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mary douglas

PUREZA
E PERIGO

~\\''~
~ EDITORA PERSPECTIVA
~~
Coleção Debates
Dirigida por J. Guinsburg
Conselho Editorial: Anato! Rosenfeld (1912-1973), Anita No-
vinsky, Aracy Amaral, Augusto de Campos, B6ris Schnaider-
man, Carlos Guilherme Mota, Celso Lafer, Dante Moreira
Leite, Gita K. Guinsburg, Haroldo de Campos, Leyla Perrone-
·Moisés, Lúcio Gomes Machado, Maria de Lourdes Santos Ma-
chado, Modesto Carone Netto, Paulo Em[)io Salles Gomes,
Regina Schnaiderman, Roberto N. V. C. Nicol, Rosa R. Krausz,
Sábato Magaldi, Sergio Miceli, Willi Bolle e Zulmira Ribeiro
Tavares.

Equipe de realização - Tradução: Mônica Siqueira Leite de


Barros e Zilda Zakia Pinto, sob orientação do Conjunto de An-
tropologia da Universidade Estadual de Campinas; Revisão:
Mary Amazonas Leite de Barros; Capa: Moysés Baumstein.
mary douglas
PUREZA
E PERIGO

~\111
--
~
~
10 anos de
~ EDITORA PERSPECTIVA
~I\\~ ~
Título do original inglês:
Purity and Danger

© Mary Douglas, 1966

Direitos em língua portuguesa reservados à


EDITORA PERSPECTIVA S.A.
Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025
Telefone: 288-8388
01401 São Paulo Brasil
1976
SUMARIO

Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
1. Impureza Ritual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
2. Profanação Secular . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
3. As Abominações do Levítico . . . . . . . . . 57
4. Magia e Milagre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
5. Mundos Primitivos .. . . . ... ... . .. .. . . 93
6 . Poderes e Perigos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 7
7. Limites Extremos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141
8. Linhas Internas .. . . .. . . . .. . .. .. .. .. . 159
9 . O Sistema em Guerra Consigo Mesmo . . . 171
10. O Sistema Destroçado e Renovado . . . . . . 193
Bibliografia ...................... , . . . . . 217
'
AGRADECIMENTOS

Quem primeiramente me interessou em comporta-


mento-poluição foram os professores Srinivas e o fale-
cido Steiner, os quais, como brâmane e judeu, tentaram
durante suas vidas tratar de problemas de limpeza ritual.
Agradeço a eles por me fazer sensivel a gestos de sepa-
ração, classificação e limpeza. Em seguida eu me achei
fazendo trabalho de campo em uma cultura altamente
consciente da poluição, no Congo. e descobri em mim um
preconceito contra explicações parciais. Considero par-
cial qualquer explicação de poluição ritual limitada a
uma espécie de sujeira ou tipo de contexto. Minha maior
dívida quanto a agradecimento é para com a origem des-
te preconceito que me forçou a procurar um\} aborda-
gem sistêmica. Nenhum conjunto particular de classifi-
cação de símbolos pode ser entendido isoladamente,
mas pode haver esperança de eles fazerem sentido em

7
relação à estrutura total de classificação da cultura em
questão.
A abordagem estrutural tem sido amplamente dis-
seminada desde as primeiras décadas deste século, par-
ticularmente através da influência da psicologia da Ges-
talt. Somente teve um impacto direto em mim através do
professor Evaos-Pritchard em sua análise do sistema po-
lítico dos Nueres ( 1940).
O lugar deste livro na Antropologia é como o da
invenção do chassi monobloco na história dos modelos
de carro. Quando o chassi e o corpo do carro eram de-
senhados separadamente, os dois eram mantidos juntos
numa armação central de aço. Da mesma maneira, a
teoria política costumava tomar os órgãos do governo
central como armação da análise social: instituições po-
liticas e sociais poderiam ser consideradas separadamen-
te. Os antropólogos contentavam-se em descrever sis-
temas políticos primitivos por uma lista de títulos e as-
sembléias oficiais. Se o governo central não existia, a
análise politica feita era considerada irrelevante.
Nos anos trinta os projetistas de carro acharam que
podiam eliminar a armação de aço se tratassem todo o
carro como se fosse uma só unidade. As tensões supor-
tadas pela armação podem agora sê-lo pelo corpo do
próprio carro. Mais ou menos à mesma época, Evans-
-Pritchard viu que ele poderia fazer uma análise política
de um sistema que não tivesse órgãos centrais de go-
verno, e onde o peso da autoridade e as tensões do fun-
cionamento político estivessem dispersas por toda estru-
tura do corpo político. Assim, a análise estrutural estava
no ar da Antropologia antes de Uvi-Strauss ser esti-
mulado pela Lingüistica Estrutural a aplicá-la ao paren-
tesco e mitologia. Assim sendo, qualquer análise de ri-
tuais de poluição, hoje em dia, procuraria tratar as idéias
de um povo sobre pureza como parte de um todo maior.
Minha outra fonte de inspiração foi meu marido. Em
assunto de limpeza seu limiar de tolerância é tão menor
que o meu que ele, mais do que qualquer outra pessoa,
forçou-me a tomar posição sobre a relatividade da su-
jeira.
Muitas pessoas discutiram esses capítulos comigo e
sou muito grata a suas críticas, especialmente a Bellarmi-
ne Society of Heythrop College, Robin Horton, Pe. Louis
de Sousberghe, Dr. Shifra Strizower, Dr. Cecily de Mon-

8
chaux, Prof. V. W. Turner e Dr. David Pole. Alguns
foram suficientemente gentis para ler esboços de alguns
capítulos e comentá-los: Dr. G. A. Well no Cap. 1, Prof.
Maurice Freedman no Cap. 4, Dr. Edmund Leach, Dr.
Ioan Lewis e Prof. Ernest Gellner no Cap. 6, Dr. Mer-
vyn Meggitt e Dr. James Woodburn no Cap. 9. Sou
particularmente agradecida ao Prof. S. Stein, chefe do
Departamento de Estudos Hebraicos em University Col-
lege, por suas pacientes correções sobre um esboço do
Cap. 3. Também sou muito grata a Rodney Needham
que chamou minha atenção para uma longa lista de pe-
quenos erros na edição prévia, os quais espero estejam
agora corrigidos. Sou especialmente grata ao Prof. Da-
ryl Forde por suas críticas e encorajamento nas pri-
meiras versões deste livro.
Este livro representa uma visão pessoal, controver-
tida e, amiúde, prematura. Espero que os especialistas,
em cuja província o argumento tenha fluído, perdoem
a transgressão, porque esta é uma das matérias que tem
sofrido, até agora, por ter sido manejada muito estrei-
tamente dentro de uma única disciplina.

M.D.

NOTA: As páginas de referência em parênteses no texto são tra-


balhos incluldos na bibliografia no final deste livro.

9
INTRODUÇÃO

O século XIX viu nas religiões primitivas duas pe-


culiaridades que as separaram como um bloco das gran-
des religiões do mundo. Primeiro, eram inspiradas pelo
medo, segundo, eram inextricavelmente confundidas com
profanação e higiene. Quase todos os relatos de missio-
nários ou viajantes acerca de uma religião primitiva fa-
lam sobre o medo, terror ou receio em que vivem seus
adeptos. A origem remonta a crenças em desastres hor-
ríveis que apanharam aqueles que inadvertidamente cru-
zaram alguma linha proibida ou desenvolveram alguma
condição impura. E como o medo inibe a razão, pode-
se considerar isto explicável para outras peculiaridades
no pensamento primitivo, notavelmente a idéia de pro-
fanação. Como resume Ricoeur:
La souillure elle-même est à pei.ne une représentation et
celle-ci noyée dans une peur spécifique qui bouche la ré-

11
próprio teme incorrer por lapsos de retidão. Elas são
uma linguagem forte de exortação mútua. Nesse nível, as
leis da natureza são introduzidas para sancionar o có-
digo moral: tal tipo de doença é causada por adulté-
rio, outro por incesto; este desastre metereológico re-
sulta de uma deslealdade politica, aquele de impiedade.
O universo todo é arreado aos esforços dos homens, no
sentido de um forçar o outro a uma boa cidadania. Logo,
achamos que certos valores morais são mantidos e cer-
tas regras sociais são definidas por crenças em contágio
perigoso, como quando se considera que o olhar ou con-
tacto de um adúltero provocam doença em seus vizinhos
ou filhos.
Não é difícil de ver como as crenças em poluição
podem ser usadas num diálogo reivindicatório e contra-
-reivindicatório de status. Mas ao examinarmos crenças
de poluição descobrimos que os tipos de contacto tidos
como perigosos também carregam uma carga simbólica.
Este é o nível mais interessante no qual as idéias de
poluição se relacionam com a vida social. Acredito que
algumas poluições são usadas como analogias para ex-
pressar uma visão geral da ordem social. Por exemplo,
há crenças de que cada sexo é perigoso para o outro
através de contacto com fluidos sexuais. De acordo com
outras crenças, somente um dos sexos é posto em pe-
rigo pelo contacto com o outro, geralmente mascu-
lino, mas algumas vezes o inverso. Semelhantes padrões
de perigo sexual podem expressar simetria ou hierar-
quia. Não é plausível interpretá-los como expressão de
alguma coisa sobre a relação real dos sexos. Sugiro
que muitas idéias sobre perigos sexuais são melhor in-
terpretadas como símbolos da relação entre partes da
sociedade, como reflexos de projetes de simetria ou hie-
rarquia que se aplicam ao sistema social mais amplo. O
que serve para poluição de sexo serve também para a
poluição corporal. Os dois sexos podem servir como um
modelo para a colaboração e distinção de unidades so-
ciais. Assim também, os processos de ingestão retratam
uma absorção política. Algumas vezes, orifícios cor-
porais parecem representar pontos de entrada ou saída
para unidades sociais, ou a perfeição corporal pode sim-
bolizar uma teocracia ideal.
Cada cultura primitiva é um universo em si mesma.
Seguindo o conselho de Franz Steiner em Taboo, co-

14
mecei a interpretar regras de não-limpeza colocando-as
no contexto global do âmbito de perigos possíveis num
determinado universo. Tudo que pode acontecer a um
homem na forma de desastre deveria ser catalogado de
acordo com os princípios ativos envolvidos no universo
de sua cultura particular. Algumas vezes, palavras en-
gatilham cataclismos, algumas vezes atos, algumas ve-
zes condições físicas. Alguns perigos são grandes e ou-
tros pequenos. Não podemos começar a comparar re-
ligiões primitivas até que saibamos a gama de poderes
e perigos que elas reconhecem. A sociedade primitiva é
uma estrutura dotada de energia no centro do seu uni-
verso. Lançam-se poderes para prosperar e poderes pe-
rigosos para retaliar ataque. Mas a sociedade não existe
num vácuo neutro, sem comando. Está sujeita a pres-
sões externas; o que não está com ela, não é parte dela
e não está sujeito a suas leis, é potencialmente contra
ela. Descrevendo estas pressões em limites e margens,
admito ter feito a sociedade parecer mais sistemática do
que ela realmente é. Mas é justamente uma expressiva
supersistematização que é necessária para se interpre-
tar as crenças em questão. Pois, acredito que idéias so-
bre separar, purificar, demarcar e punir transgressões,
têm como sua função principal impor sistematização
numa experiência inerentemente desordenada. É somen-
te exagerando a diferença entre dentro e fora, acima e
abaixo, fêmea e macho, com e contra, que um sem-
blante de ordem é criado. Neste sentido não tenho me-
do da acusação de ter feito a estrutura social parecer
demasiado úgida.
Mas, por outro lado, não desejo sugerir que as cul-
turas primitivas, nas quais as idéias de contágio flores-
cem, sejam rígidas, iotratáveis e estagnadas. Não se sabe
quão velhas são as idéias de limpeza e sujeira em qual-
quer cultura ágrafa: para seus membros elas parecem
sem tempo e imutáveis. Mas tudo leva a crer que elas
são sensíveis à mudança. Pode-se supor que o mesmo
impulso para impor ordem que lhes dá existência está
continuamente modificando-as e enriquecendo-as. Este
é um ponto muito importante. Quando afirmo que a
reação à sujeira é contínua com outras renções à ambi-
güidade ou anormalidade não estou revivendo a hipó-
tese de medo do século XIX, de outra maneira. Idéias
15
sobre contágio podem certamente ser remetidas à rea-
ção à anomalia. Mas elas são mais do que a inquieta-
ção de um rato de laboratório que repentinamente en-
contra bloqueada uma de suas saídas familiares do
labirinto. E elas são mais do que o embaraço do peixe
do aquário frente a um membro anômalo de sua espécie.
O reconhecimento inicial de anomalia conduz à ansie-
dade e daí ao ato de suprimir ou evitar. Até aqui, tudo
bem. Mas precisamos procurar um princípio organiza-
tório mais enérgico a fim de fazer justiça .às elaboradas
cosmologias reveladas pelos símbolos de poluição.
O nativo de qualquer cultura, naturalmente, julga-
se recebedor passivo de suas idéias de poder e perigo no
universo, descontando quaisquer modificações menores
com as quais ele próprio pudesse ter contribuído. Da
mesma maneira, julgamo-nos passivos recebedores de
nossa língua nativa e descontamos nossa responsabilida-
de por mudanças que ela sofre em nosso tempo de vida.
O antropólogo cai no mesmo engano se pensar uma
cultura que esteja estudando como um padrão de valo-
res estabelecidos há muito tempo. Nesse sentido, nego,
enfaticamente, que uma proliferação de idéias sobre pu-
reza e contágio implique uma perspectiva mental rí-
gida ou rígidas instituições sociais. O contrário pode ser
verdade.
Pode parecer que numa cultura ricamente organiza-
da por idéias de contágio e purificação o indivíduo esteja
agarrado a férreas categorias de pensamento, as quais
são pesadamente salvaguardadas por regras de escape
ou por punições. Pode parecer impossível para tal pes-
soa libertar seu pensamento das rotinas protegidas de
sua cultura. Como ele pode dar as costas ao seu pro-
cesso de pensamento e contemplar suas próprias limi-
tações? E se ele ainda não pode fazer isso, como sua
religião pode ser comparada com as grandes religiões do
mundo?
Quanto mais se sabe sobre religiões primitivas mais
claramente parece que em suas estruturas simbólicas há
campo para meditação sobre os grandes mistérios da
religião e filosofia. A reflexão sobre a sujeira envolve
reflexão sobre a relação entre a ordem e a desordem,
ser e não ser, forma e não-forma, vida e morte. Onde
as idéias de sujeira são altamente estruturadas sua análise

16
revela um jogo sobre temas tão profundos. É por isso
que um entendimento das regras de pureza é uma boa
introdução à religião comparativa. A antitese de São
Paulo entre sangue e água, natureza e graça, liberdade e
necessidade, ou a idéia sobre divindade do Velho Tes-
tamento pode ser iluminada pelo tratamento dado na
Polinésia ou na Africa Central a temas estreitamente
afins.

17
1 . IMPUREZA RITUAL

Nossa idéia de sujeira é composta de duas coisas,


cuidado com a higiene e respeito por convenções. As re-
gras de higiene mudam, naturalmente, com as mudanças
no noss~ estado de conhecimento. Quanto ao aspecto
convencional de evitar a sujeira, essas regras podem ser
colocadas de lado em nome da amizade. Os trabalhado-
res rurais de Thomas Hardy elogiaram o pastor que re-
cusou uma caneca limpa para tomar cidra como um "ho-
mem bom e sem melindres".
"Uma caneca limpa para o pastor", ordenou o taberneiro.
"Não- de jeito nenhum", disse Gabriel, num tom de con-
sideração reprovadora. "Não me preocupo com a sujeira em seu
estado puro e quando sei de que tipo é . . . Eu não pensaria
em dar a meus vizinhos o trabalho de lavarem, quando já há
tanto trabalho no mundo para ser feito."

19
Num espírito mais exaltado, Santa Catarina de Sic-
na, quando sentiu repulsa pelas chagas de que estava
cuidando, dizem que se culpou amargamente. A boa hi-
giene era incompatível com a caridade; assim, delibera-
damente, bebeu uma tigela de pus.
Caso sejam rigorosamente observadas ou violadas,
não há nada em nossas regras de limpeza que sugira
qualquer conexão entre a sujeira e o sagrado. Assim
sendo, saber que os primitivos fazem pouca diferença
entre o sagrado e a sujeira é simplesmente ilusório.
Para nós, coisas sagradas e lugares sagrados devem
ser protegidos contra a profanação. Santidade e impu-
reza estão em pólos opostos. Tampouco confundiríamos
fome com abundância ou dormir com acordar. Mesmo
assim, acredita-se que é característica da religião pri-
mitiva não fazer uma distinção clara entre santidade e
sujeira. Se isso for verdade, revela um grande abismo
entre nós e nossos antepassados, entre nós e primitivos
contemporâneos. Certamente, esta afirmação tem sido
amplamente sustentada e ainda é ensinada numa forma
enigmática ou outra. Tome-se a seguinte observação de
Eliade:
A ambivalência do sagrado não está apenas na ordem psi·
col6gica (por atrair ou repelir), mas também na ordem dos
valores; o sagrado é ao mesmo tempo "sagrado" e "maculado"
(1958, pp. 14-15).

A afirmação pode ser feita de modo a parecer


menos paradoxal. Poderia significar que nossa idéia de
santidade tenha-se tomado muito especializada e que em
algumas culturas primitivas o sagrado é uma idéia muito
geral significando um pouco mais que proibição. Nesse
sentido, o universo é dividido entre coisas e ações su-
jeitas a restrições e outras que não o são; entre as res-
trições, algumas pretendem proteger a divindade contra
a profanação, e outras proteger o profano contra a in-
trusão perigosa da divindade. Regras sagradas são assim
meramente regras cercando a divindade, e a impureza
é a dupla maneira perigosa de contacto com a divin-
dade. O problema se resume então num problema lin-
güístico, e o paradoxo é reduzido mudando-se o vo-
cabulário. Isto pode ser verdade para certas culturas (ver
Steiner, p. 33).

20
A própria palavra latina sacer, por exemplo, tem
este significado de restrição totalmente pertencente aos
deuses. E em alguns casos ela pode ser empregada para
profanação assim como sacralização. Similarmente, a raiz
hebraica de k-d-sh, que usualmente é traduzida como
Santo, baseia-se na idéia de separação. Ronald Knox,
sabendo da dificuldade de traduzir literalmente k-d-sh
para Santo, utiliza em sua versão do Velho Testamento
''posto à parte". Assim as velhas e importantes linhas
"O Senhor seja santo porque eu sou Santo" são antes
pobremente traduzidas por:
Eu sou o Senhor vosso Deus, que vos salvou da terra do
Egito; Eu sou posto à parte e vós precisais ser postos à parte
como Eu.
(Levítico XI, 45)
Se somente uma retradução pudesse endireitar as
coisas, tudo seria muito simples. Mas há muitos casos in-
tratáveis. No hinduísmo, por exemplo, a idéia de que
profano e santo pertencem a uma mesma categoria lin-
güística mais ampla é absurda. Mas as idéias hindus
sobre poluição sugerem uma outra abordagem do pro-
blema.
Santidade e não-santidade afinal não necessitam
sempre ser opostos absolutos. Podem ser categorias
relativas. O que é limpo em relação a uma coisa pode
ser sujo em relação a outra e vice-versa. O idioma de
poluição adequa-se a uma álgebra complexa que leva
em consideração as variáveis de cada contexto. O Prof.
Harper, por exemplo, descreve como o respeito pode
ser expresso, entre os povos Havik da parte Malnad,
do Estado de Mysore, nas seguintes linhas:
O comportamento que resulta geralmente em poluição é,
algumas vezes, intencional a fim de mostrar deferência e res-
peito; fazendo aquilo que, em outras circunstâncias, seria pro-
fanação, um indivíduo expressa sua condição inferior. Por
exemplo, o tema da subordinação da mulher ao marido encon-
tra expressão ritual quando a mulher come da folha do ho-
mem depois que ele tenha terminado ...
Num caso ainda mais claro, requereu-se que uma
mulher santa, sadru, fosse tratada com imenso respeito,
quando visitou a aldeia. Para mostrar isto o líquido
com que ela lavara os pés
foi passado entre os circunstantes uma vasilha especial de
prata, usada unicamente para veneração, e derramado na mão

21
direita para ser bebido como tirtha (líquido sagrado), indi-
cando que se lhe conferia antes o status de uma deusa que de
uma mortal. . . A expressão mais enfática e freqüente de res-
peit<>-poluição reside no uso do esterco de vaca como um
agente purificador. Uma vaca é adorada diariamente por mu-
lheres havik e em algumas ocasiões cerimoniais por homens
havik.... Algumas vezes dizem que as vacas são deusas; al-
ternativamente, que têm mais de mil deuses residindo nelas.
Casos simples de poluição são removidos com água, graus maio-
res de poluição são removidos com esterco de vaca e água . . .
O esterco de vaca como o esterco de qualquer animal é in-
trinsecamente impuro e pode causar profanação - de fato,
ele irá macular um deus; mas é puro em relação a um mor-
taL . . a parte mais impura da vaca é suficientemente pura,
relativamente mesmc> a um sacerdote brâmane para remover-
lhe impurezas (Harper, pp. 181-183).
:S óbvio que estamos lidando aqui com linguagem
simbólica passível de finqs graus de diferenciação. Este
uso da relação de pureza e impureza não é incompatível
com nossa linguagem e não dá origem a quebra-cabeças
especialmente paradoxais. Longe de estar havendo con-
fusão entre a idéia de santidade e impureza, o que
existe aqui é tão-somente uma distinção da mais fina
sutileza. As afirmações de Eliade sobre a confusão entre
contágio sagrado e sujeira na religião primitiva, evi-
dentemente, não foram feitas para serem aplicadas a re-
finados conceitos brâmanes. Para que, então, foram elas
elaboradas? Além dos antropólogos, existiria algum po-
vo que realmente confunde o sagrado e impurq? De
onde brotou esta noção?
Frazer parece ter pensado que a confusão entre
impureza e santidade é a marca distintiva do pensa-
mento primitivo. Numa longa passagem, em que con-
sidera as atitudes dos sírios em relação aos porcos,
ele conclui:
Alguns disseram que era por serem os porcos sujos; outros
por serem sagrados. Isto. . . alude a um estado confuso de
pensamento religioso, no qual idéias de santidade e impureza
não estão ainda claramente diferenciadas, sendo ambas mistu-
radas numa espécie de solução vaporosa a que damos o nome
de tabu (Spirits of the Com and of the Wild, II, p. 23). ·
Ele mostra novamente o mesmo ponto dando o
significado do tabu:
Tabus de santidade con.c ordam com tabus de poluição por-
que na mente d.o selvagem as idéias de santidade e poluição
não estão aind.a diferenciadas (Taboo and lhe Perils of the Soul,
p. 224).

22
Frazer tinha muitas qualidades boas mas a ori-
ginalidade nunca foi uma delas. Estas citações lembram
diretamente Robertson Smith, a quem ele dedicou Spirits
oj Corn and oj the Wild. Mais de vinte anos antes Ro-
bertson Smith tinha utilizado a palavra tabu para res-
trições no "uso arbitrário feito pelo homem de coi-
sas naturais, reforçado pelo temor a penalidades sobre-
naturais" (1889, p. 142). Estes tabus, inspirados por
medo, precauções contra espiritos malignos, eram co-
muns a todos os povos primitivos e freqüentemente to-
mavam a forma de regras de sujeira.
A pessoa sob tabu não é considerada como santa, é afastada
do santuário, bem como do contacto com homens, mas seu ato
ou condição é associado de alguma maneira com perigos sobre-
naturais, surgindo, de acordo com a explicação selvagem co•
mum, da presença de espíritos terríveis, os quais são evitados
como doença infecciosa. Na maioria das sociedades selvagens
parece não haver nenhuma linha de separação entre os dois
tipos de tabus.

De acordo com esta visão a diferença principal


entre o tabu primitivo e as regras primitivas de santi-
dade é a diferença entre deidades amistosas e inamis-
tosas. A separação do santuário bem como pessoas e
coisas consagradas daquelas que são profanas, que cons-
titui uma parte normal de cultos religiosos, é basica-
mente a mesma que as separações que são inspiradas
pelo medo de espíritos malévolos. Separaçãq é a idéia
essencial em ambos contextos, somente o motivo é di-
ferente - e não tão diferente, uma vez que deuses
amistosos também devem ser temidos em certas oca-
siões. Quando Robertson Smith acrescentou que "dis-
tinguir entre o santo e o impuro marca um real avan-
ço sobre a selvageria", ele não estava dizendo aos seus
leitores nada desafiante ou provocativo. Era certo que
seus leitores faziam uma grande distinção entre sujo e
sagrado, e que eles estavam vivendo nq ponto certo
do movimento evolucionário. Mas ele estava dizendo
mais do que isso. Regras primitivas de sujeira dão aten-
ção às circunstâncias materiais de um ato e julgam-no
bom ou mau de acordo com as mesmas. Assim, o
contacto com cadáveres, sangue ou saliva, pode ser con-
siderado transmissor de perigo. Regras cristãs de san-
tidade, aq contrário, não consideram as circunstâncias

23
materiais e julgam de acordo com os motivos e dispo-
sição do agente .

. . . a irracionalidade das leis de sujeira, do ponto de vísta da


religião espiritual ou mesmo de alto paganismo, é tão mani·
festa que elas devem ser necessariamente encaradas como sobre·
vivências de uma forma anterior de fé e sociedade (Nota C, p.
430).

Desta maneira, produziu-se um critério para clas-


sificar as religiões em avançadas ou primitivas. Se pri-
mitivas, então as regras de santidade e as de impureza
eram indistinguíveis; se avançadas, então as regras de
impureza desapareciam da religião. Elas eram relegadas
à cozinha, ao banheiro e à limpeza pública, não tendo
nada a ver com religião. Quanto menos a impureza es-
tivesse relacionada com condições físicas e quanto mais
ela significasse um estado espiritual de indignidade, tan-
to mais decisivamente poderia a religião ser considerada
avançada.
Robertson Smith era antes de tudo um teólogo e
estudioso do Velho Testamento. Como a teologia diz
respeito às relações entre o homem e Deus, ela tem
de fazer permanentemente afirmações sobre a natureza
do homem. Na época de Robertson Smith, a Antropolo-
gia estava muito presente na discussão teológica. Muitos
pensadores, na segunda parte do século XIX, eram ne-
cessariamente antropólogos amadores. Isto fica claro
em The Doctrine of Survivals, de Margaret Hodgen, um
guia necessário ao confuso diálogo do século XIX entre
a Antropologia e a Teologia. Naquele período formati-
vo, a Antropologia ainda tinha suas raízes no púlpito
e salões das paróquias, e os bispos utilizavam suas des-
cobertas para textos fulminantes.
Os etnólogos de paróquia tomavam partido como
pessimistas ou otimistas a respeito do progresso humano.
Eram os selvagens capazes ou não de avanço? John
Wesley, ensinando que o ser humano em seu estado na-
tural era fundamentalmente mau, extraiu vívidas descri-
ções de costumes selvagens para ilustrar a degenerescên-
cia daqueles que não estavam salvos:
A religião natural dos Creeks, Cherokees, Chickasaws ·e
todos os outros índios é torturar todos os seus prisioneiros
de manhã à noite, até finalmente assá-los até a morte ...

24
Sim, é uma coisa comum entre eles que, se o filho achar
que o pai já viveu demais, lhe estoure os miolos (Works, v. 5,
p. 402).

Não preciso esboçar aqui a longa discussão entre os


progressistas e os degeneracionistas. Por muitas décadas,
a discussão arrastou-se in.conclusivamente até que o ar-
cebispo Whately, numa forma popular e extrema, ado-
tou o argumento a favor da degeneração para refutar o
otimismo dos economistas seguidores de Adam Smith.
Poderia esta criatura abandonada, indagava, conceber
qualquer dos elementos de nobilidade? Poderiam os mais
baixos selvagens e os espécimes mais civilizados das
raças européias serem reconhecidos como membros da
mesma espécie? Como afirmou o grande economista, é
concebível que este povo desavergonhado, pela divisão
de trabalho, pudesse "avançar passo a passo em todas
as artes da vida civilizada?" (1855, pp. 26-27). A rea-
ção a este panfleto, como descreve Hodgen, foi intensa
e imediata:
Outros degeneracionistas, como W. Cooke Taylor, compu-
seram volumes para sustentar sua posição, reunindo grande
quantidade de provas onde o arcebispo permanecera satisfeito
com uma ilustração. . .. Defensores do otimismo do século
XVIII apareceram de todos os pontos do espaço. Foram revistos
livros nos termos da afirmação de Wbately. Reformistas sociais
em todo lugar, aquelas boas almas, cuja compaixão adquirida
pelo esmagamento econômico encontrou um solvente confor-
tável na noção da inevitável melhoria social, encaravam alar-
mados a realização do ponto de vista oposto ... Mais des-
concertados ainda estavam aqueles estudiosos da mente e cul-
tura humanas cujos interesses pessoais e profissionais estavam
investidos de uma metodol~ia baseada na idéia de progresso
(pp. 30-31).
Finalmente apareceu um homem e assentou a con-
trovérsia para o resto do século, trazendo a ciência para
auxiliar os progressistas. Era Edward Bumett Tylor
(1832-1917). Ele desenvolveu uma teoria e acumulou
sistematicamente provas para provar que a civilização é
resultado de um progresso gradual de um estado ori-
ginal, similar ao da selvageria côntemporãnea.
Entre as provas que nos ajudam a traçar o curso que a
civilização mundial tem na verdade seguido, está a grande
classe de fatos, para os quais achei conveniente introduzir o
termo "sobrevivências". Estes são processos, costumes, opi-
niões, e assim por diante, que foram transportados por força do

25
hábito para a nossa sociedade . . . e. . . assim permanecem como
provas e exemplos de uma mais antiga condição de cultura
da qual uma nova evoluiu (p. 16).
Pode-se ver que o sério assunto da antiga sociedade mer-
gulha no espírito das últimas gerações e as suas crenças sé-
rias perpetuam-se no folclore infantil (p. 71) (Primitive Cul-
ture, 6. ed.).

