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LUZ.

1 OUTUBRO 2022  REVISTA DO NASCER DO SOL


TAMARA FALCÓ
E IÑIGO ONIEVA
Um noivado
de 48 horas

Jorge
Palma
BRUNO GONÇALVES

‘Sou um gajo resistente,


física e mentalmente’
10 12

SUMÁRIO
1
OUTUBRO
2022

6. Volta ao Mundo Protestos pela morte da jovem Mahasa Amini por todo o Irão
8. Pessoas Marcelo foi a estrela dos Giants em noite de homenagem a Portugal
10. Realeza A herança de Carlos III 12. Sociedade Tamara Falcó cancela noivado
com Iñigo Onieva um dia após ter sido anunciado 16. Desporto Michael Phelps e
a importância da saúde mental dos atletas 18. Entrevista Músico Jorge Palma
24. Personagens Smetana, Fauré e Beethoven, a trilogia dos grandes surdos da
música clássica 30. Massacre de Wiriyamu IV e último episódio de uma investi-
gação publicada por ocasião dos 25 anos da tragédia

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16 24

EDITORIAL

Na mesma corrida da vida

A
saúde mental dos atletas tem sido um pressão e a necessidade que teve em procurar
tema cada vez mais recorrente nos últi- ajuda.
mos tempos. Michael Phelps foi o últi- Por cá, um dos últimos atletas a fazê-lo foi o
mo a falar sobre o assunto, revelando a surfista Vasco Ribeiro, quando, em agosto, reve-
sua própria experiência contra a depressão e lou que chegou a altura de pedir ‘ajuda profissio-
confidenciando que ainda hoje tem dias em nal’ e de se focar na sua saúde mental. Já no pas-
que acorda e ‘se sente uma pessoa diferente’. sado dia 10 de setembro, Cristiano Ronaldo par-
Antes, a ginasta Simone Biles e as tenistas tilhou, nas redes sociais, uma fotografia ao lado
Laura Naomi Osaka e Ashleigh Barty tinham deci- do conhecido psicólogo Jordan Peterson. Nos úl-
Ramires dido colocar a saúde mental em primeiro lu- timos dias, num programa de televisão, o clínico
gar: em comum o facto de atravessarem o me- revelou que o avançado português ‘quis falar so-
lhor momento das respetivas carreiras e tam- bre o que quer para o futuro e também sobre al-
bém a sensação de estarem ‘esgotadas’. Apesar guns obstáculos que está a enfrentar neste mo-
da surpresa e do choque que as decisões cau- mento’. Sobre o futuro, Ronaldo já deu algumas
saram nos seguidores das modalidades, as re- dicas e avisou que ainda poderíamos esperar ‘mais
percussões foram imediatas e cada vez mais um bocadinho de carga do Cris’. O problema é se
desportistas começaram a abrir o lado negro esse passa a ser um dos obstáculo, já que o en-
que pode ter a vida de um atleta de alto ren- contro contra a Espanha colocou mais uma nu-
dimento. Ash Barty anunciou a despedida dos vem negra sobre o número 7. Ronaldo vai estar no
courts no último mês de março, aos 25 anos, Mundial e quer marcar presença no Europeu 2024.
depois de três títulos do Grand Slam, em sin- Vontade não lhe falta, resta saber se só isso che-
gulares, em Roland Garros (2019), Wimble- ga... Por agora deixou mais um exemplo fora de
don (2021) e no Open da Austrália, este ano. campo, mostrando que até os melhores tam-
Admitiu mais tarde ter lutado contra uma de- bém podem precisar de ajuda.

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VIVER PARA
CONTAR

JOSÉ ANTÓNIO
SARAIVA

Agora, queixam-se!
Há uns anos escrevi que a entrada maciça de imigrantes iria tornar a Europa
um barril de pólvora, provocando graves conflitos sociais e a ascensão
de partidos da extrema-direita. Agora, os que não quiseram percebê-lo
estão a colher os frutos que semearam.

N
ão vale a pena tapar o sol com uma trema-direita. Não fui só eu a escrevê-lo, com um raciocínio desconexo – começou
peneira: a direita e a extrema-direi- naturalmente: estava na cara. Mas a es- por reconhecer que sim. Que a sua admi-
ta avançam em toda a Europa. Não é querda e mesmo a direita moderada não nistração havia errado, pois não tinha pre-
só em Itália. Em Portugal, Espanha, quiseram ouvir. A todos os que levanta- visto o volume de imigração que veio a ve-
França, Suíça, Alemanha, Áustria, Polónia, vam questões sobre a imigração, a esquer- rificar-se nos EUA e a nível global. E ad-
Hungria, Dinamarca, Noruega, Suécia, etc., da continuava a chamar «xenófobos», mitia ser preciso mais «controlo».
etc., a extrema-direita tem vindo constan- «racistas» e «fascistas». Agora está a co- Mas, depois de dizer isto, lançou-se
temente a ganhar terreno. Políticos como lher os frutos que semeou. Quem semeia num ataque desenfreado aos republica-
Ventura, Salvini, Marine Le Pen ou Viktor ventos, colhe tempestades. nos por não quererem tantos imigrantes.
Orbán tornaram-se muito populares. E certos comentadores, que na altura Acusou-os de mandarem os imigrantes
Partidos e políticos que eram diaboli- não conseguiram perceber o que estava a para Martha’s Vineyard, para chatearem
zados há poucos anos, rotulados de «fas- passar-se, hoje lamentam-se: «Aqui d’el- os ricos e causarem problemas. Ou seja:
cistas», estão hoje no governo ou à beira -rei, que vem aí a extrema-direita!». Em Clinton começava num ponto, reconhe-
dele. Os eleitores perderam o medo aos vez de procurarem as causas dos proble- cendo os erros, e, em vez de os tentar cor-
rótulos. Ou o rótulo de «fascista» até já mas, e de tentarem encontrar respostas rigir, voltava atrás e atacava de novo os
funciona ao contrário. «É fascista? Então para eles, choram as consequências. adversários.
é isso mesmo que eu quero!». Assim não se resolve nada.

S e os meus leitores bem se lembram,


há uns quatro anos escrevi um texto
U ma destas noites, ouvi uma entrevista
de Bill Clinton a Fareed Zakaria, onde
este lhe perguntava se não tinha errado na A esquerda, que dominou ideologica-
mente a Europa desde o fim da 2ª
onde dizia que a entrada maciça de imi- política de imigração, que está hoje a cau- Guerra Mundial, cometeu erros e insistiu
grantes iria tornar a Europa um «barril sar grandes problemas nos EUA. Clinton – neles. Não tirou ensinamentos da práti-
de pólvora», provocando graves confli- que me pareceu intelectualmente dimi- ca. E porquê? Porque pôs sempre a ideo-
tos sociais e a ascensão de partidos da ex- nuído, muito palavroso, pouco sintético, logia à frente dos factos. Esticou a corda

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ANDREAS SOLARO/AFP
até ao limite, pensando que podia avan-
çar impunemente. Perante o silêncio da
‘maioria silenciosa’, quebrou todos os ta-
Um brasileiro e um outro cidadão de Les-
te. Sem estas pessoas, a nossa sociedade
não poderia já funcionar.
P erante o panorama atual, torna-se ur-
gente controlar a imigração na Europa.
Involuntariamente, os imigrantes tornam-
bus e desafiou os valores tradicionais. Mas será isto solução? A solução para -se cavalos de Troia – células destruidoras
Aprovou a liberalização do aborto e de uma sociedade será importar mão-de- das sociedades que os acolhem.
certas drogas, o casamento gay e a respe- -obra de regiões pobres, gente com ou- Cada país tem de estar em equilíbrio. E
tiva adoção, a eutanásia. Promoveu a tros hábitos, outra cultura, outras reli- tal significa ter gente suficiente para su-
ideologia de género, a propaganda ho- giões? É óbvio que isto estalaria mais tar- prir as necessidades de emprego e man-
mossexual, inventou demónios como o de ou mais cedo. Os conflitos culturais em ter a sustentabilidade da segurança so-
‘racismo estrutural’. A maioria foi engo- muitos países da Europa já são graves e cial. Ora, para isso, é preciso rejuvenescer
lindo sapos, até que um dia rebentou... noutros são gravíssimos. a sociedade. Aumentar a natalidade.
Como? Apoiando a família, promovendo

C laro que o problema da imigração não


é só ideológico – e por isso é mais di-
fícil de resolver. À ideologia facilitista da
a estabilidade familiar e dando às pessoas
um futuro.
Uma Europa de velhos, de inúteis e de
esquerda juntam-se as necessidades do imigrantes, está condenada.
sistema capitalista. É preciso gente para Portugal tem de encontrar dentro de si
trabalhar – e não há. As sociedades estão próprio as energias necessárias para
envelhecidas e os excessivos apoios so- Uma Europa de construir um país jovem, trabalhador e
ciais fomentam a preguiça.
Os imigrantes são os novos escravos. velhos, de inúteis otimista.
Não há que fomentar a imigração mas a
Vamos a uma obra e o que vemos? Afri-
canos e um ou outro brasileiro. Vamos a
e de imigrantes, natalidade; não há que multiplicar os apoios
sociais mas valorizar o trabalho. É este o ca-
um restaurante e quem nos vem atender? está condenada minho.

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VOLTA AO MUNDO

O novo horário das luzes de Natal


O decreto-lei sobre o plano de poupança energética do Gover-
no foi publicado na passada terça-feira (27 de setembro) em
Diário da República. Entre as sete medidas apresentadas está o
ajustamento dos períodos de utilização da iluminação natalícia
para o horário entre as 18 horas e as 24 horas. Se na adminis-
tração pública local, onde se incluem os municípios, a medida
é uma recomendação, já para as zonas sob alçada direta do Es-
tado será uma medida obrigatória, ou seja, as luzes de Natal te-
rão mesmo de ser desligadas à meia-noite.
ANDREAS SOLARO/AFP

O primeiro Papa a visitar o Bahrein

BRUNO GONÇALVES
Francisco será o primeiro Papa a visitar o Bahrein, onde estará
entre 3 e 6 de novembro para participar num fórum inter-reli-
gioso, anunciou, na quarta-feira (28 de setembro), o Vaticano.
O Papa visitará as cidades de Manama e Awali – segundo esti-
mativas do Vaticano, o Bahrein tem cerca de 80 mil católicos.

Uma carreira e
uma fotografia
para a História
Ao lado de Rafael Na-
dal, Roger Federer co-
locou um ponto final
na carreira de tenista,
na Laver Cup, no pas-
sado fim de semana.
Apesar da derrota no
jogo de pares – o suíço
e o espanhol perderam
frente a Jack Sock e
France Tiafoe –, a des-
pedida dos courts não
podia ter sido mais es-
pecial. Para a História
fica a carreira inigualá-
vel e, agora, as imagens
ao lado de Nadal, lava-
do em lágrimas no seu
último jogo. Também
Federer não conteve a
emoção na hora do
GLYN KIRK/AFP

adeus final: «Foi uma


viagem perfeita e eu
faria tudo de novo».

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JOHN MACDOUGALL/AFP

Protestos alastram pelo Irão Os protestos alastram pelo Irão, registando-se manifestações e
Por mais que o regime do Irão estrangule a internet no país, motins em todas as províncias, havendo imagens de mulheres
bloqueando aplicações como o Whatsapp ou o Instagram, os a dançar e a queimar os seus véus. Outras cortaram o cabelo
iranianos – sobretudo as iranianas – insistem em protestar pela em público, para sinalizar o seu descontentamento, e viram-se
morte de Mahsa Amini, uma estudante curda de 22 anos, que multidões a virar carros da polícia. Também se assistiram a
faleceu após ser detida pela polícia da moralidade por uso in- protestos diante de embaixadas iranianas um pouco por todo o
correto do hijab, tendo o seu corpo sinais de espancamento. mundo, de Istambul, a Nova Iorque ou Amesterdão.

Apagão em Cuba
O Furacão Ian deixou na
última semana um rasto
de destruição em Cuba.
A ilha ficou sem
eletricidade depois da
rede elétrica cubana ter
colapsado. O Centro
Nacional de Furacões
dos Estados Unidos
(NHC) informou que
Cuba sofreu «impactos
significativos» da
tempestades e ventos
sustentados de 205
quilómetros por hora. A
escassez de comida,
remédios e combustível
de que o país é alvo há
já algum tempo,
agregada à tempestade,
levou os 11,3 milhões de
habitantes ao
YAMIL LAGE/AFP

desespero. «O furacão
acabou com tudo o que
nos restava», disse um
cidadão à BBC.

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PESSOAS

Rihanna
No half-time show
do Super Bowl
Longe dos palcos desde 2018, Rihanna vai
ser a estrela do intervalo da Super Bowl, a
final do campeonato de futebol americano.
O espetáculo terá lugar em Glendale, no es-
tado do Arizona, a 12 de fevereiro de 2023.
Rihanna negou-se a atuar no chamado ‘es-
petáculo de intervalo’ por duas vezes, em
2018 e 2019. A cantora alegou que essa re-
jeição serviu para mostrar solidariedade
para com Colin Kaepernick, atleta punido
por se ajoelhar durante a interpretação do
hino dos EUA, em protesto contra a violên-
cia policial e a injustiça racial. Porém, o fac-
to de o espetáculo estar agora sob a alçada
da Roc Nation, editora com a qual assinou
em 2014, terá ajudado a artista a mudar de
ideias. A cantora, de 34 anos, irá assim su-
ceder a Dr. Dre, Kendrick Lamar, Eminem,
Snoop Dogg, 50 Cent e Mary J. Blige, que
atuaram na final deste ano.

Marcelo
Estrela dos Giants
por uma noite
O Presidente da República, Marcelo Re-
belo de Sousa, marcou presença no jogo
de basebol entre os Giants e os Colorado
Rockies, nos Estados Unidos. O chefe de
Estado português entrou como convida-
do de honra no estádio dos San Francisco
Giants, na Califórnia, para fazer o lança-
mento inaugural, numa noite de home-
nagem a Portugal. E teve até direito a
uma camisola personalizada com o seu
nome e com o número 73, a sua idade.
Antes do jogo, esteve ainda à conversa
com Brandon Crawford, jogador dos
Giants com origens madeirenses. Marce-
lo considerou «espetacular», ver a ban-
deira portuguesa erguida «no estádio de
um dos maiores clubes da América». A
Califórnia é o estado norte-americano
com maior número de emigrantes portu-
gueses e lusodescendentes: mais de 300
mil segundo os dados oficiais. Marcelo
deslocou-se à Califórnia precisamente
para contactar com as comunidades
emigrantes e lusodescendentes.

