Você está na página 1de 18

Reinhart Koselleck

CRÍTICA E CRISE
U N I V E R S I D A D E DO ESTADO
D E
, R J
t DO RIO DE JANEIRO

REITOR Antonio Celso Alves Pereira Uma contribuição à


VICE-REITORA Nilcéa Freire
patogênese do mundo burguês

EDITORA DA UNIVERSIDADE DO TRADUÇÃO DO ORIGINAL ALEMÃO

ESTADO D O RIO DE JANEIRO Luciana Villas-Boas Castelo-Branco

CONSELHO EDITORIAL

Elon Lages Lima


Gerd Bornheim
Ivo Barbieri (Presidente)
Jorge Zahar (ia memoriam)
Leandro Konder
Pedro Luiz Pereira de Souza

edjf
uerj

COMRAPOIITO
PRIMEIRO CAPITULO

Dois acontecimentos que fizeram época marcam o início e o fim


do Absolutismo clássico. Seu ponto de partida foi a guerra civil
religiosa. O Estado moderno ergueu-se desses conflitos religiosos
mediante lutas penosas, e só alcançou sua forma e fisionomia
plenas ao superá-los. Outra guerra civil — a Revolução Francesa
— preparou seu fim brusco.
O efeito dessas duas séries de acontecimentos alastrou-se
por toda a Europa. A posição singular da Inglaterra evidencia-se
no fato de que lá, por assim dizer, os dois acontecimentos coin-
cidem. Na ilha, o Estado absolutista emergente foi destruído
pela guerra civil religiosa, e as lutas religiosas já significavam a
revolução burguesa. N o continente, ao contrário, o Estado abso-
lutista permaneceu, até onde se pode remontar seu desenvol-
vimento, u m acontecimento ligado aos conflitos posteriores à
1

Reforma. O Estado moderno estabeleceu-se em duas fases dis-


tintas e em virtude de soluções espacialmente distintas para as
lutas religiosas. Sua política foi o tema do século XVII, e seus ca-
minhos traçam a história do Absolutismo. O período seguinte,
embora se caracterize pelo mesmo poder estatal, recebeu outro
nome: Iluminismo. O movimento iluminista desenvolveu-se a
partir do Absolutismo, no início como sua consequência inter-
na, em seguida como sua contraparte dialética e como o inimigo
que preparou sua decadência.
Assim como o ponto de partida do Iluminismo foi o sistema
absolutista, o do Absolutismo foram as guerras religiosas. Ama-
durecimento e fim do Absolutismo estão internamente relacio-
nados. Esta relação se torna visível no papel que o Iluminismo
pôde desempenhar no âmbito do Estado absolutista. O I l u m i -
nismo floresceu justamente na França, o primeiro país que supe-

•II 19
20 REINHART KOSEl. LECK CRITICA 3 CRISE

rou de maneira resoluta as guerras internas religiosas mediante a dência histórica remontava à época das guerras religiosas. No sé-
adoção do sistema absolutista. O abuso de poder por Luís XIV
2
culo XVI, a ordem tradicional estava em plena decadência. E, em
acelerou o movimento iluminista, em que o súdito se descobre consequência da perda da unidade da Igreja, a ordem social co-
cidadão.' Cidadão que, na França, irá derrubar os bastiões da do- mo u m todo saiu dos eixos. Antigos laços e alianças foram desfei-
minação absolutista. A estrutura política do Absolutismo, a p r i n - tos. Alta traição e luta pelo bem c o m u m tornaram-se conceitos
cípio uma resposta às guerras civis religiosas, deixará de ser en- intercambiáveis, conforme as frentes de luta e os homens que ne-
tendida enquanto tal pelo Iluminismo. las se locomoviam. A anarquia generalizada levou a duelos, vio-
6

A primeira tarefa desta investigação é apreciar tal conexão. lências e assassinatos, c a pluralização da Ecdesia Sancta foi u m
A situação de partida do Estado moderno será explicada na medi- fermento para a depravação de tudo o que antes era coeso: famí-
da em que isso se mostre necessário para explicitar o ponto de lias, estamentos, países e povos. Assim, a partir da segunda meta-
inserção política do Iluminismo neste Estado. Assim, impõe-se de do século XVI, u m problema que não podia ser resolvido pelos
uma delimitação metodológica à análise da estrutura política do meios da ordem tradicional tornava-se cada vez mais virulento:
Absolutismo — para além de questões sociais ou económicas — a época impunha a necessidade de encontrar uma solução em
que traz em si uma justificativa factual. C o m o apoio de magistra- meio a igrejas intolerantes, que travavam duros combates e se
dos e militares, o Estado dos príncipes forma uma esfera de ação perseguiam cruelmente, e em meio a frações estamentais ligadas
supra-religiosa e racional que, em oposição às suas demais ins- pela religião. Uma solução que contornasse, apaziguasse ou aba-
tâncias, era determinada pela política estatal. N o plano social, as fasse a luta. Como era possível restabelecer a paz? Na maior par-
7

monarquias permaneceram totalmente ligadas à tradicional divi- te do continente, o Estado absolutista encontrou a resposta e
são estamental, a tal ponto que, em geral, se empenhavam em constituiu-se a partir do que, d: fato, era: uma resposta específica
preservá-la. N o plano político, porém, os monarcas procuravam à guerra civil religiosa. Qual era esta resposta? O que ela significa-
extinguir ou neutralizar todas as instituições autónomas (mesmo va para o monarca e o súdito?
o mercantilismo, enquanto sistema económico, está submetido U m a vez que os partidos religiosos tiravam sua energia de fon-
ao planejamento e à condução estatal). Também as questões rela- tes que se encontravam fora do domínio de poder dos príncipes,
tivas à religião e à Igreja foram tratadas em função de sua utilida- estes só podiam opor-se a eles rompendo o primado da religião.
de para o Estado, fosse no âmbito de uma igreja de Estado o u de Só assim foram capazes de submeter os diferentes partidos à au-
uma tolerância oportuna. A constelação inicial do I l u m i n i s m o se toridade estatal. O princípio "cujus régio, ejus religio" ("a religião
insere no domínio próprio desse sistema político que se estendia é de quem é a região"] decorre do fato de que os príncipes se
por toda a Europa. colocavam acima dos partidos religiosos, mesmo quando eram
Esse sistema recebeu sua expressão teórica na doutrina da "ra- seguidores de alguma religião. O monarca absoluto não reconhe-
zão de Estado". Criou-se u m espaço, livre de prescrições morais,
4
cia nenhuma instância superior a si mesmo, a não ser Deus, cujos
em que a política pôde se desenvolver independentemente da atributos ele próprio assumia no espaço político e histórico:
moral. "Nas monarquias, a política promove grandes coisas c o m "Majestas vero nec a majore potestate nec legibus ullis nec tempore
o mínimo de moral possível." Quando, em 1748, Montesquieu
5
definitur" ["Na verdade, a autoridade não é definida nem pelo
caracterizou com esta frase a política da época, empregou uma maior poder nem por quaisquer leis nem pelo t e m p o " ] . 9

fórmula que — independentemente de seu conteúdo polémico Em seu roman à def, o Argenis, de 1621, Barclay forneceu para
— não seria mais compreendida pelos iluministas, pois sua evi- a monarquia absoluta uma justificação bastante difundida na
RE I N H A R T K O S E L L E C K CRÍTICA h CRISE 23
2 2

época e traduzida em quase todas as línguas europeias. H u m a de uma das igrejas, dependentes de vassalos, no quadro de uma
nista e jurista, o autor partilhou o destino de muitos de seus con- instituição política própria ou de uma das ordens estamentais.
temporâneos; era filho de uma família de refugiados, e suas i m - Quanto mais o sentido desse mundo pluralista se altera, gerando
pressões de juventude foram determinadas pelas lutas da Liga e o sem-sentido da guerra civil, tanto mais os súditos e o próprio rei
pelo choque da "conspiração da pólvora", de 1605. Mais tarde, 10
confrontam-se com uma alternativa premente: "Saibam que qua-
referindo-se a eventos como esses, confrontou o monarca com a se todos os homens foram reduzidos ao mesmo ponto: ou ficam
em desacordo com a própria consciência ou com os aconteci-
seguinte alternativa: " O u restituís a liberdade ao povo, ou lhe
mentos do século." N o vaivém dos perseguidores e perseguidos,
16

assegureis a liberdade interior, pela qual o povo sacrificou sua l i -


que trocavam constantemente os papéis de vítima e de carrasco,
berdade."" Esta passagem revela a missão histórica de que se i n -
não sobreviveu quem se manteve fiel à sua crença, mas quem bus-
cumbia a realeza da época, e que a maioria dos pensadores da
cou a paz pela paz. D'Aubigné, frondeur por toda a vida, cruzado
geração de Richelieu — contra os ligueurs, frondeurs e monar-
rigoroso e proscrito, punha estas constatações na boca de seu
cômacos — declarava plenamente justificada. Servindo-se ain-
12

