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O princípio da igualdade

01/04/2017

RESUMO: Propõe-se a pesquisa a analisar alguns dos principais desdobramentos


experimentados pela evolução do princípio jurídico da igualdade, desde suas origens filosóficas
até a forma atual de compreensão do princípio, conforme positivado em várias Constituições,
inclusive na brasileira de 1988. Pesquisam-se as raízes históricas do princípio, em diferentes
épocas. Buscam-se as principais lições quanto ao conteúdo jurídico da igualdade, enquanto
princípio jurídico. O princípio é estudado em suas conhecidas vertentes “material” e “formal”,
bem como na dicotomia doutrinariamente construída de igualdade “perante a lei” e “na lei”.

Palavras-chave: igualdade; igualdade material e formal; igualdade perante a lei e igualdade na


lei.

Sumário: 1. Introdução. 2. A igualdade na história do pensamento jurídico. 3. A compreensão


atual. 4. Referências bibliográficas.

1. Introdução

Da barbárie verificada na segunda guerra mundial, e logo após a criação das Nações Unidas,
decorreu a Declaração Universal dos Direitos do Homem, editada na forma de resolução, com
o artigo 1º, dispondo que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em
direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de
fraternidade.” Foi a primeira vez que uma comunidade universal de nações formulou uma
declaração sobre a liberdade e os direitos fundamentais do homem.[1]

A reação da comunidade internacional direcionava-se a atrocidades cometidas em nome de


uma ideologia que atribuía a si o monopólio da dignidade. É sintomático que a igualdade
humana tenha sido declarada umbilicalmente conectada à dignidade, constituindo pressuposto
essencial para o respeito à dignidade da pessoa humana a garantia da isonomia entre os seres
humanos.[2]

Há na interligação declarada, entretanto, um aparente paradoxo, onde o valor da dignidade


humana exige a consideração de cada pessoa como ser insubstituível, como portador de uma
existência única, conectando-se ao estabelecimento de uma igualdade de todos sob o alcance
da lei. No slogan de Patrão-Neves[3], “todos iguais, todos diferentes”.

É sob este enfoque, de estreita ligação do princípio da igualdade com a dignidade humana que
se compreende atualmente a igualdade enquanto princípio jurídico, a despeito de ter
experimentado facetas sensivelmente distintas no longo decorrer de sua evolução, conforme se
percebe desde um rápido panorama de seu desenvolvimento, em distintas fases do
conhecimento humano.

Como obra humana que é, o princípio da igualdade experimentou um lento processo de


elaboração conceitual, com pontuais avanços e retrocessos, influenciado por fatos e
circunstâncias históricos, alguns positivos e outros tantos desastrosos, e esta abordagem
pretende oferecer um panorama de alguns dos principais momentos históricos que
influenciaram a lenta elaboração dos direitos humanos como obra humana para, dentre eles,
buscar a construção da igualdade jurídica na forma com que é compreendida hodiernamente.

2. A igualdade na história do pensamento jurídico

Por primeiro, uma evidência: as sociedades, segundo nos informa a história, conviveram com a
desigualdade humana. Desigualdades de várias ordens caracterizaram distintas sociedades, ao
lado da desigualdade jurídica.
Em sua conhecida obra, Fustel de Coulanges informa a existência de desigualdades nas
sociedades indo-europeias antigas, totalmente dominadas por uma religião familiar, de culto
doméstico aos antepassados. O filho bastardo, v.g., aquele gerado fora de um casamento,
chamado vóϴoς pelos gregos e spurius pelos latinos, não podia desempenhar o papel que a
religião destinava ao filho legítimo. Não poderia participar do culto doméstico aos antepassados
e a família não se perpetuaria por ele.[4] No direito romano, a filha não herdava do pai, se
casada fosse, e no direito grego, não herdava em hipótese alguma,[5] numa distinção baseada
exclusivamente no sexo, em favor de crenças religiosas. A indivisão do patrimônio da família
antiga, ensina Coulanges, devia-se ao direito de primogenitura, que garantia ao primogênito,
como continuador do culto doméstico, herdar os bens familiares.[6] Esta discriminação na
ordem de vocação hereditária se enraizaria de tal forma na cultura indo-europeia que
atravessaria séculos e só seria finalizada – é difícil crer – a partir do código civil napoleônico.

