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JEAN LUCAS DE CAMPOS SILVA

A DEMONIZAÇÃO DA MULHER:

DAS REPRESENTAÇÕES EM DISCURSOS CATÓLICOS À


ANÁLISE DAS BRUXAS NAS OBRAS DE HANS BALDÜNG
GRIEN

Taubaté – SP

2015
JEAN LUCAS DE CAMPOS SILVA

A DEMONIZAÇÃO DA MULHER:

DAS REPRESENTAÇÕES EM DISCÜRSOS CATÓLICOS À


ANÁLISE DAS BRUXAS NAS OBRAS DE HANS BALDUNG
GRIEN

Monografia apresentada ao Departamento de


Ciências Sociais e Letras da Universidade de
Taubaté, como trabalho de conclusão do
curso de História, sob orientação da Profa.
Dra. Suzana Lopes Salgado Ribeiro.

Taubaté – SP
2015
Jean Lucas de Campos Silva

A DEMONIZAÇÃO DA MULHER:
DO PROCESSO DE REPRESENTAÇÕES E DISCURSOS
CATÓLICOS À ANÁLISE PCTÓRICA DAS BRUXAS DE HANS
BALDUNG GRIEN

UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ, TAUBATÉ, SP


Data: ________________________________________
Resultado: _____________________________________

BANCA EXAMINADORA

Prof: __________________________________________
Assinatura: _____________________________________

Prof: __________________________________________
Assinatura: _____________________________________

Prof: __________________________________________
Assinatura: _____________________________________
Para Pedro, Divina e Manu,
alicerces da minha vida.
AGRADECIMENTOS

Agradeço em primeiro lugar a Deus. Agradeço à minha família, base de todo


meu caminho até aqui: meus pais Pedro e Divina e minha irmã Emanoelli. Também,
agradeço à aqueles que considero parte da minha família e que tanto me auxiliaram:
Neide, Sidney, Rafael e Guilherme.

Dentro da caminhada que me aventurei na Universidade conheci quem muito me


ajudou para a construção deste trabalho, minha namorada e parceira de todas as horas
Carla Nienkoetter e seus pais: Eliziani e José Henrique. Também dentro desta academia,
tive a oportunidade de conhecer colegas e fazer amizades como os preciosos Bruno,
Carlos, Daniel, e Stéfan, bem como fora da Universidade meus queridos amigos Eriseu,
Lucas, Nislene, Larissa e Ismail.

Na carreira que estou me iniciando, certos Professores que além de me


orientarem, foram exemplo para mim e que inspiraram de certa forma na minha escolha,
não apenas de profissão, mas de caminho de vida.

Professora e Orientadora Suzana Ribeiro, sua paciência e dedicação foram


essenciais a este trabalho. Professora Tânia de Cássia, por ter me ensinado os valores
que vão além da profissão Docente; Professor Daniel Messias dos Santos, por ter me
mostrado o fascínio da disciplina de História desde o Ensino Médio; Professor Marcelo
Martins, por me ensinar exemplarmente o que é ser um ótimo Professor; Professora
Fátima Toledo, por ter me inspirado com sua erudição ímpar; Professora Rachel Abdala
por ter me dado apoio em toda a construção desta etapa acadêmica de minha vida;
Professora Silvia Liebel por ter dedicado seu tempo com orientações à distância;
Professor Pedro Moura da Silva, que me ensinou a buscar estar sempre entre os
melhores.

Por fim, agradeço aos integrantes do GELP encabeçados pelo Professor Luzimar
Gouvêa pela correção ortográfica desta monografia, a dedicação de vocês foi muito
importante nos momentos finais e decisivos da entrega deste trabalho.

.
O que sabemos das Mulheres? [...] Sabia bem que não veria
nada de seu rosto, de seus gestos, de sua maneira de dançar, de
rir, mas esperava perceber alguns aspectos de sua conduta, o que
pensavam de si próprias, do mundo e dos homens. Não entrevi
mais que sombras, vacilantes, inapreensíveis. Nenhuma de suas
palavras me chegou diretamente. Todos os discursos que, em
seu tempo, lhes foram atribuídos, são masculinos.

(GEORGES DUBY)
RESUMO

Neste trabalho analisa-se o tema do Feminino sob o olhar da Igreja Católica em


um largo período que precede o Cristianismo e alcança o século XVI. Trata-se de um
exame processual, de cunho bibliográfico e análise de Imagens, que refletiu sobre como
a mulher foi abstraída à submissão masculina, depois pensada como mais propícia a
interagir com o diabo e, por fim, transformada em bruxa. Foram estudados os
argumentos discursados pelos clérigos desde as raízes da Cristandade até o fenômeno
Inquisitorial da caça às Bruxas. Temáticas como a da sexualidade, religião e imaginário
coletivo foram imprescindíveis para tal reflexão. Por fim, abordamos como recorte
temático, obras que ilustraram bruxas em Sabás do artista alemão Hans Baldüng Grien
no século XVI, contextualizando com os símbolos na pintura e que ajudaram a
estereotipar o perfil destas mulheres condenadas. Os resultados obtidos demonstraram o
quanto a hostilidade à mulher estava impregnada nos discursos e representações da
Igreja, mesmo naqueles que são considerados Santos atualmente, como Santo
Agostinho, São Tomás de Aquino ou Santo Ambrósio. Percebeu-se também que a
crença em uma religião cada vez mais una na Europa, com a expansão da Instituição
Cristã, desencadeou alterações no imaginário social e, consequentemente, nos seus
medos e angústias. A conclusão na verdade sugere uma nova questão: visto que a
representação da mulher mudou ao passar dos séculos, devido os mais variados
discursos, em especial aqui, os misóginos, podemos questionar o que, atualmente, temos
de resquícios desta herança de hostilidade à mulher.

Palavras chave: Bruxa; Demonização; Hans Baldüng Grien; Igreja Católica;


Mulher;
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................. 11

1. A DEMONIZAÇÃO DO FEMININO EM BRUXA COMO UM


PROCESSO HISTÓRICO: DA VISÃO CATÓLICA MEDIEVAL AO
SURTO DE BRUXARIA NA MODERNIDADE ........................................ 15

1.1 O Bem e o Mal e a questão da Culpabilidade na Idade Média: da


concepção Católica sobre tais princípios ao ápice de uma batalha contra o Maligno 15

1.2 O feminino inferiorizado: uma mentalidade de pessimismo à mulher ..... 23

1.2.1 Raízes Cristãs ........................................................................................ 23

1.2.2 O discurso clérigo e a Literatura ........................................................... 25

1.2.3 A domesticidade .................................................................................... 28

1.3 Mundo demonizado: um difícil panorama para mulheres ........................ 30

1.4 O sexo pecaminoso: o erotismo discriminado ao feminino ...................... 35

2. HOLOCAUSTO MISÓGINO: A CAÇA ÀS BRUXAS (SÉCULOS XIV-


XVI) E OS DISCURSOS NO MALLEUS MALEFICARUM ..................... 43

2.1 Para um estudo da caça às bruxas ............................................................. 43

2.2 Um panorama da caça às bruxas ............................................................... 44

2.3 O contexto social........................................................................................ 48

2.4 Espírito de angústia num mundo de perseguição às bruxas: Crença e pré-


condições...................................................................................................................... 54

2.5 A misoginia no discurso do Malleus Maleficarum .................................... 56

3. ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DAS BRUXAS NAS OBRAS DE


HANS BALDUNG GRIEN........................................................................... 59

3.1 Prelúdio..................................................................................................... 59
3.2 A representação da mulher nas imagens do século XVI .......................... 61
3.3 Análises das bruxas e sabás a partir das obras de Baldung ...................... 63
3.3.1 Die Hexen (1510) .................................................................................. 63
3.3.2 Three Witches e Departing for the Sabbat (1514) .................................. 79

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 88

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 89


LISTA DE FIGURAS

1. FIGURA 1: Die Hexen por Hans Baldung Grien, 1510 ........................................... 64


2. FIGURA 2: Martinho Lutero por Hans Baldüng Grien, 1520 ................................. 66
3. FIGURA 3: The Temptation of Saint Antony por Martin Schongauer, 1490 ........... 74
4. FIGURA 4: Three Witches por Hans Baldüng Grien ............................................... 79
5. FIGURA 5: Departing for the Sabbat por Hans Baldüng Grien, 1514 .................... 80
6. FIGURA 6: Lebre Jovem por Albrecht Dürer, 1502 ................................................ 81
LISTA DE TABELAS

1. TABELA 1: Sexo dos acusados de bruxaria .................................................... 52-53


2. TABELA 2 Idade dos acusados de bruxaria .......................................................... 86
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INTRODUÇÃO

Todos os discursos que, em seu tempo, lhes foram atribuídos, são masculinos.
(DUBY, G. 2001, p.167) A afirmação de Duby na conclusão de sua obra Eva e os
padres: Damas do século XII em referência às mulheres e, que fora reiterada na epígrafe
deste trabalho, sustenta esta análise. A leitura que se fez para esta monografia é aquela
que foi representada pelo homem em relação ao feminino em uma larga escala
periódica.
Pierre Bordieu refletiu que a dominação masculina é firmada sob o paradigma (e
frequentemente o modelo e o parâmetro) de toda dominação. (BOURDIEU, 2002,
p.176) Decorre desta ideia o estudo deste trabalho, o olhar crítico que se pode traçar nas
relações interligadas de quem oprime e de quem é oprimido, marginalizado e, neste
caso, a mulher.
O trabalho aborda, em suma, o ideário da transformação da representação da
mulher e uma agente propícia ao diabo, daí a demonização. Para tanto, isso envolve um
estudo que busca as raízes do pessimismo sexual e feminino por parte da Igreja
Católica, remontando os primeiros influentes desta religião e suas concepções sobre o
tema. Seguindo esta linha de raciocínio que culminou na caça às bruxas, adentramos na
análise de imagens e representação dos símbolos da bruxa procurando desconstruir seus
estereótipos.
O primeiro capítulo tem um caráter introdutório. São expostas, em uma análise
processual, as concepções pessimistas à mulher por parte da Igreja Católica. È destacada
a potencialização deste pessimismo, conforme as novas influências dos clérigos ao
passar dos séculos, aliada ao avanço do Poder da Igreja sobre a Europa e logo, suas
difusões sobre as outras culturas. Neste contexto, a ideia central da demonização da
mulher, ou seja, uma aproximação do feminino ao mal tem seus precedentes fixados
numa hostilidade enraizada desde o início da cristandade.
Portanto, antes de adentrarmos no mundo da demonização, acreditou-se
importante refletir sobre algumas premissas da Igreja Católica – detentora da única
verdade da maior parte do período analisado – para só então, decifrarmos os discursos
hostis que fixavam a mulher num plano de submissão ao homem. Para esta pesquisa a
leitura de Stuart Clark sobre os discursos eruditos em relação à mulher são
imprescindíveis.
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Destarte, num primeiro subcapítulo analisam-se os polos opostos entre o bem e o


mal. Tal base é refletida para que fiquem claras os elementos subsidiaram a ideia da
batalha contra o diabo e seus agentes, que serão enfatizadas na primeira metade do
segundo milênio, com a caçada aos hereges.
Neste mesmo contexto, é visto a questão da construção da culpabilidade do ser e
logo, a punição Divina de Agostinho. Foi realizada uma leitura de Duby em relação ao
Ano mil para embasar a citada intensificação do poder de difusão católico na virada do
milênio. Por fim a reflexão que Robert Muchembled propõe em Uma História do Diabo
acerca das tênues fronteiras entre o natural e o sobrenatural, sobretudo a partir do século
XIII foram aqui destacadas.
No segundo subcapítulo são mostrados os discursos sobre as mulheres que foram
construídos pelos pensadores mais influentes do início do cristianismo (séculos II- V),
citando Tertuliano, Cipriano, Ambrósio, Jerônimo e Agostinho com base nas leituras de
Joyce E. Salisbury. Também cabe neste momento destaque aos discursos literários que
compuseram o cenário da misoginia entre os doutos escritores, incluindo o clero. Após a
análise da religião nos discursos subversivos, é exposta uma breve conexão à
domesticidade da mulher.
No terceiro subcapítulo a demonização é o foco. Tendo perpassado pela
inferiorização, a mulher, será creditada uma cúmplice propícia dos planos do maligno,
num contexto em que emergia a figura do diabo pelos discursos inflamados das ordens
mendicantes do século XIII, enquanto a Inquisição propagava uma onda de
perseguições. Para tanto, fora utilizado as percepções de Jean Delumeau para entender a
ideia de processo na construção da malignidade feminina.
No quarto e último subcapítulo da primeira parte desta monografia, tratamos do
tema do sexo em relação a demonização da mulher. Neste contexto, a presença de Eva e
do pecado original nos discursos eclesiásticos se faz marcante. Tido como o maior
pecado, a relação sexual é explicada aqui como um fenômeno que recai sobre a natureza
própria da mulher.
As reflexões de Uta Ranke-Heinemann sobre o pessimismo sexual cristão,
inculcado na discriminação à mulher são aqui expostos, bem como o ideário de Jeffrey
Richards que em sua obra Sexo, desvio e danação proporcionou um entendimento
amplo do assunto.
No segundo Capítulo adentramos no ―universo‖ Inquisitorial da caça às bruxas.
Nos dois primeiros momentos desta divisão foi levantado um plano introdutório às
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discussões sobre a perseguição à estes hereges, para tanto, a leitura de Brian p. Levack
norteou este capítulo, ao passo que demonstra alguns conceitos primordiais do
fenômeno da histeria das bruxas na Europa.
O período que da caça às Bruxas é discutido por Historiadores como sendo um
fenômeno dos séculos XIV-XVII, contudo, neste trabalho não analisaremos o século
XVII. Pensou-se que o foco era tratar dos processos estabelecidos até o século do
recorte temático – as obras de Hans Baldüng Grien no século XVI.
Nos dois subcapítulos seguintes o destaque é para o espaço social em que a caça
incidiu, ou ainda, quais condições que foram necessária para que esta perseguição
conseguisse germinar e causar um surto de angústia a partir do século XIV. Neste
momento utilizo das leituras de Silvia Liebel e novamente de Levack, no qual constam
as pré-condições da histeria.
Dentro deste panorama da caça ás bruxas, uma obra destacou-se por sua
impregnada misoginia e que repercutiu em muitas regiões na Europa: o Malleus
Maleficarum. Este manual inseriu diversas questões com respostas sobre as atitudes
inquisitoriais e até sociais na lida contra as bruxas, desde como reconhecê-las à como
julgá-las. Neste último subcapítulo da segunda parte desta pesquisa reflete-se, portanto,
o teor hostil à mulher embutido neste manual.
No terceiro capítulo analisa-se o recorte deste trabalho: as obras de sabás e
bruxas do artista alemão Hans Baldüng Grien (1480-1545). O destaque desta análise
está inserido nos símbolos que as obras carregam, aspectos bestiais e morais são
evidenciados. Para contextualização do impacto das imagens na História utilizo das
concepções de Peter Burke e, seguidamente de Delumeau, para interpretar como a
mulher se insere nesta arte do século XVI.
Para a análise dos sabás expostos por Baldüng foi refletido sobre as descrições
de Carlo Ginzburg que detalha as características estereotipadas sobre as representações
das bruxas. Dentro deste veio representacional, tentou-se dialogar tal historicidade
embasada pelos citados autores, com os símbolos contidos nas obras analisadas.
Por fim, uma observação deve ser feita. Sabe-se que por outro lado, a imagem do
feminino também recebeu uma conotação longe dos olhares misóginos, sobretudo com
o culto Mariano do século XII, a promoção do amor cortês entre outras manifestações
que deram atenção à mulher. Todavia, o viés abordado aqui é especificamente sobre os
discursos hostis à esta personagem. É uma análise que demonstra as atitudes da Igreja
17

para tornar natural a submissão da mulher ao homem, inferiorizando-a e seguidamente


demonizando a sua figura ao relacioná-la, por exemplo, com Eva, a primeira a pecadora.
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1. A DEMONIZAÇÃO DO FEMININO EM BRUXA COMO


UM PROCESSO HISTÓRICO: DA VISÃO CATÓLICA MEDIEVAL
AO SURTO DE BRUXARIA MODERNO

Deus viu que a luz era boa, Deus separou a luz da treva.
(Gênesis 1, 4)

1.1 O Bem e o Mal e a questão da culpabilidade na Idade Média: da


concepção católica sobre tais princípios ao ápice de uma batalha contra o Maligno

Aa análises que serão feitas neste trabalho são referentes à repressão ao maligno
promovida pela Igreja Católica. Um forte sentimento da presença do Diabo e uma
batalha contra as forças das trevas preencheram bom período do Ocidente, sobretudo o
Medieval e início da Modernidade. Destacam-se os empenhos do alto clero, que detinha
os saberes dos escritos dos doutores Católicos que impulsionarem tal sentimento.
Portanto, como uma forma de introduzir o leitor ao tema, esta primeira parte tenta
buscar nas raízes Cristãs a ideia da culpabilização e logo, a legitimação da punição,
inserindo tudo isso no contexto da polarização entre o bem e o mal.
Partiremos da seguinte questão: De que ponto, ou ainda, de qual momento pode-
se começar a falar de um princípio de bem e mal, de uma separação ou não das duas
formas contrárias, e de uma batalha entre elas, pela Igreja Católica? Bem, esta é uma
pergunta complexa de se responder, porém vamos analisar tais conceitos iniciando pela
Idade Média justamente devido à ascensão da Instituição Católica.
Como escreve o historiador inglês Patrick Collinson em Puritan Character
(COLLINSON, 1988 apud CLARK, 2006, p.102,) deve-se levar em consideração que a
população Europeia da Medievalidade acreditava, sobretudo nas escrituras Bíblicas,
portanto, o seu imaginário era povoado por tais escrituras que eram lidas em missas e
discursadas nos sermões dos clérigos. A Bíblia, portanto, parte de um ponto inicial do
qual se pode tratar os opostos, pois foi ela a base para os pensadores eruditos neste
longo período.
Desde o início dos tempos, segundo a Bíblia, pode-se facilmente observar a
separação dos contrários pela mão de Deus, como a epígrafe colocada no início deste
capítulo: [...] a Luz da treva (A Bíblia. 1 Gênesis – 4). Giacomo Affinati D‘acuto, um
prior Dominicano, em 1602 afirmava que Desde a Queda [...] tudo no mundo teve de
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ser mantido em contrapeso com seu contrário. Todas as coisas têm agora qualidades
tanto negativas quanto positivas [...] (D‘ACUTO, 1602 apud CLARK, 2006, p.109).
A questão dos opostos na Bíblia é recorrente e aparece também em suas
personagens masculinas tais como, Caim e Abel, o Faraó e Abraão, os Filisteus e Isaac,
Esaú e Jacó, o Anticristo e o próprio Jesus Cristo (RAEMOND, 1597 apud CLARK,
2006, p.97). Mais tarde, já no novo testamento, Jesus irá contar a parábola do trigo e do
Joio, outra separação dos contrários.
Estas observações servem-nos como base para observar como a cultura do bem e
mal em oposição está enraizada no cerne da mentalidade católica, já que é narrada no
seu maior documento, a Bíblia. Não estamos aqui descartando as heranças Judaicas que
influenciaram a formulação católica sobre estes dois polos, contudo, vamos nos ater a
construção processual a partir da ascensão Cristã. Porém, a análise persiste em
questionar, agora não mais num caráter observatório, mas sim investigativo: como foi
levada e pensada a existência destes princípios de contrariedade Cristã?
Stuart Clark em sua extensa obra Pensando com Demônios traz em dois de seus
capítulos – Contrariedade e Inversão - uma discussão sobre este tema. Segundo Clark,
os estudos da religião contemporânea à Medievalidade esboçavam uma Necessidade de
apresentar uma razão dualista das imperfeições que degradavam o mundo [...] (2006,
P.77). Esta necessidade encarna os males terrenos ao Diabo e as perfeições naturais em
Deus, bem como aos espaços polarizados: Inferno e céu, Babilônia e Jerusalém Celeste.
Ao se tratar dos estudos de polos opostos dentro da religião, as ideias de Santo
Agostinho (354-430) se fazem necessárias, pois em parte considerável de sua vida
articulou-se aos estudos do maniqueísmo1. Suas influencias legaram aos séculos
seguintes vários ideários principalmente para Teólogos e Filósofos da Igreja, que
impulsionaram alguns dispositivos nas sociedades e na realeza como será explanado nos
capítulos seguintes.
Na obra de Clark, é ressaltada uma das principais ideias de Santo Agostinho, em
que é evidenciada a distinção, que ele fez boa parte de sua vida entre o bem e o mal
como elementos conflitantes no interior de cada homem que busca a salvação. O excerto
assim segue sob um argumento de certa necessidade do mal, e está inculcada na
intelectualidade tradicional Cristã. Para Agostinho, sem a perversidade, não haveria

1
O maniqueísmo é uma linha religiosa de origem Persa, no qual seus adeptos acreditavam existir uma
batalha universal entre o bem e o mal: O homem, preso por Satã, luta continuamente para se libertar das
trevas e readquirir a luz; [...] (RIBEIRO JÚNIOR, João. Pequena História das Heresias Medievais. São
Paulo: Papirus, 1989. p.30).
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vindicação de justiça, nem a resignação paciente para ser louvada. Segundo a lógica da
contrariedade, elas nem mesmo existiriam. (AGOSTINHO, 1947 apud 2006, p.78).
Este excerto requer certa atenção, pois apesar de Agostinho reforçar tal lógica,
não supõe que ele acreditava que, por qualquer questão que seja Deus tenha criado o
mal, na verdade é justamente ao contrário. Para o Teólogo, [...] o mal seria, em
realidade, uma transgressão da lei Divina, um pecado cuja responsabilidade recai
exclusivamente sobre o livre-arbítrio humano [...]. (INÁCIO; LUCA, 1994, p. 29)
Sendo assim o douto conclui: O homem nasceu perdido, pois o pecado original destruiu
nossa liberdade, impedindo-nos de deixar de pecar ainda que o pecado não seja necessário.
(INÁCIO; LUCA, 1994, p. 28)
Robert Muchembled, Historiador Francês acredita que estes fundamentos
Agostinianos consistiram em um forte embasamento para os pensadores de toda a Idade
Média, modelando-os às percepções de mundo do Santo, tais como o pessimismo ao
feminino e a presença do mal na terra.
Agostinho no século V, movido pela Pregação sobre livre-arbítrio - a liberdade
de cada criatura em agir conforme sua vontade - falava sobre a culpabilidade de cada
um sobre seu pecado. A definição sobre a relação culpa e livre-arbítrio está exposto
logo no início da obra: O livre Arbítrio, representado num diálogo com seu
companheiro Evódio, Bispo de Upsala:

Pois bem, se sabes ou acreditas que Deus é bom — e não nos é permitido
pensar de outro modo —, Deus não pode praticar o mal. Por outro lado, se
proclamamos ser ele justo — e negá-lo seria blasfémia —, Deus deve
distribuir recompensas aos bons, assim como castigos aos maus. E por certo,
tais castigos parecem males àqueles que os padecem. (AGOSTINHO, 1995
p.26)

No entanto, mais de cinco séculos após Agostinho, parecia que tal conceito de
culpabilização se mantinha vivo e se ―agravara‖, pois a crença apocalíptica da virada do
milênio colocava nos homens um conflito interno: uma batalha do bem contra o mal,
cada pecado desapontava a Deus que logo viria para julgá-lo.
O ano Mil é uma obra de Georges Duby que reflete justamente esse período de
tensão da sociedade para com o fim do mundo. A ansiedade latente (DUBY, 2002,
p.35) na população entre os anos de 980 e 1040 é estudada por Duby por meio de
imagens e escritos literários da época e, que apresentam resultados sobre os tremores
21

que abalaram a terra ou cometas vistos no céu, tudo isso sendo alarmado por pregadores
apocalípticos cristãos.
Duby apresenta um testemunho de um abade chamado de Saint-benoît-sur-Loire
chamado Abbon, que por volta de 975 irá deflagrar as pregações a respeito deste
pensamento escatológico: A propósito do fim do mundo, ouvi pregar ao povo numa
Igreja de Paris que o Anticristo viria no fim do ano mil e que o Juízo final se seguiria
pouco depois. (2002, p.36)
A proximidade do povo para com a Igreja era cada vez mais nítida nestes
tempos, além do já citado temor apocalíptico, as curas e milagres pareciam efervescer
na Europa, de forma que demonstrava ser um ―bom negócio‖ seguir as doutrinas do
Catolicismo para salvar suas almas. Duby reflete que, neste tempo Entre a natureza e o
sobrenatural, nenhuma barreira, mas pelo contrário, comunicações permanentes,
correspondências íntimas e infinitas. (2002, p.63)
Desta forma, entende-se, e esta é uma reflexão de Duby, que tal momento expõe
a batalha do bem contra o mal e da punição Divina aos pecadores, afinal o Juízo logo
chegaria. Nestas circunstâncias, dificilmente o poder de satã sobre a terra poderia ser
negado, nas palavras do nosso historiador: O milênio é, primeiro que tudo, esta derrota
do exército divino, e o retorno ao caos que se segue. (2002, p.128) Enfim, temos neste
período um marco no processo da potencialização dos poderes da Igreja Católica e logo
o recrudescimento de suas doutrinas, tais como o combate ao mal na terra.
Tendo em vista o que foi analisado até aqui, a visão de um dos precursores da
Teologia Cristã, Santo Agostinho sobre os opostos bem e mal, e adiante como esses
contrários foram sendo abordados nas proximidades do ano mil, chega-se a um
momento divisor de águas: os séculos XII e XIII.
Foram entre os séculos XII e XIII que a tal ―batalha‖ do homem contra as forças
malignas ganhara novos aparelhos de ação. No século XII são firmadas as bases da
Santa Inquisição no concílio de Verona (1183), no qual passa a ser do campo
Eclesiástico a tomada de julgamentos contra os crimes que desvirtuavam os dogmas da
Igreja, estes criminosos seriam chamados de Hereges.
Quanto ao século XIII sua importância advém da criação das ordens
mendicantes, que seriam difusoras da presença constante de demônios na terra e da
punição Divina aos pecadores, com seus discursos inflamados baseados na
evangelização e encenações extremamente chamativas.
22

Estas ordens foram criadas por São Domingos (1170 – 1221) e São Francisco de
Assis (1182 – 1226). Como escrevem Inês C. Ignácio e Tânia Regina de Luca em sua
obra: O pensamento Medieval, tais ordens eram compostas por frades que, ao contrário
dos monges que raramente ultrapassavam os muros do mosteiro, dedicavam-se a uma
missão evangelizadora junto ao povo das cidades, pregando a renovação da
cristandade. (INÁCIO; LUCA, 1994, p. 56)
Percebe-se, portanto, nestes três primeiros séculos do novo milênio (incluindo a
virada do ano mil), mudanças na relação Igreja e Sociedade: A primeira: a mutação de
culturas heterogêneas existentes antes do ano mil na Europa para uma sociedade cada
vez mais una, Católica, no que tange a crença, símbolos e linguagem. A segunda:
caracteriza-se de como a Igreja (e em alguns momentos aliada ao Rei), visando tal
unidade religiosa, usou de seus dispositivos (tal como o medo) para o controle da
sociedade.
Para discorrer sobre o que acreditamos ser o primeiro momento desta relação no
novo milênio, citarei ideias de Robert Muchembled, já que este também trabalha com a
interpretação do sobrenatural e a religião num caráter processual que se transforma com
o passar dos séculos. Para a segunda, além de Muchembled, se faz necessária a obra de
Jean Delumeau História do Medo no ocidente.
Um sistema de relações (MUCHELMBELD, 2001, p17), é desta forma que
Muchembled caracteriza uma civilização. E ainda, seu ideário de sociedade apresenta
estas relações a símbolos e práticas ativas que une o homem ao coletivo, ao grupo, do
começo ao fim de sua vida. É necessário o entendimento disso, para compreender o
quão mutáveis são tais símbolos e práticas envolvidas na sociedade que serão
discorridas a seguir.
O divisor de águas, isto é, as promoções religiosas decorridas do século XII e
XIII como já analisado, afetaram na aproximação entre cultura religiosa dos eruditos da
Igreja e a massa da sociedade, a minoria e a maioria respectivamente.
Para exemplificar este estreitamento - Igreja e Povo -, basta refletir sobre a
maior figura do mal, o Diabo. Tal figura, até o ano mil não era tão ―popular‖ entre a
sociedade Europeia, apenas Teólogos e moralistas interessavam-se por ele [...], mas a
arte quase não lhe dava espaço (2001, p.18), porquanto depois destas promoções
citadas, a presença do Diabo no imaginário cristão se fez mais presente.
Enquanto os doutos da Igreja tinham até sua ciência para tal campo: a
demonologia, a sociedade do primeiro milênio tinha apenas em sua mentalidade uma
23

figura não esclarecida do demônio, na verdade, bem diversa de região para região, de
cultura para cultura. Um primeiro Milênio cristão não fora suficiente para erradicar
crenças e práticas múltiplas, que serão chamadas de „populares‟ [...]. (2001, p.23)
O que explica tal caso, era a falta de uma cultura/religião centralizada neste
primeiro milênio, derivada de uma fragmentação do Império Romano, com muitas
expressões religiosas (que viriam mais tarde ser heréticas e até fundidas a imagem do
Lúcifer da modernidade) circulando na Europa. Contudo, [...] As figuras do Mal não
deixavam de existir, com características bastantes diversas correspondentes ao
politeísmo fundamental das populações. (2001, p.18)
A Igreja Católica aos poucos e com dificuldade monopolizou uma crença una.
Povos mediterrâneos, celtas, germânicos, eslavos e escandinavos sofrem, em graus
variáveis, uma penetração das ideias Cristãs (2001, p.24) que reformulou, em parte,
suas antigas tradições.
O ano mil auxiliou para certa reaproximação dos povos para a Igreja que
buscaram a salvação de um apocalipse que supostamente logo chegaria. Contudo, a
própria Instituição Católica não apenas observou esses acontecimentos, mas agiu para
potencializar o que mais tarde viria a ser uma monopolização da cultura e da crença.
Quais dispositivos a Igreja usou para potencializar seus poderes enquanto carro
chefe da batalha contra o mal e quais suas consequências na mentalidade dos indivíduos
contemporâneos a ela? Bem, o segundo momento adquire elementos para responder a
esta questão.
Segundo Robert Muchembled, a Escolástica com seus estudos, em específico os
demonológicos e a pedagogia do medo empenhada pela Igreja Católica tinha papel
fundamental no avanço Católico deste nosso quadro a partir do século XIII. Tanto o
Diabo quanto o Inferno passam por narrativas mais vigorosas no sentido da coesão, no
que tangem a suas ilustrações por exemplo. Antes de falarmos de tais ilustrações, um
destaque à Escolástica não deve passar despercebido.
A escolástica foi uma Linha de pensamento Filosófica Cristã no qual alicerçava
respostas para questões que justificassem a fervorosidade da doutrina propagada pela
Igreja, a única detentora da verdade. Desta maneira, a formação dos núcleos de estudo,
– que hoje são chamadas de Universidades – foi baseada primariamente em Filosofia,
Teologia e Leis Canônicas e integrada por alguns componentes em sua Instituição, uma
delas foi à inserção das Ordens Mendicantes ao ensino destes centros.
24

Retomando, o reforço nas ilustrações do inferno e do Diabo. Estas ilustrações


Maléficas começavam a permear imaginário dos homens, pois eram produzidos sempre
algo estreitamente ligado aos valores mais atuantes nesta mesma sociedade (2001,
p.32) e estamos falando de uma sociedade progressivamente mais Cristã. A arte gótica
do século XIII dá ao Diabo espaços maiores e mais chamativos em porta de catedrais
por exemplo.
[O diabo] deixa a abstração teológica para tornar-se devorador de homens,
vassalo traído ou a besta do „Apocalypse‟ de Saint-sever. (2001, p.33) Por outro lado,
Deus também tinha sua imagem como uma entidade implacável, sem apelo, em
oposição a uma prática terrestre muitas vezes ineficaz. (2001, p.36)
As forças Malignas em oposição às benignas estavam sendo abordadas cada vez
mais, pois essa mentalidade havia transcendido o campo eclesial erudito para enraizar-
se nas cidades [em especial o norte da Itália] contaminando as Monarquias (2001, p.32)
alastrando-se pela Literatura e pela arte:

Reis, príncipes ou grão-senhores, clérigos educados em escolas e


universidades, sábios e médicos, burgueses e empreendedores das cidades,
artistas e artesãos a quem uns e outros encomendam obras para manifestar a
fé ou embelezar a vida, formaram o alicerce heterogêneo de um ‗meio‘ aberto
às idéias que jorravam dos lugares de erudição e de santidade para iluminar o
mundo profano. (2001, p.40)

A evolução das cidades juntamente com a ambição Papal e Realeza tiveram tais
consequências e, inclusive, a procura pelo saber religioso no sentido da doutrinação
também aumentara. Este contrato implícito entre os doutos e os dominantes [clero e
Nobreza] induzia a um dinamismo [...] (2001, p.23) um tanto quanto diferenciado
formulando novas percepções do sobrenatural no século seguinte.
O outono da Idade média (séculos XIV e XV), como chamou Johan Huizinga,
célebre historiador holandês, explicita uma transição para a modernidade e um fim para
este subcapítulo. As percepções de uma sociedade já mais centralizada culturalmente
em símbolos e religião no que tangem os princípios de bem e mal chegam ao seu ápice,
formulando um ideário de batalha contra a malignidade, e logo, as tão estudadas
perseguições Heréticas.
Nos séculos XIV e XV o imaginário do sobrenatural no que tange ao inferno,
por exemplo, é transmitido fortemente a partir da Arte. O discurso inserido na Arte e em
25

tantos outros meios era o de detalhar os castigos que sofreria aquele que pratica o mal -
ou pecador se preferir -, de forma monstruosa. Aqui se faz necessária uma observação
que Muchembled busca em suas leituras:

‗Meter medo nele [no homem] produz um choque emotivo que leva a fazer
agir a fazer confessar. ‘ Em outros termos, a encenação satânica a pastoral
que a ele se reporta desenvolvem a obediência religiosa, mas igualmente o
reconhecimento do poder da Igreja e do Estado, cimentando a ordem social
com o recurso a uma moral rigorosa. (BASCHET, 1993 apud 2001, P.35)

Enquanto o Diabo ganha destaque, por outro lado, Deus vai assumindo sua
posição de única forma de salvação dos Pecadores: A Europa vai [...] distanciando-se
dos Deuses em nome de um Deus único Cristão (2001, p.37). Neste momento não
devemos nos esquecer do quão importante foi a força da inculpação de cada homem de
seus pecados, pois, movido por algo que Delumeau chamou de o medo de si mesmo
(DELUMEAU, 1989, p.32) faria com que a batalha cotidiana contra o mal se
potencializasse.
E para esta potencialização acontecer, ocorreram mudanças em outras áreas que
não só a religiosa aqui narrada, mas também nos na ordem política. Um exemplo claro
deste aspecto é evidenciado na criação da Santa Inquisição,
O palco estava montado, era a mentalidade do homem Medieval que havia
mudado, o sobrenatural passava a ser algo monstruoso e não tão variado em detrimento
da campanha centralizadora da Igreja. Tal expansão Católica condenou e absorveu a
cultura de outras regiões da Europa. No meio de toda esta mudança de mentalidades, e
de inculpação a todos os males que pareciam estar mais evidentes nestes tempos, existia
na sociedade um personagem que também teria sua representação mutada e subjugada: a
Mulher.
Por fim, existia um Deus uno que vigiava e punia o homem. Existia também
uma sociedade que se aproximou tanto do assunto do mal, que pragas e desastres eram
justificáveis como consequência da punição Divina. Certos perfis de pessoas deveriam
ser os culpados da punição, sendo estes mais propícios a serem agentes do demônio do
que os demais - as mulheres foram uma das discriminadas a este posto. Porém antes de
ser efetivamente demonizada, sua inferiorização nos discursos católicos merece um
detalhamento especial.
26

1.2 O feminino inferiorizado: uma mentalidade de pessimismo à mulher

1.2.1 Raízes Cristãs


O agravamento que se sugere da situação feminina neste subcapítulo passará
pela concepção dos primeiros séculos da Igreja Católica, pelo patriarcalismo nos feudos,
ideário da Igreja Católica e suas ordens na baixa Idade média e central, Imaginário
popular da sociedade na passagem para a modernidade e por fim, no que alguns
Historiadores acreditam ser o ápice da Misoginia na História da humanidade: a caça as
Bruxas como extensão da Santa Inquisição.
No fim da Idade Média, período denominado como Baixa Idade Média, séculos
XIV e XV a Igreja Católica com seus discursos, obras e crença impulsionaram mais
fortemente a inferioridade feminina, ocasionando ódio e medo de determinados perfis
de mulheres. Por conta da recorrência desse tema e pelo fato da igreja ser grande
influenciadora do pensamento popular, provocou-se um surto de perseguições e
execuções. Porém, para compreendermos este momento histórico precisamos analisar a
misoginia, isto é, o ódio discriminado ao feminino também dentro das particularidades
de períodos anteriores no contexto da Religião Católica.
Neste sentido, analisamos que a misoginia dentro deste campo religioso se torna
uma contradição com seu propósito central. Ora, a Igreja Católica abrigava muitos
diferentes discursos, porém todos sob as bases de sua fé registradas na Bíblia, e é neste
documento que encontraremos a citada contradição.
Jean Delumeau analisa este contexto sob a mensagem de igualdade da figura
central do Cristianismo – Jesus. Na Bíblia, são mostradas algumas ações inovadoras do
Nazareno para com as mulheres. Dentre muitas ações como a da pecadora pública e da
resposta aos fariseus do homem e mulher como uma só carne: Jesus de bom grado
cerca-se de mulheres, conversa com elas, considera-as como pessoas inteiras [...],
sendo que as mulheres Judias não tinham nenhuma participação nas atividades dos
rabinos. (1989, p.314)
Contudo, tal mensagem de Jesus: a igualdade preconizada pelo Evangelho
cedeu diante dos obstáculos (1989, p.314), encontrou resistências no patriarcado
Judaico e Greco-Romano, além de outras dificuldades contribuintes, como o lugar, a
cultura da disseminação e que o Cristianismo foi difundido. Então, percebe-se que a
contradição aqui, refere-se a não assimilação, por parte de muito dos homens que
27

constituíram a Igreja Católica mais tarde, para com a mensagem de não submissão da
mulher que o sujeito principal de sua religião teria legado.
Os pensamentos que permearam os primeiros séculos do Cristianismo, referente
ao feminino, foram legados para a Idade Média. Segundo a análise da historiadora
Estadunidense Joyce E. Salisbury, escritores do século II ao V: Tertuliano, Cipriano,
Ambrósio, Jerônimo e Agostinho criaram um corpo teórico que estabeleceu uma
compreensão cristã de muitas das questões que deram forma a sociedade cristã, entre
elas a sexualidade [...]. (SALISBURY, 1991, p.27)
Apesar das divergências de ideias entre estes pensadores, havia muitas
concordâncias, principalmente ao tratar da mulher em relação à sexualidade. Num
período em que se tentava responder as questões sobre sexo, isto é, se sua prática era
uma coisa boa ou má, a opinião destes Pais da Igreja2 convergia: viam uma linha
divisória muito nítida entre o que era carnal (sexual) e o que não era (espiritual).
(SALISBURY, 1991, p.27)
Com esta divisão, a mulher entra nos discursos dos pensadores com o seu posto
no lado carnal e o homem como um ser racional, logo espiritual – segundo os
pensamentos destes homens. Jerônimo (347-420) escrevera um conselho a um homem,
que era de suma importância evitar olhar uma mulher, pois os rostos delas podem
passar a habitar vossos pensamentos, e assim uma ferida secreta pode infectar vosso
peito. (JERÔNIMO apud 1991, p.34) Tal percepção insinua o estímulo visual que a
mulher poderia causar no homem levando-o à perdição.
O mesmo Jerônimo também escreveu que todas as mulheres eram tão tentadoras
quanto Eva foi para Adão, alertando:

Não é da prostituta nem da adúltera que falamos, mas o amor da mulher em


geral é condenável por ser insaciável; uma vez extinto, explode em chamas;
dado em grande quantidade, é novamente necessário; isso irrita a mente de
um homem, e perturba todo pensamento, com exceção da paixão que
alimenta. (JERÔNIMO apud 1991, p.43-44)

As mulheres, para Jerônimo, interferem na racionalidade (pensamento) do


homem, pois elas são movidas por paixões. Esta concepção é compartilhada pelos
outros pais da Igreja, para eles, a ideia geral era de que o sexo feminino tendia a

2
Pais da Igreja foi o nome que Joyce E. Salisbury atribuiu à sua obra, fazendo referências aos principais
pensadores Cristãos dos cinco primeiros séculos.
28

fornecer apenas seus sentimentos descontrolados – suas paixões - que, tentavam


persuadir o homem com seus insaciáveis desejos, perturbando e irritando o homem.
Portanto, havia no início do Cristianismo, uma reflexão de como o feminino
deveria ser concebido. Os porta-vozes que disseminaram a influência deste pensamento
eram todos homens, submersos num contexto em que submetia a mulher aos adjetivos
de inferioridade entre os sexos. Todos eles, influenciaram a base dos dogmas eclesiais
em relação a mulher dos séculos posteriores.
Quanto aos discursos da Alta Idade Média que foram influenciados, sobretudo
por Agostinho, devemos salientar que não é este o período que focaremos neste
trabalho. Acreditou-se que os discursos de pessimismo à mulher se fazem mais
eloquentes a partir do século XII pela maior alcance da Igreja na sociedade e por
questões já expostas no subcapítulo anterior. Portanto vamos refletir a partir deste
momento algumas questões sobre a representação da mulher discursada pelos clérigos
católicos, bem como o lugar social que a mesma foi relegada.

