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UNIDADE
A política

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CAPÍTULO

O in’cio da vida pol’tica


John Kolesidis/Reuters/Latinstock

AS FINALIDADES DA POLÍTICA

Atenas, um dos berços da política, foi palco de grandes manifestações populares no início desta década.
Há mais de dois milênios, os atenienses tentaram, por meio da política, resolver os conflitos entre as classes
sociais e evitar o despotismo. Na atualidade, buscam uma participação mais direta e uma representação
mais efetiva a fim de limitar os efeitos da especulação financeira e preservar direitos conquistados, em
risco desde que o país começou a enfrentar uma grave crise. Na foto, de 2012, manifestantes protestam em
frente ao Parlamento grego durante uma greve geral. A luta por melhores condições de vida nos lembra da
finalidade da política segundo os filósofos gregos e romanos: a vida justa e feliz.

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A invenção da política
A formação da cidade Nas aldeias, os camponeses pobres se estabelece-
ram como artesãos e comerciantes, prosperaram e as
Invenção dos gregos e dos romanos, a política tem
transformaram em centros urbanos. Com isso, passa-
como finalidade, em sua origem, a vida justa e feliz, isto
ram a disputar o direito ao poder com as grandes famí-
é, a vida propriamente humana digna de seres livres.
lias agrárias. Uma luta de classes perpassa a história
Quando se afirma que gregos e romanos inventaram a
grega e romana exigindo solução.
política, não se quer dizer que, antes deles, não existiam
A urbanização colocava em confronto não só pro-
o poder e a autoridade. O que se quer dizer é que inven-
prietários agrários, de um lado, e artesãos e comercian-
taram o poder e a autoridade propriamente políticos,
tes, de outro, mas também a massa de trabalhadores
que substituíram o poder despótico ou patriarcal. O
urbanos livres assalariados, genericamente chamados
poder despótico era exercido pelo chefe de família sobre
“os pobres”. A questão militar também acirrava esses
um conjunto de famílias a ele ligadas por laços de de- conflitos. Todos os indivíduos participavam das guerras
pendência econômica e militar e por alianças matrimo- externas, tanto para a expansão territorial como para
niais. A relação era pessoal, e o chefe garantia proteção a defesa de sua cidade. Com isso, todos se julgavam no
em troca da lealdade e da obediência dos súditos. direito de intervir, de algum modo, nas decisões econô-
micas e legais das comunidades que defendiam pondo
déspota: palavra originada do grego despot•s, que
significa ‘chefe da família’. Este tinha poder de vida e em risco sua própria vida.
morte sobre todos os membros da família, e sua vontade A luta das classes pedia uma solução. Essa solução
era lei. Portanto, um poder despótico é aquele no qual
o chefe da comunidade tem sobre ela o mesmo poder foi a invenção da política, que transformou as comu-
pessoal que o chefe da família tinha sobre esta. nidades urbanas em cidades propriamente ditas: a
Inicialmente, gregos e romanos viveram sob esse pólis grega e a civitas romana. Para satisfazer a reivin-
tipo de organização. No entanto, os primeiros dirigentes dicação dos camponeses e dos artesãos e trabalhado-
– os legisladores – elaboraram um conjunto de medidas res urbanos pobres, os primeiros chefes políticos (co-
que evitavam que o rei concentrasse todas as formas nhecidos como legisladores) introduziram uma divisão
de poder, tornando-se senhor único da terra (poder no território das cidades que diminuía o poderio das
econômico), da justiça (poder judiciário) e das armas famílias ricas agrárias e dos artesãos e comerciantes
(poder militar), além de representante da divindade ricos. Em Atenas, por exemplo, a pólis foi subdividida
(poder religioso). em unidades sociopolíticas denominadas demos; em
Apesar das diferenças na formação histórica da Roma, em tribus.
Grécia e de Roma, três aspectos comuns a ambas foram

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decisivos para impedir o despotismo e favorecer a in-
venção da política. O primeiro é a forma da propriedade
da terra; o segundo, o fenômeno da urbanização; e o
terceiro, o modo de divisão territorial das cidades.
As terras não eram propriedade régia ou patrimônio
privado de um rei nem propriedade comunal ou da aldeia,
mas se mantiveram como propriedade de famílias inde-
pendentes. Essas famílias não formavam uma casta fe-
chada em si mesma, porém uma classe social aberta à
incorporação de novas famílias agrárias e de comerciantes
enriquecidos. Como a terra não pertencia nem à aldeia
nem ao rei, mas às famílias independentes, e como as
guerras ampliavam o contingente de trabalhadores escra-
Discurso fúnebre de Péricles, gravura colorizada com base em pintura
vizados para a lavoura, os não escravizados e não proprie-
de Philipp von Foltz (1805-1877), de 1853. Durante o século V a.C., em
tários agrários formaram, na Grécia e em Roma, uma ca- Atenas, floresceram sob o governo de Péricles o urbanismo, a
mada pobre de camponeses que migraram para as aldeias. arquitetura, o teatro, a filosofia e a democracia.