companheiro dissidente, o político de Sancy. Não era mais pos-


17

da da teoria do contrato de governo, Barclay tinha em vista o Es-


sível conciliar a consciência e as exigências da situação. Por isso,
tado absolutista, ao destituir os partidos em luta de seus direitos,
prossegue o político incumbido por DAubigné, deve-se distin-
transferidos — e, j u n t o com eles, toda a responsabilidade — u n i -
guir claramente entre interior e exterior. O astuto refugia-se nos
camente ao soberano. O Argenis estava entre as leituras regulares
recantos secretos de seu coração, onde permanece seu próprio
de Richelieu; seus pensamentos, topoi da época, reencontram-se
juiz, ao passo que os fatos externos devem ser submetidos ao juízo
em seu testamento." Ser tolerante seria mais perigoso que ser se-
e ao tribunal do soberano. A voz da consciência não deve nunca
vero ou cruel, pois as consequências de qualquer complacência
alcançar o exterior; deve, antes, ser abafada: só sobrevive quem se
derramariam mais sangue e seriam mais devastadoras que a seve-
converte. "Pode-se ver o sentido disto facilmente: os que estão
ridade momentânea. Se o monarca admitisse oposição, sem dú-
mortos quiseram deixar viver sua consciência, e foi sua consciên-
vida se libertaria de responsabilidades, mas carregaria a culpa por
cia que os m a t o u . " Por uma inversão irónica, a consciência tor-
18

todas as agitações que nascessem da tolerância. O postulado de


14

nou-se culpada da sua própria destruição. Os limites entre golpe


que o monarca detém o monopólio do restabelecimento da paz
mortal, execução e assassinato eram ainda ténues e imprecisos; 19

impõe ao soberano uma responsabilidade absoluta. Na época, ela mas, para o político, qualquer morte violenta na guerra civil reli-
se expressou de forma cristalina na afirmação da responsabilida- giosa passou a equivaler a u m suicídio. Quem se submete ao sobe-
de exclusiva perante Deus. rano vive por meio do soberano; quem não se submete a ele é
Em seu romance, Barclay também indica a direção que o rei aniquilado, mas a culpa recai sobre o próprio aniquilado. Para
deveria tomar para pacificar o país. O u fazia com que todos se sobreviver, o súdito deve esconder sua consciência.
curvassem o u ninguém se submeteria." A responsabilidade abso-
luta do soberano exige e pressupõe a dominação absoluta de to- Desfez-se a relação entre culpabilidade e responsabilidade,
dos os sujeitos. O governante só pode assumir a responsabilidade constitutiva da consciência. Ambas encontraram uma nova cor-
pela paz e a o r d e m quando submete da mesma forma todos os relação na pessoa do soberano e na do súdito. Diante do fórum
súditos. Ocorre assim uma profunda ruptura na posição dos sú- de súditos, o soberano f o i eximido de qualquer culpabilidade,
mas coube a ele toda responsabilidade. O súdito foi dispensado
ditos, que, até então, tinham seu lugar no interior de u m sistema
de qualquer responsabilidade política mas, em compensação, f o i
múltiplo, embora frouxo, de responsabilidades: como membros
24 REINHART KOSELLECK
CRITICA E CRISE 2 5

ameaçado de uma dupla culpabilidade: externamente, ao proce- em campos opostos, mas no século XVII ainda tinham u m i n i m i -
der contra os interesses do soberano, em assuntos cuja decisão go comum: os teólogos. Somente os teólogos acreditavam, garan-
cabia apenas ao soberano; internamente, pela culpa que assalta tia Spinoza, que os estadistas também deviam observar as regras
quem se recolhe no anonimato. Esta cisão abriu no horizonte da de piedade prescritas para os indivíduos particulares. A exclu-
22

guerra civil religiosa u m domínio em que a "inocência do poder" são da " m o r a l " na política não se opunha à moral secular, mas à
t o m o u seu lugar. U m domínio que competia apenas ao sobera- moral religiosa com pretensão política.
no. Mas o príncipe só podia preservar a inocência do seu poder A doutrina da razão de Estado estava de tal modo condicio-
se estivesse consciente da responsabilidade que ele implicava. Só nada pelas rivalidades confessionais que não se restringiu ao Ab-
assim poderia preservar uma autoridade que garantisse seu po- solutismo monárquico. N o continente, infiltrou-se na tradição
der. O príncipe estava, portanto, constrangido a agir, obrigado que defendia o fortalecimento da realeza, mas também ganhou
constantemente a tomar novas decisões, inclusive as que recor- terreno em países que tinham uma constituição corporativa ou
ressem à violência. Abster-se delas poderia trazer consequências republicana. Nessa época, todo poder que quisesse exercer auto-
tão graves quanto agir de m o d o inverso, extrapolando o poder. ridade e ter validade geral precisava negar a consciência privada,
Os dois perigos desafiavam-se mutuamente. O que sustentava a que era o esteio dos vínculos religiosos ou dos laços estamentais
decisão do soberano era, precisamente, o perigo de passar de u m de lealdade. Até o Parlamento inglês, quando quis suspender em
extremo ao outro. 1640 as prerrogativas de Carlos I , invocou rapidamente o argu-
Para c u m p r i r com sua responsabilidade universal, o príncipe mento de que toda consciência, mesmo a do rei, deveria subor-
era obrigado a procurar a medida de seus atos nos efeitos previ- dinar-se ao interesse estatal. Na medida em que obrigou o rei a
síveis que suas ações trouxessem para a comunidade. Assim, a agir contra sua própria consciência, o Parlamento formulou a
obrigatoriedade de agir impunha também a obrigatoriedade de exigência da soberania plena. Também Spinoza, na Holanda,
23

ser o mais previdente possível. O cálculo racional de todas as pos- longe de falar em nome do Absolutismo monárquico, achava to-
síveis consequências tornou-se o primeiro mandamento da polí- talmente razoável ver como pecado as boas ações que prejudi-
tica. N o entanto, para manter sob controle pelo maior tempo
20
cassem o Estado e como piedoso u m pecado que servisse ao bem
possível as consequências de suas ações — que, uma vez inicia- comum. 24

das, escapavam à intervenção humana — o príncipe f o i nova- Hobbes, a quem Spinoza recorreu, é u m exemplo paradig-
mente forçado a ampliar seu poder. Deste modo, aumentou o mático da génese da moderna teoria do Estado a partir da situa-
perigo de não fazer uso ou de abusar do poder acumulado, o u ção das guerras civis religiosas.
seja, de renunciar à inocência do poder. A lógica da responsabili- Hobbes se presta de modo excelente para a exposição dessa
dade absoluta, à qual Luís XIV sucumbiria, é respeitar as suas leis, génese, pois renunciou a todos os argumentos tradicionais, co-
que se transformariam na arte da política. O espaço de manobra m o o da analogia Deus-rei. Queria, ao contrário, pôr em evidên-
da inocência do poder permaneceu estreitamente limitado pelas cia os fenómenos em sua crua realidade, seguindo, como afirma
prescrições de uma moral de ação mais severa. Estes preceitos Dilthey, o fio condutor de u m método científico. Além disto,
25

formavam as regras da política, que deviam permanecer essen- a teoria Hobbesiana do Estado absolutista já contém in nuce a
cialmente estranhas ao súdito, destituído de poder. ideia do direito de Estado civil, de forma que seu olhar, embora
Políticos e doutrinadores de uma moral secular estavam de parta do contexto das guerras religiosas, alcança por si mesmo o
acordo neste p o n t o . N o século XVIII eles já estariam separados
21
século XVIII.

>
C R Í T I C A E C R I S E 2 7
R E I N H A R T K O S E L L E C K

I I se problemáticos. Os conceitos básicos desta antropologia são


appetitus et fuga [desejo e fuga] ou desire and fear [desejo e me-
Hobbes desenvolveu sua teoria do Estado a partir da situação his- d o ] , que, apreciados historicamente, formam os elementos de
31

tórica provocada pelas guerras civis religiosas. Para ele, que teste- uma teoria da guerra civil. Mas, visto como u m todo, o sistema
m u n h o u a formação do Estado absolutista na França — estava lá de Hobbes se constrói de tal forma que o resultado — isto é, o
não apenas quando Henrique IV foi assassinado, mas também Estado — já está contido nas premissas da guerra civil. Os indiví-
quando La Rochelle se entregou às tropas de Richelieu — , não duos são descritos de antemão em função de suas existências
havia outro objetivo a não ser evitar a guerra civil (que lhe pare- como sujeitos, isto é, como súditos do soberano. Sem uma ins-
cia iminente na Inglaterra) o u , se ela fosse deflagrada, encontrar tância estamental intermediária, são integrados à ordem pública
meios de terminá-la. Em sua obra da maturidade, observava
26 de modo a poderem desenvolver-se livremente como indivíduos.
que não havia nada mais instrutivo em matéria de lealdade e jus- O individualismo de Hobbes é o pressuposto de u m Estado orde-
tiça do que a recordação da guerra c i v i l . Em meio às agitações
27 nado e, ao mesmo tempo, a condição de u m livre desenvolvi-
revolucionárias, procurava u m fundamento sobre o qual se p u - mento do indivíduo. 32

desse construir u m Estado que garantisse paz e segurança. En- A princípio, a humanidade é dominada por uma paixão, pelo
quanto Descartes, que se achava em u m Estado já constituído, desejo incessante de poder, ao qual somente a morte põe fim. 31

