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Eliézer dos Santos Magalhães Rogério Proença


Diagramação:
Todos os direitos reservados por:
Manoel Menezes
A. D. Santos Editora
Al. Júlia da Costa, 215 Acompanhamento Editorial:
80410-070 – Curitiba – Paraná – Brasil Priscila Laranjeira
+55(41)3207-8585 Impressão e acabamento:
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Magalhães, Eliézer dos Santos


Introdução à Demonologia – Uma análise teológica: bíblica, histórica e
crítica / – Curitiba: A.D. SANTOS EDITORA, 2016. 208 p.
ISBN – 978.85.7459-388-3
CDD – 261
1. Teologia Social Cristã (Atitudes do Cristianismo frente aos assuntos
seculares e às outras religiões) 2. Teocracia
1ª Edição: Julho / 2016

Proibida a reprodução total ou parcial,


por quaisquer meios a não ser em citações breves,
com indicação da fonte.

Edição e Distribuição:
Agradecimentos

A realização deste trabalho só foi possível porque pesso-


as investiram e continuam a investir em minha vida.
Quero reconhecer a importância de alguns desses aqui.
Primeiro, e mais importante, agradeço a Deus pela salva-
ção em Cristo Jesus, que pela sua graça me alcançou. A Ele
toda a glória, honra e poder!
Agradeço a minha esposa, Eridan, pelo apoio e com-
preensão, por estar sempre ao meu lado e me incentivar
no estudo e no ministério. Ela sacrificou feriados, fins de
semana e muitas outras coisas para que eu pudesse com-
pletar o mestrado que me levou a escrever este conteúdo.
Ela é o perfume que alegra minha vida; a andorinha que
completa o meu verão. Sem ela ao meu lado eu não teria
conseguido escrever este material.
Agradeço, também, aos meus pais, Pr. Sérgio e Noé-
lia Magalhães, que me apresentaram a Cristo quando eu
era criança e incutiram a paixão por missões em meu cora-
ção. Seu estímulo foi primordial para que eu me entregas-
se à obra missionária. Sou grato por acreditarem no meu
potencial, enxergando em mim mais do que eu mesmo
conseguia enxergar.
Também destaco minha gratidão ao Pr. Paschoal
Piragine Junior, meu pastor e líder. Sou grato por inves-
tir em mim, me encorajando e desafiando. Agradeço por
confiar e oportunizar meu ministério e o mestrado que
iii
completei! Deus o usou inúmeras vezes para ministrar e
abençoar minha vida. Louvo a Deus pelo privilégio de
poder caminhar com ele.
Eliézer Magalhães

iv
Prefácio

O Assunto demonologia é vasto e complexo e, muitas


vezes, é deixado de lado pela maioria dos cristãos,
que ora refuta a existência dos demônios, ora credita a eles
tudo de mal que lhes acontece.
Com a seriedade que lhe é peculiar, Eliézer Maga-
lhães, apresenta Introdução à Demonologia – Uma análise
teológica: bíblica, histórica e crítica. O conteúdo é resultado
de ampla pesquisa e aborda entre outros aspectos a demo-
nologia para o século XXI; o panorama bíblico a respeito
da ação demoníaca; o panorama histórico da demonolo-
gia na igreja; libertação espiritual, além de temas gerais
relacionados ao assunto.
É relevante ressaltar que, ao longo da história, a
manifestação demoníaca é uma realidade, não apenas nas
narrativas bíblicas como na igreja atual.
Possessão demoníaca e libertação espiritual são temas
delicados e por vezes polêmicos, uma vez que o inimigo
de nossas almas usa suas estratégias para matar, roubar e
destruir , além de usá-las para confundir e amedrontar.
É preciso estarmos alertas e bem fundamentados para não
entrar no jogo do inimigo e o conhecimento oferecido
neste livro nos proporciona esclarecimentos sobre as coi-
sas reveladas pelo Senhor na área da demonologia. Pon-
tos controversos são esclarecidos e ferramentas úteis para
elucidar o tema são colocadas à disposição de todos os
v
que buscam auxílio no trato com as pessoas que procuram
ajuda nesta área.
É necessário deixar de lado posturas filosóficas pró-
prias da pós-modernidade que acatam e absorvem todas as
correntes, concepções e comportamentos e nos apegarmos
cada vez mais à Palavra de Deus, pois nela está a verdade
e sabemos que o conhecimento da verdade é libertador.
Nossa libertação tem a ver, necessariamente, com a acei-
tação da verdade de Cristo e obediência ao que Ele nos
orienta.
A Bíblia ensina sobre o pecado e a queda de Satanás,
mas não as razões desse fracasso, já que o Livro de Deus
não foi escrito para satisfazer a curiosidade do homem,
mas para revelar o Pai Celestial.
Como disse o autor: “o objetivo é estudar as coisas
reveladas, pois as ocultas pertencem a Deus”, então, bom
estudo e CREIA que o Senhor o direcionará.
Paschoal Piragine Jr.

vi
Sumário

Introdução .................................................................... 11
1. DEMONOLOGIA PARA O SÉCULO XXI ............13
1.1 O PARADIGMA DA COSMOVISÃO ............... 17
1.2 O PARADIGMA DA EPISTEMOLOGIA ......... 22

