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Os principais traços da invenção da política

Rompendo com o poder despótico, gregos e romanos inventaram o poder político porque:

 separaram a autoridade pessoal privada do chefe de família — senhorio patriarcal e patrimonial — e o


poder impessoal público, pertencente à coletividade;
 separaram o privado do público e impediram a identificação do poder político com a pessoa de um
governante;
 separaram a autoridade militar e o poder civil, subordinando a primeira ao segundo. Isso não significa que
em casos como os de Esparta e Roma o poder político não fosse também militar, mas sim que as ações
militares deviam ser primeiramente discutidas e aprovadas pela autoridade política (as assembleias, em
Esparta; o Senado, em Roma) e só depois realizadas;
 separaram a autoridade mágico-religiosa e o poder temporal laico, impedindo tanto a divinização dos
governantes quanto sua transformação em sumos sacerdotes;
 criaram a ideia e a prática da lei como expressão de uma vontade coletiva e pública, definidora dos direitos
e deveres para todos os cidadãos, impedindo que fosse confundida com a vontade pessoal de um
governante. Ao criarem a lei e o direito, gregos e romanos afirmaram a diferença entre o poder político e
todos os outros poderes e autoridades existentes na sociedade. Isso porque conferiram a uma instância
impessoal e coletiva o poder exclusivo ao uso da força para punir crimes, reprimir revoltas e para vingar
com a morte, em nome da coletividade, um delito julgado intolerável por ela. Em outras palavras, retiraram
dos indivíduos o direito de fazer justiça com as próprias mãos e de vingar por si mesmos uma ofensa ou um
crime. O monopólio da força, da vingança e da violência passou para o Estado, sob a lei e o direito. E criaram
a instituição do erário público ou do fundo público, isto é, dos bens e recursos que pertencem à sociedade
e são por ela administrados por meio de taxas, impostos e tributos. Assim, impediram a concentração da
propriedade e da riqueza nas mãos dos dirigentes; E criaram o espaço político ou espaço público — a
Assembleia grega e o Senado romano —, no qual os que possuíam direitos iguais de cidadania discutiam
suas opiniões, defendiam seus interesses, deliberavam em conjunto e decidiam por meio do voto, podendo,
também pelo voto, revogar uma decisão tomada. É esse o coração da invenção política. De fato, as marcas
do poder despótico eram a deliberação e a decisão a portas fechadas. A política, ao contrário, introduz a
prática da publicidade, isto é, a exigência de que a sociedade seja informada, conheça as deliberações e
participe da tomada de decisão.
O nascimento do espaço público de discussão, deliberação e decisão significou que a sociedade se
abria aos acontecimentos, que as ações não eram mais estabelecidas de uma vez por todas por alguma
vontade transcendente, que erros de avaliação e de decisão podiam ser corrigidos, que uma ação podia
gerar problemas novos, não previstos nem imaginados, os quais exigiam o aparecimento de novas leis e
novas instituições. Por isso mesmo, gregos e romanos tornaram a política inseparável do tempo e também
conceberam a ação política ligada à noção do possível. Com isso, não só conceberam e praticaram a
política como ação humana (e não como cumprimento de decretos divinos perenes ou eternos), como
também inauguraram a ideia e a prática da criação contínua da realidade social ou de sua transformação
— isto é, a história.

1. Os gregos e romanos fizeram separações de poder e de autoridade ao criar a política. Como essas
separações aparecem nessas sociedades?
2. Para o grupo qual a intenção dos gregos e romanos ao criarem a ideia e a prática da lei como expressão
de uma vontade coletiva e pública?
3. A prática da publicidade, isto é, a exigência de que a sociedade seja informada, conheça as deliberações
e participe da tomada de decisão, é algo que foi incorporado na política greco-romana. Você concorda que
os atos de uma pessoa que exerce um cargo público designado pelos cidadãos precisam ser transparentes?
Justifique.
O significado da invenção da política

