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01/04/2017
1. Introdução
Da barbárie verificada na segunda guerra mundial, e logo após a criação das Nações Unidas,
decorreu a Declaração Universal dos Direitos do Homem, editada na forma de resolução, com
o artigo 1º, dispondo que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em
direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de
fraternidade.” Foi a primeira vez que uma comunidade universal de nações formulou uma
declaração sobre a liberdade e os direitos fundamentais do homem.[1]
É sob este enfoque, de estreita ligação do princípio da igualdade com a dignidade humana que
se compreende atualmente a igualdade enquanto princípio jurídico, a despeito de ter
experimentado facetas sensivelmente distintas no longo decorrer de sua evolução, conforme se
percebe desde um rápido panorama de seu desenvolvimento, em distintas fases do
conhecimento humano.
Por primeiro, uma evidência: as sociedades, segundo nos informa a história, conviveram com a
desigualdade humana. Desigualdades de várias ordens caracterizaram distintas sociedades, ao
lado da desigualdade jurídica.
Em sua conhecida obra, Fustel de Coulanges informa a existência de desigualdades nas
sociedades indo-europeias antigas, totalmente dominadas por uma religião familiar, de culto
doméstico aos antepassados. O filho bastardo, v.g., aquele gerado fora de um casamento,
chamado vóϴoς pelos gregos e spurius pelos latinos, não podia desempenhar o papel que a
religião destinava ao filho legítimo. Não poderia participar do culto doméstico aos antepassados
e a família não se perpetuaria por ele.[4] No direito romano, a filha não herdava do pai, se
casada fosse, e no direito grego, não herdava em hipótese alguma,[5] numa distinção baseada
exclusivamente no sexo, em favor de crenças religiosas. A indivisão do patrimônio da família
antiga, ensina Coulanges, devia-se ao direito de primogenitura, que garantia ao primogênito,
como continuador do culto doméstico, herdar os bens familiares.[6] Esta discriminação na
ordem de vocação hereditária se enraizaria de tal forma na cultura indo-europeia que
atravessaria séculos e só seria finalizada – é difícil crer – a partir do código civil napoleônico.
Na obra de Tomás de Aquino, por exemplo, é constante a referência ao homem feito à imagem
e semelhança de Deus. Gênesis 1:26 é por vezes citado para afirmar a dignidade natural de
todo homem enquanto portador da imagem de Deus.[15] Por sua condição corpóreo-
espiritual[16], o homem tem uma especial dignidade natural e por ela uma posição natural de
domínio das demais criaturas terrestres. Em sua obra principal, a Suma Teológica, Tomás de
Aquino apresenta o homem com uma imagem semelhante à de Deus e capaz de uma relação
consciente e livre com seu criador, podendo assemelhar-se cada vez mais a Ele.[17] Em sua
essência, a natureza do homem é corpóreo-espiritual e o homem tem uma atividade moral que
consiste em alcançar, através de seus atos de conhecimento e de amor a Deus, uma
semelhança progressiva com Ele.[18] O traço distintivo do homem não é ter sido criado
diretamente por Deus, porque assim o foram também as demais criaturas terrestres, mas por
sua condição de criado à imagem de Deus.[19]
Um sopro contra o absolutismo viria com Rousseau, que subverteria a noção hobbesiana de
homem, para afirma-lo originalmente bom, porém posteriormente corrompido pelo
estabelecimento da sociedade. Em sua investigação sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade humana, Rousseau encontra desigualdades naturais que aceita, como as físicas,
em nada próximas das qualidades distintivas que denomina morais ou políticas, que são
sociais e convencionais. Rousseau aponta a riqueza, a nobreza ou condição, o poder e o
mérito como as distinções principais pelas quais as pessoas se medem na sociedade,
qualidades que se podem reduzir, por fim, à riqueza, e conclui ser a desigualdade moral a que
reina entre os povos policiados, manifestamente contra o direito natural.[23] Posteriormente,
Rousseau escreveria em uma nota, ao fim do Livro I, capítulo IX, do seu contrato social: “sob
os maus governos, essa igualdade é apenas aparente e ilusória. Só serve para manter o pobre
em sua miséria e o rico em sua usurpação. Na realidade, as leis são sempre úteis para aqueles
que possuem e prejudiciais aos que nada tem.”[24]
Neste momento histórico, para além dos postulados jusnaturalistas, o pleito pelo
reconhecimento dos direitos humanos surge como uma reação – capitaneada pela burguesia –
aos excessos do Estado, e viria pregar a necessidade de contenção do poder estatal. É neste
contexto que se sedimentam os ideais iluministas de igualdade como um valor universal.