Robertson Smith utilizou a idéia de sobrevivências


para dar conta da persistência das regras irracionais de
impureza. Tylor publicou sua obra em 1873, depois
da edição de The Origin of Species, e há algum para-
lelo entre o seu tratamento das culturas e o de Darwin
das espécies orgânicas. Darwin estava interessado nas
condições sob as quais um novo organismo pode apare-
cer. Interessava-se pela sobrevivência dos mais aptos, e
também pelos órgãos rudimentares cuja persistência dera-
lhe indícios para reconstruir o esquema evolucionário.
Mas Tylor estava interessado unicamente na sobrevi-
vência demorada do não-apto em quase desaparecidas
relíquias culturais. Não se preocupava em catalogar es-
pécies culturais distintas ou mostrar sua adaptação atra-
vés da história. Procurou apenas mostrar a continui-
dade geral da cultura humana.
Robertson Smith, posterior, herdou a idéia de que
o homem civilizado moderno representa um longo pro-
cesso de evolução. Aceitava que alguma coisa que nós
ainda fazemos e acreditamos é fóssil; sem sentido, apên-
dice petrificado dos assuntos cotidianos do viver. Mas
Robertson Smith não estava interessado em sobrevi-
vências mortas. Costumes que não alimentaram os pon-
tos crescentes da história humana, ele os batizou de ir-
racionais e primitivos, e insinuou que eles eram de
pouco interesse. Para ele, era importante o trabalho
de limpar os destroços pegajosos e a poeira das cultu-
ras selvagens contemporâneas, e revelar os canais pro-
dutores da vida que provam seu status evolucionário
por suas funções vivas na sociedade modema. Isto é
precisamente o que The Religion oj the Semites pre-
tende fazer. Superstiçã& selvagem é aí separada das ori-
gens da religião verdadeira, e descartada com pouca
consideração. O que diz Robertson Smith sobre supers-
tição e magia é somente incidental para o seu tema prin-
cipal, e um subproduto de seu trabalho principal. Assim,
ele reverte a ênfase de Tylor. Enquanto Tylor estava

26
interessado no que as relíquias originais poderiam con-
tar-nos do passado, Robertson Smith interessava-se pelos
elementos comuns da experiência moderna e primitiva.
Tylor fundou o folclore; Robertson Smith fundou a an-
tropologia social.
Outra grande corrente de idéias chocou-se mais de
perto com os interesses profissionais de Robertson
Smith. Esta foi a crise de fé, que assolou aqueles pen-
sadores que não podiam conciliar o desenvolvimento da
ciência com a revelação cristã tradicional. Fé e razão
pareciam estar em desavença incorrigível, a menos que
uma nova fórmula para a religião pudesse ser encontra-
da. Um grupo de filósofos, que não podiam mais acei-
tar a religião revelada e tampouco podiam aceitar viver
sem um guia de crenças transcendentais, trataram de
providenciar aquela fórmula. Portanto, começou um pro-
cesso, que ainda continua, de cortar os elementos reve-
lados da doutrina cristã, e elevar, em seu lugar, prin-
cípios éticos como o âmago da religião verdadeira. No
que se segue, estarei citando a descrição de Richter,
de como o movimento teve seu lar em Oxford. T. H.
Green tentou naturalizar, em Balliol, a filosofia idealista
hegeliana, como solução para os problemas correntes de
fé, moral e política. Jowett escrevera para Florence
Nightingale: "Algo tem que ser feito pelo homem educa-
do similarmente ao que J. Wesley fez pelo pobre". Isto
é precisamente o que T. H. Green tentou alcançar: re-
viver a religião no homem educado, torná-la intelec-
tualmente respeitável, criar um novo fervor moral e
assim produzir uma sociedade reformada. Seus ensina-
mentos tiveram uma recepção entusiástica. Embora suas
idéias filosóficas fossem complicadas e sua base metafísi-
ca tortuosa, seus princípios eram em si simples. Eles
foram expressos na novela best-seller da senhora Hum-
phrey Ward, Robert Elsmere (1888).
A filosofia da história de Green era uma teoria do
progresso moral: Deus se reencarna de tempps em
tempos na vida social de perfeição ética sempre maior.
Para citar seu sermão leigo - a consciência humana de
Deus
tem sido, em múltiplas formas, o agente moralizador da socie-
dade humana, e até o princípio formativo dessa mesma socie-
dade. A existência de deveres específicos e o reconhecimento
dos mesmos, o espírito de auto-sacrifício, a lei moral e sua

27
reverência na forma mais abstraia e absoluta, tudo sem dúvida
pressupõe a sociedade, mas uma sociedade de um tipo que os
torna possíveis não é a criatura do apetite e do medo ... Sob
esta influência, vontades e desejos que têm suas raízes na
natureza animal tornam-se um impulso de melhoramento, que
forma, alarga e reforma as sociedades, conservando sempre
diante do homem, de diver~as maneiras, de acordo com o grau
d'e seu desenvolvimento, um ideal irrealizado de um que é o
seu Deus, e dando autoridade divina para os costumes ou leis
pelas quais alguma semelhança deste ideal é lavrado na rea-
lidade da vida (Richter, p. 105 ).
A tendência final da filosofia de Green era assim
desviar-se da revelação e consagrar a moralidade, como
a essência da religião. Robertson Smith nunca se afas-
tou da Revelação. No fim de sua vida, ele acreditava
na divina inspiração do Velho Testamento. Sua bio-
grafia, por Black e Chrystal, sugere que, apesar desta
crença, ele se tornou estranhamente próximo da noção
de religião dos idealistas de Oxford.
Robertson Smith ocupou a cátedra de hebraico da
Igreja Livre em Aberdeen, em 1870. Ele estava na van-
guarda do movimento de crítica histórica, o qual, tem-
pos antes, tivera grande repercussão na consciência dos
estudiosos da Bíblia. Em 1860, Jowett, em Balliol, foi
censurado por publicar um artigo "On the Interpretation
of the Bible", no qual sustentava que o Velho Testamen-
to devia ser interpretado como qualquer outro livro.
As acusações contra Jowett malograram e foi-lhe permi-
tido permanecer como professor regente. Mas quando
Robertson Smith escreveu o artigo "Bible", em 1875,
para a Encyclopaedia Britannica, a grita da Igreja Li-
vre contra sua heresia levou-o à suspensão e expulsão.
Robertson Smith, como Green, estava em contacto ínti-
mo com o pensamento alemão, mas enquanto Green não
estava comprometido com a revelação cristã, Robertson
Smith nunca flutuou em sua fé na Bíblia como registro
de uma específica e sobrenatural Revelação. Não so-
mente estava preparado para tratar seus livros com o
mesmo senso crítico que em outros, mas, depois que foi
demitido de Aberdeen, viajou para a Síria e trouxe tra-
balho de campo documentado para sua interpretação.
Tendo como base seu primeiro estudo e documentos da
vida semita, ele realizou as conferências Burnett. As
primeiras foram publicadas como The Religion of the
Semites.

28
Do modo como foi escrito, está claro que seu es-
tudo não era um escapismo numa torre de marfim dos
problemas reais da humanidade da época. Era impor-
tante entender as crenças religiosas das obscuras tribos
árabes porque isto esclarecia a natureza do homem e
da experiência religiosa. Dois temas importantes emer-
giram de suas conferências. Um é que os acontecimen-
tos mitológicos exóticos e as teorias cosmológicas ti-
nham pouco a ver com religião. Nisto ele está implici-
tamente contradizendo a teoria de Tylor de que a reli-
gião primitiva emerge do pensamento especulativo. Ro-
bertson Smith sugeriu que aqueles que ficavam acorda-
dos à noite tentando reconciliar os detalhes da Criação
no Gênesis com a teoria darwiniana da evolução pode-
riam despreocupar-se. A Mitologia é um bordado sobre
crenças mais sólidas. A religião verdadeira, mesmo nos
primeiros tempos, é firmemente enraizada nos valores
éticos da vida comunitária. Mesmo o menos informado
vizinho primitivo de Israel, atormentado por demônios
e mitos, ainda mostrava alguns sinais de verdadeira re-
ligião.
O segundo tema era que a vida religiosa em Israel
era fundamentalmente mais ética que a de qualquer
dos povos circundantes. Tomemos rapidamente este se-
gundo ponto. As três últimas conferências Burnett, pro-
feridas em Aberdeen, em 1891, não foram publicadas e
pouco nos restou delas. As conferências tratavam de
aparentes paralelos semíticos com a cosmogonia do Gê-
nesis. O alegado paralelo com a cosmogonia caldéia foi
considerado muito exagerado por Robertson Smith, e os
mitos babilônicos foram por ele classificados muito mais
como mitos de nações selvagens do que aqueles de Is-
rael. Novamente, a lenda fenícia, superficialmente, lem-
bra a estória do Gênesis, mas as similaridades servem
para trazer à tona as profundas diferenças do espírito e
do significado:
As lendas fenícias... estavam vinculadas a uma visão
completamente pagã de Deus, do homem e do mundo. Por serem
essas lendas destituídas de motivos éticos, nenhum crente po-
deria alcançar qualquer concepção espiritual de divindade, nem
qualquer sublime concepção da meta principal do homem ... A
dificuldade em explicar este contraste (com as idéias hebraicas
de divindade) não cabe a mim. Cabe àqueles que são compe·
lidos, por uma falsa filosofia da Revelação, a ver no Velho
Testamento nada mais do que o mais alto ponto das tendên-

29
cias gerais das religiões semitas. Esta não é a v1sao que o
estudo me recomenda. ~ uma visão que não é elogiada mas
condenada pelos muitos paralelismos pormenorizados entre
hebreus e a estória pagã c ritual, pois todos estes pontos ma-
teriais de semelhança somente fazem contraste no espírito mais
notável. .. (Black e Chrystal, p. 536).

No que concerne à formidável inferioridade da


religião dos vizinhos de Israel e semitas idólatras isto é
suficiente. Quanto à base das religiões pagãs semitas,
ela possui duas características: uma abundante demono-
logia que provoca temor no coração dos homens, e uma
confortante, estável, relação com o deus da comunidade.
Os demónios são o elemento primitivo rejeitado por
Israel; a relação moral, estável, com Deus é a religião
verdadeira.
Embora possa ser verdade que um selvagem se sente cer-
cado por inumeráveis perigos, os quais ele não entende e assim
personifica como invisíveis ou misteriosos inimigos, de poderes
sobre-humanos, não é verdade que o esforço de acalmar estes
poderes seja o fundamento da religião. Nos velhos tempos, a
religião, distinta da magia e feitiçaria, endereçou-se aos pa-
rentes e amigos, que podem, na verdade, ficar zangados com
seu povo por algum tempo, mas são sempre condescendentes,
exceto com os inimigos de seu povo ou com os membros re-
negados da comunidade. . . ~ somente nas épocas de disso-
lução social. . . que a superstição mágica, baseada em mero
terror ou ritos destinados a aplacar os deuses estrangeiros, in-
vade a esfera da religião tribal ou nacional. Em tempos me-
lhores, a religião da tribo ou do Estado nada tem cm co-
mum com as superstições ou ritos mágicos particulares e es-
trangeiros que o terror selvagem pode ditar ao indivíduo. A
religião não é uma relação arbitrária do homem individual
com um poder sobrenatural; é uma relação de todos os mem-
bros da comunidade com o poder que tem o bem da co-
munidade em seu âmago (The Re/igio11 of t!Je Semitc.r, p.
55).

E claro que em 1890 este pronunciamento autori-


tário sobre as relações da moral com a religião primitiva
teria sido calorosamente bem-vindo. Reuniria, numa fe-
liz combinação, o novo idealismo ético de Oxford e a
antiga Revelação. E óbvio que o próprio Robertson
Smith tinha se inclinado, inteiramente, para a visão ética
da religião. A compatibilidade de seus pontos de vista
com aqueles desenvolvidos em Oxford é perfeitamente
confirmado pelo fato de que, quando foi pela primeira
vez demitido da cátedra de hebraico, em Aberdeen, Bal-
liol ofereceu-lhe um posto. Ele confiava em que a preemi-

30
nência do Velho Testamento se colocaria acima do de-
safio, ainda que muito próximo do escrutínio cientí-
fico. Pois ele poderia mostrar, com uma erudição sem
rival, que todas as religiões primitivas expressam for-
mas e valores sociais. E desde que a virtude moral dos
conceitos religiosos de Israel estava acima de qualquer
disputa, e desde que esses tinham aberto caminho no
curso da história aos ideais do Cristianismo, e, estes,
por sua vez, tinham se movido de formas católicas para
protestantes, o movimento evolucionário estava claro.
Assim, a ciência não era oposta, mas cuidadosamente
subordinada ao dever cristão.
Deste ponto em diante, os antropólogos vêm sendo
sobrecarregados com um problema intratável. Pois, a
magia é definida para eles em termos residuais, evolu-
cionários. Em primeiro lugar, ela é ritual, o que não
faz parte do culto do deus da comunidade. Em segundo
lugar é ritual que se espera tenha efeito automático. De
certa maneira, a magia era para os hebreus o que o
catolicismo era para os protestantes, uma algaravia, ri-
tual sem sentido mantido irracionalmente de modo a ser
auto-suficiente para produzir resultados sem uma ex-
periência interior de Deus.
Robertson Smith, em sua conferência inaugural,
contrasta a inteligente abordagem calvinista com o tra-
tamento mágico das escrituras praticado pelos católicos
romanos, que carregaram o Livro com adendos supers-
ticiosos. Na mesma conferência, ele afirmava que "a
Igreja Católica"
tinha quase, desde o início, desertado da tradição apostólica e
estabelecido uma concepção de cristandade como uma mera sé-
rie de fórmulas contendo princípios abstratos e imutáveis, aos
quais bastava o consentimento intelectual para moldar as vidas
dos homens que não tiveram uma experiência de uma relação
pessoal com Cristo ...
A Escritura Sagrada não é, como os católicos tendem a
clamar, "um fenômeno divino magicamente dotado em cada le-
tra com tesouros salvadores de fé e conhecimentos" (Biack
e Chrystal, pp. 126-127).
Seus biógrafos sugerem que a associação de magia
com catolicismo era uma tentativa engenhosa de enver-
gonhar seus obstinados oponentes protestantes e levá-los
a um tratamento intelectualmente mais corajoso da Bí-
blia. Fossem quais fossem os motivos do escocês, perma-
nece o fato histórico de que a religião comparada herdou

31
uma disputa antiga sobre o valor do ritual formal. Che-
gou a hora de mostrar como uma investigação emocional
e preconceituosa do ritual levou a Antropologia a uma
das mais estéreis perspectivas - uma estreita preocupa-
ção com a crença na eficácia dos ritos. Desenvolverei isto
no Cap. 4. Enquanto Robertson Smith estava perfeita-
mente certo cm reconhecer na história da cristandade
uma tendência sempre presente em deslizar para o uso
puramente formal e instrumental do ritual, suas suposi-
ções evolucionárias o desencaminharam duplamente. A
prática mágica, no sentido de ritual automaticamente
efetivo, não é sinal de primitivismo, como o contraste
que ele próprio traçou entre a religião dos apóstolos e
a do recente catolicismo poderia sugerir. Tampouco é
prerrogativa de religiões desenvolvidas um conteúdo al-
tamente ético, como espero mostrar nos próximos ca-
pítulos.
A influência que Robertson Smith exerceu, divide-
se em duas correntes, de acordo com os usos que Dur-
kheim e Frazer fizeram de sua obra. Durkheim tomou
sua tese central c colocou a religião comparada em linhas
frutíferas. Frazer tomou sua casual tese menor levando
a religião comparada a um beco sem saída.
A dívida de Durkheim para com Robertson Smith é
reconhecida nas The Elementary Forms of the Reli-
gious Life (p. 61). O livro todo desenvolve a idéia ger-
minal de que os deuses primitivos são parte e parcela
da comunidade, suas formas expressando acuradamente
os detalhes da sua estrutura, seus poderes punindo e re-
compensando em seu favor. Na vida primitiva:
A religião era formada de uma série de atos e obser-
vâncias, cujo desempenho correto era necessário ou desejável
para assegurar os favores dos deuses ou evitar sua ira, e
nessas observâncias todo membro da sociedade tinha uma
participação marcada para ele, ou em virtude de ter nas-
cido numa família e comunidade, ou em virtude do lugar que
ocupava na família ou comunidade ... A religião não existia
para a salvação das almas mas para a preservação e bem-
-estar da sociedade. . . Um homem nasceu numa relação fixa
com certos deuses assim como nasceu numa relação com seus
companheiros; e sua religião, que é a parte de conduta a qual
foi determinada por suas relações com os deuses, era simples-
mente um lado do esquema geral de conduta prescrita para ele
por sua posição como membro da sociedade... A religião
antiga não é senão uma parte da ordem social geral que
abrange deuses e homens igualmente.

32
Assim escreveu Robertson Smith (pp. 29-33) . Mas
por diferenças de estilo e o uso do tempo passado po-
deria ter sido escrito por Durkheim.
Acho de grande ajuda entender Durkheim como
engajado inicialmente numa discussão com os ingleses,
como Talcott Parsons propôs (1960). Ele estava inte-
ressado em um problema particular sobre integração
social proposto para ele pelos defeitos da filosofia po-
lítica inglesa, particularmente representada por Herbert
Spencer. Não poderia subscrever a teoria utilitária de
que a psicologia do indivíduo poderia explicar o desen-
volvimento da sociedade. Durkheim quis mostrar que
era necessário algo mais, um consenso comum a um
conjunto comum de valores, uma consciência coletiva,
se se quisesse compreender corretarnente a natureza da
sociedade. Na mesma época, outro francês, Gustav Le
Bon (1841-1931), estava também empenhado na mesma
tarefa de corrigir a tradição benthamita prevalecente.
Procedeu desenvolvendo a teoria da psicologia da mul-
tidão, na qual também Durkheim parece ter haurido
livremente. Compare-se a explicação de Durkheim da
força emocional das cerimônias totêmicas (p. 241) com
a explicação de Le Bon da sugestionável, emocional-
mente selvagem ou heróica "mente da multidão". Mas o
melhor instrumento de Durkheim para convencer os in-
gleses do erro era o trabalho de um outro inglês.
Durkheim adotou inteiramente a definição de Ro-
bertson Smith da religião primitiva como a igreja esta-
belecida a qual expressa os valores comunitários. Tam-
bém seguiu Robertson Smith, inquestionavelmente, em
suas atitudes quanto aos ritos, que não eram parte do
culto dos deuses da comunidade. Seguiu-o batizaodo-os
de "magia" e definiu magia e mágicos como crenças,
práticas e pessoas que não operam dentro da comu-
nhão da igreja e são freqüentemente hostis a ela. Se-
guindo Robertson Smith e talvez Frazer, os primeiros
volumes deste, The Golden Bough, já estavam publica-
dos quando The Elementary Forms of Religious Li/e
apareceram em 1912, ele admitiu que os ritos mágicos
eram uma forma de higiene primitiva:
As coisas que o mágico recomenda que se mantenham se·
paradas são aquelas que, por razões de suas propriedades ca·
racterísticas, não podem ser reunidas e confundidas sem pe·

33
rigo ... máximas úteis. as primeiras formas de interdições mé-
dicas e higiénicas (p. 338).
Assim, a distinção entre contágio e religião verda-
deira era confirmada. As regras de impureza colocam-se
fora da corrente principal de seus interesses. Ele não
prestou a elas mais atenção do que Robertson Smith.
Mas qualquer limitação arbitrária de sua matéria
põe o estudioso em dificuldades. Quando Durkhcim co-
locou de lado uma classe de separações como higiene
primitiva e outra classe como religião primitiva, ele mi-
nou sua própria definição de religião. Os primeiros ca-
pítulos sumarizam e rejeitam definições insatisfatórias
de religião. Ele rejeita os esforços para definir religião
através de noções de mistério e pavor, da mesma ma-
neira que a definição de Tylor de religião como crença
em seres espirituais. Procede adotando dois critérios, que
ele presume acabarão por coincidir; o primeiro, como
vimos, é a organização comunal dos homens para o
culto da comunidade, e o segundo é a separação do
sagrado e profano. O sagrado é objeto de adoração da
comunidade. Pode ser reconhecido por regras que ex-
pressam seu caráter essencialmente contagioso.
Insistindo numa completa ruptura entre a esfera do
sagrado e a esfera do profano, entre comportamento
secular e religioso, Durkheim não está seguindo os pas-
sos de Robcrtson Smith. Este último tinha um ponto de
vista oposto e insistiu em (p. 29 c ss.) "que não existe
separação entre as esferas da religião e da vida cotidia-
na". Uma total oposição entre sagrado e profano parece
ter sido um passo necessário na teoria da integração so-
cial de Durkheim. Ela expressava a oposição entre o
indivíduo e a sociedade. A consciência social era pro-
jetada além c acima do membro individual da sociedade
para alguma coisa muito diferente, externa e forçosa-
mente poderosa. Logo, achamos Durkheim insistindo
em que regras de separação são as marcas distintivas
do sagrado, o pólo oposto do profano. É então guiado
por sua discussão a se perguntar por que seria o sagrado
contagioso. Responde a isto referindo-se à fictícia e
abstrata natureza das entidades religiosas. Elas são me-
ramente idéias despertadas pela experiência de socieda-
de, meramente idéias coletivas projetadas externamente,
meras expressões de moralidade. Assim, não têm um
ponto material fixo de referência. Mesmo os ídolos cs-

34
culpidos dos deuses são somente emblemas materiais de
forças imateriais geradas pelo processo social. Assim
sendo, elas são, em última instância, sem raízes, flui-
das, sujeitas a se tornarem desfocadas e a desagua-
rem em outras experiências. É da natureza delas estarem
sempre em perigo de perder seus caracteres distintivos e
necessários. O sagrado precisa estar continuamente cer-
cado com proibições. O sagrado deve ser sempre tra-
tado como contagioso porque relações com ele restrin-
gem-se a ser expressas por rituais de separação e de-
marcação e por crenças no perigo de se cruzar fron-
teiras proibidas.
Há uma pequena dificuldade quanto a esta inter-
pretação. Se o sagrado é caracterizado por sua conta-
giosidade, de que modo difere da magia não-sagrada,
também caracterizada por contagiosidade? Qual é o
status do outro tipo de contágio que não é gerado do
processo social? Por que as crenças mágicas são chama-
das higiene primitiva e não religião primitiva? Estes pro-
blemas não interessaram a Durkheim. Seguiu Robertson
Smith ao separar a magia da moral e religião e ajudou
assim a legar-nos um emaranhado de idéias sobre ma-
gia. Desde então, estudiosos têm coçado a cabeça por
uma definição satisfatória de crenças mágicas, e confun-
dido desse modo a mentalidade das pessoas que com
eles concordaram.
É fácil agora perceber que Durkheim advogou uma
visão demasiadamente unitária da comunidade social.
Devemos começar por reconhecer que a vida comunal
é muito mais complexa do que a admitida por ele. Daí,
achamos que a idéia durkheimiana de ritual como sim-
bólica do processo social pode ser estendida para in-
cluir ambos os tipos de crença em contágio, religioso
e mágico. Se ele pudesse ter previsto urna análise de
ritual na qual nenhuma das regras, que ele chamava
higiênicas, fosse destituída de sua carga de simbolismo
social, teria sido presumivelmente feliz em descartar a
categoria de magia. Retomarei a este tema. Mas não
podemos desenvolvê-lo sem antes apagar a lista de ou-
tro conjunto de preconceitos que derivam também de
Robertson Smith.
Frazer não estava interessado nas implicações so-
ciológicas da obra de Robertson Smith. Ele parecia, na
verdade, não estar de modo algum interessado em seu

35
tema principal. Em vez disso, agarrou-se ao resíduo má-
gico, que foi atirado fora acidentalmente, quer dizer, da
definição de religião verdadeira. Mostrou que se devia
procurar certas regularidades nas crenças mágicas e que
estas poderiam ser classificadas. Na investigação, cons-
tatou-se que a magia era mais do que meras regras de
evitar infecção obscura. Alguns atos mágicos preten-
diam conseguir benefícios e outros evitar danos. Assim,
o campo do comportamento que Robertson Smith ro-
tulou de superstição mantinha mais do que regras de
impureza. Mas, o contágio parecia ser um de seus prin-
cípios diretores. O outro princípio era a crença na trans-
ferência de propriedades através de simpatia ou seme-
lhança. De acordo com as chamadas leis da magia, o
mágico pode mudar eventos seja por ação mimética ou
permitindo que forças contagiosas trabalhem. Quando
terminou de investigar a magia, Prazer não tinha feito
mais que mencionar as condições sob as quais uma coi-
sa pode simbolizar outra. Se ele não estivesse conven-
cido de que os selvagens pensam de modo inteiramente
diferente do nosso, poderia ter ficado satisfeito em tra-
tar a magia como ação pura e simplesmente simbólica.
Poderia então ter dado as mãos a Durkbeim e à escola
francesa de Sociologia e o diálogo através da Mancha
teria sido mais frutífero para o pensamento inglês do
século XIX. Em vez disso, podou cruamente os pres-
supostos evolucionários implícitos em Robertson Smith
e atribuiu à cultura humana três estágios de desenvol-
vimento.
Magia era o primeiro estágio, religião o segundo,
ciência o terceiro. Sua discussão procede por uma espé-
cie de dialética hegeliana uma vez que a magia, classi-
ficada como ciência primitiva, foi superada por sua pró-
pria inadequação e suplantada pela religião na forma de
uma fraude política e sacerdotal. Da tese da magia
emergiu a antítese, religião, e a síntese, ciência moder-
na efetiva, substituiu a ambas, religião e magia. Esta
apresentação ao gosto da época não estava alicerçada em
qualquer prova. O esquema evolucionário de Prazer ba-
seava-se somente em algumas suposições inquestioná-
veis tiradas da linguagem corrente da época. Uma era a
suposição de que o refinamente ético é a marca de ci-
vilização avançada. Outra era a suposição de que magia
não tem nada a ver com moral ou religião. Nesta base

36
ele construiu a imagem de nossos ancestrais cujos pen-
samentos eram dominados pela magia. Para eles, o uni-
verso era movido por princípios mecânicos e impes-
soais. Remexendo a fórmula certa de controlá-lo, eles
tropeçaram em alguns bons princípios, mas com a mes-
ma freqüência seus confusos estados mentais os leva-
ram a pensar que palavras e sinais poderiam ser usados
como instrumentos. A magia resultou da inabilidade
inicial do homem em distinguir entre suas associações
subjetivas e a realidade externa objetiva. Sua origem era
baseada num erro. Sem dúvida alguma, o selvagem era
um louco crédulo.
Assim, as cerimônias que em muitas terras são feitas para
apressar a ida do inverno ou reter o vôo do verão são, de
certa maneira, um esforço para criar o mundo novamente,
"remodelá-lo mais de acordo com o desejo do coração". Mas
se nos colocarmos no ponto de vista dos antigos sábios, que
inventam meios tão fracos para realizar um fim incomensura-
velmente vasto, devemos despir-nos de nossas modernas con-
cepções da imensidade do universo e da pequenez e insignifi-
cância do lugar do homem nele. . . Para o selvagem as mon-
tanhas que limitam o horizonte visível, ou o mar que se es-
tende ao longe para encontrá-lo, é o fim do mundo. Além
desses estreitos limites seus pés nunca vaguearam ... no futuro
ele raramente pensa, e do passado ele sabe somente o que Jbe
foi dado em palavras pela boca de seus selvagens ancestrais.
Supor que o mundo, assim circunscrito no espaço e tempo, foi
criado pelos esforços de um ser como ele próprio não impõe
nenhum grande esforço a sua credulidade; e ele pode sem
muita dificuldade imaginar que possa, anualmente, repetir o
trabalho da criação com seus feitiços e encantamentos (Spirits
oftlze Com and o/ tlze Wild, ll, p. 109).