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Corgis Príncipe William
Preços batem recorde no Reino Unido O membro mais popular da família real
Ao longo dos 96 anos que viveu, a Rainha Isabel II teve 30 cães Depois da morte da rainha Isabel II e da subida de Carlos
da raça canina Welsh Corgi Cardigan. Agora, os ‘corgis’ batem III ao trono britânico, o Reino Unido voltou a ter um in-
recordes no Reino Unido. No site Pets4home, um site britânico quérito de popularidade sobre os membros da família
de compra e adoção de animais domésticos, os corgis estão à real. A sondagem feita pelo jornal The Sun colocou o Prín-
venda por 2.200 libras (cerca de 2500 euros). Ao El País o por- cipe William no topo, com 23% de aprovação, seguido da
ta-voz da loja do Reino Unido confirma que estas pesquisas esposa, Kate, com 20%. A fechar o pódio está o novo rei,
aumentaram cerca de 10 vezes desde o dia 8 de setembro — Carlos III, com 19%, a mesma percentagem da irmã,
data da morte de Isabel II — e que os preços «superaram pela a princesa Ana.
primeira vez a barreira das 2.500 libras (2.780 euros)».

Príncipe
George
‘Tem cuidado que o
meu pai vai ser Rei’
Após um desentendimento
na escola, o filho mais velho
do príncipe William e de Kate
Middleton terá dito a um co-
lega que se meteu com ele
para «ter cuidado» porque o
seu pai iria ser Rei. A informa-
ção foi avançada pela autora
Carlos III Katie Nicholl no seu livro The
New Royals, onde disse ainda
A sucessão nas redes sociais que tanto George, de 9 anos,
A Casa Real britânica partilhou no passado fim de semana a pri- como Charlotte, de 7, e Louis,
meira fotografia do monarca no seu novo gabinete no Palácio de de 4, estão a ser criados com
Buckingham, uma imagem carregada de simbolismo, uma vez base numa ideia de monar-
que o rei posa com uma das célebres ‘Caixas Vermelhas’. É nestas quia, onde é cultivado o senti-
caixas que o soberano recebe diariamente os documentos envia- do de dever. De acordo com
dos por membros do Governo do Reino Unido e dos países da Nicholl, apesar de o primogé-
Commonwealth. Isabel II recebeu ‘Caixas Vermelhas’ pratica- nito dos príncipes de Gales sa-
mente durante todos os dias durante as sete décadas do seu reina- ber que provavelmente será
do, com exceção para o Dia de Natal. Na imagem divulgada salta monarca, os pais estão a tentar
também à vista, atrás do Rei, uma fotografia a preto e branco dos não incutir essa responsabili-
seus pais, a rainha Isabel II e o duque de Edimburgo. dade demasiado cedo.

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REALEZA

A HERANÇA
DE CARLOS III
Após a morte da sua mãe, a Rainha Isabel II, Carlos
herdou o trono mas também a sua fortuna privada,
um património colossal que receberá sem ter de pagar
o imposto sucessório, um privilégio reservado aos
herdeiros reais. Mas, afinal, de quanto estamos a falar?

TEXTO Sara Porto

É
possível que, uma das pri- mil libras, ou seja, 373 mil euros, está su-
MARC ASPLAND/AFP

meiras coisas que nos inter- jeita a um imposto sucessório de 40%.


rogamos quando morre um Contudo, Carlos III não terá de entregar
monarca, seja: Qual será a sua esse valor às finanças do reino, graças às
fortuna? Ou: Quantos zeros regras aprovadas em 1993 – que dão tra-
aparecerão no extrato da con- tamento de exceção ao herdeiro da coroa
ta bancária? Ou ainda: Quan- no momento em que recebe o património
to valem todos os bens que adquiriu? pessoal do anterior monarca. Segundo es- celebra a passagem do ano. Além disso,
A Rainha Isabel II morreu no princípio sas regras, os bens passados de um sobe- Isabel ll possuía uma grande carteira de
do mês, aos 96 anos e, segundo o jornal rano, ou do consorte de um soberano, para ações e ainda uma coleção de selos reais
britânico The Sunday Times, era dona de uma o próximo monarca «estão isentos de im- estimada em 100 milhões de libras, cer-
fortuna pessoal avaliada este ano em 370 posto sucessório». Além disso, as regras ca de 115 milhões de euros, segundo no-
milhões de libras, cerca de 427 milhões de estabelecidas num memorando de enten- ticiou o The Times, no ano passado. As cé-
euros, «mais cinco milhões do que em dimento do governo de 2013 asseguram lebres joias da coroa britânica que estão
2021». Por isso, o Rei Carlos III (seu su- também «que o monarca tenha o seu pró- avaliadas em cerca de três mil milhões
cessor), herdou da mãe não só o trono do prio dinheiro privado e, portanto, a sua de libras, cerca de 3,5 milhões de euros,
Reino Unido, como uma fortuna pessoal, independência financeira em relação ao passaram também de forma automática
«que receberá sem pagar imposto suces- Estado». para o seu sucessor.
sório, num privilégio reservado às trans- Da fortuna de Carlos faz parte patrimó- Carlos III herda também o Ducado de
missões reais». A maior parte desta rique- nio como o castelo de Balmoral, na Es- Lancaster – propriedade real desde a Ida-
za passará para Carlos sem que o governo cócia, (onde Isabel II morreu e que é o de Média –, que gerou 24 milhões de li-
britânico receba uma única libra. destino de verão da família real britâni- bras, cerca de 27 milhões de euros, em re-
ca); a residência de Sandringham, na In- ceitas privadas para o monarca britânico
De soberano para soberano glaterra, passa a propriedade privada do no último ano fiscal. O Ducado de Lan-
De acordo com a CNN, no Reino Unido, a monarca britânico, sendo conhecida caster reuniu a herança privada dos reis
herança de bens com valor a partir de 325 como o local onde a família geralmente britânicos durante seis séculos. De acor-

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Carlos III assumiu
o trono com 73 anos

do com o El País, o seu principal objetivo é de 100 milhões de euros, contando com
proporcionar aos monarcas uma fonte de uma fatia extra de mais de 34 milhões de
rendimento independente do subsídio so- libras, cerca de 40 milhões de euros, para
À HERANÇA berano, a rubrica orçamental disponibili- renovação do Palácio de Buckingham, em
DE 427 MILHÕES zada pelo Estado para as suas funções ofi-
ciais. Apesar disso, com a subida ao tro-
Londres. Essa subvenção soberana é uti-
lizada «para financiar despesas relacio-
DE EUROS no, Carlos perde o Ducado de Cornualha,
que pertence ao filho mais velho do mo-
nadas com a representação oficial do che-
fe de Estado ou membros da sua família»,
ACRESCENTA-SE narca britânico e que gera cerca de 21 mi- incluindo salários do pessoal, manuten-
A FORTUNA lhões de libras, cerca de 24 milhões de eu-
ros, por ano.
ção e limpeza dos palácios, viagens ofi-
ciais e receções.
PRIVADA A tudo isto, será acrescentada a fortuna
privada de Carlos, avaliada em cerca de
Além disso, ficará também com a car-
teira da Crown Estate – um maiores im-
DE CARLOS, 100 milhões de dólares. périos imobiliários da Europa – que inclui
AVALIADA EM Segundo a CNN, Carlos vai receber tam-
bém uma «subvenção soberana» anual
propriedades comerciais, incluindo imó-
veis em localizações privilegiadas no cen-
100 MILHÕES do Tesouro britânico, fixada em 15 por
cento do rendimento do património da Co-
tro de Londres, terrenos rurais e costeiros
em todo o país e ainda as águas em redor
DE DÓLARES roa e que para 2021-2022 alcançou cerca de Inglaterra e do País de Gales. 

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CELEBRIDADES
CASAMENTOS

TAMARA FALCÓ E IÑIGO ONIEVA:


UM NOIVADO DE 48 HORAS
A rutura inesperada do relacionamento da irmã de
Enrique Iglesias e estrela da Netflix e o empresário tem
estado a dar que falar. No espaço de dois dias, Tamara
Falcó e Iñigo Onieva anunciaram o noivado e decidiram
‘apagá-lo’ das redes sociais. O motivo? Uma traição.

TEXTO Maria Moreira Rato

A
penas dois dias depois do
anúncio do noivado, Tamara
Falcó separou-se de Iñigo
Onieva: e este desfecho está
a dar que falar nos órgãos de
informação espanhóis e,
agora, chega aos internacio-
nais. Nas redes sociais, a irmã do cantor
Enrique Iglesias e filha do falecido mar-
quês de Griñón, Carlos Falcó, e de Isabel
Preysler, deu a conhecer, ao grande pú-
blico, que ia dar o nó, na quinta-feira da
semana passada, e apagou a publicação
no sábado seguinte. Isto é, após 48 horas.
Mas esta rutura inesperada tem uma ex-
plicação: na sexta-feira, 24 horas depois
de Tamara ter partilhado com os seguido-
res que se casaria, veio a público um ví-
deo onde Iñigo Onieva aparece a beijar ou-
DR

tra mulher, uma gravação sobre a qual o O empresário e a irmã de Enrique Iglesias e igualmente estrela da Netflix
ex-noivo de Tamara Falcó já se pronun-
ciou, sendo que pediu desculpa à então cia de que magoou Tamara, garante con- tivo e quero desculpar-me e agradecer
companheira e à família da mesma. «Foi tinuar «completamente apaixonado por pelo trabalho de investigação que os meios
uma atitude inaceitável, que lamento ela» e frisa que a mesma é «a mulher de comunicação fizeram, caso contrário
muito. Estou arrependido e destroça- da sua vida». nunca teria descoberto. Apesar de ser
do», referiu. Ainda que tenha consciên- «Acho que tudo acontece por um mo- uma situação muito complicada, estou

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«EU QUERO
ALGUÉM QUE
TENHA OS MESMOS
VALORES QUE EU
E QUE ME TRATE
COM RESPEITO
E CONFIANÇA»

muito grata», disse, à sua vez, a marque-


sa, naquelas que foram as suas primeiras
declarações no rescaldo do fim do noiva-
do. «Quando vi o segundo vídeo, tudo
mudou. Para mim o casamento é uma
promessa de amor eterno e estou feliz que
tenha saído agora desta relação, porque
vejo o amor de uma forma diferente. Eu
quero quero alguém que tenha os mes-
mos valores que eu e que me trate com
respeito e confiança. É a base de qualquer
relação amorosa e eu fiz isso até que as
provas fossem avassaladoras, mas não
me arrependo de nada», observou a so-
cialite de 41 anos, não se impedindo de
realçar que o antigo companheiro tem
uma noção de amor diferente da sua, sen-
do que fez este discurso na sua primeira
aparição em público, num evento em Ma-
drid, tendo sido recebida com aplausos e
decidido falar honestamente aos jorna-
listas presentes.
«Ele sempre negou. Se eu soubesse
disto tudo, não teríamos chegado a este
ponto. Estou feliz por ter confiado em
Deus e acredito que isto tenha aconte- >>
DR

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CELEBRIDADES CASAMENTOS

cido por algum motivo. A partir de ago-


ra só pode melhorar», rematou Tamara,
que já não segue Iñigo, de 33 anos, nas
redes sociais. E vice-versa. Os dois man-
tinham uma relação desde 2020 e, se-
gundo adiantado pela imprensa espanho-
la, o casal iria celebrar a sua união no ve-
rão do próximo ano.

Os casamentos
mais curtos da história
Mas este não é o único casamento que
não chegou a acontecer e, aparentemen-
te, tinha tudo para dar certo. E, por outro
lado, vai ao encontro da extensa lista dos
noivados mais curtos da história (das ce-
lebridades) que começa com as 55 horas
da cantora Britney Spears com o colega
de escola Jason Alexander. Em segundo
lugar, surgem os quatro dias do ator Ni-
colas Cage e da maquilhadora Erika 1.
Koike: depois de um ano de namoro, tro-
caram alianças e, pouco tempo depois do 2.
final do relacionamento, Cage admitiu
que não estava «suficientemente sóbrio
para casar».
Logo de seguida, encontramos nove dias
dos músicos Cher e Gregg Allman: a artis-
ta tinha acabado de se divorciar quando
deu o nó com Allman e, quando tudo cor-
reu mal, justificou que não sabia que este
era toxicodependente. Depois, aparecem
a modelo e atriz Carmen Electra e o anti-
go jogador de basquetebol Dennis Rodman
que, em 1998, decidiram casar depois de
uma festa que ocorreu em Las Vegas, sen-
do que admitiram que tal havia sido fruto
de precipitação. Já a também modelo e
atriz Pamela Anderson e o produtor Jon
Peters estiveram casados durante 12 dias,
sendo que teriam namorado 30 anos an-
tes. No entanto, problemas financeiros te-
rão originado a separação.
Em 2008, o ator Eddie Murphy e a em-
presária Tracey Edmonds trocaram alian-
ças no 1,º de janeiro, numa praia na ilha
de Bora Bora, mas revelaram posterior-
mente, em declarações à comunicação so-
cial, que tinham cometido «um erro».
Uma amiga próxima de Tracey revelou que
Eddie se tornou muito «mandão e fisica-
mente intimidador» e insistiu que a sua
mãe os acompanhasse na lua de mel. A 1. Britney Spears e Jason Alexandre lideram a lista dos casamentos mais curtos celebrados entre
ex-miss EUA Ali Landry e o ator Mario Lo- celebridades 2. De seguida, surgem Nicolas Cage e Erika Koike 3. Em terceiro lugar na extensa
pez estiveram casados por 18 dias: volvi- lista, surgem Cher e Gregg Allman

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3.

