiveram uma longa amizade, e uma masculinidade; vai poder existir
ao vivo, o cinema de entender o que se passava, história de amor, e “Orlando” é uma numa fluidez existencial que traz a
e o vídeo, Katie foi, ainda nas suas palavras, um
“mergulho fantástico na prática
gigantesca dedicatória de Virginia a
Vita, cheia de elementos biográficos,
figura, sem sobressaltos, até ao tempo
contemporâneo.
Mitchell propõe teatral europeia” (1); entenda-se, minuciosamente trabalhados e O espetáculo (2019) tem adaptação
“europeia” quer dizer, “da Europa transformados, nomeadamente por da escritora Alice Birch, colaboradora
uma reconstrução continental”. Alguns anos mais uma extraordinária ironia, por um frequente de Katie Mitchell. A cena
do romance original tarde, depois de muito trabalho
no Reino Unido, e, cada vez mais,
sentido de humor muito subtil, e por
um investimento poético imenso.
é ocupada, essencialmente, por três
zonas: uma cabine de som, na qual
TEXTO JOÃO CARNEIRO “na Europa”, Katie Mitchell tem Sendo uma biografia imaginária uma narradora vai dizendo o fio da
mais um convite para encenar concebida a partir de traços reais, ação; uma zona de projeções, onde
na Schaubühne, pela sétima vez e de ideias extraordinariamente se veem cenas filmadas em exterior e
na Companhia. Quando o nome desenvolvidas e articuladas na cenas que são compostas em tempo
“Orlando” foi pronunciado, parecia narrativa, “Orlando” é ainda real, no palco; e uma zona na qual as
que se estava a cumprir uma espécie uma obra notável por uma das cenas referidas atrás são elaboradas.
de percurso, que tinha realizado características fundamentais da O resultado é uma narrativa
uma espécie de “full circle”. Ali personagem central. Nascido na algo fragmentada, que compõe a
estava ela, entre gente amiga e Inglaterra do século XVI, o jovem totalidade a partir de momentos
estimada, a encenar um dos seus Orlando é um nobre irrepreensível escolhidos da obra original, e que dá
textos preferidos de Virginia Woolf em todos os seus traços, de entre a ver quer a ficção quer, em grande
(1882-1941). Já antes, Katie Mitchell os quais os da beleza física não são medida, a construção dessa ficção. Se
tinha criado um espetáculo a partir secundários. Aos 30 anos, e depois em “Orlando”, de Woolf, a identidade
de um romance de Virginia Woolf, de uma história de amor com uma das personagens e as identidades de
“As Ondas”. Chamava-se “Waves”, princesa russa que deixa o belíssimo género e sexuais são uma complexa
e estreou no National Theatre, em nobre nos abismos do desgosto e construção, em “Orlando”, o
Londres, em 2006. Como agora, era da desilusão, Orlando parte para espetáculo, é justamente a ideia de
um espetáculo concebido a partir de Constantinopla, como embaixador construção que está em evidência
um texto narrativo; e como agora, da Coroa Britânica. Aí, e por altura — uma escolha possível entre
era um espetáculo em que a relação de uma revolução que expulsa os muitas outras, e reveladora de uma
ORLANDO entre representação ao vivo, cinema cristãos e estrangeiros da capital sensibilidade contemporânea, naquilo
De Virginia Woolf e vídeo era o cerne da estrutura turca, Orlando cai num profundo que diz respeito à desmontagem de
São Luiz Teatro Municipal, Lisboa, 6 e 7 dramatúrgica. “Waves” foi o primeiro sono de dias; quando acorda, alguma figuras, imagens, conceitos e obras
de abril. Espetáculo em língua alemã, grande passo da encenadora neste coisa mudou. Naquilo que é uma que cruzam as nossas existências e
com legendas em português tipo de trabalho que, até hoje, tem das grandes frases da literatura discursos. b

E 60
Porque se move
Fazer circular a produção artística contemporânea por onde ela
é raramente vista é uma excelente vocação para uma coleção nacional
TEXTO CELSO MARTINS

A
existência de uma coleção agravou. Seja como for, essa situação porém, a qualidade substantiva da
de arte contemporânea acabou por incentivar, desde o início diversidade. Incluindo, sobretudo,
estatal não é uma ideia tão da década, uma mais continuada artistas portugueses, mas também,
indisputável quanto parece. Há política de aquisição que envolveu alguns estrangeiros (como Jimmie
e@expresso.impresa.pt quem tenha do Estado uma visão curadores, mas também, artistas. A Durham ou A. R. Penck) e obras
patrimonialista, ou seja, a ideia retoma de políticas de aquisição com realizadas através dos mais diferentes
que a este cabe apenas conservar constância e crescimento paulatino meios (pintura, desenho, escultura,
o que existe; e há quem queira que é uma ideia feliz, sobretudo se isso fotografia, filme), a exposição é um
ele seja um agente interveniente. permitir que o Estado seja um agente razoável escaparate da produção
Mesmo no segundo grupo, há quem difusor de informação sobre a criação artística entre nós realizada nos
prefira que essa intervenção se mais recente onde ela é menos visível, últimos anos, com particular
faça através de instituições como sem perder de vista um horizonte incidência em artistas que iniciaram
os museus nacionais e não através de diversidade. É por isso que fazer a sua produção há pouco tempo. Este
de uma estrutura centralizada. A uma exposição com a CACE, num fator que favorece a frescura que
história das aquisições de obras de lugar como Vila Nova de Foz Côa, é reconhecemos em algumas destas
arte feitas pelo Estado desde os anos uma das vocações mais prementes obras é também o índice do risco de
70, com a sua total intermitência, da coleção. Por exemplo, quando uma coleção desta natureza valorizar
revela toda a dificuldade de chegar visitámos a exposição decorria ao desproporcionadamente a novidade
a um consenso sobre esta matéria. mesmo tempo uma visita guiada de em relação à constância. No caso de
Aquilo a que chamamos de coleção de estudantes do ensino secundário, “Dark Safari”, que traz comissariado
arte do Estado (CACE) é não apenas que provavelmente tiveram ali o de Sara & André e Manuel João Vieira,
o resultado de todos os impasses seu primeiro contacto com a arte a heterogeneidade suaviza certamente
políticos sobre esta matéria como contemporânea. Não sendo uma esta possibilidade. Há coisas muito
QQQQ um reflexo indireto das grandes exposição particularmente extensa boas e diferentes para ver em Foz Côa:
DARK SAFARI — OBRAS crises socioeconómicas do país (40 obras), “Dark Safari” (um nome sinalize-se a qualidade das obras de
DA COLEÇÃO DE ARTE (incapacidades financeiras, arrestos algo aleatório, mas que é fruto de Bruno Pacheco, Francisca Carvalho,
CONTEMPORÂNEA bancários, etc.). No nosso caso, o um dos momentos mais felizes da Gustavo Sumpta, Pedro A. H. Paixão,
DO ESTADO evento da pandemia acabou por montagem da exposição, o diálogo Sara Bichão ou Jimmie Durham.
Museu do Côa, Vila Nova de Foz Côa, iluminar dificuldades já existentes no entre uma obra de Kiluanji Kia Henda Ou a ideia bem conseguida de levar
até 30 de julho meio artístico, que o confinamento e outra de Jorge Queiroz) possui, obras para Foz Côa que, de alguma
forma, dialogassem com a identidade
do lugar em termos de território ou
património: pense-se nas referências
a animais presentes nas obras de
Nikias Skapinakis, Joaquim Rodrigo,
Kiluanji Kia Henda ou Hugo Canoilas;
ou nas relações com a temporalidade
ou com a história da arte que obras de
On Kawara, do coletivo Pizz Buin e de
Gabriel Abrantes estabelecem. Mas
há também alguns equívocos, como
a inclusão de um retrato de Beuys,
feito por Andy Warhol, que surge
desfasado neste contexto. Sem incluir
os nomes que, de uma forma geral,
dominaram a arte portuguesa das
últimas décadas, a exposição possui
a virtude de ser um bom mostruário
do nosso contexto num local que,
paradoxalmente, possui uma grande
circulação internacional e um
Um escaparate da produção evidente défice de acesso à produção
artística entre nós realizada nos cultural. Este tipo de deslocação dá
últimos anos, especialmente um sentido particularmente relevante
de artistas que iniciaram a sua (talvez o mais relevante) à existência
produção há pouco tempo de uma coleção desta natureza e deve
ser estrategicamente alimentado. b

E 61
FRACO CONSOLO

O romancista
e crítico literário
Pierre Jourde

GETTY IMAGES
PORQUÊ?