evitava levantar essas questões fundamentais, Hobbes atribuía a C o n f l i t o , guerra e guerra civil, bellum omnium contra omnes
elas u m significado central. Todos os teólogos, filósofos da m o -
28 [guerra de todos contra todos], são a sua consequência. O medo
ral e juristas constitucionais teriam falhado, pois suas doutrinas constante de uma morte violenta impede a humanidade de respi-
apoiavam os direitos de determinados partidos e, portanto, inci- rar. Por isso, o desejo de paz é tão fundamental quanto o desejo
34

tavam à guerra civil, em vez de ensinar u m direito que estivesse de poder. O homem vegeta, oscilando permanentemente entre
35

acima dos partidos ("non partium, sed pacis siudio" ["não para a ânsia de poder e a nostalgia de paz. Não é capaz de escapar deste
aplicação pelas partes, mas para a p a z " ] ) . Para poder encontrar
29 vaivém; enquanto persiste nele, reina a guerra. "Hunc statum
este direito, Hobbes indaga-se sobre a causa da guerra civil, i m - facile omnes, dum in eo (bello) sunt, agnoscunt esse malum et per
pelido pela ideia de que é preciso, em primeiro lugar, desmasca- consequens pacem esse bonum" ["Evidentemente, enquanto estão
rar os planos e interesses dos homens, dos partidos e das igrejas. em guerra, todos reconhecem que a situação é má, e por conse-
Pois os homens, ofuscados por seus desejos e esperanças — com- quência a paz é b o a " ] . O estado de guerra pertence à natureza
36

preensivelmente — seriam incapazes de reconhecer a causa de humana; a paz só existe enquanto esperança e desejo. Embora se
todo o mal. "Causa igitur belli civilis est, quod bellorum ac pacis deseje a paz como bem supremo, tal desejo não basta, em si, para
causae ignorantur" ["Existe o motivo da guerra civil, pois as cau- assegurar uma paz duradoura. Nisto reside, para Hobbes, o ver-
sas da guerra e da paz são ignoradas"]. Tendo por fio condutor
30 dadeiro problema da filosofia m o r a l . 37

a causa belli civilis [o motivo da guerra civil], Hobbes desenvolve Ao formular assim o problema, Hobbes supera a maneira pela
seu direito natural racional, que equivale a u m a doutrina das qual ele era, em geral, tratado na época. Nega a primazia das
causas da guerra e da paz. questões que inquietavam os ânimos dos ingleses, fosse a relação
Para compreender o fundamento da guerra civil, Hobbes ela- das seitas com a igreja do Estado, do Parlamento com o rei ou dos
bora uma antropologia individualista, correspondente a uma h u - direitos fundamentais com o protetor. A solução encontrada por
manidade cujos vínculos sociais, políticos e religiosos tornaram- Hobbes nos interessa sob dois aspectos. Em primeiro lugar, mos-

h
28 RKINHART KOSELLECK

tra a consciência — e o papel que ela exerce nos conflitos religio- para com o mesmo fenómeno a que alude Shakespeare ao dizer:
sos — como uma construção ideológica. Assim, destitui o pro- "Pois esta mesma palavra, Revolução, separou-lhes da alma as
blema de seu efeito explosivo. Para Hobbes, a subordinação da ações do c o r p o . "
42

moral à política, característica da doutrina da razão de Estado, é A intenção de Hobbes já se torna clara quando se percebe
tematicamente irrelevante. A razão suprime qualquer diferença que, desde o início, ele se empenha em renunciar ao emprego
entre as duas ordens. A necessidade de fundar o Estado trans-
38
habitual da palavra "consciência". Ele a destitui de valor, por
forma a alternativa moral entre o bem e o mal em uma alternati- causa do uso incerto, substituindo-a pelo conceito de opinião,
va política entre a guerra e a paz. despido de qualquer significado religioso. A consciência não
43

Mas, em segundo lugar, a distinção permanece relevante. Por seria nada aléin de uma convicção subjetiva, ou seja, de u m pon-
isso, é preciso indicar como esta distinção — quase contra a von- to de vista privado.
tade de Hobbes — surgiu de u m modo que caracteriza o direito Quando os presbiterianos e independentes invocam a graça
político absolutista. Aí se revela a lógica inerente a esse processo religiosa para encontrar uma justificativa teológica, trata-se, para
histórico. O problema, tratado até então pela filosofia moral cris- Hobbes, apenas da expressão de sua paixão. Assim, ele elabora
tã, reaparece sob outros traços distintivos, fora do âmbito da teo- uma terminologia extra-religiosa e conquista uma posição su-
logia. Todo o século XVII será dominado por essa problemática. prapartidária que lhe permite analisar todos os partidos em seu
Externamente, Hobbes concorda com os filósofos morais de conjunto, como parte de uma unidade de eventos. 44

seu tempo no que diz respeito à concepção de que o h o m e m é Hobbes reconhece, sem ilusões, a distância entre as inten-
regido por leis eternas e imutáveis. " As leis morais têm u m cará-
3
ções dos partidos, guiadas pela teologia moral, e as práticas pelas
ter obrigatório universal e constrangem os homens a julgar suas quais procuravam realizar seus objetivos. Ainda que não houves-
ações em sua consciência (in foro interno), não pelo efeito mas se nenhuma dúvida quanto à boa intenção de sua vontade de
pela intenção. C o n t u d o , acrescenta Hobbes, as leis que só en-
40
paz, obviamente não havia consenso quanto aos meios e cami-
volvem o querer, o querer em sua sinceridade e constância, são nhos apropriados para estabelecer essa paz. Além disso, a con-
45

fáceis de observar. "(Elas) são fáceis de observar. Pois nisso nada vicção de cada u m , que produzia efeitos e ações variados, garan-
exigem senão o empenho; aquele que se esforça em seu desem- tia aos partidos a pretensão de expressar proposições com u m
penho as cumpre; e aquele que cumpre a lei é j u s t o . " C o m uma caráter obrigatório universal. Disto se segue que não somente
46

vontade pura é fácil ser justo. O sarcasmo contido — c o m o qual as ações, mas também as convicções, opunham-se umas às o u -
Hobbes, duplamente refugiado, no interior e no exterior, reagiu tras. E as convicções levavam a ações cada vez mais radicais, com
a cada uma das justiças dos partidos da guerra civil — é carac- o objetivo de aniquilar o inimigo não só externamente, mas tam-
terístico de u m pensador que experimentou na própria carne bém internamente. Reinava então o conflito das convicções,
47

a dialética fatal entre a consciência e a ação. A discrepância en- cuja estrutura, encoberta para os envolvidos, f o i evidenciada por
tre atitude interna e ação externa aumentou de tal forma que Hobbes: " N a verdade, é desagradável lutar, mas também não de-
o verdadeiramente justo tornou-se totalmente intercambiável. 41
cidir. . . . Guerras sem importância serão travadas, e serão mais
A convicção ou a ação, os dois ao mesmo tempo, o u somente u m violentas entre as seitas da mesma religião e as facções da mesma
dos dois? O que viria antes, a convicção o u a ação? Conhecendo república" (De eive, I , 5).
a dialética vigente entre as duas esferas, Hobbes investiga suas Cem anos depois, Rousseau fez da guerra civil seu tema e a
relações recíprocas de uma forma fundamentalmente nova. De- descreveu seguindo o fio condutor do pensamento de Hobbes:
K t l I N M A K i KUStLLtCK. CRITICA E CRISE 3 1

"Todos se tornam inimigos; alternadamente perseguidos e perse- Na guerra civil, não se pode mais dizer de maneira unívoca o que
guidores, u m contra todos e todos contra u m ; o intolerante é o é bom ou mau, e o desejo de paz não basta para esmorecer a von-
homem de Hobbes, a intolerância é a guerra da humanidade." 48
tade de poder. Em uma situação de guerra civil, em que o direito
O homem não pode escapar a essa guerra civil mesmo quando, de todos prevalece sobre todos, como é possível desenvolver uma
em sua nostalgia de paz, reconhece u m princípio moral de valida- legalidade que permita realizar este desejo? A lei natural, antes de
de universal. Pois justamente a pureza subjetiva da sua vontade
49 se tornar lei, precisa de uma garantia que viabilize seu cumpri-
de paz, na medida em que representasse o único preceito legi- mento. O mandamento de estabelecer a paz, contido na lei na-
53

timador das ações, levaria a uma pretensão de totalidade por par- tural, precisa ser transformado em uma lei cuja execução concre-
te daqueles que invocavam sua consciência; uma vez que há, de ta possa ser cumprida. A verdadeira tarefa da filosofia moral é
fato, diversos partidos, isso não conduziria à paz, mas ao seu elaborar tal legalidade, e o tema apropriado à matéria em questão
oposto, ao bellum omnium contra omnes. Quem invoca a cons- é a política. O resultado é a legitimação do Estado absolutista e de
ciência, afirma Hobbes, quer alguma coisa. Na convicção (a que sua estrutura política.
Hobbes reduziu todos os conteúdos religiosos) reside a pretensão Hobbes introduz o Estado como uma construção política em
de exclusividade dos partidos inimigos, e a guerra civil nasce des- que as convicções privadas são destituídas de sua repercussão po-
ta atitude c o m u m . Ela advém do veneno de doutrinas rebeldes; lítica. No direito constitucional de Hobbes, as convicções priva-
uma delas afirma que cada u m é juiz das ações boas e más, a outra das não encontram nenhuma aplicação às leis; as leis não são
54