Na filosofia clássica, deve-se a Aristóteles a formulação da igualdade como o fim do direito[7].


Como conjunto de regras coercitivas que disciplinam a conduta dos homens na sociedade, o
direito buscaria garantir a igualdade, seja nas relações entre os indivíduos (justiça comutativa)
seja nas relações entre o Estado e os indivíduos (justiça distributiva). Nesta concepção
clássica, um ordenamento jurídico só seria justo se protegesse os fracos contra os fortes, os
pobres contra os ricos, e se estabelecesse medidas para que todos os membros da sociedade
recebam igual tratamento, segundo certos critérios fundamentais, como o trabalho, o mérito, a
necessidade etc.[8] Mas já entre os sofistas que discutiam a antítese nomos–phisis[9] era
surgida a ideia de igualdade e unidade do gênero humano. Segundo informa Guthrie, alguns
dos defensores da physis declaravam que distinções baseadas em raça, nascimento nobre,
status social ou riqueza, e instituições como a escravidão, não tinham base na natureza, mas
existiam somente por nomos[10] (o que se aproxima da concepção de Rousseau, como se
verá). Dizia Atenágoras, em discurso:

“Desagrada-vos estar politicamente em pé de igualdade com um número mais amplo? Mas


como é justo que a membros do mesmo Estado se neguem os mesmos direitos? Dir-me-ão
que a democracia não é sensata nem equitativa, e que os ricos são os mais bem qualificados
para governar; mas, replico eu, primeiramente, que demos significa o Estado inteiro, e
oligarquia apenas uma parte; em segundo lugar, que os ricos podem ser os melhores
guardiães da propriedade, mas o melhores conselheiros são os inteligentes, e os melhores
para ouvir e julgar argumentações são os muitos. E na democracia, todos estes, quer agindo
separadamente, quer em conjunto, têm participação igual.”[11]

Posteriormente, o ponto de ruptura do cristianismo com o judaísmo viria com a superação da


ideia de que o Deus único privilegiara um povo entre todos[12], com o cristianismo chamando
todos à salvação. Encontram-se no novo testamento referências do ser humano criado à
imagem e semelhança de Deus, premissa da qual o cristianismo extraiu a consequência de que
o ser humano é dotado de um valor intrínseco[13], não podendo ser transformado em mero
objeto ou instrumento.[14]

Na obra de Tomás de Aquino, por exemplo, é constante a referência ao homem feito à imagem
e semelhança de Deus. Gênesis 1:26 é por vezes citado para afirmar a dignidade natural de
todo homem enquanto portador da imagem de Deus.[15] Por sua condição corpóreo-
espiritual[16], o homem tem uma especial dignidade natural e por ela uma posição natural de
domínio das demais criaturas terrestres. Em sua obra principal, a Suma Teológica, Tomás de
Aquino apresenta o homem com uma imagem semelhante à de Deus e capaz de uma relação
consciente e livre com seu criador, podendo assemelhar-se cada vez mais a Ele.[17] Em sua
essência, a natureza do homem é corpóreo-espiritual e o homem tem uma atividade moral que
consiste em alcançar, através de seus atos de conhecimento e de amor a Deus, uma
semelhança progressiva com Ele.[18] O traço distintivo do homem não é ter sido criado
diretamente por Deus, porque assim o foram também as demais criaturas terrestres, mas por
sua condição de criado à imagem de Deus.[19]

Como o passar do tempo, dirigentes deixaram de lado as aspirações populares. Concentrando


todo o poder político e econômico, editavam leis arbitrárias e passaram a manipular cidadãos
de acordo com seus próprios interesses. Passa o poder a ser o próprio fim. Em oposição a este
poder absolutista é que a quota desprestigiada da população iria se insurgir,[20] pavimentando
o caminho para o Iluminismo e as revoluções burguesas. Conforme lembra Comparato, a
própria Igreja, afastando-se das pregações primitivas do cristianismo, contribuiu para a
desigualdade jurídico-social da Idade Média, ao reivindicar o clero como uma ordem separada
dos leigos e dotada de privilégios, como a não submissão à justiça senhorial e a imunidade
tributária.[21] Nas Ordenações portuguesas, v.g., havia disposições específicas para a relação
entre Estado e Igreja[22], e judeus e mouros eram tratados como uma classe inferior.