Nesta concepção liberal (e burguesa), o Estado não tem fins próprios; limita-se a remover os
obstáculos para o que os indivíduos possam alcançar o próprio bem estar, através de suas
próprias capacidades. O Estado liberal é tanto mais perfeito quanto mais permite e garante a
todos o desenvolvimento da liberdade individual.[32] “A não atuação estatal significa liberdade.
Daí o primado do valor da liberdade, com a supremacia dos direitos civis e políticos e a
ausência de previsão de qualquer direito social, econômico e cultural que dependesse da
intervenção do Estado.”[33] É uma primeira geração (ou dimensão) de direitos, resultado do
enfrentamento ao autoritarismo e arbitrariedade do governo, e compõe-se das liberdades
públicas, integradas pelos direitos individuais e políticos e constituídas como núcleo dos
direitos fundamentais.[34]
Os ideais iluministas foram exitosos no pleito por reconhecimento a valores imanentes à
condição humana, declarados universais, aceitos mesmo que em oposição aos postulados da
escola histórica do direito, e o ápice talvez seja a Declaração de Direitos. Mas os primeiros
momentos que se seguiram à revolução francesa foram marcados pela sedimentação apenas
dos ideais de liberdade, assim entendida a abstenção do Estado – até então despótico. Nesta
primeira dimensão de direitos, no imediato momento pós-revolução, era a liberdade o valor que
sobrepujava e que experimentou maior penetração. Conforme Ferreira Filho, o Estado moderno
nasce no século XVIII preocupado em assegurar, acima de tudo, a liberdade; essa é a meta
fundamental e última das revoluções liberais.[35] Para os liberais, a chamada neutralidade da
esfera pública simbolizaria a garantia da liberdade e da igualdade dos cidadãos[36], e isto bem
convinha aos ideais burgueses, então no manche da história do ocidente.
Os ideais de igualdade, entretanto, seriam traídos no seio da própria revolução francesa, que
não se ruborizaria com pontuais hipocrisias. Mesmo frente à declarada igualdade entre os
cidadãos, a França revolucionária experimentaria a instituição do voto censitário na
Constituição de 1791, ardil a que recorreram para impedir a eleição de opositores da
propriedade privada na recém-implantada monarquia constitucional. O próprio texto do artigo 6º
da Declaração de Direitos da Revolução Francesa destoava, ao mencionar a dignidade
humana numa acepção não inata: “sendo todos os cidadãos iguais a seus olhos (da lei), têm
eles igual acesso a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo sua
capacidade e sem outra distinção que a de suas virtudes e de seus talentos”.[37]
Tome-se o exemplo da Rússia, que produziria uma revolução com bandeiras de contestação à
desigualdade econômica então reinante e ressoaria retumbantemente no ocidente. No início do
século XX, a Rússia liderava a produção mundial de petróleo e a exportação de grãos, e sua
classe de escritores, artistas, compositores e cientistas, mantinha estreito contato com países
do Ocidente. Mas esta sociedade de extremados contrastes exibia oitenta por cento de sua
população composta por camponeses não integrados à sociedade e vivendo como seus
ancestrais da idade média. Até 1861, quando o czar Alexandre II liberou os servos após mais
de 250 anos de servidão, cerca de metade dos camponeses russos compunha-se de servos
(sem direitos civis), submetidos à autoridade arbitrária de seus senhores, e os demais
submetiam-se ao Estado e à coroa. A aldeia russa era uma aglomeração de casebres de
troncos alinhados ao longo de uma estrada que corria através da vila, sem órgãos formais de
autogestão. Com o mais alto crescimento demográfico da Europa, a falta de terras para todos
propiciou a emergência de uma classe rural sem terra ou pobre, e o desenvolvimento industrial,
embora rápido, só absorvia uma fração do excesso da população rural. No campo jurídico, não
dispunha de Constituição ou de parlamento.[43]
“Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante,
e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação,
pretendendo, não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se
todos se equivalessem. Esta blasfêmia contra a razão e a fé, contra a civilização e a
humanidade, é a filosofia da miséria, proclamada em nome dos direitos do trabalho; e,
executada, não faria senão inaugurar, em vez da supremacia do trabalho, a organização da
miséria.”[49]
Formalmente declarados iguais perante a lei, uns detinham os bens de produção e, sob os
ideais de livre mercado, livre concorrência e propriedade privada, submetiam outros, os
trabalhadores, que ofereciam o trabalho como única mercadoria de troca, e que não podiam se
opor às condições violadoras da dignidade humana, nas indústrias, fábricas e minas. Este
fenômeno – a “questão social” ou a “luta de classes” – verificado principalmente nos Estados