que é pecado o que se faz contra a própria consciência. 50


aplicáveis ao soberano. O interesse público de Estado, sobre o
55

O movimento reformatório e a consequente divisão das ins- qual somente o soberano tem o direito de decidir, não compete
tâncias religiosas remeteram o h o m e m de volta à sua consciência. mais à consciência. A consciência, da qual o Estado se separa e se
A consciência desprovida de amparo externo degenera em fetiche aliena, transforma-se em moral privada: "Autorictas, non veritas,
de uma justiça em causa própria. Não surpreende que precisa- facit legem" ["É a autoridade, e não a verdade, quem faz as leis"].
mente esta consciência desse coragem e energia aos partidos beli- O monarca está acima do direito e é sua fonte; ele decide o que é
gerantes para continuarem a lutar. A simples consciência, que, justo ou injusto; é, ao mesmo tempo, legislador e j u i z . O con-
56

como diz Hobbes, tem a pretensão de subir ao trono, não é juiz


51
teúdo deste direito, como direito público, não está mais ligado a
do bem e do mal, mas a própria fonte do mal. Não era apenas a interesses sociais e esperanças religiosas; para além de igrejas, es-
vontade de poder que atiçava a guerra civil — e nisto reside o tamentos e partidos, ele marca u m domínio formal de decisões
passo definitivo dado por Hobbes — mas também a invocação da políticas. Este domínio pode ser ocupado por esse ou aquele po-
consciência sem amparo externo. Em vez de ser uma causa pacis, der, contanto que possua a autoridade necessária para proteger
a instância da consciência é, em sua pluralidade subjetiva, uma os homens, independentemente de seus interesses e esperanças. 57

causa belli civilis. A decisão política do príncipe tem força de l e i .


58

Ao tecer reflexões de filosofia moral para examinar os pressu- Na medida em que uma ordem estatal é assegurada de cima
postos necessários a uma paz duradoura, Hobbes ultrapassa a para baixo, sua estabilidade só se torna possível quando a plura-
problemática tradicional. Retoma a separação entre consciência e lidade de partidos e indivíduos se reconhece em uma moral que
ação, mas somente para redefini-las de maneira nova. A o con-
52
aceita a soberania política absoluta do príncipe como uma neces-
trário de seus contemporâneos, não argumentava do interior pa- sidade moral. Às teorias morais tradicionais, Hobbes opõe uma
ra o exterior, mas no sentido oposto, do exterior para o interior. moral cujo tema é a razão política. As leis desta moral se realizam
guei R E , N 1 ^ A R T K O S E L L E C K C R Í T I C A E CRISE 35

mor
políl Tendo em vista o estabelecimento da paz e sua garantia pelo
,%iarca c i ^ P ° i s alto mandamento m r e c o m m a

. ftíto rnorí ' soberano reside em suas funções 2 a o


soberano, qualquer ordem do soberano é também u m manda-
'' ', \ i n s t a u r '
tip C
manter a ordem. a r e
mento moral. Para os homens ameaçados pela guerra civil, não
\ ''herania inviolável do príncipe a partir da m u l -
V a n l
há diferença entre consciência e política. Mas, o que acontece
P % t i d o s prementes
Slt
guerra civil, que se legitima- n a
quando a paz está assegurada, a ameaça de morte está banida e o
. imoral e ^
s t a
religião, Hobbes dá uma resposta e l a
cidadão se desenvolve livremente? Será que, também nesse caso,
,IL q ^ viveu. Assim como, no continente, o
o r m
e m U toda decisão ou ordem do monarca é uma lei racional ou u m
!? f ; guerras 0r ,
g is r e l i
mandamento moral?
iosas e, deste modo, adquiriu sua Esta pergunta, que em breve iria inquietar a ordem estabele-
^ no àmP
0 b b f
direito público e da filosofia lto a o
cida, nos leva a apreciar de maneira mais acurada a relação entre
° N r e f a foi executada pela razão; razão que, em
m e
moral e política, característica do Estado absolutista. A solução
^ * i ão s u p e ?
a a b s
àquele conflito desordenado de
t
r i o r
proposta por Hobbes mostra que seu conceito de Estado contém
ím da ^ p - t i c i o s o s e impulsivos quanto o monar-
; s u e r s em si o mesmo conflito que ele procurou varrer do mundo me-
p
(i) relação ^
o d e s t
súditos. Para Hobbes, a razão é o o s 71
diante o próprio Estado. Hobbes, que conscientemente deixou de
| í; u m a fr^se cujo significado histórico também lado o conteúdo político ou religioso dos programas de partido,
U'\k o fim d t guerras civis religiosas é a "razão", a s
não se indagava sobre a estrutura de u m Estado determinado,
agitaçof,^ ^ ^ r g ê n c i a , inerente à situação, entre o
c o n v mas sobre aquilo que faz com que u m Estado seja Estado, isto é, o
senda d p Racionalista. A razão que se eleva das
| l o s o f i a caráter estatal do Estado. Não se interrogava sobre a especifi-
.ika c i v i l Religiosa permanece, a princípio, na cidade das leis, mas sobre por que as leis existem. Não lhe i n -
74

m e n t o OL j^ o Estado. Pode-se entender por que


e ftjn( teressava o conteúdo das leis, mas sua função de garantir a paz.
* ' (|ue a raz/ poderia emancipar-se pelo m o v i -
A c et ao
A legalidade destas leis não residia na qualificação de seu conteú-
' P < j. E i ã o conhecia a vertente própria da razão.
a s ar
e n do, mas exclusivamente na sua origem, ou seja, no fato de serem
Pois ele « 1 ^ j^Qj^iem é a sua emancipação pela razão. o a expressão da vontade do poder soberano. Mas, para possibilitar
o progr, . j ; determinação da história, n ã c ? p 0 ( e s e r a sua legalidade n u m sentido suprapartidário, neutro e indiferente
guerra cn ^ - ; ^ como história das guerras civis. Não
h s t o r à religião, Hobbes sempre recorreu à diferença entre convicção
servado, <j, ^ £5tado, mas a necessidade de pôr fim à
;i Q interna e ação externa, deduzida da realidade histórica; ele usou
contidos HL ^ progredir, no espaço que lhe foi re-
s ó p o ( e esta discrepância, que motiva sua análise após a guerra civil, para
'nteração .L g n i s m o s religiosos são neutralizados e
a n t a a colocá-la a serviço da ordem estatal.
ommilup , ^ hj^tória é, para Hobbes, uma constante
( ído A formalização do conceito de lei soberana, alcançada por
^ ornem é !L Estado, Estado e guerra civil. Homo g Hobbes, funda-se — ainda que mediante uma avaliação nova e
sistema L Dei [ O homem é o lobo do homem, o
h o m m i construtiva — numa separação entre consciência interior e ação
ciadas qua ^ ] . As dificuldades lógico-formais
( i d o h o m m
7 2
exterior. Pois somente esta diferenciação permite separar o con-
empo ame <;as vezes tratadas, só podem ser apre- tan teúdo de uma ação e a própria ação, pressuposto necessário para
histó^ ' i v a l ê n c i a ao mesmo C S t a am :,
> u m conceito de lei formal. Só assim é possível declarar, indepen-
1 S t r
^*ík , M I ' . | ' K
i c o
. quando se ignora a questão his- i o s a
dentemente de seu conteúdo moral ou religioso, o caráter legal
p ,< separa o seu sistema de um contexto de uma lei e, ao mesmo tempo, cumpri-la enquanto tal. A obe-
34 R E I N H A R T K O S E L L E C K C R I T I C A E CRISE 3 5

guerra civil, o monarca cumpre com o mais alto mandamento Tendo em vista o estabelecimento da paz e sua garantia pelo
moral. A qualificação moral do soberano reside em suas funções soberano, qualquer ordem do soberano é também u m manda-
políticas, isto é, em instaurar e manter a ordem. mento moral. Para os homens ameaçados pela guerra civil, não
Ao deduzir a soberania inviolável do príncipe a partir da m u l - há diferença entre consciência e política. Mas, o que acontece
tiplicidade de partidos presentes na guerra civil, que se legitima- quando a paz está assegurada, a ameaça de morte está banida e o
vam pela teologia moral e pela religião, Hobbes dá uma resposta cidadão se desenvolve livremente? Será que, também nesse caso,
à situação histórica em que viveu. Assim como, no continente, o toda decisão ou ordem do monarca é uma lei racional ou u m
Estado superou as guerras religiosas e, deste modo, adquiriu sua mandamento moral?
forma absolutista, no âmbito do direito público e da filosofia Esta pergunta, que em breve iria inquietar a ordem estabele-
moral a mesma tarefa foi executada pela razão; razão que, em cida, nos leva a apreciar de maneira mais acurada a relação entre
Hobbes, sabia-se tão superior àquele conflito desordenado de moral e política, característica do Estado absolutista. A solução
homens irracionais, supersticiosos e impulsivos quanto o monar- proposta por Hobbes mostra que seu conceito de Estado contém
ca absoluto era em relação aos súditos. Para Hobbes, a razão é o
71
em si o mesmo conflito que ele procurou varrer do mundo me-
fim da guerra civil; uma frase cujo significado histórico também diante o próprio Estado. Hobbes, que conscientemente deixou de
pode ser invertido: o fim das guerras civis religiosas é a "razão". lado o conteúdo político ou religioso dos programas de partido,
A q u i se manifesta a convergência, inerente à situação, entre o não se indagava sobre a estrutura de u m Estado determinado,
Absolutismo e a filosofia racionalista. A razão que se eleva das mas sobre aquilo que faz com que u m Estado seja Estado, isto é, o
agitações da guerra civil religiosa permanece, a princípio, na caráter estatal do Estado. Não se interrogava sobre a especifi-
senda desta guerra e funda o Estado. Pode-se entender por que cidade das leis, mas sobre por que as leis existem. Não lhe i n -
74