A
A FÉ RESPONDE A VÁRIAS ANGÚSTIAS, SENDO A MAIOR DELAS A ANGÚSTIA
DA FINITUDE; MAS MUITOS CRENTES NÃO FAZEM UMA “ESCOLHA” DELIBERADA,
NEM TÊM UMA CONSCIÊNCIA DAS “RAZÕES” DA SUA FÉ
experiência teológica é incomum. verdade foge a todas as afirmações de facto? E porque é que Deus joga às
Não digo “experiência” no sentido escondidas, que pai é esse que no esconde-esconde com os seus filhos
místico, mas no metafísico. Os nunca se manifesta?
cristãos que conheço, na sua grande As conclusões de Jourde são menos ambiciosas do que as suas premissas,
maioria, nasceram assim, foram e mostram-se até um pouco decepcionantes, como quando sugere
educados assim, acreditam “porque que os crentes mantenham Deus uma hipótese, não um absoluto. Se a
sim”, subscrevem mais ou menos posição de Pascal, que entendeu a fé como uma “aposta”, parece mais
uma ética, e beneficiam do acesso a estimulante, e se o crente não deve fazer da hipótese-Deus um absoluto
uma ordem e a um significado. para aqueles que não acreditam, a verdade é que a fé exige uma ideia de
Vem isto a propósito de um panfleto absoluto. Sem essa ideia, a fé é apenas uma opinião.
da colecção “Tracts”, da Gallimard, Mas o que mais me impressionou foi ter chegado a este texto na mesma
livrinhos de umas dezenas de páginas, agrafados. Inaugurada em tempos altura em que li alguns depoimentos das vítimas de abusos sexuais
de pandemia, a “Tracts” publica pequenas intervenções de escritores e por padres. Não se trata de julgar a fé pelas suas patologias. É mesmo
intelectuais sobre assuntos “de actualidade”, tendo editado, entre outros, o contrário disso. Jourde assegura que muitos crentes ignoram a
textos de Régis Debray, Barbara Stiegler, Erri De Luca, Olivier Assayas fundamentação teológica da sua fé, contentando-se com a tradição e a
ou Alain Badiou. O número 41 da colecção, assinado pelo romancista e identidade, mas que dizer daqueles que, tendo sofrido uma experiência
crítico literário Pierre Jourde, tem um título auto-explicativo: “Croire en humana traumática, assumem ainda assim a certeza teológica de que
Dieu, porquoi?”. Deus existe? Quem, como eles, terá uma fé tão difícil e meditada, tão
Jourde escreve do ponto de vista de um agnóstico indignado, não incompreensível e verdadeira? b
tecnicamente de um ateu. A sua tese é a seguinte: as pessoas tendem a ter pedromexia@gmail.com
fé por motivos socio-culturais, e porque a fé responde a várias angústias,
sendo a maior delas a angústia da finitude; mas muitos crentes não Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia
fazem uma “escolha” deliberada, nem têm uma consciência das “razões”
da sua fé (julgo que isto ignora, desde logo, o caso dos convertidos, mas
passemos à frente). O autor de “La Littérature sans estomac” (2002) é
justificadamente céptico quanto às supostas “provas da existência de
Deus”, das mais sofisticadas às mais sofísticas, como aquela que diz: se
Deus existe, tem de ser perfeito; a ideia de perfeição supõe a existência;
logo, Deus existe. Não excluindo que Deus seja uma “possibilidade”,
Jourde nega que seja uma “necessidade”; a ciência não eliminou a
hipótese-Deus, escreve, mas tornou-a “desnecessária”, uma hipótese
entre outras, entre as quais a hipótese do “acaso”.
O texto retoma igualmente algumas objecções teológicas à teologia,
à volta de questões como a teodiceia (porque é que um Deus bom
permite a existência do mal?) e o livre-arbítrio (se Deus conhece tudo
/ PEDRO
antecipadamente, em que medida são os humanos livres de decidir?). MEXIA
E comenta a forma defensiva como o cristianismo recuou para posições
como o “Deus absconditus” e a linguagem bíblica “simbólica”. Se
há uma verdade, uma verdade que se quer absoluta, como é que essa

E 62
vícios
“PESSOAS SEM VÍCIOS TÊM POUCAS VIRTUDES”

Para lá do Marão, folar


recheado é tradição

Nenhuma região do país é tão pródiga e generosa no recheio dos


folares de Páscoa como Trás-os-Montes. A tradição mantém-se
firme, e chega, pelas mãos de filhos da terra, a Lisboa e ao Porto
TEXTO TIAGO PAIS AUTOR DE “AS 50 MELHORES TASCAS DE LISBOA”
FOTOGRAFIAS TIAGO MIRANDA

E 63
À
primeira vista, um folar Nada que se compare, porém, aos re-
transmontano e uma bola de cheios faustosos praticados no Nor-
carnes podem parecer gé- deste continental.
meos. Gémeos separados pelo tempo “Em Bragança, o folar pode levar
em que se consomem — o primeiro inclusive entremeada, bifes de vi-
na Páscoa, a segunda o ano inteiro. tela e pernas de frango no interior”,
Mas, como alguém disse um dia num adianta Virgílio Gomes. É parte im-
momento de inspiração, uma coisa é portante da tradição da capital de
uma coisa, outra coisa é outra coisa. distrito de ter a mesa bem composta
Apesar das semelhanças, folar e bola para assinalar o fim do jejum da qua-
são produtos com uma diferença cru- resma. Além do folar, os brigantinos
cial. “A massa do folar é sempre en- consomem tradicionalmente caldo
riquecida com ovos, é um bolo fes- verde, leitão assado recheado com
tivo, enquanto a bola de carnes leva os miúdos, batata e ovo cozido, além
uma massa menos rica, mais parecida dos doces tradicionais, feitos sobre-
com a do pão, porque era, tradicio- tudo à base de ovos, ingrediente que
nalmente, uma forma de conservar simboliza a ressurreição, e que é, por
os produtos que a recheavam”, expli- essa razão, essencial para celebrar a
ca Virgílio Gomes, gastrónomo trans- Páscoa.
montano, logo duplamente versado Apesar de nos podermos referir ao
neste tema. folar transmontano ou folar de car-
Centremo-nos então, e porque o nes de uma forma genérica, o folar
calendário assim o exige, nos folares. de Bragança não é igual ao de Chaves,
Fazem-se sob essa designação em que por sua vez difere do de Valpaços,
todo o país, com divergências na re- que é distinto do de Vinhais. Em cada
ceita da massa, nas formas de a aro- local da região há ligeiras variações
matizar, com ervas, especiarias e be- na receita da massa, nos recheios —
bidas espirituosas, ou de apresentar: já que a tradição de fumeiro também
é mais comum o formato arredonda- varia entre eles — e, novamente, nos
do, mas, sobretudo no Alentejo, tam- formatos. “Uns são mais altos e re-
bém lhe dão, por vezes, o desenho de dondos, outros mais quadrados e o
animais de porte diverso, do borrego de Vinhais, por exemplo, é côncavo”,
ao lagarto. explica Lídia Brás, chefe do restau-
O sabor, porém, é quase sempre rante Stramuntana (Rua Soares dos
indistinguível: trata-se de um pão li- Reis, 903, Vila Nova de Gaia. Tel. 934
geiramente adocicado, encimado ou 879 228), onde leva à mesa as tradi-
recheado de ovos cozidos. Quase por- ções e os sabores da região onde nas-
que dizer do folar de Olhão, também ceu e cresceu.
conhecido por folar de folhas, com-
posto por camadas de massa inter-
caladas por um recheio de manteiga,
canela e açúcar, que é apenas ligeira-
mente adocicado será pecar, e muito, O folar não é doce,
por defeito.
Já em Trás-os-Montes, a história é salgado, porque
é outra. O folar não é doce, é salga-
do, porque vem recheado com uma
vem recheado
grande variedade de carnes de fu- com uma grande
meiro, uma tradição sem paralelo no
país inteiro, com uma inesperada ex-
variedade de
ceção — na aldeia da Fajãzinha, na carnes de fumeiro,
ilha das Flores, o folar há muito que
também inclui a linguiça dos fumei- uma tradição
ros locais. A razão é desconhecida,
mas podem ser resquícios das raízes
sem paralelo
deixadas por colonos transmontanos. no país inteiro

E 64
Para um bom folar é tão importante
ter a massa bem levedada que
em Trás-os-Montes as famílias
mais religiosas ainda fazem
uma reza com esse propósito,
tal e qual como quando se faz o pão