dos sete anos, Lopez confessou ter traído pediu o divórcio e Lisa asseverou que tudo dançarina Jennifer Esposito. Casaram a 30
a então noiva enquanto decorria a sua des- não passara de um erro. de dezembro de 2006 e volvidas 16 sema-
pedida de solteiro. O ator Colin Farrell e a atriz Amelia War- nas pediam o divórcio devido a «dema-
Pamela Anderson aparece novamente ner estiveram juntos durante quatro me- siadas diferenças» entre ambos.
na lista por ter casado com o jogador de ses. Farrell chegou até a tatuar no dedo Mais dois meses são acrescentados ao
póquer americano Rick Salomon, em anelar a alcunha da companheira, ‘Millie’, matrimónio da atriz Drew Barrymore e
2007, na cidade americana de Las Vegas, dizendo que ambos eram demasiado jo- do ator Tom Green, que decidiram dizer
mas ter pedido a anulação do casamento vens para terem casado num tão curto es- o célebre ‘sim’ em 2001.Mas, seis meses
60 dias depois. E porquê? Não se sabe, mas paço de tempo entre o namoro e a troca de depois, disseram exatamente o mesmo
o casal retomou a relação e voltou a con- votos e alianças. É que, naquela altura, que Farrell e Warner. Mais um mês é so-
trair matrimónio sete anos depois: e o ca- Farrell tinha 24 anos e Warner 19. E du- mado à união de Liam Hemsworth e Mi-
samento não durou muito, apenas 15 me- rante quatro meses somente estiveram ley Cyrus, que, se tivermos em conta os
ses. Em 2013, a influencer Kim Kardashian juntos também o ator Bradley Cooper e a variados tempos de namoro e separação,
casou com a estrela da NBA Chris durou 10 anos. Mas, oficialmente, casa-
Humphries, após sete meses de namoro, ram em 2019 e, aparentemente, enquan-
e o matrimónio chegou mesmo a ser to o ator queria começar a construir uma
transmitido durante o reality Keeping Up família e ‘assentar’, Cyrus tinha outros
With Kardashians. 72 dias depois, Kim pe- planos, desejando viver mais experiên-
diu o divórcio: após a separação, o ex-ma- cias antes de ter responsabilidades acres-
rido sofreu de problemas psicológicos e a cidas. A seu lado, Jennifer Lopez e Cris
sua saúde mental foi tema nos órgãos de Judd casaram dois meses depois de se te-
informação. rem conhecido e, após nove meses, já es-
E, tal como Pamela Anderson, Nicolas tavam divorciados devido a «diferenças
Cage ocupa mais um lugar nesta lista, pois inconciliáveis».
casou também com a cantora Lisa Marie No extremo oposto, depois de Kirk Dou-
Presley, no Havai, em 2002, sendo que a
ocasião foi marcada pelos 25 anos de mor-
PAMELA glas e Anne Buydens, temos Meryl Streep
e Don Gummer, cujo primeiro encontro
te do pai da noiva, o lendário Elvis Presley. ANDERSON foi em 1978 , após o qual Gummer deci-
O ator não poupou esforços e comprou
para a esposa um anel de noivado com um E NICOLAS CAGE diu oferecer a Meryl um apartamento por
causa da morte do seu marido, John Ca-
diamante amarelo de seis quilates avalia-
do em milhares de dólares, mas volvidos
SURGEM DUAS zale, devido ao cancro do pulmão. Eles vi-
riam a casar-se seis meses depois, a 30 de
três meses tudo teve um fim triste: o ator VEZES NA LISTA setembro de 1978. 

1 OUTUBRO 2022 LUZ 15


DESPORTO
MODALIDADES

Aos 37 anos, Michael Phelps é um dos nomes mais reconhecidos


do mundo da natação, conquistando, ao longo da carreira,
60 medalhas. Hoje em dia, é um dos principais defensores
da importância da saúde mental dos atletas. ‘Perdemos
demasiados atletas para o suicídio. Prefiro salvar uma vida a
ganhar outra medalha’, disse o campeão olímpico da modalidade.

Michael Phelps
A defesa da importância
da saúde mental dos atletas
TEXTO José Miguel Pires

O
nadador olímpico Michael são entrou sorrateiramente na sua vida em mental dos atletas. «Se olharmos para a
Phelps, que conquistou, ao 2004, ano em que fez a primeira partici- Simone Biles, isso aconteceu com ela no
longo de toda a sua carreira, pação nos Jogos Olímpicos, em Atenas – maior momento da carreira. Mostra como
60 medalhas, das quais 23 conseguiu 8 medalhas, seis delas de ouro. uma doença de saúde mental é inespera-
são olímpicas, tornou-se um Falar do assunto não era opção, no entan- da. Precisamos de cada vez mais pessoas
dos grandes embaixadores to, revelou que chegou a ter dias em que que se estão a abrir para partilhar, para
mundiais em defesa da im- não queria estar, sequer, vivo. baixar estas paredes, estes limites que as
portância da saúde mental dos atletas. «Competir foi uma das minhas coisas pessoas construíram», sublinhou Phelps,
Phelps, de 37 anos, um dos nomes que favoritas. Eu era um tubarão e cheirava confessando que, ainda hoje em dia, tra-
ficaram para sempre marcados nos anais sangue na água e continuava. Na altura va uma luta contra esta doença.
mundiais da natação, já não pratica pro- não quis falar abertamente sobre a minha «Há dias em que acordo e me sinto óti-
fissionalmente desporto, mas continua saúde mental, porque temia que essa mo e, no dia seguinte, posso acordar e ser
ligado ao meio, na saúde mental dos atle- abertura fosse vista como um sinal de fra- um humano completamente diferente,
tas. Phelps que, ele próprio, sofreu du- queza ou uma vantagem para a concor- por isso é só tentar encontrar esse equi-
rante anos com uma depressão, escon- rência. Passei por um período em que não líbrio. Esta vai ser uma viagem contínua
dendo-a dos meios de comunicação e do queria estar vivo», revelou o atleta olím- que poderá nunca ser resolvida», con-
público geral. pico na mesma entrevista, onde saudou cluiu o medalhista olímpico.
Agora, no entanto, o norte-americano os atletas que, nos últimos anos, falaram Ainda no universo do ténis, deu que fa-
revelou a batalha que travou contra esta publicamente sobre as suas lutas com a lar este ano o caso de Ashleigh Barty. A
doença mental, dedicando-se a ajudar ou- depressão, nomeadamente a tenista Nao- australiana apanhou tudo e todos de sur-
tros atletas que estejam na mesma situa- mi Osaka, que se afastou dos courts duran- presa quando anunciou a retirada aos 25
ção em que já esteve. «Prefiro ter a opor- te cerca de um ano devido a este preciso anos. Líder do ranking mundial desde
tunidade de salvar uma vida do que ga- assunto. 2019, a australiana revelou ter sofrido de
nhar outra medalha de ouro porque «Tenho de aplaudir a Naomi Osaka. Ela depressão, razão pela qual chegou a estar
defender a saúde mental é muito mais im- abriu as redes sociais e contou o que es- medicada durante dois anos.
portante. Perdemos demasiados atletas tava a passar. Isso não é a coisa mais fácil
olímpicos para o suicídio. Não quero per- de se fazer», disse Phelps, nomeando, logo CR7 procura ajuda
der mais nenhum membro da minha fa- de seguida, a ginasta norte-americana Si- Ao mesmo tempo que o mundo ficava a
mília olímpica», disse Phelps à AFP, numa mone Biles, que foi também a protagonis- conhecer as lutas de Michael Phelps con-
entrevista no fórum Demain le sport. ta, nos últimos anos, de uma campanha tra a depressão, o assunto tocou também
Segundo foi sendo revelado, a depres- de sensibilização sobre o tema da saúde num nome mais ‘próximo’ de Portugal.

16 LUZ 1 OUTUBRO 2022


PHELPS REVELOU
QUE, AINDA HOJE,
TEM DIAS EM
QUE ACORDA
E SE SENTE
‘UMA PESSOA
DIFERENTE’

Cristiano Ronaldo, o craque madeirense


que é considerado por muitos como o me-
lhor jogador de futebol do mundo, terá pe-
dido ajuda a Jordan Peterson, um famoso
psicólogo do Canadá. Peterson revelou,
num programa de televisão norte-ameri-
cano, que Cristiano o convidou para ir a
sua casa. «Ele estava com alguns proble-
mas há uns meses e um amigo dele en-
viou-lhe alguns dos meus vídeos. Quis
falar comigo, estivemos à conversa du-
rante umas horas. Ele queria, sobretudo,
falar sobre o que deseja para o futuro e
também sobre alguns obstáculos que está
a enfrentar neste momento», afirmou Jor-
dan Peterson. Recentemente também o
surfista português Vasco Ribeiro anunciou
que irá estar fora das competições duran-
te algum tempo, revelando que chegou a
altura de pedir «ajuda profissional» e de
se focar na sua saúde mental. «Enquanto
estamos a ganhar tudo parece fácil, e mui-
tas vezes não nos apercebemos do quão
difícil é a vida de um atleta de alto rendi-
mento. O último ano tem sido bastante
desafiante, e tem vindo a piorar de uma
maneira que eu sozinho já não estava a
conseguir gerir. Tinha pouca vontade para
fazer as coisas que me são mais impor-
tantes, e, por isso, chegou a altura de pe-
dir ajuda profissional para conseguir vol-
tar um dia a lutar pelos meus sonhos»,
escreveu a 12 de agosto, na última men-
sagem publicada nas redes sociais. Vasco
Ribeiro, que se sagrou campeão nacional
nas diferentes categorias, campeão euro-
peu e campeão mundial júnior, explicou
que sempre teve o sonho de entrar no
World Tour e vencer o título mundial. 

1 OUTUBRO 2022 LUZ 17


ENTREVISTA

O Rock and Roll em Portugal tem um pai que se cha-


ma Jorge Palma. Celebrando 50 anos de carreira com a
série de concertos Antologia, o homem que canta clás-
sicos como ‘Deixa-me Rir’, ‘Dá-me Lume’ e ‘Frágil’ vai
revisitar toda a sua discografia – e a sua vida, dos dias
nas ruas de Paris às noites em casa de figuras ilustres
como Ary dos Santos ou Luís de Sttau Monteiro.

Jorge
Palma
‘Tem que se ter sorte, muita
perseverança e resiliência’
TEXTO José Miguel Pires FOTOGRAFIA Bruno Gonçalves

O
que é que mais mudou, em ciar. Mas o público consumia essa música,
50 anos – desde que lançou dos cançonetistas, não falando de ranchos
‘The Nine Billion Names of folclóricos e algumas coisas engraçadas,
God’ –, no país e no mundo, como o António Mafra. Na minha adoles-
e na forma como os públi- cência, quando o pessoal começou a ouvir
cos recebem os artistas? Eu e a tocar coisas como Elvis, Paul Anka, Bea-
nasci em plena ditadura. tles, The Rolling Stones... começou a haver
Toda a minha infância e adolescência foram bandas, em Portugal, mas a cantar em in-
neste país, que era muito cinzento, muito glês. Excetuando, claro, o quarteto 1111, que
retrógrado. A minha mãe, por exemplo, – é um caso à parte. Grande José Cid! [risos].
eu vivia com pais separados – ouvia muita O pessoal não dava valor absolutamente ne-
música clássica, mas também só havia na nhum à música feita cá. Mas isso é uma ve-
rádio Tony de Matos, que é dos mais mar- lha tradição do pessoal português. Havia essa
cantes. Fado nunca gostei muito, até recen- opinião e ainda há, um bocadinho. Artistas
temente, em que tenho começado a apre- como Maria Helena Vieira da Silva, Paula >>

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ENTREVISTA JORGE PALMA

‘O 25 de Abril
mudou
isto tudo,
é indiscutível.
Até na
questão
da música.
E de forma
relativamente
rápida’
Rego ou Maria João Pires, por exemplo, são
artistas que, só depois de terem tido reco-
nhecimento internacional é que o pessoal
começou a dar valor cá. É como o Sarama-
go. O que acontece é que, até à saída do Ar
de Rock, do Rui Veloso [1980], não se ou-
viam bandas portuguesas, nem artistas por-
tugueses, na rádio da música das novas ge-
rações. A partir dos anos 80, tudo mudou.
Eu estava em Paris, não vinha cá há dois
anos, e quando cheguei, em 1980, só se ou-
via rock português. Eu ouvia e pensava: ‘En-
tão, mas o que é que aconteceu?’ [risos]. E,
de repente, houve uma viragem total. Cada
vez mais o pessoal gosta da música feita cá,
e há bandas que cantam em inglês, como
os Blind Zero, o David Fonseca... mas o que
acontece é que o pessoal vai aos concertos,
compra os discos... quer dizer, hoje em dia,
os discos não vendem a ponta de um corno
[risos]. Mas as coisas mudaram radicalmen-
te. Em termos de música popular, houve de-
pois discos como o Por Este Rio Acima, do
Fausto, ou a obra de José Mário Branco e Sér-
gio Godinho, e por aí fora.