2. PANORAMA BÍBLICO A RESPEITO DA AÇÃO


DEMONÍACA ............................................................33
2.1 O PENTATEUCO .............................................. 34
2.1.1 Moisés ........................................................ 41
2.2 LIVROS HISTÓRICOS ..................................... 44
2.2.1 Saul e Davi.................................................. 44
2.2.2 Profeta Elias ................................................ 46
2.3 LIVROS POÉTICOS .......................................... 49
2.3.1 Jó ................................................................ 49
2.4 LIVROS PROFÉTICOS ..................................... 52
2.4.1 Profeta Isaías ............................................... 52
2.4.2 Profeta Ezequiel .......................................... 58
2.4.3 Profeta Daniel ............................................. 62
2.4.4 Profeta Zacarias........................................... 63
2.5 EVANGELHOS .................................................. 65
2.5.1 Jesus Cristo ................................................. 68
2.6 ATOS E EPÍSTOLAS APOSTÓLICAS .............. 76
vii
2.6.1 Apóstolo Pedro ........................................... 77
2.6.2 Apóstolo Paulo ........................................... 84
2.6.3 Apóstolo João.............................................. 87
2.6.4 No ministério de outros discípulos .............. 90
2.7 SÍNTESE DO PANORAMA BÍBLICO ............. 94

3. PANORAMA HISTÓRICO DA DEMONOLOGIA


NA IGREJA ................................................................97
3.1 SÉCULOS II A VI............................................... 98
3.1.1 Exorcismo como pré-requisito ao batismo ... 98
3.1.2 Justino Mártir ........................................... 101
3.1.3 Irineu ........................................................ 104
3.1.4 Tertuliano ................................................. 106
3.1.5 Orígenes ................................................... 108
3.2 SÉCULOS XVI A XVIII ................................... 112
3.2.1 Lutero ....................................................... 112
3.2.2 George Fox ............................................... 116
3.2.3 John Wesley .............................................. 117
3.3 SÉCULOS XIX A XX ........................................ 119
3.3.1 John Nevius .............................................. 121
3.4 SÍNTESE DO PANORAMA HISTÓRICO ..... 125

4. TEMAS GERAIS E ATUAIS RELACIONADOS ..127


4.1 SATANÁS E SUA HIERARQUIA
DEMONÍACA........................................................ 129
4.2 A DOUTRINA DO ENDEMONINHAMENTO
DO CRISTÃO ........................................................ 131
4.3 OS NOMES DOS DEMÔNIOS...................... 135

viii
4.4 ENTREVISTANDO DEMÔNIOS .................. 138
4.5 MALDIÇÃO HEREDITÁRIA ......................... 142
4.6 ESPÍRITOS TERRITORIAIS ........................... 148
4.7 O PROBLEMA DO SINCRETISMO .............. 152
4.7.1 Sincretismo na Bíblia ................................ 152
4.7.2 Entendendo o Sincretismo ....................... 157
4.7.3 Combatendo o Sincretismo ....................... 159
4.8 A FORMAÇÃO TEOLÓGICA PARA
BATALHA ESPIRITUAL........................................ 162
5. LIBERTAÇÃO ESPIRITUAL...............................163
5.1 O QUE É LIBERTAÇÃO ................................. 169
5.2 QUEM PRECISA DE LIBERTAÇÃO .............. 174
5.3 LIBERTAR-SE DO QUÊ? ................................ 176
5.4 CASOS ESPECIAIS .......................................... 179
5.4 LIBERTAÇÃO NA PRÁTICA .......................... 182

6. CONCLUSÃO .....................................................189
7. BIBLIOGRAFIA ..................................................195

ix
x
Introdução

D e todos os assuntos da Teologia, a demonologia é um


dos mais polêmicos e difíceis de lidar. Negligencia-
da por alguns e supervalorizada por outros, ela tem dividi-
do a Igreja de Cristo, gerando embates e dissensões que só
atrapalham o avanço do Reino de Deus. Assim como Júlio
Cesar tinha por estratégia “dividir para conquistar”, Sata-
nás parece operar da mesma maneira, dividindo e geran-
do desentendimento na Igreja a fim de manter o povo de
Deus longe de sua Missão.
Este livro é a adaptação e ampliação da tese de mes-
trado em estudos teológicos que concluí no Southeas-
tern Baptist Theological Seminary, nos Estados Unidos:
“A análise missiológica sobre cura e expulsão de demônios
e a sua correlação com a evangelização sadia”. Também é
resultado da prática de evangelização e aconselhamento
de pessoas sob opressão demoníaca no Brasil e em outras
nações da Ásia. A pesquisa e o tempo de experiência não
me tornaram especialista do assunto, apenas um aprendiz
um pouco mais consciente. Se há alguém especialista nes-
ta área, esta pessoa é Jesus.
Evidentemente que este livro não visa responder todas
as questões referentes ao assunto, até mesmo porque há
muito mais informações ocultas do que reveladas, e nosso
intento é estudar as reveladas. Afinal, as coisas reveladas
pertencem ao homem, e as ocultas a Deus (Dt 29.29).
11
12
1

DEMONOLOGIA PARA
O SÉCULO XXI

P ara muitos cristãos do século XXI, o diabo não existe.