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Quem nascesse num demos ou numa tribus tinha dos direitos e deveres para todos os cidadãos,
assegurado o direito de participar das decisões da cida- impedindo que fosse confundida com a vontade
de. No caso de Atenas, todos os cidadãos naturais do pessoal de um governante. Ao criarem a lei e o
demos tinham o direito de participar diretamente do direito, gregos e romanos afirmaram a diferença
poder. Por isso, esse regime ficou conhecido como uma entre o poder político e todos os outros poderes
democracia. Em Roma, os não proprietários ou os po- e autoridades existentes na sociedade. Isso por-
bres formavam a plebe, que tinha o direito de eleger que conferiram a uma instância impessoal e co-
um representante: o tribuno da plebe. A função do tri- letiva – os tribunais – o poder exclusivo para
buno da plebe era defender e garantir os interesses da instituir as leis e para utilizar a força, fosse para
plebe junto aos interesses dos que participavam dire- punir crimes, reprimir revoltas ou vingar um de-
tamente do poder, os patrícios, que constituíam o lito julgado intolerável pela coletividade. Em ou-
populus romanus. O regime político romano era, assim, tras palavras, retiraram dos indivíduos o direito
uma oligarquia. de fazer justiça com as próprias mãos e de vingar
por si mesmos uma ofensa ou um crime;
democracia: palavra formada da união de demos ◆◆ criaram a instituição do erário público ou do fun-
(‘comunidade definida geograficamente’) e kratia,
derivada de krathós (‘poder’). do público, isto é, dos bens e recursos que per-
oligarquia: termo composto de duas palavras gregas: tencem à sociedade e são por ela administrados
oligoi, ‘alguns’, e arkhé, ‘o que está à frente’. Trata-se,
por meio de taxas, impostos e tributos. Assim,
portanto, de um pequeno grupo que está à frente e
comanda os demais. Como em geral os oligarcas se impediram a concentração da propriedade e da
consideravam os melhores, muitas oligarquias se riqueza nas mãos dos dirigentes;
denominavam aristocracias (do grego aristo, ‘o melhor’,
◆◆ criaram o espaço político ou espaço público – a
e kratós, ‘poder’).
patr’cios: denominação dada aos grandes proprietários Assembleia grega e o Senado romano. Nele, os
agrários que se consideravam herdeiros dos Pais que possuíam direitos iguais de cidadania discu-
Fundadores de Roma. Em latim, pai se diz pater e, no
plural, patres; daí vem o termo patrícios. tiam suas opiniões, defendiam seus interesses,
deliberavam em conjunto e decidiam por meio
Os principais traços da do voto, podendo, também pelo voto, revogar
uma decisão tomada. É esse o coração da inven-
invenção da política ção política. De fato, as marcas do poder despó-
Rompendo com o poder despótico, gregos e roma- tico eram a deliberação e a decisão a portas fe-
nos inventaram o poder político porque: chadas. A política, ao contrário, introduz a
◆◆ separaram a autoridade pessoal privada do che-
prática da publicidade, isto é, a exigência de que
fe de família (senhorio patriarcal e patrimonial) a sociedade seja informada, conheça as delibera-
do poder impessoal público (coletividade), impe- ções e participe da tomada de decisão.
dindo a identificação do poder político com a
© Ancient Art & Architecture Collection Ltd / Alamy
pessoa de um governante;
◆◆ separaram a autoridade militar e o poder civil,

subordinando a primeira ao segundo. Isso não


significa que em casos como os de Esparta e Ro-
ma o poder político não fosse também militar,
mas que as ações militares deviam ser realizadas
somente depois de serem discutidas e aprovadas
pela autoridade política (as assembleias, em Es-
parta, e o Senado, em Roma);
◆◆ separaram a autoridade mágico-religiosa e o po-

der temporal laico, impedindo tanto a divinização


dos governantes como sua transformação em
sumos sacerdotes;
Detalhe de vaso grego do século IV a.C. em que um jovem
◆◆ criaram a ideia e a prática da lei como expressão escravizado é representado servindo um homem em um simpósio
de uma vontade coletiva e pública, definidora (banquete).