1.2.2 O discurso clérigo e a Literatura

O estudo da literatura produzida a partir dos séculos XII, no que tange à


hostilidade à mulher deve ser visto, em muitos dos textos, como parte de um discurso,
também ele, religioso. Isto se deve as bases que partiram os eruditos literatos que
escreveram tais textos sob a argumentação Teológica. (1989, p.339)
As poesias, contos e crônicas eram escritas quase majoritariamente por homens.
Como se acreditava que a mulher carregava o estigma de Eva de traiçoeira e
inconfiável, não era confiado a elas o uso da escrita - qualidade de poucos neste
período. O uso da pena - uma ferramenta de forte vigor comunicativo – seria perigoso se
colocado à disposição de uma mulher.
Contudo, como escreve Kátia Rosane S. Pereira exceções existiam. O Lais de
france (1160 – 1178), coletânea de doze contos Franceses, foram supostamente escritos
por uma poetiza chamada Marie que nascera na França, mas viveu entra a nobreza dos
reis ingleses Platagenetas. (PEREIRA, K. R. S, 2006, p.2)
O que nos interessa nesta coleção, é o caráter misógino daquela sociedade em
que são expostos nestes textos. Mesmo que a temática destes contos – os lais -
abordasse o amor, o pano de fundo são ideias de supressão da liberdade (2006, p.4)
29

feminina e da mulher como propriedade do homem. Exemplo são os contos Lais de


Guigemar [e] Lai de Equitan (2006, p.5) integrados neste conjunto.
No primeiro, a dama é presa numa torre, sob ordens de seu senhor, um homem
muito mais velho que ela, que a submete à reclusão por quase dois anos. No segundo, o
tema é o romance em sigilo, do amor fora do casamento, em que a culpa de tal relação
recai sobre a mulher que, revelando a sua feição diabólica (2006, p.5) planeja matar o
marido traído.
Como citado, nestes contos são inseridas questões da mulher reclusa em um
espaço designado a ela, dependente de seu senhor e incumbida de limitadas funções.
Mesmo escrito por uma mulher, os contos demonstram o quanto estas damas estavam
submersas neste contexto, fazendo a poetiza expressar suas ideias, ou as ideias em que
ela foi sujeitada a transmitir.
Alicerçado pelas bases Agostinianas e pelas ideias da Teologia Escolástica
principalmente de Alberto Magno (1193-1280) Tomás de Aquino refletia sobre a
questão feminina no século XIII. A Teóloga Alemã Uta Hanke Heinemann escreve
parafraseando uma passagem da Suma Teológica de Aquino : As mulheres não
correspondem à „primeira intenção da natureza‟, a qual visa à perfeição (os homens),
mas a uma „segunda intenção da natureza‟ [...] é ela um homem com retardo de
desenvolvimento. (AQUINO apud Ranke-Heinemann, 1999, p.202) A misoginia de
Aquino nesta citação, evoca a mulher como defeituosa, pensada como uma espécie de
equívoco existencial desde seu nascimento.
Para Aquino as mulheres não correspondem à „primeira intenção da natureza‟,
a qual visa à perfeição (os homens), mas a uma „segunda intenção da natureza‟ (as
coisas tais como) „decaimento, deformidade e a fraqueza da velhice‟. (AQUINO apud
Ranke-Heinemann, 1999, p.202)

Também Delumeau analisa algumas outras obras literárias hostis à mulher nos
século XIII e XIV. Na obra Lamentations de Mahieu (1290) cujo autor, um clérigo que
havia no seu passado se casado, descreve que no geral, a mulher é briguenta, curiosa,
desobediente, invejosa, ávida, luxuriosa, cúpida, hipócrita, supersticiosa, indiscreta e
cruel. (GREVY-PONS, 1975 apud DELUMEAU, 1989 p.341)
Em Miroir du Mariage (1392) o autor Eustache Deschamp, um diplomata e
interessado em assuntos de guerra, inclusive contemporâneo à guerra dos cem anos
30

assegura que beleza de mulher é começo de raiva e perversão do homem [além de que]
por mulher se perde todo senso e entendimento [...]. (DESCHAMPS apud 1989, p.341)
A esse respeito, Delumeau analisa em um de seus capítulos a influência destas
ordens mendicantes no processo misógino do medievo. Segundo Delumeau, São
Bernardino de Siena, Franciscano que viveu entre o século XIV e XV escreveu em
relação à mulher que: Se tu não a habituas a fazer tudo, ela se tornará um bom
pedacinho de carne. Não lhe deixes comodidades, eu te digo. Enquanto a mantiveres
atenta, ela não permanecerá à janela, e não lhe passará pela cabeça ora uma coisa,
ora outra. (MONIER, 1924 apud 1989, p.320)
Neste trecho, quase manual de tratamento das mulheres, São Bernardino de
Siena enuncia o perigo da mente feminina estar vagando entre as ideias (passando pela
cabeça uma ou outra coisa), ou atenta ao mundo externo a sua casa (na janela). A
relação com a religião é outra importante ligação que pode ser estabelecida a partir da
leitura do excerto. Seu autor é um religioso Franciscano bastante popular que viveu
entre os anos de 1380 e 1444.
No início do século XVI Eneas Silvio Piccolomini - mais tarde Papa Pio II –
escrevia o Remédio de amor. Os adjetivos que este usa contra as mulheres nesta obra
são inúmeros, fazendo referência a outro religioso, Battista Mantovano:

Mantovano diz que o gênero feminino


É servil, desprezível, cheio de veneno:
Cruel e orgulhoso, releto de traição,
Sem fé, sem lei, sem moderação, sem razão
Desprezando direito, justiça d eqüidade...
[Mulher é] inconstante, móvel, vagabunda,
Inapta, vã, avarenta, indigna,
Suspeitosa, fingida, ameaçadora.
Briguenta, faladora, cúpida,
Impaciente, invejosa, mentirosa,
Leviana em crer, bebedora, onerosa,
Temerária, mordaz, enganadora,
Caftina, devoradora, feiticeira,
Ambiciosa e supersticiosa,
Petulante, inculta, perniciosa,
Frágil, litigiosa, ativa.
Despeitada e muito vingativa,
Cheia de adulação e de mau humor,
31

Entregue a cólera e a ódio,


Cheia de fingimento e simulação,
Para se vingar exigindo dilação,
Impetuosa, Ingrata, muito Cruel,
Audaciosa e maligna, rebelde [...].
(GUILLERM-CURUTCHED, 1977 apud 1989, P.341).

Portanto, aqui foi apresentada uma amostragem de literaturas do século XII-XVI


que apresentavam um antifeminismo afirmado. Tais textos refletem concepções
cotidianas dos homens para com as mulheres e, inclusive esposas como no caso do
Lamentations de Mahieu. Todos esses pensamentos pareciam visíveis nos textos sobre a
vida doméstica que alguns escritores tentaram articular, como veremos adiante.

1.2.3 A Domesticidade
Duby em sua obra Idade Média, Idade dos Homens salienta que no bojo da vida
doméstica havia uma divisão nas funções do homem e da mulher: aos homens competia
a vida exterior e pública; as mulheres se encontravam normalmente acantonadas no
interior [...]. (DUBY, 2011, p.111)
A propósito da vida privada, no interior da família as crianças já eram ensinadas,
seguindo a doutrina de Tomás de Aquino, que ‗O pai deve ser amado mais do que a
mãe, por ser ele o princípio ativo da geração, enquanto que ela é o passivo‟ (AQUINO
apud Ranke-Heinemann, 1999, p.203) além de que na educação dos filhos: O
treinamento intelectual das crianças só pode advir do pai, já que ele é o líder
intelectual. (AQUINO apud Ranke-Heinemann, 1999, p.203)
Contribuindo com a ideia exclusiva do cuidado do lar, Maffeo Veggio (escritor
Italiano), escreveria já num período de transição para a modernidade, em De educatione
liberorum (1440), sobre a educação contemporânea de seu tempo. E fica claro com sua
leitura que a educação da mulher deveria ser balizada pela ideia de Casamento, cuidado
do lar e claro, pela religião:

Futura mãe, futura educadora doméstica da moral e da fé, futuro modelo para
suas filhas, a adolescente [...] deve „ser educada, por santos ensinamentos,
para levar uma vida regular, casta, religiosa, e para dedicar-se
constantemente a trabalhos femininos‟, intercalados por orações. (VEGGIO,
1440, apud DUBY, G; ARIÉS, P, 2009, p.288)
32

Esse viés da educação é muito importante para a interpretação dos papéis do


feminino, nesta sociedade. O trecho destacado acima representa uma ideia do século
XV, não deixa de dialogar com a concepção de uma longa Idade Média, pois mostra a
ideologia que foi traçada para a disciplina da mulher daqueles tempos, e mais, qual era o
posto da mulher desde sua maturidade até sua morte.3
Ao se pensar em qual era o posto ocupado pela mulher, podemos ligá-lo
diretamente ao sexo oposto, o homem. Segundo Duby, a concepção era de que a mulher
não pode viver sem o homem, deve estar no poder do homem. (2009, p.543) O homem
por sua vez, deve ter precaução, devido à periculosidade do corpo da mulher, que pode
fazê-lo perder sua honra [...] e ainda por ele corre o risco de ser desencaminhado [...].
(2009, p.543) Por isso, a medida correta de conter essa sujeita seria de afastar-lhe do
contato exterior, seria preciso erguer diante de seu corpo um muro, o muro,
precisamente, da vida privada. (2009, p.543)
Segundo Duby e Ariès, além das mulheres domésticas, havia as miseráveis, que
de casa em casa iam esmolando. Esse comportamento gerava um consciente de culpa
àqueles que não ajudavam as pedintes, ferindo um dos pilares da doutrina católica: a
caridade: [...] as mulheres pobres provocavam uma crescente hostilidade com seus
persistentes pedidos de ajuda, e, ao mesmo tempo, despertavam sentimentos de culpa
naqueles que já não desejavam responder com a caridade. . (2009, p.157)
Este duplo mostra a fragilidade do feminino que teoricamente deveria ser
cuidado pelo masculino, mas que quando abandonado pela sorte não recebia o devido
amparo nem mesmo pela caridade, difundida como valor da Igreja. Tendo como base, o
papel do feminino analisado até aqui, e, guardadas as exceções, a mulher, segundo os
textos analisados, eram destinadas a limitadas funções.
Assim, no contexto desta mescla hostil à mulher, seja na Literatura dos clérigos
ou de leigos, outro elemento é inserido nestes discursos: o Diabo. A mulher que foi
inferiorizada com os mais diversos adjetivos como o analisado neste subcapítulo, passou
então por uma espécie de demonização, que a torna propícia ao conluio com o mal.

3
Sobre os períodos de maturidade da mulher eram entendidos entre seus doze anos e quatorze anos, idade
em que se prepara para o casamento.
33

1.3 Mundo demonizado: uma difícil representação para as mulheres

Em meio ao século XIV, a peste, fome, cismas, guerras, pensamento


escatológico eram medos iminentes e o diabo estava oculto em cada um deles. Como
ressalta Delumeau, neste clímax cheio dos perigos pregadores, teólogos e inquisidores
desejavam mobilizar todas as energias contra a ofensiva demoníaca. (1989, p.319)
Para a concepção Católica do período, existiam agentes responsáveis por todos esses
males que estavam assolando seu tempo. Além do responsável maior – o Diabo – dado
seu distanciamento da vida cotidiana do mundo deveria existir também quem agisse em
prol dele na terra. A mulher, dentro de um processo em que o seu corpo passa a ser visto
como um objeto de pecado passa a estar mais propícia ao mal. Figurada já com
inferioridade social e religiosa em diversos pontos como já foi abordado, teve sua
imagem enfim, refletida como que interligada a serviço de Satã.
Este processo foi reforçado ao extremo com a inquisição, investido
principalmente pela Igreja e patrocinado por ela. O discurso para o combate ao pecado
era bastante explícito ao elencar os seguintes elementos: os lobos, o mar e as estrelas,
as pestes, as penúrias e as guerras são menos temíveis do que o demônio e o pecado, e
a morte do corpo menos do que a da alma. (1989. p. 44) Nestes discursos ainda se fazia
presente o dever de: Desmascarar Satã e seus agentes e lutar contra o pecado [e com
isso] diminuir sobre a terra a dose de infortúnios de que são a verdadeira causa. (1989.
p. 32)
Desta forma, denunciar esses agentes era uma maneira de expiar os males da
época. A Santa Inquisição se apresenta como um meio de salvação. Não seria demais
ressaltar que se sabe sobre a importância do estudo da perseguição aos mouros
sobretudo na Espanha, dos hereges em geral em toda a Europa, porém, especificamente
neste artigo, os agentes que tratamos são as mulheres.
A Santa Inquisição foi criada por volta do século XII, e segundo a historiadora
Anita Novinsky, foi produto de uma longa evolução durante a qual a Igreja e o Papado
sentiam-se ameaçados em seu poder. (NOVINSKY, 1992, p. 15) Realizada em conjunto
com a nobreza o que exprime também seu caráter político, sintetizou e unificou as
forças presentes naquele momento histórico.
A instituição Inquisitorial buscou ferozmente por heréticos, levando o conceito
de pecado a uma dimensão nunca antes tão punitiva. Consideravam-se hereges
34

basicamente aqueles que criticavam e duvidavam da verdade absoluta da mensagem da


Igreja. (NOVINSKY, 1992, p. 10)
Outras heresias entraram no quadro punitivo da Inquisição, tal como a prática da
magia e quem as praticava, feiticeiras ou mais tarde, bruxas. Hilário Franco Junior
discute sobre a distinção que a Antropologia faz destes dois elementos – Feiticeiras e
Bruxas – e conclui que havia uma espécie de fronteira entre ambas numa visão clerical,
contudo ela não era de conteúdo, e sim ideológica: à magia natural opunha-se uma
magia maléfica. (FRANCO JUNIOR, 2001, p 194)
Boa parte das acusações às mulheres era relacionada à feitiçaria, o que era
imaginado por cultuar deuses pagãos e podiam criar feitiços e outros poderes
popularmente acreditados [...] (CLARK, 2006, p.160). Os camponeses que eram
acometidos de infortúnios, como doença em gado, pouca produção agrária, culpavam
certas mulheres de malefício lançados em suas criações e as denunciavam.
Porém, a Inquisição Medieval ainda não via as ―feiticeiras‖ como hereges, a
historiadora Laura de Mello e Souza escreve:

O combate da Igreja ao malefício não se fazia de forma


sangrenta, pois aquela não via a feiticeira como fonte do mal.
Seus atos eram supersticiosos e, nesta qualidade, condenáveis,
mas não sua pessoa. [Contudo] Na baixa Idade Média,
entretanto, a associação começou a ser feita: a feitiçaria se
tornou herética, ganhando as cores soturnas e simultâneas de
crime e pecado, lesando a majestade humana e a Divina.
(SOUZA, 1995, p.26)

A nova abordagem do fim da Idade Média – a repressão à heresia - foi


potencializada a partir do século XV os malefícios se tornaram crimes feitos não por
feiticeiras, mas por bruxas que por meio de pacto com o demônio disseminavam o mal
na terra, e por isso deveriam ser exterminadas.
Para alguns autores, o pacto demoníaco insere uma questão de extrema
importância, pois é ele que vai ser o divisor de águas entre a feitiçaria e a bruxaria. Em
suma o pacto diaboliza a feiticeira e a transforma em bruxa. A partir desta concepção, o
crime é passível de punição, como explica Jeffrey B. Russell em sua obra História da
Bruxaria em que faz uma distinção com a possessão demoníaca: O diabo pode possuir
35

uma pessoa contra a vontade dela, mas o pacto, pelo contrário, é sempre voluntário. A
bruxa, portanto, serve ao Diabo por sua livre e espontânea iniciativa. (RUSSEL;
ALEXANDER, 2008, p.62)
As acusações continuavam a acontecer, até que em certo ponto, quando as
autoridades passaram a procurar ativamente culpados em vez de aguardar
passivamente as acusações, estava iniciada a caça às bruxas. (2008, p.75) A Igreja
desde 1252, com a bula papal de Inocêncio IV Ad extirpanda já permitia a tortura e a
execução de hereges, e foi sob esta base que a perseguição foi sendo instituída até estar
firmada sob outra bula, desta vez mais específica à bruxaria, como mostra Jeffrey
Richards: Entre 1317 e 1319, o papa João XXII, obcecado pelo medo da bruxaria, [...]
promulgou a bula Super Illius Specula, autorizando especificamente a Inquisição a
processar todos os feiticeiros, porquanto adoravam demônios e tinham feito um “pacto
com o inferno”. (2008, p.82)
Com a ideia de pacto de determinadas mulheres com o Diabo, aliada pela
autorização papal por meio da bula, uma série de tratados de alerta à bruxaria começou
a tomar a Europa. E tal feito foi condicionado pela invenção da imprensa em 1450. A
divulgação de folhetos que tratavam especificamente da bruxaria diabólica fez com que
propagasse ainda mais rapidamente a perseguição (2008, p.81) e com isso, uma
avassaladora onda de medo se instalava.
Neste ponto começamos a nos desprender da era medieval e nos direcionar ao
início da modernidade. Trevor Roper, autor de A obsessão das bruxas na Europa dos
séculos XVI e XVII, tem uma frase que talvez melhor defina o começo dessa
modernidade: Nesses anos de aparente iluminação, as trevas estavam a ganhar terreno
em pelo menos um quarto do céu. (TREVOR-ROPER, 1972 apud SOUZA, 1995, p.46)
Era o período das grandes navegações, do Renascimento, da Reforma na Igreja.
Esse último, base para a insegurança católica e logo seu posicionamento ofensivo na
Contra-Reforma, seja com a arte barroca endossando a fervorosidade pelo caráter
visual, seja por um sistema mais radical ainda, a asseveração na perseguição aos
hereges.
Quando se trata de analisar o sentido e as características de – perseguição aos
hereges, um leque é aberto: Mouros, protestantes, incrédulos e bruxas. Claro que não
era mecânica a ligação entre ser mulher significava e ser herege. Nem toda mulher era
herege, porém, se analisadas as perseguições contra a bruxaria, a chamada caça às
36

bruxas, dentre os séculos XIV e XVIII [...] A perseguição incidiu basicamente sobre as
mulheres. (1995, P.30)
Existem historiadores que discutem tais números nas execuções de mulheres
acusadas de bruxaria. Stuart Clark, na obra já citada neste artigo, argumenta que: Em
Toledo, por exemplo, 75% dos casos de feitiçaria investigados pelo tribunal local da
Inquisição entre os séculos XVI e XVII foram contra mulheres. (2006, P.160)
Dentre as obras católicas que evidenciam a questão do gênero inferiorizado, o
Malleus Maleficarum publicado em 1484 merece destaque. Escrito pelos Inquisidores
Heinrich Kramer e James Sprenger foi um dos mais lidos em seu tempo e demonstrava
quanto estava enraizada esta questão no imaginário misógino dos escritores e
provavelmente, de todo seu círculo religioso:

[...] houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido ela criada
a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura
é, por assim dizer, contrária a retidão do homem. E como, em virtude dessa
falha, a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona e mente. (KRAMER;
SPRENGER, 2014, apud 116)

Nesta fala dos autores, além de seu argumento espiritual em que segundo eles, o
diabo teria uma influência mais suscetível, o fator corpóreo da criação da primeira
mulher tem total influência na infeliz herança que a descendência de Eva iria carregar.
A costela da primeira mulher torta é efetivamente contrária à retidão do homem.
Pode-se, atualmente, questionar-se e até espantar-se de como tal imagem
misógina fora com tanto efeito assimilada no imaginário do homem contemporâneo à
este tempo. Ainda mais: como o demônio, o sobrenatural povoou este imaginário
confundindo-se com o mundo terreno. Quanto a essa interessante relação a historiadora
Laura de Mello e Souza analisa que a fome e suas decorrentes crises, a falta de
explicações científicas para as consequentes doenças diluíam as fronteiras entre o
mundo natural e o sobrenatural. (1995, p.8)
Importa refletir que a fragilidade da mulher era comprovada em questões
cotidianas, relacionadas ao meio no qual vivia. Segundo o medievalista Hilário Franco
Júnior:

Como mostrou o estudo de Bullough e Campbell (22: 1980, 317325), até o


século X ou XI a mulher ingeria pequena quantidade de ferro, que seu
37

organismo necessita em proporção maior do que o do homem, devido à


menstruação, à gravidez e à lactação. Portanto, a anemia feminina era
generalizada na Alta Idade Média, daí a maior propensão das mulheres a
certas doenças. Com a introdução de leguminosas na dieta e uma presença
mais assídua de carne, peixe, ovos e queijo, a mortalidade feminina diminuiu.
Tal fato teve ampla repercussão, contribuindo até mesmo para a valorização
social da mulher. (FRANCO JÚNIOR, 2001, p.35)

Assim, pode-se perceber que elementos concretos da vida cotidiana, como a


qualidade da alimentação associada a condição física feminina, ampararam a certeza de
que as mulheres eram seres frágeis e menos preparadas para a vida. O mesmo
argumento reforçava a fragilidade de uma alma que mais facilmente poderia ser
convencida a compactuar com o Diabo. Por isso, era naturalizada a perseguição ás
mulheres que de alguma forma eram desviantes do papel social a elas definido.
Estas perseguições às mulheres, que nos séculos XVI e XVII geraram a caça as
bruxas, alimentaram os preconceitos já existentes às solteiras, viúvas e solitárias. Ao
olhar dos outros, tais mulheres poderiam ser taxadas de bruxas por simples motivos,
como afirma Jeffrey B. Russell: Um semblante zangado poderia ser interpretado como
um olhar maléfico; uma imprecação furiosa, como uma praga; um resmungo como uma
invocação de poderes diabólicos. (2008, p.120)
As execuções, perseguições se pensadas longe do caráter das cortes, e sim em
meio social, foram uma espécie de extensão de um pensamento popular de desnível de
gênero. Como assegura Clark até entre os intelectuais do século XVI seria impossível
pensar em gênero senão em termos das categorias de superioridade e inferioridade
[...]. (2006, p.181) Neste meio popular em sua maioria, a concepção desse desnível
transparecia ao feminino o extremo, tal como Maria e Eva, umas eram muito boas
outras maléficas, qualquer discussão sobre mulheres deveria dividi-las em virtuosas e
viciosas – assim como dia e noite, luz e escuridão, alma e corpo, céu e inferno. (2006,
p.178)
Portanto, o homem foi movido pelas crenças de seu tempo, incluído em uma
sociedade contemporânea às perseguições e condenações a morte em praça pública nas
fogueiras e forcas, e este homem tornava aquilo tudo que assistia como processo correto
de acontecer. Como espectadores, compactuaram das perseguições e as legitimaram,
numa complexa fruição do espetáculo visual, exacerbada e barroca ela também [...]
(1995, p.10) é o que conclui a historiadora Laura de Mello e Souza.
38

1.4 O sexo pecaminoso: o erotismo discriminado ao feminino

[...] o corpo feminino, mais permeável à corrupção porque menos fechado,


requer uma guarda mais atenta, e é ao homem que cabe a sua vigilância.
(ARIÉS; DUBY, 2009, p.543)

Anteriormente buscou-se um panorama da inferiorização da mulher em diversos


campos, porém neste momento a atenção será dada a um elemento que concerne um dos
maiores dos pecados acreditados nas sociedades Medievais e até inclusive, início da
Modernidade: O Sexo.
Para discorrer sobre o apogeu da difamação misógina pelo viés sexual ocorrido
nas delimitações dos séculos XIII – XVII têm-se, contudo, que dedicar um espaço para
o conhecimento dos primórdios das discussões Cristãs sobre este pessimismo sexual
(1999, p.21) e sua relação com o feminino.
Segundo Ranke Heinemann, não foi o catolicismo que criou este controle sobre
o sexo na sociedade, mas este advém muito antes de Cristo. Na Antiguidade o Médico
Hipócrates julgava que o homem proporcionava ao corpo a máxima energia retendo
sêmen, porque a perda excessiva de sêmen levava à „tabes dorsalis‟ e à morte. (1999,
p.21) E ainda, a virgindade era dita recomendada por médicos como Sorano de Eféso
(século II d.C.) como melhor forma de se manter saudável Em contrapartida, Filósofos
gregos na antiguidade concordavam que se fazia necessário o sexo por prazer entre os
cônjuges. Contudo, já nos primeiros dois séculos de Catolicismo na Europa, os
Estoicos4 mudaram tudo isso. Rejeitaram a procura do prazer (1999, p.23) e
defenderam o sexo apenas para a procriação. A título de curiosidade, Sêneca foi um
popular Estoico.
Uma espécie de Pessimismo do corpo chegou provavelmente da Pérsia para a
Europa, era o Gnosticismo que de certa forma demonizava o corpo como uma prisão da
alma. Segundo este movimento, a alma era divina, mas o corpo era suscetível às coisas
terrenas. O movimento Gnóstico acreditava que o mundo não vem das mãos de um
Deus bom, mas de demônios. (1999, p.27) Essas concepções da Gnose influenciaram a
filosofia Neoplatônica (1999, p.28) e, por conseguinte a Santo Agostinho.