Um sopro contra o absolutismo viria com Rousseau, que subverteria a noção hobbesiana de
homem, para afirma-lo originalmente bom, porém posteriormente corrompido pelo
estabelecimento da sociedade. Em sua investigação sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade humana, Rousseau encontra desigualdades naturais que aceita, como as físicas,
em nada próximas das qualidades distintivas que denomina morais ou políticas, que são
sociais e convencionais. Rousseau aponta a riqueza, a nobreza ou condição, o poder e o
mérito como as distinções principais pelas quais as pessoas se medem na sociedade,
qualidades que se podem reduzir, por fim, à riqueza, e conclui ser a desigualdade moral a que
reina entre os povos policiados, manifestamente contra o direito natural.[23] Posteriormente,
Rousseau escreveria em uma nota, ao fim do Livro I, capítulo IX, do seu contrato social: “sob
os maus governos, essa igualdade é apenas aparente e ilusória. Só serve para manter o pobre
em sua miséria e o rico em sua usurpação. Na realidade, as leis são sempre úteis para aqueles
que possuem e prejudiciais aos que nada tem.”[24]

Neste momento histórico, para além dos postulados jusnaturalistas, o pleito pelo
reconhecimento dos direitos humanos surge como uma reação – capitaneada pela burguesia –
aos excessos do Estado, e viria pregar a necessidade de contenção do poder estatal. É neste
contexto que se sedimentam os ideais iluministas de igualdade como um valor universal.

A Declaração Francesa, que da revolução de 1789 decorreu, aceitou princípios jusnaturalistas


para declarar a liberdade como imanente à condição humana e como princípio norteador e
condicionante da confecção legislativa: art. 1º, “Os homens nascem e permanecem livres e
iguais em direitos”; art. 6º, “Ela (a lei) deve ser a mesma para todos, seja quando protege, seja
quando pune”.[25] Como “declaração”, a Declaração Francesa não estabelece a liberdade ou a
igualdade; antes, as reconhece. É semelhante à declaração de direitos do Estado da Virgínia,
de 1776: “todos os homens são por natureza igualmente livres e independentes, e possuem
alguns direitos inatos, dos quais entrando no estado de sociedade, não podem, através de
convenção, privar ou despir a sua posteridade…”[26]. Este princípio de igualdade passou a ser
reproduzido em praticamente todas as constituições editadas após a revolução francesa,
[27] numa consagração do discurso liberal, onde a liberdade individual pressupõe a contenção
do poder estatal.[28]

É representativa do ideal iluminista a noção kantiana da liberdade individual como um direito


inato. Para Kant, outros direitos considerados inatos, como a igualdade, estão compreendidos
no princípio da liberdade inata[29]. Há uma redução drástica de todos os direitos da tradição do
jusnaturalismo na liberdade, fundamento último do ideal de justiça.[30] Em Kant, a igualdade
frente à lei é formal. Os cidadãos não precisam ser iguais na quantidade e no grau de suas
posses, mas somente ter uma pretensão igual de fazer valer seus direitos.[31]