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Por isso mesmo, gregos e romanos conceberam a ação escravista, de modo que uma parte da sociedade – as
política ligada à noção do possível. Com isso, não só con- pessoas escravizadas – estava excluída dos direitos po-
ceberam e praticaram a política como ação humana (e não líticos e da vida política. Em segundo lugar, a sociedade
como cumprimento de decretos divinos ou de uma von- era patriarcal. Consequentemente, as mulheres também
tade pessoal superior), mas também inauguraram a ideia estavam excluídas da cidadania e da vida pública. A ex-
e a prática da criação contínua da realidade social ou de clusão atingia também os estrangeiros e os miseráveis.
sua transformação, isto é, a história. A cidadania era exclusiva dos homens adultos livres
nascidos no território da cidade. Além disso, a diferença
O significado da invenção da de classe social nunca era apagada, mesmo que os pobres
tivessem direitos políticos. Assim, para muitos cargos, o
política pré-requisito da riqueza ou da posse de terras vigorava e
A política é inventada para responder às diferentes havia atividades portadoras de prestígio que somente os
formas assumidas pela luta de classes. A cada solução ricos podiam realizar. Era o caso, por exemplo, da liturgia
encontrada, um novo conflito ou uma nova luta podem grega e do evergetismo romano, que consistiam na doa-
acontecer, exigindo novas soluções. Em lugar de repri- ção de grandes quantias de dinheiro à cidade para a rea-
mir os conflitos pelo uso da força e da violência das lização de festas, construção de templos e teatros, patro-
armas, a política aparece como trabalho legítimo dos cínio de jogos esportivos, de trabalhos artísticos, etc.
conflitos, de modo que é o fracasso nesse trabalho a A invenção da política não resultou na criação de
causa do uso da força e da violência. uma sociedade sem classes, justa e feliz. Contudo, foi
Evidentemente, não devemos cair em anacronismos, a solução e a resposta que uma sociedade ofereceu
supondo que gregos e romanos instituíram uma socie- para lidar com suas diferenças, seus conflitos e suas
dade e uma política cujos valores e princípios fossem contradições, sem escondê-los sob a sacralização do
idênticos aos nossos. Em primeiro lugar, a economia era poder e do governante e sem fechar-se às mudanças.

Leituras filosóficas
Política, uma invenção grega
L’Histoire – Para começar, os gregos inventaram a política e a democracia?

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Vernant – [...] Pode-se dizer, para resumir as coisas, que nesse mundo me-
diterrâneo o rei cumpre um papel essencial. Ele tem em si algo de divino, ele é o
intermediário entre os deuses e os homens. O grupo humano se encontra, em
relação ao poder, à soberania, numa situação de inferioridade, de submissão e
de obediência: a palavra do rei, sua decisão, os meios militares de que ele dispõe
são incomensuráveis ao cotidiano de seus súditos. O que vemos surgir na Grécia,
nesse contexto? Algo de totalmente novo: a ideia de que só existe sociedade
humana digna desse nome se essa soberania de valor quase religioso se achar
despersonalizada e, para falar como os gregos, situada no centro, ou seja, se ela
se tornar uma coisa comum. Só pode haver vida social se todos os membros de
uma comunidade tiverem direitos iguais para gerir os interesses comuns – o que O historiador Jean-Pierre
é também um modo de instaurar uma diferença entre o público e o privado. Vernant, em foto de 2004.
L’Histoire – O que define o espaço público?
Vernant – O fato, justamente, de não ser submetido à autoridade de nenhum senhor, de não abrir
espaço a um poder despótico.
[Entrevista concedida à revista francesa L’Histoire.]
VERNANT, Jean-Pierre. Os gregos inventaram tudo. Folha de S.Paulo, São Paulo, 31 out. 1999. Caderno MAIS!. p. 4-5.

1. Com base em que valores a novidade política constituída na Grécia antiga se diferenciava da estrutura
política do restante do mundo mediterrâneo, de acordo com o historiador Jean-Pierre Vernant (1914-2007)?

2. Qual é a importância do espaço público na vida política grega clássica?

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