Maior Escola de Filosofia Antiga (300 a.C – 250 d.C)


4
39

Para se falar da mentalidade religiosa Católica em relação ao feminino se faz


interessante buscar em seu personagem principal – Jesus – sua concepção sobre este
gênero. Assim Uta Hanke-Heinemann escreve: Jesus foi um amigo das mulheres, o
primeiro e praticamente o último amigo que as mulheres tiveram na Igreja. (1999,
p.138) Jesus demonstrava uma proximidade incomum naquele tempo para com as
mulheres. Como no caso da samaritana no poço (Jo 4, 27) ou no caso da anunciação de
sua ressureição feita por mulheres também.
Porém os seguidores do Cristo, os oficiais da Igreja nos tempos seguintes não
adotaram esse ―apreço‖ ao feminino, Hanke-Heinemann descreve que esta postura de
Jesus para com as mulheres foi substituída por uma mistura peculiar de medo
reprimido, desconfiança e arrogância. (1999, p.133)
Tamanha era essa desconfiança e a supressão que, por uma ordem do Papa
Gregório I, o Magno as mães e irmãs de celibatários foram proibidas de morar com eles
(epístola 60) (1999, p.136). O sínodo de Nantes (658) fala sobre as relações perversas
entre padres e as respectivas mães e outros parentes [...] (1999, p.136), relações de
incesto também foram relatadas neste mesmo sínodo.
Sobre o poder de persuasão e sensualidade da mulher, o Sínodo de Paris (846)
proibia a qualquer mulher entrar no lugar onde estivesse um padre. Na mesma linha
seguia o Sínodo de Coyaca em 1050, do rei Fernando I que não permitia que mulheres
vivessem nas vizinhanças da Igreja (1999, p.136) e que ainda as que vivessem próximas
às casas de clérigos se vestissem de preto. (1999, p.136)
Santo Agostinho acreditado por muitos teólogos da Igreja até hoje como o maior
padre da Igreja Católica, contribuiu muito para o assunto da sexualidade com seus
discursos e obras de caráter misóginas. Seus pensamentos baseados em estudos bíblicos
relacionaram a transmissão do pecado original [...] com o prazer da relação sexual.
(1999, p.136) Essa relação de pecado original e sexo viriam a se tornar parte da
mentalidade popular mais tarde.
Como já citado anteriormente, existiu uma discussão anterior ao cristianismo se
era saudável a relação sexual apenas por prazer e que não visava à procriação, porém
com o advento do cristianismo tal questão foi resolvida, o sexo tinha uma única função:
gerar a prole. Agostinho enxergava o prazer sexual como algo passível de punição
divina, pois segundo ele o castigo pela queda foi primeiro lançado sobre o reino da
sexualidade. (AGOSTINHO apud 1999, p.103)
40

Contudo, como se pode estabelecer que a mulher tivesse papel fundamental na


sua inferiorização perante o ―universo‖ Católico predominantemente masculino? Para
iniciar esta questão, Ranke-Heinemann reflete sob o argumento de Santo Agostino:
todos os problemas da humanidade começaram, por assim dizer, com a mulher, ou seja,
com Eva; que a expulsão do paraíso foi por culpa dela. (1999, p.198)
Agostinho continua sua argumentação afirmando que quando Adão e Eva foram
expulsos do Paraíso, Adão decidiu não se separar de Eva mesmo que esta fosse a
culpada. Em suma, deste caso o Santo concluí que O amor da mulher conduz o homem
à ruína. (1999, p.199) Como será explanado posteriormente, o pessimismo de
Agostinho deixará uma herança aos próximos séculos.

Toda essa hostilidade do clero para com as mulheres resultava num controle da
sociedade e se tratando de sexo havia algumas regras cotidianas que o Historiador
Hilário Franco Junior nos deixa claro:

Determinados dias da semana (em especial o sagrado domingo) e certos


períodos do ano (festas religiosas, sobretudo a Quaresma) estavam
interditados ao sexo. Jean-Louis Flandrin calculou que na Alta Idade Média
cerca de 180 dias por ano eram liturgicamente proibidos para relações
sexuais, sem contar os dias de menstruação, gravidez e amamentação,
igualmente de abstinência. A transgressão era punida de forma variável
conforme os locais e as épocas, mas a média girava em torno de 20 a 40 dias
de penitência, jejum alimentar e/ou continência sexual. Ademais, o sexo
deveria ser apenas vaginal, visando à procriação, a mulher colocada debaixo
do homem e no escuro, para se evitar a visão da nudez. O sexo oral e
sodomita, a magia para atrair o desejo de alguém, as práticas anticonceptivas
e abortivas, as relações incestuosas e adúlteras eram pecados duramente
castigados: de seis a 15 anos de jejum e de excomunhão*, geralmente
acompanhados de interdição perpétua de qualquer relação sexual e de
casamento. (2001, P.177-8)

Passando da Alta Idade Média para começarmos a tratar dos primeiros séculos
do segundo milênio, podemos expressar que o auge desta misoginia desenvolvida no
clero pelos eruditos, sendo disseminada pela sociedade em forma de controle e tabus
será efetuado em potência nos séculos XII e XIII.
Jeffrey Richards escreve em sua obra Sexo, desvio e danação que a sociedade da
Idade Média era capaz de explosões súbitas e violentas de histeria e paranoia, de
41

violência e entusiasmo, muitas vezes tendo como pano de fundo a crise demográfica ou
a mudança social [...] (RICHARDS, 1993, p.13-14). Sob estes aspectos o mesmo autor
escreve que o século XII, portanto foi coberto de uma busca incessável por um Deus e
maior controle de seus corpos. (1993, p.13)
Esta busca por um Deus protetor que vigia a sociedade havia sido primariamente
potencializada na vinda, do já estudado ano mil. O medo do fim do mundo tomou conta
e a partir deste tempo, a ideia de um Anticristo foi disseminada do ―universo‖ Teológico
para encontrar terreno fértil na cultura popular, figurando em sermões, poemas,
histórias e peças. (1993, p.14)
Pode-se estabelecer, a partir destes primeiros séculos do novo milênio, que um
maior controle da Igreja em uma escala que ultrapassava os conventos e alcançava às
cidadelas, as casas, as pessoas. Tal busca da luz divina também se refletiu em seu
extremo oposto: a escuridão das trevas devia ser apartada para longe. A fome,
terremotos e as doenças eram provas de que o mal estava por perto e os pecados da
sociedade tinham sua parcela de culpa destes eventos. A sociedade, estreita cada vez
mais à Igreja tentava se defender do mal que poderia influenciar a qualquer um, um
medo havia sido instalado.
O medo de si mesmo, como nomeia Delumeau, pode ser explicado pela razão de
que qualquer um pode ser um agente de satã se não tomar o devido cuidado – levando a
um combate incessante contra o inimigo do gênero humano. (1989, p.33) Esse combate
ligado ao leque de medos que a Igreja pregava, traduz a reflexão de Delumeau sobre a
intrusão maciça da Teologia na vida cotidiana da civilização ocidental (1989, p.33) -
na literatura inclusive.
Tratando-se do ato sexual, se não fosse com o objetivo da procriação, era
pecaminoso e logo passível de punição pela igreja. O ideal, portanto, era manter a
castidade e, segundo os estudos de Jean Delumeau, manter a integridade física,
purificação da alma e consagração a Deus [...].(METRAL, 1963 apud 1989, p. 316)
Porém, existia nos discursos, sermões e mentalidade Católica do século XIII
(especialmente por ser o período em potencial das ordens mendicantes) uma
personagem que segundo argumentos da época, era mais suscetível ao desejo carnal,
pecaminoso e consequentemente, este personagem estava mais próxima ao Diabo - a
Mulher.
Delumeau ressalta que o sermão foi um meio eficaz de cristianização a partir do
século XIII, difundiu sem descanso e tentou fazer penetrar nas mentalidades o medo da
42

mulher (1989, p.322). E ainda: O que na idade média era discurso monástico tornou-se
em seguida, pela ampliação progressiva das audiências, advertência inquieta para uso
de toda a Igreja discente que foi convidada a confundir vida dos clérigos e vida dos
leigos, sexualidade e pecado, Eva e Satã. (1989, p.322)
Veículos que estereotipavam um perfil de uma mulher má estavam sendo
criadas. Por meio de tratados Teológicos, Médicos e Científicos (1993, p.36) foram
divulgadas tais ideias de sua inferiorização sem qualquer questionamento. A base
central deste desnível de gênero expresso seguia as influências agostinianas e até
anteriores a ela: a mulher, como escreve o Historiador Jeffrey Richards, era inferior ao
homem por ser criada a partir da costela de Adão, mas também diabólica por ter se
deixado seduzir pela serpente além de ter descoberto o deleite carnal e o ter mostrado a
Adão. (1993, p.36) Tais campanhas que antes eram explicitas em tratados já citados
serão severamente potencializados com a chegada da imprensa.
Outro fator que serviu para aguçar o debate do sexo e por seguinte, discriminá-lo
como algo mais propício do feminino foi às confissões dos crentes para com os padres.
A partir de 1215 a confissão tornou-se obrigatória ao menos uma vez ao ano, decisão
emitida pelo concílio Lateranense. (1993, p.39) Jeffrey em seu estudo escreve que nas
confissões, a categoria sexual era isoladamente a mais mencionada.
Dentre as diversas confissões, foram assinalados alguns pecados no que tange ao
desnível de gênero, como no próprio ato sexual: o [...] coito dorsal, com a mulher por
cima; isto era considerado como contrário à natureza, a qual determinava que o
homem deveria ocupar a posição dominante. (1993, p.40)
Sobre sexo fora do casamento Jeffrey evoca Johannes Teutonicus para escrever
que o adultério era mais detestável quando cometido por uma mulher do que no caso
do homem. (1993, p.47) Ainda neste contexto, traz a luz Santo Tomás de Aquino que
completa o discurso misógino: [...] as mulheres deveriam ser mais severamente punidas
pelo adultério do que os homens. (1993, p.47)
Nos casos de confissão de estupros às mulheres, a penitência gerava uma espécie
de multa ou prisão por pouco tempo. E neste caso destaca-se a consequência na vida das
vítimas estupradas que, devido à mentalidade de que a mulher ―boa‖ deveria se manter
virgem, uma vez que fossem estupradas perdiam status e possibilidade de casamento
(1993, p.51) e eram até relegadas à prostituição.
A Igreja interligava o sexo ilícito ao Diabo e sua legião de demônios. (1993,
p.51) Juntamente a isso outros fatores colaboraram para uma histeria contra a má
43

mulher, como a consolidação da figura do Diabo como um ser monstruoso e medonho


que poderia possuir o corpo de pessoas, e com mais probabilidade a mulher por todos os
fatores já descritos e especificamente ao pacto diabólico que será descrito adiante.
Sendo assim, agregar-se-á três adjetivos da misoginia aqui estudada que
nortearam e nosso trabalho até o momento: A inferioridade social da mulher (dentro da
família patriarcal inclusive), a prática pecaminosa do sexo discriminado a ela, e logo o
seu poder em seduzir os homens a esse pecado, e por último, a mulher enquanto sujeito
diabólico, a qual terá contato explícito em forma de pacto com o demônio, promovendo
a perseguição da Igreja com a Inquisição às chamadas Bruxas. Este último processo,
Jean Delumeau foi feliz em nomear de Diabolização da Mulher. (1989, p.319)
O auge da misoginia na História do Ocidente talvez seja a caça as Bruxas dos
séculos XVI e XVII, mas para discorrer sobre este momento, que será estudado no
segundo capítulo desta monografia, faz-se necessário anteriormente compreender as
concepções diabólicas no que tange ao sexo e à mulher no século XV. Tal período
concerne à ruptura entre a Idade Média e a Modernidade. Neste momento é que se
aguçam os debates sobre pacto diabólico, explicitando aí o sexo com os demônios que a
imprensa, recém-criada, irá disseminar tão ferozmente.
A força com que foram crescendo as ordens mendicantes (desde o século XIII) e
logo a influência de seus sermões que, ao analisar o discurso de Teólogos, aliou-se com
uma sociedade cheia de temores. Como escreve Richards sobre este período, a
sociedade vivia um período do medo de impostos, doença, guerra, fome, da morte e do
inferno. (1993, p.82)
Era uma sociedade crente no sobrenatural e que enxergava tais penas a eles
infringidas como uma punição divina de seus pecados e que existiam agentes mais
responsáveis que os outros pelas penas – um deles, a Bruxa. O sexo (extraconjugal) era
um dos maiores pecados, a mulher, era mais suscetível aos deleites da carne, pois
pertencia a linhagem de Eva que sucumbiu à serpente. Com efeito, a mulher que a
priori já fora inferiorizada e relacionada ao sexo por ser mais suscetível ao pecado da
carne será por fim, relacionada ao Diabo, fazendo pacto e copulando com ele. Segundo
Richards, acreditava-se que as Bruxas:

Reuniam-se em sabás regulares, os quais envolviam canibalismo, orgias


sexuais paródias blasfemas dos cultos cristãos. [...] possuíam ―familiares‖
animais, desfrutavam do poder de voar e às vezes da capacidade de mudar de
44

forma. Recebiam o poder de realizar o mal. Faziam parte de uma conspiração


satânica de âmbito mundial, visando a minar o cristianismo. (1993, p.82)

O sexo tinha o papel central no pacto com o diabo, pois era por meio dele, da
copulação que se selava o ―trato‖. Além disso, as orgias nos sabbat eram o ponto
culminante dos rituais de Bruxaria. Richards novamente conclui que isso refletia o medo
milenar do sexo no cristianismo, e também destaca a desconfiança e o desagrado em
relação às mulheres como parte integrante da cultura Medieval. (1993, p.83)
Alguns autores como Jeffrey B. Russel e Norman Cohn tentam traçar as origens
da Bruxaria Europeia e, delimitar o que seria uma fronteira entre a feitiçaria e a
bruxaria. Os autores têm concepções divergentes em vários aspectos que não cabem ser
discutidos nesta monografia, mas sobre estes dois elementos em fronteira os autores
concordam que, em suma, a diferença é que a bruxaria conta com a contribuição do
demônio por meio do pacto, promovendo assim à bruxa poder realizar seus malefícios.
A invenção da Imprensa potencializou o avanço misógino, dos tratados
Teológicos manuais para os folhetos ilustrados de possessões demoníacas e,
principalmente, a disseminação de manuais inquisitoriais que guiavam os perseguidores
e argumentavam os motivos pelos quais se devia crer nas bruxas e logo na sua relação
ao feminino e ao sexo. O Malleus Maleficarum ou O martelo das feiticeiras foi um
deles.
No Malleus estão descritos, além de muitas outras questões sobre a crença na
bruxaria, como Íncubos e Súcubos (2014, p.89) (demônios que copulam por sonhos),
pactos, mas principalmente, no que tange ao tema abordado, sobre bruxaria e sexo.
Na questão VI do Malleus a descrição do título é clara: Sobre as Bruxas que
copulam com Demônios. Por que principalmente as Mulheres se entregam às
Superstições Diabólicas. (2014, p.112) Esta questão é dividida em três no manual, a
primeira parte são os argumentos que comprovam a maior suscetibilidade da mulher ao
Diabo, a segunda quais tipos de mulheres são mais propícias, e a terceira
especificamente sobre as parteiras que superam todas as demais em perversidade.
(2014, p.112)
Em suma, o Malleus argumenta que as mulheres são indisciplinas, perversas,
viciadas, sem moderação, e mais influentes a receberem a influência do espírito
descorporificado; (2014, p.115) Portanto, se o objetivo do diabo é corromper a fé,
prefere então atacá-las. (2014, p.115) E atacá-las de forma a manter o coito com elas e
45

sob este aspecto se encontra o pior pecado – Toda bruxaria tem origem na cobiça
carnal, insaciável nas mulheres. (2014, p.121)
A caça às bruxas havia adentrado no moderno e conflituoso século XVI e
atingiria seu auge no século seguinte, moldando uma repressão ao sexo e ao feminino
potencializado pelo Malleus, que ditava as formas de torturas e de reconhecimento das
Bruxas. Mas não apenas o manual julgava e discriminava o feminino, livros sobre
Teologia popular (2008, p.89), folhetins que ilustravam os agentes satânicos já haviam
sido disseminados na cultura popular fazendo com que a massa incentivasse a caça, é o
que conclui Russel.
Além da imprensa, as artes também fomentaram uma silhueta pecaminosa da
mulher e seu incessável desejo carnal. Robert Muchembled em sua ilustre obra Uma
história do Diabo escreve a monstruosidade oculta da mulher em forma de esculturas,
pinturas, etc. Uma delas uma Muchembled descreve:

Uma gravura ilustrando a tradução alemã do livro de Geoffroy de La Tour


Landry, aparecido em Basiléia em 1493, mostrava a coquete com o demônio
da vaidade. Este, composto de um corpo humano e uma cabeça animal,
mostra seu ânus, que se reflete em um espelho, a imagem tomando o lugar do
rostinho da dama que se olha penteando-se. O que nos leva a deduzir,
incessantemente, desse jogo sobre as fisionomias, que a da mulher é a
máscara da horrível face do demônio, ou, em outros termos, que sua beleza
enganosa esconde uma boca infernal, por causa de sua lubricidade original.
(LEHNER, 1971 apud 2001, p.65)

Outras obras retratavam a nudez, calcada na sensualidade e erotização


persuasiva da Mulher e, sobre isso, no terceiro capítulo desta monografia, serão
realizadas análises sobre algumas das obras de Hans Baldüng Grien (1485-1545), artista
alemão que produziu entre outros temas, ilustrações macabras das bruxas.
Os processos e as execuções das acreditadas bruxas incentivavam o povo na
crença de poderes diabólicos. Neste sentido, a luta contra a bruxaria - contra o mal -
estava no consciente de cada um como um sinal de alerta contra o pecado sexual
reforçando a vigília do corpo.
Contudo, estes temores aumentariam ao fim do século XVI, junto com a
multiplicação dos tratados contra bruxas depois de 1580. Nas palavras de Muchembled:
O final do século XVI deu, assim, a impressão de um desencadear satânico sem
46

precedentes, pois as fogueiras de feitiçaria eram acesas por toda parte na Europa.
(2001, p.79)
47

2. HOLOCAUSTO MISÓGINO: A CAÇA ÀS BRUXAS (SÉCULOS XIV-


XVI) E OS DISCURSOS NO MALLEUS MALEFICARUM

2.1 – Para um estudo da Caça às Bruxas

A caça às Bruxas é um fenômeno moderno, que teve início no século XV e seu


declínio no século XVIII. A histeria causada pelas supostas bruxas apenas aconteceu
devido o terreno fértil que encontrou na Europa, e é por isso que o primeiro capítulo
inteiro foi feito para mostrar o processo em que tal fenômeno conseguiu germinar.
Ciente do processo de construção da malignidade da mulher pode-se neste
momento, tentar compreender como sua imagem foi representada nos discursos de um
período que se acredita ser o apogeu da misoginia no ocidente. Influenciada por tratados
e manuais diabólicos e patrocinados pela Igreja Católica e Nobreza, a Inquisição revela,
como uma de suas vítimas, a herdeira de Eva, e é a sua caça que norteia esse capítulo.
O Malleus Maleficarum, ou Martelo das feiticeiras, foi publicado em 1487 na
Alemanha e alcançou leitores em toda a Europa. Escrito pelos inquisidores Henry
Kramer (?1430 - ?1505) e James Sprenger (1436 – 1496), foi considerado mais que um
tratado diabólico de sua época, pois atingiu uma notoriedade de destaque por sua
especialização de lida contra a bruxaria narrada de forma metodológica – por isso o
termo ―manual‖ ter sido designado a ele.
Impulsionado pela revolução da imprensa, o Malleus alcançou uma difusão de
ideias impressionantes. Segundo Robert Muchembled a obra teve no mínimo quinze
edições até as duas primeiras décadas do século XVI em maioria difusa em Nuremberg
e Reno; aproximadamente 20.000 modelos foram emitidos até antes da Reforma. O
tratado passou abruptamente de moda entre 1520 e 1574, depois experimentou uma
segunda vida [...] (2001, p.61) no último quarto do século XVI.
Contudo, o objetivo deste capítulo não é mostrar minunciosamente como os
ideais desta obra alcançaram em termos espaciais e temporais a Europa, mas,
contextualizar os discursos misóginos nestes três séculos de caça às bruxas com o
Martelo das Feiticeiras de forma que demonstrem que em essência, o pessimismo
relacionado ao feminino encontrado nesta obra pode ser enxergado tanto um século
antes de sua produção, afinal os autores tiveram suas influências a priori, quanto nos
dois séculos posteriores.
48

Para tanto se faz necessário que se situe panoramicamente a chamada caça às


bruxas, no que tange à suas recepções sociais e às suas políticas judiciais, pois, sem
essas duas visões seria impossível compreender a dimensão que os dispositivos
misóginos alcançaram neste período.
.
2.2 – Um panorama da Caça às Bruxas