Uma das entradas que propõe — de propósito para o efeito. “Comecei RECEITAS DA PÁSCOA
todo o ano e não só na Páscoa — dá a fazer folar quando estava no Papa-
pelo curioso nome de folarico: é uma rico [restaurante no Porto], porque o
CABRITO ASSADO
versão em miniatura dos folares trans- chefe de pastelaria era transmontano, NO FORNO
montanos, recheada com presunto e/ mas agora faço a minha própria recei-
ou chouriço, que tradicionalmente se ta”, adianta. A assinatura do padei- Esta é uma das receitas típicas
dava às crianças. Já nesta altura, e por ro — e formador — são as invulgares da Páscoa e a chefe Lídia Brás,
também ter uma vertente de merce- duas tiras em forma de cruz no topo do Stramuntana, revela a melhor
aria, no Stramuntana vendem-se fo- do folar. forma de o preparar
lares inteiros e sobremesas de época, Em Lisboa, o folar transmonta-
entre elas a chamada bola mirande- no tem lugar de destaque na montra Ingredientes
sa, tradicional de Miranda do Douro, de uma histórica pastelaria da movi- Cabrito (1 kg por cada 2 pessoas)
que à semelhança do folar de Olhão, mentada Rua Morais Soares: a Nilde 2 folhas de louro
também é feito por camadas e reche- (Rua Morais Soares, 61, Lisboa. Tel. 4 dentes de alho
ado entre elas, neste caso com açú- 218 143 366), fundada em 1946, e há 1 colher de sopa rasa de colorau
car amarelo e canela. Convém enco- muito gerida por uma família da re- 1 copo cheio de vinho branco
mendar com antecedência, porque gião: Conceição, António e o filho 4 folhas de hortelã
a procura é grande. “Gaia tem mui- Márcio. E não tem esse destaque por 1 fio generoso de azeite
tos transmontanos e mesmo a malta estarmos na quadra pascal. “Temos 1 cebola média
que não é transmontana tem bastan- folar todo o ano, tal como o bolo- Sal e pimenta q.b.
te curiosidade nestes produtos”, re- -rei”, avisa Conceição, que é natural Piripíri q.b.
fere Lídia. de Mirandela. A receita é, por isso,
Em boa parte das casas transmon- uma mistura entre o folar de Miran- Preparação
tanas, a tradição já não é bem o que dela e Valpaços, com uma massa leve, Depois de um banho de água e
era. “Antigamente o afilhado levava o recheada de carnes de fumeiro di- limão, lave muito bem o cabrito e
ramo e o padrinho dava o folar. Hoje versas, também elas da região. Pode corte-o aos pedaços/metades.
é mais habitual dar dinheiro”, reco- ser comprado inteiro ou à fatia, para Num recipiente, tempere o cabrito
nhece a chefe. Mas ainda há quem a comer na hora, antes de terminar com o sal, a pimenta, o piripíri, o
siga: coze-se primeiro o tradicional com um dos bolos de fabrico próprio, colorau, a cebola em meia lua fina, o
cabrito no forno a lenha e quando o como as excelentes tigeladas. louro, a hortelã e os dentes de alho
calor esmorece, aproveita-se para Não muito longe, a loja O Melhor esmagados.
fazer os bolos e o folar. E é tão im- de Miranda (Largo Dona Estefânia, Regue com o vinho e deixe-o
portante ter a massa bem levedada 6A, Lisboa. Tel. 218 143 366) entrega o marinar pelo menos 4 horas.
que as famílias mais religiosas ainda que o nome promete: uma seleção de Coloque o cabrito numa assadeira,
fazem uma reza com esse propósito, bons produtos do chamado planal- regue-o com a marinada e um fio de
tal e qual como quando se faz o pão. to Mirandês. Do pão de Gimonde aos azeite.
Daniel Brandão, responsável pela queijos do Vale do Côa, das covilhetes Cubra a assadeira com papel de
padaria artesanal Crescente (Rua de Vila Real às batatas fritas Barro- alumínio e leve ao forno, aquecido a
Central, 1006, Fiães, Santa Maria da sã, é possível, sem grande dificulda- 180°C, a assar lentamente cerca de
Feira; Tel. 969 728 014), também des- de, compor um banquete de peque- 1,5 horas. Vá verificando o assado e
taca o levedar da massa como o pro- nos produtores transmontanos. “Não regando com o próprio molho. Meia
cesso fundamental para o sucesso procuramos o que é industrial, para hora antes de servir, retire o papel
da receita. “Por ser uma massa en- isso as pessoas vão ao supermerca- de alumínio, aumente o calor do
riquecida com muitas gorduras — do”, afirma Sílvia Pereira, a respon- forno e deixe o cabrito alourar.
azeite, manteiga, também há quem sável pela loja. Trinche e sirva decorando com um
use banha — fica mais pesada, o que Por estes dias, esse hipotético raminho de hortelã.
torna a fermentação mais lenta.” Na banquete jamais ficará completo sem Acompanhe com batatinha assada
sua padaria, tem feito de há um mês o devido folar. A solução está em des- no forno e arroz de miúdos.
a esta parte — sempre às sextas e sá- taque logo à entrada da loja: o folar de
bados — um folar doce de manteiga, Chaves premiado da Prazeres da Ter-
erva-doce e canela, e outro salgado a ra. “Recebemo-lo pré-cozido e ultra-
partir de uma receita inspirada no de congelado e terminamo-lo no nosso
Trás-os-Montes, mas com enchidos forno em várias fornadas semanais”,
da Beira Baixa e Beira Alta. Ambos de assegura Sílvia. A frescura está, por
fermentação natural, ou seja, leveda- isso, garantida. Não será preciso mui-
dos com uma massa mãe produzida to mais para uma Páscoa feliz. b

E 65
AQUI
NASCEU A
INSPIRAÇÃO
DE PICASSO
Por motivo do 50.º aniversário
da sua morte, repassamos o seu
percurso por várias cidades que
serviram de inspiração à sua obra e
onde deixou um importante legado,
contribuindo para que Espanha seja
um destino que transborda cultura

isitar Espanha significa viajar


no tempo e surpreender-se
com monumentos que vão
desde um imponente aque-
duto do antigo império ro-
mano até castelos medievais
ou a arquitetura mais van-
guardista. Séculos de mistura de culturas fizeram
de Espanha um país fascinante com uma das he-
ranças artísticas mais admiráveis do mundo.
Ficará encantado com as histórias que cada obra
de arte tem para contar e levará recordações para
sempre que poderá partilhar.
Algumas das mais belas obras de artistas como Ve-
lazquez, Picasso ou Dali estão aqui. Vale a pena Picasso-Museu Casa Natal de Picas-
descobrir tudo através de visitas guiadas, que pro- so. Ambos recebem continuamen-
curam encontrar a herança deixada pelos génios te interessantes exposições tempo-
nos museus como o Prado ou visitando debaixo rárias, e na sua Casa Natal terá o
das estrelas os palácios da Alhambra de Granada. privilégio de ver objetos pessoais
Experiências que vão muito além do monumental. do artista e da sua família como
Há tanto para contar e tão pouco espaço que hoje os desenhos preparatórios para a
vamos centrar-nos no percurso em Espanha de um obra “As senhoritas de Avignon”. Para completar
ícone da cultura espanhola, o artista Pablo Ruiz o seu roteiro picassiano pela cidade, pode tam-
Picasso. E faz sentido esta homenagem, pois este bém passar pela Igreja de Santiago, onde Picasso
ano comemoramos o 50.º aniversário da sua morte foi batizado.
e o seu percurso por estas cidades não só serviram Málaga é uma cidade cheia de lugares históricos, CORUNHA. OS INÍCIOS
de inspiração como deixou um importante legado. como a Alcazaba, uma das maiores fortalezas ára- DO ARTISTA
Desde o seu nascimento em Málaga até ao seu su- bes da Andaluzia, e o Castelo de Gibralfaro, que Vamos agora até ao norte de Espanha, à Galiza. A
cesso em Madrid ou os seus anos na Catalunha e oferece provavelmente a melhor vista de toda a viagem está justificada pois foi para lá que Picasso
na Galiza marcaram a sua trajetória pessoal e artís- cidade. Aos pés do castelo ficam o teatro romano e se mudou em 1891, pois o seu pai foi nomeado
tica. Um trajeto para descobrir os lugares que ins- um centro histórico perfeito para passear. Nas suas professor da escola de Belas Artes. Talvez tenha
piraram o mestre do cubismo e para compreender ruas vão surgindo lugares onde poderá sentar-se sido esta a chispa que acendeu o pavio porque o
a sua particular criatividade: “Levei quatro anos para tomar um aperitivo, como o Mercado de Las próprio Picasso entrou para a escola e começou a
para conseguir pintar como Rafael, mas levei a vida Atarazanas, e monumentos como a catedral, co- pintar os seus primeiros retratos. De facto, a pri-
toda para conseguir pintar como um menino”. nhecida como “La Manquita” devido à sua torre meira vez que o malaguenho expôs publicamen-
direita que está inacabada. Mas Málaga não só te as suas obras foi na Corunha, e muitos de seus
TUDO COMEÇOU EM MÁLAGA vive de seu passado, já que nos últimos anos se temas recorrentes (pombas, touros...) já apare-
No dia 25 de outubro de 1881 nasceu Pablo Ruiz inauguraram o Museu Carmen Thyssen, o único ciam. Aqui, na Galiza, poderá realizar um roteiro
Picasso em Málaga (Andaluzia), onde passou parte Centro Pompidou que existe fora de França – o seu pelos lugares em que o jovem Pablo viveu a vida
de sua infância. Hoje, a cidade de Málaga é um cubo colorido já se tornou um ícone – ou a ole- corunhesa (praia do Orzán, a Torre de Hércules é
dos melhores lugares para aproximar-se deste ar- ção do Museu Russo de São Petersburgo. E aqueles imprescindível a sua visita pois foi declarada Pa-
tista porque lá pode visitar tanto o Museu Picasso que procuram uma cultura mais underground não trimónio Mundial pela UNESCO e o Teatro Rosalía
Málaga (com obras como “Olga Khokhlova com podem perder o Centro de Arte Contemporânea, de Castro) e visitar a Casa-Museu Picasso. A bo-
mantilha”, “Natureza morta com crânio e três ou- nem a arte urbana das fachadas e dos locais do nita arquitetura da cidade, as praças e o passeio
riços” ou “Jacqueline sentada”) como a Fundação bairro alternativo do Soho. marítimo, aliado à gastronomia, fazem da cidade
CONTEÚDO PATROCINADO

um destino apetecível culturalmente e apetitoso


gastronomicamente.