Hobbes não v i u que a razão poderia emancipar-se pelo m o v i - teressava o conteúdo das leis, mas sua função de garantir a paz.
mento iluminista. Ele não conhecia a vertente própria da razão. A legalidade destas leis não residia na qualificação de seu conteú-
A determinação do h o m e m é a sua emancipação pela razão. do, mas exclusivamente na sua origem, ou seja, no fato de serem
Mas, para Hobbes, esta não pode ser a determinação da história, a expressão da vontade do poder soberano. Mas, para possibilitar
pois ele vivenciou a história como história das guerras civis. Não sua legalidade n u m sentido suprapartidário, neutro e indiferente
é o progresso que pede o Estado, mas a necessidade de pôr fim à à religião, Hobbes sempre recorreu à diferença entre convicção
guerra civil. A razão só pode progredir, no espaço que lhe f o i re- interna e ação externa, deduzida da realidade histórica; ele usou
servado, quando os antagonismos religiosos são neutralizados e esta discrepância, que motiva sua análise após a guerra civil, para
contidos pelo Estado. A história é, para Hobbes, uma constante colocá-la a serviço da ordem estatal.
interação de guerra civil e Estado, Estado e guerra civil. Homo A formalização do conceito de lei soberana, alcançada por
homini lúpus, homo homini Dei [ O homem é o lobo do h o m e m , o Hobbes, funda-se — ainda que mediante uma avaliação nova e
homem é o Deus do h o m e m ] . As dificuldades lógico-formais
72
construtiva — numa separação entre consciência interior e ação
do sistema de Hobbes, tantas vezes tratadas, só podem ser apre- exterior. Pois somente esta diferenciação permite separar o con-
ciadas quando se deixa de lado esta ambivalência, ao mesmo teúdo de uma ação e a própria ação, pressuposto necessário para
tempo ameaçadora e auspiciosa, quando se ignora a questão his- u m conceito de lei formal. Só assim é possível declarar, indepen-
tórica de que ele parte e se separa o seu sistema de u m contexto dentemente de seu conteúdo moral ou religioso, o caráter legal
histórico determinado. 73
de uma lei e, ao mesmo tempo, cumpri-la enquanto tal. A obe-
36 RKINHART KOSELLECK C R Í T I C A E C R I S E

diência às leis "soberanas" só era possível se o súdito continuasse esta mesma moral. Uma virtude é uma virtude não por causa da
a distinguir entre convicção e ação, que já se contradiziam na convicção ou da justa medida, mas do seu fundamento político. 80

guerra civil, para poder viver em harmonia consigo mesmo sem Contudo, para o homem como homem, a convicção, ou a pró-
considerar o conteúdo das leis que deve cumprir. Deste modo, o pria consciência, permanece o último critério da moral. Resta
pressuposto histórico da guerra civil tornou-se o pressuposto ne- apenas esperar que a convicção também se oriente pela necessi-
cessário ao pensamento de Hobbes, pois lhe permitiu deduzir o dade política. '8

seu conceito de soberania absoluta. Assim, o homem é partido em dois. Hobbes o divide em uma
O mérito do pensamento de Hobbes consiste em ter desloca- metade privada e outra pública: os atos e as ações são submeti-
do a ruptura entre consciência e política, inevitável entre os ho- dos, sem exceção, à lei de Estado, mas a convicção é livre, "in
mens de orientação religiosa — isto é, irracionais — , para u m secret free".* Daí em diante será possível ao indivíduo refugiar-se
:

domínio que se situa fora da máquina estatal. Esta ruptura apa- em sua convicção sem ser responsável. Na medida em que o i n -
rece em dois lugares: no soberano, que está acima do Estado, e divíduo tomava parte no mundo da política, a consciência torna-
no indivíduo, pela cisão do homem em " h o m e m " e "cidadão". 75
va-se apenas uma instância de controle do dever de obediência.
"É verdade que o soberano pode cometer uma iniquidade, mas A ordem soberana dispensava o indivíduo de qualquer respon-
não uma injustiça."' U m senhor absoluto poderia cometer uma
6
sabilidade. " A Lei é a Consciência pública; Consciências priva-
injustiça, mas nunca juridicamente: só em u m sentido moral ou das ... são apenas opiniões privadas." Mas, se o indivíduo se
83

violando o princípio da utilidade. Se quisessem impedi-lo de co- atribui competência em u m domínio reservado ao Estado, ele
meter uma injustiça, estariam suprimindo o pressuposto da paz, deve mistificar-se para não ser obrigado a prestar contas. A d i -
84

a soberania absoluta, e abrindo espaço para novas ações ainda visão do homem em uma esfera privada e uma esfera pública é
mais injustas. Não se tratava, portanto, de u m mal que distin- constitutiva da génese do segredo. O Iluminismo irá sucessiva-
guisse a monarquia, mas de u m mal inerente à natureza huma- mente ampliar o foro interior da convicção; qualquer pretensão
n a . " A m o r a l política liberta o príncipe de todos os vínculos; que incorresse em u m domínio do Estado permanecia forçosa-
pode-se esperar, não obstante, que ele observe uma aequitas que, mente encoberta pelo véu do segredo. A dialética entre segredo e
por assim dizer, não é indispensável, mas acessória, pois não é movimento iluminista, desmascaramento e mistificação, surge
necessária para que o Estado funcione como rcgulator dos ho- desde o início do Estado absolutista.
mens irracionais. *
7
Para a razão que só se importava em dar u m fim à guerra civil,
Para manter o Estado em sua função de guardião da paz, tam- era irrelevante a diferença entre a esfera moral e a esfera política.
pouco é preciso que o súdito deva identificar-se, como homem e Esta razão, por assim dizer, tinha se tornado racional o suficiente
segundo sua convicção, com as leis políticas. A o contrário: o
79
para reconhecer diferentes convicções como realidades histó-
homem, como cidadão, não deve mais buscar a prima causa das ricas. Podia permitir-se isto, pois a tecnicidade formal do concei-
leis em Deus, mas em uma construção temporal, isto é, no poder to de lei absolutista oferecia uma elasticidade que evitava qual-
que põe fim à guerra civil. As leis são morais não porque cor- quer diferença entre consciência e ação que ameaçasse a ordem.
respondam a uma legalidade eterna da moral — embora este A tranquilidade e a segurança estavam, pois, asseguradas. O Es-
possa ser o caso — mas porque se originaram em u m manda- tado não se tornou somente o espaço de uma imoralidade polí-
mento ditado pela situação política. Estas são as leis da moral po- tica, mas também o espaço de uma neutralidade moral. Como
lítica, sobre as quais o soberano decide, por razões inerentes a u m espaço moral neutro, é u m autêntico espaço de exoneração.
REINHART KOSELLECK CRITICA E CRISE

guerra civil, o monarca cumpre com o mais alto mandamento Tendo em vista o estabelecimento da paz e sua garantia pelo
moral. A qualificação moral do soberano reside em suas funções soberano, qualquer ordem do soberano é também u m manda-
políticas, isto é, em instaurar e manter a ordem. mento moral. Para os homens ameaçados pela guerra civil, não
Ao deduzir a soberania inviolável do príncipe a partir da m u l - há diferença entre consciência e política. Mas, o que acontece
tiplicidade de partidos presentes na guerra civil, que se legitima- quando a paz está assegurada, a ameaça de morte está banida e o
vam pela teologia moral e pela religião, Hobbes dá uma resposta cidadão se desenvolve livremente? Será que, também nesse caso,
à situação histórica em que viveu. Assim como, no continente, o toda decisão ou ordem do monarca é uma lei racional ou u m
Estado superou as guerras religiosas e, deste modo, adquiriu sua mandamento moral?
forma absolutista, no âmbito do direito público e da filosofia Esta pergunta, que em breve iria inquietar a ordem estabele-
moral a mesma tarefa foi executada pela razão; razão que, em cida, nos leva a apreciar de maneira mais acurada a relação entre
Hobbes, sabia-se tão superior àquele conflito desordenado de moral e política, característica do Estado absolutista. A solução
homens irracionais, supersticiosos e impulsivos quanto o monar- proposta por Hobbes mostra que seu conceito de Estado contém
ca absoluto era em relação aos súditos. Para Hobbes, a razão é o
71
em si o mesmo conflito que ele procurou varrer do mundo me-
fim da guerra civil; uma frase cujo significado histórico também diante o próprio Estado. Hobbes, que conscientemente deixou de
pode ser invertido: o fim das guerras civis religiosas é a "razão". lado o conteúdo político ou religioso dos programas de partido,
A q u i se manifesta a convergência, inerente à situação, entre o não se indagava sobre a estrutura de u m Estado determinado,
Absolutismo e a filosofia racionalista. A razão que se eleva das mas sobre aquilo que faz com que u m Estado seja Estado, isto é, o
agitações da guerra civil religiosa permanece, a princípio, na caráter estatal do Estado. Não se interrogava sobre a especifi-
senda desta guerra e funda o Estado. Pode-se entender por que cidade das leis, mas sobre por que as leis existem. Não lhe i n -
74