:€ difícil perdoar Frazer por sua complacência e


franco desprezo pela sociedade primitiva. O último capí-
tulo de Taboo and the Perils of the Soul se intitulava
"Nossa Dívida para com o Selvagem". Possivelmente
foi inserido em resposta a correspondentes que o pres-
sionaram a reconhecer a sabedoria e profundidade filo-
sófica das culturas primitivas que eles conheciam. Fra-
zer dá extratos interessantes dessas cartas, em notas de
rodapé; mas não consegue ajustar seus preconceituosos
julgamentos para levá-las em consideração. O capítulo
dá a entender que contém um tributo à filosofia selva-
gem, mas uma vez que Frazer não podia oferecer razão
alguma para respeitar idéias que ele tinha maciçamente
demonstrado serem infantis, irracionais e supersticiosas,

37
o tributo é meramente da boca para fora. 1:: difícil com-
binar tão pomposo patrocínio com o seguinte:
Quando tudo está dito e feito, nossas semelhanças com o
selvagem são ainda mais numerosas que nossas diferenças ...
afinal das contas, o que chamamos de verdade é somente a
hipótese que melhor se adequa. Assim sendo, revendo as opi-
niões e práticas de raças e épocas mais rudes, faremos bem
em olhar com complacência para seus erros como escorre-
gões inevitáveis na procura da verdade ...
Prazer teve seus crítí,cos e eles ganharam alguma
atenção na época. Mas Prazer triunfou, indubitavel-
mente, na Inglaterra. Pois não está ainda a edição resu-
mida de The Golden Bough dando lucros? Não é
dada regularmente uma conferência em memória de Pra-
zer? Parcialmente, foi a pura simplicidade de suas idéias,
parcialmente a incansável energia que trouxe volume
após volume, mas acima de tudo foi seu estilo rococó,
que deu tão ampla circulação a sua obra. Em quase to-
dos os estudos de civilizações antigas certamente se en-
contrarão contínuas referências ao primitivismo e a seu
critério, a superstição mágica e não-ética.
Veja-se, por exemplo, os escritos de Cassirer so-
bre zoroastrismo, nos quais se reconhecem estes temas
de The Golden Bough:
Mesmo a natureza assume uma nova forma, pois é vista
exclusivamente no espelho da vida ética. A natureza. . . é con-
cebida como a esfera da lei e legalidade. Na religião zoroástrica
a natureza é descrita pelo conceito de Asha. Aslta é a sabedoria
da natureza que reflete a sabedoria de seu criador, de Abura
Mazda, o "senhor sábio". Esta ordem universal, eterna, inviolá-
vel, 'governa o mundo e determina todos os eventos singulares:
o caminho do sol, da lua, das estrelas, o crescimento das
plantas e animais, a direção dos ventos e das nuvens. Tudo isso
é mantido e preservado, não por meras forças físicas mas pela
força do Bem. . . o significado ético suplantou e substituiu o
significado mágico (1944, p. 100).

Ou tomando uma fonte mais recente sobre a mes-


ma matéria, encontramos o Prof. Zaehner a notar
tristemente que os textos zoroástricos menos incomple-
tos se referem somente a regras de pureza, não sendo,
portanto, de nenhum interesse:
... somente na Vidêvdât com suas lúgubres prescrições sobre
pureza ritual e sua lista de punições impossíveis por crimes ri-
dículos, os tradutores mostram um entendimento tolerável do
texto (pp. 25-26).

38
~ desse modo, certamente, que Robertson Smith
consideraria tais regras, mas depois de setenta anos po-
demos estar certos de que isto é tudo o que se pode
dizer sobre elas.
Nos estudos do Velho Testamento é predominante
a suposição de que os povos primitivos usam rituais ma-
gicamente, isto é, de um modo mecânico e instrumen-
tal. "Na velha Israel a distinção entre o que chamamos
pecado intencional e não-intencional, no que diz respeito
a Deus, quase que não existe" (Oesterley e Box). "Para
os hebreus do século V a.C.", escreve o Prof. James
(1938), "a expiação era meramente um processo mecâ-
nico que consistia em limpar a impureza material". A
história dos israelitas é algumas vezes apresentada como
uma luta entre os profetas, que demandavam uma união
interior com Deus e o povo, continuamente sujeita a re-
troceder à magia primitiva, à qual eles são particular-
mente inclinados, quando em contacto com outras cul-
turas mais primitivas. O paradoxo consiste em que a
magicalidade parece finalmente prevalecer na compila-
ção do Código Sacerdotal. Se denominássemos de magia
a crença na eficácia suficiente do rito, em suas últimas
como em suas primeiras manifestações, a utilidade de
magia, como medida de primitivismo, se perderia. Po-
der-se-ia esperar que esta palavra fosse riscada dos es-
tudos do Velho Testamento. Mas ela continua, com tabu
e mana, para enfatizar a distinção da experiência religio-
sa israelita por contraste com o paganismo semita. Ei-
chrodt é particularmente livre com esses termos (pp.
438, 453):

Já foi mencionado o efeito mágico atribuído aos ritos e


fórmulas de expiação babilônicas, e isto torna-se perfeitamente
claro quando se lembra que a confissão do pecado, na verdade,
faz parte do ritual de exorcismo e tem eficiência ex opere ope-
rato (p. 166).

Continua, citando os salmos 40, 7, e 69, 31, como


"contrário à tendência do sistema de sacrüício a fazer
do perdão dos pecados um processo mecânico". Na p.
119 ele afirma novamente que os conceitos religiosos
primitivos são "materialistas". Muito deste livro, que é
impressionante em outras passagens, baseia-se na supo-
sição de que o ritual que funcione ex opere operato é
primitivo, anterior, em tempo, comparado com o ritual

39
que é simbólico de estados internos da mente. Mas oca-
sionalmente a natureza não-testada a priori desta supo-
sição parece inquietar o autor:
A mais comum das expressões para fazer expiação, kipper,
tam~m aponta nesta direção se o significado original do termo
pode ser definido como "limpar" baseando-se nos paralelos
babilônios e assírios. Aqui, o conceito fundamental de pecado é
de impureza material, e espera-se que o sangue, como substân-
cia santa dotada de poder miraculoso, remova automaticamente
a mancha do pecado.

Então, vem uma iluminação que levaria a muita re-


consideração se levada a sério:
Todavia, uma vez que a derivação baseada no árabe, dan-
do o significado "cobrir", parece igualmente possível, é bem
possível que a idéia seja a de ocultar a falta de alguém dos
olhos do partido ofendido, por meios de reparação, o que por
contraste enfatizaria o caráter pessoal do ato de expiação (p.
162).

Assim, Eichrodt cede parcialmente aos babilônios


- talvez eles também conhecessem alguma coisa sobre
a verdadeira religião interior; talvez a experiência reli-
giosa israelita não se tenha projetado nas vizinhas ma-
gias pagãs com uma distinção única.
Encontramos algumas dessas suposições a dominar
a interpretação da literatura grega. O Professor Finley,
discutindo a vida social e crenças do mundo de Homero,
emprega um teste ético para distinguir entre os pri-
meiros e os últimos elementos da crença (pp. 147, 151,
157).
De novo, um conhecido clássico francês, Moulinier,
faz um amplo estudo das idéias de pureza e impureza no
pensamento grego. Livre dos preconceitos de Robertson
Smith, sua abordagem parece excelentemente empírica,
pelos padrões antropológicos correntes. O pensamento
grego parece ter estado relativamente livre da poluição
ritual no período que Homero descreve (se existiu este
período histórico), enquanto conjuntos de conceitos de
poluição emergem posteriormente e são expressos pelos
dramaturgos clássicos. O antropólogo, sem uma sólida
formação clássica, procura por um guia especializado
para saber se pode confiar num autor, pois seu material
é desafiante e, para o leigo, convincente. Infelizmente,
o livro é redondamente condenado no Journal of Helle-

40
nic Studies, por um resenhista inglês que o considera de-
ficiente na antropologia do século XIX:
... o autor criou desnecessariamente obstáculos para si mesmo.
Parece não saber nada da grande massa de material compa-
rativo que é acessível a quem quer que estude pureza, polui·
çíío e purificação ... uma quantia muito modesta de conhe·
cimento antropológico lhe mostraria que uma noção tão an-
tiga como a de poluição de sangue vertido pertence à época
em que a comunidade era o mundo todo. . . na p. 277 utiliza a
palavra "tabu" mas somente para mostrar que não tem idéia
clara do que ela significa (Rose, 1954);

ao passo que um resenhista não carregado de conheci-


mento antropológico dúbio recomenda o trabalho de
Moulinier sem reservas (Whatmough).
Estas escassas citações, coletadas muito ao acaso
poderiam ser facilmente multiplicadas. Elas mostram
quão vasta foi a influência de Frazer. Também dentro
da Antropologia, seu trabalho penetrou profundamente.
Parece que, uma vez que Frazer disse que a interessan-
te questão da religião comparativa se prendia a falsas
crenças na eficácia mágica, as cabeças dos antropólogos
ingleses permaneceram obedientemente curvadas sobre
esta questão perplexa, mesmo tendo rejeitado há muito
a hipótese evolucionária que para Frazer tornou-a in-
teressante. :É o que lemos através de virtuosísticas os-
tentações de erudição sobre a relação entre magia e
ciência, cuja importância teórica permanece obscura.
No total, a influência de Frazer foi perniciosa. To-
mou de Robertson Smith seu ensinamento mais perifé-
rico e perpetuou uma irrefletida divisão entre religião
e magia. Disseminou uma falsa suposição sobr~ a visão
do universo do primitivo baseada em símbolos mecâni-
cos, e outra falsa suposição de que a ética é estranha à
religião primitiva. Antes de abordarmos o assunto da
profanação ritual, estas suposições precisam ser corrigi-
das. Os mais complicados quebra-cabeças em religião
comparada aparecem porque a experiência humana tem
sido assim erroneamente dividida. Neste livro tentamos
reunificar alguns dos segmentos separados.
Em primeiro lugar não esperemos entender religião
se nos restringirmos a considerar a crença em seres es-
pirituais, quão refinada possa ser a fórmula. Pode ha-
ver contextos de investigação nos quais deveríamos que-
rer alinhar todas as crenças existentes em outros se-

41
res, zumbis, ancestrais, demônios, fadas e o resto. Mas
seguindo Robertson Smith não deveríamos supor que
catalogando toda a população espiritual do universo te-
nhamos apreendido necessariamente a essência da re-
ligião. Em vez de parar de retalhar definições, devería-
mos tentar comparar as visões dos povos sobre o des-
tino do homem e seu lugar no universo. Em segundo
lugar não devemos esperar entender as idéias de ou-
tros povos sobre contágio, sagrado ou secular, até que
as confrontemos com as nossas.

42
(

2. PROFANAÇÃO SECULAR

A religião comparada tem sido sempre confundida


com o materialismo médico. Alguns afirmam que mesmo
o mais exótico dos ritos antigos tem uma boa base hl-
giênica. Outros, embora concordando que o ritual pri-
mith•o tem a higiene por objeto, tomam o ponto de
vista contrário de sua validade. Um grande golfo di-
vide, para eles, nossas boas idéias sobre higiene das
fantasias errôneas dos primitivos. Mas ambas aborda-
gens médicas do ritual são infrutíferas porque falham
em confrontá-lo com nossas idéias sobre higiene e su-
jeira.
Na primeira abordagem está implícito que se co-
nhecêssemos todas as circunstâncias, acharíamos a base
racional do ritual primitivo amplamente justificada. Co-
mo interpretação, esta linha de pensamento é delibera-
damente prosaica. A importância do incenso não reside

43
no fato de simbolizar a fumaça ascendente de sacrifí-
cio, mas por ser um meio de tornar tolerável o cheiro
da desasseada humanidade. A prática judaica e islâmi-
ca de evitar a carne de porco se explica devido aos pe-
rigos de se comer esse tipo de carne em dias quentes.
B verdade que pode haver uma maravilhosa correspon-
dência entre o evitar uma doença contagiosa e a evita-
ção ritual. Os atos de lavar e separar que servem a
um fim prático podem ser aptos a expressar temas re-
ligiosos ao mesmo tempo. Assim, afirmou-se que suas re-
gras de lavar-se antes de comer deram aos judeus imuni-
dade por ocasião das pragas. Mas, apontar os benefícios
de ações rituais é uma coisa, e outra coisa é se satisfazer
com o uso desses subprodutos como uma explicação su-
ficiente. Mesmo que algumas regras dietéticas de Moisés
fossem higienicamente benéficas, é uma lástima tratá-lo
mais como um esclarecido administrador da saúde pú-
blica que como um líder espiritual.
Cito de um comentário sobre regras mosaicas dieté-
ticas, datado de 1841 :
... É provável que o princípio básico que determina as leis
deste capítulo seja encontrado no campo da higiene e limpeza ...
A id~ia de doenÇas parasíticas e infecciosas, que conquistaram
uma posição tão importante na patologia moderna, parece ter
ocupado grandemente a mente de Mo.isés, e dominado todas
as suas regras higiênicas. Ele exclui da dieta hebraica animais
particularmente sujeitos a parasitas; e como é no sangue que
o germe ou esporos das doenças infecciosas circulam, ordena
que eles sejam escoados do seu sangue antes de servirem de
comida. . . (Kello'g)
Continua citando provas de que os judeus europeus
têm uma expectativa de vida maior e imunidade a pra-
gas, vantagens que atribui às suas restrições de dieta. Ao
escrever sobre os parasitas é improvável que Kellog es-
tivesse pensando no verme trichiniasis, pois este não
foi observado até 1828 e foi considerado benigno ao ho-
mem até 1860 (Hegner, Root e Augustine, 1929, p.
439).
Para uma expressão recente de uma opinião seme-
lhante leia-se o relato do Dr. Ajose sobre o valor mé-
dico das antigas práticas nigerianas (19 57). O culto
ioruba de uma divindade da varíola, por exemplo, re-
quer que os pacientes sejam isolados e tratados somente
por um sacerdote, ele mesmo restabelecido da doença e

44
assim imune. Além disso, os iorubas usam a mão es-
querda para lidar com qualquer coisa suja, "porque a
mão direita é usada para comer e as pessoas percebem
o risco de contaminação da comida que pode resultar
se esta distinção não for observada".
O Padre Lagrange também subscreveu essa idéia:
Alors l'impurité, nous ne le nions pas, a un caractere reli-
gieux, ou du moins touche au sumaturel préteodu; mais, dans
sa racine, est-ce autre chose qu'une mesure de préservation
sanitaire? L'eau ne remplace-t-elle pas ici les antisseptiques? Et
l'esprit redouté n'a-t-il pas fait des siennes en sa nature propre
de microbe? (p. 155)*.

:e bem possível que a antiga tradição dos israelitas


incluísse o conhecimento de que os porcos são comida
perigosa para os humanos. Qualquer coisa é possível.
Mas, note-se que esta não é a razão dada no Levítico pa-
ra a proibição da carne de porco e evidentemente a tradi-
ção, se alguma vez existiu, se perdeu. Pois o próprio Mai-
mônides, o grande protótipo do materialismo médico do
século XII, embora pudesse encontrar razões higiênicas
para todas as outras restrições de dieta da lei mosaica,
confessou-se perplexo pela proibição da carne de porco,
e foi forçado a explicações estéticas, baseadas na re-
pulsiva dieta do porco doméstico:
Sustento que a comida que é proibida pela Lei é nociva.
Não há nada entre as espécies proibidas de comida de cujo
caráter injurioso se duvide, exceto a carne de porco e a gor-
dura. Mas, também nesses casos, a dúvida não se justifica. Pois
a carne de porco contém mais umidade do que a necessária
(para a alimentação humana), e muita coisa supérflua demais.
A principal razão por que a Lei proíbe carne de porco se
encontra na circunstância de que seus hábitos e alimentos
são sujos e repugnantes ... (p. 370 e ss.)
Isto pelo menos mostra que a base original da re-
gra relativa à carne de porco não era transmitida com
o resto da herança cultural, mesmo que outrora tives-
se sido reconhecida.
Farmacologistas trabalham ainda duramente no Le-
vítico 11. Para dar um exemplo, cito um relato de David
I. Macht que me foi indicado por Miss Jocelyne Ri-
• Então a impureza possui, não o neg;~mos, um caráter religioso
ou, pelo menos, toca no pretenso sobrenatural; mas, originalmente, não
será tão-só uma medida de preserva~ão sanitária? A água não será
aqui um substJtuto dos antissépticos? E o esplrilo temido não fez das
suas em sua natureza própria de micróbio? (N. da E.)

45
chard. Macht produziu extrato de músculo de porco,
cachorro, lebre, coelho (comparado com cobaias para
fins experimentais), c camelo, c também de aves de
rapina e de peixes sem escamas c barbatanas. Testou
essências de sucos tóxicos e comprovou-os tóxicos. Tes-
tou extratos de animais que eram considerados limpos
no Levítico e achou-os menos tóxkos, mas ainda julgou
que sua pesquisa nada provava sobre o valor médico
das leis mosaicas.
Para um outro exemplo de materialismo médico
leia-se o Prof. Kramer, que elogia uma tabuinha su-
méria de Nippur como o único texto médico recebido
do terceiro milênio a.C.
O texto revela, embora indiretamente, uma familiaridade
ampla com um grande número de operações e procedimentos
médicos bastante elaborados. Por exemplo, em várias das pres-
crições, as instruções eram para "purificar" os símplices antes
de pulverização, um passo que deve ter requerido diversas ope-
rações químicas.

Quase que convencido que purificação não signifi-


ca aqui borrifar com água santa ou recitar um feitiço,
continua entusiasticamente:
O médico sumério que escreveu nossa tabuinha não lan-
çou mão de feitiços mágicos e encantamentos ... o fato assus-
tador é que nosso documento de argila, a mais velha "página"
do texto médico já descoberta, é completamente livre de ele-
mentos místicos e irracionais (1956, pp. 58-59).

Basta de materialismo médico, um termo inven-


tado por William James para a tendência de explicar a
experiência religiosa dessa maneira : por exemplo, uma
visão ou sonho é explicado como relacionado com dro-
gas ou indigestão. Não há objeção a esta abordagem a
não ser que ela exclua outras interpretações. Muitos po-
vos primitivos são materialistas médicos, numa larga me-
dida, tanto quanto tendem a justificar suas ações ri-
tuais em termos de dores e penas que os afligiriam
caso os ritos fossem negligenciados. Mais adiante mos-
trarei por que as regras rituais são tão freqüentemente
sustentadas por crenças q11e contêm perigos específicos
em suas violações. Ao terminar o estudo sobre perigo
ritual, acho que ninguém deveria tentar tomar semelhan-
tes crenças no seu valor nominal.

46
Quanto à visão oposta - de que o ritual primitivo
nada tem em comum com nossas idéias de limpeza -
lastimo por ser igualmente prejudicial ao cntenctimento
do ritual. Nesta visão, nossos atos de lavar, escovar,
isolar e desinfetar, têm somente uma semelhança su-
perficial com purificações rituais. Nossas práticas são
solidamente baseadas cm higiene; as deles são simbóli-
cas: nós matamos germes; eles afastam os espíritos. Isto
soa francamente como um contraste. Todavia, a seme-
lhança entre alguns de nossos ritos simbólicos e nossa
higiene é algumas vezes estranhamente estreita. Por
exemplo, o Prof. Harper sumariza o contexto franca-
mente religioso dos Havik brâmanes quanto às regras de
poluição. Elas reconhecem três graus de pureza religiosa.
2 preciso o mais alto grau para o desempenho de um ato
de adoração; um grau médio é a condição normal es-
perada, e finalmente há um estado de impureza. O con-
tacto com uma pessoa no estado médio tomará impura
a pessoa no estado mais alto de pureza e o contacto
com qualquer pessoa em estado impuro tornará as ca-
tegorias mais altas impuras. O estado mais alto é so-
mente atingido por um rito de banho.
Um banho diário é essencialmente necessário para um
brâmane, pois, sem ele, não pode realizar suas adorações diá·
rias aos deuses. Idealmente, os Havik dizem que deveriam to·
mar três banhos por dia, um antes de cada refeição. Mas pou-
cos fazem isto. Na prática, todos os Havik que conheci obser·
vavam rigidamente o costume do banho diário, que é tomado
antes da refeição principal do dia, e antes que os deuses da
casa sejam adorados ... Os homens havik que pertencem a uma
casta relativamente rica e que têm um tempo considerável de
lazer, durante certas estações, mesmo assim fazem grande parte
do trabalho necessário para dirigir suas propriedades de noz
areca. Faz·se o possível para terminar o trabalho considerado
sujo ou ritualmente profano - por exemplo, carregar esterco
para o jardim ou trabalhar com um servo intocável - antes
do banho diário que precede a refeição principal. S:: por qual·
quer razão este trabalho tem que ser feito à tarde, outro
banho deveria ser tomado quando o homem volta ao lar ...
(p. 153).

1! feita uma distinção entre comida cozida e crua


como portadoras de poluição. A comida cozida está
sujeita a transmitir poluição enquanto a comida crua
não. Logo, comidas cruas podem ser recebidas ou ma-
nuseadas por membros de qualquer casta - uma regra
necessária do ponto de vista prático numa sociedade

47
onde a divisão do trabalho é correlata a graus de pu-
reza herdada (ver Cap. 7). Frutas c nozes, enquanto
inteiras, não são sujeitas à profanação ritual, mas uma
vez que um coco é quebrado ou uma bananeira cortada,
um Havik não pode aceitá-la de um membro de uma
casta inferior.
O processo de comer é potencialmente poluidor, mas a
maneira de comer determina a quantia de poluição. Saliva
- mesmo a da própria pessoa - é extremamente profana. Se
um brâmane, inadvertidamente, toca com os dedos nos lábios,
deve banhar-se ou pelo menos mudar suas roupas. A poluição
de saliva também pode ser transmitida através de algumas subs-
tâncias materiais. Estas duas crenças levaram à prática de to-
mar água derramando-a na boca em vez de colocar os lábios na
beira da xícara, e de fumar cigarros ... através das mãos, assim
eles nunca tocam diretamente os lábios. (Hoobs são desco-
nhecidos virtualmente nesta parte da lndia.) ... Comer qual-
quer comida - mesmo tomar café - deve ser precedido pela
lavagem das mãos e dos pês (p. 156).

A comida que pode ser jogada dentro da boca está


menos sujeita a transmitir poluição de saliva do que a
comida que é mordida. Uma cozinheira não pode provar
a comida que está preparando, pois tocando seus dedos
nos lábios perderia a condição de pureza requerida para
proteger a comida contra a poluição. Enquanto come,
uma pessoa está no estado médio de pureza e se aci-
dentalmente tocar a mão ou colher daquele que a serve,
este se torna impuro e deve pelo menos trocar suas rou-
pas antes de servir mais comida. Uma vez que a polui-
ção é transmitida sentando-se na mesma fileira numa
refeição, quando alguém de outra casta é recebido como
hóspede é normalmente colocado separadamente. Um
Havik em condição de grave impureza deve ser ali-
mentado fora da casa e espera-se que ele remova o prato
de folha no qual se alimentou. Ninguém pode tocá-lo
sem que se profane. A única pessoa que não se pro-
fana tocando ou comendo da folha de outrem é a es-
posa que, assim, como dissemos, expressa sua rela-
ção pessoal com o marido. E assim as regras se mul-
tiplicam. Elas discriminam divisões cada vez mais estrei-
tas, prescrevendo comportamento ritual com respeito à
menstruação, nascimento e morte. Todas as emissões
corporais, mesmo sangue ou pus de um ferido, são fon-
tes de impureza. Água, e não papel, deve ser usada para
se lavar depois de defecar, e isto é feito somente com a

48
mão esquerda, enquanto o alimento pode ser comido
somente com a mão direita. Pisar nas fezes de animais
causa impureza. Contacto com couro causa impureza. Se
são usadas sandálias de couro, elas não devem ser to-
cadas com as m ãos e devem ser tiradas, e os pés lava-
dos, antes de entrar cm um templo ou casa.
Regulamentos precisos dão as espécies de contacto
indireto que podem transmitir poluição. Um Havik, tra-
balhando com seu servo intocável no jardim, pode se
tornar seriamente impuro, tocando um cabo ou bambu
ao mesmo tempo que o servo. :B o contacto simultâneo
com bambu ou cabo que profana. Um Havik não pode
receber frutas ou dinheiro diretamente de um Intocável.
Mas alguns objetos permanecem impuros e podem ser
condutores de impureza mesmo depois de contacto. A
poluição permanece em tecido de algodão, vasilhas
metálicas de cozinha, comida cozida. Afortunadamente,
para a colaboração entre as castas, o solo não age
como um condutor. Mas a palha que o cobre sim.
Um brâmane não deve ficar na mesma parte do estábulo
que seu servo Intocável, por receio de que ambos pisem luga-
res ligados por palhas superpostas ao chão. Mesmo que um
Havik e um Intocável se banhem ao mesmo tempo no reserva-
tório de água da aldeia, o Havik está apto a alcançar o estado
de Madi (pureza) porque a água vai para o solo, e o solo
não transmite impureza (p. 173).
Quanto mais nos aprofundamos nestas regras e em
outras similares, mais óbvio se torna que estamos estu-
tando sistemas simbólicos. Será então esta realmente a
diferença entre a poluição ritual e nossas idéias de su-
jeira: são nossas idéias higiênicas enquanto as deles são
simbólicas? Nada disso: passarei a sustentar que nossas
idéias de sujeira também expressam sistemas simbóli-
cos e que a diferença entre o comportamento da po-
luição em uma parte do mundo e em outra é somente
uma questão de detalhe.
Antes de começarmos a pensar na poluição ritual
devemos adotar uma posição de penitência e humildade
e reexaminar escrupulosamente nossas próprias idéias
sobre a sujeira. Dividindo-as em suas partes devemos
distinguir quaisquer elementos que saibamos ser o re-
sultado de nossa história recente.
Há duas notáveis diferenças entre nossas idéias eu-
ropéias contemporâneas de profanação e aquelas, diga-

49
mos, das culturas primitivas. Uma é que evitar a sujeira
é para nós uma questão de higiene ou estética e não está
relacionada com nossa religião. Falarei sobre a espe-
cialização de idéias que separa nossas noções de su-
jeira e de religião no Cap. 5. A segunda diferença é
que nossa idéia de sujeira é dominada pelo conheci-
mento de organismos patogênicos. A transmissão bacte-
riana da doença foi uma grande descoberta do século
XIX. Ela produziu a mais radical revolução na história
da Medicina. Isto transformou tanto ·nossas vidas que é
difíciJ pensar sobre a sujeira a não ser num contexto de
patogenicidade. Mesmo assim, obviamente, nossas idéias
sobre sujeira não são tão recentes. Devemos fazer um
esforço para pensarmos além dos últimos cem anos e
analisar as bases do ato de evitar a sujeira antes de
sua transformação pela bacteriologia; por exemplo,
antes que o ato de cuspir habilmente numa escarra-
deira fosse considerado anti-higiênico.
Se pudermos abstrair patogenia e higiene de nossa
noção de sujeira, estaremos diante da velha definição
de sujeira como um tópico inoportuno. Esta é uma abor-
dagem muito sugestiva. Implica duas condições: um
conjunto de relações ordenadas e uma contravenção
desta ordem. Sujeira, então, não é nunca um aconteci-
mento único, isolado. Onde há sujeira há sistema. Su-
jeira é um subproduto de uma ordenação e classifica-
ção sistemática de coisas, na medida em que a ordem
implique rejeitar elementos inapropriados. Esta idéia de
sujeira leva-nos diretamente ao campo do simbolismo e
promete uma ligação com sistemas mais obviamente sim-
bólicos de pureza.
Podemos reconhecer nas nossas próprias noções de
sujeira que estamos usando uma espécie de omnibus
compendium que inclui todos os elementos rejeitados de
sistemas ordenados. É uma idéia relativa. Sapatos não
são em si sujos, mas é sujeira colocá-los na mesa da sala
de jantar; comida não é sujeira em si, mas é sujeira dei-
xar utensílios de cozinha no quarto, ou deixar comida
salpicada na roupa; do mesmo modo, equipamento do
banheiro na sala de visitas; roupa pendurada nas cadei-
ras; coisas que são para ser deixadas fora da casa dentro
da casa; coisas do primeiro andar no térreo; roupa de
baixo aparecendo, e assim por diante. Resumindo, nosso
comportamento de poluição é a reação que condena