E DE REPENTE... O PRADO
Foi precisamente em 1895 que Picasso pisou pela
primeira vez o Museu Nacional do Prado de Ma-
drid, um dos melhores museus do mundo, que sem
dúvida é visita obrigatória. A visita marcaria um
antes e um depois, pois foi neste museu onde ele
terá ficado impactado pelas obras de outros gran-
des artistas como Velázquez e El Greco. Nessa al-
tura, jamais suspeitaria que viria a ser nomeado
diretor honorário do museu em 1936. Mas se há
um lugar imprescindível na cidade de Madrid para
deixar-se surpreender por Picasso, essa é o Museu
Nacional Centro de Arte Rainha Sofia, onde po-
derá ver numerosas obras do artista. E de todas
elas, a mais emblemática, a que nos deixa de boca
aberta é, sem dúvida, o “Guernica”: um mural de
quase oito metros de comprimento que ele pintou mesmo disse ter experimentado as suas emoções
para dar testemunho do horror que foi a Guerra mais puras. É imprescindível a visita ao Centro Picas-
Civil Espanhola. Uma cena trágica em que muitos so, que reúne reproduções das obras que o artista
interpretam uma ode à esperança. criou em Horta e nas quais imortalizou o povoado.
Na capital de Espanha, respira-se cultura. No Pas- Num roteiro por Horta, poderá reconhecer alguns
seo del Arte é onde se concentram os principais dos monumentos que aparecem nos seus quadros,
museus com algumas das melhores coleções do como o convento de San Salvador, a praça de Missa
mundo, está rodeado por palácios e bonitos jardins e a casa de campo de Tafetans, por exemplo.
e para completar o passeio contemple as icónicas Esperamos que esta pequena introdução à passa-
fontes de Cibeles e Neptuno, os antigos Correios, o gem de Pablo Picasso por estas quatro importantes
Banco de Espanha, e apanhe o ar do Jardim Botâ- interpretação pessoal que ele fez de “As Meninas cidades de Espanha, onde para além de ter deixa-
nico e visite o Observatório Astronómico. de Velázquez”. do a sua marca, serviram de inspiração à obra des-
Barcelona é uma cidade aberta ao mundo, onde te génio, sirva como chamariz para uma próxima
BARCELONA E HORTA DE SANT convivem ruínas romanas e bairros medievais, visita, mas não se esqueça que há mais. 1500 mu-
JOAN, NA CATALUNHA como o famoso Bairro Gótico, com construções seus, quinze cidades Património da Humanidade,
No outono de 1895, Picasso entrou para a esco- modernas e vanguardistas. A obra de outro génio monumentos como a Sagrada Família ou a Mes-
la de Belas Artes de Barcelona (La Llotja), e mais espanhol deixou também um importante lega- quita de Córdoba, tradições e festas, assim como
adiante ocupou nesta cidade o seu primeiro es- do nas suas ruas, o modernista Gaudi, responsá- uma gastronomia única fazem parte do patrimó-
túdio e realizou a primeira exposição pessoal das vel também por ter influenciado o artista Pablo nio cultural que temos para mostrar ao mundo.
suas obras no mítico restaurante Els Quatre Gats. Picasso.
Hoje em dia, uma boa maneira de se reencon- A uns 200 quilómetros de Barcelona fica Horta de
trar com este artista é visitar o Museu Picasso de Sant Joan, um pequeno povoado do interior que MAIS INFORMAÇÕES
Barcelona e surpreender-se, por exemplo, com a Picasso retratou em numerosas ocasiões e onde ele WWW.SPAIN.INFO/PICASSO-2023
R ECE I TA
POR JOÃO RODRIGUES
(PROJECTO MATÉRIA)

PRODUTOS
& PRODUTORES
Feijoca
A feijoca, de nome cientí-
fico Phaseolus coccineus
— também conhecida
como feijão-da-espanha ou
feijão-de-sete-anos —, é uma
planta trepadeira da família
das leguminosas, assim como
o feijão, o grão-de-bico ou as
lentilhas. A planta, que pode
atingir os quatro metros de
altura, apresenta umas flores
vermelhas e umas semen-
tes grandes e comestíveis. É
originária da América Central
e foi posteriormente culti-
vada na América do Sul. Em
Portugal podemos encontrar
esta espécie de feijão branco
na região de Manteigas, onde é
conhecida precisamente como
feijoca de Manteigas, sendo
cultivada em altitude e regada
pelas águas do rio Zêzere. Dado
o seu sabor único e textura
aveludada, o município tem
incentivado e apoiado o apare-
cimento de novos produtores
locais e também o escoamento
TIAGO MIRANDA

do produto dentro e fora do co-


mércio local, contribuindo para
a melhoria da sua qualidade de
vida e para a dinamização da
economia local. A feijoca é um

Feijoca e berbigão ingrediente muito rico nutricio-


nalmente pelo seu elevado teor
de fibras e proteínas e baixo em
gorduras. Adapta-se a inúme-
Tempo de preparação 30 minutos | Tempo de confeção 1h20 ros pratos, tais como feijoadas,
guisados e saladas.

INGREDIENTES o feijão estar bastante tenro, mas escolher o miolo das cascas. Reservar
200 g de feijoca / 1/2 cebola / 2 dentes mantendo a sua forma. e filtrar o caldo resultante. Reservar o PROJECTO MATÉRIA
de alho / 1 folha de louro / Azeite / 50 g de Aquecer um tacho e colocar o azeite. caldo do Bulhão Pato. É um projeto sem fins lucrativos,
chouriço / 1 kg de berbigão grande / 3 dentes Quando este estiver quente, adicionar Picar muito bem a cebola e os dentes desenvolvido pelo chefe
de alho / 1 molho pequeno de coentros / 2 dl de o alho e deixar fritar sem ganhar de alho. Refogar num tacho até que João Rodrigues, que pretende
azeite / Vinho branco q.b. / 1 cebola pequena / promover os produtores
cor, colocar os berbigões e, logo de esteja translúcida e tenra, adicionar o
2 dentes de alho / Raspa de limão q.b. nacionais com boas práticas
seguida, refrescar com um pouco de feijão e o caldo do Bulhão Pato, deixar
agrícolas e produção animal
Demolhar a feijoca de um dia para o vinho branco. Terminar com coentros soltar um pouco do amido do feijão e
em respeito pela natureza
outro em água abundante. picados grosseiramente e tapar. temperar a gosto. e meio ambiente, enquanto
No dia seguinte, juntar todos os Assim que os berbigões estiverem Terminar com os berbigões e servir. elementos fundamentais
ingredientes numa panela e colocar abertos — atenção para não deixar Pode também terminar com coentros da cultura portuguesa.
bastante água fria, levar a cozer até cozinhar em demasia —, retirar e e raspa de limão. b Ler mais em projectomateria.pt

E 68
Parece incrível, mas é quanto
lhe custa ajudar crianças
com cancro no seu IRS.

Modelo 3 → Quadro 11 → Campo 1101

NIF 503 571 920


R ESTAU RAN T ES
POR FORTUNATO DA CÂMARA

Momentos sãos amigo a virem no topo, como o cacha-


ço e a carne das caras, umas passas, e
tudo misturado na hora, envolvido no
ACEPIPE
Come-se bem e está-se melhor. Produtos locais pão húmido e cremoso, com elegância
aliácea no tempero sem provocar ba-
480
e vida comunitária. Eis a receita da Terra Chã fos indesejados. Grande momento, o sakuras
“Cozido de carnes bravas” (€19), um Há encontros fortuitos que
desfile só ao fim de semana, em tacho de tão longínquos se per-
de barro apetrechado de: aba de no- dem pela distância, ou sim-
vilho, chambão de vaca, javali, pato, plesmente os esquecemos
touro bravo; e belos enchidos de fari- no tempo. Uma tempesta-
nheira, chouriço de touro e alheira de de levou três portugueses
até ao largo da ilha de
caça. Carnes tenras de sabor qualifi-
Tanegashima em 1543.
cado, e ainda couve-coração, cenoura, A desgraça involuntária
nabo, abóbora, batata-doce e um ex- arrastou um pequeno junco
celente arroz de morcela. Na “Fatiota chinês até terras japonesas,
de coelho” (€19) a carne chegou um mas foi redentora pois a
pouco seca (vem semidesossada), vi- partir daí nascia o teppo, o
eram uns saborosos legumes assados, velho arcabuz de carregar
houve, porém, um estranho interreg- pela boca que foi a primeira
arma de fogo daquelas
no após as entradas (algo falhou na
NUNO BOTELHO

paragens. Os ânimos locais


cozinha!?...) que fez a temperatura ficaram de tal modo acesos
dos pratos ser díspar. O “Bife de tou- que o Japão se reunificou à
ro com dois molhos” (€25) já vinha custa da arcabuzada por-
a perder calor, mas não sabor, carne tuguesa. Um naufrágio foi
de categoria, rubra e não sangrante, o ato diplomático que abriu