Nesta concepção liberal (e burguesa), o Estado não tem fins próprios; limita-se a remover os
obstáculos para o que os indivíduos possam alcançar o próprio bem estar, através de suas
próprias capacidades. O Estado liberal é tanto mais perfeito quanto mais permite e garante a
todos o desenvolvimento da liberdade individual.[32] “A não atuação estatal significa liberdade.
Daí o primado do valor da liberdade, com a supremacia dos direitos civis e políticos e a
ausência de previsão de qualquer direito social, econômico e cultural que dependesse da
intervenção do Estado.”[33] É uma primeira geração (ou dimensão) de direitos, resultado do
enfrentamento ao autoritarismo e arbitrariedade do governo, e compõe-se das liberdades
públicas, integradas pelos direitos individuais e políticos e constituídas como núcleo dos
direitos fundamentais.[34]
Os ideais iluministas foram exitosos no pleito por reconhecimento a valores imanentes à
condição humana, declarados universais, aceitos mesmo que em oposição aos postulados da
escola histórica do direito, e o ápice talvez seja a Declaração de Direitos. Mas os primeiros
momentos que se seguiram à revolução francesa foram marcados pela sedimentação apenas
dos ideais de liberdade, assim entendida a abstenção do Estado – até então despótico. Nesta
primeira dimensão de direitos, no imediato momento pós-revolução, era a liberdade o valor que
sobrepujava e que experimentou maior penetração. Conforme Ferreira Filho, o Estado moderno
nasce no século XVIII preocupado em assegurar, acima de tudo, a liberdade; essa é a meta
fundamental e última das revoluções liberais.[35] Para os liberais, a chamada neutralidade da
esfera pública simbolizaria a garantia da liberdade e da igualdade dos cidadãos[36], e isto bem
convinha aos ideais burgueses, então no manche da história do ocidente.

Os ideais de igualdade, entretanto, seriam traídos no seio da própria revolução francesa, que
não se ruborizaria com pontuais hipocrisias. Mesmo frente à declarada igualdade entre os
cidadãos, a França revolucionária experimentaria a instituição do voto censitário na
Constituição de 1791, ardil a que recorreram para impedir a eleição de opositores da
propriedade privada na recém-implantada monarquia constitucional. O próprio texto do artigo 6º
da Declaração de Direitos da Revolução Francesa destoava, ao mencionar a dignidade
humana numa acepção não inata: “sendo todos os cidadãos iguais a seus olhos (da lei), têm
eles igual acesso a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo sua
capacidade e sem outra distinção que a de suas virtudes e de seus talentos”.[37]

Um claro exemplo das preocupações que acompanhavam as primeiras manifestações do


Estado moderno é dado por Gomes, que cita a inspiração individualista do século XVIII
experimentada pela Constituição americana de 1787 que, “nos seus primórdios, tinha como
preocupação básica, primeiramente, a consolidação da estrutura federal de governo e a fixação
dos termos em que deveriam se dar as relações entre os Poderes e, num segundo plano, a
proteção do indivíduo contra os excessos e abusos do Estado.”[38] O princípio da isonomia,
pela equal protection of the law, só seria incorporado pelo Texto Constitucional americano em
1868, com a Emenda XIV, ou seja, após cessada a guerra civil.[39] Já a Declaração de
Independência dos Estados Unidos, inspirada por Jefferson, proclama que todos os homens
são iguais por criação e dotados de direitos inalienáveis, como a vida, a liberdade e a busca da
felicidade.[40]

Assim, os ideais iluministas de igualdade, também declarada um direito do homem, restringiam-


se a um reconhecimento formal, sedimentando-se uma concepção hipócrita-formal do princípio
que por tempos coexistiria com classes sociais economicamente distantes e com interesses
contrapostos: os detentores do capital – ou burgueses – e o proletariado, também integrado por
minorias. Lembra Gomes que a experiência mostrou que, tal como construída, à luz da cartilha
liberal oitocentista, a igualdade jurídica nada mais era do que uma mera ficção[41]; ou, como
mais incisivamente prefere Comparato, o princípio da igualdade liberal era o mero triunfo do
formalismo abstrato e hipócrita, sobre a crua evidência das realidades concretas. Se antes
havia uma sociedade juridicamente desigual, agora a desigualdade se deslocou para o campo
econômico.[42]

Os ideais preconizados pelo movimento iluminista propiciaram, é verdade, um formidável


desenvolvimento econômico setorizado, principalmente pelo liberalismo conquistado pela
iniciativa privada, mas também levaram ao surgimento de uma classe social que se enriquecia,
composta por detentores dos meios de produção capitalista, e de uma contraposta classe
operária, formada por uma massa que tinha a oferecer apenas o seu trabalho, segundo as
regras liberais de oferta e procura. Concomitantemente, elevado crescimento demográfico
fornecia excesso de mão-de-obra, que não era inteiramente absorvida pela indústria,
possibilitando condições ideais de exploração.