50
qualquer objeto ou idéia capaz de confundir ou contra-
dizer classificações ideais.
Nós não deveríamos ficar focalizando a sujeira. De-
finida desta maneira, ela aparece como uma categoria
residual, rejeitada do nosso esquema normal de classi-
ficações. Tentando focalizá-la, enfrentamos nosso hábito
mental mais forte. Pois, parece que qualquer coisa que
percebemos é organizada cm padrões pelos quais nós,
os observadores, somos em grande parte responsáveis.
Perceber não é questão de se permitir passivamente a
um órgão, - digamos a visão ou a audição - que re-
ceba uma impressão já pronta de fora como uma paleta
recebendo um pi11go de tinta. Reconhecer e lembrar não
são questões de suscitar velhas imagens de impressões do
passado. É geralmente aceito que todas as nossas im-
pressões são esquematicamente determinadas desde o
início. Como observadores, selecionamos, de todos os
estímulos que caem em nossos sentidos, somente aque-
les que nos interessam, e nossos interesses são governa-
dos por uma tendência a padronizar, chamadas algumas
vezes de schema (ver Bartlett, 1932). Num caos de im-
pressões movediças, cada um de nós constrói um mundo
estável no qual os objetos têm formas reconhecíveis,
são localizados a fundo, e têm permanência. Perceben-
do, estamos construindo, tomando certas pistas e deixan-
do outras. As pistas mais aceitáveis são aquelas que se
ajustam mais facilmente ao padrão que está sendo cons-
truído. Algumas, ambíguas, tendem a ser tratadas como
se se harmonizassem com o resto do padrão. As dis-
cordantes tendem a ser rejeitadas. Se elas são aceitas,
a estrutura de pressupostos tem que ser modificada.
Enquanto a aprendizagem continua, os objetos recebem
nome. Seus nomes, então, afetam o modo como são
percebidos na próxima vez: uma vez rotulados, são mais
rapidamente enfiados nos seus devidos lugares, no fu-
turo.
A medida que o tempo passa e as experiências se
empilham, fazemos um investimento cada vez maior em
nosso sistema de rótulos. Assim uma tendência con-
servadora é incorporada. Isto nos dá confiança. A qual-
quer hora, pode ser que tenhamos de modificar nossa
estrutura de pressupostos para acomodar uma experiên-
cia nova, mas quanto maior for a coerência da ex-
periência com o passado, mais confiança podemos ter

51
em nossos pressupostos. Fatos desconfortáveis, que se
recusam a ser ajustados, nós os ignoramos ou os distor-
cemos a fim de que não perturbem aqueles pressupos-
tos estabelecidos. Grosso modo, tudo de que tomamos
conhecimento é pré-selecionado e organizado no próprio
ato da percepção. Dividimos com outros animais uma
espécie de mecanismo filtrador que primeiramente deixa
entrar sensações que sabemos como usar.
Mas e as outras? E as experiências possíveis que
não passam pelo filtro? :B possível concentrar a atenção
em trilhas menos habituais? Podemos examinar o pró-
prio mecanismo filtrador?
Podemos certamente nos forçar a observar coisas
que nossas tendências esquematizantes fizeram-nos per-
der de vista. Causa-nos sempre um choque descobrir
que nossa primeira observação fácil é falha. Mesmo ob-
servar fixamente um engenho deformante faz com que
algumas pessoas se sintam fisicamente mal, como se seu
próprio equihôrio fosse atingido. A Sra. Abercrombie
colocou um grupo de estudantes de Medicina em um
curso de experimentos que pretendia mostrar-lhes o alto
grau de seleção que utilizamos nas mais simples obser-
vações. "Mas você não pode ter o mundo todo como
uma gelatina", um deles protestou, "É como se meu
mundo tivesse sido arrebentado", disse um outro. Ou-
tros reagiram de modo ainda mais hostil (p. 131) .
Mas nem sempre é tarefa desagradável confrontar
a ambigüidade. Obviamente é mais tolerável em algu-
mas áreas de que em outras. Há todo um contínuo no
qual o riso, repulsa e choque pertencem a pontos e
intensidades diferentes. A experiência pode ser esti-
mulante. A riqueza da poesia depende do uso da ambi-
güidade, como mostrou Empson. A possibilidade de se
ver uma escultura da mesma maneira que uma paisa-
gem ou um nu reclinado enriquece o interesse da obra.
Ehrenzweig chegou até a argumentar que apreciamos
obras de arte porque elas nos habilitam a explicar as
estruturas da nossa experiência normal. O prazer esté-
tico provém da percepção de formas inarticuladas.
Peço desculpas por usar anomalia e ambigüidade
como se fossem sinónimos. Estritamente não o são: uma
anomalia é um elemento que não se ajusta a um dado
conjunto ou série; a ambigüidade é um tipo de afirma-

52
ção sujeita a duas interpretações. Mas a reflexão sobre
certos exemplos mostra que há pouca vantagem em se
distinguir entre estes dois termos na aplicação prática. O
melaço não é sólido nem líquido; pode-se dizer que nos
dá uma impressão sensorial ambígua. Pode-se dizer tam-
bém que o melaço é anômalo na classificação dos líqui-
dos e dos sólidos, não estando nem em um nem em
outro conjunto.
Está claro então que somos capazes de nos confron-
tarmos com anomalias. Quando algo é firmemente clas-
sificado como anômalo, o esboço do conjunto no qual
ele não é considerado como membro se torna claro.
Para ilustrar isto, cito um ensaio de Sartre sobre
viscosidade. Diz ele que a viscosidade repele, no seu
próprio direito, como uma experiência primária.
Um menino, enterrando as mãos num jarro de mel, é
envolvido instantaneamente na contemplação das pro-
priedades formais dos sólidos e dos líquidos, e na rela-
ção essencial entre o eu subjetivo que experiencia e o
mundo experienciado (1943, p. 696 e ss.). O viscoso
é um estado intermediário entre o sólido e o líquido.
:B como um corte num processo de mudança. É instá-
vel, mas não flui. :B macio, dócil e comprimível. Não
há deslizamentos na sua superfície. Sua viscosidade é
uma armadilha, adere como uma sanguessuga, ataca a
fronteira entre mim e ele. Compridas colunas correndo
de meus dedos sugerem minha própria substância fluindo
numa poça de viscosidade. Mergulhar na água dá uma
impressão diferente. Continuo um sólido, mas tocar a
viscosidade é correr o risco de se diluir nela. A visco-
sidade é aderente, tal como um cachorro ou uma aman-
te por demais possessivos. Desta maneira, o primeiro
contacto da criança com o viscoso enriquece sua expe-
riência. Ela aprendeu logo sobre ela mesma e as pro-
priedades da coisa, a inter-relação dela com as outras
coisas.
Não farei justiça, se encurtar a passagem, às mara-
vilhosas reflexões, às quais Sartre é levado pela idéia
de viscosidade como um fluido aberrante ou um sólido
derretido. Mas ela é feliz mostrando que podemos e re-
fletimos com sucesso sobre nossas principais classifica-
ções e sqbre as experiências que não se ajustam exata-
mente a elas. Em geral estas reflexões confirmam nossa
confiança nas classificações principais. Sartre afirma que

53
a viscosidade aderente, que derrete, é julgada como uma
forma ignóbil de existência, nas suas primeiras mani-
festações. Assim, destas primeiras aventuras tácteis, sa-
bemos que a vida não se conforma às nossas mais
simples categorias.
Há várias maneiras de tratar as anomalias. Nega-
tivamente, podemos ignorá-las, não percebê-las, ou, per-
cebendo-as, condená-las. Positivamente, podemos, deli-
beradamente, confrontar as anomalias, e tentar criar um
novo padrão de realidade onde elas tenham lugar. Não
é impossível um indivíduo rever seu próprio esquema
pessoal de classificações. Mas nenhum indivíduo vive
isoladamente e seu esquema terá sido parcialmente re-
cebido de outros indivíduos.
A cultura, no senso comum, padronizou os valores
de uma comunidade, serve de mediadora da experiên-
cia dos indivíduos. Provê, adiantadamente, algumas ca-
tegorias básicas, um padrão positivo no qual as idéias e
valores são cuidadosamente ordenados. E, acima de tudo,
ela tem autoridade, uma vez que cada pessoa é levada a
consentir porque outras assim o fazem. Mas seu caráter
público torna suas categorias mais rígidas. Uma pessoa
pode ou não rever seu padrão de pressupostos. E um
assunto particular. Mas categorias culturais são assuntos
públicos. Não podem ser tão facilmente sujeitas à revi-
são. Mas não podem negligenciar o desafio de formas
aberrantes. Qualquer sistema dado de classificações deve
dar origem a anomalias, e qualquer cultura dada deve
confrontar os eventos que parecem desafiar seus pressu-
postos. Não pode ignorar as anomalias que seu es-
quema produz, a não ser com o risco de perder sua
confiança. Suponho que seja por isso que encontramos
em qualquer cultura, digna do nome, várias providên-
cias para lidar com eventos ambíguos ou anômalos.
Primeiro, decidindo-se por uma ou outra interpre-
tação, a ambigüidade é freqüentemente reduzida. Por
exemplo, quando um nascimento monstruoso ocorre, as
linhas que definem os humanos dos animais podem ser
ameaçadas. Se um nascimento monstruoso puder ser ro-
tulado como um evento especial, então as categorias po-
derão ser restauradas. Assim, os Nueres tratam nasci-
mentos monstruosos como bebês hipopótamos, nascidos
humanos, acidentalmente, e, com este rótulo, a ação

54
apropriada fica clara. Eles, gentilmente, os colocam no
rio, que é o lugar ao qual pertencem (Evans-Pritchard,
1956, p. 84).
Segundo, a existência da anomalia pode ser fisica-
mente controlada. Assim, em algumas tribos da Africa
Ocidental, a regra de que os gêmeos devem ser mortos
quando nascem, elimina uma anomalia social, se se acre-
dita que dois seres humanos não podem nascer do
mesmo ventre ao mesmo tempo. Ou tomemos os galos
que cantam à noite. Se seus pescoços forem pronta-
mente torcidos, eles não viverão para contradizer a de-
finição de galo como uma ave que canta ao alvorecer.
Terceiro, a regra de se evitar coisas anômalas con-
firma e reforça as definições às quais elas não se ajus-
tam. Logo, onde o Levítico abomina coisas rastejantes,
deveríamos ver a abominação como o lado negativo de
um padrão de coisas aprovadas.
Quarto, eventos anômalos podem ser classificados
como perigosos. Admite-se que os indivíduos sentem-se
ansiosos quando confrontados com anomalias. Mas,
seria um erro tratar as instituições como se elas evo-
luíssem da mesma maneira que a5 reações espontâneas
de uma pessoa. E. mais provável que semelhantes cren-
ças públicas sejam produzidas no decurso da redução da
dissonância entre as interpretações individuais e as inter-
pretações gerais. Conforme o trabalho de Festinger, é
óbvio que uma pessoa, quando suas convicções diferem
das de seus amigos, ou hesita ou tenta convencê-los de
que estão errados. Atribuir perigo é uma maneira de se
colocar um assunto acima da discussão. Também ajuda a
reforçar a conformidade, como mostraremos no capítulo
sobre moral (Cap. 8).
Quinto, os símbolos ambíguos podem ser usados
em ritual para os mesmos fins que são usados na poesia
ou na mitologia, para enriquecer o significado ou para
chamar a atenção a outros niveis de existência. Veremos
no último capítulo de que maneira o ritual, utilizando
símbolos de anomalias, pode incorporar maldade e mor-
te ao mesmo tempo que vida e bondade, num modelo
único, grandioso e unificante.
Concluindo, se impureza é um assunto inoportuno,
devemos investigá-lo através da ordem. Impureza ou su-
jeira é aquilo que não pode ser incluído, se se quiser

55
manter um padrão. Reconhecê-lo é o primeiro passo para
uma compreensão da poluição. Não nos envolve nu-
ma distinção clara entre o sagrado e o secular. O
mesmo princípio se aplica do começo ao fim. Outrossim,
não envolve uma clistinção especial entre primitivos e
modernos: estamos todos sujeitos às mesmas regras. Mas
na cultura primitiva a regra da padronização funciona
com uma força maior e uma amplitude mais total. Com
os modernos ela se aplica a áreas de existência desloca-
das e separadas.

56
3. AS ABOMINAÇÕES DO LEV1TICO

A contaminação nunca é um acontecimento iso-


lado. Ela só pode ocorrer em vista de uma disposição
sistemática de idéias. Por essa razão, qualquer interpre-
tação fragmentária das regras de poluição de uma outra
cultura está destinada a falhar. Pois o único modo no
qual as idéias de poluição fazem sentido é em refe-
rência a uma estrutura total de pensamento cujo ponto-
-chave, limites, linhas internas e marginais, se relacionam
por rituais de separação.
Como ilustração, vou considerar um velho e bolo-
rento enigma da doutrina bíblica, as abominações do
Levítico, e particularmente as regras de dieta. Por que
o camelo, a lebre e o hirace seriam impuros? Por que
alguns gafanhotos, mas não todos, seriam impuros? Por
que seria a rã pura e o camundongo e o hipopótamo
impuros? O que os camaleões, toupeiras e crocodilos

57
têm em comum para serem arrolados juntos? (Levítico,
11, 27).
Para ajudar a acompanhar a discussão citarei pri-
meiramente as relevantes traduções do Levítico c do
Deuteronômio usando o texto da New Revised Standard
Translation*.

3. Nenhuma coisa abominável comereis. 4. Estes são os


animais que comereis: o boi, a ovelha, a cabra, 5. o veado, a
gazela, o cabrito montês, a cabra montesa, o antílope, o órix
e a ovelha montesa. 6. Dentre os animais, todo o que tem a
unha fendida, dividida em duas, e que rumina, esse podereis
comer. 7. Porém, dos que ruminam, ou que têm a unha fendida,
não podereis comer os seguintes: o camelo, a lebre, e o quero-
grilo, porque ruminam, mas não têm a unha fendida; imundos
vos serão; 8. nem o porco, porque tem unha fendida, mas
não rumina; imundo vos será. Não comereis da carne destes,
e não tocareis nos seus cadáveres. 9. Isto podereis comer de
tudo o que há nas águas: tudo o que tem barbatanas e esca-
mas podereis comer; 1O. mas tudo o que não tem barbatanas
nem escamas não comereis; imundo vos será. 11. De todas
as aves limpas podereis comer. 12. Mas estas são as de que não
comereis: a águia, o quebrantosso, o xofrango, 13. o açor, o
falcão, o milhafre segundo a sua espécie, 14. todo corvo segundo
a sua eswcie, 15. o avestruz, o mocho, a gaivota, o gavião
segundo a sua espécie, 16. o bufo, a coruja, o porfirião, 17. o
pelicano, o abutre, o corvo marinho, 18. a cegonha, a garça
segundo a sua espécie, a poupa e o morcego. 19. Também to-
dos os insetos alados vos serão imundos; não se comerão. 20.
De todas as aves limpas podereis comer. (Deuteronômio 14,
3-20.)
2. Dizei aos filhos de Israel: Estes são os animais que
podereis comer dentre todos os animais que há sobre a terra:
3. dentre os animais, todo o que tem a unha fendida, de sorte
que se divide em duas, e que rumina, esses podereis comer. 4.
Os seguintes, contudo, não comereis, dentre os que ruminam e
dentre os que têm a unha fendida: o camelo, porque rumina
mas não tem a unha fendida, esse vos será imundo; 5. o quero-
grilo, porque rumina mas não tem a unha fendida, esse vos
será imundo; 6. a lebre, porque rumina mas não tem a unha
fendida, essa vos será imunda; 7. e o porco, porque tem a unha
fendida, de sorte que se divide em duas, mas não rumina, esse
vos será imundo. 8. Da sua came não comereis, nem tocareis
nos seus cadáveres; esses vos serão imundos. 9. Estes são os
que podereis comer de todos os que há nas águas: todo o que
tem barbatanas e escamas, nas águas, nos mares e nos rios,
esse podereis comer. 10. Mas todo o que não tem barbatanas
nem escamas, nos mares e nos rios, todo réptil das águas, e
todos os animais que vivem nas águas estes vos serão abomi·
• Utilizamos a traduç5o ent POrtuaues de João Ferreira de AI·
melda, Inwrensa Blblica Brasileira, Rio de Janeiro, 1972. (N. da T.)

58
náveis, 11. tê-los-eis em abominação; da sua carne não come-
reis, e abominareis os seus cadáveres. 12. Tudo que não tem
barbatanas nem escamas, nas águas, será para vós abominável.
13. Dentre as aves, a estas abominareis; não se comerão, serão
abomináveis: a águia, o quebrantosso, o xofrango, 14. o açor,
o falcão segundo a sua espécie, 15. todo corvo segundo a sua
espécie, 16. o avestruz, o mocho, a gaivota, o gavião segundo
a sua espécie, 17. o bufo, o corvo marinho, a coruja, 18. o
porfirião, o pelicano, o abutre, 19. a cegonha, garça segundo
a sua espécie, a poupa e o morcego. 20. Todos os insetos alados
que andam sobre quatro pés serão para vós uma abominação.
21. Contudo, estes há que podereis comer de todos os insetos
alados que andam sobre quatro pés: os que têm pernas sobre
os seus pés, para saltar com elas sobre a terra; 22. isto é,
deles podereis comer os seguintes: o gafanhoto segundo a sua
espécie, o solbam segundo a sua espécie, o bargol segundo a
sua espécie e o bagabe segundo a sua espécie. 23. Mas todos
os outros insetos alados que têm quatro pés serão para vós uma
abominação. 24. Também por eles vos tomareis imundos; qual-
quer que tocar nos seus cadáveres, será imundo até a tarde, 25.
e quem levar qualquer parte de seus cadáveres, lavará as suas
vestes, e será imundo até a tarde. 26. Todo animal que tem
unhas fendidas, mas cuja fenda não as divide em duas, e que
não rumina, será para vós imundo; qualquer que tocar neles
será imundo. 27. Todos os plantígrados dentre os quadrúpe-
des, esses vos serão imundos; qualquer que tocar nos seus ca-
dáveres será imundo até a tarde, 28. e o que levar os seus
cadáveres lavará as suas vestes, e será imundo até a tarde;
eles serão para vós imundos. 29. Estes também vos serão por
imundos entre os animais que se arrastam sobre a terra: a
doninha, o rato, o crocodilo da terra segundo a sua espécie,
30. o musaranho, o crocodilo da água, a lagartixa, o lagarto e
a toupeira. 31 . Esses vos serão imundos dentre todos os ani-
mais rasteiros; qualquer que os tocar, depois de mortos, será
imundo até a tarde; 32. e tudo aquilo sobre o que cair o ca-
dáver de qualquer deles será imundo.
41. Também todo animal rasteiro que se move sobre a
terra será abominação; não se comerá. 42. Tudo o que anda
sobre o ventre, tudo o que tem muitos pés, enfim todos os ani-
mais rasteiros que se movem sobre a terra, desses não co-
mereis, porquanto são abomináveis. (Levítico 11, 2-32; 41-42.)

Todas as interpretações dadas até agora alinham-


se em um de dois grupos : ou as regras são sem sentido,
arbitrárias porque seu intento é disciplinar e não dou-
trinário, ou elas são alegorias de virtudes e vícios. Ado-
tando o ponto de vista de que as prescrições religiosas
são largamente destituídas de simbolismo, Maimônides
disse:
A Lei de acordo com a qual os sacrifícios devem ser
realizados é evidentemente de grande utilidade... mas não

59
podemos dizer por que uma oferenda deva ser cordeiro enquanto
outra é um carneiro, e por que um número fixo destas deve ser
realizado. Aqueles que se preocupam cm encontrar uma causa
para qualquer uma destas regras detalhadas são, a meu ver,
destituídos de sentido ...
Sendo um doutor em Medicina, que viveu na Ida-
de Média, Maimônides estava também disposto a acredi-
tar que as regras de dieta tinham uma sólida base fisio-
lógica, mas nós já descartamos, no Cap. 2, a abordagem
médica do simbolismo. Para uma versão moderna do
ponto de vista de que as regras dietéticas não são sim-
bólicas, e sim éticas, disciplinares, ver as notas da
edição inglesa de Epstein para o Babylonian Talmud e
também sua popular história do Judaísmo (1959, p.
24):
Ambos os conjuntos de leis têm um objetivo comum ...
Santidade. Enquanto os preceitos positivos foram ordenados
para o cultivo da virtude, e para a promoção daquelas quali-
dades mais finas que distinguem o ser verdadeiramente reli-
gioso e ético, os preceitos negativos são definidos para com-
bater o vício e suprimir outras tendências e instintos maus
que se colocam em oposição ao esforço do homem no sen-
tido da santidade ... As leis religiosas negativas determinam do
mesmo modo objetivos e propósitos educacionais. A frente,
entre estas, está a proibição de comer a carne de certos ani-
mais classificados como "impuros". Esta lei não envolve nada
de totêmico. Está expressamente associada na Escritura, comQ
o ideal de Santidade. Seu objetivo real é treinar os israelitas
no autocontrole, como o primeiro passo indispens.ável pam atin-
gir a santidade.

De acordo com The Dietary Law ln Rabbinic and


Patristic Literature do Prof. Stein, a interpretação ética
remonta ao tempo de Alexandre o Grande, e a in-
fluência helênica sobre a cultura judaica. A carta de
Aristeas do 1.0 século d.C. ensina que as regras mo-
saicas não são somente uma valiosa disciplina que pre-
vine os judeus contra uma ação irrefletida e a injustiça,
mas elas também coincidem com aquilo que a razão na-
tural prescreveria para alcançar boa vida. Assim, a in-
fluência helênica permite aliar as interpretações médica
e ética. Filo sustenta que o princípio de seleção de
Moisés foi, precisamente, escolher as mais deliciosas
carnes:
O legislador proibia rigorosamente todos os animais da
terra, mar ou ar cuja carne é a mais fina e mais gordurosa

60
como a de porco e do peiJCe sem escamas, sabendo que
elas representam uma armadilha para o mais escravizador dos
sentidos, o paladar e que elas produzem glulonaria, ,.

(somos neste ponto levados diretamente à interpretação


médica)
um mal perigoso tanto para a alma quanto para 0 corpo,
pois a glutonaria gera a indigestão que é a fonte de todas as
doenças e enfermidades.

Numa outra corrente de interpretação, que segue


a tradição de Robertson Smith e Fraz.er, os estudiosos
anglo-saxões do Velho Testamento tenderam a dizer sim-
plesmente que as regras são arbitrárias porque são ir-
racionais. Por exemplo, Nathaniel Micklem diz:
Os comentadores costumavam deter-se muito na discussão
da questão de por que tais e tais criaturas, e tais e tais es-
tados e sintomas eram impuros. Temos nós, por exemplo, regras
primitivas de higiene? Ou eram certas criaturas e estados im-
puros porque eles representavam ou simbolizavam certos peca-
dos? Pode ser considerado certo que nem a higiene, nem ne-
nhuma espécie de tipologia, é a base da impureza. Estas re-
gulamentações, de qualquer maneira, não devem ser racionali-
zadas. Suas origens podem ser diversas, e vão para além da
bistória ...

Compare também R. S. Driver (1898):


Entretanto, o princípio que determina a linha de demarca-
ção entre animais puros e impuros não estã estabelecido; e
tem sido muito debatido qual é ele. Nenhum princípio único,
que abrange todos os casos, parece ter sido encontrado até
agora, e provavelmente mais do que um princípio cooperou. Al-
guns animais podem ter sido proibidos por sua aparência re-
pulsiva ou hábitos sujos, outros por motivos sanitários; em ou-
tros casos, por outro lad'o, o motivo da proibição pode, muito
provavelmente, ter sido religioso, especialmente animais, como
a serpente na Arábia, que se acreditava serem animados por
seres sobre-humanos ou demoníacos, ou eles podem ter tido um
significado sacramental nos ritos pagãos de outras nações; e a
proibição pode ter sido planejada como um protesto contra
essas crenças ...

P. P. Saydon toma a mesma linha no Catholic


Commentary On Holy Scripture (1953), reconhecendo
sua dívida a Driver e Robertson Smith. Poderia pare-
cer que quando Robertson Smith aplicou as idéias de
primitivo, irracional e inexplicável, a algumas partes da

61
religião hebraica elas permaneceram então etiquetadas e
sem exame até hoje.
Não é necessário dizer que tais interpretações não
são absolutamente interpretações, uma vez que negam
qualquer significado às regras. Elas expressam confusão
num modo emdito. É o que afirma Micklem mais fran-
camente quando fala do Levítico:
Os capítulos 11 até 15 são talvez os menos atraentes em
toda a BíbJja. Para o leitor moderno muita coisa neles é sem
sentido e repulsiva. Eles concernem à "impureza" ritual com
respeito aos animais ( 11), nascimento (12), doenças da pele
e roupas manchadas (13), ritos de purgação das doenças da
pele (14), lepra e vários escoamentos ou secreções do corpo
humano (15). Que interesse pode tais assuntos ter a não
ser para o antropólogo? O que tudo isso tem a ver com
religião?

A posição geral de Pfeiffer é a de ser crítico aos


elementos sacerdotais e jurídicos na vida de Israel.
Assim, ele também empresta sua autoridade à opinião de
que as regras nq Código Sacerdotal são amplamente ar-
bitrárias:
Somente os sacerdotes que foram legisladores poderiam ter
concebido a religião como uma teocracia regulada por uma lei
divina que fixa exatamente, e portanto arbitrariamente, as obri-
gações sagradas do povo para com seu Deus. Santificaram assim
o externo, suprimindo da religião tanto os ideais éticos de Amós
quanto as temas emoções de Oséias, e reduziram o Criador Uni-
versal à estatura de um déspota inflexível. . . De um costu-
me imemorial derivou as duas noções fundamentais que carac-
terizam a sua legislação: a santidade física e a promulgação
arbitrária <le leis ... concepções arcakas que os profetas re-
formadores tinham descartado em favor da santidade espiritual
a lei moral (p. 91).

Pode ser verdade que os legisladores tendem a pen-


sar em formas precisas e codificadas. Mas, será plausí-
vel argumentar que eles tendem a codificar puros ab-
surdos - estatutos arbitrários? Pfeiffer tenta fazê-lo de
ambos os modos, insistindo na rigidez legalista dos au-
tores sacerdotais e apontando para a falta de ordem na
organização do capitulo para justificar seu ponto de vis-
ta de que as regras são arbitrárias. A arbitrariedade é
decididamente uma qualidade que não se espera encon-
trar no Levítico, segundo me foi observado pelo Rev.
H. J. Richards. Pois a crítica das fontes atribui ao Le-

62
vítico uma origem sacerdotal, cujos autores preocupa-
vam-se predominanlcmente com a ordem. Assim, o peso
da crítica das fontes justifica nossa busca de outra in-
terpretação.
Quanto à idéia de que as regras são alegorias de
virtudes e vícios, o Prof. Stein deriva esta tradição vigo-
rosa da mesma antiga influência alexandrina sobre o
pensamento judeu ( p. 14 5 e ss.). Citando a carta de
Aristeas, diz que o Sumo-Sacerdote Eleazar:
admite que a maior parte das pessoas acha que as restri-
ções alimentares bíblicas não são compreensíveis. Se Deus é o
Criador de tudo, por que sua Lei seria tão severa a ponto de
excluir alguns animais até de serem tocados? ( 128 e s.) Sua
primeira resposta ainda liga as restrições dietéticas com o perigo
da idolatria. . . A segunda resposta tenta refutar ataques espe-
cíficos por meio de exegese alegórica. Cada lei sobre alimentos
proibidos tem sua razão profunda. Moisés não enumerou o ca-
mundongo ou a doninha por uma especial consideração por
eles ... (143 e s.) Ao contrário, os camlmdongos são particular-
mente odiosos por sua destrutividade, e as doninhas são o próprio
símbolo da maliciosa tagarelice, concebem pelo ouvido e dão à
luz pela boca. (164 e s.) Estas leis sagradas foram de preferência
dadas por amor à jll~tiça para despertar em nós pensamentos
devotos e formar nosso caráter (161- 168 ). Por exemplo, os pás-
saros que os judeus podem comer são todos dóceis e limpos, já
que só se alimentam de milho. Não é o que acontece com os
pássaros carnívoros e selvagens, que se lançam sobre carneiros,
cabras, e mesmo seres humanos. Moisés, chamando os últimos
de impuros, adverte o fiel a não ser violento com o fraco e não
confiar na própria força ( 145-148). Animais de casco fendido
que partem seus cascos simbolizam que todas as nossas ações
devem evidenciar uma distinção ética adequada e estarem vol-
tadas para a retidão. . . Ruminar, por outro lado, significa me-
mória.

O Prof. Stein prossegue citando a utilização da ale-


goria feita por Filo para interpretar as regras dietéticas:
Peixes com barbatanas c escamas, admitidos pela lei, sim-
bolizam persistência c autocontrole, enquanto os proibidos são
varridos pela correnteza, incapazes de resistir à força da cor-
rente. Répteis que serpenteiam arrastando sua barriga signifi-
cam pessoas que se devotam a suas paixões e desejos sempre
vorazes. Entretanto, coisas rastejantes que têm pernas acima
dos pés, de modo que eles possam saltar, são puros porque
simbolizam o sucesso de esforços morais.

