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O DIREITO COMO OBJETO DE CONHECIMENTO:


PERFIL HISTÓRICO

2.1 Direito e conhecimento do direito: origens

Conforme vimos no capítulo anterior, sobretudo em seu item 1.1, a via de


aproximação perfilhada conduziu-nos, dentro de uma visão do direito como simbolismo, à
ideia de retidão e equilíbrio, ao direito como símbolo de retidão e equilíbrio. Essa noção,
contudo, é obviamente vaga e exige algumas precisões.
Podemos observar, assim, que, na mesma linha de análise linguística, a palavra
diké, que nomeava a deusa grega da Justiça, derivava de um vocábulo significando
limites às terras de um homem. Daí uma outra conotação da expressão, ligada ao
próprio, à propriedade, ao que é de cada um. Donde se seguia que o direito se vinculasse
também ao que é devido, ao que é exigível e à culpa. Na mesma expressão se conotam,
pois, a propriedade, a pretensão e o pecado; e, na sequência, o processo, a pena e o
pagamento. Assim, diké era o poder de estabelecer o equilíbrio social nesta conotação
abrangente.
Ora, em sociedades primitivas, esse poder está dominado pelo elemento
organizador, fundado primariamente no princípio do parentesco. Todas as estruturas
sociais, que aliás não se especificam claramente, deixam-se penetrar por esse princípio,
valendo tanto para as relações políticas como para as econômicas e para as culturais,
produzindo uma segmentação que organiza a comunidade em famílias, grupos de
famílias, clãs, grupos de clãs. Dentro da comunidade, todos são parentes, o não parente
é uma figura esdrúxula. As alternativas de comportamento são, assim, pobres,
resumindo-se num “ou isto ou aquilo”, num “tudo ou nada”. O indivíduo, dentro da
comunidade, só é alguém por sua pertinência parental ao clã. O poder de estabelecer o
equilíbrio social liga-se ao parentesco. No horizonte do direito arcaico, só há lugar para
uma única ordem: a existente, que é a única possível, a querida pela divindade e, por
isso, sagrada. O direito é a ordem querida (e não criada) por um deus. Como não é uma
ordem criada, mas querida, o direito obriga tanto o homem como a divindade, que o
defende, o impõe, mas não o produz nem o modifica (a ideia de um Deus criador surge
na tradição judaica e passa, depois, à tradição cristã).
O estabelecimento do que é de cada um, conforme sua posição nas relações de
parentesco, mostra, pois, primitivamente, a predileção pelo direito como uma forma
rígida de distribuição social, em que seu contraventor é imediatamente expulso da
comunidade: ou estamos dentro dela e, portanto, com o direito, ou estamos fora dela (cf.
Gurvitch, 1960:198). Nesse sentido, o direito confunde-se com as maneiras características
de agir do povo (folkways) – por exemplo, o sentar-se em cadeiras ou no chão, o comer
com as mãos, só ou em grupo, o uso de roupas – tomadas como particularmente
importantes para a vida do grupo (mores) e manifestadas na forma de regras gerais. Ele
é percebido, primariamente, quando o comportamento de alguém ou de um grupo
desilude a expectativa consagrada pelas regras, reagindo o desiludido na forma, por
exemplo, de uma explosão de ira, vingança, maldições etc. (cf. Pierson, 1968:137). Por
exemplo, uma regra que consagra a expectativa geral de que ninguém deve tocar o
alimento destinado aos deuses é percebida quando alguém o come e é, assim, tornado
impuro, devendo ser expurgado.
Essa forma maniqueísta de manifestação do direito é atenuada pela intervenção de
sacerdotes ou de juízes esporádicos que, como guardas do direito, regulam sua
aplicação. No entanto, essa regulação não se separa do próprio direito, de tal modo que
não podemos falar do conhecimento do direito como algo dele separado. Esse
“conhecimento” e sua prática (de aplicação) não se distinguem: a existência, a guarda, a
aplicação e o saber do direito confundem-se.
Com o desenvolvimento das sociedades, quer por seu aumento quantitativo, quer
pelo aumento da complexidade das interações humanas possíveis, o princípio do
parentesco, por sua pobreza, é, pouco a pouco, diferenciado e substituído como base da
organização social. Nas culturas pré-modernas (China, Índia, Grécia, Roma), aparecem
assim os mercados, que permitem a equalização das necessidades entre os não parentes.
Isto é, a posição do comerciante deixa de ser determinada por sua situação na família,
no clã (por exemplo, comerciar deixa de ser uma atividade permitida apenas aos
patriarcas). Do mesmo modo, aparece o domínio político, localizado em centros de
administração e diferenciado da organização religiosa, guerreira, cultural etc. (cf.
Luhmann, 1972).
O primado do centro político é um dado importante, sobretudo para o direito como
poder de estabelecimento do equilíbrio social. As comunidades organizam-se como polis
ou sociedade política (civitas sive societas civilis), ou seja, uma forma hierárquica de
domínio baseada em prestígio, o que conduz a símbolos que determinam quem é quem
na sociedade, relações de status, modos distintos de falar ou linguagem própria. Com
isso, o direito, como ordem, passa a ligar-se aos homens enquanto tais: o homem
enquanto ser livre ou cives (liberdade como um status próprio do cidadão).
Essa transformação exige que o direito se manifeste por meio de fórmulas
prescritivas de validade permanente, que não se prendem necessariamente às relações
de parentesco, mas reconhecem certas possibilidades de escolha, participação na vida da
cidade (liberdade participativa). O direito, assim, continua sendo uma ordem que
atravessa todos os setores da vida social (político, econômico, religioso, cultural) mas
que não se confunde com eles. Torna-se possível, então, contrapor o sacerdote ao
guerreiro, o pai ao filho, o comerciante ao governante, sem que de antemão o direito
identifique-se com o comportamento deste ou com o daquele. Por conseguinte, o
contraventor deixa de ser alguém que está fora do direito, porque fora da comunidade
(ou foi expulso ou é estrangeiro), para ser alguém que pode invocar o mesmo direito que
o outro invoca contra ele, dentro da comunidade.
O direito, como ordem, perde seu caráter maniqueísta, isto é, supera-se a visão
primitiva do direito como o bem, em oposição ao antijurídico que se identifica com o mal.
O tratamento dado ao comportamento desviante encaminha-se agora para
procedimentos decisórios regulados, surgindo as formas de jurisdição: juízes, tribunais,
partes, advogados etc. Percebe-se que o direito abarca o lícito e o ilícito, pois este é
também um comportamento jurídico, só que proibido.
Essa progressiva procedimentalização do direito provoca, assim, o aparecimento de
um grupo especializado, com um papel social peculiar: os juristas, que desenvolvem uma
linguagem própria, com critérios seus, formas probatórias, justificações independentes.
Começa, com isso, uma separação entre o exercício político, econômico, religioso do
poder e o exercício do poder argumentativo: nasce e desenvolve-se a arte de conhecer,
elaborar e trabalhar o direito.
O conhecimento do direito, como algo diferenciado dele, é, pois, uma conquista
tardia da cultura humana. A distinção, pois, entre direito-objeto e direito-ciência exige
que o fenômeno jurídico alcance uma abstração maior, desligando-se de relações
concretas (como as de parentesco: o pai tem direito de vida e morte sobre o filho, porque
é pai, sem que se questione por que a relação pai/filho identifica-se com uma relação
jurídica de poder de vida e morte), tornando-se um regulativo social capaz de acolher
indagações a respeito de divergentes pretensões. Assumindo o direito a forma de um
programa decisório em que são formuladas as condições para a decisão correta, surge a
possibilidade de o direito-objeto separar-se de sua interpretação, de seu saber, das
figuras teóricas e doutrinárias que propõem técnicas de persuasão, de hermenêutica, que
começam a distinguir entre leis, costumes, folkways, moral, religião etc.
O desenvolvimento do saber jurídico, contudo, não é linear. Nas diferentes culturas,
ele se faz na forma de progressos e de recuos. Acompanhar esse desenvolvimento é
tarefa que ultrapassa os limites de uma introdução ao estudo do direito. Contudo, não se
pode negar, uma informação a respeito dessas mudanças é importante para uma visão
de conjunto. Uma compreensão do que é o direito-objeto não pode ser alcançada sem
que se mostre como uma cultura teorizou o próprio direito. Embora o fenômeno jurídico,
em certo momento, diferencie-se de seu saber, justamente por isso é que o
entendimento do que é o direito passa para as mãos dos que têm por missão conhecê-lo.
Para o estudante, portanto, ainda que o direito não seja objeto apenas da ciência
jurídica, mas também da sociologia, da filosofia, da antropologia, da política etc., é
importante partir, como dado primário, da própria teoria dogmática, tal como ela, em
nossa tradição, foi formando-se paulatinamente.