Tome-se o exemplo da Rússia, que produziria uma revolução com bandeiras de contestação à
desigualdade econômica então reinante e ressoaria retumbantemente no ocidente. No início do
século XX, a Rússia liderava a produção mundial de petróleo e a exportação de grãos, e sua
classe de escritores, artistas, compositores e cientistas, mantinha estreito contato com países
do Ocidente. Mas esta sociedade de extremados contrastes exibia oitenta por cento de sua
população composta por camponeses não integrados à sociedade e vivendo como seus
ancestrais da idade média. Até 1861, quando o czar Alexandre II liberou os servos após mais
de 250 anos de servidão, cerca de metade dos camponeses russos compunha-se de servos
(sem direitos civis), submetidos à autoridade arbitrária de seus senhores, e os demais
submetiam-se ao Estado e à coroa. A aldeia russa era uma aglomeração de casebres de
troncos alinhados ao longo de uma estrada que corria através da vila, sem órgãos formais de
autogestão. Com o mais alto crescimento demográfico da Europa, a falta de terras para todos
propiciou a emergência de uma classe rural sem terra ou pobre, e o desenvolvimento industrial,
embora rápido, só absorvia uma fração do excesso da população rural. No campo jurídico, não
dispunha de Constituição ou de parlamento.[43]

A liberdade conquistada, que de fato consistia na não intervenção do Estado, deixava os


indivíduos livre para administrarem seus interesses e não havia qualquer forma de proteção
estatal aos hipossuficientes, que passaram a ser explorados como trabalhadores e não tinham
possibilidade de usufruir os direitos que formalmente lhes eram atribuídos.[44] Como
interessava aos patrocinadores da ideologia dominante, o direito de propriedade deveria ser
protegido tanto quanto quaisquer outros, e a liberdade que se venerava permitia o seu livre
gozo.[45] Luisi identifica no postulado do art. 17 da Declaração Francesa de 1789, da
propriedade como direito sagrado e inviolável, e sua apendícula liberdade de contratar, a
origem de uma realidade social chocantemente desigualitária e injusta, contra a qual se
levantaram vozes de pensadores da época.[46] De fato, contestações surgiram a criticar o
caráter meramente formal da igualdade, do que é exemplo a doutrina social da Igreja[47].
Conhecida crítica de Marx afirmava que o exercício das liberdades reconhecidas nas
Declarações pressupunha mínimas condições econômicas, sem as quais o indivíduo não
poderia delas usufruir concretamente.[48] A superestrutura pressupõe a infraestrutura. Sem um
mínimo necessário à sua existência, ninguém é livre. Em sua Oração aos Moços, Rui Barbosa
discursou:

“Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante,
e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação,
pretendendo, não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se
todos se equivalessem. Esta blasfêmia contra a razão e a fé, contra a civilização e a
humanidade, é a filosofia da miséria, proclamada em nome dos direitos do trabalho; e,
executada, não faria senão inaugurar, em vez da supremacia do trabalho, a organização da
miséria.”[49]

Formalmente declarados iguais perante a lei, uns detinham os bens de produção e, sob os
ideais de livre mercado, livre concorrência e propriedade privada, submetiam outros, os
trabalhadores, que ofereciam o trabalho como única mercadoria de troca, e que não podiam se
opor às condições violadoras da dignidade humana, nas indústrias, fábricas e minas. Este
fenômeno – a “questão social” ou a “luta de classes” – verificado principalmente nos Estados
que primeiro se organizaram sob o sistema capitalista e sob os ideais iluministas de liberalismo
de mercado e absenteísmo estatal, logo produziria influência nas constituições. Assim, as
primeiras inserções da igualdade nos textos constitucionais tem origem nas demandas sociais
surgidas no pós-revolução industrial.[50]

É deste período o surgimento de um grupo de direitos de segunda dimensão, comumente


chamado direitos sociais ou sociais e econômicos, cujo fim último é o implemento de fato de
uma igualdade até então apenas formalizada, e é também deste contexto a criação da
Organização Internacional do Trabalho, criada após a primeira guerra mundial com a finalidade
de promover padrões internacionais de condições de trabalho.[51]

Ainda no âmbito internacional, os ideais de igualdade e liberdade permearam a já citada


Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Resolução 217 A (III) da
Assembleia Geral da ONU, em 10 de dezembro de 1948.[52] A Declaração tem o mérito de
anunciar a igualdade intrínseca do ser humano como um postulado e reconhece episódios
brutais da história humana como barbáries evitáveis através de um regime de direito que
combata a tirania e a opressão.[53] É desta época o primeiro tratado internacional de proteção
dos direitos humanos, aprovado no âmbito da ONU, e que já previa a criação de uma corte
internacional penal.[54]

Assim, a conexão jurídico-positiva entre dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais


começa como Estado social de Direito, nas Constituições e grandes textos internacionais
subsequentes à segunda guerra mundial[55], e os ideais iluministas de igualdade formal
passariam por um processo de reavaliação, senão forjado ao menos impulsionado por
movimentos sociais de contestação, como a revolução russa que findaria o czarismo autocrata-
absolutista e a dinastia Romanov.

Na constituição japonesa de 1947, onde o artigo 14 estabelece que “todos serão iguais perante
a lei e não haverá discriminação nas relações políticas, econômicas e sociais por motivo de
raça, credo, sexo, condição social ou origem de família”, a hereditariedade do Imperador é
considerada uma exceção válida ao princípio de igualdade perante a lei.[56]

Na atual Constituição de Portugal, o artigo 13º dispõe sobre o princípio da igualdade: “1. Todos
os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei; 2. Ninguém pode ser
privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever
em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas
ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”

Na Constituição espanhola, artigo 1º, 1, consta que “A Espanha se constitui em um Estado


social e democrático de direito, que propugna como valores superiores de seu ordenamento
jurídico a liberdade, a justiça, a igualdade e o pluralismo político.”

No Brasil, a Constituição Federal de 1824 já previa a igualdade, no art. 179, XIII: “A Lei será
igual para todos, quer proteja, quer castigue, o recompensará em proporção dos merecimentos
de cada um.” Ao mesmo tempo, “escravos não eram tidos como seres humanos, logo, não
tinham direito a processo e sofriam castigos (a esmo ou por seus supostos crimes) da forma
que melhor deliberassem seus proprietários.”[57] Melhor fizeram os americanos, que no bill of
rights de 1791, não declararam a isonomia; eram, nas palavras de Comparato, “sem dúvida
menos hipócritas ou inconsequentes” que o constituinte brasileiro de 1824.[58]

A Constituição de 1891 voltaria a declarar, limitando-se a tal, serem todos iguais perante a
lei[59]. A Constituição de 1934, abertamente influenciada pelo novo contexto europeu, haveria
de, além de declarar a igualdade perante lei, estipular proibições de discriminação, uma
tendência que se verificaria repetida nas experiências constitucionais posteriores, à exceção da
Constituição de 1946, que apenas declarou a igualdade.[60] Mas o grande diferencial da
Constituição de 1934 vinha pela previsão dos surgentes direitos sociais.[61] A despeito de
afirmações de que a experiência constitucional brasileira pré-1988 conhecera um princípio da
igualdade meramente formal[62], lições havia a pregar a convivência entre a vertente material
do princípio da igualdade, com seu prisma formal.[63]

Na Constituição Federal de 1988, a igualdade consta já como objetivo da República (artigo 3º,
III e IV), além da reiteração verificada no artigo 5º (caput e inciso I), e é neste ambiente jurídico
que se deve perscruta-la, ciente da advertência de que a noção de igualdade é fluida e
variável, e cada Estado, cada credo, cada ideologia acaba externando-a de forma diversa.[64]

3. A compreensão atual

Compreendido em rápidas linhas o aluviano desenvolvimento da igualdade jurídica material e


sua absorção pelo direito brasileiro, passa-se à análise de seu do conteúdo, conforme
compreendido pelo constitucionalismo atual.