Falar de demônios para estes é o mesmo que falar de
fadas. A Bíblia estaria errada ao narrar a interação de Sata-
nás no livro de Jó. Para eles Jesus era um filho de seu tem-
po, ignorante, enganado com a tola ideia de que alguém
pudesse ser possuído por um espírito maligno, quando na
verdade as pessoas sofriam de patologias psiquiátricas que
a ciência moderna teria desmistificado.
No cerne desta questão está a cosmovisão ociden-
tal , que deixou de ver a Bíblia como fonte de autoridade
1

máxima, enxergando os milagres como impossibilidades


lógicas, interpretando a realidade pelas lentes da ciência.
Enquanto os ateus declaram que a Bíblia não é a Palavra
de Deus (até por que para estes Ele não existe), alguns
cristãos começaram a tratá-la como um livro que apenas
contém a Palavra de Deus, mas que não é na sua integra-

1 Quando me refiro à “Cosmovisão Ocidental”, faço distinção entre ela e as cos-


movisões que não foram diretamente influenciadas pela formação filosófica
do ocidente. A cosmovisão ocidental foi intensamente influenciada pela filoso-
fia greco-romana, o renascimento, a reforma protestante e o iluminismo.

13
Introdução à Demonologia

lidade divinamente inspirada. Para estes cristãos, tornou-


-se fácil rejeitar porções inteiras das Escrituras que seriam
estranhas à sua cosmovisão. Já aqueles que preferiram se
entrincheirar na defesa da inspiração divina das Escritu-
ras, tiveram que aprender a lidar com as argumentações e
descobertas da ciência, mas ainda assim sofrendo conside-
rável influência por parte desta cosmovisão.
Arraigada no pensamento teológico, esta mentali-
dade vem de uma influência filosófica. Teólogos como
Schleiermacher, Eichhorn, Bauer e Bultmann ajudaram a
moldar esta Teologia, influenciados por pensadores como
David Hume, Immanuel Kant e Hegel2. Para esses, falar
de anjos, demônios e milagres tornou-se algo incompatível
com o homem moderno3. O mecanicismo de Descartes, o
evolucionismo histórico de Hegel e o anti-sobrenaturalis-
mo de Hume formaram o pano de fundo para a formação
da Teologia que invadiu inúmeros recantos teológicos a
partir do século XIX, e que até hoje se encontra em inú-
meras igrejas.
As mudanças que o Iluminismo trouxe para o pen-
samento filosófico e teológico, o sentimento anticlerical,
a instabilidade política europeia e o surgimento de novas
descobertas no campo da biologia, física e astronomia,
foram algumas das novidades que caracterizaram o iní-
cio do século XIX, levantando questões que demanda-
ram respostas da Teologia de seu tempo4. O Iluminismo
enraizara-se no pensamento moderno por meio de diver-

2 (CAIRNS, 2008, p. 446-448; GEISLER, 2002, p. 381, p. 473; HUME, 2004, p.


154; KANT, 1999, p. 89).
3 (HÄGGLUND, 1981, p. 351).
4 (GONZÁLEZ; ORLANDI, 2010, p. 227-230).

14
1. Demonologia para o Século XXI

sos filósofos dos séculos anteriores, como David Hume


(1711-1776), que atacou frontalmente a realidade de
milagres em seu livro “Investigação acerca do entendimen-
to humano”, instigando as pessoas a queimarem qualquer
livro que tivesse conteúdo religioso:
Quando percorremos as bibliotecas, persuadi-
dos destes princípios, que destruição deveríamos fazer?
Se examinarmos, por exemplo, um volume de teologia
ou de metafísica escolástica e indagarmos: contém algum
raciocínio abstrato acerca da quantidade ou número?
Não. Contém algum raciocínio experimental a respeito
das questões de fato e de existência? Não. Portanto, lan-
çai-o ao fogo, pois não contém senão sofismas e ilusões5.
Influenciado por Hume, Immanuel Kant (1724-
1804) lançou as bases do agnosticismo6, atribuindo à
Bíblia apenas valor moral, negando a possiblidade de se
conhecer verdadeiramente Deus, ou mesmo a alma7. Seu
anti-sobrenaturalismo influenciou diversos pensadores
posteriores8. Hegel (1770-1831), que contagiou a Teo-
logia com sua dialética evolucionista aplicada à história,
retratou Jesus como um ignorante e obscurantista9. Para
ele os milagres eram interpretações contextuais de pessoas
restritas à sua realidade cultural e histórica. Todos estes

5 (HUME, 2004, p. 154).


6 Agnosticismo provém das palavras gregas a (não), e gnosis (conhecimento). O
agnosticismo alega a impossibilidade de se conhecer algo (GEISLER, 2002, p.
15).
7 (KANT, 1999, p. 89).
8 (GEISLER, 2002, p. 473).
9 (Ibid., p. 381)