que primeiro se organizaram sob o sistema capitalista e sob os ideais iluministas de liberalismo
de mercado e absenteísmo estatal, logo produziria influência nas constituições. Assim, as
primeiras inserções da igualdade nos textos constitucionais tem origem nas demandas sociais
surgidas no pós-revolução industrial.[50]
Na constituição japonesa de 1947, onde o artigo 14 estabelece que “todos serão iguais perante
a lei e não haverá discriminação nas relações políticas, econômicas e sociais por motivo de
raça, credo, sexo, condição social ou origem de família”, a hereditariedade do Imperador é
considerada uma exceção válida ao princípio de igualdade perante a lei.[56]
Na atual Constituição de Portugal, o artigo 13º dispõe sobre o princípio da igualdade: “1. Todos
os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei; 2. Ninguém pode ser
privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever
em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas
ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”
No Brasil, a Constituição Federal de 1824 já previa a igualdade, no art. 179, XIII: “A Lei será
igual para todos, quer proteja, quer castigue, o recompensará em proporção dos merecimentos
de cada um.” Ao mesmo tempo, “escravos não eram tidos como seres humanos, logo, não
tinham direito a processo e sofriam castigos (a esmo ou por seus supostos crimes) da forma
que melhor deliberassem seus proprietários.”[57] Melhor fizeram os americanos, que no bill of
rights de 1791, não declararam a isonomia; eram, nas palavras de Comparato, “sem dúvida
menos hipócritas ou inconsequentes” que o constituinte brasileiro de 1824.[58]
A Constituição de 1891 voltaria a declarar, limitando-se a tal, serem todos iguais perante a
lei[59]. A Constituição de 1934, abertamente influenciada pelo novo contexto europeu, haveria
de, além de declarar a igualdade perante lei, estipular proibições de discriminação, uma
tendência que se verificaria repetida nas experiências constitucionais posteriores, à exceção da
Constituição de 1946, que apenas declarou a igualdade.[60] Mas o grande diferencial da
Constituição de 1934 vinha pela previsão dos surgentes direitos sociais.[61] A despeito de
afirmações de que a experiência constitucional brasileira pré-1988 conhecera um princípio da
igualdade meramente formal[62], lições havia a pregar a convivência entre a vertente material
do princípio da igualdade, com seu prisma formal.[63]
Na Constituição Federal de 1988, a igualdade consta já como objetivo da República (artigo 3º,
III e IV), além da reiteração verificada no artigo 5º (caput e inciso I), e é neste ambiente jurídico
que se deve perscruta-la, ciente da advertência de que a noção de igualdade é fluida e
variável, e cada Estado, cada credo, cada ideologia acaba externando-a de forma diversa.[64]
3. A compreensão atual
Para José Afonso da Silva, o princípio da legalidade abrange a noção de igualdade material, de
tratamento segundo condições de desigualdade. Para o autor, o Estado se sujeita ao império
da lei, mas da lei que realize o princípio da igualdade e da justiça não pela sua generalidade,
mas por busca da igualização das condições dos socialmente desiguais.[65] Segue-o Borges,
ao afirmar o princípio da legalidade como manifestação do princípio da igualdade, e que a
igualdade é um dos conteúdos necessários da legalidade; a igualdade formal garante a
material.[66]
Para Ferreira Filho, o princípio da igualdade possui três aspectos: igualdade de todos perante o
direito, uniformidade de tratamento dos casos iguais, e proibição de discriminações. A
igualdade perante e lei, ou perante o direito, é a resposta dos movimentos liberais aos
privilégios da nobreza e do clero. Sua inserção nas Declarações liberais significa que não se
toleram mais distinções por nascimento ou pelo exercício de certas funções, devendo
uniformizar-se o estatuto jurídico a todos os homens. Por uniformidade de tratamento, entende-
se o imperativo de que as leis tratem igualmente os casos iguais, e desigualmente os casos
desiguais. Por fim, a proibição de discriminações implica que eventual diferenciação legislativa
deve ser justificada.[67]
O que releva considerar neste passo é que o acolhimento do princípio da igualdade não veda,
peremptoriamente, a utilização de discrímens, ainda que sensíveis por razões histórico-
culturais, como de fato o são o sexo ou a cor da pele. “O tratamento isonômico deve ser
propiciado pelo Poder Público não só no momento da aplicação da lei, mas desde sua
elaboração, o que não quer dizer que se exclua a possibilidade de certas discriminações, mas
sim que estas ocorram de forma justificada.”[69]
Na busca pelo conteúdo jurídico do princípio, na esteira de Bandeira de Melo, percebe-se ser
da essência da lei discriminar, e o discrímen eleito pela norma – qualquer que seja – será
legítimo ou não segundo sua correlação com os objetivos visados.