Para José Afonso da Silva, o princípio da legalidade abrange a noção de igualdade material, de
tratamento segundo condições de desigualdade. Para o autor, o Estado se sujeita ao império
da lei, mas da lei que realize o princípio da igualdade e da justiça não pela sua generalidade,
mas por busca da igualização das condições dos socialmente desiguais.[65] Segue-o Borges,
ao afirmar o princípio da legalidade como manifestação do princípio da igualdade, e que a
igualdade é um dos conteúdos necessários da legalidade; a igualdade formal garante a
material.[66]

Para Ferreira Filho, o princípio da igualdade possui três aspectos: igualdade de todos perante o
direito, uniformidade de tratamento dos casos iguais, e proibição de discriminações. A
igualdade perante e lei, ou perante o direito, é a resposta dos movimentos liberais aos
privilégios da nobreza e do clero. Sua inserção nas Declarações liberais significa que não se
toleram mais distinções por nascimento ou pelo exercício de certas funções, devendo
uniformizar-se o estatuto jurídico a todos os homens. Por uniformidade de tratamento, entende-
se o imperativo de que as leis tratem igualmente os casos iguais, e desigualmente os casos
desiguais. Por fim, a proibição de discriminações implica que eventual diferenciação legislativa
deve ser justificada.[67]

Em Canotilho, o princípio da igualdade está associado à proibição do arbítrio; o arbítrio da


desigualdade é condição necessária e suficiente para a violação do princípio da igualdade.[68]

O que releva considerar neste passo é que o acolhimento do princípio da igualdade não veda,
peremptoriamente, a utilização de discrímens, ainda que sensíveis por razões histórico-
culturais, como de fato o são o sexo ou a cor da pele. “O tratamento isonômico deve ser
propiciado pelo Poder Público não só no momento da aplicação da lei, mas desde sua
elaboração, o que não quer dizer que se exclua a possibilidade de certas discriminações, mas
sim que estas ocorram de forma justificada.”[69]

O princípio da isonomia – em sua vertente material – em grande número de hipóteses de sua


incidência, não apenas não veda o estabelecimento de desigualdades jurídicas, como, ao
revés, impõe o tratamento desigual.[70] A igualdade pressupõe desigualdade e esta
inexorabilidade sensibilizou mesmo o legislador constituinte originário, do que constitui exemplo
a contraposição do artigo 5º, I, com os artigos 40, § 1º, III, e 201, § 7º, da Constituição Federal
brasileira de 1988.

Na busca pelo conteúdo jurídico do princípio, na esteira de Bandeira de Melo, percebe-se ser
da essência da lei discriminar, e o discrímen eleito pela norma – qualquer que seja – será
legítimo ou não segundo sua correlação com os objetivos visados.

Em abordagem ao princípio da isonomia feita ainda sob a égide da Emenda Constitucional


1/1969, Valle Figueiredo concluía que ao Legislativo só é lícito estabelecer discrímens
imediatamente referíveis à finalidade da norma que editará, discrímens relativos a classes
lógicas, estando-lhe proibido criar diferenciações onde não haja uma relação de adequação
entre as diferenciações e as situações tuteladas.[71]

Em célebre lição, Bandeira de Melo sublinha a imposição constitucional de que haja correlação
lógica entre o discrímen eleito pela norma e seus objetivos. No exame de constitucionalidade
da norma, sob o filtro da igualdade, deve-se, segundo Bandeira de Melo, verificar o fator
escolhido pela lei como discriminatório; após, há de verificar-se se aquele elemento possui
fundamento lógico a justificar o tratamento diferenciado; e, por fim, deve-se observar se a
relação entre o elemento diferenciador de seu fundamento lógico se encontra em sintonia com
os valores prestigiados e positivados no ordenamento jurídico.[72]

Bandeira de Melo também reitera ser próprio das leis desigualar situações; discriminações
terão de haver. Para o autor, as normas sempre fazem e sempre farão distinções entre coisas,
seres e situações, os quais sempre possuem entre si pontos comuns, que permitirão considera-
los iguais. De outro lado, sempre apresentarão diferenças em relação a outros aspectos e
circunstâncias que os envolvem, fato que ensejaria considera-los distintos entre si.[73]

Segundo a fórmula de Bandeira de Melo, se o tratamento discriminatório outorgado a uns for


justificável, por existir uma correlação lógica entre o fator de discrímen tomado e o regramento
que se lhe deu, a norma ou a conduta são compatíveis com o princípio da igualdade; se, pelo
contrário, inexistir esta relação de congruência lógica, a norma ou a conduta serão
incompatíveis com aquele princípio.[74]