15
Introdução à Demonologia

princípios filosóficos influenciaram certos teólogos, como


Schleiermacher, Eichhorn, Bauer e Rudolph Bultmann10.
Bultmann (1884-1976) buscou desmistificar a Bíblia,
pois afirmava que a cosmovisão das Escrituras, que fala de
anjos, demônios, milagres e visões apocalípticas se torna-
ram incompatíveis com o homem moderno11. Wegner12,
que foi nitidamente influenciado por Bultmann e Hegel,
propõe, por exemplo, que Jesus não conhecia as explica-
ções científicas para as enfermidades e distúrbios psiquiá-
tricos, pois acreditava na existência de demônios. Ele ain-
da levanta uma hipótese, de que talvez Jesus conhecesse
as causas psiquiátricas, e que não acreditava na existência
de demônios. Afirma que provavelmente Ele tratava as
pessoas como endemoninhadas, sabendo que na verdade
estavam psiquicamente enfermas. Em vez de Jesus explicar
os distúrbios psíquicos, sabendo que não seria entendido,
realizava terapia utilizando jargões de exorcismo de sua
época13. Wegner insinua haver erro na narrativa bíblica,
além de ignorância em Jesus.
Este é o espírito cético e anti-sobrenaturalista que
invadiu as igrejas e missões em todo o mundo nos séculos
XIX e XX. Essa Teologia se vê como evoluída, moderna,
avaliando a cosmovisão bíblica como primitiva e enalte-
cendo as explicações racionalistas da filosofia e da ciência.
Neste ponto é importante destacar que este livro leva
em consideração que a Bíblia é a Palavra de Deus, e que
não apenas contém a sua Palavra. Afinal, “toda a Escritura
10 (CAIRNS, 2008, p. 446-448).
11 (HÄGGLUND, 1981, p. 351).
12 (WEGNER, 2003, p. 98),
13 (Ibid., p.103).

16
1. Demonologia para o Século XXI

é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreen-


são, para a correção e para a instrução na justiça, para que
o homem de Deus seja apto e plenamente preparado para
toda boa obra” (2 Tm 3.16). Negar as Escrituras está no
cerne das ideias geradas pelos pensadores citados anterior-
mente, no entanto, não é este o caminho que pegaremos.

1.1 O PARADIGMA DA COSMOVISÃO

Paul Hiebert, respeitado antropólogo e missioná-


rio cristão do século XX, escreveu um artigo intitulado:
“A Falha do Meio Excluído”,14 onde afirma haver um
“ponto cego” na cosmovisão cristã do Ocidente. Ele alega
que a mentalidade ocidental foi influenciada pela filosofia
platônica e cartesiana que separa o mundo físico do espi-
ritual, ignorando a dimensão existente entre os dois, inti-
tulando-o de “meio excluído”15. Esta “cegueira” faz com
que muitos missionários ocidentais rejeitem aspectos da
dimensão espiritual, tornando-se, na verdade, uma “força
de secularização”, que ao invés de reivindicar o poder de
Cristo em situações de interação com o reino das trevas,
opta por negar a existência de demônios.
Hiebert foi missionário na Índia e lá se deparou com
questões relacionadas a espíritos, fantasmas e alma dos
animais, pensando que eram assuntos mitológicos, fruto
da imaginação popular. Com o tempo compreendeu que a
sua postura era parte de sua própria cegueira cultural, pro-
duzida por sua cosmovisão ocidental, resultado de uma

14 (HIEBERT,1982).
15 (Ibid., p. 43-44)

17
Introdução à Demonologia

filosofia platônica e cartesiana. Nessa sua percepção, disse


ele, de um lado ficava a dimensão do mundo físico, regida
pela ciência e do outro a espiritual, regida pela religião.
Foi então que enxergou o meio excluído, uma dimensão
entre as duas, negligenciada por missionários ocidentais.
Deve ser evidente porque muitos missionários trei-
nados no Ocidente não tinham respostas para os proble-
mas do meio excluído – eles normalmente nem sequer
o viam. Quando as pessoas tribais falavam do medo de
espíritos malignos, eles negavam a existência dos espíri-
tos, em vez de reivindicar o poder de Cristo sobre eles
(HIEBERT,1982, p. 44).
Hiebert alerta para o perigo de se interpretar o mun-
do espiritual através da lente de sua própria cultura, seja
esta naturalista, tribal ou indo-europeia16. Contudo, pare-
ce que Hiebert também enxerga as culturas e a cosmo-
visão bíblica através de sua própria lente cultural. Ainda
que ele admita haver um vácuo na cosmovisão naturalista,
sua solução ainda soa cartesiana e ocidental. Ele pode não
mais separar a realidade de forma dicotômica, estando de
um lado o mundo físico e do outro o espiritual, mas ago-
ra o faz de maneira tricotômica, inserindo o conceito do
“meio excluído”. Sua solução soa ainda mais cartesiana,
pois divide a realidade no maior número de partes possí-
veis17. O próprio fato de usar o termo “sobrenatural” em
seu texto, em contraposição ao “natural” já é prova de que
possui uma cosmovisão cartesiana e que continua a sepa-
rar o natural do espiritual18.
16 (HIEBERT, 2000, p. 119).
17 (DESCARTES, 1999, p. 49).
18 (HIEBERT, Op. Cit., p. 115; MULLER, 2012, p. 185).