F
ala-se novamente em supermerca- minutinhos atrás. Recebemos lumi- sabor herbáceo de animal de pasto, as relações euro-nipónicas
dos. Não é pelas melhores razões, nosidade ao sermos levados estrada com batata frita às rodelas e molhos na história da Humanidade.
Em 1549, aportou em
infelizmente. Lembro uma tira- acima da Aldeia de Chãos até ficarmos de mostarda e à portuguesa. Alto ní-
Kagoshima o cristianismo
da cínica, que dizia: “Sem promoções, suspensos com a serra dos Candeeiros vel no “Ensopado de capado à Amiais de São Francisco Xavier, e
nem complicações.” O logro é que in- no horizonte... A mesa espera-nos no de Baixo” (€18), tudo quente e carne depois o saber fazer peixi-
fantilizaram o consumidor (e este dei- Terra Chã, mas a paisagem ainda nos excelente, tenríssima, subtileza de sa- nhos da horta na quaresma,
xou) com a eterna falsa promoção, ao vai embalar a alma. bor, uma esmagada de boas batatas, o pão... e o pão-de-ló, ou-
mesmo tempo que a mercearia da es- Umas cativantes boas-vindas, an- fatias de pão frito, e o toque de finesse tros doces de confeitos, e
quina foi sendo mordida lentamen- tes de entrarmos na sala ampla, só com de uma molheira com o suco dourado outras palavras (botão, ta-
te por um vampiro que lhe distribuiu olhos para a localidade que repousa do estufado, filtrado como ouro líqui- baco, carta). Os japoneses
fizeram as suas escolhas
marcas brancas até amanhecer nos bra- sobre o vale, em modo quadro vivo do para regar o prato.
desta amizade antiga. A fé
ços do seu super de sempre. E o filme de bucolismo encantado. O “Couvert” O serviço, à parte o buraco pós-en- cristã ficou como episódio
de terror que seria verem-se as negoci- (€3,60/pax) é variado: o bom pão de tradas, é sempre disponível e atento em passado, e lá trouxemos a
ações feéricas (cheias de truques opres- Rio Maior, azeitonas da terra curtidas modo descontraído. A carta de vinhos palavra catana do léxico ja-
sivos) a que os fornecedores são sujeitos localmente, belíssimo o paté de cabrito, é bem equipada e com preços para vá- ponês, que ao princípio não
para entregarem a mercadoria ao pre- escassas, mas ótimas, as lascas de quei- rias situações. Chega então o “Doce estávamos a perceber...
ço espremido, perdão... prometido! “O jo seco da Terra Chã, e ainda uma agra- cremoso de chícharo” (€4,80), sem A privacidade nipónica
também nos ficou na ex-
meu dinheiro, as minhas regras”, à boa dável cabeça de xara. De notar que sen- ovos, mas queimado tipo leite-creme,
pressão biombo, e à mesa
maneira de um thriller americano. do o valor per capita as porções eram e sente-se de novo a forma inteligente a mais bela homenagem: a
Para despoluir de joguinhos men- curtas para uma mesa de grupo. Muito de usar os produtos ao redor com amor perfeição da fritura numa
tais, em que lucro parece que não é bons os “Croquetes de Chiba” (€6/2 à tradição. Sabor, pouco doce, mas ele- bem executada tenpura e o
bem lucro, e se passa uma ideia de ser unids.) com a carne caprina estufada gante. No “Gelado de leite de cabra retilíneo e húmido kasutera,
um favor investir cá... Há grupos es- de tempero equilibrado e sabor elegan- com figo” (€5), o leite caprino, figura um pão-de-ló de exceção.
trangeiros e virem para cá com a von- te, trabalhada com bechamel ao estilo omnipresente na temática da comuni- Passaram 480 primaveras,
tade toda! Escapa-se em busca de ar croquetas espanholas, surgindo em es- dade, dá um sabor único, o fruto surgiu que se assinalam este ano.
No Japão estão agora a flo-
puro. São pouco mais de uma centena feras estaladiças, bem fritas e cremosas em geleia, a pontuar, as duas bolas do
rir as cerejeiras, as sakuras
de quilómetros que valem cada centí- no interior. Os “Tutanos de Vitela com sedoso gelado. de uma amizade que dura.
metro percorrido. Rio Maior está uns Cebola Caramelizada” (€8,20) eram Cá fora, apetece ficar sem tempo ou
quatro metades de dois ossos gran- limites no olhar. Apenas o silêncio dos
des apenas com sal e pimenta, antes momentos sãos, em que uma comuni-
de serem estalados no forno. A cebola dade e os seus produtos geram felici-
TERRA CHÃ cumpria em demasia a premissa, com dade circular. b
Centro Cultural de Chãos — Aldeia de Chãos, uma caramelização coleante nos den-
Rio Maior tes, sem contraditar a gordura natural Desde 1976, a crítica gastronómica
Telefone: 937 882 646 do âmago bovino. do Expresso é feita a partir de visitas
Encerra à segunda-feira (reserva recomendada) Bela “Açorda de bacalhau à laga- anónimas, sendo pagas pelo jornal
reiro” (€19), com as partes gulosas do todas as refeições e deslocações

E 70
VI N H OS
POR JOÃO PAULO MARTINS

GETTY IMAGES
Mudar e arriscar sim, mas... como?
Todos à procura, lá e cá

U
m dos vinhos que sugiro hoje, um belís- de seguida, eram passados em madeira nova, de esperar e, por força de melhor tecnologia,
simo tinto da região espanhola de Toro, ganhando um forte carácter boisé. Tínhamos os taninos macios tornaram os vinhos bebí-
levanta algumas questões curiosas que então um “caldo” onde se juntava muita ma- veis mais cedo.
merecem conversa. O perfil do vinho — denso, deira, muito álcool, muita cor, muita extração Neste retorno ao perfil mais clássico não
cheio, volumoso, escuro, alcoólico e com mui- e, também, muito cansaço de prova; ao segun- houve só virtudes e os vinhos ficaram todos
ta madeira — é um bom exemplar daquilo que do copo os vinhos já enjoavam. Andámos nisto muito parecidos, que é a situação atual. Como
em tempos se chamou o “estilo Parker”, sa- mais de 20 anos e por muito que alguns críticos aqui referi há alguns meses, na prova que fiz
bendo-se que ao crítico americano Robert Par- ingleses, desde sempre amantes dos vinhos de em Londres em novembro, foi evidente que
ker (agora retirado) se associavam tintos com Bordéus de perfil clássico, criticassem o guru entre vinhos de 30 ou €40 e outros de 100 ou
este calibre porque, dizia-se, era como Parker americano, a verdade é que os produtores bor- €120 não existe uma diferença evidente. É as-
gostava. Não era totalmente verdade, mas o daleses perceberam que aquela era a moda que sim cada vez mais difícil identificar perfis pró-
que aconteceu foi que algumas regiões viníco- os levaria ao sucesso. E levou mesmo, com os prios deste ou aquele château. Há os monstros
las que ele privilegiava em termos de prova — preços a atingirem níveis nunca vistos. sagrados, mas esses custam muitas centenas
Bordéus e Côtes-du-Rhône, mas também Ca- Foi também a época em que sugiram os de euros cada; no contingente geral percebe-
lifórnia — começaram nos anos 80 a modificar primeiros “vinhos de garagem”, feitos em -se que ainda não se conseguiu definir bem a
o seu estilo tradicional na esperança que uma quantidades microscópicas, que, por força das era pós-Parker. Cada passo, cada mudança tem
nota milagrosa (talvez um 99 ou, quem sabe, classificações Parker, se tornaram verdadeiros de ser muito bem pensada porque a “folha Ex-
um 100), pudesse trazer fama, glória e muito mitos. O que ficou mais famoso foi o tinto Le cel” não perdoa e, como é de milhões de euros/
vinho vendido a bom preço. Pin, em Pomerol, vendido ainda hoje a preço ano que estamos a falar, há que escolher bem o
Para se “parkerizar” um tinto era preciso de ourivesaria. Mas Parker retirou-se e muda- caminho. Voltando ao nosso Numanthia, não
deixar mais tempo as uvas tintas na vinha para ram os ventos. Os vinhos de Bordéus procu- parece que haja grande vontade de mudar: este
ganharem mais açúcar e ficarem com taninos raram então novos caminhos: menos extra- é o estilo, quem não gostar passe ao lado e faça
mais macios; isso ia implicar vinhos mais al- ção, menos cor, menos madeira, mais pureza outra escolha. Assim é que é, nuestros hermanos
coólicos, mais fáceis de beber em novos e que, de fruta; o álcool não baixou tanto como seria não vão em cantigas... b
(OS PREÇOS FORAM INDICADOS PELOS PRODUTORES)

Espumante Quinta do Boição Munda Phoenix tinto 2018 Numanthia tinto 2017
Reserva branco 2019 Região: Dão Região: Toro (Espanha)
Região: Bucelas Produtor: Fontes da Cunha Produtor: Bodega Numanthia
Produtor: Enoport Castas: Alfrocheiro, Baga, Jaen, Casta: Tinta de Toro
Casta: Arinto Tinta Roriz e Touriga Nacional PVP: €52,50 (El Corte Inglés)
Enologia: Nuno Faria Enologia: Joana Cunha Vinhedos em taça, de sequeiro,
PVP: €19,99 PVP: €45 (Distrib. — Direct Wine) com idades entre os 50 e 120 anos.
A quinta fica situada na região O vinho estagiou 2 anos em barricas, Estagiou 18 meses em barrica,
de Bucelas. O vinho estagiou 1 ano das quais 50% eram de madeira sendo 60% madeira nova. Apto a
em cave sobre borras antes do de primeira utilização. Apenas veganos.
dégorgement. Resultou um vinho se produziram 3000 garrafas. Dica: Tinto robusto, com muita
com 12% de álcool e do qual Dica: Bastante aberto na cor, aroma franco madeira, mas cheio de classe.
se fizeram 7091 garrafas. de fruta madura mas com perfeita Afastado das modas atuais,
Dica: A fruta citrina madura e com algum integração da madeira; bons aromas mantém-se fiel ao perfil dos grandes
peso aconselham-no para a mesa onde vegetais, notas de pinhal, de casca de tintos desta região. Decantação
será perfeita companhia para peixes árvore, que o tornam especialmente obrigatória (tem muito depósito)
em caldeirada ou com molho maionese. gastronómico. Absolutamente consensual. após algum tempo em pé.

E 72
as nossas recomendações Saiba mais sobre estas e outras sugestões em
boacamaboamesa.expresso.pt

Premiados 2023 Alojamentos


Belcanto Six Senses Douro Valley
Rua de Serpa Pinto, 10 A, Lisboa. Quinta de Vale Abraão,
Tel. 213 420 607 Samodães. Tel. 254 660 600
José Avillez representa a aristo-
cracia da gastronomia nacional,
atingindo um patamar só ao
alcance dos mestres. Palavra final
para o exemplar serviço de vinhos
e de pastelaria. É Garfo de Platina.
Preço médio: €195.