Como já foi visto no capítulo anterior, do século XII ao XV algumas Bulas


Papais 5foram direcionadas à Inquisição, no sentido que potencializaram a perseguição
aos hereges. As ordens mendicantes também reforçaram as pregações Católicas desde o
século XIII, com a característica de inflamar o público com seus sermões apocalípticos
e de exposição de temores naturais e sociais canalizados em alguns bodes expiatórios.
O expiador máximo era o Diabo, que havia ganhado uma forma pavorosa no
imaginário popular e, cada vez mais presente, da baixa Idade Média e início da
Modernidade, de forma que deixou de ser um sujeito do imaginário erudito para se
tornar um temor popular. A disseminação da imagem e poderes do Diabo deveu-se
muito a emergência da ciência demonológica.
Todos esses elementos ligados à religião foram somados à união da Igreja com
o corpo jurídico proporcionando legalmente uma conduta de reprimir comportamentos
que iam contra suas regras legais. Neste ponto, o corpo da perseguição aos hereges
ganha um braço executor, ou seja, além da repressão religiosa, havia leis que
promoviam perseguições com metodologias legais aos hereges.
A bruxaria, neste quadro, é considerada a maior heresia para a Igreja, pois esta
tem o contato explícito com o diabo, adorando-o e tendo relações sexuais com ele. Por
outro lado, também apresenta um perigo à sociedade, pois ameaça a ordem social. A
partir destas reflexões, alguns historiadores tentam explicar, quais foram os elementos
que proporcionaram o sucesso da caça, como Brian P. Levack, que norteou os estudos
desse capítulo, por sua especificidade em analisar este tipo de perseguição inquisitorial.
Levack em: A caça às Bruxas na Europa Moderna reflete sobre quais elementos
os historiadores do século XX têm atribuído para que a perseguição às bruxas se
efetivasse com tamanho sucesso:

5
Bula Papal ou Pontifícia é o nome atribuído ao documento oficial emitido pela autorização do Papa.
49

[...] à Reforma, à Contra-Reforma, à Inquisição, ao uso da tortura judicial, às


guerras religiosas, ao fanatismo religioso do clero, à ascensão do estado
moderno, ao desenvolvimento do capitalismo, ao uso generalizado de
narcóticos, a mudança do pensamento médico, a conflitos sociais e culturais,
à tentativa de erradicar o paganismo, à necessidade das classes dominantes de
distraírem as massas, ao ódio às mulheres. (LEVACK, 1988, p.3)

O ódio à mulher – a misoginia – é a que procuramos enfatizar neste trabalho


como um todo. Contudo, além das causas mencionadas acima, as tensões sociais
destacadas no primeiro capítulo (peste, cismas, e guerras, por exemplo) também tiveram
sua contribuição.
No que tange à nomenclatura - Caça às Bruxas - esta foi, por vezes, muito
discutida entre Historiadores, porém passou a ser adotada, pois realmente existia uma
espécie de procura dos acusados. Outro nome tentou ser usado: a Loucura antibruxas.
(LEVACK, P. 1988, p.2) Porém, viu-se que essa denominação remetia muito mais a
crendice em bruxas como algo relacionado a transtorno mental e passou a ser menos
usada.
Esta caça envolvia um processo maior do que a própria perseguição: o de ter
criado meios de investigar quem eram as supostas bruxas. Os manuais de combate à
Bruxaria, em especial o Malleus Maleficarum ou Martelo das feiticeiras, por exemplo,
tem um capítulo especialmente para alertar o seu leitor contemporâneo de como
identificar uma bruxa. O manual será abrangido em outro momento deste mesmo
capítulo.
No contexto da caça, existiam sumariamente duas formas que evidenciavam os
crimes de bruxaria, são elas as confissões – realizadas pelas próprias acusadas de
bruxaria – e, os depoimentos. Os depoimentos eram advindos de denúncias de terceiros
que acusavam determinadas pessoas de tê-las prejudicado de alguma forma. Ligada a
essas duas formas de delações, estão as duas principais formas de crimes de Bruxaria,
que segundo Levack são: o Maleficium e o Diabolismo. (1988, p.11) O Diabolismo,
entendido como a interação da Bruxa com o Demônio, tem um papel familiar em
relação aos flagelos como veremos a seguir. Ambos os elementos já se encontram
explicados no capítulo 1.3 deste trabalho. Contudo, o que se quer destacar neste
momento é sobre qual forma eram obtidas tais confissões de crimes – a tortura.
A tortura era, talvez, o método mais eficiente para extrair das acusadas supostas
confissões de seus crimes, além da denúncia de supostos cumplices. Levack escreve
50

que a tortura, num certo sentido, “criava” a bruxaria, ou ao menos criava a bruxaria
diabólica. (1988, p.14) Esta reflexão do autor é justificada: ele demonstra que nos
processos de bruxaria as confissões de crimes diabólicos aconteciam apenas durante ou
após os flagelos, o que revela que as delações, como conclui o autor, indicavam muito
mais o que o carrasco quisera ouvir do que a realidade feita pelo acusado. Como conclui
Levack, muitos acusados preferiam ―confessar‖ e serem executados a se calarem e ter
de resistir as mais terríveis seções de tortura.
Ainda sobre a tortura, o Jesuíta alemão Friedrich Spee (1591-1635), um dos
poucos que iam contra o uso da tortura nos processos, bem como outras críticas severas
à Inquisição, escreveu em Cautio criminalis (1631): a tortura enche nossa terra da
Alemanha de feiticeiros e ali faz surgir uma maldade inaudita, e não apenas na
Alemanha, mas em toda nação que a use. Se nem todos nós confessamos ser feiticeiros,
é que não fomos torturados. (1989, p.381).Delumeau, por sua vez, reflete sobre o
momento de inquérito em que se encontram a acusada e o questionador:

O ajuste preciso das respostas às perguntas, a adesão quase automática da


indiciada às acusações lançadas contra ela pelos juízes e, por outro lado, sua
ausência de memória quando se trata de dar uma resposta mais pessoal,
permitem apreender muito concretamente uma das fases capitas da
elaboração do mito demonológico e sabático. Por certo os aldeões ouviam
falar do diabo pela cura, na igreja. A feiticeira declara espontaneamente que o
diabo vem visitá-la quando deixa de persignar-se. Seu demônio tem um nome
erudito: Belzebu. Mas, de resto, o essencial de suas respostas lhe é sugerido
pelos juízes. (1989, p.383)

Sobre o número de processos ou execuções de bruxas é impossível sua


determinação. Porém, Levack em sua obra, traz alguns dados de aproximação que vale a
análise. Segundo sua reflexão, o total de pessoas processadas por Bruxaria na Europa
deve passar da casa dos 100.000. Só na Alemanha essa cifra pode ter alcançado os
50.000, seguido da Polônia com seus 15.000 processos, França e estados próximos com
10.000 processos, Suíça com 9.000 processos. Estas eram as regiões em que a caça às
bruxas foi mais vigorosa e intensa.
Outras regiões com menor número de processos em que a perseguição agiu
foram as Ilhas Britânicas com 5.000 processos (apenas na Escócia mais de 2.000) e
5.000 na Escandinávia. A Hungria, Moldávia, Transilvânia, Rússia e Valáquia não
51

chegaram a 4.000 processos, nos reinos Espanhóis e estados Italianos o número chegara
a 10.000. Contudo estes são números de processos e julgamentos.
Em relação às execuções, o autor escreve que de aproximadamente 110.000
julgamentos, 60.000 terminaram em mortes. Uma observação interessante é com relação
à forma de execução: no continente Europeu, o uso da fogueira era o mais comum, pois
geralmente seguiram uma vertente de responsabilidade religiosa, apesar da presença dos
tribunais leigos seculares.
A lógica para utilizar o fogo vinha da Bíblia: Se alguém não permanece em mim,
é jogado fora, como o ramo e seca; depois são ajuntados, jogados ao fogo, e queimam.
(João 15, 6) Logo, a bruxaria era associada à heresia e a fogueira à absolvição da alma
deste pecado. A exceção ocorria na Inglaterra, onde as execuções comumente eram
realizadas na forca, pois a bruxaria era mais associada à delinquência de âmbito civil.
Em suma, sobre esta diferenciação, Jeffrey B. Russel conclui: Na Inglaterra, a bruxaria
era um crime civil; no continente, um crime de religião. (2008, p.75)
Os números da execução dos acusados não revelam o efeito real da caça às
bruxas daquele período, pois, ao se tratar de 60.000 mortes em pouco mais de trezentos
anos pode não parecer impactante, porém, ao analisar alguns momentos específicos,
podemos tentar compreender o grau de histeria da modernidade.
Desses momentos particulares Levack comenta: 274 pessoas foram executadas
por bruxaria no bispado de Eichstätt em apenas um ano, e de que 133 bruxas foram
executadas nas terras do convento de Quedlinburg em um único dia, em 1589 [...].
(1988, p.23) Em resumo, os números quando tratados em uma escala longa de tempo,
podem não parecer tão surpreendentes quanto o olhar mais localizado de alguns
registros.
Os princípios base da perseguição às bruxas enquanto mentalidade social, ou
seja, seus medos, suas agonias e suas crenças formaram uma primeira parte para que a
caça se efetivasse. Contudo, o elemento judicial da Inquisição, e logo os tribunais,
foram aqueles que forneceram os princípios legais para formar a segunda parte.
Portanto, deve-se salientar que, desde as acusações, passando pelo julgamento,
tortura e atribuição da pena, seja ela prisão ou execução, tudo era perpassado por
procedimentos legais. Logo, faz-se necessário que se volte em alguns momentos a falar
tanto das evoluções dentro dos processos dos tribunais inquisitoriais, quanto das Bulas
papais que permitiram tal evolução.
52

Sobre as evoluções nos procedimentos são necessários alguns apontamentos.


Uma das grandes mudanças, a partir do século XIII, nos procedimentos foi de permitir o
uso da tortura sobre pessoas acusadas de bruxaria em prol das confissões já
mencionadas. Tal bula é a já mencionada Ad extirpanda promulgada pelo Papa
Inocêncio IV em 1252.
Outra grande mutação foi a substituição do poder dos tribunais eclesiásticos em
guiar a jurisdição da caça, para ser encabeçada a partir de então pelos tribunais seculares
– os laicos. Por fim foram confiadas aos tribunais regionais as frentes de condenação e
execução das bruxas.
Uma breve observação sobre os tribunais seculares deve ser feita. Enquanto a
maior preocupação dos tribunais eclesiásticos era de condenar os crimes de bruxaria
pela sua explícita heresia, os tribunais seculares viam os crimes como delinquências
civis. Porém, a diferenciação nas visões de ambas as partes não impediu a união das
mesmas em diversas situações e julgamentos. Um exemplo desta união era a
impossibilidade de os eclesiásticos praticarem dano corporal aos acusados, fazendo com
que estes articulassem esta parte do castigo com o tribunal secular. Portanto, existe certa
mesclagem cooperativa entre os tribunais para que juntos avançassem na caça às
Bruxas.

2.3 O CONTEXTO SOCIAL

Ao se tratar da caça às bruxas e, ainda mais especificamente, do contexto social


em que se inseriu, deve-se saber dos principais problemas a serem enfrentados na
pesquisa. Duas são principais implicações, a documentação escassa e a diversidade
temporal e geográfica. Estas últimas, sobre a dificuldade em tratar do longo período em
que se desenvolveu efetivamente a caça (XV-XVIII) e a heterogeneidade específica de
cada período desta linha temporal. Além disso, geograficamente analisando, a caça e as
acusações de Bruxaria também diferiam de região para região.
Portanto, o que se quer neste momento do trabalho não é analisar todas as
regiões da caça, menos ainda um período ou cidade específica em que a perseguição
agiu, pois o recorte do trabalho não se encontra aqui. Apenas se quer analisar por
enquanto, o que podemos abstrair de uma suposta influência social para a perseguição
às bruxas, depois como se podem identificar as especificidades do campo e da cidade
dentro do contexto do início de modernidade e, enfim, como todos estes aspectos
53

tendem a ter alguma ligação com a perseguição quase que essencialmente ao feminino
que o Malleus propagandeou.
Existem estudos que tentam explicar o que teria originado o surto da caça. Um
desses estudos se refere às mudanças sociais do início da modernidade. As mudanças
sociais referidas são: o aumento da população europeia e também de suas cidades, o
aumento dos preços das mercadorias, a ascensão do capitalismo mercantil em algumas
regiões, os surtos de doenças epidêmicas, o fracasso nas colheitas e, consequentemente,
a fome. Tais mudanças indicam que as caças a bruxas foram, até certo ponto,
subprodutos da ansiedade gerada pela rápida mudança social. (1988, p.123)
Em contraponto, pode-se deduzir também que muitos desses requisitos de
mudança não são características do início da modernidade, mas que já estavam em
processo de desenvolvimento na Idade Média. Portanto, o que mais interessa, talvez,
seja o quão foi reforçada com o tempo a crença nas Bruxas devido à ansiosidade
acumulada das sociedades que, culminou, enfim, na histeria moderna.
Tendo relacionado o contexto de ânsia social e suas possíveis mutações, pode-se
observar em quais ambientes o fenômeno da bruxaria alcançou maior ou menor fôlego.
O campo e a cidade são dois espaços que, como veremos, não apresentou iguais
características no contexto da perseguição à bruxaria.
A característica mais atribuída ao campo, no que tange o contexto temático deste
trabalho, é a da resistência nas crendices supersticiosas que, muitas vezes, continham
resquícios pagãos. Para exemplificar a afirmação, pode-se conferir que, é no campo
onde irão emergir mais casos de Malefícium, ou seja, de acusações a terceiros de
domínio sobre pragas, mau-olhado etc.
Levack leva em consideração que existia outro elemento inerente ao campo: a
proximidade de convivência com vizinhos e sua implicância na perseguição: [...]
acusações de feitiçaria tendem a surgir quando as pessoas vivem face a face em
comunidades fechadas, onde todos se conhecem e as pessoas indesejáveis não
conseguem permanecer ignoradas. (1988, p.124)
Neste meio em que as pessoas convivem no mesmo espaço, a chance de um ódio
ser canalizado, inculpando uma determinada pessoa, era grande. Era frequente, apesar
da existência dos tribunais, quem tentasse fazer justiça com as próprias mãos,
violentando indivíduos, que na maioria das vezes, eram mulheres. A historiadora Silvia
Liebel em seu trabalho Demonização da Mulher: A construção do discurso misógino no
Malleus Maleficarum reflete sobre a existência de uma crendice popular de que, ao
54

arranhar uma bruxa, fazendo-a sangrar, seus malefícios seriam anulados. (LIEBEL,
2004, p.59)
Por outro lado, as cidades também tinham suas particularidades e não podem ser
reduzidas a coadjuvantes das perseguições. Além de casos que aconteceram em
totalidade na cidade existiram eventos também em que o processo foi apenas
parcialmente na zona urbana, eram os casos de bruxas ―encontradas‖ no campo e
trazidas para os grandes centros para serem julgadas. Neste contexto, os casos de
Genebra nos séculos XVI e XVII, nos quais boa parte das acusadas era do meio rural,
porém foram levadas às cidades para serem processadas.
Como já citado, além das perseguições no campo e, parcialmente nas cidades,
houveram grandes surtos de caça às bruxas essencialmente urbanas, principalmente na
Alemanha. (1988, p. 124-125) Muitas das cidades que incidiram às perseguições
também apresentaram características campesinas da convivência próxima e
impossibilidade de ignorar o vizinho, afinal, no fim do século XV e início do XVI, com
exceção das capitais, as cidadelas, por vezes, não atingiam 2.000 habitantes.
Entretanto, as ―grandes capitais‖ não ficaram imunes e são elas que compõem os
elementos distintos dos outros casos já mencionados. Uma das distinções era que, nestes
casos, podemos ignorar o caso da impossibilidade de evitar o vizinho, já que as capitais
eram dispostas em maiores proporções. Também se considera a menor suscetibilidade
às expressões supersticiosas mais próprias do camponês.
O que considerar então para que houvesse um ambiente fértil nas capitais para
que a Histeria das Bruxas germinasse? 1) Maior contingente populacional, as notícias de
surtos demoníacos, eram facilmente espalhadas de forma oral. 2) aliado ao número
populacional, era mais fácil a disseminação de doenças e pestes, visto que, eram
considerados bruxos aqueles que portavam tal doença. Com maior incidência de
enfermidades, mais bruxos apareciam e logo, o pânico geral – ondas histéricas deste
seguimento ocorreram em Milão (1988, p.126) em 1630 e Genebra um século antes. 3)
Casos de possessões coletivas: apesar de não terem acontecido apenas em cidades,
foram nelas que alcançaram maior público – em hospitais, conventos e praças – gerando
uma onda de medo e logo, fortalecendo a crença em bruxas, que poderiam ter algo a ver
com as possessões, já que esta pactua com o demônio.
Por fim, deste exposto todo, podemos observar que existiu certa interação nas
camadas elitistas com o popular, de campo e cidade. Pensando que o camponês iletrado
e processado por bruxaria viria a ser levado a julgamento num grande centro, este se
55

depararia com um clérigo ou magistrado urbano e letrado como seu inquisidor. (1988,
p.127) Aqui então há uma interação não apenas de camadas iguais: dois vizinhos do
campo que se acusam, mas, um camponês e um jurista ambos envolvidos no problema.
O Historiador Keith Thomas, atribui a uma das causas da crença na bruxaria o
elemento da pobreza e da fragilidade à que a mulher fora exposta, afirmando que, as
confissões inquisitoriais que expunham a vida das mulheres acusadas, revelavam terem
elas sido tentadas pelo diabo. Na ambição de uma vida melhor, com joias, dinheiro e
sexo, as mulheres deixavam-se seduzir pelas propostas do demônio: Para as pessoas em
tal estado de desespero, a ligação ao Diabo simbolizava a alienação de uma sociedade
à qual tinham poucos motivos para estarem gratas. Nesse sentido, a ideia da
demonolatria não era uma total fantasia. (THOMAS, Keith 1991 apud LIEBEL, 2004,
p.55)
Parecido com o argumento de Thomas, Julies Michelet lia a bruxaria como uma
revolta da ordem estabelecida, no sentido de que também a pobreza e o sofrimento do
povo foram um dos elementos fundamentais deste fenômeno. Assim, a Historiadora
Silvia Liebel, reflete sobre Michelet em sua obra A feiticeira (1862):

A entrega ao mal não vem de uma natureza maligna do indivíduo, mas resulta
do sofrimento para Michelet que, dentro do espírito romântico, tomava o
Sabbat como uma realidade. Quando as privações materiais, as doenças, a
exploração dos servos pelos senhores, fazem-se mais agudas, o povo reclama
aos céus um alívio para suas dores. E, na ausência de um milagre, da piedade
divina alimentar um povo entregue ao Deus único e todo- poderoso, é a Satã
e seus acólitos que se vai recorrer. Os servos viam no Diabo o espírito
salvador que os livraria da opressão [...] (LIEBEL, 2004, p.60)

Após ter citado as relações entre camadas durante as perseguições, surge a


questão: que perfil de Bruxas está sendo estudando? É correto afirmar que houve mais
acusações às mulheres do que aos homens, justificando o termo generalizante bruxas e
não bruxos? A tabela a seguir tenta colocar em uma espécie de numeral a incidência das
acusações de ambos os sexos e a porcentagem feminina de incidência à bruxaria:

Tabela 1 – Sexo dos acusados de bruxaria (BOUCHAT, 1978 apud LEVACK,


1988, p. 128)
56

REGIÃO ANOS MASCULINO FEMININO FEMININO %


Sudoeste 1562-1684 238 1.050 82
Alemão
Bispado da 1571-1670 9 181 95
Basiléia
Franco- 1559-1667 49 153 76
Condado
Genebra 1537-1662 74 240 76
Pays de 1539-1670 45 62 58
Vaud
Condado de 1509-1646 29 337 92
Namur
Luxemburg 1519-1685 130 417 76
o
Cidade de 1584-1623 14 53 79
Toul
Dpto.º do 1542-1679 54 232 81
Norte, França
Castela 1540-1685 132 324 71
Aragão 1600-1650 69 90 57
Veneza 1552-1722 119 430 78
Ostrobósni 1665-1684 33 119 78
a, Finlândia
Rússia 1622-1700 59 40 40
Condado de 1560-1675 23 290 92
Essex, Inglaterra
Nova 1630-1700 60 193 79
Inglaterra
Escócia 1560-1727 242 1.491 86

Tal tabela não nos serve aqui para mergulharmos numa profunda análise das
regiões citadas, mas como um fundamento de apoio de que a caça incidiu sobre as
57

mulheres, em um número exorbitantemente maior, que sobre os homens, em regiões e


em períodos diferentes.
Salvo as exceções de período ou espaço, como no caso da Rússia, a caça às
Bruxas foi um fenômeno contra determinadas mulheres. Com o cuidado de não limitar
as mulheres de tal época apenas à funções específicas, mas, as cozinheiras, as
curandeiras e as parteiras eram as mais comumente denunciadas por práticas de
bruxaria.
As cozinheiras, por terem contato direto com o alimento, eram vistas como
propícias a preparar malefícios por meio de poções ou unguentos. As representações na
arte moderna das bruxas em seus caldeirões fazem a ligação a essa mentalidade.
As curandeiras, também conhecidas em sua contemporaneidade por Mulheres
do saber (1988, p.131), produziam e recomendavam medicamentos. A questão chave
aqui, é que muitos moradores das comunidades dos vilarejos ou até mesmo nas cidades,
por vezes, procuravam as curandeiras quando os medicamentos do fármaco não surtiam
efeito. Contudo, quando alguém morria por alguma doença nas vilas, facilmente a culpa
era canalizada sobre as mulheres que poderiam ter receitado suas ervas medicinais
cheias de alguma espécie de magia maligna.
Por fim, contudo não menos importante, as parteiras, cuja função até o século
XVIII era confiada estritamente às mulheres, foram processadas, e executadas por
bruxaria. Talvez a parteira tenha sido o perfil dos suspeitos, que mais fosse relacionado
com a bruxaria devido à sua função de trazer ao mundo os recém-nascidos em uma
época, que segundo Levack, um quinto das crianças morria no parto ou pouco depois.
As acusações mais cruéis a estas mulheres eram a de terem oferecido os recém-nascidos
ao Diabo após tê-los assassinados, como no caso de Walpurga Hausmännin [...]
acusada em 1587 de ter causado a morte de 40 crianças [...]. (1988, p.132)