18
1. Demonologia para o Século XXI

Alguns estudiosos têm chamado a atenção para a


falha que a cosmovisão cartesiana oferece, propondo um
novo paradigma, como faz o filósofo Fritjof Capra. Ele
propõe que tudo no mundo é conectado: a política, a eco-
nomia, a biologia, a física e a psicologia. Toda a realidade
faz parte de um único sistema, não sendo possível decifrar
as partes sem levar em conta o todo.
Vivemos hoje num mundo globalmente interliga-
do, no qual os fenômenos biológicos, psicológicos, sociais
e ambientais são todos interdependentes. Para descrever
esse mundo apropriadamente, necessitamos de uma pers-
pectiva ecológica que a visão de mundo cartesiana não
nos oferece. Precisamos, pois, de um novo ‘paradigma’ –
uma nova visão da realidade, uma mudança fundamental
em nossos pensamentos, percepções e valores19.
Talvez este paradigma proposto por Capra seja mais
coerente com a cosmovisão bíblica20. Afinal, as Escrituras
parecem realmente enxergar os acontecimentos ali narra-
dos como se tudo estivesse interligado. Mundo natural e
espiritual se sobrepõem inúmeras vezes, tornando a tarefa
de separar os dois, algo praticamente impossível de fazer.
A Bíblia parece não diferenciar o que pertence ao campo
da física, biologia, religião ou política. Tudo é sempre tra-
tado como espiritual.
Uma cosmovisão que compartimentaliza a realidade,
como a cartesiana, tende a separar o que pertence ao cam-
po da medicina daquilo que compete ao campo da física

19 (CAPRA, 1982, p. 14).


20 Refiro-me apenas à cosmovisão proposta por Capra. Não estou aqui declaran-
do concordar com toda a sua filosofia. Há várias conclusões de seu pensamen-
to que são perigosas e anti-bíblicas.

19
Introdução à Demonologia

ou da religião. Para estes, se algo possui uma explicação


científica, obviamente não terá uma espiritual. Para uma
cosmovisão holística, pelo contrário, tudo pode ter uma
explicação espiritual ao mesmo tempo em que tem uma
científica21.
A cultura de um povo é subdividida em diversas
camadas, onde a mais profunda é o que chamamos de
cosmovisão22. Ela é o coração da cultura, responsável por
sistematizar e interpretar a realidade física e espiritual do
mundo23. Ou seja, a cosmovisão forma a cultura, e vice-
-versa. Possivelmente seja aqui onde reside o grande pro-
blema da hermenêutica realizada por cristãos, teólogos e
missionários do século XXI, que estão inseridos em uma
cultura cuja cosmovisão é tão distante daquela dos perso-
nagens bíblicos.
Lemos a Bíblia com a lente de nossa própria cultura,
e dificilmente conseguimos sequer perceber que estamos
utilizando tal lente. Não conseguimos (ou não queremos),
fazer o esforço de nos transportar para a cultura do povo
cuja história é relatada na Bíblia, valendo-se da lente que
eles utilizavam. Ainda assim, se o fazemos, é apenas para
conhecer em termos cognitivos a maneira como pensa-
vam e criam, com a finalidade de analisá-los, mas nunca
assimilando sua cosmovisão. Normalmente a cosmovisão
cristã ocidental ignora, ou racionaliza textos bíblicos, onde
aparecem personagens angelicais, demoníacos, ou eventos
21 Não quero confundir cosmovisão holística com animista, que embora tenham
características similares, são bem distintas. A animista sempre busca uma expli-
cação espiritual para algo do mundo material, normalmente associada aos
espíritos (Ibid., p.81). A cosmovisão holística, contudo, pode ou não encontrar
uma razão espiritual.
22 (NICHOLLS, 2013, p. 13).
23 (MULLER, 2013, p. 137).

20
1. Demonologia para o Século XXI

sobrenaturais. Como ela não consegue encontrar dados


empíricos que justifiquem a crença na oração, tampouco
na existência de anjos e demônios, ela não consegue crer.
O que ocorre é a sobreposição da cultura do leitor sobre a
“atrasada” cultura presente na Bíblia.
Bruce Nicholls ajuda a lançar luz sobre a questão
quando introduz o conceito de supracultura, que é cons-
tituída por elementos que estão acima de toda e qualquer
cultura humana:
Ao usarmos o termo “supracultural”, referimo-nos
a fenômenos culturais relacionados a crenças e compor-
tamentos que têm origem fora da cultura humana. Rea-
lidades de âmbito espiritual, como Deus e seu reino e
Satanás e seu reino, são suposições aceitas pelos escritores
bíblicos. Argumentos apologéticos em defesa da existên-
cia de Deus e de Satanás podem, na melhor das hipóte-
ses, confirmar mais do que comprovar sua realidade. Em
última análise, a crença na supracultura é um passo de fé
(Hb 11.6)24.
Definir a cultura bíblica como supracultural exige fé.
Um cristão verdadeiro precisa valer-se dos óculos bíbli-
cos para ler a Bíblia, deixando de lado seus pré-conceitos
derivados de sua própria cosmovisão. A fé é o elemento
fundamental do cristianismo e também abrange crer na
mesma cosmovisão que Jesus e os apóstolos tinham.
Nicholls salienta que uma das fontes na formação
das culturas é a demoníaca, pois “o mundo inteiro jaz no
Maligno”25. O mundo não é um sistema fechado e for-

24 (NICHOLLS, 2013, p. 15-16).


25 (1 Jo 5.19; Ibid., p. 17-18).

21
Introdução à Demonologia

mado, diz ele, mas sim a “arena de uma batalha entre o


reino de Deus e o reino de Satanás”. A vitória decisiva
deste embate cósmico foi conquistada na cruz, mas ainda
está em processo de concretização na história e na cultura
humana26.