2.2 Jurisprudência romana: o direito como diretivo para a ação

Um exame da dogmática jurídica, nos quadros de um panorama histórico, tem a


finalidade de identificar tanto o papel por ela desempenhado na vida social, quanto o
modo pelo qual o pensamento dogmático gradativamente desenvolveu-se em nossa
cultura. Tal panorama, à medida que revela como a dogmática jurídica conseguiu
afirmar--se e justificar-se, em termos teóricos, delimita o objeto dessa investigação: os
próprios argumentos que estão por trás dos esforços de justificação, por parte da
doutrina. Por isso mesmo, antes de uma enumeração das teorias sobre a dogmática, o
que realmente nos interessa são as teorizações jurídicas que, com o tempo, pouco a
pouco passaram a constituir o que atualmente chamamos de dogmática jurídica ou
Ciência Dogmática do Direito. Tendo em vista o quadro cultural em que se desenvolveu o
direito em nosso país, mister se faz que principiemos pelas origens do pensamento
jurídico (continental) europeu, à exclusão, pois, do pensamento anglo-saxão, o que nos
conduz, de início, à Roma antiga.
Na Antiguidade Clássica, o direito (jus) era um fenômeno de ordem sagrada. Em
Roma, foi uma ocorrência imanente a sua fundação, ato considerado miticamente como
decisivo e marcante na configuração de sua cultura, por tornar-se uma espécie de projeto
a ser aumentado e engrandecido no tempo e no espaço. Foi essa ideia, transmitida de
geração em geração, por meio da tradição, que delineou sua expansão na forma de um
império, único em suas características em toda a Antiguidade. Assim, o direito, forma
cultural sagrada, era o exercício de uma atividade ética, a prudência, virtude moral do
equilíbrio e da ponderação nos atos de julgar. Nesse quadro, a prudência ganhou uma
relevância especial, recebendo a qualificação particular de Jurisprudentia.
A jurisprudência romana desenvolveu-se numa ordem jurídica que, na prática,
correspondia apenas a um quadro regulativo geral. A legislação restringia-se, por seu
lado, tanto na época da República, quanto na do Principado, à regulação de matérias

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