Para responder às diferentes formas assumidas pela luta de classes, a política é inventada de um
modo que, a cada solução encontrada, um novo conflito ou uma nova luta podem surgir, exigindo novas
soluções. Em lugar de reprimir os conflitos pelo uso da força e da violência das armas, a política aparece
como trabalho legítimo dos conflitos, de tal modo que o fracasso nesse trabalho torna-se a causa do uso
da força e da violência.
A democracia ateniense e as oligarquias de Esparta e da República romana fundaram a ideia e a
prática da política na cultura ocidental. Eis por que os historiadores gregos (quando a Grécia caiu sob o
domínio dos impérios da Macedônia e de Roma) e os historiadores romanos (quando Roma sucumbiu ao
império dos césares) falaram em corrupção e decadência da política: para eles, o desaparecimento da pólis
e da res publica significava o retorno ao despotismo e o fim da vida política propriamente dita.
Evidentemente, não devemos cair em anacronismos, supondo que gregos e romanos instituíram
uma sociedade e uma política cujos valores e princípios fossem idênticos aos nossos.
Em primeiro lugar, a economia era agrária e escravista, de sorte que uma parte da sociedade — os
escravos — estava excluída dos direitos políticos e da vida política. Em segundo lugar, a sociedade era
patriarcal; consequentemente, as mulheres também estavam excluídas da cidadania e da vida pública. A
exclusão atingia também os estrangeiros e os miseráveis.
A cidadania era exclusiva dos homens adultos livres nascidos no território da cidade. Além disso,
a diferença de classe social nunca era apagada, mesmo que os pobres tivessem direitos políticos. Assim,
para muitos cargos, o pré-requisito da riqueza vigorava e havia mesmo atividades portadoras de prestígio
que somente os ricos podiam realizar. Era o caso, por exemplo, da liturgia grega e do evergetismo romano,
isto é, de grandes doações em dinheiro à cidade para festas, construção de templos e teatros, patrocínio
de jogos esportivos, de trabalhos artísticos, etc.
O que procuramos apontar não foi a criação de uma sociedade sem classes, justa e feliz, mas a
invenção da política como solução e resposta que uma sociedade oferece para suas diferenças, seus
conflitos e suas contradições, sem escondê-los sob a sacralização do poder e do governante e sem fechar-
se à temporalidade e às mudanças.

1. Afinal, para que foi inventada a política?


2. Embora as sociedades grega e romana dessem valor à cidadania, esta era restrita e trazia em sua
estrutura diversas contradições. Aponte algumas delas.
3. Percebe-se que a riqueza era um pré-requisito para a participação em muitos cargos, assim, apenas ricos
poderiam exercê-los. Na sociedade brasileira atual você acredita que isso é valido? Justifique.
Uma terceira forma de organização

Fizemos referência a duas grandes respostas sociais ao poder: a resposta despótica e a política.
Em ambas, a sociedade procura organizar-se economicamente, mantendo e mesmo criando diferenças
sociais profundas entre proprietários e não proprietários, ricos e pobres, livres e escravos, homens e
mulheres. Essas diferenças engendram lutas internas, que podem levar à destruição de todos os membros
do grupo social.
Para regular os conflitos, determinar limites às lutas, garantir que os ricos conservem suas riquezas
e os pobres aceitem sua pobreza, apresentam-se até aqui dois caminhos: ou o chefe se torna senhor das
terras, das armas e dos deuses e transforma sua vontade em lei, ou uma parte da sociedade — os cidadãos
— exerce o poder por meio de práticas e instituições fundadas na lei e no direito como expressão da
vontade coletiva.
Nos dois casos, surge o Estado como poder separado da sociedade e encarregado de dirigi-la,
comandá-la, arbitrar os conflitos e usar a força. Há, porém, um terceiro caminho.
Fomos acostumados pelo pensamento europeu tradicional a considerar as sociedades das
Américas como atrasadas, primitivas e inferiores. Essa visão nasceu do processo de colonização e conquista,
iniciado no século XVI. Nas Américas, os colonizadores interpretaram as diferenças entre eles e os nativos
americanos como distinção hierárquica entre superiores e inferiores: para eles, os “índios” não tinham lei,
rei, fé, escrita, moeda, comércio, história. Portanto, eram desprovidos dos traços daquilo que, para o
europeu cristão, súdito de monarquias, constituía a civilização e a humanidade propriamente dita.
Sem dúvida, os conquistadores encontraram grandes impérios nas Américas: incas, astecas e
maias. Por isso, os destruíram a ferro e fogo, exterminando as gentes, pilhando as riquezas e erigindo igrejas
sobre seus templos.
Todavia, exceto por esses impérios destruídos, as demais nações americanas organizavam-se de
maneira incompreensível para os padrões europeus. Por isso, os conquistadores interpretaram o que eram
incapazes de compreender como inferioridade dos americanos. Considerando-os selvagens e bárbaros,
justificavam a escravidão, a evangelização e o extermínio.
A visão europeia era e é etnocêntrica, ou seja, considera padrões, valores e práticas dos brancos
adultos proprietários europeus como se fossem os únicos válidos, superiores a todos os outros e devendo
servir de modelo para todas as sociedades, porque seriam definidores da civilização. Essa visão passou a
ser compartilhada pelos descendentes dos colonizadores, isto é, pelos brancos das três Américas, e se
mantém até os dias de hoje.
Na perspectiva do etnocentrismo, os nativos americanos possuíam e possuem sociedades
defeituosas nas quais falta o que é importante: o mercado (moeda e comércio), a escrita (alfabética), a
história e o Estado. Eram e são, portanto, sociedades sem comércio, sem escrita, sem história e sem política.

