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ÉTICA E POLÍTICA
Marilena Chauí
A Política foi uma coisa inventada pelos gregos. Isto não quer dizer que antes dos
gregos, antes dos romanos não houvesse o exercício do poder, não houvesse governo,
não houvesse autoridade. Claro que havia, nos grandes impérios que existiram antes e
depois do mundo grego e do mundo romano. Mas qual era a marca do poder nestes
grandes impérios antigos? A marca era a identidade entre o poder e a figura do
governante. O governante era a encarnação do poder. Como pessoa encarnava nele a
autoridade inteira, o poder inteiro. Ele era o autor da lei, o autor da recompensa, o autor
do castigo, o autor da justiça. Ou seja, a vontade do governante, a vontade pessoal,
individual dele era a única lei existente. O que nós podemos dizer não é que não
houvesse o poder, a autoridade antes dos gregos e dos romanos. Pelo contrário, a
imensidão dos grandes impérios antigos mostra que o poder estava lá. Qual é a diferença
entretanto dos gregos e romanos face a estes grandes impérios, a este grande poder que
havia na antigüidade? Antes dos gregos e dos romanos, a característica do poder era a
identificação entre o ocupante do poder e o próprio poder. Ou seja, o governante era o
próprio poder. Isto quer dizer uma coisa muito simples: a vontade do governante, a sua
vontade privada, pessoal, sua vontade arbitrária, caprichosa, o que lhe desse na telha,
era a lei. E era ela o critério para a guerra, para a paz, para a vida, para a morte, para a
justiça, para a injustiça. Que fizeram os gregos e os romanos?
Eles inventaram a Política.
Ou seja, eles criaram a idéia de um espaço onde o poder existe através das leis.
As leis não se identificam com a vontade dos governantes, elas exprimem uma vontade
coletiva. Essa vontade coletiva se exprimia em público, nas assembléias, através da
deliberação, da discussão e do voto. Ou seja, os gregos e os romanos submeteram o
poder a um conjunto de instituições e a um conjunto de práticas que fizeram dele algo
público, que concernia à totalidade dos cidadãos, e que era discutida, deliberada e votada
por eles. E, portanto, eles criaram a esfera pública. Aquilo que nós chamamos de esfera
pública. Ou seja, ninguém se identifica com o poder, a vontade de ninguém é lei, e
portanto a autoridade é coletiva, pública, é aquilo que constitui o cidadão. Os gregos
puderam e depois deles os romanos distinguir com muita clareza a autoridade política ou
autoridade pública e a autoridade privada. Não por acaso a autoridade privada tem um
nome muito especial. Em grego o chefe de família, que é aquele que detém a autoridade
do espaço privado (e detém esta autoridade exclusivamente por sua vontade - a vontade
dele é a lei), o chefe de família se chama “despotes”. E é porque a autoridade privada do
espaço privada da família é a autoridade do “despotes” (a autoridade absoluta de vida e
morte sobre todos os membros da família), é que a autoridade no espaço privado se
chama despótica. E os gregos diziam: quando a autoridade for despótica, o espaço
público foi tomado pelo espaço privado e a Política acabou. A condição da Política é que
não haja despotismo.
Cristianismo: público x privado
O cristianismo vai criar um problema no campo da Política. Por que? Porque se
para os antigos era no espaço público que a Ética melhor se realizava, no momento em
que com o Cristianismo o espaço público é recusado em nome do espaço privado, do
recinto, do coração e da consciência, o que acontece? O que acontece no momento em
que surgem as autoridades cristãs? Ou seja, como é que vai haver um espaço público
cristão? Já que a autoridade e a Ética são pensadas de maneira privada? Ou seja, Deus
é o Pai, Deus é o Senhor, os cristãos são a sua família. Ele é o pastor de um só rebanho.
Todas as metáforas e todas as palavras que indicam a autoridade no mundo cristão
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pertencem ao espaço privado: é o pai, é o senhor, é o pastor, o rebanho. Como é que isto
vai se constituir como um espaço público? Não há como constituir como espaço público.
Nós poderíamos ir enumerando uma série de características do poder medieval e
portanto do poder cristão ou daquilo que agente pode chamar o poder teológico-político
pelo qual o governante é uma figura privada. O espaço do poder é um espaço privado. E
a Ética é a Ética da pessoa do governante. É ele que tem que ser educado para as
virtudes. É ele que não pode ter vícios. É ele que tem que cumprir o dever porque das
qualidades dele dependem as virtudes ou os vícios, a felicidade ou a corrupção do rei.
Não existe portanto a esfera Política propriamente dita. Existe a esfera do poder mas não
a esfera da Política.
Modernidade, Ética e Política
É esta esfera que a modernidade vai constituir. A partir da queda do antigo
regime, da queda das monarquias por direito divino, da desmontagem do poder teológico-
político e do ressurgimento da idéia de República, (primeiro a República oligárquica,
depois a República representativa, depois a República Democrática), é que se
reconfigura o campo público, da Política. Como o poder estava marcado pela Ética da
esfera privada, como o poder estava marcado pela idéia de que o governante é que tinha
que ser virtuoso, o que acontece com os pensadores que vão criar a nova idéia de
Política, que vão dizer que existe sim a “res publica”(coisa pública, o espaço público)?. O
que é que eles vão fazer?
Eles vão dizer que o espaço público, a “res publica”, o poder político, não pode
ser regido pelos valores do espaço privado. Portanto pelos valores da Ética. Pelos
valores da virtude. E eles vão separar, e esta grande separação é feita por Maquiavel,
eles vão separar o público e o privado dizendo que o privado é campo da Ética, o público
é o campo da Política. E a Política e a Ética não tem mais nada em comum. O que vai ser
dito é que o campo da política não é regido pelas virtudes do governante.