Fifty Seconds by O verdadeiro luxo são os nove


Martín Berasategui quartos e suítes e as duas pool
Torre Vasco da Gama, Cais das villas, que elevaram para 71 o total
Naus, Parque das Nações, Lisboa. de alojamentos. Alguns dispõem
Tel. 211 525 380 de exclusividades de sonho. Mas
também dá para perceber como
se leva a sério a filosofia sustentá-
vel e de bem-estar, centrada no
hóspede e no lugar. É Chave de
Platina. A partir de €800.

W Algarve
50 ANOS, 50 RESTAURANTES Estrada da Galé, Sesmarias.
Garfo de Platina, viu premiado 2008: Vila Joya recebe o primeiro Garfo de Platina do “Boa Cama Boa Mesa” Tel. 289 372 300
o trabalho, que parte da visão Desde o início dos anos 90 do século passado que Dieter Koschina fazia história no Vila Joya, o restau-
do chefe Martín Berasategui e rante de um idílico alojamento homónimo em Albufeira. Eterno apaixonado pelos peixes e mariscos do
se ramifica no talento de Filipe Atlântico, este chefe austríaco abriu caminho à afirmação da alta cozinha algarvia a nível mundial. Foi o
Carvalho, que faz tudo para vencer primeiro em Portugal a conquistar duas estrelas Michelin, em 1995 e 1999. Em 2008, o restaurante foi o
no diálogo entre produto, vinho e primeiro a receber um Garfo de Platina, o prémio máximo atribuído pelo guia “Boa Cama Boa Mesa”.
palato. Preço médio: €205.

Ocean The Yeatman Al Sud Kanazawa


Rua de Anneliese Pohl, Rua do Choupelo, Vila Nova Palmares Resort, Odiáxere. Rua Damião de Góis, 3 A, Lisboa. Hotel Revelação, tem 134 quartos
Alporchinhos. Tel. 282 310 200 de Gaia. Tel. 220 133 100 Tel. 282 790 508 Tel. 213 010 292 e suítes e 83 residências, num
A ementa inspira-se no Brasil, tra- Ricardo Costa interessa-se pela Confirma-se o grande momento Neste novo Garfo de Prata, o cenário moderno caiado a branco
balhando os sabores e saberes em “evolução de aromas e sabores” de Louis Anjos, que surpreende ao menu muda mensalmente e com toques de influência local. Nas
harmonia com a técnica e a ima- e valoriza com mestria produtos apresentar só um menu de degus- harmoniza-se também com vinhos WOW Suites há um terraço com
ginação. O novo menu “Memórias como a enguia ou o leitão, da re- tação, denominado “À Descober- ou cervejas. O chefe procura piscina privativa e nas Extreme
do Brasil” tem 12 momentos. É gião de Aveiro, de onde é natural. ta”, onde os clientes não sabem o surpreender, desafia-se, tornando WOW Suites, com dois andares,
também Garfo de Platina. Foi distinguido com Garfo de que vai surgir na mesa. É Garfo de o encontro com esta cozinha um há móveis de design personaliza-
Preço médio: €265. Platina. Preço médio: €210. Prata. Preço médio: €130. sonho. Preço médio: €70. do. A partir de €220.

GUIA “BOA CAMA BOA MESA” CELEBRA Marisco na Praça


20 ANOS COM EDIÇÃO ESPECIAL Mercado da Vila, Rua
Padre Moisés Silva,
Em 2003, o então “Livro da Conte com novidades e des- Cascais. Tel. 214 822 130
Boa Cama e da Boa Mesa”, do taques, incluindo a distinção Garfo de Prata, vende
apenas o mais fresco marisco
jornal Expresso, apresentou-se Mérito 20 Anos, que premeia
nacional, que, por isso mesmo, nem
aos leitores com um propó- os alojamentos e restauran-
sempre está disponível. Relembra-
sito simples, mas ambicioso: tes que marcaram presença -se também que o facto de o mar
“Tentar dar a conhecer o que em todas as edições do guia. ser temperamental pode influenciar
de melhor há em O Prémio Carreira o preço. Nos mariscos, sempre
Portugal.” O objetivo 2023 já foi anuncia- que possível, há ostras, vieiras,
mantém-se, e no dia do pelo respetivo camarão-tigre, carabineiros, cracas
31 de março chega júri e reconhece o e bruxas de Cascais. Já inaugurou
às bancas a edição contributo da chefe uma nova casa, desta vez na Marina
especial do guia “Boa Justa Nobre, do de Cascais. Preço médio: €40.
Cama Boa Mesa” de restaurante Nobre
2023, que celebra by Justa Nobre, para SELO DE QUALIDADE Em parceria com o Recheio, este
a restauração e gas- símbolo é a garantia de que o restaurante em destaque utiliza
20 anos de publi-
produtos das melhores origens e criteriosamente selecionados
cação ininterrupta. tronomia nacionais.

E 73
D ESI GN
POR GUTA MOURA GUEDES

MARIO CUCINELLA DUS ARCHITECTS


ARCHITECTS

CASA COVIDA I
A impressora de casas COBOD

EMERGING OBJECTS
O ficheiro digital de uma casa transforma-se
em realidade através de um “jacto” de matéria

A
inda não é, literal e imediatamen- de uma revolução enorme numa indús-
te, possível. Mas é muito provável tria vasta e complexa e com benefícios em
que o venha a ser. Talvez nunca muitas frentes. Falamos de sustentabili-
tenhamos pensado que o princípio básico dade em vários aspectos, desde o tempo
de uma simples impressora, das que alguns que se poupa aos materiais que se usam;
de nós temos em casa, ou no escritório, e falamos de simplificação e eficiência; fa- BJARKE INGLES GROUP
para as quais enviamos ficheiros de texto lamos de flexibilidade e durabilidade. Fa- E ICON
HOUBEN I VAN MIERLO ou de desenho, pudesse ser o mesmo que lamos de algo que vai mudar o paradigma Há uma relação visual, sensorial
ARCHITECTEN I iria permitir imprimir objectos tridimen- da construção, quer em cenários urbanos e emocional, além da eficácia
VAN WIJNEN E A sionais. Mas é. Na verdade, a impressora de e naturais em contexto de evolução pro- funcional, num espaço
EINDHOVEN UNIVERSITY papel nunca se democratizou totalmente e gramada quer em cenários de crise, como desenhado para ser uma casa.
OF TECHNOLOGY talvez nunca venha a ser um equipamen- durante a guerra, ou de pós-crise, como Os bons designers e os bons
É interessante pensar que neste arquitectos sabem-no muito
to que consta da lista dos óbvios quan- depois de um sismo ou outras catástro-
momento, um dos temas bem — estas são também
do pensamos na paisagem doméstica ou fes naturais ou artificiais. Falamos de algo
cruciais desta nova forma de se questões que ocupam agora
de trabalho. Por uma razão simples: usa- que pode ajudar, e muito, na resolução da quem está na linha da frente do
fazerem casas remete para algo
mos cada vez mais o digital, quer seja por acessibilidade à habitação própria, intro- design de casas para serem
de ancestral, que é a nossa
relação com os materiais. Desde e-mail quer seja por WhatsApp, por exem- duzindo novas dinâmicas. impressas e do design de
a pedra, à madeira, aos tijolos, plo, por motivos práticos e ecológicos. Mas Esta nova forma de fazer casas está máquinas e materiais para que
aos estuques e elementos afins, em relação à habitação sabemos que não é ainda no princípio, mas tem mobilizado este processo seja possível.
há uma relação cultural, assim. Ter uma casa é um direito e dificil- não só comunidades de engenheiros, in- Vale a pena uma pesquisa na
simbólica, emocional e física do mente será útil uma versão só digital. Sa- dustriais e gestores como também, como net e ver alguns dos vídeos
ser humano com aquilo a que bemos, por isso, que ter casas acessíveis e não podia deixar de ser, arquitectos e de- disponíveis sobre estas
chamamos casa. de construção rápida é todo um outro tema signers. Pode vir a ser mais económico e impressoras.
e que a solução desse tema está para durar, sustentável recorrer a este sistema no fu-
como temos visto por cá. turo dependendo de contextos e evoluções
O facto é que neste momento já se im- técnicas. Para a comunidade criativa esta
primem casas. Não há muitas empresas tem sido uma enorme oportunidade de
que o façam, mas o princípio é o mesmo experimentação e evolução, o que é por si
de uma impressora em papel. De uma for- só uma mais-valia para toda a indústria,
ma simplista podemos dizer que o fichei- onde algumas empresas se destacam pela
ro digital de uma casa, devidamente de- sua visão e capacidade de inovar.
senhado, se transforma numa realidade Não, ainda não pode imprimir a sua
a três dimensões através de um “jacto” casa na sua impressora.
de matéria, tal como um jacto de tinta no Mas já pode contratar a impressora de
papel materializa um texto. A impressora alguém. b
ainda não faz a casa na totalidade, é um
processo que requer adição de componen- Guta Moura Guedes escreve de acordo
tes ao longo da construção, mas trata-se com a antiga ortografia

E 74
PUBLI-COMUNICAÇÃO

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Almudena López de Rego
Arquiteta

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M O DA
POR GABRIELA PINHEIRO

Dicas & Regras


Longa vida aos básicos
Prolongar tendências para evitar o consumo
desenfreado está cada vez mais na moda