2.4 - Espírito de angústia num mundo de perseguição às Bruxas: crença e


pré-condições

É muito comum estudiosos atribuírem à caça às bruxas como uma campanha


única de seu início ao fim, visto que se tratou de vítimas com parecidas características,
métodos inquisitoriais semelhantes e razões que legitimaram as perseguições muito
convergentes. No entanto, esse caminho mostra-se perigoso ao analisar que são três
séculos (XV, XVI, XVII) de caça que mudam de intensidade e que são muitas regiões
58

incididas, cada uma com suas particularidades. Mesmo com as diversidades, podemos
tentar discernir quais foram as precondições que propiciaram o fenômeno persecutório.
A análise e a tentativa de explicitar as possíveis precondições tem como base a
crença nas bruxas, não apenas pela população em geral, mas também, por parte das
autoridades; as reformulações nas leis e jurisdição para legitimar a perseguição; e, por
fim, no estado de espírito da comunidade como um todo. (1988, p.161)
O estado de espírito desta população de início da modernidade pode ser
entendido por sua mentalidade angustiante. Acreditava-se que a ação do diabo e da
bruxa na terra era algo permitido por Deus, uma reminiscência da permissão Divina que
pregava Santo Agostino no século IV e V. Sendo assim, a crença na prática da
bruxaria [deveria] ser igualmente um elemento essencial a fé (LIEBEL, 2004, p.56)
sendo considerado herege aquele que não acreditasse. Além das doutrinas católicas, a
crença nas bruxas também ganhou força com a invenção da imprensa no século XV.
A literatura diabólica, os tratados e folhetins sobre bruxaria e poder do diabo
quando disseminados, impulsionaram ainda mais as perseguições, aumentando o medo
da população, não só entre as camadas inferiores, mas também na elite. Isso significava
que as teorias demonológicas (1988, p.161) que já haviam sido elaboradas por alguns
estudiosos em seus tratados, principalmente sobre pacto com o Diabo, estavam bem
disseminadas entre as autoridades.
Desses tratados destaca-se além do Malleus, o Formicarius, escrito por volta de
1445 por Johannes Nider, um Prior Dominicano da Basiléia. Era o primeiro tratado a
apresentar a mulher como uma feiticeira cruel que mata crianças e oferecem-nas ao
Diabo. Liebel explica que existia, na obra de Nider, certa padronização sobre os
depoimentos que envolviam as vítimas perseguidas, como a relação selada por pacto
com o demônio, orgias, morte de crianças e pragas lançadas.
Por outro lado, nas camadas populares, a transmissão das ―notícias‖ sobre os
malefícios lançados por bruxas era feita de forma oral, junto aos alardes feitos pelos
padres pregadores que, justificavam que providências contra essa malignidade deviam
ser tomadas. Afinal eram filhos prematuros morrendo, plantações degradadas, doenças
ligidas sem explicação natural, tudo isso canalizado na culpa da bruxa em conluio com
o Diabo.
Com a elite e a população crente no perigo da bruxa solta, isso leva-nos à
segunda precondição: a legitimação da caça pela lei e apoio judicial, e logo dos
tribunais. Fica clara a influência da criação de leis, quando analisamos exemplos, como
59

no caso da Inglaterra, em que os processos apenas começaram a acontecer depois da


promulgação do estatuto de Bruxaria em 1542. (1988, p.162) Era a lei dando forma a
angústia, e tentando extinguir o temor da sociedade e da elite ameaçada.
Ao voltar algumas décadas do caso inglês, encontra-se outro exemplo de
legitimação da caça: a Bula Papal do Papa Inocêncio VIII - Summus desiderantes.
(1988, p.163) Tal bula, emitida em 1484, permitiu aos Inquisidores Kramer e Sprenger,
criadores do Malleus Maleficarum, a autorização para perseguir as Bruxas na Alemanha
no fim do século XV.
Para prosseguir na efetivação legítima da caça, também se acreditou ser
necessária a mutação de alguns procedimentos, como a extinção da lei Lex Talionis
(1988, p.163), o qual prescrevia a punição do acusador caso o acusado se provasse
inocente. Afinal, se o objetivo era aumentar o número de denúncias para que ocorresse
uma caça de grande porte, punir os denunciadores apenas dificultaria a progressão da
caça.
Por fim, no que tange às precondições, a ansiedade generalizada e gerada pelo
clima do medo das bruxas, ou seja, o estado de espírito coletivo foi uma grande
impulsão à caça. As discussões públicas das manifestações de bruxaria, seja ela por
meio dos fracassos nas colheitas, pelas iminências de guerras, pelas rupturas religiosas
ou mesmo pelos relatos de contatos demoníacos, alicerçaram o clima indigesto do início
da modernidade.
Neste contexto, os discursos eclesiásticos foram de tal forma tão influentes na
propagação da histeria, que alguns autores sugeriram no século XVII a culpa do surto
aos próprios pregadores, como veremos o comentário do Inquisidor Salazar, criticando a
perseguição Basca em 1610: O fato começou depois que frei Domingo de Sardo lá
chegou para pregar tais coisas. [...] não existiam bruxas nem pessoas enfeitiçadas
antes que se falasse e escrevesse a respeito. (1988, p.164)
A influência dos doutores e escritores da igreja realmente fez a diferença para as
angústias do povo e da elite, de forma que se faz necessária neste capítulo um momento
particular, àquele que foi talvez, o maior pronunciamento de pessimismo ao feminino
jamais escrito anteriormente, o Malleus Maleficarum. Não apenas porque conta com as
ideias dos dois inquisidores, mas principalmente, por estes serem influenciados pelas
ideias de outros doutores, e é este o foco do próximo subcapítulo.
60

2. 5 - A misoginia no discurso do Malleus Maleficarum

Quase meio século antes da publicação do Malleus, algumas literaturas


misóginas que tratavam a bruxaria já haviam sido disseminadas nos centros laicos.
Além do já citado Formicarius, o poema: Defensor da causa das mulheres
(MUCHEMBLED, 2001, p. 54) cujo título exala sua falácia, de Martin Le Franc
(secretário do ducado de Savóia) escrito entre 1440 e 1442 inaugurava a entrada deste
tema na língua francesa. Introduzia também, as primeiras ilustrações francesas de
bruxas voando em suas vassouras, representando os Sabá 6, como cita Muchembled:

Sobre um bastonete vão


Para a sinagoga puta
Duas mil velhas e uma fouch [bando].
(2001, p.55)

O texto não exalta a mulher como o título falacioso parece supor, mas se refere a
um único personagem que defende a causa das mulheres. Enfim, tal texto, assim como
outros do tipo, apenas coloca no papel a repressão que circulava na mentalidade dos
autores misóginos, tornando-se um tipo de patrocínio à proliferação das crenças nas
bruxas e em sua ameaça iminente, quando soltas no mundo.
Na mesma linha de transportar um pensamento misógino para o papel, seguiram
Henry Kramer e James Sprenger ao escreverem o Malleus Maleficarum. Diante de
algumas regiões da Alemanha, que eram descrentes na força ativa do demônio sobre a
terra, os inquisidores conseguiram permissão do Papa Inocêncio VIII por meio da Bula
Summis desiderantes affectibus (1484) para agirem em suas perseguições em tais
regiões, levando consigo, a obrigatoriedade prescrita em seu manual, de crer na
existência do demônio e nas bruxas, tal como se acreditava em Deus.
Kramer e Sprenger eram dominicanos e professores de Teologia, o primeiro era
prior de Selestat e se concentrou, principalmente, na área norte alemã. O segundo
estudou e lecionou em Colônia, também na Alemanha, agindo como inquisidor nas
proximidades do rio Reno. Ambos tinham suas bases montadas na linha tradicional de

6
A análise dos sabás e dos seus respectivos símbolos geralmente representados nas pinturas modernas
será feita no 3º capítulo deste trabalho.
61

pessimismo feminino, que confirma ser a mulher, por herança de Eva, mais propícia às
tentações do demônio.
A obra também conhecida como O martelo das feiticeiras é dividida em três
partes e, em todas elas, explicita-se propositalmente a sensibilidade da mulher ao mal.
Das três condições necessárias para a bruxaria: o Diabo, a bruxa e a permissão de
Deus todo-poderoso (2014, p.47) é o título da primeira parte, cuja proposta é mostrar ao
leitor o quão poderoso pode ser o Diabo, se assim Deus permitir, e como o maligno é
vinculado à bruxaria. Na segunda parte: Dos Métodos pelos quais se Infligem os
Malefícios e de que Modo Podem ser Curados, (2014, p.195) explicitam-se as maneiras
com as quais são feitas as ―maldades‖, tais como o pacto e as artimanhas dos malefícios.
A terceira e última parte da obra é intitulada: Que trata das Medidas Judiciais no
Tribunal Eclesiástico e no Civil a Serem Tomadas Contra as Bruxas e Também Contra
Todos os Hereges, (2014, p.375) que demonstra de quais formas é correto purgar às
bruxas, tal como a especificidade de cada castigo.
A primeira questão debatida no Malleus já sugeria a quem principalmente se
direcionava sua leitura: às resistências locais na crença das bruxas. O título desta
questão assim segue: Se crer em bruxas é tão essencial à fé católica que sustentar
obstinadamente opinião contrária há de ter vivo sabor de heresia. (2014, p.49) Num
contexto inquisitorial, duvidar desta crença era um tanto quanto arriscado, por isso a
abertura da obra logo com esta questão.
Os autores se apoiam na Bíblia para argumentar sobre a condenação das
chamadas megeras. Assim prescreve o Livro do Levítico: Aquele que se prostituir
praticando a adivinhação, eu me voltarei contra ele e o cortarei do meio do seu povo, e
quando um homem ou uma mulher se prestarem à adivinhação, serão mortos; serão
apedrejados, o sangue deles recai sobre eles. (Levítico 20, 6-27) É importante atentar-
se, que as práticas mágicas, como a adivinhação descrita no excerto, também foram
demonizadas a partir do século XII, quando os doutores da Igreja se propuseram a
verificar a fundo o tema, embasando-se sobre o que escreveu Santo Agostinho em
relação às práticas mágicas e sua relação com o maligno.
Fica claro que um dos objetivos do Malleus, é definir os poderes do Diabo em
relação às bruxas e, alertar a quem tente duvidar da existência de ambos. Em uma de
suas passagens, ainda na primeira parte da obra, os autores escrevem que os demônios
têm poderes sobre o corpo e sobre a mente dos homens, quando Deus lhes permite
exercê-lo [...]. (2014, p.51) Para fundamentar tal afirmação, o Malleus cita como suas
62

fontes de apoio: a Bíblia, as obras Summa contra Gentiles e Secunda Secundae de São
Tomás de Aquino e De ciuitate Dei e De Doctrina Christiana de Santo Agostinho.
A afirmação da imagem da mulher como um ser aterrador foi calcada nas
influências clássicas, típicas da mentalidade renascentista fluída na Europa Moderna, e
disseminada no coletivo. A tradição aristotélica de hierarquia entre os sexos, muito
impregnada nas universidades modernas, juntamente com as ideias de Agostinho e
Aquino construíram estereótipos que justificavam os males recaídos nos homens da
época, sendo então justificada também, a perseguição a mulher herética.
O Martelo das feiticeiras elenca os motivos pelos quais as mulheres tendiam a
ter maior associação com o obscuro, dentre eles à tendência a supersticiosidade, e a
facilidade em se impressionar devido sua credulidade. Segundo os autores, por meio
dessas características é que o Diabo encontrava mais facilidade para tentá-las. Ao
buscar a Bíblia, os misóginos citam o Livro do Eclesiástico 19, 4: Aquele que é crédulo
demais tem um coração leviano e sofrerá prejuízo. (2014, p.115) E ainda na mesma
passagem: É melhor viver com um leão ou um dragão que morar com uma mulher
maldosa. (2014, p.115) São poucos os momentos, em que a obra exalta modelos da
mulher contrária a essa maldade, quando o faz, os adjetivos de virgem e Santa, são os
mais reverenciados.
A relação da primeira mulher, Eva, com o primeiro pecado é recorrente na obra,
pois procura demonstrar que o mal é natural a mulher, tornando-a propícia à bruxaria:
Mas a razão natural está em que a mulher é mais carnal do que o homem, o que se
evidencia pelas suas muitas abominações carnais. (2014, p.115)
A mulher é representada no Malleus como uma ameaça específica aos homens, e
é pelo deleite da carne que os tenta. Novamente retomando Eva para amparar o feitio de
tentadora, os autores assim escrevem que embora o Diabo haja tentado a Eva com o
pecado, foi Eva quem seduziu Adão [com efeito,] a mulher, embora seja bela aos
nossos olhos, deprava ao nosso tato e é fatal ao nosso convívio. (2014, p.115)
Silvia Liebel, em sua análise sobre o Malleus Maleficarum escreve sobre as
referências que o Malleus faz às mulheres que atingiram um ápice de autoridade sobre o
marido ou sobre um cargo político e provocaram tragédias: como nos casos de
Cleópatra, Helena, Jezebel e Atália.
Concluindo, o pensamento pessimista e estereotipado relacionados à figura da
mulher nesta obra, não se limitou aos manuais, mas expandiu-se em diversos campos,
como, por exemplo, as pinturas, talvez não com o mesmo teor de crueldade que o
63

Malleus as expõe, mas em um grau diferente. A representação que foi construída sobre
estas mulheres nas pinceladas renascentistas mostram alguns símbolos da bruxaria
enquanto processo histórico.
Na Alemanha Moderna do início do século XVI, o Artista Hans Baldüng Grien,
destacou-se pela temática macabra de suas obras, que dentre outras tantas, revela as
bruxas, os sabás e seus respectivos símbolos, numa conjuntura que reflete os dois
capítulos anteriores deste trabalho.
64

3. ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DAS BRUXAS NAS OBRAS DE


HANS BALDUNG GRIEN

3.1 Prelúdio

O renascimento ―adentrou‖ tardiamente na Alemanha: final do século XV e


início do XVI. A vida burguesa florescia na Alemanha e junto dela, como escreve
Nicolau Sevcenko, as bases para o desabrochar de uma nova cultura. (SEVCENKO,
1988, p. 68) Uma cultura que não mais limitada aos centros cortesãos, mas capaz de
desenvolver inúmeras escolas e tendências artísticas (1988, p.68) locais.
No que tange à arte, a particularidade alemã fica por conta da utilização de
metais e madeiras para a inserção de gravuras, neste meio, revelou-se artistas como
Martin Schongauer (1445-1491) e mais tarde Albrecht Dürer (1471-1528). Este último,
segundo Sevcenko, transmitiu pelas suas obras uma extraordinária sensação
ambivalente de realismo e fantasia, de naturalismo e magia. (1988, p.69) Como
veremos em seguida, um de seus pupilos herdara tais características do mestre.
Dos artistas ao contexto histórico: a Alemanha estava envolvida na reforma
religiosa no século XVI. Tais foram as tensões deste campo que a repressão à bruxaria
sofreu uma forte intensificação, ora, como vimos na tabela 1 do segundo capítulo, o
sudoeste alemão foi a região que mais obteve vítimas das fogueiras da caça às bruxas.
Portanto, Existia uma propícia situação de conflitos religiosos que fizeram emergir, ao
mesmo tempo, a arte humanística do renascimento relacionada às ideias religiosas de
perseguição às bruxas:

Satã parecia estar solto. Mas, na verdade, eram os homens que tentavam
impor sua lei ou seu tipo de fé neste corredor asperamente disputado, onde a
imprensa havia nascido, acentuando os antagonismos intelectuais, à espera de
Lutero. Pois esta era igualmente a rota de circulação das ideias humanistas
vindas da Itália, das novidades artísticas e culturais. O confronto entre as
formas de expressão e os tipos de pensamento, entre o antigo e o novo, aí se
exacerbava. (2004, p.62)

Neste contexto e, no que tange ao tema proposto a este trabalho, vários foram os
artistas que pintaram em seus quadros bruxas, sabás ou algo do gênero. A análise a
65

seguir retrata as obras de um destes artistas: Hans Baldung Grien (1485-1545), pupilo
de Dürer.
Baldüng Grien7 foi um artista alemão, discípulo de Dürer enquanto residia em
Nuremberg. Provavelmente nascido em Schwäbisch sudoeste alemão, vindo de uma
família de intelectuais, começou sua carreira supostamente entre 1499-1500 no alto
Reno. ficou popularmente conhecido por suas expressões impactantes retratando temas
religiosos como Virgin and Child (1539-40) ou The Birth of Jesus (1520) e macabros,
como as ilustrações sabáticas que analisaremos a adiante.
Em 1503, ao se mudar para Nuremberg tornou-se membro da oficina de Dürer.
Possivelmente recebera influências de seu mestre despontando o uso dos mesmos
manejos e, ao que se percebe, herdou também o gosto pelos temas ligados ao sagrado e
profano. O artista, contudo, não se limitou a uma técnica, utilizou a xilogravura, a
pintura em guache e óleo sobre madeira.
Decidiu-se analisar este artista por uma característica que adotou em algumas de
suas pinturas sobre as bruxas: a macabridade em que ele às expõe. Em resumo, as
bruxas eram ligadas principalmente ao pecado do ato carnal, portanto, a forma que
Baldung utilizou para fazer transcender este pecado aos seus quadros foram as cenas de
orgias e relações com o Diabo nos sabás.
Esta análise visa alcançar os seguintes objetivos: pesquisar sobre a representação
da mulher nas ilustrações renascentistas contemporâneas a Baldung; analisar o conceito
de contrariedade e inversão ilustradas nestas obras; entender a relevância da exposição
da nudez e do sexo nas pinturas das Bruxas de Baldung; meditar sobre tema dos sabás e
os símbolos deste, inseridos nas imagens.
Portanto, diferenciando do restante da monografia, este momento reflete um
diálogo entre imagem e História por meio de seus símbolos pintados pelo artista.
Destarte, deve-se ter salientado que o documento deve ser visto como uma
representação e, para tanto, é preciso refletir sobre as intencionalidades de um autor
sobre a imagem. Sobre isso Napolitano escreve que imagens são:

7
As informações sobre o artista Hans Baldung Grien são escassas, as que se seguiram no texto foram
obtidas pela seguinte referência:
PIOCH, Nicolas. Hans baldung Grien. Publicado em: 14 Outubro de 2002. Disponível em:
https://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/baldung/. Acesso: 30/11/12 às 05h45min.
66

[...] portadoras de uma tensão entre a evidência e a representação. Em outras


palavras, sem deixar de ser representação construída socialmente por um ator,
por um grupo social ou por uma instituição qualquer, a fonte é uma evidência
de um processo ou de um evento ocorrido, cujo estabelecimento do dado
bruto é apenas o começo de um processo de interpretação com muitas
variáveis. (NAPOLITANO, 2005, P. 240)

3.2 A representação da mulher nas imagens do século XVI

Ilustrações como as bruxas decrépitas de Baldung realizando algum malefício ou


praticando orgias num Sabá foi talvez o ápice da representação grotesca da mulher,
porém para além da representação da bruxaria, o feminino já havia sido retratado em
obras que ora valorizavam-no ora faziam o contrário. Delumeau escreve sobre as
ilustrações do século XVI na França, que de certa forma favorecem e também
desfavorecem a mulher. Tal caso de valorização, algumas das vezes, ao tratar da
mulher dona-de-casa que era ao mesmo tempo como companheira afetuosa do marido e
como mãe dos herdeiros deste. (1989, p.344)
Imagens como de Eva amamentando e Adão cuidando da terra podem parecer
certa equivalência de posições e destacam a ajuda que as mulheres podem proporcionar
aos homens nas tarefas agrícolas. (1989, p.344-345) Porém ainda assim, mesmo em
ilustrações em que mulher aparece colhendo, cozinhando, fiando, tecendo, ela está
sendo representada em um papel menor e na sombra do homem. (1989, p.345)
O século das imagens, século XVI, de Hans Baldung Grien, passava por uma
mutação artística: as imagens medievais estavam sendo substituídas por ilustrações
calcadas numa volta às influências antigas (característica do Renascentismo). O
feminino enquanto forma era mais plástica que a silhueta masculina, [foi] utilizada
preferencialmente para personificar abstrações: a Castidade, a Verdade, a Caridade, a
Natureza, a Majestade, a Religião, a Sabedoria, a Força. (1989, p.345)
Deve-se enxergar essa iconografia feminina voltada às suas qualidades positivas
como apenas parciais. Como exemplifica Delumeau, as representações de uma mulher
polarizada (boa ou má) e, agora influenciada pela arte antiga clássica: a mulher boa,
como Maria e Minerva, simbolizava uma anti-Eva (1989, p.345). Ou seja, até a bondade
de uma mulher se interligava com o mal, pois esta era exemplo oposto da malignidade
comum às mulheres.
67

No tocante às inspirações clássicas, Pandora e Eva são os principais exemplos,


ora, com suas curiosidades promoveram uma cadeia de infelicidades sobre o mundo: a
primeira com a caixa que continha os males do mundo e a segunda por desafiar a ordem
divina ao comer maçã do pecado. Em suma, Delumeau afirma que, portanto, a mulher
ilustrada era uma armadilha, ao mesmo tempo em que ilustrava a paz poderia desviar o
homem de seu caminho.
Delumeau analisa que no século XVI, quando os artistas tinham a intenção de
representar algumas, anteriormente já ditas, nobres abstrações (1989, p.345), as
mulheres eram ilustradas despidas ou então vestidas apenas de um véu flutuante,
portanto existe um elemento do fantasioso, fora da realidade do período. Porém, ao se
tratar de uma ilustração maléfica dessas mulheres, estas eram representadas com traje
da época e estão inseridas no cenário cotidiano. (1989, p.345) Desta forma a mulher
com virtudes é representada num plano irreal, em oposto à mulher nefasta que está no
cotidiano diretamente.
Uma observação deve ser feita neste momento. Em relação à imagem 2, pode-se
encontrar esta análise de Delumeau sobre a representação da mulher nefasta com o
cotidiano do século XVI: A bruxa a direita da representação, segura em uma de suas
mãos uma colher enquanto abre um jarro. A interligação dos elementos da reflexão
então assim segue: a colher remete à vida doméstica, e consequentemente, à cozinha -
espaço que era ocupado predominantemente pela mulher.
As ilustrações do século XVI destacam frequentemente também o erotismo
como um furor feminino. (1989, p.346) Delumeau menciona uma gravura de 1557 em
que um grupo de mulheres zomba de seus maridos por suas insuficiências viris. Essa
ilustração é interessante para destacar o receio que os homens sentiam diante do tema
virilidade e de qual forma eles acreditavam que as mulheres em conjunto poderiam ser
perigosas para sua integridade moral.
Se no século XIII as ordens mendicantes eram veículo do alerta apocalíptico e da
presença do mal na terra e, no século XV, a imprensa divulgou ainda mais tais tensões,
o desenvolvimento da arte renascentista pareceu colocar tais mensagens a um olhar mais
intenso, como veremos noutro subcapítulo.
A mulher é insistentemente acusada a ser ―agente de satã‖ e, para a maioria dos
homens da Renascença, a mulher é no mínimo suspeita e no mais das vezes perigosa.
(1989, p.349) Em uma sociedade cujos pensamentos se mostravam cada vez mais certos
de que o fim do mundo estava próximo, somado à disseminação de imagens de bruxas e
68

demônios, fez-se com que a fantasia e a realidade viessem a ser confundidas no


imaginário popular.