A doutrina cristã prontamente seguiu a tradição


alegorizante. A epístola de Barnabás do século I, es-

63
crita para convencer os judeus de que suas leis tinham
encontrado seu cumprimento, usa os animais puros e
impuros para referir-se aos vários tipos de homens, le-
pra para significar pecado etc. Um exemplo mais re-
cente dessa tradição está nas notas do Bispo Challoner
na Bíblia de Westminster no começo deste sé::ulo:
Casco dividido e ruminação. A divisão do casco e a
ruminação significam discriminação entre o bem e o mal, e
meditação sobre a lei de Deus; e onde um deles está ausente, o
homem é impuro. Da mesma maneira consideravam-se impu-
ros os peixes que não tinham barbatanas e escamas; isto é, al-
mas que não se elevaram pela prece e não se cobriram com
as escamas da virtude. (Nota. de rodapé, versículo 3.)

Estas são tanto interpretações quanto comentários


pios. Elas falham como interpretações porque não são
nem coerentes nem abrangentes. Uma diferente ex-
plicação tem de ser desenvolvida para cada animal e é
infinito o número de explicações possíveis.
Uma outra abordagem tradicional, também voltan-
do à carta de Aristeas, é a opinião de que o que é proi-
bido para os israelitas é unicamente proibido para pro-
tegê-los de influência estrangeira. Por exemplo: Maimô-
nides sustenta que eles eram proibidos de ferver o ca-
brito no leite da mãe porque isso era um ato ritual
na religião dos canaanitas. Este argumento não pode ser
abrangente, pois não é sustentado que os israelitas re-
jeitavam com coerência todos os elementos de religiões
estrangeiras e inventaram algo inteiramente original para
eles próprios. Maimônides aceitava o ponto de vista de
que alguns dos mais misteriosos mandamentos da lei
tinham como objetivo provocar uma aguda ruptura com
as práticas pagãs. Assim, os israelitas estavam proibi-
dos de usar roupas tecidas de linha e de lã, plantar di-
ferentes árvores juntas, ter relações sexuais com ani-
mais, cozinhar carne com leite, simplesmente porque
estes atos figuravam nos ritos de seus vizinhos pagãos.
Até aí tudo bem: as leis eram promulgadas como bar-
reiras à difusão de estilos pagãos de ritual. Mas, neste
caso por que algumas práticas pagãs eram permitidas?
E não somente eram permitidas - se o sacrifício for
considerado uma prática comum a pagãos e israelitas -
como ocupavam um lugar absolutamente central na re-
ligião. De qualquer maneira, a resposta de Maimôni-

64
des no Guia dos Perplexos, era no sentido de justificar
o sacrifício como um estágio de transição, lamentavel-
mente pagão, mas necessariamente permitido porque se-
ria impraticável afastar os israelitas abruptamente de seu
passado pagão. Vinda da pena de um sábio rabino, esta
é uma afirmação extraordinária, e, de fato, em seus
sérios escritos rabínicos, Maimônides não tentou man-
ter o argumento: pelo contrário, ele aí considera o
sacrifício como o ato mais importante da religião ju-
daica.
Ao menos Maimônides viu a incoerência e foi le-
vado por ela em contradição. Mas estudiosos posteriores
parecem contentar-se em usar o argumento da influên-
cia estrangeira de um modo ou de outro, de acordo com
o momento. O Prof. Hooke e seus colegas estabeleceram
claramente que os israelitas tomaram de empréstimo al-
guns estilos de adoração canaanita e os canaanitas ob-
viamente tinham muito em comum com a cultura meso-
potâmica (1933). Mas não há uma explicação para
representar Israel como uma esponja, num momento, e
como um repelente no momento seguinte, sem escla-
recer por que ele absorveu este elemento estrangeiro
mas repeliu aquele outro. Qual o valor de dizer que
ferver cabritos no leite e copular com vacas são proibi-
dos no Levítico porque são os ritos de fertilidade de vi-
zinhos estrangeiros uma vez que os israelitas se apode-
raram de outros ritos estrangeiros? Continuamos confu-
sos para saber quando a esponja é a metáfora certa ou
errada. O mesmo argumento é igualmente embaraçoso
em Eicbrodt (pp. 230-231) . É claro que nenhuma cultu-
ra é criada do nada. Os israelitas absorveram livre-
mente de seus vizinhos, mas não muito livremente. Al-
guns elementos da cultura estrangeira eram incompatí-
veis com os princípios de padrões sobre os quais eles
estavam construindo seu universo; outros eram compa-
tíveis. Por exemplo: Zaehner sugere que a abominação
judaica de cojsas rastejantes pode ter sido tomada do zo-
roastrísmo (p. 162). Qualquer que seja a prova histó-
rica para esta adoção de um elemento estrangeiro no
Judaísmo, veremos que houve na configuração de sua
cultura uma compatibilidade pré-formada entre esta abo-
minação particular e os princípios gerais sobre os quais
seu universo foi construído.
Qualquer interpretação que toma os Não do Velho

65
Testamento de um modo fragmentado falhará. A ímica
abordagem acertada é esquecer a higiene, estética, moral
e repulsa instintiva, esquecer mesmo os caoaanitas e os
magos zoroástricos, e principiar com os textos. Uma vez
que cada uma das proibições é prefaciada pelo manda-
mento de ser sagrado, então elas devem ser explicadas
por esse mandamento. Deve haver um antagonismo entre
santidade e abominação que dará um sentido mais am-
plo a todas as restrições particulares.
A santidade é o atributo da divindade. Sua raiz
significa "colocado separadamente". O que mais signifi-
ca? Devemos começar qualquer indagação sobre o cos-
mos buscando os princípios de poder e perigo. No Ve-
lho Testamento encontramos a bênção como a fonte
de todas as coisas boas, e a retirada da bênção como a
fonte de todos os perigos. A bênção de Deus torna aos
homens possível viverem na terra.
O trabalho de Deus através da bênção é, essencial-
mente, ctiar a ordem pela qual os negócios dos homens
prosperam. A fertilidade das mulheres, da criação e dos
campos, é prometida como um resultado da bênção e
isso pode ser obtido pela manutenção de um pacto com
Deus e a observância de todos os seus preceitos e ce-
rimônias (Deuteronômio, 28, 1-14). Onde a bênção é
retirada e a força da maldição desencadeada, há este-
rilidade, peste, desordem. Pois Moisés disse:
15 Se, porém, não ouvires a voz do Senhor teu Deus, se não
cuidares em cumprir todos os seus mandamentos e os seus
estatutos, que eu hoje te prescrevo, virão sobre ti todas estas
maldições, e te alcançarão: 16 Malcüto serás na cidade, e mal-
dito serás no campo. 17 Maldito o teu cesto, e a tua amassadeira.
18 Maldito o fruto do teu ventre, e o fruto do teu solo e as crias
das tuas vacas e das tuas ovelhas. 19 Maldito serás ao entrares, e
maldito serás ao saíres. 20 O Senhor mandará sobre ti a mal-
cüção, a derrota e o desapontamento, em tudo o que puseres a
mão para fazer até que sejas destruído, c até que repentinamente
pereças, por causa da maldade das tuas obras, pelas quais me
deixaste. 21 O Senhor fará pegar em ti a peste, alé que te
consuma da terra, na qual estás entrando para a possuíres. 22 O
Senhor te ferirá com a tísica e com a febre, com a inflamação,
com o calor forte, com a seca, com crestamento e com fer·
rugem, que te perseguirão alé que pereças. 23 O céu, que está
sobre a tua cabeça será de bronze, e a terra que está debaixo
de ti será de ferro. 24 O Senhor dará por chuva à tua terra
pó; do céu descerá sobre ti a poeira, até que sejas destruído
(Deuteronômio 28, 15-24).

66
A partir daí está claro que os preceitos positivos e
negativos são mantidos por serem eficazes e não mera-
mente expressivos: observá-los traz prosperidade, in·
fringi-los traz perigo. Estamos então autorizados a tra-
tá-los do mesmo modo que tratamos proibições rituais
primitivas cujas infrações desencadeiam perigo para os
homens. Tanto os preceitos quanto as cerimônias estão
focados na idéia da santidade do Deus que os homens
devem criar em suas próprias vidas. Dessa maneira, esse
é um universo no qual os homens prosperam quando
agem conforme a santidade e perecem quando se des-
viam dela. Se não houvesse outros indícios, estaria-
mos aptos a descobrir a idéia hebraica de sagrado exa-
minando os preceitos pelos quais os homens se confor-
mam a ela. Evidentemente, não é a bondade no sen-
tido de uma benignidade humana que tudo abrange. A
justiça e bondade moral podem perfeitamente ilustrar
santidade e fazer parte dela, mas a santidade abrange
outras idéias também.
Admitido que sua raiz significa estar separado, a
idéia que emerge a seguir é a do Sagrado como integri-
dade. A maior parte do Levítico é dedicada a enfatizar a
perfeição físicã requerida das coisas apresentadas no
templo e das pessoas que dele se aproximam. Os ani-
mais oferecidos em sacrifícios não devem ter defeitos,
as mulheres devem ser purificadas depois do parto, os
leprosos devem ser separados e ritualmente limpos antes
de que se lhes permitam se aproximar dele, uma vez
curados. Todas as excreções do corpo são contagiosas e
desqualificam para uma aproximação do templo. Os sa-
cerdotes só podem entrar em contacto com a morte
quando um parente próximo morre. Mas o sumo-sacer-
dote nunca deve ter contacto com a morte.
17 . Fala a Arão, dizendo: Ninguém dentre os teus descen-
dentes, por todas as suas gerações, que tiver defeito, se chegará
para oferecer o pão do seu Deus. 18. Pois nenhum homem
que tiver algum defeito se chegará: como homem cego, ou
coxo, ou de nariz chato, ou de membros demasiadamente com·
pridos, 19. ou homem que tiver o pé quebrado ou a mão que-
brada, 20. ou for corcunda, ou anão, ou que tiver belida, ou
sarna, ou impingens. ou que tiver testículo lesado; 21. nenhum
homem dentre os descendentes de Ariío, o sacerdote, que tiver
al'gum defeito, se chegará para oferecer as orertas queimadas
do Senhor; ele tem defeito; não se chegará para oferecer o pão
do seu Deus. (Levítico 2 1, 17-21.)

67
Em outras palavras, ele deve ser perfeito enquanto
homem, se vai ser um sacerdote.
Esta idéia de integridade física muitas vezes reite-
rada se realiza também na esfera social, e particular-
mente no campo de guerreiros. A cultura dos israelitas
era levada ao nível de maior intensidade quando eles
oravam e quando lutavam. O exército não podia vencer
sem a bênção e para conservar a bênção no campo os
guerreiros tinham de ser especialmente santos. Assim
como o Templo, o campo devia ser preservado contra
a contaminação. Aqui também, todas as excreções do
corpo desqualificavam um homem de entrar no campo
como deviam desqualificar um fiel de se aproximar do
altar. Um guerreiro que tivesse excretado à noite man-
ter-se-ia fora do campo todo o dia e só voltaria depois
do crepúsculo, lavado. Funções naturais que produzem
perda do corpo deviam ser realizadas fora do campo
(Deuteronômio 23, 10-15). Em resumo, à idéia de san-
tidade foi dada em expressão externa, física na totali-
dade do corpo visto como um perfeito recipiente.
A totalidade é também ampliada para significar in-
tegridade no contexto social. Um empreendimento im-
portante, uma vez começado, não deve ser deixado in-
completo. Esse modo de faltar à totalidade também
desqualifica um homem para a luta. Antes de uma ba-
talha os capitães proclamarão:
5. Então os oficiais falarão ao povo, dizendo: Qual é o
homem que edificou casa nova, e ainda não a dedicou? Vá,
e tome para casa; não suceda que morra na peleja e outro a
dedique. 6. E qual é o homem que plantou uma vinha e ainda
não a desfrutou? Vá, e torne para casa; não suceda que morra
na peleja e outro a desfrute. 7. Também qual é o homem
que está desposado com uma mulher e ainda não a recebeu? Vá,
e torne para casa; não suceda que morra oa peleja e outro a
receba. (Deuteronômio 20, 5-7.)

Reconhecidamente não há sugestão de que esta re-


gra implica contaminação. Não está dito que um homem
com um projeto semiterminado em suas mãos está con-
taminado no mesmo sentido que um leproso está con-
taminado. O versículo seguinte, de fato, prossegue di-
zendo que os homens medrosos c covardes devem vol-
tar para casa para que não espalhem o medo. Mas, há
uma forte sugestão em outras passagens de que um
homem não deve pôr as mãos num arado e depois

68
voltar atrás. Pedersen vai tão longe a ponto de dizer
que:
Em todos esses casos um homem começou um novo em-
preendimento importante sem ainda tê-lo acabado ... uma nova
totalidade passou a existir. Romper com isto prematuramente,
isto é, antes que tenha atingido maturidade ou tenha sido ter-
minado, envolve um sério risco de pecado (Parte III, p. 10).

Se seguimos Pedersen, então bênção e sucesso na


guerra requerem que um homem seja são de corpo, in-
teiramente dedicado e que não leve consigo projetos
incompletos. Há um eco desta passagem real no Novo
Testamento, na parábola do homem que deu uma gran-
de festa cujos convidados se expuseram à sua ira dando
desculpas (Lucas 14, 16-24; Mateus 22. Ver Black e
Rowley, 1962, p. 836). Um dos convidados tinha com-
prado uma nova fazenda, outro tinha comprado dez bois
e ainda não os havia experimentado, outro tinha se ca-
sado. Se, de acordo com a velha Lei cada um pudesse
ter justificado validamente sua recusa, pela referência
ao Deuteronômio 20, a parábola sustenta o ponto de
vista de Pedersen segundo o qual a interrupção de novos
projetes era considerada negativa tanto no contexto civil
como no militar.
Outros preceitos desenvolvem a idéia de totalidade
em outra direção. As metáforas do corpo físico e do
novo empreendimento relacionam-se com a perfeição e
integridade do indivíduo e seu trabalho. Outros pre-
ceitos estendem a santidade a espécies e categorias. Hí-
bridos e outras confusões são abominados.
23 Nem te deitarás com animal algum, contaminando-te
com ele; nem mulher se porá perante um animal, para ajun-
tar-se com ele; é confusão. (Levítico 18, 20-23.)

A palavra "perversão" é uma significativa tradução


incorreta da palavra incomum hebraica tebhel, que tem
como significado mistura ou confusão. O mesmo tema é
levantado no Levítico 19, 19:
19 Guardareis os meus estatutos. Não permitirás que se
cruze o teu gado com o de espécie diversa; não semearás o teu
campo com semente diversa; nem vestirás roupa tecida de ma-
teriais diversos.

69
Todas estas prescnçoes são prefaciadas por um
mandamento geral: "Vós sereis santos, porque eu sou
santo". Podemos concluir que a santidade é exempli-
ficada pela integridade. A santidade requer que os in-
divíduos se conformem à classe à qual pertencem. E a
santidade requer que diferentes classes de coisas não se
confundam.
Outro conjunto de preceitos aperfeiçoa esta idéia.
\ A santidade significa manter distintas as categorias de
criação. Ela, portanto, envolve definição correta, discri-
minação e ordem. Sob este título, todas as regras de
moralidade sexual exemplificam o santo. Incesto e adul-
tério (Levítico 18, 6-20) são contra a santidade, no
simples sentido de ordem correta. A moralidade não con-
flitua com santidade, mas a santidade é mais uma ques-
tão de separar aquilo que deve ser separado do que
proteger os direitos dos maridos e irmãos.
Segue então no capítulo 19 outra lista de ações
contrárias à santidade. Desenvolvendo a idéia de san-
tidade como ordem, não confusão, esta lista sustenta a
retidão e o procedimento correto como santos, e a con-
tradição e o duplo procedimento como contrários à
santidade. Roubo, mentira, falso testemunho, trapacear
em pesos e medidas, todos os tipos de fingimento tais
como falar mal dos surdos (e possivelmente estar sor-
rindo para eles), odiar de coração o irmão (enquanto,
provavelmente, fala bondosamente com ele), estas são
claramente contradições entre o que parece e o que é.
Esse capítulo também diz muito sobre generosidade e
amor, mas esses são mandamentos positivos, ao passo
que estou interessada nas regras negativas.
Estabelecemos agora uma boa base para a aborda-
gem das leis sobre carnes puras e impuras. Ser santo é
ser total, ser uno; a santidade é tmidade, integridade,
perfeição do indivíduo e da espécie. As regras dietéticas
apenas desenvolvem a metáfora da santidade na mesma
linha.
Primeiro, devemos começar com a criação, reba-
nhos de gado, camelos, carneiros e cabras que eram
o sustento dos israelitas. Estes animais eram limpos, vis-
to que o contato com eles não requeria purificação antes
da aproximação do Templo. A criação, tal como a terra
habitada, recebia a bênção de Deus. Tanto a terra como

70
a criação eram férteis pela bênção, ambas integravam a
ordem divina. O dever de um fazendeiro era preservar
a bênção. Em primeiro lugar, ele tinha de preservar a or-
dem de criação. Portanto, nada de luôridos, como vimos,
nos campos, nos rebanhos ou nas roupas feitas de lã ou
linho. Os homens, em certa medida, pactuavam com sua
terra e seu gado do mesmo modo que Deus pactuava
com eles. Os homens respeitavam o primogênito de seu
gado, obrigavam-no a observar o Schabat. O gado era
literalmente domesticado como escravo. Ele tinha que
ser criado na ordem social a fim de desfrutar da bênção.
A diferença entre gado e animais selvagens é que os
animais selvagens não têm pacto que os proteja. :e pos-
sível que os israelitas fossem como outros criadores que
não apreciam a caça selvagem. Os Nueres do Sul do Su-
dão, por exemplo, aplicam uma sanção de desapro-
vação a um homem que viva da caça. Ser levado a comer
carne selvagem é o signo de um pastor fraco. Assim,
seria provavelmente errôneo pensar que os israelitas
desejassem carnes proibidas e considerassem aborreci-
das as restrições. Driver está, com certeza, certo ao con-
siderar as regras como uma generalização a posteriori de
seus hábitos. Os ungulados ruminantes e de casco fen-
dido são o modelo do tipo adequado de comida para
um pastor. Se eles precisam comer caça selvagem, eles
podem comer a que compartilhe estas características dis-
tintivas e que é portanto da mesma espécie geral. Este é
um tipo de casuística que permite a caça de antílopes,
cabra selvagem e carneiro selvagem. Tudo seria exata-
mente assim, não fosse pelo fato de a mente jurídica
ter julgado necessário regulamentar certos casos limítro-
fes. Alguns animais parecem ser ruminantes, tais como
a lebre e o hirace (ou q uerogrilo) cujo constante ran-
ger dos dentes acreditou-se ser ruminação. Mas eles
absolutamente não têm o casco fendido e por isso são
excluídos individualmente. O mesmo ocorre com animais
de casco fendido mas não ruminantes, o porco e o ca-
melo. Note-se que não conformar-se com os dois crité-
rios necessários para a definição de gado é a única ra-
zão dada, no Velho Testamento, para evitar o porco;
absolutamente nada é dito sobre os seus hábitos de cha-
furdar na sujeira. Como o porco não fornece leite,
couro nem lã, não há nenhuma outra razão para criá-
lo exceto por sua carne. E se os israelitas não criavam

71
porcos eles não poderiam estar familiarizados com seus
hábitos. Eu sugiro que, originariamente, a única razão
para ele ser considerado impuro é o fato de ele, en-
quanto porco selvagem, não pertencer à classe dos antí-
lopes e que quanto a isso está em igualdade de con-
dições com o camelo e o texugo, exatamente como se
afirma no livro.
Depois de rejeitar estes casos-limite, a lei prosse-
gue preocupando-se com criaturas de acordo com o mo-
do pelo qual elas vivem nos três elementos: a água, o
ar e a terra. Os princípios aqui aplicados são um tanto
diferentes dos que se aplicam ao camelo, ao porco, à le-
bre e ao hirace. Pois estes não são considerados co-
mida limpa por terem uma, mas não ambas as caracterís-
ticas de definição da criação. Eu não posso dizer nada
a respeito das aves, porque, como afirmei, elas são no-
meadas e não descritas e a tradução do nome é duvi-
dosa. Mas, em geral, o princípio subjacente de pureza
dos animais é que eles sejam totalmente conformes à sua
classe. São impuras as espécies que são membros im-
perfeitos de suas classes ou cuja própria classe confunde
o esquema geral do mundo.
Para atingir este esquema precisamos retornar ao
Gênesis e à criação. Aqui se desdobra uma classificação
tripartida, dividida entre a terra, as águas e o firma-
mento. O Levítico toma este esquema e atribui para cada
elemento o tipo de vida apropriado. No firmamento aves
de duas pernas voam com asas. Na água, peixes com
escamas nadam com nadadeiras. Na terra, animais de
quatro pernas pulam, saltam ou andam. Qualquer classe
de criaturas que não esteja equipada para o tipo correto
de locomoção no seu elemento é contrária à santidade.
O contacto com ela desqualifica uma pessoa a aproxi-
mar-se do Templo. Portanto, qualquer coisa da água que
não tenha nadadeiras e escamas é impura ( 11, 10-12).
Nada é dito a respeito dos hábitos predatórios ou de ali-
mentação de camjça. O único teste seguro de limpeza
para um peixe são as suas escamas e a sua propulsão
por meio de nadadeiras.
Criaturas de 4 pés que voam (11, 20-26) são im-
puras. Qualquer criatura que tenha duas pernas e duas
mãos e que anda com todas as quatro como um qua-
drúpede é impura (11, 27). Daí segue-se (5, 29) uma
lista muito discutida. Em algumas traduções, poderia pa~

72
recer que ela consiste precisamente de criaturas dota-
das de mãos em lugar de pés dianteiros, que usam per-
vertidamente as suas mãos para andar: a doninha, oca-
mundongo, o crocodilo, o musaranho, vários tipos de
lagartos, o camaleão e a toupeira (Danby, 1933) , cujos
pés dianteiros são esquisitamente semelhantes a mãos.
Este aspecto dessa lista perdeu-se na New Revised Stan-
dard Translation que usa a palavra "pata" em lugar
de mãos.
O último tipo de animal impuro é o dos que raste-
jam, se arrastam ou se movem sobre a terra. Esta for-
ma de movimento é explicitamente contrária à santida-
de (Levítico, 11, 41-44). Driver e Wbite usam swar-
ming* para traduzir o hebreu scherec que se aplica tanto
para os que se agrupam nas águas quanto para os que
se agrupam na terra. Quer o chamemos de rastejar,
arrastar-se, abandonar-se numa correnteza ou ir a re-
boque, trata-se de uma forma indeterminada de mo-
vimento. Desde que as principais categorias animais são
definidas por seu movimento típico, mover-se, que não
é um modo de propulsão adequado a nenhum elemento
em particular, intercepta a classificação básica. As coisas
que se movem não são nem peixe, nem carne, nem
ave. Enguias e minhocas habitam a água, mas não são
peixes; répteis andam na terra seca, mas não são qua-
drúpedes; alguns insetos voam mas não são pássaros.
Não há ordem neles. Lembrem-se do que a profecia de
Habacuque diz a respeito desta forma de vida:
E farias os homens como os peixes do mar, como os rép-
teis, que não têm quem os governe? (1, 14.)

O protótipo e modelo das coisas que se movem é


a minhoca. Assim como o peixe pertence ao mar, as mi-
nhocas pertencem ao reino do túmulo, juntamente com a
morte e o caos.
O caso dos gafanhotos é interessante e conseqüente.
O teste de se ele é um tipo puro e portanto comestível
é o modo pelo qual ele se movimenta sobre a terra.
Se ele rasteja, ele é impuro. Se ele salta, ele é puro
(11, 21 ) . Na Mischná observa-se que a rã não está
incluída na lista das coisas que se arrastam e não trans-
• O termo inglês re!ere-$e ao movimento conjunto de uma massa
de seres, POr exemplo, de um cardume ou enxame. (N. da T.)

73
mite nenhuma impureza (Danby, p. 722). Eu sugiro
que o salto da rã pesa de modo a que ela não seja
incluída na lista. Se os pingüins vivessem no Oriente
Próximo eu esperaria que eles fossem considerados im-
puros por serem aves sem asas. Se a lista das aves
impuras pudesse ser retraduzida deste ponto de vista,
poderia muito bem verificar-se que eles são anômalos
porque nadam e mergulham assim como voam, ou em
outras palavras não são totalmente como aves.
Seguramente agora seria difícil manter que "Vós
sereis Santos" significa nada mais do que "Vós sereis
separados". Moisés queria que as crianças de Israel
mantivessem as leis de Deus constantemente diante de
suas mentes:
18. Ponde, pois, estas minhas palavras no vosso coração e
nas vossas almas; atá-las-eis por sinal na vossa mão, e elas
vos serão por frontais entre os vossos olhos; 19. e ensiná-las-eis
a vossos filhos, falando delas sentados em vossas casas, e an-
dando pelo caminho, ao deitar-vos e ao levantar-vos; 20. e es-
crevê-las-eis nos umbrais de vossas casas, e nas vossas portas.
(Deuteronômio 11, 18-20.)

Se a interpretação proposta aos animais proibidos


está correta, as leis dietéticas teriam sido como signos
que a cada momento inspiravam meditação sobre a uni-
dade, pureza e perfeição de Deus. Pelas regras de evita-
ção, à santidade foi dada uma expressão física em cada
encontro com o mundo animal e a cada refeição. A ob-
servância das regras dietéticas teriam então sido uma
parte significativa do grande ato litúrgico de reco-
nhecimento e culto que culminava no sacrifício no
Templo.

74
4. MAGIA E MILAGRE

Uma vez, quando os bosquímanos !Kung reali-


zaram seus rituais da chuva, uma pequena nuvem apa-
receu no horizonte, cresceu e escureceu. Então a chu-
va veio. Mas os antropólogos, que perguntaram se os
bosquímanos consideraram que o rito tinha produzido a
chuva, foram objeto de muita gargalhada (Marshall,
1957). Como podemos ser tão ingénuos cm relação às
crenças dos outros? Fontes antropológicas antigas es-
tão repletas da noção de que os povos primitivos es-
peram que os ritos produzam uma intervenção imediata
em seus negócios, e escarnecem daqueles que suplemen-
tam seus rituais de cura com medicina européia, como se
isto testemunhasse uma falta de fé. Os Dinkas realizam
uma cerimônia anual para curar a malária. A cerimônia
é marcada para o mês no qual se espera que a malária
logo diminuirá. Um observador europeu, que foi teste-

75
munba disto, comentou secamente que o oficiante ter-
minou instando a todos para que comparecessem à clí-
nica regularmente, se esperavam ter boa saúde (Lie-
nbardt, 1961).
Não é difícil traçar a idéia de que os primi tivos
esperam que seus ritos tenham uma eficácia externa.
Existe um pressuposto confortável nas raízes de nossa
cultura de que os estrangeiros não sabem nada da ver-
dadeira religião espiritual. Baseado neste pressuposto,
a descrição grandiosa de Frazer sobre magia primitiva
tomou raízes c floresceu. A magia foi separada, cui-
dadosamente, de outras cerimônias, como se as tribos
primitivas fossem populações de Ali-Babás e Aladins,
proferindo suas palavras mágicas c esfregando suas
lâmpadas maravilhosas. A crença européia na magia
primitiva levou a uma distinção falsa entre culturas mo-
dernas e primitivas, e inibiram tristemente a religião
comparada. Não me proponho a mostrar como o ter-
mo magia tem sido usado, desde então, pelos estudio-
sos. Muita erudição já foi despendida definindo c clas-
sificando as ações simbólicas, que são tidas como efi-
cazes para alterar o curso dos acontecimentos (Goody,
Gluckman) .
No continente europeu, a magia permaneceu um
termo literário vago, descrito mas nunca definido rigo-
rosamente. E stá claro que na tradição de Hubert e na
Théorie de la Magie de Mauss, a palavra não conota
uma classe particular de rituais, mas sim o corpus todo
do ritual e da crença dos povos primitivos. Nenhum en-
foque especial é centrado na eficácia. Devemos a Fra-
zer o isolamento e fortalecimento da idéia de magia
como um símbolo eficaz (ver Cap. I ). Malinowski de-
senvolveu mais a idéia, sem criticá-la, dando-lhe uma
nova vida. Para Malinowski, a magia tem origem na
expressão das emoções de um indivíduo. A paixão, ao
contorcer a face do mágico e fazê-lo bater os pés no chão
ou balançar o punho, também o levava a decretar seu
forte desejo por vitória ou vingança. Esta representação
física, quase que involuntária no começo, uma reali-
zação enganadora de um desejo, era para ele a base
do rito mágico (ver Nadei, p. 194 ) . Malinowski teve
uma perspicácia tão original sobre o efeito criativo do
discurso que influenciou profundamente a Lingüística
contemporânea. Como poderia ele, infrutiferamente, iso-

76
lar ritos de magia de outros ritos, e discutir magia como
uma espécie de uísque de um homem pobre, usado para
ganhar convívio e coragem contra disputas atemorizan-
tes? Esta é outra aberração devida a Prazer, de quem
Malinowski se proclamava discípulo.
Desde que Robertson Smith traçou um paralelo
entre o ritual católico romano e a magia primitiva,
vamos, agradecidos, tomar esta sugestão. Por magia, va-
mos ler milagre, e refletir na relação entre milagre e
ritual nas mentes da massa de crentes das épocas dos
milagres do Cristianismo. Encontramos ali uma possi-
bilidade sempre presente de milagre; ele não dependia
necessariamente do rito, podia irromper em qualquer
lugar, a qualquer hora, em resposta a uma necessida-
de virtuosa ou às demandas de justiça. Era mais forte-
mente inerente a alguns objetos materiais, lugares e pes-
soas. Não podia ser colocado sob controle automático;
dizer as palavras certas ou borrifar água santa não ga-
rantia uma cura. Acreditava-se que existia o poder da
intervenção miraculosa, mas não havia nenhum meio
certo de lhe pôr arreios. Era tão diferente e tão seme-
lhante quanto a baraka islamita ou a sorte teutônica ou
o mana polinésio, tanto quanto cada um é diferente do
outro. Cada universo primitivo espera arrear este po-
der maravilhoso às necessidades dos homens, e cada
um supõe que um conjunto diferente de ligações tem que
ser constituído, como veremos no capítulo seguinte. No
período miraculoso da nossa herança cristã, os milagres
não ocorreram apenas através de ritos representados,
nem os ritos se realizavam com a esperança de milagres.
~ realista supor que uma relação igualmente frouxa se
dá entre o rito e o efeito mágico na religião primitiva.
Deveríamos reconhecer que a possibilidade de uma inter-
venção mágica está sempre presente na mente dos cren-
tes, que é humano e natural esperar por benefícios mate-
riais da representação de símbolos cósmicos. Mas é erra-
do tratar o ritual primitivo como algo primordialmente
relativo à produção de efeitos mágicos. O sacerdote, nu-
ma cultura primitiva, não é, necessariamente, um mágico
milagreiro. Esta idéia tem tolhido nossa compreensão
das religiões estrangeiras, mas é somente um subproduto
recente de um preconceito muito mais profundamente
enraizado.