Isso foi obra do 25 do Abril, em parte? O 25


de Abril mudou isto tudo. É indescritível. A
mudança que, rapidamente, ocorreu neste

20 LUZ 1 OUTUBRO 2022


país, até na questão da música. E duma for- dado para integrar um grupo e também fui gle, por exemplo, não está mal construído. O
ma relativamente rápida. Eu não estava cá, a Montreal, Toronto, São Francisco e São Jo- ‘The Nine Billion Names of God’ está engra-
estava a viver em Copenhaga, mas há pes- sé, Vancouver... mas a grande viagem foi, çado. Desde a infância, adolescência, que eu
soal que conheci só quando a gente voltou, de facto, quando me pirei à tropa e fui vi- estudei música. Sabia escrever para outros
em 1974, como o Sérgio Godinho ou o Zé ver, durante quase um ano, em Copenhaga. instrumentos e comecei a fazer arranjos para
Mário Branco. Aí é que foi o grande choque cultural. outros cantores. Há muito tempo que eu não
ouvia esse single e, agora, ouvir aquilo tudo,
Mas mesmo antes, o EP ‘A Última Canção’, Que efeitos teve essa viagem na sua músi- sobretudo a minha escrita em inglês, acho
de 1973, teve a mão de Ary dos Santos. A ca e na sua vida? Entre 1973 e 1974, lá era que é uma canção engraçada.
ele já o conhecia pessoalmente, então? O muito diferente, a começar, por exemplo,
primeiro EP saiu há 50 anos. É um single, em por ver debates políticos na televisão... numa Já falou do inglês duas vezes... Foi melho-
inglês que é a adaptação de um conto do altura em que em Portugal só se via o Amé- rando. Tive muita experiência e é a falar, a
Arthur C. Clarke, que se chama ‘The Nine rico Thomaz e o Salazar, o Marcello Caeta- ler e a escrever que se começa verdadeira-
Billion Names of God’. Esse single foi escri- no... A relação entre o homem e a mulher lá mente a falar uma língua. O meu inglês era
to por mim, num inglês um bocado acadé- também era muito diferente, numa altura do liceu e das letras das canções dos gajos,
mico, principiante. Na altura, eu não conse- em que Portugal era um país muito machis- e gajas, de quem gostava. Antes do Bob
guia escrever letras em português e, através ta. Com essa viagem, evoluí e cresci bastan- Dylan ouvia James Taylor, Paul Simon...
do Fernando Tordo, chego à fala com o Ary te com o contacto com esse pessoal nórdi-
dos Santos e rapidamente começámos a tra- co. Depois, voltei para Portugal, gravei o pri- Se ouvirmos o ‘The Nine Billion Names of
balhar. Entretanto, tornamo-nos grandes meiro álbum e, dois anos mais tarde, veio o God’ no YouTube, nas recomendações sur-
amigos e o segundo disco em meu nome é segundo. Entretanto fui embora porque o ge logo Lou Reed. Também se identifica
o tal EP, chamado ‘A Última Canção’, com meu casamento, enfim, já tinha acabado. com este artista norte-americano? Sim,
quatro canções: duas letras do Ary e duas Não tinha filhos, nada a prender-me cá. A mas isso veio mais tarde. O Lou Reed foi
letras minhas, já a imitar o mestre José Car- minha mãe rapidamente habituou-se a não uma grande influência para o meu segundo
los Ary dos Santos. saber de mim durante muito tempo [risos]. álbum. Quando digo que escrevi o ‘Bairro
Portanto, aí foi quando fui tocar na rua, no do Amor’ muito influenciado pelo Lou Reed,
Que memórias lhe ficam da amizade com metro, uns anos fantásticos. as pessoas não acreditam, dizem que não
Ary dos Santos? Eram de gerações diferen- tem nada a ver. De facto, não tem, mas cá
tes... Eu não me lembro quantos anos é que Em França? Ou em Copenhaga? Nessa al- dentro, tinha. As mudanças de acordes, por
o Ary tinha a mais do que eu, mas torna- tura, fomos, às vezes, à Dinamarca... íamos exemplo... há muito Lou Reed, David
mo-nos irmãos e era raro o dia em que não à Suíça, Alemanha, Inglaterra... mas a sede Bowie... mas podia estar aqui a dizer uma
estávamos juntos. Ou em casa dele ou em era Paris, o quartel-general. lista que nunca mais acaba, como os Led
minha casa, ou nos bares ou em casas de Zeppelin, por exemplo...
escritores como o Luís Sttau Monteiro, Na- Já há muitos anos que anda nisto... olhando
tália Correia... noite, muita noite, muitos co- para os primeiros trabalhos, tem uma leitu- Porquê o Rock and Roll? Até tomando em
pos. No meio disto tudo, trabalhávamos um ra deles completamente diferente agora, conta o passado na música clássica... Um
bocado [risos]. comparativamente à altura? O primeiro sin- gajo com 14 anos, no quarto ano do Liceu >>

Depois veio uma viagem pelos EUA, pelo


Canadá, Caraíbas... Não, isso foi num ve-
rão... A minha mãe adorava viajar e sempre
viajou. A primeira grande viagem que fiz
para países estrangeiros foi aos 8 anos: Es-
panha, França, Holanda, Bélgica, Alema-
nha, Itália... tinha 8 anos. A minha mãe ado-
rava fazer cruzeiros, e fizemos vários para a ‘Quando digo que escrevi
Madeira, sobretudo. Houve um cruzeiro de
quase um mês que, penso que começou no o Bairro do Amor muito
influenciado pelo Lou Reed,
Canadá, em Halifax. Depois Boston, Nova
Iorque, Miami, as ilhas das Caraíbas... Fa-
zer um cruzeiro há quem goste, há quem
não goste. Eu até gosto, mas culturalmente
não enriquece muito, passa-se pouco tem- as pessoas não acreditam,
po nos sítios. Em Nova Iorque foram três
dias, foi porreiro. Como músico, fui convi- dizem que não tem nada a ver’
1 OUTUBRO 2022 LUZ 21
ENTREVISTA JORGE PALMA

Camões, começa a ouvir Beatles na jukebox Que se lixe o Schubert, disse há pouco, mas
que estava mesmo na esquina ao pé do liceu, se ouvirmos a sua discografia ele e outros da
Stones... e outros, como os The Who... e per- música Clássica estão lá... No meu compor-
cebe ‘Pá, isto é que é. Que se lixe o Schu- tamento mandei lixar, mas ficaram cá.
bert, o Beethoven e o Mozart, que vão todos Quando tinha 32 anos, tinha um filho e sen-
dar uma curva. Quero é isto’. Miúdas, Rock ti que tinha de assentar um bocado, reciclar
and Roll e dançar? Festas? Isso é que é. De- e coordenar ideias, então decidi estudar mú-
pois só retomei os estudos já aos 33 anos. sica. Acabei o curso superior aos 40 anos,
tinha o dobro da idade dos meus colegas to-
Esse mundo do sexo, drogas e Rock and Roll dos. Mas eu sentia-me como se tivesse a
está romantizado? Isso também consta no idade deles. Se não ia a uma aula de Forma-
percurso, obviamente, mas trabalha-se ção Musical, Acústica ou História da Músi-
muito. Há a ideia que as estrelas de rock não ca, alguém me passava os apontamentos.
fazem nada, mas não é bem assim. Há pes-
soal que tem lidado mal com o sucesso, es- Então reviveu, de alguma forma, os anos
pecialmente quando é repentino. Tem que de escola, não? Foram anos fantásticos.
se ter sorte, muita perseverança, resiliência Apanhei professores extraordinários. Eu já
e trabalhar muito para conseguir chegar a tinha algum nome e trabalho feito, mostra-
um determinado nível a escrever e a tocar. do em concertos... às vezes não podia ir às
Portanto, não é mesmo só sexo, drogas e aulas porque tinha tido concertos ou então,
rock and roll... mas, claro, alegrava o per- pronto, porque tinha andado nos copos, mas
curso muitas vezes [risos]. aprendi muito e tive grandes professores e
colegas.
‘Resiliente’ é uma boa palavra. Define-o
bem. É uma palavra que se usa muito ago- Tinha um professor que dizia que era da
ra. Eu sou um gajo resistente, fisicamente e ‘escola russa’, assim mais disciplinador,
na minha estrutura mental. Se tenho um não? A minha grande professora de piano,
objetivo, consigo lá chegar, independente- que me começou a ensinar quando tinha 8
mente dos obstáculos. Sempre que eu quis anos e até aos 14, quando mandei tudo dar

‘Eu não apago as últimas mensagens que


tenho do José Mário Branco e do Zé Pedro’
gravar um disco, arranjei maneira de o fa- uma volta. Depois, quando decidi voltar a Já costuma ser-se difícil fazer o alinhamen-
zer... sem gastar um tostão, obviamente. Ar- estudar música, fui ter com essa senhora, to de um só concerto... agora seis... como tem
ranjei sempre editoras para pagar estúdio, Fernanda Chichorro, que me recebeu de sido escolher as músicas para cada um? Tem
músicos e etc. braços abertos e que me preparou para o sido engraçado porque estou a visitar músi-
exame do sexto ano do Conservatório. De- cas que já não sabia tocar, e estou a desco-
Isso é um feito. É, às vezes deu trabalho, pois tive a Olga Prats, minha grande amiga bri-las e a achar piada. Eu e o resto da ban-
mas nunca desisti e é algo que tenho a meu que faleceu há pouco tempo [2021], mas da estamos empenhados nisto com todo o
favor. quem me preparou, de facto, para o meu gosto e com muito trabalho. Eles, ainda por
último exame do curso superior foi o Mi- cima, como são muito mais novos do que eu,
Com uma carreira que já vai longa, o que o guel Henriques. Escola russa, dura, mas ele há canções que eles pura e simplesmente não
mantém motivado para continuar? Faz com não dava em cima de mim, ele não tinha conheciam. Para mim, no fundo, elas conti-
que me sinta bem, com saúde, e gosto mui- era piedade nenhuma. Dizia: «Estás can- nuam cá dentro [aponta para a cabeça] por-
to disto. Sou bastante eclético. Há períodos sado? Olha, também eu, vá». Aprendi que escrevi-as, mas, mesmo assim, estou a
em que me apaixono por determinado tipo muito com ele. estudá-las e a reaprendê-las. Isto da Anto-
de música... e, por exemplo, dentro da Clás- logia foi ideia dos meus managers, que de vez
sica, por determinado período ou composi- Compensou essa dureza e essa discipli- em quando têm ideias assim destas, e acei-
tor. O mesmo acontece no Rock, com os na? Compensou. Safei-me muito bem nos tei o desafio. Estamos a trabalhar muito bem.
Blues ou o Jazz. exames. O primeiro é a solo, como já tenho feito. Aliás,

22 LUZ 1 OUTUBRO 2022


o ‘Só’ ao vivo foi gravado entre o CCB e a Casa legas ao longo dos anos... como lida com músico e está a fazer um excelente traba-
da Música em 2016, por exemplo, e tenho fei- isso? Isso é sempre muito chato. E ainda lho, tal como os outros músicos. Isso tam-
to ao longo dos últimos anos, de vez em quan- por cima há algumas mortes inespera- bém motiva. Depois estamos sempre os dois
do, concertos a solo. O primeiro concerto é das, como foi o José Mário Branco. O Zé ao piano a tocar e a gravar para mandar aos
piano e eu, onde percorro, praticamente, to- Pedro já tinha problemas de saúde gran- outros músicos para rever estruturas e acor-
dos os discos também, mas em doses peque- des nos últimos anos, mas, de qualquer dos. Dá muito gozo, isto. Não estou ansioso
nas. Não gosto de ver, enquanto públicos, forma, é sempre muito triste. Eu guardo, em relação a nenhum concerto, sei que vão
concertos – ou teatro, seja o que for – dema- não apago as últimas mensagens que tro- correr bem.
siado longos, porque começo a chatear-me. quei com o Zé Mário, o Zé Pedro, e ou-
Nos tempos das jam sessions e de muita malu- tros que também já fui perdendo ao lon- Ao longo de 50 anos, já falou com muitos
quice, podia estar até 12 horas a improvisar go dos anos. Mas isso... é como é. It is what jornalistas. Que pergunta é que nunca lhe
com os amigos, mas concertos de mais de it is e vamos seguindo. fizeram, e que gostaria que lhe tivessem
duas horas não. Pronto, depois ‘cada Tivoli’ feito? Já me cruzei com muitos, mesmo. Essa
[concertos II a V no Teatro Tivoli] correspon- Há algum dos concertos da Antologia que o pergunta, eh lá... [risos] acho que nunca fi-
de a três álbuns. Eu tenho 12 álbuns de origi- deixe mais ansioso ou mais entusiasmado? zeram. É essa, então. Estou a brincar, acho
nais, portanto dá três por concertos, e salvo o O melhor é sempre o próximo. Estou a es- que nunca me perguntaram quando é que
último Tivoli, falta escolher uns detalhes fi- tudar bastante em casa, e o tempo livre que tiro o brevet de piloto e compro um avião
nais, o repertório de cada concerto está fei- tenho é passado ao piano... [risos]. Ou carta de marinheiro, quem sabe.
to. Alinhar as músicas, depois é coisa de se Chapéu já tenho, só falta o dinheiro para
fazer nos próximos dias. O último concerto [A assessora entra na entrevista]: São 100 músi- comprar o barco e a avioneta.
é Palma’s Gang, sem o Zé Pedro, mas vai ser cas, entre todos os álbuns. É muita fruta, até
uma reunião muito engraçada. para mim que as escrevi, agora para os ou- Se calhar de avioneta fazia as viagens do
tros músicos... exceto o meu filho Vicente, tour mais depressa... É, mas como eu tenho
Isso é uma marca de quando se tem uma que toca comigo há 20 e tal anos, que nas- tendência para acelerar, talvez nos aviões
carreira tão longa, vão-se perdendo co- ceu e cresceu a ouvi-las. É um excelente não seja boa ideia.

1 OUTUBRO 2022 LUZ 23


CRÓNICA

Smetana
e Fauré
Os heróis do silêncio
Fazem com Beethoven (que é Beethoven e, por isso,
um caso à parte) a trilogia dos grandes surdos da
música clássica. A doença, provocada num e noutro
por motivos diversos, não os impediu que
continuarem a compor até aos dias das suas mortes.