3.3 Análises dos símbolos das Bruxas e sabás a partir das Obras de Baldung

3.3.1 Die Hexen8 (1510)

Figura1: Die Hexen (1510). Por Hans Baldung Grien. Chiaroscuro woodcut, Britsh Museum, London.

8
Imagem disponível em:
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/11/Hans_Baldung_Grien_-_Die_Hexen.jpg Acesso
em: 15/10/2015 – 14:02
69

Baldüng utilizou técnicas diferentes em suas obras, duas delas, são aqui
analisadas: A Xilogravura e o Guache. Em 1510, o Artista utiliza a Xilogravura para
ilustrar Die Hexen, – figura 1 - sua primeira obra com a temática dos sabás das Bruxas
e, num segundo momento, em 1514, compõe uma sequência de obras sobre as bruxas
utilizando o Guache.
Para contextualizarmos o uso de tais métodos, num período marcante para a
História da Arte, recorremos aqui à análise de Peter Burke e Asa Briggs na obra: Uma
História social da Mídia: de Gutemberg à internet.
Burke e Briggs examinam o uso das Xilogravuras no período correspondente ao
movimento Renascentista e demonstram que, apesar do primeiro exemplar desta técnica
ter aparecido no Japão (764 a.C) ela se desenvolveu com maior influência para o
Ocidente no Renascentismo do final do século XIV: O meio utilizado era um bloco de
madeira ou uma placa de cobre ou aço, com a imagem cinzelada na placa (gravada) ou
feita por corrosão com ácido (no caso de água-forte). (BURKE, 2006, p.44)
A técnica reaparece inspirada na confecção de tecidos, e tinha como principal
temática a religião, visto que no século abordado a Igreja Católica era extremamente
influente. A forma com que se gravavam as imagens em madeira eram um meio
econômico na substituição do desenho manual.
Deve-se atentar ao fato que, o período analisado concerne nos antecedentes
muito próximos à revolução da imprensa (1455) de Johannes Gutenberg. Neste
contexto, a mudança na comunicação visual, que a partir de então possibilitava a
disseminação de imagens em maiores proporções, alcançou diversos outros artistas do
Renascimento, como pode ser visto nas Xilogravuras de Sandro Boticceli em suas
ilustrações da Divina Comédia, além de Leonardo Da Vinci, Michelangelo e Rafael.
As imagens revolucionadas pela imprensa se tornam um divisor de águas no
alcance ao público, de forma que, a maioria da população europeia deste período era
analfabeta e os tratados e obras escritas eram acessíveis, quase que estritamente aos
nobres e aos clérigos. Portanto, a difusão das imagens pela imprensa fez alcançar até
esse público da camada social inferior, que não tinham condições de ler, mas podiam
muito bem sentir o impacto das imagens.
A Reforma Protestante também se aproveitou da revolução na Imprensa e,
notam-se muitas obras de Xilogravura que patrocinavam seus ideais. O próprio Hans
Baldung Grien em 1520 produziu uma imagem Xilogravada de Martinho Lutero.
70

Destaque para o caráter divino na obra: o halo reluzente na cabeça do sujeito,


demonstrando sua propaganda ao reformismo.

Figura 2 - Hans Baldung Grien, xilogravura de Martinho Lutero, 1520. 9

Contudo, Baldüng, dez anos antes da ilustração de Lutero havia produzido seu
primeiro Sabá em Xilogravura (figura 1). Esta produção – Sabá - demonstra o mito que
permeava sua contemporaneidade: os encontros noturnos que as bruxas promoviam para
realizar seus rituais em cerimônias contrastantes com as missas Católicas.
A cena ilustrada assim segue: duas mulheres de fisionomia grotesca sentadas e
uma outra no centro de braços erguidos parecendo segurar um prato. Uma quarta mulher
voa montada ao contrário10 em um bode. O ambiente é uma floresta, pelo que demonstra
o fundo com árvores e com o céu aberto. No chão, em frente às mulheres pode se ver
ossadas e um gato de costas. As mulheres parecem estar fazendo algum tipo de magia
que sai do centro do grupo das três e sobe ao céu.
Mulheres decrépitas sem roupas produzindo algo misterioso no meio da floresta
era uma representação frequentemente feita pelos pintores da época para ilustrar os
Sabás das bruxas. Mas como Baldung recebeu essas influências, ou melhor, de onde ele
tirou esses elementos aqui já descritos para produzir suas obras? Para responder a essa
pergunta é necessário adentrar no universo dos sabás.

9
Imagem disponível em: http://pt.wahooart.com/Art.nsf/O/8BWR8V/$File/Hans-Baldung-Portrait-of-
Martin-Luther-S.JPG. Acesso em: 30/11/2015 – 07:58.
10
O elemento de contrariedade é muito importante e será refletido no capítulo 3.4 deste trabalho.
71

Para tentar articular a obra de Hans Baldung Grien com o que elas representaram
no seu tempo, é necessário que uma análise antecedente a sua produção seja feita. Isso
significa que a tentativa é de novamente trabalharmos com a conexão do recorte ao
processo, ou seja, das ilustrações à historicidade – simbólica até - carregada nelas.
Portanto, achou-se necessário ter por obra norteadora a História Noturna:
decifrando o Sabá de Carlo Ginzburg. A escolha tem uma explicação simples: Ginzburg
consegue construir as representações do Sabá entendidas como um processo, ou seja,
desde quando supostamente seja seu início até as repercussões e mutações que
envolveram seu auge na perseguição inquisitorial. Destarte, outras obras destacadas pelo
historiador serão citadas, além de bibliografias que se conectam com a representação
estética da bruxaria.
O tema do Sabá, ganha mais força, segundo Ginzburg, a partir do século XIV.
Ginzburg tenta traçar o início dos encontros diabólicos das bruxas, ou ainda, a partir de
qual momento acreditava-se que as bruxas teriam deixado de agir individualmente e
começado a se encontrar nos sabás. Analisando sobre os processos que o Juiz de Berna
Peter von Greyerz (GINZBURG, 1991 p.76) teria prescrito, Ginzburg percebe uma
atenção mais séria à estas seitas aproximadamente em 1375.
Junto a isso, o Historiador analisou que no século XVI um inquisidor chamado
Bernardo Rategno teria concluído em seu Tractatus de strigibus que a seita teria
começado 150 anos antes de sua contemporaneidade – o que remete a meados do século
XIV. Cruzando tais fontes Ginzburg conclui: o início das seitas denominadas mais tarde
de Sabás, teria início pouco depois de meados do século XIV. (1991, p.77)
Para além das datas, Ginzburg também tenta traçar a geografia dos Sabás. Para
descobrir a região da possível origem, o Historiador reflete que Greyerz relatou das
bruxas na região de Berna. Em seguida, ao analisar sua segunda fonte, Bernardo
Rategno, viu-se que este teria analisado processos inquisitoriais na cidade de Como.
Sendo assim, cruzando novamente suas fontes, a conclusão seria de que, foi na região
dos Alpes Ocidentais que as denúncias de seitas das Bruxas começaram a surgir.
Na entrada do século XV, o estereótipo do Sabá já tinha se alastrado por toda a
região dos Alpes e cada vez a ameaça se potencializara. Como escreve Ginzburg a
imagem da seita tornara-se mais específica: a apostasia da fé [...] fora sendo
enriquecida com novos e macabros detalhes; (1991, p.80) a ameaça de que algumas
pessoas compactuavam com o diabo tinha ganhado força, além do temor ao Diabo, que
havia ganhado uma forma cada vez mais apavorante.
72

Se formos fazer um breve resumo do imaginário daquele início de século em


relação às seitas, podemos dizer, com embasamento em Giznburg, que as palavras-
chave do que acontecia nestes sabás poderiam ser: orgia, profanação, infanticídio e
adoração ao Diabo.
Carlo Ginzburg nesta obra nos lembra de que por volta de 1435 e 1437 o
Teólogo Dominicano e também alemão Johannes Nider escreveu o tratado
demonológico Formicarus que seria muito influente para as demais descrições de sabás.
Ginzburg resume o ideário da obra de Nider: É uma obra em forma de diálogo [uma
discussão que trata das] virtudes e os vícios dos homens e os costumes das formigas [...]
(1991, p.75) sendo que uma de suas partes da obra é dedicada à feitiçaria e à magia.

A devoradora
Nider, sobre as seitas dos feiticeiros e bruxas escreve com mediação do Juiz
Greyerz que, na região de Berna, existiam pessoas que se encontravam para devorar
crianças e que na Região de Lausanne alguns desses feiticeiros haviam cozinhado e
devorado seus próprios filhos. (1991, p.76) O mesmo Peter Von Greyerz teria mandado
para a fogueira pessoas acusadas de devorar treze crianças. Segundo o juiz, estes que
foram acusados e executados, teriam pegado as crianças colocando-as para cozinhar
numa panela, até que a carne [fosse dissolvida], destacando-se dos ossos. (1991, p.76)

Detalhe da figura 1 - a Bruxa e o Prato


73

O prato que a bruxa segura na imagem 1, o qual segue recortada acima, expõe o
que supostamente seja pedaços de animais, contudo, também nos serve como referência
justamente à esses supostos relatos da mutilação da carne humana e por seguinte,
servindo de alimento às bruxas. Essa relação, da representação do cozimento de
membros de corpo tem uma implicação com dois vieses: o primeiro da mulher
relacionada à sua tarefa de cozer, e o segundo a influência das representações dos
grupos antropofágicos do novo mundo Americano, recém-descoberto.
Este último viés, requer uma atenção neste momento, pois a influência desta
antropofagia ameríndia esteve exposta em quase todo imaginário de representação às
bruxas a partir do século XVI. . Sobre este estudo em que relaciona as representações
das índias antropofágicas e as Bruxas europeias, utilizo da leitura de IMAGENS DA
COLONIZAÇÃO: A representação do Índio de Caminha a Vieira de Ronald Raminelli.
Jean de Lery, um missionário e escritor Francês que viera para a França
Antártica (colônia Francesa no Rio de Janeiro) na metade do século XVI, perpetuou em
suas escrituras algumas visões antropofágicas que teria testemunhado. O que parece ter
chamado a atenção do francês foram as mulheres e, mais especificamente as velhas. Tal
percepção advém de sua narração detalhista sobre estas ―senhoras‖, dizendo que, o furor
de sua gula, ao comer a carne servida, mostra-se diferenciada aos demais índios,
parecendo insaciável.
Outra testemunha do Antropofagismo Ameríndio foi o Padre João de Azpilcueta
que também tinha chegado à colônia nas proximidades do ano de 1550. Raminelli
escreveu que o Padre havia constatado os desvios “demoníacos” das índias idosas
(RAMINELLI, 1996, p. 100), após ver o cozimento de membros humanos. Segundo
Raminelli, Azpilcueta Vê atônito seis ou sete velhas dançando ao redor da panela,
apesar de não suportarem o peso de seus corpos. (1996, p. 100) Estes Europeus que
testemunharam tal visão ligavam tais práticas ao demoníaco.
Visto que estamos falando de meados do século XVI, podemos refletir sobre a
mentalidade destes homens que foram para o novo mundo, levando consigo a bagagem
influente da caça às bruxas que ocorria rigorosamente na Europa. A Influência do
Malleus é um exemplo desta bagagem, ora, se foi escrito proximamente ao
descobrimento da América. O discurso antifeminista desta obra perpetuaria todo este
século XVI, século que foram produzidas tais representações das bruxas de Baldüng e
também das índias antropofágicas de Jean de Lery e Theodor de Bry – outro ilustrador e
escritor influente.
74

As bruxas de Hans Baldüng Grien revelam muito semelhanças com as índias


antropófagas pintadas mais tarde pelos artistas como Thedor de Bry: os detalhes
característicos do corpo das velhas, as ossadas e a floresta além de expor um
pessimismo à mulher. Baldüng Grien figura por intermédio de bruacas a misoginia do
seu tempo, concebendo a humanidade, e particularmente, as mulheres, como seres
guiados por vícios e fraquezas. (1996, p. 100)
Neste contexto, fica bem claro, o filtro misógino com que passavam as
representações destes índios e sua relação com as imagens de sabás e seus símbolos em
comum. Tal conivência é explicita por Raminelli neste excerto de sua obra:

[...] a semelhança entre as bruxas de Baldung Grien e as índias


antropófagas de Theodor de Bry, por intermédio das formas
visuais das bruxas e do estereótipo das feiticeiras buscaram
traduzir a estranheza contida nos relatos de viajantes e cronistas.
Ainda que o artista não tivesse concebido as índias canibais
como bruxas, recorreu à sua forma física, amplamente difusa na
Europa, para figurar as ameríndias. (1996, p. 104)

Portanto, nas representações estereotipadas dos Sabás das bruxas de Baldüng


(que de certa maneira teve um diálogo com o novo mundo), e antes dele nas discrições
de Nider, existiram alguns elementos em comum neste imaginário sabático, são eles
segundo Ginzburg: a reverência ao demônio, à abjuração de Cristo e da fé, a
profanação da cruz, o unguento mágico, as crianças devoradas. (1991, p.77) Como já
dito, essas descrições de Nider eram o começo de uma série de representações desses
Sabás que se fortaleceria ainda mais.

Unguentos mágicos
Destes elementos citados, os Unguentos (poções que se misturavam várias
espécies de ervas) tem uma caracterização importante na representação das bruxas,
inclusive na Xilogravura de Baldüng, que pelo menos em três cenas aparecem às
sujeitas segurando alguma espécie de jarro, o que pode ser sugerido como algum
reservatório de magia. Tais poções, que eram vistos pela Igreja como algo de teor da
magia diabólica foram julgadas, a partir de confissões inquisitoriais, de conter
75

componentes alucinógenos. Com isso, podemos juntar as temáticas dos unguentos


mágicos com os voos e a vassoura (ou o cabo).

Detalhes da figura 1: recipientes

Alguns doutos da época, como os próprios juízes, acreditava que as bruxas se


drogavam com estes unguentos, oque favorecia uma alucinação de que elas estivessem
voando, confissões a este respeito supostamente teriam sido realizadas. As ervas usadas
pelas sujeitas, geralmente eram a Beladona (Atropa belladonna) e a Mandrágora
(Mandragora officinarum), ambas as plantas que possuem substâncias alucinógenas se
ingeridas em demasiadas quantidades.
Quanto às vassouras, além de ser uma referência ao mundo privado da vida
doméstica, regulada ao feminino, foi também aparelho para o uso das plantas
alucinógenas. As substâncias se tomadas por via oral poderiam causar efeitos colaterais,
por isso se fossem absorvidas pela pele o efeito seria mais eficaz, com isso, tendo
ciência de que, as mucosas da genitália feminina absorviam melhor as substâncias, o
cabo da vassoura foi utilizado como ferramenta junto aos unguentos pelas ditas bruxas.

O voo da bruxa
Neste contexto, um questionador da magia natural, Giovanni Battista Della Porta
(1535-1515) provava por meio de experiências os efeitos dos alucinógenos. Destarte,
Della Porta rejeitava a crença de que as bruxas induziam o vôo lambuzando-se com um
ungüento, tendo testado isto num notório experimento relatado na primeira edição de
seu “Magia naturalis”. (CLARK, 2006, p.316)
76

Detalhe da figura 1: o voo da bruxa

Num tempo em que a cura para enfermidades era feita pelo uso de poções,
algumas curandeiras de vilas, por exemplo, muitas vezes foram taxadas de feiticeiras.
Um exemplo explicativo assim segue: uma criança fica doente num vilarejo, a mãe leva-
a para a curandeira que passa alguma espécie de pasta de erva no corpo da criança a fim
de curá-la, contudo esta criança morre em poucos dias. Como consequência esta vila,
isola a curandeira, acreditando ser ela a responsável pela morte da criança. Era a cultura
e mentalidade folclórica do vilarejo fazendo prevalecer preconceitos que alienavam
certos sujeitos da sociedade.
Um parêntese sobre a feitiçaria folclórica: O Historiador Jeffrey Burton Russel
define em sua obra História da bruxaria que, a feitiçaria no que tange ao uso de magias
por partes de certos grupos para o mal ou para o bem, é característica da antiguidade e
da alta Idade Média. Essa feitiçaria fora difundida por vários cantos da Europa e, mais
especificamente na setentrional e no segundo milênio nos Alpes Italianos.
Mas oque importa-nos aqui é deixar sucinto que antes do pensamento popular
das feiticeiras se mesclarem com a mentalidade de perseguição herética promovida pela
inquisição, existiam algumas representações que podem ter alguma influência, no
sentido de herança até, as representações das bruxas da baixa Idade Média e
Modernidade – inclusive nas obras de Baldung.
Ginzburg analisa que no Formicarus não houve registros de bruxas voadoras,
contudo, noutra fonte - as crônicas de Jüstinger Von Königshofen (1991, p.79) (1348)
encontram-se informações interessantes. Sob esta fonte, foram analisados processos na
77

região de Valais, (1991, p.80) passando por Henniviers, Hérens e Sion, em que se
obtiveram informações de que alguns bruxos iam à suas reuniões voando sobre bastões
e vassouras. (1991, p.79) Tais registros foram obtidos por meio de supostas confissões
dos acusados por meio de torturas inquisitoriais. Segundo as crônicas, as fogueiras de
Valais arderam mais de cem vidas neste processo.

Bestialidade
É comum, até no imaginário atual do Ocidente, lembrarmo-nos de figuras
animalescas como o gato e o bode quando nos referimos à representação da Bruxaria.
As raízes destes elementos que parecem se conectar foi por muitas vezes alvo de
questionamentos. Robert Muchembled dedica um espaço de sua obra Uma História do
Diabo para refletir sobre os aspectos dessa bestialidade animalesca em relação ao
universo do homem.
Muchembled ressalta que no início do novo milênio, a Igreja Católica ainda
buscava sua solidificação perante as outras crenças e culturas pré-cristãs que estavam
distribuídas pela Europa e que, mesmo após séculos de cargas ideológicas desta
instituição Religiosa, guardavam resquícios de herança pagã. Desta forma, a Igreja teve
de levar em conta estas formas populares. Contudo, aos poucos, com o progresso
econômico, surgimento das cidades e maior penetração do Catolicismo nos meios
sociais essa divisa entre os católicos eruditos e a cultura popular foi se estreitando.
No século XII uma reflexão que se tornaria um divisor de águas para a ideia da
personificação do mal e sua influência terrena começa a ser refletida: os eruditos
começam a pensar sobre as fronteiras entre o homem e o animal [...]. (2001, p.41) Até
este momento, a divisa entre as forças malignas ―sobrenaturais‖ e o mundo concreto era
bem clara, o imaterialismo dos agentes do demônio e até dele próprio consistia a base
para não se pensar em um contato entre o homem e o tinhoso. Tal reflexão da tomada
material destes agentes malignos define-os como bestiais. (2001, p.41)
Nesta linha de pensamento, duas possibilidades se inserem. A primeira sobre a
possibilidade de a partir de então, serem possíveis as relações sexuais entre demônios e
seres humanos; a segunda, e que mais nos interessa neste momento, de que a fronteira
nítida entre homens e animais rompia-se a partir do século XII. (2001, p.41)
Muchembled lembra de que a cultura popular antiga forçava certo estreitamento
nas fronteiras entre o homem e o animal, como no Poema Metamorfoses de Ovídio (8 d.
C) em que homens e Deuses teriam a capacidade de transmutar-se em animais, árvores
78

ou pedras. A princípio, neste século XII tal ideia fora refutada pelos Doutos da Igreja,
alegando ser ilusória tal transmutação, contudo, não demoraria muito para a ideia ser
discutida e difusa entre os outros doutores, causando inclusive um novo sucesso da obra
de Ovídio nos séculos que se seguiram.
Com a barreira do animalesco e do homem se diluindo, podem-se perceber
quase três séculos depois a consequência: a crença da influência das ações do Diabo no
mundo, como sujeitos que se materializam para tentar o homem e ainda, estes seres com
fisionomias híbridas, ou seja, percebem-se características humanas e também bestiais
nos demônios. Apenas com o teor de exemplificação, segue a imagem ilustrada pelo
gravador alemão Martin Schongauer que revela estes traços da personificação da
tentação, juntamente com a hibridez dos demônios.11

Figura 3: Martin Schongauer (1450-1491) The Temptation of Saint Antony, 1490. Gravura. Museu Britânico,

11
Imagem disponível em:
https://s3.amazonaws.com/classconnection/84/flashcards/6355084/png/screen_shot_2015-02-
28_at_21921_pm-14BD1A11FF332E8105E.png Acesso em: 27/11/2015 – 12:45
79

Um parêntese aqui deve ser feito para aproveitarmos a reflexão desta imagem.
Além dos simbólicos bestiais, As tentações de santo Antônio traz à tona a ideia do mal
que tenta o homem, e quando este último cede, passa a sentir-se culpado. Sobre isso,
Delumeau, em sua obra A civilização do renascimento demonstra que o individualismo
religioso (DELUMEAU, 1984, p.142) se faz essencial para entender esta passagem do
século XIV para o XV.
Tal individualização propagava um sentimento de culpabilização individual
(1984, p.143) no homem e, que foi intensificada nestes tempos por um clima de
desastres naturais e adversidades sociais como a fome e a peste. O homem
contemporâneo à este tempo acreditou que tais incidentes fosse um castigo divino de
suas falhas terrenas. Assim, Delumeau insere a histeria das bruxas neste contexto:

Tantos flagelos não podiam deixar de ser um castigo de Deus e, como a


consciência individual – um facto da civilização – estava a emergir da
escuridão, todos se sentiram horrorosamente culpados. Vendo o mal em toda
parte e sentindo-se moral e fisicamente ameaçados pelo diabo [...], os cristãos
acreditaram mais que nunca nos ‗sabbas‘ de feiticeiras [...] Recearam mais que
nunca a punição divina: a morte conduziria a uma eternidade de suplícios.
(1984, p.143)

Para finalizarmos esta etapa do processo da animalidade inserida no contexto


terreno, acreditou-se ser interessante aqui refletir sobre uma colocação da Historiadora
Estadunidense Joyce E. Salisbury. A Historiadora acredita que esta promoção no olhar
aos animais na baixa Idade Média, revela ao ser humano um medo da fera interior [...]
capaz de apagar suas qualidades de racionalidade e de espiritualidade para só deixar
subsistirem os apetites bestiais de concupiscência, de fome e de raiva. (SALISBURY,
1994 apud 2001 p.47) Em suma, tal ideia é a de que o homem de tal época devia
precaver-se e controlar-se, sobretudo no que tange às suas paixões, pois as tentações
demoníacas poderiam alimentar a ―besta‖ que existe dentro dele.
Com a apresentação do processo que culminou na relevância do olhar sobre o
animal, e também sobre a transformação da besta, podemos analisar em específico a
forma do gato, que aparece não apenas na Xilogravura de 1510, mas em outras coleções
de Baldüng em 1514.
80

Gatos e bodes
O Cronista alemão Jüstinger de Königshofen registrou em 1348, as passagens
sobre as seitas de bruxaria definindo que as sujeitas podiam transformar-se
temporariamente em lobos, (GINZBURG, 1991, p.80) essa característica animalesca se
enquadra no gato virado de costas ao lado de um das bruxas.