A
s preocupações ambientais convertida em básico, assim como o
cada vez mais se refletem na vestido tubo, a minissaia e o colete,
indústria da moda, não só nos que, com as subidas das temperaturas,
materiais e processos utilizados mas podem agora ser usados numa versão
também na menor rotatividade de mais minimalista. Outras das tendên-
tendências. Ou seja, ao prolongarem cias que vieram para ficar são os anos
a vida de uma tendência, os designers 90 e 2000, pelo que vamos usar e abu-
estão a promover o consumo consci- sar das calças de cintura baixa, tops em
ente, permitindo usar a mesma roupa lurex, cintos metálicos e outros acessó-
estação após estação. As peças outrora rios igualmente icónicos. Se ainda lhes
tendência vão conquistando o estatu- resiste, vale a pena dar uma oportu-
to de ‘básico’ no nosso guarda-roupa. nidade a estes novos básicos que ani-
Há vários critérios que uma peça tem mam até o mais aborrecido dos looks.
de cumprir para ser considerada um Claro que este movimento mais

FOTOGRAFIAS GETTY IMAGES


básico e conseguirmos conjugá-la fa- ecológico da moda não perde de vista
cilmente: tem de ter uma cor neutra — o fator comercial e certamente que em
azul petróleo, camel, preto, branco e todas as temporadas teremos muito a
cinza — linhas limpas e direitas e não descobrir. Mas a ideia é que sejamos
pode ter padrão. capazes de fazer cada vez mais com
O blazer oversized é um excelen- menos, num equilíbrio obrigatório e
te exemplo de uma peça tendência urgente pelo bem do planeta. b

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E 76
T ECN O LOGIA
POR HUGO SÉNECA

Exercício
sem ruído
O Redmi Watch 3 promete levar para
o pulso horas, indicadores de saúde
e uma bateria capaz de garantir o
funcionamento durante 12 dias. O novo
relógio inteligente da marca detida
pela Xiaomi está equipado com ecrã
AMOLED de 4,44 centímetros (1,75
polegadas) que pode ser personalizado
com mais de 200 mostradores à esco-
lha. Equipado com funcionalidades de
monitorização
para 120 mo-
dalidades des-
portivas, o novo
smartwatch
da Xiaomi
está também

Computadores
preparado
para receber
coordenadas

com um novo LOQ geográficas


a partir das
cinco principais
constelações
de satélites
A Lenovo deu a conhecer uma nova marca e dispõe de sensores para registar
destinada a fãs de videojogos ritmos cardíacos, sono e oxigénio, entre
outros dados fisiológicos monitori-

A
zados. No que toca ao som, há dois
Lenovo alargou a oferta para fãs de videojogos com a Os quatro portáteis têm 16 gigabytes (GB) de memória
mimos a realçar: o Redmi Watch 3 está
submarca LOQ, mas vai manter a submarca Legion. RAM e unidade gráfica GeForce RTX 4060 Laptop, da Nvi- equipado com um altifalante de alta
Segundo a Lenovo, LOQ e Legion são complemen- dia, que disponibiliza um botão para acelerar a resposta resolução para emitir sons e distingue-
tares. E tendo em conta que a Legion explora um segmen- das imagens no ecrã. Os quatro portáteis estão aptos a re- -se também por ter um microfone
to mais sofisticado, deduz-se que a LOQ é mais acessível. ceber unidades SSD de 1 terabyte (vendidas à parte). Cada com cancelamento de ruído que pode
A estreia da LOQ é feita com quatro portáteis e um máquina conta com quatro tubos de calor e ventiladores dar jeito no momento de atender uma
computador de secretária. Nos portáteis, figuram os mo- duplos e está preparada para futuros acrescentos de RAM chamada encaminhada pelas redes
delos 16IRH8 e 15IRH8, que usam processadores da famí- e armazenamento. Bluetooth que asseguram o empare-
lhamento com o telemóvel. Segundo
lia Core, da Intel; e 16APH8 e 15APH8, que usam processa- Para quem procura uma versão de secretária há a
a Xiaomi, o Watch 3 está habilitado
dores Ryzen 7000, da AMD. Os portáteis com ecrãs de 38,1 Tower 17IRB8, com processador Core i7-13700 de 13ª gera-
para resistir à água em mergulhos com
centímetros (15 polegadas) têm baterias de 60 Watts hora ção, da Intel, e unidade gráfica 40-Series, da Nvidia. Além profundidades máximas de 50 metros
(Wh), que garantem seis horas de funcionamento; en- de ventilação interna, permite expandir a memória RAM durante 10 minutos (5ATM). O novo
quanto os modelos com ecrã de 40,64 centímetros (16 po- até aos 32 GB e o armazenamento até aos 2 TB. Portáteis: a relógio estreia-se durante o mês de
legadas) têm baterias de 80 Wh, que garantem sete horas. partir de €1351,77. Computador de secretária: €982,77. b abril. Preço: €199,99.

AS DONAS DA BOLA DESENHOS À MEDIDA A APP DA OFICINA TODOS CONTRA TODOS


A EA Sports está apostada em não deixar as Para quem usa a mais recente versão A Toolto promete ajudar os portugueses Os fãs de “Counter Strike” já entraram em
mulheres fora de jogo — e a prova disso do Bing, a falta de jeito deixou de ser na hora de ir à oficina ou de trocar os pneus. fase decrescente rumo ao verão. E tudo
chegou com a mais recente atualização do desculpa para não produzir desenhos. A empresa portuguesa acaba de anunciar porque será por essa altura que a produtora
“FIFA 23”, que passou a integrar a versão A Microsoft acaba de lançar a versão a estreia da app Plux, que tem como de jogos Valve deverá elevar a temperatura
feminina da Liga dos Campeões (ou Liga das experimental de Bing Image Creator, principal atrativo o acesso facilitado a uma com o lançamento de “Counter Strike 2”.
Campeãs) da UEFA. Torna-se assim possível que gera desenhos à medida das descrições rede de 70 oficinas dispersas por Portugal Além de um acréscimo da precisão das
disputar o principal troféu de clubes com e dos pedidos apresentados pelos Continental. “Através desta aplicação, é diferentes ações, o “Counter Strike 2” deverá
algumas das jogadoras da Juventus, do Real utilizadores. A nova ferramenta está possível saber onde podemos ir, quanto é introduzir, nos vários mapas, novidades que
Madrid ou do Chelsea, entre outros clubes. disponível no motor de busca Bing que o serviço vai custar e quando existe tanto se podem limitar a um retoque de
Nas atualizações recentes figuram ainda as e no navegador (browser) Edge. disponibilidade para resolver o problema”, luminosidade como implicar o redesenho de
12 equipas de futebol feminino que A geração de imagens tem por base refere a Toolto. A Plux é grátis para todo um cenário. Ainda não se conhecem
disputam o campeonato dos EUA. tecnologia Dall.e, da OpenAI. os utilizadores. preços ou modalidades de distribuição.

E 78
DIÁRIO DE UM
PSIQUIATRA
POR JOSÉ GAMEIRO

O macho baixou
NA ROTA
as orelhas
DAS ARTES A nossa herança árabe continua muito forte