Hobbes não v i u que a razão poderia emancipar-se pelo m o v i - teressava o conteúdo das leis, mas sua função de garantir a paz.
mento iluminista. Ele não conhecia a vertente própria da razão. A legalidade destas leis não residia na qualificação de seu conteú-
A determinação do homem é a sua emancipação pela razão. do, mas exclusivamente na sua origem, ou seja, no fato de serem
Mas, para Hobbes, esta não pode ser a determinação da história, a expressão da vontade do poder soberano. Mas, para possibilitar
pois ele vivenciou a história como história das guerras civis. Não sua legalidade n u m sentido suprapartidário, neutro e indiferente
é o progresso que pede o Estado, mas a necessidade de pôr fim à à religião, Hobbes sempre recorreu à diferença entre convicção
guerra civil. A razão só pode progredir, no espaço que lhe foi re- interna e ação externa, deduzida da realidade histórica; ele usou
servado, quando os antagonismos religiosos são neutralizados e esta discrepância, que motiva sua análise após a guerra civil, para
contidos pelo Estado. A história é, para Hobbes, uma constante colocá-la a serviço da ordem estatal.
interação de guerra civil e Estado, Estado e guerra civil. Homo A formalização do conceito de lei soberana, alcançada por
homini lúpus, homo homini Dei [ O homem é o lobo do homem, o Hobbes, funda-se — ainda que mediante uma avaliação nova e
homem é o Deus do h o m e m ] . As dificuldades lógico-formais
72
construtiva — numa separação entre consciência interior e ação
do sistema de Hobbes, tantas vezes tratadas, só podem ser apre- exterior. Pois somente esta diferenciação permite separar o con-
ciadas quando se deixa de lado esta ambivalência, ao mesmo teúdo de uma ação e a própria ação, pressuposto necessário para
tempo ameaçadora e auspiciosa, quando se ignora a questão his- u m conceito de lei formal. Só assim é possível declarar, indepen-
tórica de que ele parte e se separa o seu sistema de u m contexto dentemente de seu conteúdo moral ou religioso, o caráter legal
histórico determinado. 73
de uma lei e, ao mesmo tempo, cumpri-la enquanto tal. A obe-
38 REINHART KOSELLECK CRITICA E CRISE 39

" É b o m que a autoridade seja notável, porque é útil à defesa; a seu ponto de partida — a guerra civil religiosa, à qual o Estado
segurança existe para a defesa." 83
Mas o preço deste espaço de deve sua existência e sua forma — é esquecido, a razão de Estado
exoneração é a divisão do homem. O homem só é livre em segre- aparece como imoralidade por excelência.
do, só é homem em segredo. C o m o cidadão, o homem está su- Como herdeiras legítimas da religião, as teorias morais orien-
bordinado ao soberano, e só como súdito é cidadão. tavam-se conscientemente para o lado de cá; contudo, no âmbito
O exílio do homem transforma-se em u m ónus para o Estado. do Estado absolutista, permaneceram exteriores ao Estado. O ho-
Ser " h o m e m " é o segredo deste homem que, como tal, forçosa- mem como homem foi intencionalmente excluído do Estado,
mente escapa ao soberano. Enquanto o súdito c u m p r i r seu dever pois só possuía qualidade política na condição de súdito.
de obediência, o soberano não se interessa por sua vida privada. C o m o Iluminismo, a separação entre homem e súdito deixa
A q u i está, como mais tarde se verá, o ponto de partida específico de ser compreensível. Entendc-se que o homem deve realizar-se
do Iluminismo. O Iluminismo propagou-se numa brecha que o politicamente como homem, o que provoca a desagregação do
Estado absolutista abriu para pôr fim à guerra civil. A necessida- Estado absolutista. Hobbes não podia suspeitar que precisamente
de de estabelecer uma paz duradoura incita o Estado a conceder a separação entre moral e política desencadearia — depois, ace-
ao indivíduo u m foro interior que afeta pouco a decisão sobera- leraria — este processo. A intelectualidade burguesa acolheu a
na, mas que se torna indispensável. Que este foro interior seja herança do clero teológico, e a frase do Novo Testamento —
politicamente indiferente é uma necessidade constitutiva do Es- "Spiritualis homo judicat omnia, ipse autem a nemine judicatur"
tado se ele quiser conservar sua forma política. N o entanto, na ["O homem espiritual, ao contrário, julga tudo, não se furta ao
medida em que desaparece a neutralidade moral que distingue a julgamento de n a d a " ] — ganharia em breve uma nova e inespe-
86

decisão soberana, o Estado absolutista perde seu caráter evidente, rada atualidade.
que estava ligado à situação histórica. O Estado criou uma nova Em suma, pode-se dizer que Hobbes não foi u m historiador
ordem; historicamente, se tornaria uma vítima dela. Já desde o que tivesse reunido ou descrito fatos passados e presentes. Co-
87

início, o foro interior da moral, delimitado pelo Estado e reserva- mo pensador da história, voltado para a superação da guerra ci-
do ao homem como " h o m e m " , significava u m foco de agitação vil, encontrou uma resposta que ultrapassa a situação de partida.
A comprovação da historicidade de seu pensamento está precisa-
que era, originariamente, peculiar ao Estado absolutista. A ins-
mente na objeção, já levantada por seus contemporâneos, de que,
tância da consciência era o resquício não superado do estado de
do que é, Hobbes deduz o que deve ser; faz nascer o Estado de u m
natureza, que permaneceria mesmo quando o Estado houvesse
estado de natureza, em que os homens são lobos uns dos outros;
88

alcançado sua forma perfeita.


tal objeção motivou Dilthey a falar da "subjetividade impetuosa"
A neutralização da consciência pela política favorece a secula- em Hobbes. Na história, sempre se produz algo a mais ou a me-
rização da moral. A mediatização dos antagonismos eclesiásticos, nos — em todo caso, algo diferente do que estava contido nas
que acompanhou a formação do Estado, possibilita a expansão premissas. Aí está sua atualidade. Hobbes, aliás, pensava de ma-
gradual da concepção de m u n d o fundada na natureza e na razão. neira eminentemente histórica quando deu o salto lógico e para-
O esmorecimento da religiosidade calcada na revelação, 853
que doxal do estado de natureza da guerra civil para o Estado perfei-
condiciona o Estado, torna-se fatal na medida em que antigos te- to. Disse em palavras o que caracterizou o século XVII. A força do
mas se repetem sob uma forma secularizada. A moral que aspira seu pensamento revela-se neste elemento de prognóstico que lhe
à política será o grande tema do século XVIII. Na medida em que é inerente.
CRÍTICA E CRISE
4 (I REINHART KOSELLECK

constituição interna, fosse católica ou protestante, monárquica


I II
ou republicana — perante os outros Estados, que também se
A ordem jurídica supra-religiosa resultou não apenas na pacifica- compreendiam como personae morales. A delimitação de u m
94

ção de cada u m dos Estados nacionais; marcou, ainda mais, as foro interior estatal independente de outros Estados — cuja inte-
relações internacionais. O direito internacional europeu t o r n o u - gridade moral, como Hobbes havia mostrado, fundava-se apenas
se eficiente porque criou u m novo tipo de obrigatoriedade que se em seu caráter estatal — fez com que se desenvolvesse no ex-
colocava acima da pluralidade de religiões. Esta obrigatoriedade terior, obrigatoriamente, u m sistema internacional e coletivo.
era política. Ao instituir o âmbito das relações internacionais, era Vattel, representante clássico do direito internacional europeu
análoga ao raciocínio pelo qual Hobbes deduziu o Estado. So- no século X V I I I , disse que Hobbes foi o primeiro a dar "uma
95

mente a distinção clara entre interior e exterior permitiu destacar ideia distinta, mas ainda imperfeita, do direito internacional".96

do domínio de competências religiosas u m espaço de ação extra- Para Hobbes, uma vez que o bellum omniwn contra omnes
político, o que, sobre o pano de fundo histórico das paixões con- esteja superado no interior do Estado, o estado de natureza não
fessionais, equivalia necessariamente a uma racionalização. reina mais entre os homens individualmente, mas somente entre
No decorrer do século XVIII, a política secreta praticada nos os Estados, entendidos como magni homines [grandes homens] . 9

