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que nos cercam? Não poderia crer tal coisa. Deus prepara
para as sociedades européias um futuro mais fixo e mais cal
mo; ignoro seus desígnios, mas não cessarei de acreditar ne
les porque não posso penetrá-los, e preferirei duvidar de mi
nhas luzes a duvidar de sua justiça.
Há um país no mundo em que a revolução social de
que falo parece ter alcançado mais ou menos seus limites na
turais; produziu-se nele de uma maneira simples e fácil, ou
antes podemos dizer que esse país vê os resultados da revo
lução democrática que se realiza entre nós sem ter passado
pela revolução mesma.
Os emigrantes que vieram fixar-se na América no início
do século XVII separaram de certa forma o princípio da de
mocracia de todos aqueles contra os quais este lutava no
seio das velhas sociedades da Europa e transplantaram-no
sozinho nas terras do novo mundo. Ali, ele pôde crescer em
liberdade e, caminhando com os costumes, desenvolver-se
sossegadamente nas leis.
Parece-me indubitável que, mais cedo ou mais tarde,
chegaremos, como os americanos, à igualdade quase com
pleta das condições. Não concluo daí que sejamos chama
dos necessariamente um dia a tirar, de semelhante estado so
cial, as conseqüências políticas que os americanos tiraram.
Estou longe de acreditar que eles encontraram a única forma
de governo que a democracia possa se dar; mas basta que
nos dois países a causa geradora das leis e dos costumes
seja a mesma para que tenhamos um imenso interesse em
saber o que ela produz em cada um deles.
Portanto, não é apenas para satisfazer a uma curiosida
de, de resto legítima, que examinei a América; quis encon
trar áli ensinamentos que pudéssemos aproveitar. Enganar-
se-ia estranhamente quem pensasse que quis fazer um pane
gírico; quem ler este livro ficará convencido de que não era
esse o meu desígnio. Meu objetivo não foi tampouco preco
nizar determinada forma de governo em geral, porque sou dos
que acreditam que não há quase nunca uma qualidade abso
luta nas leis; nem mesmo pretendi julgar se a revolução social,
cuja marcha parece-me irresistível, era vantajosa ou funesta
para a humanidade; admiti essa revolução como um fato con
20 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA
Tirania da maioria
tão depressa sob o sistema colonial quanto em nossos dias; ros, quaisquer que forem, não tirarão dos americanos nem
ela também dobrava mais ou menos a cada vinte e dois anos. seu clima, nem seus mares internos, nem seus grandes rios,
Mas operava-se então com milhares de habitantes; agora, nem a fertilidade do solo. As más leis, as revoluções e a anar
com milhões. O mesmo fato que passava despercebido há quia não seriam capazes de destruir entre eles o gosto pelo
um século hoje impressiona todos os espíritos. bem-estar e o espírito empreendedor, que parece ser o cará
Os ingleses do Canadá, que obedecem a um rei, au ter distintivo de sua raça, nem apagar de todo as luzes que
mentam de número e se estendem quase tão depressa quan os iluminam.
to os ingleses dos Estados Unidos, que vivem sob um gover Assim, no meio da incerteza do futuro há pelo menos
no republicano. um acontecimento certo. Numa época que podemos dizer
Nos oito anos que durou a guerra de Independência, a próxima, pois se trata da vida dos povos, os anglo-america
população não cessou de crescer na proporção precedente nos cobrirão sozinhos todo o imenso espaço compreendido
mente indicada. ' > entre os gelos polares e os trópicos; eles se espalharão das
Muito embora existissem então nas fronteiras do oeste praias do oceano Atlântico até a costa do mar do Sul.
grandes nações indígenas ligadas aos ingleses, o movimento Creio que o território em que a raça anglo-americana
da emigração para o Ocidente por assim dizer nunca desa deve um dia se estender iguala os três quartos da Europa2. O
celerou. Enquanto o inimigo devastava as costas do Atlânti clima da União é, pesando-se tudo, preferível ao da Europa;
co, o Kentucky, os distritos ocidentais da Pensilvânia, o Es suas vantagens naturais são igualmente grandes e é evidente
tado de Vermont e o do Maine enchiam-se de habitantes. A que sua população não deixará de ser um dia proporcional
desordem que seguiu a guerra não impediu tampouco que a à nossa.
população crescesse e não deteve sua marcha progressiva A Europa, dividida entre tantos povos diversos, a Euro
no deserto. Assim, a diferença das leis, o estado de paz ou pa, através das guerras sem cessar renascentes e da barbárie
de guerra, a ordem ou a anarquia, influíram de maneira ape da Idade Média, chegou a ter quatrocentos e dez habitantes3
nas insensível no desenvolvimento sucessivo dos anglo- por légua quadrada. Que causa tão poderosa poderia impe
americanos. dir que os Estados Unidos tivessem uma população equiva
É fácil compreender tal coisa: não há causas gerais o lente um dia?
bastante para se fazerem sentir em todos os pontos de um Vários séculos passarão antes que os diversos rebentos
território tão imenso. Assim, sempre há uma grande porção da raça inglesa da América cessem de apresentar uma fisio
do país em que é certo encontrar abrigo contra as calamida nomia comum. Não se pode prever a época em que o ho
des qüe atingem a outra, e por maiores que sejam os males, mem poderá estabelecer no novo mundo a desigualdade
o remédio oferecido é sempre maior ainda. permanente das condições.