1. Quais os dois caminhos apresentados para regular os conflitos? O que existe em comum entre
eles?
2. Para os invasores europeus as sociedades das Américas eram atrasadas, primitivas e inferiores.
Quais elementos contrariam essa concepção?
3. Na atualidade, muitas pessoas defendem que os povos originários deveriam viver como
antigamente, ao passo que os colonizadores achavam que esses povos deveriam se civilizar (ter um modo
de vida igual ao europeu). Argumente sobre esse antagonismo (contradição) apresentando sua opinião.
Sociedades contrárias ao comércio e ao Estado

No século XX, o antropólogo francês Pierre Clastres estudou essas sociedades (povos sul-
americanos originários) por um prisma completamente diferente, longe do etnocentrismo costumeiro.
Mostrou que possuem escrita, mas que esta não é alfabética, nem ideográfica, nem hieroglífica, mas
simbólica, inscrita com sinais específicos no corpo das pessoas e em objetos ou espaços determinados.
Somos nós que não sabemos lê-la.
Mostrou também que possuem história ou memória — mitos e narrativas dos povos —,
transmitida oralmente de geração em geração, conservando-se através dos tempos, mas também
transformando-se quando mudam as condições de vida de um grupo ou de uma geração. Examinando as
mudanças na escrita e na memória, mostrou que tais sociedades possuem história, mas que esta é
inseparável da relação dos povos com a natureza — diferentemente da nossa história, que narra como nos
separamos da natureza e como a dominamos.
Mas, sobretudo, mostrou por que e como tais sociedades são contra o mercado e contra o Estado.
Em outras palavras, não são sociedades sem comércio e sem Estado, mas contrárias a eles. As sociedades
indígenas estudadas por Clastres são sul-americanas e não se organizaram nem na forma das chefias norte-
americanas nem na dos grandes impérios monárquicos (incas, maias e astecas), mas inventaram uma
organização deliberada para evitar essas duas formas de poder.
Essas sociedades são tribais ou comunais. Nelas, não há propriedade privada da terra e das
riquezas, não havendo, portanto, classes sociais nem luta de classes. A propriedade é tribal ou comum e o
trabalho se divide por sexo e idade. São comunidades no sentido pleno do termo, isto é, são internamente
homogêneas, unas e indivisas, nas quais todos se conhecem pelo nome, são vistos uns pelos outros
diariamente e possuem um destino comum.
A oposição e o conflito não se estabelecem no interior da comunidade, mas em seu exterior, isto
é, nas suas relações com as outras comunidades — portanto, no que se refere à guerra e às alianças de
sangue pelo casamento.
Nessas comunidades, o poder não se destaca nem se separa delas, não forma uma instância acima
delas (como o Estado, na política, ou como o chefe patriarca, no despotismo). Existe chefia, porém, não é
um poder de mando a que a comunidade obedece. O chefe é alguém escolhido para ter o comando durante
as guerras; porém, no restante do tempo, ele não manda e a comunidade não o obedece. Para assegurar
isto, estas sociedades adotaram uma prática muito interessante: o chefe deve, todos os dias, fazer um
discurso sobre sua importância e seus grandes feitos e a comunidade deve permanecer indiferente e não
escutá-lo, afirmando, assim, que ele não tem poder sobre ela e que ela o segue apenas quando há uma
guerra. A comunidade decide por si mesma, de acordo com suas tradições e necessidades, regulando por
si mesma conflitos pessoais entre seus membros.

1. Nas sociedades sul-americanas estudadas por Pierre Clastres existia escrita e história, no entanto, a
forma era diferente das adotadas pelas sociedades europeias. Como a escrita e a história se apresentavam
nas sociedades originárias da América do Sul?
2. Como eram estabelecidas a relação de poder e autoridade nas sociedades estudadas por Pierre
Clastres?
3. É perceptível que diferente das sociedades grega e romana, nas sociedades originárias sul-americanas
não havia mercado, nem Estado, tampouco propriedade privada. Na sociedade brasileira atual, há grupos
que usam a ideia de não haver propriedade privada para amedrontar a população. Expliquem e
argumentem: É possível a abolição da propriedade privada? Sendo possível, quais seriam os benefícios
e/ou malefícios dessa abolição?

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