Em célebre lição, Bandeira de Melo sublinha a imposição constitucional de que haja correlação
lógica entre o discrímen eleito pela norma e seus objetivos. No exame de constitucionalidade
da norma, sob o filtro da igualdade, deve-se, segundo Bandeira de Melo, verificar o fator
escolhido pela lei como discriminatório; após, há de verificar-se se aquele elemento possui
fundamento lógico a justificar o tratamento diferenciado; e, por fim, deve-se observar se a
relação entre o elemento diferenciador de seu fundamento lógico se encontra em sintonia com
os valores prestigiados e positivados no ordenamento jurídico.[72]
Bandeira de Melo também reitera ser próprio das leis desigualar situações; discriminações
terão de haver. Para o autor, as normas sempre fazem e sempre farão distinções entre coisas,
seres e situações, os quais sempre possuem entre si pontos comuns, que permitirão considera-
los iguais. De outro lado, sempre apresentarão diferenças em relação a outros aspectos e
circunstâncias que os envolvem, fato que ensejaria considera-los distintos entre si.[73]
Por fim, são comuns as lições forqueando o princípio em igualdade na lei e perante a lei[75],
divisão que parece ter se iniciado na doutrina brasileira com Pontes de Miranda:
Para José Afonso da Silva[77] esta é uma distinção do direito estrangeiro desnecessária entre
nós, porque a orientação aqui é de que a igualdade é material, seja perante, seja na lei. Sem
prejuízo, é possível identificar-se a dicotomia nas diversas abordagens doutrinárias do princípio
e, de um modo geral, relacionando-se a igualdade perante a lei à igualdade formal, e a
igualdade na lei à igualdade material. O próprio José Afonso da Silva aponta a dicotomia neste
sentido, apesar de entendê-la inútil e desvantajosa no sistema brasileiro.[78]
Para Araújo[79], a igualdade perante a lei é a igualdade formal, o tratamento sem qualquer
distinção, que não admite privilégios, e neste sentido o princípio da igualdade não admite que
sejam feitas discriminações injustificadas. Já pela igualdade na lei, que identifica como
material, admite-se que certos valores, direitos de pessoas ou grupos necessitam de proteção
especial, e a utilização deste discrímen é aceita pela realidade vivida por tais grupos. É esta a
vertente do princípio da igualdade que admite o tratamento desigual a grupos desiguais, a
justificar que grupos de excluídos, como os deficientes, sejam beneficiados por medidas
específicas de inclusão, por exemplo.
Também Gomes[80] identifica a igualdade perante a lei com a noção clássica iluminista de
igualdade, ao afirmar que “a teoria constitucional clássica, herdeira do pensamento de Locke,
Rousseau e Montesquieu, é responsável pelo florescimento de uma concepção meramente
formal de igualdade – a chamada igualdade perante a lei.”[81]
Acrescente-se que a igualdade na lei – ainda uma igualdade material – está direcionada ao
legislador, que, por tal, está orientado – ou mais, vinculado – à elaboração de leis condizentes
com a igualdade constitucional. Veja-se, por representativa, a lição de Ferreira Filho:
“O Legislativo também se acha adstrito à proibição do arbítrio. E isto de dois modos diferentes.
Um decorrente da supremacia da constituição, já que esta impõe uma ‘superlegalidade’ que se
impõe a todos os poderes. Outro resultante do princípio de igualdade perante a lei que é
também princípio de igualdade na lei. Ou seja, igualdade perante a lei que se faz. […] o
Legislador não pode estabelecer leis arbitrária (sic). Não o pode porque a tanto o impede o
princípio da igualdade jurídica.”[82]
Eis, em breves linhas, a forma pela qual se tem compreendido a igualdade, enquanto princípio
jurídico.
Ao final, o que se espera ter restado sublinhado é que a igualdade jurídica está
constitucionalmente elevada a cânone de respeito à dignidade humana, fundamento da
República brasileira e princípio norteador da hermenêutica constitucional. A dignidade humana
é, em termos de Antunes Rocha, o único guia do princípio da igualdade.[84] O ser humano
deve ser sempre tratado de modo diferenciado em face da sua natureza racional.[85]