77
Existe um contraste profundo entre vontade inte-
rior e representação exterior na história do Judaísmo e
Cristianismo. Por sua própria natureza qualquer religião
deve oscilar entre estes dois pólos. Deve haver um movi-
mento da vida religiosa interna para a externa, se uma
nova religião dura mesmo uma década após seu primeiro
fervor revolucionário. E, finalmente, o endurecimento
da crosta externa torna-se um escândalo e provoca novas
revoluções.
Assim, a raiva dos profetas do Velho Testamento
era continuamente renovada contra a ostentação de for-
mas externas vazias em vez de corações humildes e
contritos. Desde a época do primeiro concílio de Jeru~
salém, os apóstolos tentaram assumir uma interpretação
espiritual de santidade. O Sermão da Montanha era visto
como a contrapartida messiânica deliberada da lei de
Moisés. As freqüentes referências de São Paulo à lei,
como parte da velha ordem, uma servidão, um jugo, são
tão familiares que não precisam ser citadas. Desta época
em diante, a condição fisiológica de uma pessoa, seja
leprosa, sangrando ou inválida, tornou-se irrelevante para
sua capacidade de se aproximar do altar. A comida que
comiam, as coisas que tocavam, os dias em que faziam
as coisas, estas condições acidentais não deveriam ter
efeito no seu status espiritual. O pecado devia ser con-
siderado como uma questão de vontade e não de cir-
cunstâncias externas. Mas, continuamente, as intenções
espirituais da Igreja antiga foram frustradas pela resis-
tência espontânea à idéia de que os estados corporais
eram irrelevantes para o ritual. A idéia de poluição
pelo sangue, por exemplo, parece que estava morrendo
há muito tempo, a julgarmos pelos primeiros Peniten-
ciais. Veja-se o Penitencial do Arcebispo Theodore de
Canterbmy, 668-90 d.C.:

Se alguém come, sem saber, o que está poluído por sangue


ou qualquer outra coisa impura, não é nada; mas se ele sabe,
deverã fazer penitência de acordo com o grau de poluição ...

Ele também requer das mulheres quarenta dias de


purificação depois do nascimento de urna criança, e
acrescenta penitência de três semanas de jejum a qual-
quer mulher, secular ou religiosa, que entrar na igre-
ja, ou comungar durante a menstruação (McNeill &
Gamer).

78
~ desnecessário dizer que estas regras não foram
adotadas como parte do corpus da Lei Canônica, e agora
é difícil encontrar exemplos de impureza ritual na prá-
tica cristã. Injunções, que em suas origens poderiam ter
relação com a remoção de poluição de sangue, são in-
terpretadas como contendo apenas um significado espi-
ritual simbólico. Por exemplo, é comum reconsagrar uma
igreja se foi derramado sangue no recinto, roas Santo
Tomás de Aquino explicou que "derramamento de san-
gue" refere-se a uma injúria voluntária, que conduz ao
derramamento de sangue, o que implica pecado, e que
é o pecado num lugar santo que o profana c não uma
profanação por derramamento de sangue. Do mesmo
modo, o rito de purificação de uma mãe, provavelmente,
deriva fundamentalmente da prática judaica, mas o ri-
tual romano moderno, que data do tempo do Papa Pau-
lo V (1605-21), apresenta a ida das mulheres à igreja
simplesmente como um ato de agradecimento.
A longa história do Protestantismo testemunha a
necessidade de uma observação contínua da tendência
da forma ritual a se consolidar e substituir os senti-
mentos religiosos. De onda em onda, a Reforma conti-
nuou a denunciar, violentamente, a vazia incrustação do
ritual. Desde que existe o Cristianismo, não será nunca
hora de parar de repetir a parábola do Fariseu e do
Publicano, de parar de dizer que as formas externas po-
dem se tornar vazias e de ridicularizar as verdades de
que se dizem portadoras. A cada novo século, tor-
namo-nos herdeiros de uma longa e vigorosa tradição
anti-ritualista.
Isto é correto e bom no que diz respeito à nossa
vida religiosa, mas estejamos alerta contra a impor-
tação sem críticas de uma formalidade morta em nossos
julgamentos das outras religiões. O movimento protes-
tante deixou-nos uma tendência a supor que quaíquer
ritual tem forma vazia, que qua1quer código de conduta
é estranho a movimentos naturais de simpatía, e que
qualquer religião externa trai a verdadeira religião inte-
rior. Daí a se presumir algo sobre as religiões prirniti-
mas vai um passo. Se elas são suficientemente formais
para poderem ser relatadas, são demasiadamente for-
mais, sem uma religião interior. Por exemplo, os Books
oj the 0/d Testament, de Pfeiffer, têm esta base anti-ri-
tuaüsta que o leva a contrastar "a antiga religião do

79
culto" com a "nova religião da conduta" dos profetas.
Ele escreve como se não pudesse haver satisfação es-
piritual no velho culto (p. 55 e ss.). Apresenta a
história religiosa de Israel como se os severos e in-
sensíveis legisladores estivessem em conflito com os pro-
fetas, e nunca permite que ambos pudessem estar en-
gajados no mesmo serviço, ou que ritual e codificação
pudessem ter algo a ver com espiritualidade. De acordo
com Pfeiffer, os sacerdotes legisladores
santificavam o externo, obliteravam os ideais éticos de Am6s
da religião e também as suaves emoções de Oséias, e redu-
ziam o Criador Universal ao estado de um inflexível déspota ...
De costumes imemoriais derivam as duas noções fundamen-
tais que caracterizaram sua legislação: santidade física e sanção
arbitrária - concepções arcaicas que os profetas reformis-
tas descartaram em favor da santidade espiritual e da lei mo-
ral (p. 91).

Isto não é história mas puro preconceito anti-ritua-


lista. Pois é um erro supor que pode haver religião que
seja completamente interior, sem regras, sem liturgia,
sem sinais exteriores de estados internos. Como na so-
ciedade, assim também na religião, a forma externa é a
condição de sua existência. Como os herdeiros da tra-
dição protestante, crescemos na suspeita da formali-
dade e na procura de expressões espontâneas como a
irmã do ministro, a qual Mary Webb fez dizer, "bolos
feitos em casa e preces feitas em casa são sempre os
melhores". Como um animal social, o homem é um
animal ritual. Se o ritual é suprimido de uma forma,
ele aparece inesperadamente em outras, tão mais forte
quanto mais intensa for a interação social. Sem cartas
de condolência, telegramas de congratulações ou mes-
mo cartões-postais ocasionais, a amizade de um ami-
go que está longe não é uma realidade social. Ela não
tem nenhuma existência sem os ritos de amizade. Os ri-
tuais sociais criam uma realidade que não seria nada
sem eles. Não é exagero dizer que o ritual é mais para
a sociedade do que as palavras são para o pensa-
mento. Pois é bem possível conhecer alguma coisa e
então encontrar palavras para ela. Mas é impossível ter
relações sociais sem atos simbólicos.
Compreenderemos melhor o ritual primitivo se es-
clarecermos melhor nossas idéias sobre ritos seculares.

80
Para nós, individualmente, a representação simbólica co-
tidiana faz diversas coisas. Fornece um mecanismo de
enfoque, um método de mnemônica e um controle para
a experiência. Lidando, primeiramente, com enfoque,
um ritual fornece uma armação. Uma época ou lugar
assim delimitado alerta um tipo especial de expec-
tativa, assim como o sempre repetido "Era uma vez''
cria uma disposição receptiva aos contos de fadas. Po-
demos refletir nesta função de enquadramento em pe-
quenos exemplos pessoais, pois o mínimo ato é capaz
de transportar significado. Experiências com limites
emoldurados ou enquadrados encerram temas deseja-
dos ou interceptam temas intrusos. Quantas vezes é ne-
cessário arrumar a mala para o fim de semana para
descobrir como excluir com sucesso todos os sinais de
uma vida de escritório indesejável? Um processo ofi-
cial, embrulhado num momento de fraqueza, pode es-
tragar todo o efeito das férias. Cito aqui Marion Milner:
... o quadro delimita a espécie de realidade diferente que está
dentro dele da que está fora dele; mas um quadro espaço-
temporal delimita o tipo especial de realidade de uma sessão
psicanalítica. . . toma possível a ilusão criativa denominada
transferência.. . (1955)

Ela está discutindo a técnica de análise da criança


e menciona o compartimento no qual a criança guarda
seus objetos de brinquedo. Isto cria urna espécie de qua-
dro espaço-temporal que lhe dá uma continuidade de
uma sessão a outra.
O ritual não somente nos ajuda a selecionar ex-
periências para concentrar a atenção. Também é cria-
tivo quanto ao nível de desempenho. Pois um símbolo
exterior pode misteriosamente ajudar a coordenação do
cérebro e do corpo. As narrativas dos autores freqüen-
temente relatam casos em que um símbolo material ex-
prime poder efetivo: o ator sabe seu papel, sabe exa-
tamente como quer interpretá-lo. Mas um conhecimen-
to intelectual do que é para ser feito não basta para
produzir a ação. Ele tenta continuamente e falha. Um
dia lhe passam um suporte, um chapéu ou um guarda-
chuva verde, e com este símbolo, se realiza, repenti-
namente, uma atuação perfeita em termos de conhe-
cimento e intenção.

81
O vaqueiro dinka, apressando-se para jantar em
casa, ata um feixe de capim ao lado da estrada, um
símbolo de atraso. Assim ele expressa exteriormente o
desejo de que o jantar seja atrasado até que ele retorne.
O rito não contém uma promessa mágica de que ele
chegará na hora certa para o jantar. Não adia sua
chegada ao lar pensando que sua ação, por si mesma,
será eficaz. Redobra sua pressa. Seu ato não foi perda
de tempo, pois aguçou sua atenção no sentido de che-
gar a tempo em casa (Lienhardt). A ação mnemônica
dos ritos é bem conhecida. Quando amarramos nós nos
lenços não estamos fazendo mágica com nossa memória,
estamos colocando-a sob o controle de um sinal ex-
terior.
Assim, o ritual focaliza a atenção por enquadra-
mento; ele anima a memória e liga o presente com o
passado relevante. Em tudo isto, ajuda a percepção.
Ou melhor, muda a percepção porque muda os princí-
pios seletivos. Logo, não é suficiente dizer que o ri-
tual nos ajuda a experimentar mais vivamente o que
experimentaríamos de qualquer maneira. Não é mera-
mente como uma ajuda visual que ilustra as instru-
ções verbais para abrir latas e invólucros. Se ele fosse
apenas uma espécie de mapa dramático ou diagrama da-
quilo que é conhecido, seguiria sempre a experiência.
Mas, na verdade, o ritual não desempenha este papel
secundário. Pode vir, primeiro, formulando a expeêiên-
cia. Pode permitir o conhecimento de algo que, de outra
maneira, não seria conhecido. Não exterioriza simples-
mente a experiência, trazendo-a para a luz do dia, mas
modifica a experiência, expressando-a. Isto é verdadei-
ro para a linguagem. Podem existir pensamentos que
nunca foram traduzidos em palavras. Uma vez que as
palavras são formuladas, o pensamento muda e é limi-
tado pelas próprias palavras selecionadas. Assim, o dis-
curso criou alguma coisa, um pensamento o qual podia
não ser o mesmo.
Há certas coisas que não podemos experimentar
sem ritual. Eventos que vêm em seqüências regulares
adquirem um signi{icado da relação com outros even-
tos na seqüência. Sem a seqüêncK\ inteira, os elementos
individuais perdem-se, imperceptíveis. Por exemplo, os
dias da semana, com sua sucessão regular, nomes e
distinções: à parte o seu valor prático de identificar as

82
divisões de tempo, cada um deles tem um significado
como parte de um padrão. Cada dia tem seu significado
próprio e se há hábitos que estabelecem a identidade de
um dia particular, estas observâncias regulares têm o
efeito de um ritual. O domingo não é simplesmente um
dia de descanso. E o dia anterior à segunda, e igualmen-
te a segunda em relação à terça. Na verdade, não pode-
mos experimentar a terça se, por alguma razão, não
tivermos formalmente percebido a segunda. Ir através
de uma parte do padrão é um procedimento necessário
para se estar ciente da outra parte. Os que viajam de avião
acham que isto se aplica às horas do dia e à seqüência
das refeições. Estes são exemplos de símbolos que são
recebidos e interpretados sem intenção. Se admitimos
que eles condicionam a experiência, então devemos ad-
mitir também que os rituais intencionais, numa seqüên-
cia regular, podem ter isto como uma de suas funções
importantes.
Podemos voltar agora para os ritos religiosos. Dur-
kheim estava bem ciente de que seus efeitos são para
criar e controlar a experiência. Era sua preocupação
principal estudar como o ritual religioso torna manifesta
aos homens sua pessoa social e cria assim sua socie-
dade. Mas seu pensamento foi canalizado para a corren-
te inglesa de Antropologia, por Radcliffe Brown, que
o mt:>dificou. Graças a Durkheim, o ritualismo primitivo
não foi mais visto como um mágico pantomímico. Isto
era um avanço notável sobre Frazer. Além disso, Rad-
cliffe Brown recusou-se a separar ritual religioso de ri-
tual secular - outro avanço. O mágico de Malinowski
tomou-se semelhante a qualquer patriota agitador de
bandeiras ou um supersticioso que não passa embaixo
de uma escada, e estes eram tratados ao lado do cató-
lico-romano que se abstém de carne, ou dos chineses
que colocam arroz numa sepultura. O ritual não era
mais misterioso ou exótico.
Colocando de lado as palavras sagrado e profano,
Radcliffe Brown parecia restaurar o fio da continui-
dade entre o ritual secular e o religioso. Mas, infeliz-
mente, isto não expandiu o campo de investigação. Pois,
ele queria usar "rituai" num sentido muito restrito e
especial. Foi para substituir o culto do sagrado de
Durkheim c restringir-se assim à representação de valo-
res socialmente significantes (1939) . Semelhantes coer-

83
ções no uso das palavras pretendiam ajudar a com-
preensão. Mas, freqüentemente, elas distorciam e con-
fundiam. Chegamos agora à posição na qual o ritual
substitui a religião nos escritos antropológicos. Ele é
usado cuidadosa e coerentemente para se referir
à ação simbólica que diz respeito ao sagrado. Como
resultado disto, a outra espécie mais comum de ri-
tual não-sagrado, sem eficácia religiosa, tem que rece-
ber outro nome, se tiver que ser estudado. Desse modo,
Radcliffe Brown removeu com uma mão a barreira
entre sagrado e profano, mas colocou-a de volta com a
outra. Tampouco seguiu a idéia de Durkheim de
que o ritual pertence a uma teoria social do conheci-
mento, mas tratou-o como parte de uma teoria da ação,
tomando sem críticas alguns pressupostos sobre "senti-
mentos" correntes na psicologia da época. Onde há valo-
res comuns, disse ele, os rituais expressam e focalizam
sobre eles a atenção. Os sentimentos necessários são
gerados pelos rituais para manter os homens em seus
papéis. Tabus de nascimentos de crianças expressam
para os Andamaneses o valor do casamento e da mater-
nidade e o perigo de vida no parto. Nas danças guerrei-
ras antes da trégua, os Andamaneses esforçam-se por li-
vrar-se de seus sentimentos de agressão. Os tabus de
comida infundem sentimentos de respeito pela superio-
ridade em idade e assim por diante. •
Esta abordagem é estéril. Seu valor principal está
em requerer de nós uma compreensão séria dos tabus
porque eles expressam preocupações. Mas permanece
sem resposta por que os tabus de comida ou os visuais
ou os tabus táteis escolhem estas comidas, sinais e con-
tactos particulares a se evitar. Radcliffe Brown, de certo
modo no espírito de Maimônides, insinua que a ques-
tão é tola, ou que a resposta a ela é arbitrária. E, o
que é pior, deixa-nos poucos indícios sobre as preo-
cupações das pessoas. :e. óbvio que a morte e o nasci-
mento de uma criança deveriam ser um assunto de
preocupação. Assim, Srinivas, escrevendo sob a in-
fluência de Radcliffe Brown, conta sobre as evitações e
purificações dos Coorgs:
A poluição resultante do nascimento é mais suave que a
poluição em conseqüência da morte. Mas, em ambos os casos,
a poluição afeta somente os parentes considerados, e é o meio

84
pelo qual o interesse é definido e conhecido de todos ( 1952, p.
102).

Mas ele não pode aplicar o mesmo raciocínio a


todos os tipos de poluição. Que espécie de interesse
sobre emissões do corpo, como fezes ou saliva, pode
ser definido ou se fazer conhecido de todos?
No fim, o inglês recebeu os ensinamentos de Dur-
kbeim quando melhores trabalhos de campo provocaram
uma compreensão ao nível da perspicácia de Durkheim
em sua poltrona. Toda a discussão de Lienhardt sobre a
religião dos Dinkas é devotada em grande parte a mos-
trar como os rituais criam e controlam a experiência.
Escrevendo sobre as cerimônias da chuva, realizadas
pelos Dinkas na aridez da primavera, ele diz:
Os próprios Dinkas conhecem, com certeza, quando a esta-
ção das chuvas está se aproximando. . . a questão é de certa im-
portância para uma correta apreciação do espírito no qual os
Dinkas realizam suas cerimônias regulares. Nelas, suas ações
simbólicas humanas movem-se com o ritmo do mundo natural
que os rodeia, recriando aquele ritmo em termos morais e não
meramente tentando coagi-lo em conformidade com os dese-
jos humanos ( 1961 ) .
Lienhardt continua na mesma linha para sacrifí-
cios para a saúde, para a paz e para cancelar os
efeitos do incesto. Finalmente, ele alcança o enterro vivo
dos Mestres da Lança de Pesca, o rito pelo qual os
Dinkas encaram e triunfam sobre a própria morte. Em
toda parte ele insiste que a função do ritual é modificar
a experiência. Isto, geralmente, atua retroativamente. Os
oficiantes podem solenemente negar as discussões e
maus procedimentos que existem por ocasião do sacri-
fício. Isto não é um perjúrio cínico no próprio altar.
O objetivo do ritual não é enganar a Deus mas refor-
mular a experiência passada. Através do ritual e do
discurso o que passou é restabelecido e, assim, aquilo
que deveria ter sido prevalece sobre o que era, a in-
tenção permanentemente boa prevalece sobre a aberra-
ção temporária. Quando um ato de incesto foi cometido,
um sacrifício pode alterar a descendência comum do
par e cancelar sua culpa. A vítima é cortada viva pelo
meio, longitudinalmente, passando pelos órgãos sexuais.
Assim a origem comum do par incestuoso é, simboli-
camente, negada. Nas cerimônias para conservar a paz

85
há, similarmente, ações de bênção e purificação assim
como batalhas mímicas:
Parece que gestos sem palavras eram suficientes para con-
firmar o universo físico exterior, uma intenção concebida in-
teriormente na moral. . . A ação simbólica, de fato, imita a
situação total na qual os partidos em rixa sabem que estão
incluindo suas hostilidades e disposições em torno da paz sem
a qual a cerimônia não poderia ser realizada. Nesta represen-
tação simbólica da situação, eles a controlam de acordo com
seus desejos de paz, transcendendo em ação simbólica o único
tipo de ação prática (isto é, hostilidades contínuas) que para
os Dinkas vem em seguida à situação de homicídio.

Mais adiante ( p. 291) ele continua a martelar a


idéia de que o ritual tem como um de seus objetivos
controlar situações e modificar a experiência.
Somente estabelecendo este ponto, ele pode inter-
pretar o enterro dos Mestres de Lança dinkas ainda
vivos. Por isso o princípio fundamental é que certos
homens, em contacto estreito com a Divindade, não
deveriam ser vistos ingressando na morte física.
Suas mortes deverão ser, ou parecer, deliberadas, e ocasião
de uma forma de celebração pública ... as cerimônias não im-
pedem, de nenhuma maneira, o reconhecimento último da ve-
lhice e morte física daqueles para os quais elas são realizadas.
Esta morte é reconhecida; mas é uma experiência pública disto,
para os sobreviventes, a qual é deliberadamente modificada pela
realização dessas cerimônias. . . a morte, deliberadamente pla-
nejada, embora reconhecida como morte, habilita-os a evitar,
neste caso, a admissão de morte involuntária, a qual é o
quinhão de homens comuns e animais.

O Mestre da Lança de Pesca não se mata. Ele pede


uma forma especial de morte que é dada por seu povo,
por sua causa e não por causa dele. Se ele tivesse
de morrer uma morte comum, a vida de seu povo, que
está em suas mãos, iria com ele. Sua morte, contraída
ritualmente, separa sua vida pessoal de sua vida pú-
blica. Todos deveriam se rejubilar, porque nesta oca-
sião há um triunfo social sobre a morte.
Lendo este relato das atitudes dos Dinkas em re-
lação a seus rituais, pode-se ter a impressão de que o
autor é como um nadador dirigindo-se contra uma cor-
rente forte. Ele tem de afastar o tempo todo a enchen-
te de argumentos dos simples observadores ingênuos que
tomaram o ritual no sentido valorativo de Aladim e sua

86
lâmpada. b lógico que os Dinkas esperam que seus ritos
suspendam o curso natural dos acontecimentos. b lógico
que esperam que os rituais de chuva causem chuva, ri-
tuais de cura afastem a morte, rituais de colheita pro-
duzam frutos. Mas a eficácia instrumental não é o único
tipo de eficácia a ser extraído da ação simbólica. O
outro tipo é alcançado na ação em si, nas asserções que
ela faz e na experiência que leva sua marca.
Uma vez que a experiência religiosa dos Dinkas foi
decifrada desse modo, não podemos escapar de sua ver-
dade. Podemos aplicá-la ainda mais amplamente a nós
mesmos. P rimeiro, deveríamos admitir o fato de que
muito pouco do nosso comportamento ritual é represen-
tado no contexto da religião. A cultura dinka é uni-
ficada. Desde que todos os seus principais contextos de
experiência coincidem e interpenetram-se, quase todas
as suas experiências são religiosas e, portanto, é seu ri-
tual mais importante. Mas nossas experiências ocorrem
em compartimentos separados e também nossos rituais.
Logo, devemos considerar os chapéus e a limpeza de
primavera em nossas cidades como ritos renovadores
que focalizam e controlam a experiência, do mesmo
modo que rituais das primeiras frutas dos Swazis.
Quando refletimos honestamente sobre nossas esca-
vações e limpezas minuciosas nesta perspectiva, sabemos
que não estamos, simplesmente, tentando evitar a doen-
ça. Estamos separando, colocando fronteiras, fazendo
afirmações visíveis sobre o lar que estamos pretenden-
do criar da casa material. Se conservamos os artigos
de limpeza do banheiro separados dos da cozinha, e
mandamos os homens para o lavabo no térreo e as
mulheres para o andar de cima, estamos fazendo, es-
sencialmente, a mesma coisa que faz a esposa bosquí-
mana, quando chega a um acampamento novo (Marshall
Thomas, p. 41 ). Ela escolhe onde colocará seu fogo e
enfia, então, seu bastão no solo. Isto orienta o fogo e
dá-lhe um lado esquerdo e um lado direito. Assim, o
lar é dividido em duas regiões: feminina e masculina.
Nós, os modernos, operamos em muitos campos di-
ferentes de ação simbólica. Para os bosquímanos, os
Dinkas e muitas culturas primitivas, o campo da ação
simbólica é um só. A unidade que criam por sua se-
paração e ordenação não é somente um pequeno lar,
mas um universo total no qual toda a experiência é or-

87
denada. Tanto nós quanto os bosquímanos justifica-
mos nossa evitação da poluição pelo medo do perigo.
Eles acreditam que se um homem sentar-se do lado fe-
minino, sua virilidade será enfraquecida. Nós tememos
a patogenia transmitida através de microorganismos.
Nossa justificação, geralmente, de os evitar através da
higiene, é pura fantasia. A diferença entre nós não é
que nosso comportamento esteja fundado na ciência e
o deles em simbolismo. Nosso comportamento também
carrega um significado simbólico. A diferença real está
em que não levamos de um contexto para o próximo o
mesmo conjunto de poderosos símbolos: nossa expe-
riência é fragmentada. Nossos rituais criam muitos
submundos pequenos, não-relacionados. Os rituais deles
criam um universo único, simbolicamente congruente.
Nos próximos dois capítulos mostraremos que espécies
de universos são produzidos quando as necessidades
políticas e rituais trabalham conjunta e livremente.
Retornemos agora à questão da eficácia. Mauss es-
creveu como a sociedade primitiva se recompensa com
a falsa moeda da magia. A metáfora do dinheiro soma-
se admiravelmente ao que queremos afirmar sobre o
ritual. O dinheiro fornece um sinal fixo, exterior, e
reconhecível para o que seriam operações confusas,
contraditórias: o ritual torna visíveis sinais exteriores
de estados interiores. O dinheiro medeia as transações;
o ritual medeia a experiência inclusive a experiência so-
cial. O dinheiro oferece um padrão para medir o valor;
o ritual padroniza as situações, e ajuda assim a ava-
liá-las. O dinheiro faz a união entre o presente e o fu-
turo, da mesma forma que o ritual. Quanto mais refle-
tirmos na riqueza desta metáfora, tanto mais fica claro
que ela não é uma metáfora. O dinheiro é somente
um tipo extremo e especializado de ritual.
Comparando magia com moeda falsa, Mauss não
estava certo. O dinheiro só pode desempenhar seu pa-
pel de intensificar a interação econôrnica, se o público
tem fé no dinheiro. Se a fé for abalada, a moeda é inútil.
Assim também o ritual; seus símbolos têm efeito apenas
enquanto incutirem confiança. Neste sentido, todo di-
nheiro, falso ou verdadeiro, depende de uma malandra-
gem. O teste do dinheiro é se ele é aceitável ou não.
Não há dinheiro falso a não ser comparando-se com
outra moeda que tenha maior aceitabilidade. Logo, o