TEXTO Afonso de Melo

É
preciso ter percorrido uma, Beethoven (ou Ludwig Van, como o tra- ele apenas como personagem etéreo que
duas, três, vinte vezes os cor- tava Alex, a personagem psicopata de paira sobre dois outros grande composi-
redores de um manicómio Stanley Kubrik em Laranja Mecânica) foi tores que, como ele, terminaram as suas
para se perceber que não é apedrejado nas ruas de Viena como se lou- carreiras e as suas vidas numa espécie de
apenas um lugar de loucos, é co fosse, só porque fazia gestos largos nos oco do mundo. (Aliás, enchi aqui várias
o lugar onde todos se liber- quais estava escondida a música que ia páginas sobre ele aquando do 250º ani-
tam dos seus fantasmas e as- compondo enquanto caminhava, a músi- versário do seu nascimento).
sumem as suas geralmente variadas per- ca que a sua surdez o impedia de ouvir. Beethoven pode ter passado por louco,
sonalidades. Quem não entra lá louco tem Mas sentia-a. E de que maneira. O Gran- ter levado com umas pedradas atiradas
todas as probabilidades de sair de lá lou- de Surdo foi único em todos os sentidos e, por fedelhos que não eram capazes de
co. Quem entra lá louco tem todas as pos- por isso, liberto-o de estar presente nes- entender a tremenda grandeza daquele
sibilidades de sair de lá morto. ta crónica de corpo inteiro, recorrendo a homem vestido com displicência e cujo >>

24 LUZ 1 OUTUBRO 2022


Smetana, o grande
compositor checo
que influenciou
Antonin Dvorák

1 OUTUBRO 2022 LUZ 25


CRÓNICA

SMETANA
COMEÇOU POR
SENTIR UM APITO
MUITO AGUDO
cérebro fervilhava de combinações ge- E PERMANENTE uma orelha ao chão e sentir a vibração dos
niais, mas nunca esteve internado num
manicómio como Bredrich Smetana, que NOS OUVIDOS E sons que produzia.

nasceu no dia 2 de Março de 1824 – 124 MORREU NUM O desgosto de Bredich


anos após Ludwig Van –, em Litomyšl a
leste de Praga, junto à tradicional fron- ESTADO DE Bredrich Smetana tinha encontrado em
Franz Lizt um compagnon de route, embora,
teira entre a Boémia e a Morávia, não es-
capou às grades da casa dos loucos.
DEMÊNCIA TOTAL ao contrário do que ele esperava, o enor-
me pianista húngaro nunca se mostrasse
Aquele que terá sido, muito provavel- disposto a emprestar-lhe nem um florim
mente, o maior compositor checo de to- para que abrisse a escola de música que
dos os tempos – com licença de Antonin era o seu grande projeto. Apesar disso,
Dvorák, não por acaso um dos seus vo- abriu um estúdio que tinha capacidade
luntariosos seguidores -viu-se mergu- impregnassem desse tom de rebeldia que para receber dez alunos e foi-se tornan-
lhado na incompreensão daqueles que o tinha o maior exemplo na escrita de Ján do um cada vez maior apoiante das ideias
rodeavam a partir de Setembro de 1874. Kollár, o poeta húngaro que escreveu A independentistas checas em relação ao
Tinha apresentado há bem pouco tempo Canção da Liberdade. As raízes revolucio- Império Áustro-Húngaro, o que não o im-
a sua ópera mais recente, As Duas Viú- nárias dessa malta jovem e entusiasta foi pediu de aceitar o cargo de pianista da cor-
vas, e voltara a provocar dissidências en- esmagada pela intervenção do exército te do arquiduque Fernando. O dinheiro fa-
tre os melómanos do seu tempo. Se mui- imperial comandado pelo príncipe de lava mais alto e ninguém prepara sucu-
tos lhe devotavam uma enorme admira- Windisch-Grätz. Bedrich, que fora apa- lentas refeições temperadas com
ção e respeito, também houve críticos nhado a erguer trincheiras na Ponte Car- idealismo. Chegou mesmo a compor A
capazes de publicar em jornais frases as- los, foi desprezado pelos defensores da or- Sinfonia Triunfal, dedicada a Fernando,
sassinas como esta: «Smetana faz com dem estabelecida e viu-se, positivamen- que este teve o descaramento de recusar
que a ópera checa nos aborreça de mor- te, na rua. por sentir que não tinha uma melodia que
te pelo menos uma vez por ano». Ou Entretanto, com apenas quatro anos, o a aproximasse do hino austríaco.
seja, cada vez que as trazia a público. pequeno Gabriel Urbain Fauré fazia os fa- A partir de 1854, a vida de Bredrich Sme-
Smetana foi um revolucionário e não há miliares e as visitas lá de casa, em Pa- tana começou a correr francamente mal em
revolucionário que não faça medrar ódios miers, Ariège, sul de França, ficarem em- todos os aspetos. Primeiro, morreu a sua se-
em seu redor. Depois de concluídos os seus basbacados como peixes fora de água com gunda filha, Gabriela, de tuberculose; no
estudos musicais na Escola Premonstra- a sua habilidade majestosa para a música, ano seguinte, foi a vez da mais velha Be-
tensian de Plzeň, preparado para sur- tocando piano como um adulto, logo ele dřiška, de escarlatina, com apenas quatro
preender o mundo com a sua arte, ficou a que nunca tivera ninguém que o ensinas- anos, e que era o seu grande orgulho por
saber que o pai, Frantisek, perdera gran- se. Um autodidata, portanto. Sexto filho demonstrar uma muito precoce habilidade
de parte da sua fortuna e que não havia do casal Toussaint-Honoré Fauré e Marie- para o piano. Smetana verteu o duplo des-
mais dinheiro à disposição para levar uma -Antoinette-Hélène Lalène-Laprade, tal gosto numa peça para esse mesmo instru-
existência exuberante como até então. Es- como Smetana nascera rodeado de dinhei- mento, um Piano Trio em Sol Menor e viu
távamos em Agosto de 1843 e Bedrich (que ro. Com a diferença que continuou rodea- o desgosto ser ainda mais amargo quando
é o nome checo para Friedrich) pôs-se a do por ele ao longo da vida. Impressiona- a crítica simplesmente arrasou o seu traba-
caminho de Praga com 20 florins no bol- dos com a verve da criança, os pais envia- lho. Mas Deus, se é que ele existe, ainda não
so, e teve a arte e o engenho (e a cunha da ram o jovem Gabriel para Paris estudar na tinha acabado a sua tarefa destrutiva em re-
mãe rica de uma moça que namoriscava) École de Musique Classique et Religieuse, lação a Bredich: enquanto a sua mulher, Ka-
para se tornar aluno do mestre Josef mais famosa pelo nome de École Nieder- terina, era diagnosticada com tuberculose,
Proksch, que lhe ensinou as bases da com- meyer, fundada pelo músico Abraham a quarta filha do casal, também Katerina,
posição e o apresentou a gente da cravei- Louis Niedermeyer. Pelo caminho, o nos- que acabara de nascer, foi igualmente leva-
ra de Lizt e Berlioz, bem como Robert e so extraordinário Ludwig Van já tinha da pela sinistra Senhora da Gadanha.
Clara Schumann. Foi no ambiente que morrido há vinte anos. Completamente Estávamos em Julho de 1856. Parecia que
conspirava contra o poder totalitário dos surdo, de tal ordem que mandara cortar nada poderia correr pior ao pobre Smeta-
Habsburgos que Smetana preparou as suas as pernas ao piano para que quando to- na, ainda um rapazinho de apenas 32 anos.
primeiras obras e, como tal, deixou que se casse ou compusesse pudesse encostar A sua carreira era basicamente despreza- >>

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1.
1. Um quadro profundamente burguês – Smetana ao piano, alguns escutam-no, outros parecem ter mais do que fazer... 2. Smetana com a sua primeira
mulher, Katerina, da qual teve quatro filhas 3. As barricadas da Ponte Carlos, em Praga, quando Smetana ferveu de ideias independentistas checas con-
tra os imperadores Habsburgos

2. 3.

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CRÓNICA

1.

1. Gabriel Fauré agarrado a um dos seus grandes assassinos – o cigarro 2. Fauré gostava de experimentar todos os instrumentos embora o piano
fosse o seu favorito 3. Uma pose de professor da Escola Niedermeyer

2. 3.

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FAURÉ DEIXOU
DE DISTINGUIR
AS NOTAS. UMA
HORRENDA
da, consideravam-no um compositor débil CACOFONIA a hora. Tornou-se num homem confuso.
e sem grande atrevimento, ao ponto de Bre-
drich ter escrito aos pais esta simples nota INSTALOU-SE- Os distúrbios mentais foram-se acumu-
lando, tinha dificuldade em reconhecer
de adeus: «Praga não me quer. Vou tentar LHE NA CABEÇA caras, a fala foi afetada ao ponto de entrar
a vida em Gotemburgo». A opção pode ter
sido estranha, mas a verdade é que a Sué- ATÉ À MORTE em afasia. A incoerência envolveu-o. Dei-
xou de andar e de falar, tinha ataques de
cia recebeu Smetana de braços abertos e fúria e alucinações constantes. Foi inter-
ele ganhou de um dia para o outro o reco- nado no manicómio de Kateřinky e mor-
nhecimento que nunca lhe tinham dado no reu no dia 12 de Maio de 1884. A causa da
seu país. Mas gente continuava a morrer em morte foi registada como demência senil,
seu redor, primeiro o pai, Frantisek, depois mas os amigos mais próximos sabiam que
a mulher, Katerina, que não tardou a subs- ele contraíra a sífilis uns anos antes. Pra-
tituir por uma das suas maiss atraentes pu- guro para se levar uma vida sossegada pró- ga chorou a sua morte esquecendo a in-
pilas, Fröjda Benecke, da qual se tornara pria de um compositor. Fauré foi viver para gratidão a que o devotou.
amante mal chegara a Gotemburgo. Com- a Suíça. Na altura as suas obras distinguiam- Dois anos após a morte de Bedrich Sme-
punha muito. Macbeth e as Bruxas, Étude -se claramente dos compositores do seu tana, Gabriel Fauré ocupava o cargo de che-
in C, Hakon Jarl, tendo remodelado a sua tempo como Gounod ou César Frank, que fe organista da Madelaine mas não demo-
Sinfonia Triunfal. Distribuía o seu tempo se lançavam nas elegias e nas odes patrió- rou muito a tomar o lugar de professor no
entre a Praga que o desprezara e a Suécia ticas. Só mais tarde é que a música de Fau- conservatório substituindo Jules Massenet.
que o amou. Ao ponto de, em Abril de 1861, ré ganhou uma aura dramática, como em Teve muitos alunos célebres, como Mauri-
ter sido convidado para uma sessão de pe- L’Absent, Seule! e La Chanson du Pêcheur. ce Ravel, Florent Schmitt, Charles Koechlin,
ças suas ao piano na presença da família Em 1871, Gabriel estava de volta a Paris para Louis Aubert, Jean Roger-Ducasse ou Geor-
real sueca, em Estocolmo. ser chefe de coro da Église Saint-Sulpice e ge Enescu. Ser presidente do conservató-
Durante esse tempo, Fauré entretinha-se para fundar a Société Nationale de Musique. rio era um passo inevitável, mas deixava
a colecionar prémios atrás de prémios na Fauré cada vez com menos tempo para
sua escola parisiense. Era naturalmente do- A sinistra ameaça compor. Ainda por cima começou a ter gra-
tado para o piano. Encontrou um professor Uma ameaça sinistra pairava sobre os dois ves problemas auditivos. Quando termi-
de luxo em Camille Saint-Säens e fomen- compositores que haviam regressado a nou a ópera Pénélope e um ciclo de con-
tou com ele uma amizade que perdurou até casa. Bedrich Smetana começou a sentir certos aos quais chamou La Chanson d’Ève,
à morte deste último que foi igualmente seu um insuportável som de apito contínuo, as dores já se tinham tornado insuportáveis
sogro. Depois de concluir os estudos, acei- algo que terá sido provocado por um aci- e não conseguia distinguir as notas umas
tou o cargo de organista na igreja de Saint- dente na infância com a explosão de um das outras tal como se dentro do seu cére-
-Sauveur, em Rennes, na Bretanha, e tor- pacote contendo pólvora a poucos metros bro habitasse uma cacofonia contínua.
nou-se, por sua vez, professor de alunos de distância. Entregou-se nas mãos dos Em 1920, incapaz, teve de abandonar o
avulsos. Faltava-lhe fé. Algo que incomo- mais eminente otorrinolaringologistas de cargo que ocupava. Lutava furiosamente
dou profundamente o padre de Saint-Sau- Praga, mas os sintomas agravavam-se com para conseguir levar até ao fim o seu Quar-
veur, que tratou de o dispensar rapidamen- a idade. A deficiência atingiu tal gravida- teto de Cordas à medida que ia ficando
te, bem como o responsável pela igreja de de que se viu obrigado a demitir-se do seu cada vez mais surdo e mais frágil fisica-
Notre-Dame de Clignancourt, a norte de Pa- último emprego, maestro do Teatro Pro- mente. Fumava como uma chaminé, o que
ris, para onde foi sob as graças de Saint- vincial. Estava absolutamente surdo do também não ajudava grandemente, pelo
-Säens e não aguentou mais do que meia- ouvido direito. Duas das suas composi- contrário. Terminou a obra dois meses an-
-dúzia de semanas. A guerra Franco-Prus- ções na altura, que titulou como Da Mi- tes de morrer mas recusou terminante-
siana tinha eclodido e Gabriel não teve pejo nha Vida, atingiam sons extremamente mente a oferta feita por alguns dos seus
em oferecer-se para o serviço militar, ba- agudos e alguma anarquia numa passa- alunos para tocá-la exclusivamente para
tendo-se na frente de batalha com tama- gem que deveria representar um baile de ele. A música, razão da sua existência,
nha coragem que, no final do conflito, re- camponeses com o acorde de Mi do pri- doía-lhe demais. Uma pneumonia veio,
cebeu a Croix de Guerre. A derrota da Fran- meiro a ser tão gritante que muitos con- violenta, e matou-o. No dia 4 de Novem-
ça, o avanço da Comuna, as convulsões sideraram que Smetana estava a tentar re- bro de 1924, desaparecia da face da Terra
sociais, tornaram Paris um lugar pouco se- produzir o som que o atormentava a toda mais um dos heróis do silêncio. 

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MUNDO
MOÇAMBIQUE

WIRIYAMU:
O PERDÃO DOS
SOBREVIVENTES
O regresso de Antonino Melo ao local do massacre de
Wiriyamu é um momento emocionante. O homem que
comandou as forças portuguesas naquele dia inquieta-se:
Como o receberão os sobreviventes que viram
as suas famílias mortas? Remexer na História,
em circunstâncias destas, é muito doloroso.
Os negros desculpá-lo-ão, mas ele não ficará em paz.
A recordação das valas que abriu, o cheiro dos corpos
mortos, continuam a atormentar-lhe o espírito.
É o quarto e último episódio de uma reportagem
publicada por ocasião dos 25 anos da tragédia.
TEXTO Felícia Cabrita
DR

C
hega à Beira. O regresso, berto, depois de algum receio, acaba por ras, violino destrambelhado. A cidade arde
passados vinte anos, é um abrir a porta. Ele entra, atravessa a casa, em- num dia e no outro abate-se sobre ela uma
trilho longo a caminho da purra portas, fixa-se em detalhes. A dispo- tempestade tropical. O ex-alferes encontra-
paz ou do desassossego. Ou sição dos móveis da sala de visitas está na -se com Sebola, o tal soldado nado em Tete,
mesmo da morte. mesma, parece uma cópia. O quarto de ado- com fama de matar crianças à faca. Trabalha
Quando chega à rua co- lescente, com as paredes cobertas de pos- agora no aeroporto e conseguiu escapar ao
mandante Diogo de Sá, dis- ters, está trancado. Que pena! julgamento de Samora. Atrapalha-se, o medo
sipa a angústia acumulada durante dias. O À despedida, Alberto pergunta a medo: eriça-lha a pele. Dá uns toques no relato. Que
ex-comando solta emoções, chora sem en- «Não quer voltar para cá, pois não?». An- sim, matavam as crianças à faca, também
traves ao rever a casa onde cresceu. Lem- tonino esclarece, apertam mãos. Que coisa ouviu falar daquela mulher grávida a quem
branças: as ‘coboiadas’ à noite no cemité- estranha; passaram vinte anos. «Parece que abriram o ventre para se inteirarem do sexo
rio, o futebol, namoro nas praias, entradas nunca saí daqui, ainda sinto isto como a mi- do feto. Antonino quer entender, interroga-
sorrateiras na sacristia para roubar hóstias... nha casa!». -o. É altura de se fazer História com verda-
Os vizinhos do novo proprietário juntam- de, insiste. Mas o terror apossou-se do outro.
-se desconfiados. A moradia de um único A hora da verdade Dá o dito por não dito e termina afirmando
andar está escalavrada, janelas remenda- Chegou a hora. Arrancar para Tete, rever Wi- que nunca pertenceu à sua companhia. Que
das, o jardim da entrada desapareceu. Na riyamu e os sobreviventes. Enche-o agora voltava no outro dia para mostrar os papéis
rua já há quase um motim, não o querem uma serenidade silenciosa, mede o tempo da tropa. Nunca mais apareceu.
deixar entrar. «Os portugueses querem as que passa. Quando o carro pára, aproveita
casas de volta», resmunga uma mulher. O para se embrenhar na mata, saudoso dos A reacção dos sobreviventes
tio António, o dono, engenheiro no conse- cheiros, da terra. Distingue o canto das gali- Em Wiriyamu, alguns sobreviventes do
lho executivo, está ausente, mas o irmão Al- nhas do mato, o barulho metálico das cigar- massacre feito pela tropa portuguesa em

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para fazer fogueira e cozinhar, e um stick
de luz. Também repelente para os mosqui-
tos e uns comprimidos para purificar a água.
«Ia preparado. Se eles se tentassem vin-
gar, era legítimo!».