1.2 O PARADIGMA DA
EPISTEMOLOGIA

Epistemologia é “o estudo do conhecimento humano


ou de como a mente alcança e usa o conhecimento a fim
de determinar a verdade”27. Como definimos o que é ou
não verdade depende da nossa epistemologia. Por exem-
plo, dizer que demônios existem é considerado falso por
aqueles que usam a ciência como única fonte epistemoló-
gica. Afirmar que anjos e demônios existem é verdadeiro
para aqueles que têm a Bíblia como fonte epistemológica
principal.
Existem várias fontes epistemológicas influenciando
a Igreja do século XXI, e que afetam diretamente a Teolo-
gia atual (e ainda mais intensamente a demonologia). São
as diferentes fontes epistemológicas que têm gerado tan-
ta discordância quanto à demonologia. Para um melhor
entendimento da questão, vamos fazer um rápido estudo
da epistemologia cristã protestante.
A epistemologia da Reforma foi gerada no calor do
Humanismo e do Renascimento, onde os reformadores se
voltaram às fontes originais bíblicas, destacando o princí-

26 (NICHOLLS, 2013, p. 18; SHEDD, 1993, p. 116).


27 (HORTON, 2003, p. 789).

22
1. Demonologia para o Século XXI

pio da Sola Scriptura28. A Bíblia tornou-se a única fonte


epistemológica infalível, deixando para trás toda e qual-
quer doutrina que não fosse encontrada nela29. Maia colo-
ca muito bem a questão:
A Palavra de Deus oferece-nos o escopo de nosso
pensar e agir. Através dela poderemos ter real visão de
Deus, de nós mesmos e do mundo. Portanto, uma cos-
movisão reformada é uma visão que se esforça por inter-
pretar a chamada realidade pela ótica das Escrituras. Sem
as Escrituras permanecemos míopes para distinguir as
particularidades do real, tendo uma epistemologia des-
focada30.
Esta é a epistemologia que moldou a teologia protes-
tante, pois enfatiza a centralidade e infalibilidade bíblica.
Não significa que a Sola Scriptura tenha sido elaborada
com a intenção de rejeitar tudo o que não estivesse nas
Escrituras, mas de simplesmente assumir que apenas o
que está na Bíblia é infalível31. Lutero e Calvino indis-
cutivelmente tinham em alta consideração outras fontes,
como os credos: Apostólico, de Nicéia e de Calcedônia.
Com o advento do pentecostalismo uma nova epis-
temologia parece ter surgido. Certo empirismo teológico,
onde a experiência espiritual também passou a ser enfati-
zada32. Mas não se trata tão somente de uma experiência
qualquer, pois agora, segundo a doutrina pentecostal, sur-
ge o próprio Espírito Santo falando através de profecias,
28 (CAIRNS, 2008, p. 254).
29 (MCGRATH, 2005, p. 105).
30 (MAIA, 2007, p. 200).
31 (Ibid., p. 42).
32 (OLIVERIO, 2012, p. 56).

23
Introdução à Demonologia

línguas estranhas, interpretações de línguas, sonhos, visões


e outros tipos de manifestações espirituais. Não vou entrar
no mérito da questão pentecostal aqui, mas o fato é que o
pentecostalismo inseriu outra fonte epistemológica para o
cristão além da Bíblia: a experiência espiritual.
Embora haja grupos anteriores que também ressal-
tavam a experiência espiritual quase da mesma maneira,
como os “quacres”, que compreendiam a voz do Espírito
no coração do cristão como fonte de luz interior33, foi no
pentecostalismo que esta epistemologia parece ter se esta-
belecido. O teólogo pentecostal Stanley Horton chega a
acusar as outras teologias, conservadora e liberal, de serem
racionalistas:
Infelizmente os ocidentais, tanto os conservadores
quanto os liberais, sustentam uma epistemologia pri-
mariamente racional, inadequada para os pentecostais.
O mundo da Bíblia não é aquele do racionalista, pois
aquele reconhece o sobrenatural e as experiências sobre-
naturais outorgadas por Deus34.
Horton afirma que o pentecostalismo sempre se
esforçou para manter o equilíbrio entre as fontes bíblicas
e a experiência religiosa, manifestada em meio aos dons e
revelações pessoais35. Assim, é implícita a dupla epistemo-
logia pentecostal, racionalista (Bíblia como fonte racio-
nal), e empirista (Espírito como fonte experiencial).
Na teologia pentecostal, a cura física é tida como par-
te integrante da salvação, onde o ser humano talvez seja

33 (CAIRNS, 2008, p. 369).


34 (HORTON, 2003, p. 663).
35 (Ibid., p. 26).