88
ritual primitivo é como dinheiro bom, não dinheiro
falso, enquanto ele tiver aceitação.
Observe-se que o dinheiro só pode gerar atividade
económica, em virtude da realimentação da confiança
do público nele. E o ritual? Que espécie de eficácia é
gerada pela confiança no poder de seus símbolos? Uti-
lizando a analogia com a moeda podemos ressuscitar a
questão da eficácia mágica. Há duas opiniões possíveis:
ou o poder da magia é pura ilusão, ou não é. Se não é
ilusão, então os símbolos têm o poder de operar mu-
danças. Deixando os milagres de lado, este poder pode
atuar somente em dois níveis, o da psicologia individual
e o da vida social. Sabemos muito bem que os símbolos
têm poder na vida social; a analogia com moeda pro-
porciona uma ilustração disto. Mas a taxa de desconto
bancário tem algo a ver com curas xamanísticas? Os
psicanalistas afirmam operar curas através da manipu-
lação de símbolos. A confrontação com o subconsciente
tem algo a ver com feitiços e despachos primitivos? Cito
agora dois ótimos estudos que devem tirar o ceticismo
da ordem do dia.
Um é a análise de Turner de uma cura xamanís-
tica "An Ndembu Doctor in Practice" (1964), quere-
sumo brevemente. A técnica da cura era a famosa cura
de tirar sangue por sucção, aparentemente extraindo um
dente do corpo do paciente. Os sintomas eram palpita-
ções, dores fortes nas costas e fraqueza incapacitado-
ra. O paciente também estava convencido de que os
outros aldeões estavam contra ele e retirava-se assim,
completamente, da vida social. Assim, havia uma mis-
tura de distúrbios físicos e psicológicos. O médico pro-
cedeu procurando tudo que se relacionasse com a his-
tória passada da aldeia, conduzindo sessões onde todos
eram encorajados a discutir suas queixas contra o pa-
ciente, enquanto este, por seu lado, manifestava suas
queixas contra eles. Finalmente este tratamento envol-
veu, dramaticamente, toda a aldeia numa crise de expec-
tativa, que explodiu com a extração do dente do pa-
ciente, que sangrava e desmaiava. Alegremente, eles o
congratulavam pela recuperação e se congratulavam en-
tre si por sua parte na recuperação. Tinham razão para
se alegrar, pois o longo tratamento descobriu as fontes
principais de tensão na aldeia. No futuro, o paciente
poderia ter um papel aceitável nos seus negócios. Ele-

89
mentos dissidentes foram reconhecidos e brevemente dei-
xaram a aldeia. A estrutura social foi analisada e rear-
ranjada c assim o atrito foi, por hora, reduzido.
Neste estudo absorvente, mostram-nos um caso de
habilidade terapêutica. As calúnias e a inveja dos al-
deões, simbolizadas pelo dente no corpo do doente, fo-
ram dissolvidas numa onda de entusiasmo e solidarie-
dade. Assim como ele foi curado de seus sintomas físi-
cos, todos foram curados do mal-estar social.
Estes símbolos atuavam ao nível psicossomático
para a figura central, o homem doente, e ao nível psi-
cológico geral para os aldeões, mudando suas atitudes,
e ao nível sociológico, na medida em que o padrão de
status sociais na aldeia foi , formalmente, alterado e por-
que algumas pessoas vieram para a aldeia e outras saí-
ram dela como resultado do tratamento.
Concluindo, Turner diz:
Desnudada de sua aparência sobrenatural, a terapia Ndembu
pode perfeitamente oferecer lições para a prática clínica do
Ocidente. Pois, poder-se-ia dar alívio a muitos sofredores de
doenças neuróticas, se se pudesse reunir todos aqueles en-
volvidos em suas redes de relações sociais, e publicamente
confessarem suas más vontades para com o paciente e su-
portar de volta o recital de resmungos dele contra eles. Mas
é provável que nada menos que sanções rituais para seme-
lhante comportamento e crença nos místicos poderes do mé-
dico pudessem produzir esta humildade e compelir as pessoas
a mostrar caridade para com seu vizinho sofredor.
Este relato de uma cura xamanística aponta a ma-
nipulação da situação social como a fonte de sua efi-
cácia. O outro estudo esclarecedor não diz nada sobre
a situação social, mas concentra-se no poder direto dos
símbolos que atuam na mente do sofredor. Lévi-Strauss
(1949 e 1958), analisou uma canção xamã dos Cunas,
que é cantada para aliviar um parto difícil. O médico
não toca na paciente. O encantamento deve extrair seu
efeito meramente do recital. A canção começa descreven-
do as dificuldades da parteira e seus apelos ao xamã. En-
tão, o xamã, à cabeceira de um bando de espíritos pro-
tetores, declara (na canção) a casa de Muu, o poder
responsável pelo feto que capturou a alma da paciente.
A canção descreve a busca, os obstáculos, perigos e
vitórias do bando do xamã até que finalmente eles
lutam contra Muu e suas confederadas. Uma vez que
Muu é conquistada e liberta a alma cativa, a mãe cm

90
parto tem sua criança e a canção termina. O interesse
da canção é que os pontos de referência da jornada
do xamã são, literalmente, a vagina c o útero da mulher
grávida, nas profundezas dos quais ele finalmente luta
por ela vitoriosamente. Por repetição e minuciosos de-
talhes, a canção força a paciente a assistir a um relato
elaborado sobre o que houve de errado em seu parto.
Em certo sentido, o corpo e órgãos internos da pa-
ciente são o teatro da ação na estória, mas pela trans-
formação do problema numa jornada perigosa e numa
batalha com poderes cósmicos, indo e vindo entre a
arena do corpo e a arena do univen.o, o xamã é capaz
de impor seu ponto de vista sobre o caso. O terror
da paciente é focalizado na força dos adversários mís-
ticos e suas esperanças de melhorar fixadas nos pode-
res e astúcias do xamã e seu bando.
A cura consistiria, então, em tornar pensável uma situação
emocional; e em fazer a mente aceitar as dores que o corpo
recusa suportar. Não tem importância que n mitologia do xamã
não corresponda à realidade objetiva: a paciente ncredita nela.
Os poderes protetores e os maléficos, os monstros sobrenatu-
rais e os animais mágicos formam parte de um sistema coe-
rente que sublinha a concepção nativa do universo. A paciente
aceita-os, ou melhor, ela nunca duvidou deles. O que ela não
aceita é a dor incoerente e arbitrária que é um elemento in-
truso no seu sistema. Apelando para o mito, o xamã coloca-a
num esquema unificado onde cabe tudo. Mas a paciente, tendo
entendido, não se resigna: começa a melhorar.

Como Turner, Lévi-Strauss também conclui seu es-


tudo com sugestões pertinentes para a psicanálise.
Estes exemplos deveriam ser suficientes para aba-
lar um desdém demasiado complacente para com as
crenças religiosas primitivas. Não o Ali-Babá absurdo,
mas a figura magistral de Freud é o modelo para a
apreciação do ritualismo primitivo. O ritual é, na ver-
dade, criativo. Mais maravilhosa que as cavernas exó-
ticas e os palácios dos contos de fadas, a magia do ri-
tual primitivo cria mundos harmoniosos com populações
classificadas e ordenadas desempenhando suas respecti-
vas partes. Longe de ser sem significado, a magia primi-
tiva dá um sentido à existência. Isto se verifica tanto .
para os ritos positivos como para os negativos. As proi-
bições traçam o perfil cósmico e a ordem social ideal.

91
5. MUNDOS PRIMITIVOS

"Ora, quais são as marcas características da anêmo-


na do mar", medita George Eliot, "que lhe dão o direito
de ser removida das mãos do botânico e colocada nas
do zoólogo?"
Para nós, os espécimes ambíguos impelem simples-
mente os ensaístas a reflexões elegantes. Para o Levítico,
o querogrilo ou hirace sírio é sujo e abominável. 'E: urna
anomalia, certamente. Parece um coelho sem orelha, tem
dentes como um rinoceronte e os cascos pequenos nos
dedos dos pés fazem-no semelhante ao elefante. Mas a
sua existência não ameaça derrubar a estrutura de nossa
cultura. Agora que reconhecemos e assimilamos nossa
descendência comum com os macacos, nada. pode acon-
tecer no campo da taxonomia animal para ativar nosso
interesse. Esta é uma razão por que a poluição cósmica
nos parece mais difícil de entender do que a poluição so-
cial da qual temos uma experiência pessoal.

93
Outra dificuldade é nossa velha tradição de dar
pouca importância à diferença entre nosso ponto de
vista e o das culturas primitivas. As tão palpáveis di-
ferenças entre "nós" e "eles" são minimizadas c mesmo
a palavra "primitivo" é raramente usada. -e:, no entanto,
impossível fazer qualquer progresso no estudo de po-
luição ritual, se não podemos enfrentar a questão de
saber por que a cultura primitiva está propensa à polui-
ção e a nossa não. A poluição para nós é um assunto
de estética, higiene ou etiqueta, que somente se torna
grave na medida em que cria um embaraço social. As
sanções são sanções sociais, ofensa, ostracismo, fofoca
ou mesmo ação policial. Mas em outro grande grupo
de sociedades humanas, os efeitos da poluição são muito
mais abrangentes. Uma grave poluição é uma ofensa
religiosa. Qual é a base desta diferença? Não podemos
evitar a questão e devemos tentar expressar uma dis-
tinção objetiva, verificável entre dois tipos de cultura, a
primitiva e a moderna. Talvez, nós, anglo-saxões, esteja-
mos mais preocupados em enfatizar nosso senso de hu-
manidade comum. Sentimos que há alguma coisa des-
cortês no termo "primitivo" e assim evitamo-lo bem co-
mo o assun to todo. Por que outra razão teria o Prof.
H erskovits reintitulado a segunda edição de Economia
Primitiva para Antropologia Econômica, se seus sofisti-
cados amigos da África Ocidental não houvessem expres-
sado desagrado por estarem amontoados com Fueguinos
e aborígines nus SQb este signo geral? Talvez isto seja,
também, em parte uma reação saudável contra a antiga
antropologia: "T alvez nada diferencie tão agudamente
o selvagem do homem civilizado que a circunstância de
que o primeiro observe tabus e o último não" (Rose,
1926, p. 111). Ninguém pode ser censurado por recuar
diante da passagem seguinte, embora não conheça nin-
guém que a leve a sério:
Sabemos que o homem primitivo de hoje tem um pre-
paro mental muito diferente do homem civilizado. t mais
fragmentado, muito mais descontínuo, mais "livrc-gestalt''. O
professor Jung uma vez contou-me que em suas viagens pela
selva african:l tinha observado o estremecimento dos globos-
-oculares dos guias nativos: não o firme olhar do europeu,
mas um movimento rápido, sem descanso, da visão, devido,
talvez, à constante expectativa de perigo. Estes movimentos
visuais devem ser coordenados com uma vigilância mental c uma

94
rápida mudança de imagem que não oferece muita oportuni-
dade para um raciocínio discursivo, para contemplação e com-
paração (H. Read, 1955).
Se isto tivesse sido escrito por um professor de
Psicologia talvez pudesse ser significativo, mas não o
foi. Suspeito que nossa delicadeza profissional em evitar
o termo "primitivo" é o produto de convicções secretas
de superioridade. Os antropólogos físicos têm um pro-
blema similar. Enquanto se esforçam por substituir a
palavra "raça" pelo termo "grupo étnico" (ver Current
Anthropology, 1964), seus problemas terminológicos
não os inibem em suas tarefas de distinguir e classifi-
car as formas de variação humana. Mas os antropólo-
gos sociais, evitando refletir sobre as grandes distinções
entre as culturas humanas, impedem, seriamente, seus
próprios trabalhos. Logo, é significante perguntar por
que o termo "primitivo" deveria implicar qualquer in-
tenção de denegrir.
Parte de nossa dificuldade na Inglaterra, é que Lé-
vy-Bruhl, o primeiro a colocar todas as questões im-
portantes sobre culturas primitivas e sua distintividade
como uma classe, escreveu uma crítica deliberada dos
ingleses da época, particularmente de Prazer. Além disso,
Uvy-Bruh1 deu margem a poderosos contra-ataques. A
maioria dos manuais de religião comparada são enfáti-
cos sobre os erros que ele cometeu, e não dizem nada
sobre o valor das questões que ele levantou (Por exem-
plo, F. Bartlett, 1923, pp. 283-284 e P . R adio, 1956,
pp. 230-231). Na minha opinião ele não merecia esta
negligência.
Lévy-Bruhl estava interessado em documentar e
explicar um modo peculiar de pensamento. Começou
(1922) com o problema colocado por um paradoxo apa-
rente. De um lado havia relatos convincentes sobre o
alto nível de inteligência dos esquimós ou dos bosquíma-
nos (ou de outros tantos caçadores e coletores ou cul-
tivadores primitivos ou pastores), e de outro relatos
de saltos peculiares em seus raciocínios e inter-
pretações dos acontecimentos que sugeriam que seus
pensamentos seguiam caminhos bem diferentes dos
nossos. Ele insistia em que o alegado desagrado dos
primitivos pelo raciocínio discursivo não se devia a uma
incapacidade intelectual mas a padrões altamente sele-
cionados de relevância, que produzia neles uma "insu-

95
perável indiferença com relação a assuntos que não pos-
suíam nenhuma relação aparente com aqueles que os
interessavam". O problema era, então, descobrir os prin-
cípios de seleção e de associação que faziam com que a
cultura primitiva favorecesse explicações em termos de
agentes místicos remotos e invisíveis e não tivesse curio-
sidade pelos elos intermediários numa cadeia de even-
tos. Lévy-Bruhl parece às vezes estar colocando seu pro-
blema em termos de psicologia do indivíduo, mas está
claro que ele o viu como um problema da comparação
de culturas primeiramente, e como um problema psico-
lógico somente no sentido de que a psicologia do indiví-
duo é afetada pelo ambiente cultural. Estava interessado
em analisar "representações coletivas", ou seja, pressu-
postos e categorias padronizadas em vez de atitudes indi-
viduais. Foi precisamente a esse respeito que ele'criticou
Tylor e Prazer, que tentaram explicar crenças primitivas
em termos de psicologia individual, ao passo que ele se-
guiu Durkheim vendo as representações coletivas como
fenômenos sociais, como modelos comuns de pensamen-
to que estão relacionados às instituições sociais. Estava,
quanto a isto, indubitavelmente certo, mas, como sua for-
ça está mais numa documentação maciça do que numa
análise, foi incapaz de aplicar seus próprios preceitos.
O que Lévy-Bruhl deveria ter feito, disse Evans-
-Pritchard, era examinar as variações na estrutura social
e relacioná-las com variações concomitantes nos pa-
drões de pensamento. Em vez disso, ele se satisfez di-
zendo que todos os povos primitivos apresentam padrões
uniformes de pensamento quando comparados com o
nosso, e permaneceu vulnerável a críticas posteriores
por dar a impressão de tornar as culturas primitivas
mais místicas do que elas são, e tomando o pensamento
civilizado mais racional do que ele é (Evans-Pritchard,
Lévy-Bruhl's Theory of Mentality). Parece que o pró-
prio Evans-Pritchard foi a primeira pessoa a compreen-
der Lévy-Bruhl Em sua investigação transfere os pro-
blemas por este levantados para um campo mais fru-
tífero. Pois sua análise das crenças em feitiçaria dos
Azandes era exatamente um exercício deste tipo. Foi
o primeiro estudo a descrever um conjunto particular
de representações coletivas c relacioná-las, inteligivel-
mente, às instituições sociais (1937). Muitos estudos
têm, atualmcnte, trilhado Unhas paralelas a este pri-

96
meiro sulco; assim um amplo corpo de análise socioló-
gica das religiões, da Inglaterra e dos Estados Unidos,
tem sustentado as idéias de Durkheim. Digo as idéias de
Durkheim e nãq as de Lévy-Bruhl, de propósito, pois,
na medida em que ele contribuiu com seu ponto de vis-
ta original ao assunto, Lévy-Bruhl mereceu uma justa
crítica. Era sua idéia contrastar a mentalidade primiti-
va com pensamento racional, em vez de se prender ao
problema adumbrado pelo mestre. Se tivesse ficado com
a visão durkheimiana do problema, não teria sido leva-
do ao contraste confuso do pensamento místico com o
científico, mas teria comparado a organização social pri-
mitiva com a complexa organização social moderna, e
teria feito, talvez, alguma coisa útil no sentido de eluci-
dar a diferença entre solidariedade orgânica e mecânica,
entre os dois tipos de organização social que Durkheim
percebeu serem subjacentes às diferenças de crenças.
Desde Lévy-Bruhl, a tendência geral na Inglaterra
tem sido tratar cada cultura estudada como um todo sui
generis, uma adaptação única e mais ou menos bem su-
cedida a um ambiente particular (ver Beattie, 1960, p.
83; 1964, p. 272). A crítica de Evans-Pritchard de que
Lévy-Bruhl tratou as culturas primitivas como se elas
fossem mais uniformes do que elas realmente são, fir-
mou pé. Mas é vital agora retomar este assunto. Não
podemos entender o contágio sagrado a não ser que pos-
samos distinguir uma classe de cultura, na qual as idéias
de poluição floresçam, de outra classe de cultura, in-
cluindo a nossa, na qual elas não florescem. Estudiosos
do Velho Testamento não hesitam em dar vida a suas
interpretações da cultura israelita, comparando-a com as
culturas primitivas. Psicanalistas desde Freud, e metafí-
sicas desde Cassirer não hesitam em traçar comparações
gerais entre nossa civilização presente e outras bem di-
ferentes. Tampouco os antropólogos podem passar sem
semelhantes distinções gerais.
A base correta para a comparação é insistir na uni-
dade da experiência humana e ao mesmo tempo na sua
variedade, nas diferenças que fazem com que a compa-
ração tenha valor. O único caminho para isto é reconhe-
cer a natureza do progresso histórico e a natureza da
sociedade primitiva e moderna. Progresso significa dife-
renciação. Assim, primitivo significa indiferenciado; mo-

97
derno significa diferenciado. Os avanços na tecnologia
envolvem diferenciações cm toda esfera, em técnicas e
materiais, em papéis produtivos e políticos.
Poderíamos, teoricamente, construir um contínuo
tosco ao longo do qual ficariam os diferentes sistemas
econômicos de acordo com o grau cm que tivessem
desenvolvido instituições cconômicas especializadas. Na
maioria das economias indiferenciadas, os papéis no sis-
tema produtivo não são colocados por considerações de
mercado e há poucos trabalhadores especializados ou
artesãos. Um homem faz o trabalho que faz, como parte
do desempenho de seu papel como, digamos, filho, ou
irmão ou chefe da família. O mesmo ocorre nos pro-
cessos de distribuição. Como não há agência de empre-
go, não há supermercado. Os indivíduos recebem suas
partes do produto da comunidade, em virtude de serem
membros dela; sua idade, sexo, posição hierárquica,
relações com os outros. Os padrões de status são grava-
dos por esquemas de prestações obrigatórias, através
das quais são canalizados direitos à riqueza.
Para a comparação econômica, infelizmente, há
muitas sociedades, de pequena escala, baseadas em téc-
nicas primitivas, que não estão organizadas desta ma-
neira, mas sim cm princípios de competição de mercado
(ver Pospisil). Contudo, o desenvolvimento na esfera
política adequa-se muito satisfatoriamente ao padrão que
eu gostaria de introduzir. Não há, na maioria dos tipos
de sociedade de pequena escala, qualquer institu.ição
política especializada. O progresso histórico é marcado
pelo desenvolvimento de diversas instituições jurídicas,
policiais-militares, parlamentares e burocráticas. Logo,
é fácil determinar o que as diferenças internas signi-
ficariam para as instituições sociais.
Aparentemente, o mesmo processo seria observável
na esfera intelectual. Parece improvável que as institui-
ções se diversificariam e proliferariam sem um movi-
mento comparável no reino das idéias. Na verdade, sa-
bemos que isto não acontece. Grandes passos separam o
desenvolvimento histórico dos Hadzas nas florestas da
T anzânia, que jamais ultrapassaram quatro, dos africa-
nos ocidentais que durante séculos calculavam multas e
impostos em milhares de búzios. Aqueles de nós que não
dominamos as técnicas modernas de comunicação, como
a linguagem da matemática ou dos computadores, pode-

98
mos nos colocar na classe dos Hadzas, comparados com
aqueles que se tornaram articulados nestes meios de
comunicação. Conhecemos muito bem o peso educacio-
nal que a nossa civilização carrega na forma de com-
partimentos especializados de aprendizagem. Obviamen-
te, a demanda por habilidades especiais c a educação
para provê-las criam ambientes culturais nos quais cer-
tos tipos de pensamento podem florescer e outros não.
A diferenciação nos padrões de pensamento caminha
junto com condições sociais diferenciadas.
Baseando-se nisto, deveria ser lógico dizer que no
reino das idéias há sistemas diferenciados de pensamen-
to que contrastam com sistemas indiferenciados, e pron-
to. Mas a armadilha está justamente ai. O que poderia
ser mais complexo, diversificado e elaborado do que a
cosmologia dos Dogons? Ou a cosmologia australiana
Murinbata, ou a cosmologia de Sarnoa, ou mesmo a do
Pueblo Hopi ocidental? O critério que estamos procuran-
do não é elaboração ou pura complicação de idéias.
Há somente uma espécie de diferenciação DO pen-
samento que é relevante, e que fornece um critério que
pode ser aplicado, igualmente, a diferentes culturas c à
história de nossas próprias idéias científicas. Este cri-
tério está baseado no princípio kantiano de que o pen-
samento somente se desenvolve livrando-se dos grilhões
de suas próprias condições subjetivas. A primeira revo-
lução copemicaDa, a descoberta de que somente o ponto
de vista subjetivo do homem fazia o sol girar ao redor
da terra, é continuamente renovada. Em nossa própria
cultura, primeiramente a Matemática e depois a Lógica,
agora a História, a linguagem e até os processos de pen-
samento e mesmo o conhecimento de si e da sociedade,
são campos do conhecimento que se livraram, progres-
sivamente, das limitações subjetivas da mente. Na medi-
da cm que a Psicologia, a Sociologia e a Antropologia
são possíveis DO nosso tipo de cultura, este precisa ser
distinguido de outros, aos quais faltam esta autoconsci-
ência e a procura consciente da objetividade.
Radin interpreta o mito Trickster dos índios Winne-
bagos em linhas que servem para ilustrar este ponto.
Aqui está um paralelo primitivo ao tema de Teilhard de
Chardin de que o movimento de evolução tem sido cm
torno de uma crescente complexidade e autoconheci-
mento.

99
a visão de mundo primitiva. Desenvolverei a impressão
de que a visão primitiva de mundo é pessoal e subjetiva,
de que diferentes modos de existência são confusos, de
que as limitações do ser humano não são conhecidas.
Esta é a visão da cultura primitiva que foi aceita por
Tylor e Prazer e que colocaram os problemas de men-
talidade primitiva. Tentarei, então, mostrar que esta
abordagem distorce a verdade.
Primeiramente, esta visão de mundo é antropocên-
trica, no sentido de que as explicações dos eventos re-
pousam nas noções de boa ou má sorte, que são noções
implicitamente subjetivas, egocêntricas na referência.
Neste universo, as forças dos elementos são consideradas
tão dos seres humanos individuais que dificilmente po-
demos falar de um ambiente físico exterior. Cada indi-
víduo traz dentro de si estes laços estreitos com o uni-
verso em que ele está, como o centro de um campo de
força magnético. Os acontecimentos podem ser explica-
dos em termos de ser o que é e fazer o que foi feito.
Neste mundo, faz sentido que o rei do conto de fadas

-
de Thurber proteste contra meteoros cadentes que estão
sendo arremessados contra ele, e Jonas apresentar-se e
confessar que ele é a causa de uma tormenta. O ponto
distintivo aqui não é se se pensa que o motor do uni-
verso é governado por seres espirituais ou por pode-
res impessoais. Isto é pouco relevante. Mesmo os pode-
res, que são considerados como completamente impes-
soais, são tidos como reações diretas ao comportamento
dos indivíduos humanos.
Um bom exemplo de crença em poderes antropo-
cêntricos é a crença dos bosquímanos !Kung em N!ow,
uma força de pensamento responsável pelas condições
meteorológicas, pelo menos na área de Nyae-Nyae da
Botswana. N!ow é uma força impessoal, amoral, defini-
tivamente uma coisa e não uma pessoa. É libertado quan-
do um caçador, que tem uma espécie de constituição
física, mata um animal que tem o elemento correspon-
dente na sua própria constituição. O tempo em vigor
é, a qualquer hora, explicado teolicamente pela com-
plexa interação de diferentes caçadores com diferentes
animais (Marshall). Esta hipótese é atraente e sente-se
que deve ser intelectualmente satisfatória, pois é uma
visão que é, teoricamente, capaz de ser verificada mesmo
que nenhum teste sério fosse praticável.

102
Para ilustrar, mais ainda, o universo antropocêntri-
co, cito o que o padre Tempels diz sobre a filosofia
luba. Ele foi criticado por insinuar que o que ele disse,
autoritariamente, de seu conhecimento íntimo do pensa-
mento luba, aplica-se a todos os Bantos. Mas sus-
peito que, em Unhas gerais, sua visão sobre as idéias
dos Bantos de força vital aplica-se, não somente a todos
os Bantos, mas em escala muito mais ampla. Aplica-se,
provavelmente, a toda gama de pensamento que estou
tentando contrastar com o pensamento diferenciado mo-
derno nas culturas européia e americana.
Para os Lubas, diz ele, o universo criado é centra-
do no homem (pp. 43-45). As três leis de causalidade
vital são:
(1) que um humano (vivo ou morto) pode re-
forçar diretamente ou diminuir o ser (ou força) de ou-
tro humano;
(2) que a força vital de um humano pode influen-
ciar diretamente forças de seres inferiores (animal, ve-
getal ou mineral);
(3) que um ser racional (espírito, humano vivo ou
morto) pode agir indiretamente sobre outro, comunican-
do sua influência vital a uma força intermediária infe-
rior.
H á, certamente, muitas formas diferentes que a
idéia de um universo antropocêntrico pode tomar. Idéias
de como os homens afetam outros homens devem refle-
tir, inevitavelmente, realidades políticas. Assim, em úl-
tima análise, descobriremos que estas crenças no con-
trole centrado no homem sobre o ambiente variam de
acordo com as tendências prevalecentes no sistema po-
lítico (ver Cap. 6). Mas, em geral, podemos distinguir
crenças que sustentam que todos os homens estão igual-
mente envolvidos com o universo, de crenças nos po-
deres cósmicos especiais de indivíduos selecionados. Há
crenças sobre o destino que se aplicam a todos os ho-
mens. Na cultura da literatura homérica, não era o des-
tino de certos indivíduos notáveis que interessava aos
deuses, mas todo e qualquer fado pessoal era entrelaçado
nos joelhos dos deuses e tecido para o bem ou mal com
os destinos dos outros. Só para tomar um exemplo con-
temporâneo, o Hinduísmo ensina hoje, como tem ensi-
nado há séculos, que para cada indivíduo a precisa

103
conjunção dos planetas, no momento de seu nascimento,
significa muito para sua boa ou má fortuna pessoal. Os
horóscopos são para todos. Em ambos os exemplos, em-
bora o indivíduo possa ser advertido pelos adivinhos so-
bre o que está reservado para ele, não pode mudar isto
radicalmente, somente abrandar os fortes golpes, adiar
ou abandonar desejos sem esperança, estar alerta às
oportunidades que aparecerão em seu caminho.
Outras idéias sobre o modo como a sorte do indi-
víduo está ligada com o cosmos podem ser mais fle-
xíveis. Em muitas partes da África Ocidental de hoje,
o indivíduo é tido como uma personalidade complexa,
cujas partes componentes agem como pessoas separadas .
Uma parte da personalidade declara o curso da vida do
indivíduo antes de ele nascer. Depois do nascimento, se
o indivíduo luta pelo sucesso numa esfera declarada ad-
versa, seus esforços serão sempre em vão. Um adivinho
pode diagnosticar este destino declarado como causa de
suas falhas e pode então exorcizar sua escolha pré-natal.
A natureza de seu insucesso predestinado, que um ho-
mem deve ter em conta, varia de uma sociedade oeste-
-africana para outra. Entre os Tallensis, no interior de
Gana, a personalidade consciente é considerada como
amável e não-competitiva. Seu elemento inconsciente,
que proclamou seu destino antes do nascimento, está su-
jeito a ser diagnosticado como superagressivo e compe-
tidor, e, assim, faz com que ele seja um desajustado num
sistema de status controlados. Por contraste os Ijos do
delta do Níger, cuja organização social é fluida e compe-
titiva, consideram o componente consciente do eu como
cheio de agressão, desejoso de competir e se sobressair.
Neste caso, é o eu inconsciente que p<>de ser predes-
tinado ao insucesso porque ele escolhe a obscuridade e
a paz. A adivinhação pode descobrir a discrepância de
fins numa pessoa, e o ritual pode consertar isto (Fortes,
1959; Horton, 1961).
Esses exemplos apontam outra carência de diferen-
ciação na visão de mundo pessoal. Vimos acima que o
ambiente físico não é claramente pensado em termos se-
parados, mas somente com referência aos destinos dos
próprios humanos. Podemos agora ver que o eu não
está claramente separado como um agente. A extensão e
limites de sua autonomia não estão definidos. Logo, o
universo faz parte do eu num sentido complementar,

104
visto do ângulo da idéia do indivíduo, desta vez não da
natureza, mas dele mesmo.
As idéias dos Tallensis e dos Ijos sobre as múltiplas
personalidades guerreiras no eu parecem ser mais dife-
renciadas do que a idéia homérica. Nessas culturas da
África Ocidental, as palavras imperiosas do destino são
declaradas pelo próprio indivíduo. Uma vez que ele saiba
o que fez, pode repudiar sua escolha anterior. Na Gré-
cia antiga, o eu era visto como uma vítima passiva de
agentes exteriores:
Em Homero, fica-se atónito com o fato de que seus he-
róis, com toda sua magnífica vitalidade e atividade, sentem-se
a toda hora, não agentes livres, mas sim instrumentos passivos
ou vítimas de outros poderes. . . um homem sentiu que não
poderia evitar suas próprias emoções. Uma idéia, uma emoção,
um impulso veio até ele; ele agiu e em breve alegrou-se ou se
lamentou. Algum deus o havia inspirado ou cegado. Ele pros-
perou, então ficou pobre, talvez escravizado; debiliLOu-se com
doença, ou morreu cm batalha. Fora ordenado pelos deuses,
seu quinhão lhe fora destinado há muito. O profeta ou adivinho
poderia descobri-lo an tecipadamente; o simples homem sabia al-
guma coisa sobre presságios e simplesmente vendo sua lança
atingir seu alvo ou vendo seu inimigo triunfar, concluiu que
Zeus havia prescrito fracasso para si e seus camaradas. Não
esperou para continuar a lutar; fugiu (Qnians, 1951, p. 302).