O campo da Política é regido por uma lógica que é a lógica das relações de força.
E para que o campo da Política não seja o campo da violência e da guerra é preciso lidar
com esse campo de forças, e portanto com os conflitos, com as divisões que
caracterizam a sociedade, com essas diferenças, de um modo tal que a Política não seja
a guerra. Que a Política não seja a pura força, a pura violência, mas que ela tenha uma
lógica das forças que é encarnada no poder político como um polo que simboliza para o
todo da sociedade uma unidade que ela própria não tem. E que se realiza através das
instituições e através da lei. E portanto o importante é a qualidade da lei e a qualidade
das instituições, a qualidade do direito e da justiça, a qualidade das decisões. E não mais
se a pessoa ou as pessoas que ocupam o campo político são ou não virtuosas. E a
virtude e portanto com ela a Ética se tornam uma coisa própria da vida privada.
Sociedade Civil e Estado
A esfera da sociedade civil que é onde os indivíduos existem, é a esfera da vida
privada. Ora, se a sociedade civil é a esfera da vida privada como é que o Estado se
constitui como esfera pública. Se o Estado surge a partir da sociedade Civil para
regulamentar a Sociedade Civil e comandá-la? Ou seja, a base do Estado são as
relações privadas do mercado, baseadas, por exemplo, na lógica da competição.
Então o que se quer dizer é o seguinte: a sociedade moderna ao criar a
Sociedade Civil como o mercado dos contratos doe trabalho, da produção de
mercadorias e da acumulação do capital, e da propriedade privada, faz com que a esfera
pública, que é uma esfera social, seja uma esfera privada. A esfera dos proprietários
privados. E portanto nós não sabemos onde o Estado vai nascer para ser propriamente
esfera pública.
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dizer que há pelo imenso três critérios pelos quais nós podemos dizer que a Ética e a
Política se relacionam uma sendo subsídio para a realização da outra.
Primeiro critério: a relação entre meios e fins na Ética é uma relação na qual não
há exercício da violência. Que é a violência? É tratar um ser humano como se ele fosse
uma coisa. Como se ele fosse um objeto. Tratar um ser humano como um sujeito e não
como um objeto é tratá-lo eticamente. Se a Política na esfera pública for capaz de tratar
os fins políticos através de meios não violentos, não tratando os seres humanos como
coisa nós temos uma Política Ética.
Segundo critério - embora a Ética se realize no campo da vida privada, o que a
Ética busca nesta esfera que lhe é própria é a idéia de que nenhuma autoridade é
legítima se ela for despótica, se ela for arbitrária, se ela se realizar como expressão da
vontade individual, injustificada de alguém. Neste caso é a Política que vai ajudar a Ética
na medida em que o próprio da esfera pública é afastar a autoridade despótica, isto é,
aquela autoridade que se exerce como um vontade pessoal, individual, arbitrária, acima
de todas as outras. Assim agora a relação vem da Política para a Ética em que a Ética
auxilia na luta contra as formas arbitrárias de autoridade no interior da vida privada. Isto
significa por exemplo que a posição do pai, da mãe, do avô, da avó, do patrão, do chefe,
não é tão simples. Não basta a vontade deles para que a autoridade deles seja
eticamente legítima. A Política nos ajuda portanto a melhorar a própria Ética.
Terceiro critério: é o critério que pode valer para a Ética e para a Política que é a
redefinição da idéia de liberdade. Em vez de pensarmos a liberdade como o direito de
escolha vale a pena pensar a liberdade como o poder de criar o possível. Ou seja, a
liberdade é esta capacidade dos seres humanos de fazer existir o que não existia. De
inventar o possível. De inventar o novo. E se a liberdade for pensada desta maneira, a
relação entre a Ética e a Política pode se dar como criação histórica na esfera privada e
na esfera pública. Estou convencida de que há uma única forma da Política compatível
com a Ética e uma única modalidade da Ética compatível com a Política. Essa forma
Política é a democracia. E esta forma Ética é a liberdade através dos direitos. Então
como a democracia é o campo da criação dos direitos e como a Ética é a afirmação de
direitos através do direito fundamental que é o direito à vida e à liberdade, a
compatibilidade entre a Ética e a Política só pode ocorrer quando o campo da Política
permite o tratamento dos conflitos e quando o campo da Ética permite a divulgação dos
seus princípios.
Então eu diria que é a possibilidade de dar à Ética um conteúdo público e de dar
à Política um conteúdo moral que ocorre na democracia. Acho que não foi por acaso,
indo lá no meu ponto de partida, não foi por acaso que os inventores da Política, os
gregos, considerassem que era só na Política que a Ética se realizava e por Política eles
entendiam a democracia como igualdade perante a lei, (a isonomia). E o direito a expor, a
discutir e votar a opinião em púbico que é a isegoria.
Então se nós considerarmos que o campo da Ética é o campo da liberdade e o
campo da Política é também o campo da liberdade, só uma forma Política na qual esse
princípio possa se realizar é que torna viável uma relação entre a Ética e a Política. O que
significa que o ideal ético da visibilidade só pode se realizar na prática Política da
democracia, e vice-versa. Evidentemente isto seria um ponto de partida. Isto não é uma
conclusão. Pelo contrário se assim for nós precisaremos começar tudo de novo. Pois nós
temos que recomeçar a discutir a desigualdade, a violência, a mentira, a corrupção, a
privatização e a oficialização estatal de nossa vidas.
Extraído de um programa da TV Cultura de São Paulo intitulado: ÉTICA - sem
data