As primeiras palavras
Enquanto o ex-comando se aproxima, os
outros mantêm-se imóveis. Dirige-se a Bae-
ra, estátua esguia, consumida pela aridez
daquela terra, que perdeu mulher e filhos
há 25 anos. A Antonino prende-se-lhe a voz.
Está com uma grande vontade de chorar,
mas não perdeu o implacável controlo de
um comando. Nunca lhe foi dito em que dia
se daria este encontro, mas desde que saiu
de Portugal não lhe saía da cabeça uma coi-
sa: «Como é que eu vou encarar aquela
gente?». O olhar erra de rosto em rosto, me-
dindo de onde pode partir um eventual ata-
que. Mas ao observá-los só consegue sen-
tir uma imensa vergonha. Enfrenta o mais
velho, e a voz sai-lhe trémula: «Eu era o co-
mandante da companhia de comandos que
esteve cá há 25 anos e matou a vossa gen-
te. Na altura éramos todos muito novos e
recebemos ordens dos nossos superiores
para matar toda a gente».
Os outros ficam perplexos, sem reação, sem
‘Em Wiriyamu, depois da guerra, medo, espanto total. Apenas Tenente enros-
procurei a paz’ ca os dedos uns nos outros e espia-o caute-
loso, a mesma chama buliçosa nos olhos.
O ex-comando respira fundo, acalma-se,
1972 contabilizam as mortes. Um deles, Te- monumento onde jazem as vítimas e depo- continua: «Hoje venho aqui para fazer uma
nente, parece não perdoar. Acompanha a sita os despojos. A revolta domina-o. homenagem aos vossos mortos e pedir-vos
narrativa da miséria da sua família com Antonino aproxima-se. desculpas por tudo o que se passou».
gestos ameaçadores. Perdeu-os a todos. Lento, corpo firme direito, queixo ergui- Baera desconhece a ciência da guerra,
Pupilas dilatadas, olhos injetados. As ba- do. Os outros deixam de falar em voz alta, mas possui a tolerância própria dos gran-
tidas do coração desenham-se no rosto. trocam ao ouvido palavras misteriosas. Se des homens. Nem perde tempo a refletir.
Lembra-se de ter abraçado a capulana da calhar desconfiam. O antigo comandante Olha-o de frente: «Ouvimos e percebe-
mãe quando o fecharam na palhota. A gra- da 6ª companhia sente-se perdido por se- mos muito bem. Nós sabemos que a guer-
nada rebentou. Era ainda um menino mas gundos, de novo o inferno instala-se no seu ra é a guerra, não temos nenhum rancor
teve tino para fugir quando viu a porta corpo. Inverte a situação: ‘E se alguém ti- para consigo, sabemos que cumpriu or-
abrir-se. vesse feito o mesmo à sua família e agora dens. Agora é preciso é que não fique ne-
Dukiria, a mulher de Tinta, que foi viola- se apresentasse a pedir-lhe perdão?’ Con- nhum rancor entre nós». O resto do gru-
da, cumpriu a tradição e casou com o irmão sulta a consciência. O mais certo era arran- po acena a cada palavra do velho, não há
do marido. Não tivera crianças e o novo ma- car-lhe o pescoço. Não perdeu a sólida ins- censuras nem recriminações. Tenente, o
trimónio era a forma de recuperar o dote trução de comando. Está preparado para o mais agreste, talvez animado pela reação
que a família de Tinta empatara. Tenente, que der-e-vier. Matar, nunca. Mas talvez dos outros, suavizou e cumprimenta-o.
desde que o fizeram relembrar aquele dia, tenha de fugir, embrenhar-se na mata até Havia desaparecido o perigo.
sonha com os espíritos, não sossega. Os chegar ao Songo, onde tem velhos amigos.
olhos secos, perdidos no vazio, tornam-se Numa perna, presa numa liga, leva uma A menina que o alferes poupou
buliçosos. Inspeciona a zona, aqui e ali, des- faca de mato. No bolso, outra. Uma mini Antonino não quer acreditar no que ouve.
cobre ossadas: «Há vinte e cinco anos que lanterna de longo alcance, pastilhas para «Isso aumentou a minha angústia» -- con-
andamos a apanhar ossos». Dirige-se ao acender, fósforos numa caixa hermética fessará depois. «Parece que aquela gente >>

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MUNDO MOÇAMBIQUE

tinha esquecido o sofrimento que lhes cau- da uma sobrinha menina, de grande bele- Michone era na altura um rapazito. A tro-
sei, como é possível não me odiarem? Não za, levada para a mata por um soldado mui- pa entrou e concentrou-os numa clareira.
me insultarem, no mínimo?» to alto e maciço que saiu de um dos helicóp- Deram tantos tiros que devem ter ficado es-
De repente, uma rapariga precipita-se teros e que a tomou atrás de uma árvore. gotados, e com os dedos adormecidos. Mi-
para ele. Segura-o pelas mãos, como em Antonino escuta atento, e vai reconstituin- chone não é atingido, mas está com a pri-
tempos o prendeu pelo camuflado. Creya, a do o puzzle. Os homens que montaram segu- meira família a ser alvo dos disparos. Esfor-
menina que o alferes salvou, tem os olhos rança à aldeia é que se podiam dedicar a es- çavam-se por se escudarem uns atrás dos
húmidos: «Obrigada pelo que fez». Anto- ses festins. E uma profunda tristeza substitui outros. Mas caíam um a um. Ele ficou de-
nino ainda reconhece aquele rosto infantil, o assombro inicial, percebendo que na guer- baixo da mãe e do pai, rosto virado para
sem conseguir avaliar-lhe a idade. O tem- ra os homens são impelidos por uma irresis- cima, o sangue entrava-lhe pela boca sem
po parece não a ter tocado, mas o sofrimen- tível propensão para matar. «Mas tinham ou que se pudesse mexer. Os soldados deita-
to sim. Casou, tem uma ninhada de filhos. não contactos com a Frelimo? Porque eram ram pilhas de lenha em cima dos cadáve-
O marido, conforme à tradição, arranjou essas as informações que tínhamos.» res e deitaram fogo. Depois afastaram-se do
uma mulher mais jovem. Baera abre os braços, olha à volta: «Aqui inferno das chamas.
Vivem no Zoye, junto à fronteira com o não havia nenhum elemento da Frelimo». Foi aí que Michone resolveu fugir. Teve
Malawi, zona húmida e fria quando chega Consulta a memória lembra a PIDE a per- de empurrar o corpo da irmã, ainda viva,
fevereiro. Creya dorme agora com a filha- guntar aos irmãos onde estavam os ‘turras’. embora com a cara desfeita: sem boca nem
rada na varanda, enrolados em trapos para E eles que não sabiam. E assim eram mor- nariz. Um buraco. Conseguiu chegar ao hos-
se protegerem do cacimbo. Já tentou fugir tos, à paulada. pital de Tete, e a irmã Lúcia, espanhola, tra-
para casa de parentes por duas vezes, mas tou-lhe das queimaduras e deu-lhe abrigo
sempre que chega a época da sementeira O terror começou enquanto a PIDE andava no seu encalço
ele vai buscá-la e faz-lhe juras de amor e pelas cinco da tarde para apagar vestígios.
outras lengalengas. Ela não acredita, mas António Michone, o sobrevivente que de-
vai; assim os filhos sempre têm que comer. nunciou aos padres da missão de Burgos os Depois da independência
Antonino arranca uma flor lilás da terra massacres, reconstituiu a história. Se a me- Michone e Antonino parecem conhecer-se
áspera e aproxima-se do monumento aos mória não o engana, em Chaola, aldeia nas de longa data, sem que a tragédia os tives-
sobreviventes de Wiriyamu. Através da vi- redondezas, nunca tinham ouvido falar na se cruzado. Falam do passado e do presen-
draça, quando se ajoelha, fica à altura de um guerrilha. A cara ensombra-se, a recorda- te como velhos amigos. O primeiro foi con-
crânio, que o parece fitar. As recordações ção esmaga-o. Ali o terror começou pelas siderado um herói pela guerrilha mas de-
precipitam-se. Pede agora aos sobreviven- cinco da tarde. O antigo comandante está pois da independência caiu em desgraça.
tes que lhe contem o que realmente se pas- espantado com o relato, não era suposto es- Achavam que estava feito com a RENA-
sou naquele dia. «As ordens que nós tínha- ses homens intervirem, estavam numa po- MO e não o perdoaram. Agora vive mal, es-
mos era para matar toda a gente, foi isso sição defensiva. «Nós é que devíamos avan- teve preso durante nove meses, com a acu-
que disse aos meus homens, mas nunca vi çar. Eles estavam ali para impedir a retira- sação de roubar água, e para poder sair em
mulheres a serem violadas, crianças mor- da da população. Há aqui qualquer coisa liberdade teve de pagar multas e vender to-
tas à facada e outras coisas que se dizem. que não joga…» dos os seus cabritos. Mas fala com a resi-
Gostava que me falassem disso, porque a gnação dos povos calhados para a fatalida-
zona era muito grande e eu não vi tudo...». de. Convida Antonino a entrar na sua casa,
apresenta-lhe mulher e filhos. Depois mos-
Os relatos medonhos tra o monumento que ele construiu aos
Dukiria não sabe onde colocar as mãos. A mortos de Chaola: um túmulo feito de paus
expressão dura no rosto parece ter sido bu- e capim, debaixo de uma ngoza, árvore im-
rilada por todas as catástrofes do mundo. Os ponente, onde estão enterrados setenta e
olhos fundos vagueiam como se medisse o oito cadáveres. Agora, o sol e os cabritos já
tempo, está desejosa de evitar assuntos de- OS COMANDOS SÃO não os podem perturbar. Quando andou a
sagradáveis. Ao lado, Orário, o marido, in-
cita-a a falar. Ela foi uma entre tantas mu- UMA TROPA SEM recolher as ossadas, já depois da indepen-
dência, chorou dias-a-fio: «Pensava que
lheres violadas naquele dia, ali mesmo em
Wiriyamu, onde Antonino desceu de heli-
ARTES DE aqueles ossos podiam pertencer à minha
mãe, pai ou irmã». Mas nem todos os que
cóptero com os seus homens. COVEIROS: ‘O tombaram naquele dia estão ali. Michone
Baera, que nesse dia viu a mulher e os fi-
lhos serem mortos com um pau, aponta para NOSSO LEMA ERA conhece os sítios onde a tropa fez valas para
esconder os corpos.
o local onde a aviação bombardeou. Foi por
volta do meio-dia, tinha acabado de almo-
MATA, DEIXA, NÃO Antonino esforça-se para arrancar da pai-
sagem um ponto de referência. Mas a região
çar. Confirma a história da mulher e recor- ENTERRA, SEGUE’ está alterada. Quando fecha os olhos, con-

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DR

segue recordar onde abriu as valas, os ar- «Não levem armas», dizem-lhe. A 6ª Com- timas para justificar o massacre?». E a mãe
bustos do lado esquerdo, a árvore do lado panhia de Comandos já está de malas fei- que só previra as gripes e o frio…
direito. O caminho por onde andou. Mas ras para arrancar para a ilha de Moçambique,
hoje já não encontra esses pontos de refe- quando o comandante regressa ao local para Fugir dali
rência. Se a memória não o engana, abriu apagar o rasto do crime. Lembrava-se do À medida que o tempo passava, Antonino
com os seus homens, um grupo de confian- tempo da recruta, das bolachadas que os só pensava em fugir dali. Baera falava-lhe
ça escolhido a dedo, duas ou três valas. Eram instrutores lhe deram para o ensinarem a da vida na machamba e na mulher com
muitos corpos, muitos mesmo. Ainda re- resistir e nunca entregar a sua arma; e, para quem casou, Fukiria, outra das sobreviven-
corda o cheiro nauseabundo da carne po- sua sorte, não cumpriu as ordens. tes de Wiriyamu. Depois de ter sido atingi-
dre, teve de colocar um lenço embebido em Tinham corrido vinte dias. Armados até da por uma granada numa coxa, desmaiou.
Old Spice à volta do nariz para suportá-lo. aos dentes e com bidões de gasolina e pás Quando acordou, preocupou-se em retirar
Estava revoltado, os comandos são uma tro- nas mãos, os comandos regressam como da capulana o filho de meses que trazia as
pa sempre em movimento, sem artes de co- coveiros. Os abutres pairavam sobre os cor- costas – mas o bebé estava desfeito. O velho
veiros: «O nosso lema era mata, deixa, não pos inchados pelo calor. O capim crescia conta que ela ainda sonha muitas vezes com
enterra, segue». Mas os sobreviventes que entre as ossadas. O cheiro do after-shave a criança e tem sobressaltos. Não vivem mal,
conseguiram alcançar Tete provocaram ajuda, mas os corpos desfaziam-se nas mãos a colheita não os tem traído. Baera faz con-
grande reboliço internacional. Marcello Cae- de Antonino. Amontoava-os na vala e re- fidências, trata Antonino com cerimónia:
tano ficou à nora. Tanto mais que um ho- gava-os com gasolina. Chegara a hora de «Ele apareceu aqui como um homem, gos-
mem da sua inteira confiança, Jorge Jardim, abandonar o local. Os superiores tinham- tei dele, agora é preciso esquecermos to-
viera de propósito a Lisboa para lhe mostrar -lhes dito que a ação teria de ser muito rá- dos o que aconteceu».
as fotografias do massacre. pida, que nem levassem água nem ração de Antonino está a quebrar, tem o coração
combate. A fome a apertar, e a Força Aérea cheio de pressa para partir. A recepção pa-
Apagar os vestígios do crime nada. O alferes vai direito à mata, furioso, cífica daquela gente fizera com que o infer-
Passado pouco tempo, o presidente do Con- mas antes de a alcançar rebenta um tiroteio. no se instalasse de novo na sua cabeça. De-
selho faz rolar a primeira cabeça: Armindo «Foi a emboscada mais teimosa que nos fi- pois deste encontro, talvez descubra alguma
Videira, comandante militar da região, é de- zeram. Não era costume atacarem assim os tranquilidade. «Aquilo foi um acto crimino-
mitido e mais tarde Kaúlza tem idêntico fim. comandos. A Frelimo fazia emboscadas so. Em Wiriyamu, depois da guerra, pro-
Mas antes tentam abafar o escândalo. destas apenas à tropa normal». Desde daí, curei a paz, mas depois de todo este reme-
Antonino é chamado de novo à ZOT, or- a dúvida alojou-se-lhe na cabeça: «Será xer de recordações o sossego para mim ain-
denam que apague os indícios do crime: que os meus superiores tentaram criar ví- da vai tardar».