É
A 7. a edição do “Mapa das Artes”
um café, ou melhor, uma pastelaria, expressão antiga, que tem a versão
traz-nos um retrato atualizado do
nortenha de confeitaria. Tanto faz. É um local onde se bebe um bom
território da Arte Contemporânea
café, cada vez mais difícil, fora de casa, e se comem uns excelentes bolos.
em Lisboa, mapeando todos os
Vai lá tudo. Novos e velhos, portugueses e estrangeiros. Há quem prefira ficar
espaços expositivos reveladores
ao balcão e quem goste de se sentar nas mesas. O balcão é uma espécie de
da dinâmica cultural e eclética
periscópio, de onde se alcança toda a superfície da loja, se nos colocarmos a
da cidade, num total de 113, que,
45 graus face à bancada. A vista não se pode dizer que seja deslumbrante, mas
neste contexto, apresentem uma
permite uma observação privilegiada sobre todos os clientes. Ao fim de muitos
programação regular. O roteiro,
anos há uma espécie de cumplicidade entre os clientes mais antigos e alguns
uma organização da associação
dos empregados, aliás, cheios de sentido de humor. Há cromos que lá vão
cultural Isto Não É Um Cachimbo
diariamente, alguns vestidos a rigor, como se fossem para uma festa noturna. Há
com o apoio da Fundação
casais, alguns já reformados, outros no ativo, que têm sempre o mesmo horário,
Millennium bcp, é anual,
a quem já se diz bom dia com um ar familiar, de quem se conhece de casa. E há
gratuito e bilingue, podendo ser
os e as “turistas”, desconhecidos, que mal entram, são logo rastreados.
consultado em formato papel
Um dia destes, não muito cedo, porque a preparação deve ter sido longa
e digital.
e cuidada, a porta abre-se e entra uma senhora, daquelas que, como dizem,
mapadasartes.pt
ou diziam, agora tem de se ter mais cuidado, fazem parar o trânsito. Ali o
café não parou, mas os decibéis das conversas baixaram. Estava um casal
sentado numa das mesas, dos seus 50 anos, ela bastante produzida, ele de
COSMÉTICA fato e gravata, tanto podia ser do imobiliário como executivo de um banco. A
NO PORTO conversa parecia decorrer animada, imaginei que ela lhe dizia, então a viagem
que me prometeste e nunca mais acontece? Mas não havia tensão entre eles.
De 1 a 3 de abril, a Quando a forasteira entrou, ele cometeu o que, mais tarde, percebi que tinha
Expocosmética - Feira sido um erro ou um descontrole. Fez uma ligeira paragem na conversa. Fique
Internacional de Cosmética, claro que toda esta descrição é feita a partir do não verbal, a sua cabeça fez
Estética, Unhas e Cabelo está de uma pequena rotação na direção da dama. Alta, bonita, com um pequeno
volta à Exponor. Apresentar as sorriso permanente, dirigiu-se ao balcão, para tomar o seu café e comer um
principais tendências do sector, bolo miniatura. Era clara a preocupação com a elegância, qualquer bola de
reunir os melhores profissionais Berlim seria um grande risco.
do mercado, fomentar negócios O homem do casal continuou a cometer erros. Não sei se por inépcia ou
e promover experiências são os deslumbramento, o seu olhar oscilava entre o horizonte conjugal e o balcão.
principais objetivos desta feira Ela continuava a conversar, como se nada estivesse a acontecer, mas tudo tem
de beleza que tem o “Self Love” um limite. Depois de algum tempo a sentir que os feixes visuais do marido
como mote e a maquilhadora lhe passavam por cima do ombro esquerdo, parou de falar e fez uma rotação
Inês Mocho como embaixadora de 110 graus com a sua cabeça. Não foram só 90, este pormenor é importante,
oficial. porque mostra que não só queria perceber o que chamava tanta atenção ao
expocosmetica.exponor.pt marido como queria “afrontar” a senhora e mostrar-lhe que estava atenta e
pronta a acabar com aqueles olhares de um marido sedutor de meia tigela.
O seu tom de voz subiu, continuei a não ouvir as palavras, mas o volume do
som era claro. Ao mesmo tempo, ele, calado, dava sinais semelhantes aos de
LINGUAGEM uma criança apanhada a ir à dispensa buscar gomas ou chocolates. Os olhos
DO DESIGN fixaram-se na chávena de café que tinha à frente, se fosse cão as orelhas
teriam, de certeza, ficado mais penduradas.
A coleção “Cannes” da Voltei a olhar para quem tinha provocado, sem querer, toda aquela cena
Antarte assenta em linhas e trocámos um esboço de sorriso cúmplice, ela como quem dizia, não tive
depuradas, em sintonia nada a ver com isto, mas teve graça, eu feliz porque tinha mais uma história
com formas geométricas de casais para vos contar. Duas coisas me impressionaram. A ingenuidade
equilibradas. Predominam dele, provavelmente a pensar que podia estar numa conversa com a mulher e
traços minimalistas em a “galar” outra. E a reação muito rápida dela. Uma rotação, quase como a de
materiais sustentáveis como uma coruja, que consegue rodar o pescoço 270 graus. Moral desta história? A
o carvalho natural, nossa herança árabe mantém-se: se a forasteira estivesse acompanhada de um
o palissandro e a nogueira, macho, o casal não tinha passado por esta crise... Quer queiramos quer não, a
acrescidos do toque nossa herança árabe continua a ser muito forte, macho respeita macho... b
inconfundível do design josemanuelgameiro@sapo.pt
intemporal característico
da marca.
antarte.pt
PASSAT E M POS
POR MARCOS CRUZ

Sudoku Fácil Palavras cruzadas nº 2460

4 3
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
4 1 7 2 9
5 1
5 3 6 1
2
9 8 1 5 7 3 6 4
4 8 9 2 3
1
4
6 2 9 8 7
7 3 5

Sudoku Muito Difícil 6


3 8
7
7 6 3
5 2 8
2 4 9 6
9
8 4
7 5 1 9 10
6 7
9 4 2 11
5 3
Horizontais Verticais Soluções nº 2459
1. O nosso berço 2. Chama-se à freira. 1. O rochedo da discórdia entre HORIZONTAIS
Soluções A Invencível foi derrotada no canal espanhóis e ingleses 2. Separam 1. ampulhetas 2. Lorca;
Fácil Muito Difícil da Mancha 3. A torre mais caótica a Europa da Ásia. Nome próprio da taras 3. arsénico
4. IATA; fala 5. frente;
9 4 6 5 3 8 2 7 1 3 4 6 7 1 9 2 8 5
4. O que faz melhor quem faz por nossa comissária europeia 3. Enredo
Aida 6. li; mancas
7 8 1 4 9 2 5 6 3 5 8 2 3 4 6 9 7 1
último. Coloca de trás para a frente complicado 4. Há só uma. Cardeais.
7. ea; Don 8. agi; artista
3 5 2 6 1 7 9 4 8 1 7 9 2 5 8 3 6 4
1 2 5 9 8 4 7 3 6 9 3 8 1 2 5 6 4 7 5. Transformo o copo em chávena. Vogal repetida 5. Furta 6. É boa
9. norteara; el 10. trair
4 6 3 7 2 5 1 8 9 2 5 4 6 3 7 8 1 9 Segue-se ao sismo principal 6. Fazia saltadora. Permite todas as esperanças.
11. EAS; ousadas
8 7 9 1 6 3 4 5 2 6 1 7 9 8 4 5 3 2 parte do Estado Português da Índia. Entre a meia-noite e o meio-dia. É
6 1 4 3 5 9 8 2 7 7 2 1 8 9 3 4 5 6
Prender com gavinhas 7. Transmissão admirador 7. O quente sobe. Iniciais VERTICAIS
sem comunicação 8. Genro de rodoviárias. Foi por se meter numa que 1. altifalante 2. mo;
5 9 8 2 7 6 3 1 4 4 9 3 5 6 1 7 2 8

ar; gora 3. prateleiras


2 3 7 8 4 1 6 9 5
Maomé. Vargas Llosa já o é 9. Rui Alice conheceu o País das Maravilhas
8 6 5 4 7 2 1 9 3

que fez oposição. Tem bom faro (pl) 8. Elevar-se como as galinhas 4. Ucrânia; ti 5. lãs; aero
10. Género teatral do agrado de Gil 9. Como um pero. O que protagonizou 6. efémera 7. Etna; três
Vicente (pl) 11. Pretas as dos fascistas uma tristemente célebre lavagem 8. Tailândia 9. arcaicos;
Palavras Cruzadas Premiados do nº 2458 DD 10. são; Dante
de mãos 10. Romanos. Fica perto.
“Mar Alto”, de Caleb Azumah Nelson, para António 11. mas; alas
Tem uma pinta 11. Deslocava-se.
Ramos Novo, de Viana do Castelo; “Remissão”,
de Carlos Guedes, para Perpétua Geraldes de Não passam na peneira
Peraboa, Covilhã; “A Célula de Sheffield”, de José
Gomes Mendes, para João Pinto, de Azeitão. Participe no passatempo das Palavras Cruzadas enviando as soluções por correio para
Rua Calvet de Magalhães, 242, 2770-022 Paço de Arcos ou por e-mail para passatempos@expresso.impresa.pt

E 81
ESTRANHO OFÍCIO

JOÃO FAZENDA
SINAIS EXTERIORES
DE RIQUEZA VOCABULAR

U
AS PALAVRAS SÃO DE GRAÇA. MESMO AS PALAVRAS CARAS,
CURIOSAMENTE. O FENÓMENO É MUITO EVIDENTE NA TELEVISÃO

ma das formas mais baratas de ao coração do outro. Um dos problemas deste método é que, quando nos
causar uma boa impressão nos referimos ao nosso semelhante como outro, ele fica um pouco menos
outros é através das palavras. semelhante. A alteridade parece recusar as eventuais semelhanças. E,
Um carro vistoso, um anel no entanto, é uma formulação muito popular. O outro problema é que,
espampanante, um relógio em português, referirmo-nos a alguém como “o outro” não costuma ser
de marca — tudo isso custa grande demonstração de afecto. Como quando, em referência ao chefe,
dinheiro. Mas as palavras são de alguém diz: “Mal vi que estava trânsito na ponte, percebi logo que o
graça. Mesmo as palavras caras, outro me ia chatear por causa do atraso.” Ou, por exemplo, quando um
curiosamente. O fenómeno é marido desconfia que a mulher tem outro. Nesse caso, o marido talvez
muito evidente na televisão. também tenha a intenção de chegar ao coração do outro, mas de forma
Receando que o futebol seja um não metafórica. Com a mão, mesmo. Enfiando-a no tórax do outro. b
assunto demasiado corriqueiro,
os comentadores desportivos têm especial cuidado com o que dizem. Ricardo Araújo Pereira escreve de acordo com a antiga ortografia
Por exemplo, é muito raro alguém chutar, no comentário desportivo.
Na maior parte das vezes, os jogadores rematam, às vezes até chegam a
pontapear o esférico — mas quase nunca chutam. Talvez se considere
que um jogo em que se chuta não mereça atenção e comentário. Mas os
esféricos pontapeados requerem, evidentemente, análise cuidada. A ideia
de haver dois jogadores, em determinado sítio do campo, a correrem
de um lado para o outro atrás da bola, é bastante mais corriqueira do
que a circunstância de existir um duplo pivô que bascula à frente da
linha defensiva, consoante o jogo interior ou exterior do adversário, no
primeiro terço do terreno. Embora a realidade descrita seja exactamente
a mesma em ambos os casos, a primeira formulação está ao alcance de
toda a gente, ao passo que a segunda denota que estamos perante um
comentador certificado.
Do mesmo modo, alguém que queira ser tido em conta como uma pessoa / RICARDO
profundamente preocupada com o seu semelhante usa uma enunciação
infalível: essa pessoa deseja, quase sempre, tocar o outro. Pretende falar
ARAÚJO
com o outro, tem estima pelo outro, quer descobrir o outro, tenta chegar PEREIRA

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