gabinetes e o cálculo racional transformado em rotina deveriam O direito natural dos indivíduos pré-estatais pôde ser transfor-
tornar-se, tanto quanto o próprio sistema absolutista, alvos de
89 mado em u m direito público internacional mediante a personifi-
uma crítica que exigia publicidade. A universalidade das teorias cação dos Estados surgidos na realidade histórica. O jus publicum
morais iluministas ultrapassou todas as fronteiras que a política europaeum [direito público europeu] fundava-se na rígida sepa-
havia traçado cautelosamente. Na medida em que a moral i l u - ração entre o foro interior do Estado, moralmente inviolável, e as
minista pretendia ter a mesma validade da China à América, de relações exteriores e políticas dos Estados entre si. Os Estados
Paris a Beijing, ela desfez qualquer diferença entre interior e ex-
90 eram absolutamente livres, e os soberanos (como, em Hobbes, o
terior: entre os Estados, entre Europa e além-mar, assim como
91 92 homem na condição de homem) eram submetidos somente à sua
entre Estado e indivíduo, homem e cidadão. A política absolu-
93 própria consciência, sem (como os homens na condição de cida-
tista, que repousava nestas separações, foi questionada em toda dãos) subordinar-se a uma autoridade institucional superior co-
parte. Por isso, é necessário investigar também o significado
93a m u m . Mas, nessa liberdade do direito natural, os Estados reco-
histórico que a ordem jurídica internacional europeia teve para o nheciam-se uns aos outros, e de uma maneira totalmente política
auto-entendimento da burguesia emergente. — à diferença dos partidos da guerra civil — , como personae
O fim das guerras religiosas — quer dizer, a formação das ins- morales. Mediante esta forma de reconhecimento recíproco, a si-
tâncias soberanas que, na época, solucionaram, cada uma a seu tuação de bellum omnium contra omnes não foi, como a guerra
modo, os problemas religiosos — conduziu ao estabelecimento civil, de todo encerrada, mas circunscrita ao âmbito das relações
de Estados territoriais unificados. Por força da soberania absolu- internacionais. Cada soberano tinha o mesmo jus ad bellum [ d i -
98

ta, o interior de u m Estado f o i delimitado rigorosamente em rela- reito à guerra], e a guerra tornou-se u m instrumento da política
ção ao espaço interior dos outros Estados. A consciência do sobe- dos príncipes, que se deixava conduzir pela razão de Estado, en-
rano era absolutamente livre e competente para moldar o grande contrando sua formulação c o m u m no "equilíbrio europeu". 99

foro interior do Estado que representava. Assim, o próprio Esta- Com o fim da guerra civil e a consolidação interior dos Estados, a
do tornou-se uma persona moralis — independentemente de sua guerra foi, por assim dizer, deslocada para o exterior. Muitos teó-
CRÍTICA E CRISE
4D REINHART KOSEI. L E C

I II constituição interna, fosse católica ou protestante, monárquica


ou republicana — perante os outros Estados, que também se
A ordem jurídica supra-religiosa resultou não apenas na pacifica- compreendiam como personae morales. A delimitação de u m
94

ção de cada u m dos Estados nacionais; marcou, ainda mais, as foro interior estatal independente de outros Estados — cuja inte-
relações internacionais. O direito internacional europeu t o r n o u - gridade moral, como Hobbes havia mostrado, fundava-se apenas
se eficiente porque criou u m novo tipo de obrigatoriedade que se em seu caráter estatal — fez com que se desenvolvesse no ex-
colocava acima da pluralidade de religiões. Esta obrigatoriedade terior, obrigatoriamente, u m sistema internacional e coletivo.
era política. A o instituir o âmbito das relações internacionais, era Vattel, representante clássico do direito internacional europeu
análoga ao raciocínio pelo qual Hobbes deduziu o Estado. So- no século X V I I I , disse que Hobbes foi o primeiro a dar "uma
95

mente a distinção clara entre interior e exterior permitiu destacar ideia distinta, mas ainda imperfeita, do direito internacional".96

do domínio de competências religiosas u m espaço de ação extra- Para Hobbes, uma vez que o bellum omnium contra omnes
político, o que, sobre o pano de fundo histórico das paixões con- esteja superado no interior do Estado, o estado de natureza não
fessionais, equivalia necessariamente a uma racionalização. reina mais entre os homens individualmente, mas somente entre
No decorrer do século XVIII, a política secreta praticada nos os Estados, entendidos como magni homines [grandes homens]. 9

gabinetes e o cálculo racional transformado em rotina deveriam O direito natural dos indivíduos pré-estatais pôde ser transfor-
tornar-se, tanto quanto o próprio sistema absolutista, alvos de
89 mado em u m direito público internacional mediante a personifi-
uma crítica que exigia publicidade. A universalidade das teorias cação dos Estados surgidos na realidade histórica. O jus publicum
morais iluministas ultrapassou todas as fronteiras que a política europaeum [direito público europeu] fundava-se na rígida sepa-
havia traçado cautelosamente. Na medida em que a moral i l u - ração entre o foro interior do Estado, moralmente inviolável, e as
minista pretendia ter a mesma validade da China à América, de relações exteriores e políticas dos Estados entre si. Os Estados
Paris a Beijing, ela desfez qualquer diferença entre interior e ex-
90 eram absolutamente livres, e os soberanos (como, em Hobbes, o
terior: entre os Estados, entre Europa e além-mar, assim como
91 92 homem na condição de homem) eram submetidos somente à sua
entre Estado e indivíduo, homem e cidadão. A política absolu-
93 própria consciência, sem (como os homens na condição de cida-
tista, que repousava nestas separações, foi questionada em toda dãos) subordinar-se a uma autoridade institucional superior co-
parte. Por isso, é necessário investigar também o significado
933 m u m . Mas, nessa liberdade do direito natural, os Estados reco-
histórico que a ordem jurídica internacional europeia teve para o nheciam-se uns aos outros, e de uma maneira totalmente política
auto-entendimento da burguesia emergente. — à diferença dos partidos da guerra civil — , como personae
O fim das guerras religiosas — quer dizer, a formação das ins- morales. Mediante esta forma de reconhecimento recíproco, a si-
tâncias soberanas que, na época, solucionaram, cada uma a seu tuação de bellum omnium contra omnes não foi, como a guerra
modo, os problemas religiosos — conduziu ao estabelecimento civil, de todo encerrada, mas circunscrita ao âmbito das relações
de Estados territoriais unificados. Por força da soberania absolu- internacionais. Cada soberano tinha o mesmo jus ad bellum [ d i -
98

ta, o interior de u m Estado f o i delimitado rigorosamente em rela- reito à guerra], e a guerra tornou-se u m instrumento da política
ção ao espaço interior dos outros Estados. A consciência do sobe- dos príncipes, que se deixava conduzir pela razão de Estado, en-
rano era absolutamente livre e competente para moldar o grande contrando sua formulação c o m u m no "equilíbrio europeu". 99

foro interior do Estado que representava. Assim, o próprio Esta- Com o fim da guerra civil e a consolidação interior dos Estados, a
do tornou-se uma persona moralis — independentemente de sua guerra foi, por assim dizer, deslocada para o exterior. Muitos teó-
4 2 R E I N H A R T K O S E L L E C K C R Í T I C A E C R I S E 4 3

ricos absolutistas viam nela uma instituição permanente, voltada no das relações internacionais, chega à conclusão de que esta or-
para evitar a guerra civil. Aceitavam a guerra, em virtude das dem só poderia ser preservada se a consciência dos soberanos não
mesmas reflexões racionais e psicológicas (situadas fora de uma se limitasse apenas às leis morais, mas considerasse, sobretudo, os
moral de convicção) que permitiram controlar as agitações reli- dados da política. Isto implicava lidar sempre com várias forças
giosas. O fim das guerras civis religiosas e a restrição da guerra à que se confrontam, o que na época significava uma multipli-
guerra entre Estados são dois fenómenos correlatos que remon- cidade de Estados. Em caso de conflito, ainda que no sentido de
tam à separação entre moral e política, o primeiro de maneira uma moral eterna apenas u m lado possa ter razão, todos os en-
implícita e o segundo de maneira explícita. N o direito interna-
100
volvidos agem de boa-fé, "dans la bonne foi". Para dar conta
m

cional, esta separação se expressa no fato de que os Estados em deste estado de coisas esboçou-se, ao lado do droit des gens néces-
guerra — como os homens no estado de natureza — confronta- saire, o droit des gens volontaire. Este direito, u m jus externum [di-
vam-se em pé de igualdade, sem qualquer consideração pela justa reito externo], funda as regras de uma moral de ação internacio-
causa moral: compreendiam-se comojustus hostis [inimigos legí- nal, essencialmente política. 106

timos], em virtude apenas de sua qualidade de Estado e indepen- Ambas as formas de direito fundamentam-se na razão, mas
dentemente da razão moral da guerra. 101
numa razão orientada pela realidade política que, eventualmen-
Mas a compreensão e o estabelecimento jurídicos de u m âm- te, suspende o jus internum moral em favor do jus externum polí-
bito político externo que não recorria a argumentações morais tico. Só então, diz Vattel, pode-se instaurar uma ordem de paz.
não significava a concessão de uma carta branca para agir levia- Esta subordinação de leis morais a necessidades políticas salta
namente em tempo de guerra ou de paz; baseava-se, como a de- aos olhos quando se lê que a invocação da consciência moral não
dução Hobbesiana do Estado, na ideia de que a invocação da apenas não ajuda a terminar u m conflito, mas, como todos os
consciência, ligada a leis morais eternas, não é u m meio sufi- envolvidos agem "dans la bonne foi", antes o acirra e perpetua.
ciente para estabelecer uma ordem internacional, mas, pelo con- " A decisão do direito, da controvérsia, não será por isso mais fa-
trário, uma ameaça a esta o r d e m . As nações soberanas — diz vorecida, e a luta se tornará mais cruel, mais funesta em seus
Vattel em 1758, quando participava, como funcionário do Estado efeitos, mais difícil de t e r m i n a r . " Além disso, ele acrescenta
107