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1. Demonologia para o Século XXI

visto de maneira mais holística36. Para eles, o termo “sal-


vação (soteria) refere-se tanto à salvação quanto à cura”37.
É neste contexto que entra a expulsão de demônios, que é
vista como um tipo de cura física, portanto, também parte
da salvação38. Veja o que Horton diz a respeito da cura:
Dizer que Isaías 53.5 e 1 Pedro 2.24 falam exclusi-
vamente de cura espiritual ou da salvação da alma, e não
de cura física, é estabelecer uma dicotomia estranha entre
as dimensões espiritual e física da existência humana,
dicotomia esta que as Escrituras não justificam39.
Quem sabe seja por causa dessa compreensão, que a
cura divina tenha tido tanta importância nas campanhas
evangelísticas pentecostais40. Cruzadas de cura que atra-
íam multidões e evangelistas invadindo o rádio e a tele-
visão foram características típicas, a partir do advento da
chamada segunda onda41 pentecostal (1950-1977). Foi a
partir da segunda onda que parece ter crescido também
o interesse pelo tema da batalha espiritual, gerando uma
busca frenética pelo assunto. Rudy Girón, missiólogo
pentecostal, chama a atenção a este respeito:
Em anos relativamente recentes, outros autores,
especialmente escritores não pentecostais, têm se familia-
rizado com os assuntos de batalha espiritual ou têm expe-
rimentado um despertar espiritual em seus ministérios.
Intrigados por suas experiências, esses autores têm ini-
36 (HORTON, 2003, p. 512-514).
37 (Ibid., p. 515).
38 (Ibid., p. 510)
39 (HORTON, Op. Cit., p. 514).
40 (MARIANO, 1999, p. 30).
41 Para uma melhor compreensão a respeito das Ondas Pentecostais, leia (BLED-
SOE, 2012).

25
Introdução à Demonologia

ciado um trabalho teórico e então escrevem sobre bata-


lhas espirituais. Fazendo uso da psicologia, antropologia,
sociologia e algumas experiências práticas em suas pesqui-
sas, estão adquirindo novo conhecimento e teorias acerca
da batalha espiritual. Para os pentecostais tradicionais,
muitas destas revelações mais novas são bastante comuns.
Ao mesmo tempo, alguns deles chegam a ser exagerados.
Nós, pentecostais, estamos impressionados com o quanto
estes praticantes espirituais mais novos estão habilitados
a ‘teorizar’ acerca daquilo que temos praticado por déca-
das! Até recentemente, pentecostais tradicionais jamais
tinham demonstrado interesse, oportunidade ou preten-
são de escrever sobre suas próprias experiências. Isto não
significa que não entendam do assunto. Mas, pelo con-
trário, sabem através da experiência o que significa a bata-
lha espiritual contra as forças das trevas e também acerca
da libertação sobrenatural através do poder de Deus em
nosso mundo e ministério42.
O alerta é pertinente, pois ao mesmo tempo em que
enfatiza a importância do tema, também deixa claro que
muitas pessoas estão exagerando. Autores como C. Peter
Wagner e T.L. Osborn fazem parte deste grupo de escri-
tores que sistematizaram os temas de batalha espiritual e
cura divina, e que influenciaram as igrejas chamadas neo-
pentecostais43. Osborn, por exemplo, ensina que Deus
deseja curar todos, e que o crente não precisa mais ficar
enfermo44. Além disso, ensina que toda doença é causada

42 (GIRÓN apud TAYLOR, 2001, p. 737).


43 (BLEDSOE, 2012, p. 55).
44 (OSBORN, 2000, p. 17, p. 233).

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1. Demonologia para o Século XXI

por demônios, possuindo uma “vida maligna”45. Ele pro-


nuncia:
Os médicos podem dizer que é artrite, mas a verda-
deira causa é um espírito que prende. Os médicos pode-
riam dizer que se trata de cordas vocais não desenvolvidas
e nervos do ouvido mortos, mas o verdadeiro problema é
um espírito surdo e mudo que se deve expelir em nome
de Jesus. Os especialistas podem dizer que é glaucoma ou
catarata, mas Jesus disse que era um demônio cego46.
As igrejas da terceira onda, chamadas de neopente-
costais, motivadas por autores como Osborn, Peter Wag-
ner e Charles Kraft, colocaram a expulsão de demônios
bem no centro da pregação, substituindo as ênfases refor-
mada e pentecostal do passado47. É deste grupo que surge
a terceira fonte epistemológica que é necessária destacar
aqui.
Vários debates calorosos têm ocorrido, onde, de
um lado, os chamados adeptos da batalha espiritual são
acusados de se corromperem com doutrinas animistas48.
Do outro, asseguram que o problema real é a cosmovisão
naturalista ocidental dos seus acusadores, que os métodos
daqueles são ineficazes49.
Esses teólogos, Wagner e Kraft principalmente,
foram influenciados por aspectos da antropologia mis-
sionária, bem como do pentecostalismo, ainda que não

45 (OSBORN, 2000, p. 203).


46 (Ibid., p. 207).
47 (BLEDSOE, 2012, p. 42).
48 (PRIEST; CAMPBELL; MULLEN, 1995, p. 11).
49 (KRAFT, 1995, p. 92-93).