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BIBLIOTECA
PESSOAL

JOSÉ CABRITA
SARAIVA

O homem que desenhava com agulhas


Mais do que desenhar, Edward Gorey criou um universo muito próprio. A sua arte concilia
elementos contraditórios, como a inocência e a perversidade, o cómico e o macabro.

E
dward Gorey era, sem qualuer dú- usasse «casacos de peles genuínos quan- próprio – talvez uma centena. Mas Gorey
vida, um homem peculiar. Tinha do era um dos grandes amantes de ani- não se limitava a desenhar: criou um uni-
pouco cabelo e uma barba grisalha mais da terra». verso muito particular habitado por meni-
que encaixaria de forma muito nos de antigamente, bicicletas desengonça-
convincente na personagem de um faro-
leiro resmungão. Adorava ler policiais e
ver anúncios de televisão mas podia ao
T odas estas singularidades ajudam a fa-
zer luz sobre um dos mais originais,
enigmáticos e prolíficos ilustradores do
das, morcegos, lápides, salas forradas a pa-
pel de parede, senhores de cartola, caveiras,
gatos, candelabros. Como a sua personali-
mesmo tempo ser imensamente erudito século XX. Nascido em Chicago em 1925, dade, a sua arte consegue conciliar elemen-
nas suas preferências. Por exemplo, era Edward St. John Gorey terá sido uma tos contraditórios, como a inocência e a
louco por música clássica, e em especial criança excecionalmente precoce, alegan- perversidade, o cómico e o macabro.
por Mozart. Só de Bach, a sua coleção con- do que aos três anos já sabia ler. Estudou «O que mais me atrai é uma ideia ex-
tava qualquer coisa como 500 cds. Francês em Harvard e depois do curso foi pressa por [Paul] Éluard», reconheceu um
Estes e outros detalhes são revelados na convidado para trabalhar no departamen- dia. «Ele tem uma passagem sobre existir
biografia The Strange Case of Edward Go- to artístico da Anchor Books, uma nova um outro mundo, mas que fica neste. E
rey, um livro elegante de capa dura pre- chancela da editora Doubleday, a dese- Raymond Queneau disse que o mundo não
ta e lombada de tecido em que o seu ami- nhar capas, ilustrações e tipos de letras. é o que parece – mas também não é outra
go Alexander Theroux explora as contra- Além disso, claro, assinou livros em nome coisa. Estas duas ideias são os alicerces da
dições desta personalidade impossível de minha abordagem».
catalogar. «Era um homem de extremos
espantosos», resume Theroux, que em
seguida se interroga como era possível
que Gorey nunca viajasse, «quando era
O estilo de Gorey é resultado das suas
ideias, mas também da sua técnica mi-
nuciosa. O livro de Theroux, mais uma
facilmente uma das pessoas mais curio-
sas do planeta»; que tivesse assistido a Tanto adorava ver vez, revela-se iluminador. Gorey – que,
como sabemos, tinha gostos pouco con-
todas as 23 temporadas do New York City
Ballet de 1956 a 1979 sem perder uma úni-
anúncios de TV vencionais – passava muito tempo a cos-
turar. E, de facto, os seus desenhos pare-
ca; que vivesse sozinho ao longo de 75 como música cem feitos com algo fino e aguçado como
anos, embora escrevesse «livros tão in-
teressados na vida das crianças»; que ti- clássica. Na sua uma agulha. Umas vezes picam como al-
finetes, outras vezes fazem só comichão –
vesse lido «praticamente todos os livros
que existiram» e ao mesmo tempo fosse
coleção, só de Bach nunca na pele, claro, mas numa zona do
cérebro onde só a arte mais autêntica con-
um consumidor ávido de televisão; que havia 500 cds segue chegar.

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DESTINO IMPROVÁVEL
SOUFRIÉRE E SCOTTS HEAD, DOMINICA

A VIDA QUE PENDE


DA ILHA CARIBENHA
DA NATUREZA
Tem a fama da ilha mais selvagem das Caraíbas e,
chegados ao seu fundo, continuamos a confirmá-lo.
De Soufriére ao limiar habitado sul de Scotts Head,
a Dominica mantém-se extrema e difícil de domar.

TEXTO Marco C. Pereira FOTOGRAFIA M. C. Pereira e Sara Wong

J
á andávamos com uma semana tar de estradas. Uma vez mais, o trajeto imensa, fechada a leste por novas monta-
de Dominica. Nesse tempo, aos pela Loubiere Road confirma-se o único nhas, as derradeiras da ilha, tão elevadas
poucos, descemos do quase ex- possível. Às vezes, parece até inviável, e verdejantes como as anteriores.
tremo norte de Portsmouth e do conquistado à lei de dinamite às falésias Dali, uma inesperada visão marca uma
Parque Nacional Cabrits até meio abruptas. súbita diferença. Semi-escondida por co-
da costa leste. Logo, cruzámos Passamos a pedregosa Champagne pas destacadas, numa secção suavizada
para a costa contrária. Fizemos Beach. A Loubiere Road torna-se ainda da encosta quase despromovida a laje, sur-
da capital Roseau, uma espécie de base mais sinuosa e oscilante. Interna-se numa gia um casario de todas as cores. Estáva-
operacional para o ocidente. Uns dias de- selva íngreme e densa que, como a vía- mos às portas de Soufriére. Faltava-nos
pois, decidimo-nos a sair à descoberta dos mos, até os animais terão dificuldade em dar com o litoral amornado no seu sopé.
fundos da Dominica. habitar. Cruzamos a fronteira da paróquia de
A sua configuração de grande ilha-mon- Decorridos quase vinte minutos sem Saint Luke para a de Saint Mark. Instan-
tanha luxuriante, despontada entre o Mar vislumbrarmos o mar, atingimos um alto tes depois, abençoa-nos a torre de uma
das Caraíbas e o oceano Atlântico faz da panorâmico. Para sul e para nosso com- igreja, erguida em honra do último destes
Dominica uma nação complicada de do- pleto deslumbre, desvendava-se uma baía santos.

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A povoação de Scott’s Head
nos fundos da ilha
de Dominica

Soufriére abriga quase mil e quinhentos as gentes e vivências da ilha, fiéis que fa- Só uns poucos metros separavam a igre-
dominiquenses. Àquela hora da tarde, em zem por merecer a proteção do Salvador. ja da beira-mar e de um areal terroso ba-
redor do templo e no seu interior, não en- À esquerda, as comunidades afro-des- nhado por um mar com visual de lago. Ao
contrávamos vivalma. cendentes do interior, da montanha e da pisarmos esse areal, deparamo-nos com
Sobrevoavam-nos fragatas e esquadrões selva, cultivadores de vegetais, de fruta, uma estrutura balnear improvisada em
de pelicanos, de olho na água translúcida beneficiários da fertilidade vulcânica e tro- madeira e pneus pintados.
ao largo. Deixamos outro deles adiantar- pical da ilha que celebravam ao ritmo de Um abrigo do sol separa um vestiário
-se. Quando uma nuvem branca flui aci- tambores. À direita de Cristo, os homens de um bar providencial. Já quase sobre a
ma do morro bicudo que encerrava a baía do mar de Soufriére, a puxarem redes de linha de água, um banco identifica um
e deixa o casario à sombra, damos entra- pesca do oceano. Um estandarte que co- ponto fotográfico. E um retângulo feito de
da na nave deserta. bre o púlpito usado pelo padre promove o cimento e sacos de areia que se interna
Luz filtrada pelos vitrais das janelas faz lema ‘Mordomia, um Modo de Vida’. no mar, delimita umas caldas vulcânicas
destacar um altar peculiar que nos intri- Com a curiosidade religiosa satisfeita, borbulhantes que o amornavam e que jus-
ga e convoca. Centrada num expectável voltamos ao exterior da povoação, em tificam o nome inglês do lugar ‘Bubble
Cristo na Cruz, uma pintura mural ilustra busca das suas expressões mundanas. Beach Spa’. >>

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DESTINO IMPROVÁVEL SOUFRIÉRE E SCOTTS HEAD, DOMINICA

1.

Durante algum tempo, somos os únicos vamos no cimo norte da Baía de Soufrié- Soufriére estende-se por algumas cen-
a frequentá-lo. Até que, do nada, surgem re. Havia uma vastidão arredondada e flo- tenas de metros mais. Logo, interpomo-
duas irmãs dos seus 11 ou 12 e 15 ou 16 restada a separar-nos do limiar meridio- -nos no confronto entre selva e mar, com
anos. Reguilas e irrequietas, num óbvio nal da ilha. Ora, tínhamos partido de Ro- as vagas a embaterem no paredão e, aqui
momento de evasão do lar e da escola. seau com a missão fotográfica de o e ali, a salpicarem o asfalto.
Já em modo anfíbio, nas termas, apro- explorar. Três quilómetros e meio separavam Sou-
veitavam para pregarem sucessivas parti- De acordo, despedimo-nos das irmãs friére do fundo da Dominica. Com a dis-
das uma à outra, empurrões, amonas e be- com um “até breve”, sem estarmos cer- tância quase completa, damos com novo
liscões. Tudo o que lhes passasse pela tos de se as voltaríamos a ver. Retorna- casario. O derradeiro da ilha, pertencen-
mente e que servisse de distração. Sosse- mos ao carro. Metemo-nos na estrada te à aldeia piscatória que, em tempos, ali
gam um pouco quando nos veem meter marginal que acompanha a baía, pelo sopé se aventurou. E que acabou por ficar:
na água e fazer-lhes companhia, a partir da montanha. Scotts Head.
de então, intrigadas com a nossa dispari- Com pouco mais de 700 moradores, esta
dade visual, com as máquinas fotográfi- povoação deve o seu nome a George Scott,
cas que segurávamos, de onde vínhamos um coronel que, em 1761, participou na
e o que por ali fazíamos. força expedicionária britânica que captu-
Tagarelamos um pouco, com as oscila- rou a Dominica aos franceses. E que foi
ções na temperatura da água a gerarem
sucessivas gargalhadas.
COM POUCO promovido a governador da ilha, entre
1764 e 1767, apenas para ver os franceses
No entretanto, a uma hora que nos pa- MAIS DE recapturarem-na em 1778.
receu pós-laboral ou pós-escolar, um gru-
po de jovens expatriados afluiu à praia. E 700 MORADORES, Apostado em evitar tal revés, Scott su-
pervisionou a construção de um forte no
lá inaugurou um convívio na expectativa
do ocaso, regado a rum punch e a cerveja
ESTA POVOAÇÃO topo da península curva nos fundos da Do-
minica.
Kubuli, batizada com o termo que os indí- DEVE O É para lá que nos dirigimos primeiro, de
genas caribes davam à Dominica e que tem
o mapa da ilha no centro do seu rótulo. SEU NOME imediato, espantados com a vista incrível
sobre a terra-base em frente e, em espe-
A animação do ‘Bubble Beach Spa’ sedu-
zia-nos a por ali ficarmos. Por outro lado,
AO CORONEL cial, com o casario sortido que se empo-
leirava pela sua floresta acima. Tanto o ca-
tínhamos consciência que ainda só está- GEORGE SCOTT sario como o istmo são banhados por dois

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2. 1. Casario de Soufriére 2. A igreja da aldeia 3. Uma perspetiva da baía de Soufriére

3.

mares que, não fosse aquela faixa irrisó- Por pouco tempo. Cinco anos mais tarde, Em tempos já bem posteriores à inde-
ria de ilha, se tocariam. o complexo Tratado de Versalhes, forçou- pendência de Dominica, de 1978, a sua
Do cimo da península que os indígenas -os a oferecer a Dominica aos britânicos, morada na Baía de Soufriére prendou-
Caribe tratavam por Cachacrou (“chapéu algo duplamente frustrante se tivermos -os com novos benefícios. A baía jaz so-
que é comido”), entre canhões e sobre uma em conta que a ilha se situar entre duas bre uma cratera vulcânica submersa. As
colónia de limpa-garrafas oscilantes, ad- ilhas francesas, Guadalupe e Martinica. suas águas têm uma fauna e flora de tal
miramos o Mar das Caraíbas translúcido, Com o tempo e o conformismo ao do- maneira ricas que as autoridades domi-
a norte e a oeste. E a sul e a leste, o ligeira- mínio britânico, as gentes e os lares da en- niquenses as declararam uma reserva
mente mais agitado oceano Atlântico. tretanto denominada Scott’s Head, conti- marinha. Hoje, a Soufriére Scotts Head
Uma família de dominiquenses, emi- nuaram a aumentar, com a vida simplifi- Marine Reserve é procurada e percorri-
grados e de visita à ilha, vive um deslum- cada pela pesca fácil e pelo acesso direto da por milhares de mergulhadores an-
bre comparável ao nosso. O deles, pejado de ambos os mares. siosos. O influxo de dinheiro que este tu-
de saudade e de emoções derivadas. rismo acrescentou, fez com que boa par-
Nós, continuávamos intrigados com o te dos moradores tivessem abandonado
porquê de aquele povoado ali se ter ins- a pesca ou a pratiquem apenas em mo-
talado. A explicação obriga-nos a voltar à mentos de evasão e lazer, algo que pa-
história de Scott e à disputa França vs Grã- recia estar para durar, quando voltamos
-Bretanha pelas Índias Ocidentais.
Depois dos britânicos terem tomado a
EM 1761, SCOTT a Soufriére e à sua pitoresca ‘Bubble
Beach Spa’.
ilha, os seus habitantes franceses deram PARTICIPOU O ocaso a ocidente tinha-a já transfor-
um contributo à reconquista francesa. Na
iminência do ataque da frota gaulesa en- NA FORÇA mado numa completa silhueta. Compos-
ta dos muito convivas que falavam de pés
viada da ilha de Martinica, um grupo des-
temido levou a cabo uma visita à guarni-
EXPEDICIONÁRIA na água ou se banhavam. E a das irmãs ir-
requietas que, para nosso espanto, conti-
ção inimiga, ávida de companhia. Como BRITÂNICA QUE nuavam no seu corre para cá e para lá, em
resultado, conseguiram embriagar os sol-
dados de guarida e, não bastasse, sabota- CAPTUROU puxões e empurrões.
Sem razões para apressarmos o regres-
ram os canhões do forte com areia.
Até ao fim desse dia, os franceses sub-
A DOMINICA so a Roseau, voltamos a meter-nos naque-
le Mar das Caraíbas alisado e prateado. E a
meteram o forte e, não tarda, a Dominica. AOS FRANCESES submeter-nos a sua companhia. 