da Saxônia, da luta exasperante contra a Prússia de Frederico o que a moralização da guerra levaria a uma extensão da guerra,
Grande [Frederico II] — são livres e independentes, submetidas pois os neutros, sob o mandamento de uma moral estrita, seriam
apenas à sua própria consciência, como os homens no estado de forçados a intervir no conflito. Também esta submissão da mo-
natureza. A consciência das diferentes nações permanece liga-
102
ral à política ainda pertence ao horizonte de experiências das
da à lei natural, eterna e sempre idêntica a si mesma e, neste sen- guerras civis religiosas.
tido, está sempre submetida ao jus internum [direito interno], ao Vattel polemiza violentamente contra Grotius, que, segundo
droit des gens nécessaire.
103
Vattel se pergunta como é possível ele, a partir de uma violação flagrante do direito natural moral,
cumprir com esta pura lei moral: "Mas, como fazer valer essa Re- deduz u m direito de intervenção de outros Estados. N o decorrer
gra nos desentendimentos entre os Povos e os Soberanos que v i - de sua argumentação, esqueceria totalmente as consequências
vem juntos em estado natural?" Trata-se de uma questão aná-
104
previsíveis. "Seu sentimento abre as portas a todos os furores do
loga à que se levantava para Hobbes quando, na guerra civil, ele Entusiasmo e do Fanatismo, e fornece aos Ambiciosos inúmeros
perguntava como se poderia realizar o mandamento moral uní- pretextos." Os horrores da Guerra dos Trinta Anos ainda esta-
108

voco da paz. Assim como Hobbes no plano estatal, Vattel, no pla- vam nítidos diante dos olhos de Vattel. Conforme estabelecem os
4 4 REINHART KOSELLECK C R ' T I C A i-, C R I S E

tratados de paz de Westfália para a Europa Central, todos os Esta- natureza, necessariamente ser e permanecer imperfeito em sen-
dos são, em seu conjunto, os fiadores de uma ordem que reprime tido m o r a l . "
4

a guerra civil. Por isso, numa passagam significativa, o próprio Da moral de uma razão política nasce o droit des gens voiontai-
Vattel transgride o princípio da nâo-intervenção, que no mais
109 re, que, à diferença do direito natural internacional, representa a
defendia rigorosamente e que deveria garantir a ordem interior: verdadeira conquista do pensamento absolutista: este direito " t o -
ele pode ser violado quando u m povo pede ajuda externa para lera o que é impossível evitar sem introduzir males maiores"." 5

escapar de uma tirania religiosa exercida com meios políticos. Consciente da imperfeição humana e, assim, transformando
Com esta transgressão do princípio da não-intervenção, Vattel racionalmente a herança da consciência cristã do pecado, o direi-
está no limite entre uma argumentação moral-burguesa e uma ar- to internacional renuncia voluntariamente a apresentar-se diante
gumentação político-estatal. Cidadão protestante, procurava jus- de qualquer tribunal presidido pela moral de convicção. Só assim
tificar o desembarque de Guilherme d'Orange na Inglaterra, as- os membros da comunidade do direito internacional podiam as-
sim como já havia questionado o interior do sistema absolutista, segurar reciprocamente sua liberdade. Este reconhecimento p u -
alegando a situação do povo e a tolerância." Mas, ao mesmo
0 ramente formal e sem conteúdo moral podia conter injustiças;
tempo, este trecho prova claramente que o pressuposto histórico mas Vattel via justamente no primado da política a chance de sa-
do Estado moderno — ou seja, o fim da guerra civil religiosa — tisfazer também às exigências morais — pelo desvio, por assim
tinha sido retomado como pressuposto interno dos Estados na dizer, de uma racionalização do Estado e da guerra. A condição
ordem internacional. Se u m Estado põe em risco sua função de
111 da melhor ordem possível era a separação do direito internacio-
neutralizador de contradições religiosas, admite-se, em caso de nal em "droit des gens nécessaire", ao qual se submetia apenas a
necessidade, a violação de sua soberania pela intervenção de o u - consciência do soberano, sem coação externa, e em "droit des gens
tros Estados. Esta forma de intervenção (rara no século XVIII) não volontaire", que comportava as regras de u m âmbito político isen-
ocorreria, então, por motivos morais. Serviria, sobretudo, para to de argumentos morais.
garantir uma ordem política encarregada de impedir que as reli- Assim, a partir da experiência cruel das guerras civis religiosas,
giões fanáticas interviessem na política. desenvolveu-se a ordem estatal europeia. A lei, sob a qual foi cria-
Na luta contra o despotismo religioso, os princípios de uma da, significava subordinação da moral à política e marcou a época
moral laica civil e de uma política nacional supra-religiosa ainda das guerras entre os Estados e dos grandes tratados de paz: os tra-
c o i n c i d e m . " Quando deixam de coincidir, a consciência das
2 tados de Westfália, que representam na Europa a primeira so-
consequências cruéis de u m utopismo religioso motiva Vattel a lução de questões suscitadas por conflitos religiosos em âmbito
submeter inclusive a " m o r a l natural" à política, a fim de manter a internacional, e o tratado de Utrecht, em que se formulou o prin-
ordem estatal. Para ele, a verdadeira justiça moral só se encontra cípio do equilíbrio europeu, que repousava, entre outras coisas,
no além: mas uma moral voltada para o lado de cá e para as exi- no reconhecimento prévio pelo qual as partes, fossem católicos
gências políticas recalca forçosamente a consciência e a convicção ou protestantes, monarquistas ou republicanos, asseguravam a
individuais, pois estas se referem a "leis naturais eternas" ou à integridade estatal umas das outras. " O guardião da paz é, agora,
f é . " Deste modo, a despeito de reconhecer os deveres morais
3 uma guerra eternamente encouraçada, e o amor-próprio de u m
da consciência — aos quais, como cidadão esclarecido do sécu- Estado faz dele o guardião da prosperidade do outro. A sociedade
lo XVIII, rendia homenagem — , Vattel chegou à conclusão de de Estados europeus parece ter se transformado em uma grande
que o direito internacional, para ser u m direito, deveria, por sua família."" C o m estas palavras, proferidas em sua aula inaugural
6
CRITICA E CRISE 47
4 6 REINHART KOSELLECK

em Iena, Schiller resumiu o resultado desse desenvolvimento e "Pode-se dizer", diz u m crítico esclarecido da ordem jurídica
expressou de maneira clara a consciência dessa ordem política. internacional, "que, na medida em que os reis aumentaram seu
Portanto, a constelação básica do século XVIII consiste no des- poder sobre os súditos e a arte de governar os uniu entre si me-
dobramento da moral, em virtude da estabilidade política pre- diante uma convivência mais precisa, sua honra e consciência fo-
viamente assegurada. Somente com a neutralização política dos ram à falência."" A relação indireta com a política é determi-
8

conflitos religiosos e com a restrição das guerras a meras guerras nante para o homem burguês. Ele permanece numa espécie de
entre Estados abriu-se u m espaço social em que a nova elite pôde reserva privada, que torna o monarca culpado da sua própria
se desenvolver. Em comparação com o passado, o cidadão sentia- inocência. Em comparação com a inocência do príncipe, o súdito
se seguro e protegido. Havia passado a época da Liga e da Fronda, era potencialmente culpado; agora, em comparação com a ino-
da Guerra dos T r i n t a Anos e das agitações confessionais, as guer- cência dos cidadãos, o monarca é sempre culpado.
ras civis haviam terminado e as guerras afctavam o mínimo pos-
sível a esfera civil da burguesia. Monarcas esclarecidos p r o m o -
v i a m planos para melhorar a sorte de seus povos. Ao equilíbrio
vigente associava-se a esperança otimista de que até mesmo as
guerras pudessem ser gradativamente eliminadas. Não importa
quão longe as esperanças se alçavam individualmente. Em todo
caso, não eram apenas desejos utópicos, mas consequências da
o r d e m de fato e, como tais, sintomas desta ordem. A crença his-
tórico-filosófica do homem burguês no progresso moral só ga-
n h o u sua evidência histórica sobre o pano de fundo da segurança
vigente. Posto em seu contexto histórico, o progresso morai é,
117

p o r t a n t o , produto da estabilidade política. Mas a estabilidade,


p o r seu lado, repousava numa constituição política à qual a m o -
ral deveria necessariamente se subordinar. N o curso do seu de-
senvolvimento, o m u n d o moral, que se baseava na ordem políti-
ca, teve que se desvencilhar desta ordem.
O caminho que deveria tomar tinha sido traçado ao separar-
se, de u m lado, o direito natural e, de outro, u m domínio de de-
cisão livre, entregue ao príncipe. Aos defensores de u m direito
natural unificado e unificador, esta separação podia parecer uma
dupla moral que deveria ser desmascarada. N o decorrer do des-
mascaramento — isto é, do I l u m i n i s m o — anulou-se também
o sentido histórico original desta separação: delimitar u m domí-
n i o racional em proveito da responsabilidade política. Passou-se
a considerar a política somente sob o ângulo da consciência
esclarecida.

Você também pode gostar