27
Introdução à Demonologia

sejam provenientes de igrejas pentecostais50. O debate a


respeito do assunto tem levantado tópicos polêmicos, com
pouquíssimo consenso.
A maior polêmica por trás desta nova teologia é a sua
epistemologia. Priest, Campbell e Mullen51 acusam Char-
les Kraft e Peter Wagner de fundamentarem suas teorias
em informações retiradas de entrevistas feitas com demô-
nios. Segundo eles, muitas de suas doutrinas receberam
fundamentação destas entrevistas.
Charles Kraft52 confirma, asseverando que realmen-
te entrevista os demônios, e justifica seu procedimento.
Segundo ele os demônios são mentirosos, porém, uma
pessoa com a autoridade do Espírito Santo pode forçá-los
a falar a verdade. O conhecimento adquirido ajudaria na
identificação dos pecados que precisam ser abandonados,
pois muitas vezes foram esquecidos pela pessoa53. Kraft
defende a eficácia do método apontando para as centenas
de pessoas que ajudou a libertar.
O assunto referente à entrevista a demônios será tra-
tado em outro capítulo, mas por enquanto basta esclarecer
que esta é a prática deste grupo, e que apresenta uma nova
epistemologia, obviamente perigosa, diferenciando-se da
que é utilizada por todas as outras igrejas. Para os con-
servadores a fonte epistemológica é apenas a Bíblia (Sola
Scriptura). Para os pentecostais, além da Bíblia, teria a
experiência com o Espírito Santo. Agora, para os adeptos
desta nova teologia, inclui-se a fonte demoníaca.
50 (KRAFT, 1995, p. 91).
51 (PRIEST; CAMPBELL; MULLEN, 1995, p. 26)
52 (KRAFT, Op. Cit., p. 117)
53 (Ibid., p. 118).

28
1. Demonologia para o Século XXI

A partir desta terceira fonte epistemológica surge


uma série de ensinos perigosos dentro das igrejas. Ensinos
animistas, transmitidos pelos demônios em entrevistas fei-
tas em processos de libertação. Falaremos mais tarde sobre
isso.
As igrejas que sofreram influência desta teologia pas-
saram a colocar o tema da batalha espiritual no cerne de
sua cosmovisão. Se fosse a batalha espiritual revelada na
Bíblia, não teria problema, mas estas igrejas passaram a
misturar ensinamentos bíblicos com os informados por
demônios.
Este é o caso de algumas denominações, que passa-
ram a enxergar o espiritismo e as religiões afro-brasileiras
como inimigas54. Esta “guerra santa” deixou de ser ape-
nas contra principados e potestades, passando também
a ser contra religiões e instituições, agredidas de diversas
maneiras, como no episódio do “chute na santa”55.
Os exageros que estas igrejas passaram a praticar se
encaixam exatamente naquele alerta feito por Hiebert56,
onde o cristianismo se torna uma nova forma de magia.
Uma das mais importantes igrejas influenciadas por esta
teologia no Brasil, usa diversos elementos do paganismo
para controlar o mundo repleto de demônios, onde a pró-
pria liderança da igreja assume certo papel mediúnico57.
A mistura de elementos mágicos, como o sal grosso, a ora-
ção em dias e lugares específicos, o uso certo das palavras,
o poder associado ao indivíduo, evidenciam o sincretismo
54 (KRAFT, 1995, p. 43).
55 (BLEDSOE, 2012, p. 146).
56 (HIEBERT, 1982, p. 46).
57 (BLEDSOE, Op. Cit., p. 137)

29
Introdução à Demonologia

diabólico gerado no meio destas igrejas. Talvez o mais coe-


rente fosse chamar, não mais de neopentecostalismo, mas
sim de neopaganismo cristão, pois estas se distanciaram
consideravelmente do cristianismo bíblico58.
Lidar com a questão demonológica na Igreja do sécu-
lo XXI é lidar com extremos. Há crentes que não creem
na existência de demônios, e crentes que veem demônios
em tudo. Alguns ignoram a batalha espiritual, e outros a
entronizaram na igreja. Talvez uma postura seja conse-
quência da outra, embora não podemos saber, senão ape-
nas especular.
Devemos destacar o fato de que a fonte epistemoló-
gica está intimamente ligada à cosmovisão do indivíduo.
Se, como cristãos, desejamos ter a cosmovisão bíblica,
precisamos então utilizar a mesma epistemologia bíblica.
As mesmas fontes epistemológicas utilizadas por Jesus e os
apóstolos, e que ajudam a moldar a cosmovisão bíblica,
devem também moldar a nossa.
Conciliar a realidade natural com a espiritual parece
ser tão paradigmático para a teologia, quanto harmoni-
zar predestinação com livre arbítrio. Ou ainda explicar
a Trindade, onde o Pai se relaciona com o Filho em seu
ministério aqui na Terra, ao mesmo tempo em que os dois
são a mesma pessoa. Quem negar que este é um dos con-
ceitos teológicos mais complexos de se entender é por-
que provavelmente está simplificando demais a questão.
Da mesma forma, definir onde começa o mundo físico e
termina o espiritual parece ser uma tarefa tão impossível
quanto definir o próprio Deus. Por muito tempo a Igreja

58 (BLEDSOE, 2012, p. 163-166).

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1. Demonologia para o Século XXI

tem se dividido nesses assuntos, separando calvinistas de


arminianos, tradicionais de pentecostais, que se polarizam
em matérias difíceis de encontrar consenso, a não ser pela
fé. Talvez a Demonologia seja um desses assuntos, e que
requer humildade de ambos os lados.
O ponto de concordância entre os diferentes grupos
é a meta missionária, que visa levar o evangelho para todo
o mundo. Se as igrejas, denominações e agências missio-
nárias pudessem discutir os temas complexos relativos à
expulsão de demônios, sem presunção teológica ou cul-
tural, talvez assim houvesse crescimento. Afinal, uma das
artimanhas de Satanás é jogar uns contra os outros, de
maneira que a Igreja não consiga enfrentá-lo como con-
vém.

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