Por fim, são comuns as lições forqueando o princípio em igualdade na lei e perante a lei[75],
divisão que parece ter se iniciado na doutrina brasileira com Pontes de Miranda:

“O texto começa a enumeração dos direitos fundamentais pelo princípio de isonomia ou


princípio de igualdade perante a lei, dito também princípio formal porque não igualiza
‘materialmente’. Todos são iguais perante a lei. O princípio dirige-se a todos os poderes do
Estado. É cogente para a legislatura, para a administração e para a justiça. Aliás podem
ser explicitados dois princípios: um de igualdade perante a lei feita, e outro, de igualdade na lei
a fazer-se. Não é só a incidência e a aplicação que precisam ser iguais, é preciso que seja
igual a legislação.”[76]

Para José Afonso da Silva[77] esta é uma distinção do direito estrangeiro desnecessária entre
nós, porque a orientação aqui é de que a igualdade é material, seja perante, seja na lei. Sem
prejuízo, é possível identificar-se a dicotomia nas diversas abordagens doutrinárias do princípio
e, de um modo geral, relacionando-se a igualdade perante a lei à igualdade formal, e a
igualdade na lei à igualdade material. O próprio José Afonso da Silva aponta a dicotomia neste
sentido, apesar de entendê-la inútil e desvantajosa no sistema brasileiro.[78]

Para Araújo[79], a igualdade perante a lei é a igualdade formal, o tratamento sem qualquer
distinção, que não admite privilégios, e neste sentido o princípio da igualdade não admite que
sejam feitas discriminações injustificadas. Já pela igualdade na lei, que identifica como
material, admite-se que certos valores, direitos de pessoas ou grupos necessitam de proteção
especial, e a utilização deste discrímen é aceita pela realidade vivida por tais grupos. É esta a
vertente do princípio da igualdade que admite o tratamento desigual a grupos desiguais, a
justificar que grupos de excluídos, como os deficientes, sejam beneficiados por medidas
específicas de inclusão, por exemplo.

Também Gomes[80] identifica a igualdade perante a lei com a noção clássica iluminista de
igualdade, ao afirmar que “a teoria constitucional clássica, herdeira do pensamento de Locke,
Rousseau e Montesquieu, é responsável pelo florescimento de uma concepção meramente
formal de igualdade – a chamada igualdade perante a lei.”[81]

Acrescente-se que a igualdade na lei – ainda uma igualdade material – está direcionada ao
legislador, que, por tal, está orientado – ou mais, vinculado – à elaboração de leis condizentes
com a igualdade constitucional. Veja-se, por representativa, a lição de Ferreira Filho:

“O Legislativo também se acha adstrito à proibição do arbítrio. E isto de dois modos diferentes.
Um decorrente da supremacia da constituição, já que esta impõe uma ‘superlegalidade’ que se
impõe a todos os poderes. Outro resultante do princípio de igualdade perante a lei que é
também princípio de igualdade na lei. Ou seja, igualdade perante a lei que se faz. […] o
Legislador não pode estabelecer leis arbitrária (sic). Não o pode porque a tanto o impede o
princípio da igualdade jurídica.”[82]

Semelhantemente, em Canotilho a igualdade perante a lei é uma igualdade verificável na


aplicação do direito, enquanto que quanto à criação do direito (ou considerado o conteúdo da
lei) a igualdade é no sentido de igualdade na própria lei, ressalvando o autor que apenas se
satisfaz a exigência constitucional por uma igualdade material.[83]

Eis, em breves linhas, a forma pela qual se tem compreendido a igualdade, enquanto princípio
jurídico.

Ao final, o que se espera ter restado sublinhado é que a igualdade jurídica está
constitucionalmente elevada a cânone de respeito à dignidade humana, fundamento da
República brasileira e princípio norteador da hermenêutica constitucional. A dignidade humana
é, em termos de Antunes Rocha, o único guia do princípio da igualdade.[84] O ser humano
deve ser sempre tratado de modo diferenciado em face da sua natureza racional.[85]

Frente à realidade brasileira, de conhecidas miséria e exclusão, permanece a construção de


uma sociedade livre, justa e solidária como objetivo fundamental da República.

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