Detalhe da figura 1: o Gato

Com relação aos felinos, Giznburg cita a aparição destes seres em alguns
processos persecutórios no século XIV. Martino de Presbitero (1991, p.80) que liderava
a seita herética no Val di Lanzo, região norte da Itália, dizia criar um gato preto cujo
tamanho assemelhava-se a um carneiro. Outro caso popular de ligação do gato às seitas
heréticas – porém não particular à bruxaria – é a da adoração dos Cátaros ao Diabo em
forma de um gato em suas celebrações.De fato, a leitura sobre a perseguição aos cátaros
e suas seitas (como esta citada de 1022) é muito importante, porém vamos nos conter as
datas a partir do século XIV para ainda manter relações com a nossas obras analisadas.
O gato da seita de Val di Lanzo no século XIV, e também, descritos nas
confissões dos Valdenses no Vale de Piemonte (1991, p.86) são um dos momentos de
fusão entre os estereótipos inquisitoriais e cultura folclórica. (1991, p.86) Esta
interação, como nomeia Ginzburg, resultará não apenas na imagem de um gato
diabólico, sempre presente nos sabás da bruxaria, mas também em vários outros
81

elementos animalescos no que se refere às caracterizações de entidades malignas. Os


bodes, que aparecem também na cena de Baldüng, são outro símbolo da reminiscência
de culturas pagãs anteriores ao Cristianismo. Vamos buscar entender a construção de
sua importância nesta imagem.

Detalhes da figura 1: os bodes

A expansão católica na Europa no primeiro milênio mostrava a aculturação que


as outras crenças de alternadas regiões sofriam. Jeffrey B. Russel explica que esse
processo, que demonstrou o triunfo Católico, alcançara no século VII a Inglaterra, IX à
Alemanha e XII a Escandinávia. Culturas, cultos e crenças dessas regiões eram tidas
como pagãs e personificados, a moda Católica, a alguma relação ao mal, ou até mesmo
encarnados a personificação do Diabo.
Cultos foram vistos como invocações diabólicas, de caráter mágico. Fica clara
aqui, a influência da repulsão de santo Agostinho no século V à repulsa a toda e
qualquer expressão de magia, sendo consideradas artimanhas do Diabo. Mesma
demonização ocorrera com os Deuses do panteão Romano, como Diana – transformada
em Hécate, um ser de três cabeças que fora associada à noite e à magia malévola.
(2008, p.56) O mesmo ocorreu com os Deuses Celtas e Teutões quando a Igreja
expandira sua ideologia ao norte no século XII, como já citado.
A figura do bode faz parte de todo esse quadro, pois sua antiga representação
associada à libido e a fertilidade – símbolos dos festivais Dionisíacos (Grécia) ou de
Baco (Roma) foram ambos demonizados pela Instituição Católica. Inclusive a imagem
dos demônios com cifres, cascos e rabos de bode seriam frequentes a partir de então.
O Historiador Americano Luther Link em sua obra O Diabo: a Máscara sem
Rosto escreve sobre uma passagem de São Jerônimo, Padre contemporâneo a Agostinho
de Hipona, revelando um possível primeiro momento da relação entre o bode e o
82

maligno: Jerônimo chamou os sátiros e faunos de símbolos do Diabo, demônios


lascivos, e quando Isaías descreveu a Babilônia em ruínas como um lugar onde
dançavam “peludos” (sair, em hebraico), Jerônimo interpretou isso como uma
referência aos sátiros. (LINK, L. 1998 apud MONTEIRO FILHO, 2012, p.60)
Outra interpretação, desta vez do Historiador Carlos Roberto Nogueira completa
a anterior: o bode, assim como os demônios, era conhecido por sua devassidão e mau
cheiro, e na consciência popular, sua belicosidade e os prejuízos que causava a campos
e colheitas aumentavam as suas possibilidades de ligação com o furioso e destrutivo
Inimigo. (NOGUEIRA, C. R. F. 2000 apud MONTEIRO FILHO, 2012, p.60)
Por fim, podemos concluir, sobre esta bestialidade nas imagens das Bruxas de
Baldüng, que tais animais estão propositalmente ligados a toda carga demonizada que
carregaram neste processo aqui dissertado.
83

3.3.2 - Three Witches12 e Departing for the Sabbat (1514)

FIGURA 4: Three Witches, 1514 por Hans Baldung Grien. De Graphische Sammlung Albertina,
Viena.

12
Imagem disponível em : http://tinyways.com/media/img/grien/grien_02.jpg Acesso em 14/11/2015 –
07:17.
84

13

13
Imagem disponível em : http://uploads8.wikiart.org/images/hans-baldung/departing-for-the-sabbath.jpg
Acesso em 14/11/2015 – 09:44
85

Figura 5: Departing for the Sabbat, 1514.

Quatro anos após a produção de sua Xilogravura, que aqui fora analisada,
Baldüng cria uma coleção de pinturas novamente sobre a temática da bruxaria e, desta
vez, utiliza o Guache, em seu desempenho. Neste trabalho, analisaremos duas destas
pinturas do ano de 1514.
O Guache foi comumente utilizado no início da modernidade nas pinturas
renascentistas, o destaque por sua tinta a base de água destaca a perspicácia do artista
em sua espontaneidade nas pinceladas, visto que é mais difícil a correção de algum erro
no momento da produção. Albrecht Dürer, mestre de Baldüng, foi possivelmente o
primeiro a ficar popular com a técnica Aquarela – que utiliza o guache – na Europa. É
bem provável, que a influência de Baldüng em utilizar guaches tenha advindo de seu
mestre já que este produzia assim muitas de suas obras, como a Lebre jovem (1502):

14

Figura 6 - Lebre Jovem, aquarela e guache em papel de Albrecht Dürer, 1502.

Em suma, nas obras de Baldüng que analisaremos à frente, podemos ter em


mente já disposto as influências dessas técnicas artísticas descritas e, além disso,

14
Imagem disponível em: www.historiadaartecomvoce.blogspot.com Acesso em 21/11/2015 – 13:21
86

desenvolver, a partir de agora, a análise contextual, do universo que abrigava a


mentalidade representacional sobre os sujeitos nas imagens abordadas: a mulher. No
entanto, alguns símbolos contidos nestas duas imagens, já foram analisados no capítulo
3.3.2 (voo das bruxas, poções mágicas e os animais em cena) revelando uma
continuidade destes símbolos que se identificam às imagens de sabás. .

Inversão
Existe na performance de algumas das bruxas ilustradas nestas imagens de
Baldung uma mensagem central: a inversão, e ela pode ser vista pelo corpo das sujeitas.
Na imagem recortada abaixo, que corresponde à figura 4 deste trabalho, uma das bruxas
se prostra de joelhos ao chão com a sua cabeça tornada para o vão de suas pernas, tendo
sua visão invertida, de cabeça para baixo. Da mesma forma, a Xilogravura de 1510 Die
Hexen já vista, exibe uma das bruxas voando montada inversamente nas costas de um
bode.

Recorte da figura 4: A bruxa virada ao contrário

Para o Historiador Stuart Clark, autor de Pensando com Demônios, existe nestas
inversões ilustradas, mais do que elementos corporais, mas sugere também uma quebra
de conduta, uma contrariedade na conformidade com o processo civilizatório (2006,
p.39) e, que em conluio á isso, a desordem na posição dos sujeitos ilustrados retrata a
87

maneira com que as bruxas enxergam o mundo. Em suma, a malignidade no caráter das
Bruxas é contrária à ordem social firmada pela Igreja, elas fazem tudo ao inverso, se
existe o bem, elas querem o mal.
Para ainda mais citar o elemento da desordem, vemos que na Figura 4 a bruxa de
joelhos ao olhar por entre suas pernas, lança seu olhar para fora da imagem e atinge,
como que num diálogo, o mundo ―de cá‖, seu olhar é inverso, enxerga o caos. Clark nos
lembra de um provérbio alemão que dizia que os que adotassem essa pose com certeza
avistariam o Diabo. (2006, p.39) Ainda neste contexto continua o autor: Baldung está
nos lembrando. As bruxas moldam seu comportamento em nosso mundo, como nós
fazemos. Mas como sua inspiração é demoníaca, sua percepção é invertida; elas vêem e
fazem tudo de maneira errada. (2006, p.40)
Tal noção do olhar que atinge o ―outro lado‖ nos ajuda a entender que a
mensagem de Baldung sobre esta bruxa é a de que esta enxerga o mundo de ―cá‖ todo
invertido e ainda, o comportamento desta é moldado ao mundo, porém fazendo-o
sempre o contrário devido sua inspiração satânica.
As noções de inversão que estamos aqui descrevendo, ficam mais claras com os
exemplos, e para isso, Clark cita o Italiano Giovanni Lorenzo D‘anania que teria
testemunhado um Sabá. D‘anania dizia que ao invés de as bruxas venerarem ao diabo
virando seus rostos para ele, viravam-se às costas e curvando sua cabeça não sobre o
peito mas para trás, sobre os ombros. (2006, p.42)
Pierre de Lancre, um dos Juízes que promoveram a caça às bruxas em Bordeaux
no século XVI dissera que uma testemunha havia lhe contado que teria visto pessoas em
sabás levantando Hóstias pretas, em oposto às Hóstias brancas das missas católicas. O
Teólogo católico francês Jean Boucher em 1624, também se posicionará sobre os atos
de inversão das Bruxas escrevendo que:

[elas] fazem o sinal-da-cruz com a mão esquerda e não com a direita, dizem a
missa de trás para a frente e freqüentemente nuas, e não vestidas, às vezes no
ar com a cabeça para baixo e os pés para cima, e não com os pés no chão; e
nesta posição elas erguem a hóstia preta, e não branca, e às vezes triangular, e
não redonda; elas beijam o traseiro, e não a boca, fazem banquetes sem pão
ou vinho, em desprezo pelas formas sacramentais, e adoram ao diabo , e não
Deus; elas dão sermões para exortar os homens a se vingarem, caluniarem, a
serem lascivos, a roubarem e assassinarem, a corromperem e arruinarem
outros. (BOUCHER, J. 1624 apud 2006, P.42)
88

Devem-se entender os motivos pelos quais se fazia necessário o olhar dos


contrários sobre as imagens de Bruxaria. Stuart nos diz que a bruxaria certamente se
tornou alvo de um ódio especial, precisamente porque os cristãos poderiam reconhecer
muito de si próprios neste tipo particular de alteridade. (BOSSY, 1985 apud 2006,
p.59) Assim sendo, a lógica dos contrários se encontra como certa extensão da
necessidade dualística no catolicismo de ordem e desordem, bem e mal que foi
discorrido no primeiro capítulo deste trabalho.

Velhas
Para finalizarmos o Capítulo, a característica última a se refletir aqui é a que
concerne não apenas as pinturas em guache de 1514, mas também a maioria das
pinturas de Baldüng em relação às bruxas: a representação nua das sujeitas e a presença
da velha e da jovem no mesmo espaço. As ideias embutidas nesta análise perpassam
pelos polos do Erotismo e da decrepitude, do fascínio a repulsa.
Na imagem 4 estão figuradas três mulheres, duas delas jovens e sedutoras -
julgados os padrões de beleza neoplatônicos da renascença – e uma velha com os peitos
e pele flácidas, típicas das ilustrações deste campo. Na Imagem 5, outras três jovens são
acompanhadas de uma velha. O Historiador Jean Delumeau traz à luz, a ideia de feiura
que pode ser destacada à esta ilustração: freqüentemente a mulher velha e feia é
apresentada como a encarnação do vício e a aliada privilegiada de satã. Na época da
Renascença ela desperta verdadeiro medo. (1989, p.347)
A personalidade do sujeito estava tão interligada com sua aparência, que: Em um
tempo em que neoplatonismo em moda ensinava que beleza é igual à bondade,
acreditou-se logicamente [...] que decadência física significava malignidade. (1989,
p.348) Era o tempo da tomada de alguns valores clássicos e logo, tal pensamento de
Platão fazia-se vivo nas representações ilustradas e também, por seguinte, no imaginário
social.
Jean Bodin em sua obra Demonomania escreve sobre a relação entre a feiura e a
bruxaria: Sua feiura é a causa de elas serem bruxas e se entregarem aos diabos, pois se
elas pudessem encontrar algo melhor, não aceitariam tais namorados. (BODIN apud
2001, p.104) Esta menção, não é mais que uma síntese sobre a imagem da bruxa que se
89

envolve por meio de relações sexuais com os demônios para firmar seus pactos
diabólicos.
Seguindo esta linha, Poetas Renascentistas como Pierre de Ronsard, Joachim du
Bellay, Agrippa d'Aubigné narraram em suas poesias as características grotescas que
Hans Baldung Grien e também seu mestre Dürer ilustraram em suas pinturas.
O citado Joachim du Bellay escrevia sobre a inerência do corpo ao espírito, no
sentido de que as belezas destas duas esferas seriam proporcionais à suas respectivas
qualidades: Um corpo lento, pesado, grosseiro ou mal proporcionado dificulta em
muito a sutileza do espírito, e constitui um obstáculo a várias virtudes. (RIVAULT,
1596 apud JOUANNA, A. 2010, p.26) Além da figura estética dos traços da velhice que
encarna tais adjetivos diabólicos, a mulher feia e velha também representa a morte, ou a
proximidade a ela.

Recortes das Figuras 4 e 5: As velhas

Estas representações de bruxas Modernas, assim como as de Baldüng, expõem


as sujeitas com as características que revelam a tal citada velhice, isso nos leva a dois
exames: o primeiro explicado pelo viés Inquisitorial e outro pela conexão que a velhice
tinha com o Demônio e a morte.
90

Primeiramente, sobre o sentido Inquisitorial vamos buscar nas análises de Brian


P. Levack as referências que demonstram que este estereótipo – a Bruxa velha – foi
reforçado pelo número de mulheres com mais de 50 anos processadas na Inquisição sob
acusações de bruxaria. Vejamos a seguinte tabela:

Tabela 2 - Idade dos acusados de bruxaria (1988, p.133)

REGIÃO ANOS BRUXAS DE N.º ACIMA % ACIMA


IDADE DE 50 DE 50
CONHECIDA
Genebra 1537-1662 95 71 75
Dpto.º do 1542-1679 47 24 51
Norte, França
Condado de 1645 15 13 87
Essex, Inglaterra
Wüttemberg 1560-1701 29 16 55
Salém, Mass. 1692-1693 118 49 42

Considerando os dados que o autor nos traz, é seguro analisar que a maioria das
bruxas de tais lugares era realmente mais velha, visto que ter 50 anos naquele período
era considerada uma idade ―avançada‖.
Levack ainda traz algumas tentativas de explicação sobre a ―velhice‖ das bruxas.
Uma primeira explicação decorre do tempo que demorava para uma bruxa ser
processada, devido a longa duração de suspeita de vizinhos, ou qualquer outro membro
da sociedade. Em segundo lugar, as curandeiras, que por muito fora acusadas, detinham
um saber grande sobre seus medicamentos, fator que geralmente apenas pessoas de mais
idade dominavam. Uma terceira explicação vem da própria condição na natureza da
velhice, como escreve escritor Cyrano de Bergerac no século XVII:

Ela era idosa: a idade enfraquecera sua razão. A idade torna a pessoa
tagarela: ela inventou a história para divertir seus vizinhos. A idade
enfraquece a visão: ela confundiu um Gato com uma Lebre. A idade torna a
pessoa nervosa: ela pensou estar vendo 50, em vez de uma. (1988, p.134)
91

Com efeito, a pessoa velha tende a criar tais ilusões e acabava por incomodar
seus vizinhos que viviam suspeitando ora das tagarelices da velha, ora, da
antissociabilidade destas.
Sobre a conexão da velhice com o Diabo, deve-se incluir o elemento do sexo. A
mulher velha era vista por alguns, principalmente pelo clero, como uma insaciável
movida por desejos carnais, ainda mais se viúva. Na Inglaterra, o escritor Robert Burton
escrevera em sua obra: Anatomy of Melancholy (1621) (1988, p.135), que as velhas
eram insanamente luxuriosas. Talvez, este pensamento não era particular de Burton,
mas ilustrava o de muitos que compartilhavam de sua ideia.
Destarte, como vimos no primeiro capítulo, o sexo era uma espécie de ―porta de
entrada‖ do maligno, que principalmente pelo ato carnal e logo seu desejo, os maiores
pecados eram cometidos. Podemos então, tentar ilustrar certa ligação da representação
das bruxas de Baldüng para com o que foi aqui analisado: a velha é ilustrada decrépita
numa tentativa de causar o horror em quem vê – gerando o alerta de que este sujeito é
perigoso. Nua, pois carrega a lascívia da carne, a fim de atrair parceiros, pois seu desejo
por sexo é indomável.

A velha era a bruxa por excelência na mentalidade da época, influenciada


pelo neoplatonismo renascentista que colocou a beleza física como
representação da bondade e, sendo assim, as mulheres idosas tinham a
malignidade marcada em sua aparência decadente. (LIEBEL, p.59)

No Renascimento, as anciãs provocam uma onda de medo, incentivada pela


literatura e iconografia. (RAMINELLI, 1996, p. 102) As obras de Boccaccio e sua
tamanha difusão, e mais tarde com Agrippa d‘Aubigné entre outros, ilustra esse tal
sentimento com as velhas, no qual as pensavam com carcaças esqueléticas, dentes
ulcerados, seios flácidos, olhos remelentos e odor infecto. (1996, p. 102)
Portanto, é numa conjuntura que concerne em seu bojo: um contexto
Inquisitorial e imaginário sabático; uma herança misógina - reforçada pelos apelos
Platônicos característicos do Renascimento; adicionados aos discursos Religiosos e sua
potencialização com os veículos de imagem a partir do século XV, que serão
apresentadas tais produções de Baldung.
Cada símbolo que integra o cenário e personagens destas obras são reflexos que
se interpretam de uma sociedade com suas angústias e que lida com o sobrenatural,
92

como uma fronteira não definida com a realidade. As bruxas de Baldung são os
demônios criados pelos discursos de uma longa época e, incorporados ainda de outros
tempos.
93

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A História das Mulheres, como citado no início desta monografia, foi nos
transmitido por muito tempo por interlocutores masculinos, de forma que a maior
documentação que existe sobre as mulheres do período analisado são visões do opressor
para com o oprimido. O esforço em demonstrar a ligação que a Igreja concebeu entre a
mulher e o demônio partiu de da premissa de uma submissão pré-cristã e culminou na
caça às Bruxas.
Das condenações e execuções inquisitoriais sobre bruxaria, as mulheres foram
predominantes. Eram acusadas se jovens: por ser, segundo o clero, um forte apelo
sexual, que instigava a lascívia da carne nos homens de boa fé e logo ao pecado; ou se
velhas, por estarem envolvidas de um isolamento social, mais próximas da morte e do
diabo.
A arte de Baldüng, como o analisado, refletiu para estereotipar um perfil de
mulheres e bruxas, ilustrando no imaginário de quem via tais imagens uma impactante
sensação de horror. Tendo em vista que o medo foi um forte apelo utilizado pela
religião vigente na Europa, podemos refletir sobre o uso destas imagens macabras.
Neste todo, a nudez, os elementos bestiais, a exposição dos polos contrários e de
outros diversos símbolos compostos na configuração do Sabá inserido nas obras são
veículos que se achou imprescindível de reflexão para entender, por um viés artístico, a
histeria das bruxas na Europa.
Enfim, pra cada sujeito, um argumento foi utilizado na repressão. A caça às
bruxas, e seu contexto de demonização tiveram, assim como todo processo Histórico,
suas rupturas e permanências ao longo dos tempos. Ao mesmo tempo em que a Igreja
católica não condena sujeitos a morte hoje em dia e, tem mudado seu discurso ao longo
dos séculos, podemos perceber quão vivos ainda estão os resquícios de uma misoginia
herdada dos campos religiosos, sociais e culturais.
94

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A BÍBLIA. São Paulo: Edições Loyola, 1995.


AGOSTINHO, Santo. O livre arbítrio. São Paulo: Paulus, 2º ed. 1995.
ARIÉS, Philippe; DUBY, Georges. História da vida privada: da Europa Feudal a
Renascença. São Paulo, Companhia das Letras, 2009.
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