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RECEITAS
DO CHEF

Chef
José Lima OVOS NA TOSTA COM ABACATE E COGUMELOS
RESTAURANTE
TÁBUA DA RIA INGREDIENTES: MODO DE PREPARAÇÃO:
(GAFANHA DA NAZARÉ)
Ovos 2unit 1- Clarificar a manteiga no micro-ondas e usar
tabua_da_ria Gemas 3unit só a gordura (parte amarela)
Manteiga 0,4kg 2- Para fazer molho holandês, colocar a man-
Pão artesanal teiga nas gemas em fio, sempre a mexer com
Abacate varas até ficar com textura de um creme. Tem-
Cogumelo perar com sal fino, pimenta e sumo de limão
Limão 3- Escalfar 2 ovos em água com vinagre
Alho 4- Laminar os cogumelos e saltear em azeite
Vinagre e alho
Azeite 5- Descascar o abacate e laminar
Coentros 6- Torrar o pão e, depois, barrar um dente de
alho
7- Colocar num prato o pão tostado, o abaca-
te laminado, os cogumelos e, no fim, os ovos
escalfados
8- Regar tudo com molho holandês e talo de
coentro picado

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WRAP DE ATUM BIFE DE VAZIA, MOLHO DE LIMÃO
E SALADA DE BATATA
INGREDIENTES: INGREDIENTES:

Wraps Bifes da vazia


Atum Batata para cozer
Tomate coração de boi Pepino
Alface Limão
Milho Manteiga
Ovos Alho
Cenoura Maionese
Maionese de ervas Salsa
Cebola frita Coentros
Chips de batata doce
MODO DE PREPARAÇÃO:
MODO DE PREPARAÇÃO:
1- Selar a carne em azeite e alho, estando pronta retirar e dei-
1- Saltear o atum num fio de azeite e deixar cozinhar bem, de- xar descansar, juntar umas nozes de manteiga na frigideira e, de-
pois desfiar pois, um pouco de vinho branco e deixar reduzir. No final juntar
2- Cozer os ovos sumo, a raspa de limão e as ervas
3- Preparar a cenoura (ripada), o milho, as alfaces e o tomate 2- Para a salada de batata, cozer bem as batatas com pele
laminado 3- Descascar as batatas e cortar em cubos
4- Aquecer um pouco o wrap e colocar maionese de ervas, de- 4- Descascar o pepino e tirar as sementes com a ajuda de uma
pois a alfaces e tomate colher, depois cortar em cubos pequenos e juntar na batata
5- Depois de frio juntar o atum, o ovo, mais maionese de ervas 5- Misturar maionese na batata, alho picado, salsa, coentros,
e a cebola frita sumo de limão e pimenta preta. Envolver tudo
6- Enrolar e servir com umas chips de batata-doce 6- Dispor os bifes no prato e regar com o molho. Servir com a
salada de batata

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AGENDA

SÁBADO, 1 DOMINGO, 2 SEGUNDA, 3


ENSEMBLE MPMP BACKSTREET BOYS
CCB - Pequeno Auditório Altice Arena, Lisboa
17h00 20h00
A partir de € 20 A partir de € 36

O Ensemble MPMP é um A aclamada digressão DNA


grupo de instrumentação fle- World Tour, que esgotou pal-
xível que tem desenvolvido, cos em toda a América do
desde 2012, um trabalho de Norte, Europa, Ásia e Améri-
proximidade com musicólo- ca do Sul, passa por Portugal.
gos e compositores tendo em Com 29 anos de história, a
vista a redescoberta de patri- banda é reconhecida como
mónio passado e a valoriza- uma das mais influentes no
ção de repertórios contem- mundo da pop.
porâneos.

ORQUESTRA CLÁSSICA SETE LÁGRIMAS


DO CENTRO E TIAGO - DIE NATCH A NOITE
BETTENCOURT Palácio Nacional de Queluz, Sintra
Centro de Artes e Espetáculos da 21h00
Figueira da Foz € 10
21h30
A partir de € 12,50 O apelo pelo regresso ao pas- BEATRICE RANA
sado, característico do movi- Casa da Música, Porto
No dia Mundial da Música, mento Romântico, é o mote 18h00
Tiago Bettencourt junta-se à para uma viagem musical in- € 18
Orquestra Clássica do Centro versa no tempo.
para interpretarem temas Um percurso musical a partir Concerto da jovem italiana
como Maria, Dança, Cami- da arquitetura histórica dos Beatrice Rana, em que inter-
nho de Volta ou Se me dei- edifícios emblemáticos da preta obras de Scriabin, Cho-
xasses Ser. Serra de Sintra. pin e Beethoven.

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TERÇA, 4 QUARTA, 5 QUINTA, 6 SEXTA, 7
ELTON JOHN EXPERIENCE AYO CONTRADANÇA - ASTA ARCH ENEMY
- TRIBUTO A ELTON JOHN Tivoli BBVA, Lisboa À FLOR DAS ÁGUAS Coliseu dos Recreios, Lisboa
Palácio de Congressos do Algarve 21h00 Teatro Municipal da Covilhã, 18h30
21h00 A partir de € 25 Castelo Branco € 38
€ 30 21h30
Com uma carreira de mais de €5 Os suecos Arch Enemy e os
Um espetáculo de tributo que 20 anos, Ayo, cantora alemã polacos Behemoth estão de
inclui os maiores hits da car- de ascendência nigeriana, À Flor das Águas é uma cria- regresso à estrada para uma
reira do Rocket Man, desde regressa ao nosso país para ção coletiva sobre os espaços digressão que promete muito
os primórdios à atualidade. um concerto intimista. públicos e o direito à cidade, death metal.
criada a partir das memórias
e vivências da cidade
de Setúbal.

ROH - MAYERLING
KHRONOS Cinema ANGRAJAZZ 2022
Coliseu do Porto, Porto C. C. C. Angra do Heroísmo
21h00 Transmissão do bailado da Até 8 de outubro COMMEDIA A LA CARTE
A partir de € 18 Royal Opera House inspirado A partir de € 12 Coliseu Micaelense, Ponta Delgada
em factos da vida real, que 21h30
O tempo que corre e não retrata as obsessões sexuais e O AngraJazz - Festival Inter- A partir de € 12
pára. Um espetáculo único mórbidas do Principe her- nacional de Jazz de Angra do
que une pelo amor à acrobá- deiro Rodolfo e o opressivo Heroísmo, acontece anual- O grupo português de comé-
tica, à dança, à ginástica, ao glamour da corte austro- mente na Ilha Terceira, dia de improviso estreia Do
canto e ao circo. -húngara na década de 1880. desde 1999. nada, o seu novo espetáculo.

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SHOPPING

ESCOLHAS 140€

DA SEMANA
16€

BOTINS ZILIAN
CINTO MANGO Botins de salto
Cinto castanho em pele vintage camel.
com fivela gravada. Ref: 4231
Ref: 37005831-morgan-lm

50€ 465€ 97€ 40€

MALA FURLA PERFUME PRADA BRINCOS MASSIMO DUTTI


‘Furla Net Toni Perla’, mala ‘Prada Paradoxe Eau Brincos espiral de edição
shopper grande em mistura de de Parfum - 50ml’, limitada.
pele e camurça. fragrância floral. Ref: 4605/555

129€ 27€

CASACO ZARA
VESTIDO MANGO Sobretudo oversize com tecido CAMISOLA NAME IT
Vestido de malha rendado. em mistura de lã. Camisola de criança [7-14 anos],
Ref: 37076715-dante-lm Ref: 8835/726 em malha.

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36€ 70€ 179€ 35€

RELÓGIO CALVIN KLEIN


CAMISOLA MANGO Relógio dourado rosa
Camisola de malha grossa e bracel mesh.
com losangos. Ref: 25200106

45€ 99€

T-SHIRT CAROLL VESTIDO ZARA CALÇAS H&M


‘Clotilde’, t-shirt clássica Vestido de malha combinado SAIA CAROLL ‘Flare Low Jeans’, calças em
de corte direito. entrançado. ‘Lucy’, saia midi de veludo canelado. ganga de cintura baixa.
Ref: TJ055 Ref: 6873/100 Ref: KJ010 Ref: 1112934002

70€ 199€ 149€

CALÇAS LLOYD’S CASACO LLOYD’S VESTIDO WOMAN LIMITED


Calças regular lisas em tom Blusão biker em pele. EL CORTE INGLÉS
bordeaux. Cor: Preto Vestido estilo túnica com laço.

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RETRATOS CONTADOS

NÉLSON MATEUS ALICE VIEIRA

Retratos Contados da República


Q Q
uerida avó, uerido neto,
Na passada semana falámos da monarquia, a propósito Lembro-me de ter ido há muitos anos a uma escola, num
da morte de Isabel II, Rainha de Inglaterra. dia 25 de Abril, e de ter perguntado a um miúdo se sabia
Hoje apetece-me celebrar a república, que completa 112 o que tinha acontecido no 25 de Abril e ele responder «Eu
anos no próximo dia 5 de Outubro. acho que foi o 5 de Outubro!».
Fico horrorizado sempre que vejo reportagens neste feriado (e Cheguei a casa furiosa e logo ali decidi escrever um livro para
noutros), e os entrevistados não sabem o que se celebra. jovens sobre o 25 de Abril e outro sobre o 5 de Outubro.
Tanto que os nossos antepassados lutaram pela república, pela O livro sobre o 25 de Abril apareceu logo – chama-se Vinte
liberdade, e por outros valores, para muitos hoje preferirem vi- Cinco a Sete Vozes – mas nunca mais me lembrei de escrever o
ver na ignorância. outro.
Que as pessoas não saibam os feriados religiosos ainda aceito. Até que, nas celebrações do centenário da República, o chefe
Para mais vivemos num Estado Laico. Agora não saberem, nem de redacção do Jornal de Notícias (para onde eu então trabalhava) me
quererem saber, o que se celebra nos feriados nacionais, já me pediu que, de Janeiro a Outubro, escrevesse todos os sábados um
parece ignorância a mais. texto para ensinar aos miúdos o que tinha sido a República. Meia
Tu, que não és de ficar de braços cruzados perante tanta falta de página, acrescentou. E eu fiquei a pensar que todos os sábados
conhecimento, escreveste o belíssimo livro Diário de um ado- um texto a explicar o que tinha sido a República, ia ser uma cha-
lescente na Lisboa de 1910. tice para os miúdos. Então pensei, e perguntei ao meu chefe se não
Neste diário, Joaquim José (personagem principal do livro) é podiam ser histórias divertidas sobre o 5 de Outubro. Ele con-
um jovem lisboeta de 14 anos em 1910. Pai republicano, avó mo- cordou – e aí nasceu este Diário de um Adolescente na Lisboa
nárquica, criada com namorado da Carbonária e aluno de um de 1910. Escolhi como protagonista um jovem já com 14 anos –
dos homens que mataram D. Carlos e D. Filipe, facilmente se porque assim podia lembrar-se muito bem de coisas que tinham
compreende a confusão que vai na sua cabeça. O seu diário é o acontecido antes (conspirações, regicídio, etc.) e lá escrevi. Deu-
registo bem-humorado desses dias de sobressalto que vão dar ao -me imenso trabalho porque, como era um “diário”, o que esta-
5 de Outubro. va escrito, digamos, no dia 5 de Maio de 1910, tinha mesmo de
Sei que não gostas de falar dos teus livros. Mas eu gosto! E acon- ter acontecido nesse dia.
selho este livro a todas as famílias. Desta forma, novos e velhos, Tive uma ajuda preciosa: a leitura do livro A Escola do Paraíso
ficam com uma ideia muito fiel de como se vivia em Lisboa no de José Rodrigues Miguéis. O protagonista era mais ou menos da
tempo da monarquia. mesma idade, e no romance até se dizia quanto custava um cho-
Não fosses tu uma grande jornalista. Passaste meses a fio a pes- colate, ou o que se vendia nas tabacarias, ou as revistas que os
quisar para que este relato fosse o mais verdadeiro possível. miúdos liam – e o preço delas.
Outra coisa que me deixa de cabelos em pé é quando dizem Aquilo teve tanta leitura que a minha editora quis publicar.
que o último rei de Portugal foi D. Carlos. Como se a monarquia E aí está o livro…
tivesse acabado no dia do regicídio. Sei que é um livro que adoras pelas razões que referiste.
Sabes que tenho um carinho especial por este livro. Foi o pri- Mas também sei que já leste muitos mais.
meiro livro teu que li. Estava eu a caminho de Paris. Viva a República!
Viva a República! Bjs
Bjs

retratoscontados.pt info@retratoscontados.pt @retratoscontados RetratosContadosPortugal

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