Portanto não se deve crer que seja possível deter a Quaisquer que sejam, portanto, as diferenças que a paz
evolução da raça inglesa do Novo Mundo. O desmembra ou a guerra, a liberdade ou a tirania, a prosperidade ou a
mento da União, levando a guerra para o continente, a abo miséria introduzirem um dia no destino dos diversos reben
lição da república, introduzindo nela a tirania, podem retar tos da grande família anglo-americana, todos estes conserva
dar seus desdobramentos, mas não impedi-la de alcançar o rão pelo menos um estado social análogo e terão em co
complemento necessário de seu destino. Não há poder na mum os usos e as idéias que decorrem do estado social.
terra capaz de fechar aos passos dos emigrantes esses fér Apenas o vínculo da religião bastou na Idade Média
teis ermos abertos em toda a parte à indústria, que ofere para reunir numa mesma civilização as diversas raças que
cem um asilo a todas as misérias. Os acontecimentos futu povoaram a Europa. Os ingleses do Novo Mundo possuem
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entre si mil outros e vivem num século em que tudo procura cham num passo fácil e rápido numa carreira cujo termo os
se igualizar entre os homens. olhos ainda não são capazes de perceber.
A Idade Média era uma época de fracionamento. Cada O americano luta contra os obstáculos que a natureza
povo, cada província, cada cidade, cada família tendia então lhe opõe; o russo está às voltas com os homens. Um comba
fortemente a se individualizar. Em nossos dias, um movi te o deserto e a barbárie, o outro a civilização revestida de
mento contrário se faz sentir, os povos parecem caminhar todas as suas armas. Por isso as conquistas do americano se
para a unidade. Vínculos intelectuais unem entre si as partes fazem com o arado do lavrador, as do russo com a espada
mais distantes da terra, e os homens não poderiam ficar um do soldado.
só dia estranhos uns aos outros ou ignorando o que aconte Para alcançar seu fim, o primeiro se apóia no interesse
ce num canto qualquer do universo; por isso nota-se hoje pessoal e deixa atuar, sem as dirigir, a força e a razão dos in
menos diferença entre os europeus e seus descendentes do divíduos.
O segundo concentra de certa forma num homem toda
novo mundo, apesar do Oceano que os divide, do que entre
certas cidades do século XIII, que eram separadas unica a potência da sociedade.
Um tem por principal meio de ação a liberdade; o ou
mente por um rio.
tro, a servidão.
Se esse movimento de assimilação aproxima povos es
O ponto de partida de ambos é diferente, diversos são
trangeiros, ele se opõe com maior razão a que os rebentos
seus caminhos; no entanto cada um deles parece chamado,
do mesmo povo se tornem estranhos uns aos outros.
por um desígnio secreto da Providência, a ter um dia em
Chegará pois um dia em que se poderão ver na Amé
suas mãos o destino de metade do mundo.
rica do Norte cento e cinqüenta milhões de homens4 iguais,
que pertencerão todos à mesma família, que terão o mesmo
ponto de partida, a mesma civilização, a mesma língua, a
mesma religião, os mesmos hábitos, os mesmos costumes e
através dos quais o pensamento circulará sob a mesma
forma e se tingirá das mesmas cores. Tudo o mais é duvido
so, mas isso é certo. Ora, aí está um fato inteiramente novo
no mundo, cujo alcance a própria imaginação não seria ca
paz de captar.
Há hoje na Terra dois grandes povos que, partindo de
pontos diferentes, parecem avançar rumo ao mesmo objeti
vo: os russos e os anglo-americanos.
Ambos cresceram na obscuridade e, enquanto os olha
res dos homens estavam ocupados em outras partes, coloca-
ram-se de repente na linha de frente das nações, e o mundo
tomou conhecimento quase ao mesmo tempo de seu nasci
mento e de sua grandeza.
Todos os outros povos parecem ter alcançado mais ou
menos os limites que a natureza traçou e só precisa conser
var; eles, porém, estão em crescimento5. Todos os outros pa
raram ou só avançam à custa de muito esforço; eles mar