Diz-se que os Dinkas pastoris, que vivem no Sudão


não distinguem igualmente o eu como fonte independente
de ação ou de reação. Não refletem no fato de que eles
mesmos reagem com sentimentos de culpa e ansiedade e
que esses sentimentos iniciam outros estados mentais.
O eu age sobre emoções que eles apresentam como po-
deres e.xternos, seres espirituais que causam infortúnios
de vários tipos. Assim, numa tentativa de fazer justiça à
complexa realidade da interação do eu consigo mesmo,
o universo dinka é povoado com perigosas extensões
pessoais do eu. Isto é quase exatamente a maneira como
Jung descreve a visão de mundo primitiva, quando diz:
Uma porção ilimitada do que hoje consideramos uma parte
integral de nosso próprio ser psíquico, no caso do primitivo
di verte-se alegremente em projeçõcs que vão longe (p. 74).

Dou mais um exemplo de um mundo no qual todos


os indivíduos são vistos como ligados pessoalmente com
o cosmos, para mostrar quão variadas estas ligações po-
dem ser. A cultura chinesa é dominada pela idéia de

105
harmonia no universo. Se um indivíduo pode dispor-se
a assegurar o mais harmonioso relacionamento possível,
ele pode esperar boa sorte. O infortúnio pode ser atri-
buído a uma carência exatamentc dessa feliz disposição.
A influência das águas e ares, chamada Peng Shui, trará
sorte a ele se sua casa e as sepulturas de seus ances-
trais estiverem bem localizados. Geomantes profissio-
nais podem adivinhar as causas de seu infortúnio e po-
dem, então, rearranjar sua casa ou suas sepulturas pa-
rentais para que fiquem com melhor aspecto. O Dr.
Freedman, em seu livro de 1966, sustenta que a geo-
mancia tem um lugar importante nas crenças chinesas ao
lado da adoração aos ancestrais. A sorte, que o homem
pode manipular com habilidades geomânticas, não tem
implicações morais; mas, em última análise, deve ser
reconciliada com a recompensa ao mérito, a qual, no
mesmo conjunto de crenças, é dada pelo céu. Finalmen-
te, então, todo o universo é interpretado como ligado,
em seu funcionamento, às vidas das pessoas humanas.
Alguns indivíduos têm mais sucesso em lidar com Peng
Shui do que outros, assim como para alguns gregos é
decretada uma sorte mais esplêndida, e é pronunciado
um destino com mais possibilidades de sucesso para al-
guns africanos ocidentais.
Algumas vezes são somente indivíduos marcados e
não todos os humanos que são significantes. Tais indi-
víduos marcados carregam os homens inferiores na sua
esteira, seja seus dons para a boa ou a má sorte. Para
o homem da rua, não dotado, o problema prático é es-
tudar as pessoas e descobrir quais dentre elas deve evitar
ou seguir.
Em todas as cosmologias que temos mencionado até
agora considera-se que o destino dos indivíduos é afc-
tado por poderes herdados por eles ou por outros hu-
manos. O cosmos é voltado, por assim dizer, para o ho-
mem. Sua energia transformadora entremeia a vida dos
indivíduos de tal modo que nada acontece em termos
de tempestades, doenças, pestes ou secas, a não ser em
virtude dessas ligações pessoais. Logo, o universo está
centrado no homem, no sentido de que deve ser inter-
pretado com referência aos humanos.
Mas há ainda um sentido totalmente diferente no
qual a visão de mundo indiferenciada do primitivo pode
ser descrita como pessoal. As pessoas são essencial-

106
mente não-coisas. Elas têm querer e inteligência. Com
seu querer elas amam, odeiam e reagem emocionalmen-
te. Com sua inteligência, interpretam signos. Mas, no
tipo de universo que estou contrastando com nossa vi-
são de mundo, as coisas não são claramente distintas
das pessoas. Certos tipos de comportamento caracteri-
zam as relações interpessoais. Primeiramente, as pessoas
comunicam-se entre si através de símbolos em seu dis-
curso, gestos, ritos, dádivas e assim por diante. Em se-
gundo, elas reagem a situações morais. Por mais im-
pessoalmente que as forças cósmicas possam ser defi-
nidas, se elas respondem a um estilo de tratamento
pessoa a pessoa, a sua qualidade de coisa não está ple-
namente diferenciada de suas personalidades. Elas po-
dem não ser pessoas mas não são, tampouco, inteira-
mente coisas.
Aqui está uma armadilha a se evitar. Algumas ma-
neiras de falar sobre as coisas podem parecer, ao ob-
servador ingênuo, que impliquem personalidade. Nada
pode ser inferido, necessariamente, sobre crenças, a par-
tir de distinções ou confusões puramente lingüísticas. Por
exemplo, um antropólogo marciano pode chegar a uma
conclusão errada ouvindo por acaso um encanador in-
glês pedir a sua companheira o macho e a fêmea da
tomada. Para evitar cair em armadilhas lingüísticas, con-
fino meus interesses ao tipo de comportamento que, su-
põe-se, produza uma reação a forças presumivelmente
impessoais.
Pode não ser de todo relevante aqui que os bos-
químanos Nyae-Nyae atribuam caracteres femininos e
masculinos às nuvens, como não é relevante que use-
mos "ele" para carros e barcos. Mas, pode ser relevante
que os pigmeus da floresta Ituri, quando ocorre algo de
mais, digam que a floresta está de mau humor e tenham o
trabalho de cantar a noite inteira para ela, para abran-
dá-la e que eles esperem, então, que seus negócios pros-
perem (TumbuU). Nenhum mecânico europeu em per-
feito juízo esperaria curar um problema de motor com
serenata ou maldição.
Logo, aqui está uma outra maneira pela qual o
universo primitivo, indiferenciado, é pessoal. Espera-se
que ele se comporte como se fosse inteligente, reagindo
a símbolos, gestos, signos, dádivas, e como se ele pu-
desse discernir entre os relacionamentos sociais.

107
O exemplo mais óbvio da idéia de que os poderes
impessoais são receptivos à comunicação simbólica é a
crença na feitiçaria. O feiticeiro é o mágico que tenta
transformar o caminho dos eventos através de decretos
simbólicos. Pode usar gestos ou palavras simples em
feitiços ou encantamentos. Agora, as palavras são o mo-
do próprio de comunicação entre as pessoas. Se há uma
idéia de que palavras ditas corretamente são essenciais
à eficácia da ação, então, embora a coisa dita não possa
retrucar, há uma crença num tipo limitado de comuni-
caçãq verbal unilateral. E esta crença obscurece o status
claro da coisa que está sendo falada. Um bom exemplo
é o veneno usado para a detecção oracular das bruxas
na terra Zande (Evans-Prltchard, 1937). Os próprios
Azandes preparam o veneno da casca de uma árvore.
Não se diz que é uma pessoa mas sim uma coisa. Eles
não supõem que exista um homenzinho dentro do oráculo
que o opere. Todavia, para que o oráculo funcione, o ve-
neno deve ser comunicado em voz alta, e a comunicação
deve colocar a questão inequivocamente e, para eliminar
erro de interpretação, a mesma questão deve ser coloca-
da na forma inversa 'lla segunda rodada de consulta. Nes-
te caso, o veneno não somente ouve e entende as pala-
vras, mas tem poderes de réplica limitados. Ou ele
mata a galinha ou não. Somente dá respostas positi-
vas ou negativas. Não pode iniciar uma conversa ou
conduzir uma entrevista desestruturada. Mas esta limita-
da receptividade às perguntas modifica, radicalmente,
seu status de coisa no universo azande. Não é um ve-
neno comum mas muito mais um entrevistador cativo
preenchendo um questionário, com cruzes e sinais.
The Golden Bough está repleto de exemplos de
crença num universo impessoal o qua1, todavia, escuta
um discurso e reage a ele de uma ou outra maneira.
Do mesmo modo são os relatos de trabalho de campo
modernos. Diz Stanoer:
A maioria do coro e dos equipamentos no céu e na terra
são considerados pelos aborígines como um vasto sistema de
signos. Qualquer pessoa que, compreensivamente, andou nas
matas australianas com companheiros aborígines torna-se co-
nhecedor do fato. Ele se move, não na paisagem, mas num
reino humanizado saturado de significações.
Finalmente existem crenças que implicam que o
universo impessoal tem discernimento. Ele pode discer-

108
nir entre finas nuanças nas relações sociais, tais como se
os pares numa relação sexual são aparentados em graus
proibidos, ou entre nuanças ainda mais finas tais como
se um assassinato foi cometido em u'm companheiro da
tribo ou cm um estranho, ou se uma mulher é casada ou
não. Ou ele poder discernir emoções secretas ou escon-
didas no coração dos homens. Há muitos exemplos de
discernimento que implicam status social. Os caçadores
cheyennes pensavam que os búfalos, que forneciam sua
subsistência, eram afetados pelo cheiro desagradável de
um homem que havia matado um companheiro da tribo,
e eles então fugiam, colocando assim em perigo a sobre-
vivência da tribo. Não se supunha que o búfalo reagisse
ao cheiro do assassinato de um estrangeiro. Os aborí-
gines australianos de Arnhemland concluem suas ceri-
mônias de fertil idade e iniciação com copulação cerimo-
nial, acreditando que o rito é mais eficaz se a relação
sexual se der entre pessoas que, em outras ocasiões,
são estritamente proibidas (Berndt, p. 49). Os Lcles
acreditam que um adivinho, que teve uma relação sexual
com a esposa de seu paciente, ou cujo paciente teve
relação sexual com a esposa do adivinho, não pode
curá-lo, porque o remédio, ao invés de curá-lo, o ma-
taria. Este efeito não depende de qualquer intenção ou
conhecimento da parte do médico. O próprio medica-
mento reage desta maneira discriminatória. Além disso,
os Leles acreditam que se uma cura é efetuada e o pa-
ciente omite o pronto pagamento dos serviços do mé-
dico isto resultará numa recaída ou até numa compli-
cação mais fatal da doença. Dessa maneira, acredita-se,
implicitamente, que o medicamento lele pode discernir
a dívida tanto quanto o adultério secreto. Ainda mais
inteligente é a magia de vingança comprada peJos Azan-
des, que detecta sem erros o feiticeiro responsável por
uma dada morte, e faz justiça capital contra ele. Assim,
elementos impessoais no universo são creditados com
discriminação, o que os habilita a intervir nos assuntos
humanos e sustentar o código moral.
Nesse sentido, o universo é aparentemente capaz
de fazer julgamentos sobre o valor moral das relações
humanas e agir conformemente. Malweza, entre os Ta n-
gas do Plateau, em Zâmbia, é um infortúnio que aflige
aqueles que cometem certas ofensas específicas contra o
código moral. Estas ofensas são, em geral, do tipo

109
contra as quais as sanções punitivas comuns não podem
ser aplicadas. Por exemplo, o homicídio dentro do gru-
po de parentes m~trilineares não pode ser vingado por-
que o grupo é organizado para vingar o assassino de
seus membros por estrangeiros (Colson, p. 107). Mal-
weza pune as ofensas que são inacessíveis às sanções
comuns.
Em suma, uma visão primitiva de mundo dá para
um universo que é pessoal em vários sentidos diferen-
tes. As forças físicas são consideradas como entrelaça-
das com as vidas das pessoas. As coisas não são com-
pletamente distintas das pessoas e as pessoas não são
completamente distintas de seu ambiente externo. O uni-
verso reage ao discurso e à mímica. Discerne a ordem
social e intervém para mantê-la.
Fiz o possível para extrair dos relatos das culturas
primitivas uma lista de crenças que implicam uma ca-
rência de diferenciação. Os materiais que utilizei estão
baseados em modernos trabalhos de campo. Porém, o
quadro geral concorda de perto com aquele aceito por
Tylor ou Marett, em suas discussões sobre animismo
primitivo. São crenças do tipo das quais Prazer inferiu
que a mente primitiva confundia suas experiências subje-
tivas e objetivas. São as mesmas crenças que levaram Lé-
vy-Bruhl a refletir sobre o modo como as representa-
ções coletivas impunham um princípio seletivo à inter-
pretação. Toda a discussão sobre estas crenças tem sido
assombrada por obscuras implicações psicológicas.
Se estas crenças são apresentadas como o resulta-
do de tantas falhas em discriminar corretamente, elas
evocam, em grau surpreendente, os esforços desajeita-
dos das crianças em dominar o seu ambiente. Se segui-
mos Klein ou Piaget, o tema é o mesmo: confusão de
interno e externo, de coisa e pessoa, ser e ambiente,
signo e instrumento, discurso e ação. Tais confusões
podem ser estágios necessários e universais, na passa-
gem do caótico para o individual, da experiência indife-
renciada da infância para a maturidade moral e inte-
lectual.
Logo, é importante apontar novamente, como já foi
dito freqüentemente, que estas conexões entre pessoas e
eventos, que caracterizam a cultura primitiva, não deri-
vam da falha em diferenciar. Nem mesmo expressam,

110
necessariamente, os pensamentos dos indivíduos. ~ bem
possível que membros individuais destas culturas susten-
tem muitos pontos de vista divergentes _sobre cosmologia.
Vansina relembra, afetivamente, três pensadores bem
independentes, que ele encontrou entre os Bushongs,
os quais gostavam de explicar suas filosofias pessoais
para ele. Um velho chegara à conclusão de que não ha-
via realidade, que toda experiência é uma ilusão move-
diça. O segundo desenvolveu um tipo numerológico de
metafísica, e o último desenvolvera um esquema cosmo-
lógico de grande complexidade, o qual ninguém enten-
dia a não ser ele ( 1964). f: um erro pensar em idéias co-
mo destino, feitiçaria, mana, magia, como parte de fi-
losofias, ou mesmo como sistematicamente pensadas.
Elas não estão apenas ligadas a instituições, como disse
Evans-Pritehard, mas elas são instituições - exala-
mente como o Habeas-Corpus ou a véspera de Todos
os Santos. São todas partes componentes da crença ou
da prática. Não seriam lembradas nas etnografias se não
houvessem práticas a elas vinculadas. Como outras ins-
tituições, são resistentes à mudança e sensíveis a fortes
pressões. Os indivíduos podem mudá-las negligenciando-
as ou interessando-se por elas.
Se lembrarmos que existe um interesse prático em
viver e não um interesse acadêmico em metafísica que
produziu estas crenças, todo o seu significado se altera.
Perguntar a um Azande se o oráculo venenoso é uma
pessoa ou uma coisa é o mesmo que perguntar algo sem
sentido, que ele nunca pensaria em se questionar. O fato
de ele se comunicar com o oráculo venenoso em pala-
vras não implica qualquer confusão em sua mente entre
coisas e pessoas. Significa, somente, que ele não está em-
penhado na coerência intelectual e que, neste campo, a
ação simbólica parece apropriada. Ele pode expressar a
situação como ele a vê, por discurso e mímica, e esses
elementos rituais tornaram-se incorporados numa técni-
ca, a qual, para muitas intenções e fins, é como pro-
gramar um problema através de um computador. Penso
que isto seja uma afirmação de Radin (1927) e de
Gellner ( 1962) quando ele menciona a função social
de incoerências nas doutrinas e conceitos.
Robertson Smith foi o primeiro a tentar desviar a
atenção das crenças consideradas como tais para as prá-
ticas associadas a elas. E muitos outros testemunhos

111
a partir daí criticaram a limitação estritamente prática na
curiosidade dos indivíduos. Isto não é uma peculiaridade
da cultura primitiva. ~ verdade de "nós" bem como
"deles", pois "nós" não somos filósofos profissionais.
Como homem de negócios, fazendeiro, dona-de-casa,
nenhum de nós tem tempo ou inclinação para desen-
volver uma metafísica sistemática. Nossa visão de mu~­
do foi alcançada gradativamente em resposta a nossos
problemas práticos particulares.
Discutindo as idéias azandes sobre feitiçaria, Evans-
-P ritchard, insiste na concentração da curiosidade na
singularidade de um evento individual. Se um celeiro ve-
lho e podre desaba e mata alguém sentado em sua som-
bra, o evento é atribuído à bruxaria. Os Azandes admi-
tem livremente que é da natureza dos celeiros velhos e
podres caírem, e admitem que se uma pessoa senta-se
por várias horas sob sua sombra, dia após dia, pode ser
esmagada quando ele cair. A regra geral é óbvia e não
um campo interessante para a especulação. A questão
que os interessa é a emergência de um único evento
do ponto de encontro de duas seqüências separadas. Há
muitas horas ninguém estava sentado sob o celeiro c
ele poderia ter caído sem danos, sem matar ninguém.
Há muitas horas outras pessoas estavam sentadas por
ali, que poderiam ter sido vítimas quando ele caísse,
mas aconteceu que elas não estavam lá. O problema fas-
cinante é por que deveria ele cair justamente quando
caiu, justamente quando este ou aquele e mais ninguém
estava sentado lá. As regularidades gerais da natureza
são observadas com exatidão e cuidadosamente para as
exigências técnicas da cultura azande. Mas quando a
informação técnica se esgota, a curiosidade toma lugar
para focalizar o envolvimento de uma pessoa particular
com o universo. Por que isto tinha que acontecer com
ele? O que ele pode fazer para prevenir-se contra o in-
fortúnio? .e. culpa de alguém? Isto se aplica, certamen-
te, a uma visão de mundo teísta. Como com bruxaria,
somente certas questões são respondidas com referência
aos espíritos. A seqüência regular das estações, a relação
da nuvem com a chuva e a chuva com a colheita, da seca
com a epidemia e assim por diante, é reconhecida. Elas
são tidas como dadas, assim como u m pano de fundo
contra o qual problemas mais pessoais e urgentes possam
ser resolvidos. As questões vitais em qualquer visão de

112
mundo teísta são as mesmas para os Azandes: por que a
safra deste fazendeiro não foi boa e as de seus vizinhos
foram? Por que este homem foi chifrado por um búfalo
selvagem e não um outro de seu grupo de caça? Por que
as crianças ou as vacas deste homem morreram? Por que
cu? Por que hoje? O que se pode fazer? Estas demandas
insistentes por explicação são focalizadas no interesse
do indivíduo por ele mesmo e por sua comunidade. Sabe-
mos agora o que Durkheim sabia, e o que Frazer, Tylor
c Marett não. Estas perguntas não são formuladas basi-
camente para satisfazer a curiosidade do homem sobre
as estações e o resto do ambiente natural. São formula-
das para satisfazer um interesse social domjoaote, o pro-
blema de como se organizar coletivamente em socieda-
de. Elas somente podem ser respondidas, é verdade, em
termos do lugar do homem na natureza. Mas a metafí-
sica é por assim dizer, um subproduto do interesse prá-
tico urgente. O antropólogo que traça todo o tema do
cosmos implícito nessas práticas faz uma violência muito
grande à cultura primitiva, se ele parece apresentar a
cosmologia como uma filosofia sistemática consentida,
conscientemente, pelos indivíduos. Podemos estudar
nossa cosmologia - num departamento especializado da
Astronomia. Mas as cosmologias primitivas não podem
ser imobilizadas para exibição como uma lepidóptera
exótica, sem distorção da natureza da cultura primitiva.
Os problemas técnicos, numa cultura p rimitiva, foram
mais ou menos solucionados pelas gerações passadas. O
assunto em questão é como organizar outras pessoas e
nós mesmôs em relação a elas; como controlar a juven-
tude turbulenta, como acalmar vizinhos descontentes,
como obter os direitos de alguém, como evitar a usurpa-
ção da autoridade, ou como justificá-la. Todas as espé-
cies de crença na onisciência e onipotência do ambiente
são chamadas para atuar, a frro de servir a estes fins so-
ciais práticos. Se a vida social, numa determinada comu-
nidade, estabeleceu-se numa forma constante qualquer,
os problemas sociais tendem a aparecer nas mesmas
áreas de tensão ou conflito. E assim, como parte da ma-
quinaria para resolvê-los, essas crenças sobre punição
automática, destino, vingança dos espíritos e feitiçaria,
cristalizam-se nas instituições. Assim, a visão de mundo
primitiva que defini acima é, raramente, em si, um obje-
to de contemplação c especulação na cultura primitiva.

113
Desenvolveu-se como o apanágio de outras instituições
sociais. Neste sentido, é produzida indiretamente, c
neste sentido a cultura primitiva deve ser considerada
não-ciente de si mesma, inconsciente de suas próprias
condições.
No curso da evolução social, as instituições proli-
feram e se especializam. O movimento é um movimento
duplo no qual um aumento de controle social possibilita
maiores desenvolvimentos técnicos e abre, mais tarde,
caminho para um controle social maior ainda. Finalmen-
te, encontramo-nos no mundo moderno, onde a inter-
dependência econômica foi levada ao mais alto grau já
alcançado pelo ser humano. Um subproduto inevitável
da diferenciação social é a consciência social, autocons-
ciência dos processos da vida comunal. E junto com a
diferenciação vão formas especiais de coerção social, in-
centivos monetários especiais para levar à conformidade,
tipos de sanções punitivas especiais, polícia especializa-
da e superintendentes e homens progressistas examinan-
do cuidadosamente nossas realizações, e assim por dian-
te; toda uma parafernália de controle social, inconce-
bíveis em condições econômicas indiferenciadas em me-
nor escala. Esta é a experiência de solidariedade orgâ-
nica que torna tão difícil para nós interpretar os es-
forços dos homens, numa sociedade primitiva, para su-
perar as fraquezas de sua organização social. Sem for-
mulários preenchidos em três vias, sem 1icenças e passa-
portes e rádio-patrulhas, eles têm que, de alguma ma-
neira, criar uma sociedade e obrigar os homens e mu-
lheres às suas normas. Espero ter mostrado por que
Lévy-Bruhl estava errado ao comparar um tipo de pen-
samento com outro, ao invés de comparar instituições
sociais.
Podemos ver também por que os crentes cristãos,
muçulmanos e judeus, não devem ser classificados como
primitivos, no tocante a suas crenças. Nem, necessaria-
mente, os hindus, budistas ou mórmons. E verdade que
suas crenças são desenvolvidas para responder às ques-
tões "Por que isto aconteceu comigo? Por que agora?"
e assim por diante. E verdade que seu universo está cen-
trado no homem e 6 pessoal. Talvez, concebendo ques-
tões absolutamente metafísicas, estas religiões possam
ser tidas como instituições anômalas no mundo mo-
derno. Pois os incrédulos podem deixar esses problemas

114
de lado. Mas isto em si mesmo não faz dos crentes
promontórios da cultura primitiva projetando-se estra-
nhamente, no mundo moderno. Pois suas crenças têm
sido expressas e reexpressas a cada século, e cortadas as
suas inter-relações com a vida social. A história européia
da retirada eclesiástica da política secular e dos pro-
blemas intelectuais seculares para esferas especializadas
religiosas é a história de todo este movimento do pri-
mitivo para o moderno.
Finalmente, deveríamos reviver a questão de se a
palavra "primitivo" deveria ser abandonada. Espero que
não. Ela tem um sentido definido e respeitado em arte.
Pode dar um significado válido para a tecnologia e pos-
sivelmente para a economia. Qual é a objeção em se
dizer que uma visão de mundo pessoal, antropocêntrica,
indüerenciada, caracteriza uma cultura primitiva? A úni-
ca fonte de objeção poderia ser quanto à noção de que
ela tem um sentido pejorativo em relação às crenças re-
ligiosas, o que não ocorre em tecnologia e arte. Nisto
pode haver algo para uma certa parte do mundo de
língua inglesa.
A idéia de uma economia primitiva é Ugeiramente
romântica. É verdade que nós estamos do ponto de vista
material e técnico, incomparavelmente, melhor equipa-
dos, mas ninguém basearia, francamente, uma distin-
ção cultural em bases puramente materialistas. Os fatos
de pobreza e riqueza relativas não estão em questão. Mas
a idéia da economia primitiva é do tipo que lida com
bens e serviços sem a intervenção do dinheiro. Assim,
os primitivos têm uma vantagem sobre nós; eles enfren-
tam sua realidade económica diretamente, enquanto nós
estamos sendo sempre desviados de nosso curso pelo
comportamento complicado, imprevisível e independen-
te do dinheiro. Mas, nestas bases, no que diz respeito à
economia espiritual, parecemos levar vantagem. Pois,
suas relações com o ambiente externo são mediadas por
demónios e espectros, cujo comportamento é complicado
e imprevisível, enquanto enfrentamos nosso meio am-
biente de maneira mais simples e direta. Esta última
vantagem, nós a devemos à nossa riqueza e progresso
material, o qual tornou possível outros desenvolvimen-
tos. Assim sendo, nesta estimativa, o primitivo está, em
última instância, em desvantagem tanto no campo eco-

115
nomtco como no espiritual. Aqueles que sentem esta
superioridade dupla estão naturalmente inibidos de os-
tentá-la e, presumivelmente, aí está por que eles pre-
ferem não distinguir de modo algum a cultura primitiva.
Os europeus continentais não parecem ter seme-
lhante melindre. Le primitif desfruta de honra nas pá-
ginas de Lienhardt, Lévi-Strauss, Ricoeur e Eliade. A
única conclusão a que posso chegar é de que eles não
est'ão secretamente convencidos de superioridade e são
apreciadores intensos de outras formas de cultura que
não as suas próprias.

116
6. PODERES E PERIGOS

Admitindo-se que a desordem estraga o padrão, ela


também fornece os materiais do padrão. A ordem im-
plica restrição; de todos os materiais possíveis, uma li-
mitada seleção foi feita e de todas as possíveis rela-
ções foi usado um conjunto limitado. Assim, a desordem
por implicação é ilimitada, nenhum padrão é realizado
nela, mas é indefinido seu potencial para padronização.
Daí por que, embora procuremos criar ordem, nós sim-
plesmente não condenamos a desordem. Reconhecemos
que ela é nociva para os modelos existentes, como tam-
bém que tem potencialidade. Simboliza tanto perigo
quanto poder.
O ritual reconhece a potência da desordem. Na de-
sordem da mente, nos sonhos, desmaios, frenesis, o ri-
tual espera poder descobrir poderes e verdades que não
podem ser alcançados através de esforço consciente. A
energia para comandar e poderes especiais de cura

117
vêm àqueles que podem abandonar o controle racional
por um tempo. Algumas vezes um ilhéu andamanês
deixa seu bando e vagueia como um louco na floresta.
Quando ele retorna ao seu juízo e à sociedade humana,
ganhou um oculto poder de cura (Radcliffe Brown,
1933, p. 139). Esta é uma idéia bastante comum, larga-
mente testemunhada. Wesbter num capítulo de seu li-
vro sobre como se faz um mágico (Magic: a Sociological
Study), dá muitos exemplos. Eu também referi-me aos
Ebanzu, uma tribo na região central da Tanzânia, onde
uma das maneiras conhecidas de adquirir uma habilidade
de adivinho é andar loucamente na floresta. Virgínia
Adam, que trabalhava nesta tribo, contou-me que o ci-
clo ritual deles culminava no ritual anual da chuva.- Se
no tempo esperado não havia chuva, as pessoas suspei-
tavam de feitiçaria. Para invalidar o seus efeitos, pega-
vam um tolo e mandavam-no vagar pelo bosque. Du-
rante o curso de sua andança, ele, sem saber, destrói o
trabalho do feiticeiro.
Nessas crenças há um duplo jogo de inarti.culações.
Primeiro, há uma ªSentura pelas regiões desordenadas
da mente. Segundo, há uma aventura além dos limites
da sociedad~. O homem que retorna dessas regiões ina-
cessíveis traz consigo um poder inacessível àqueles que
tenham permanecido sob o controle de si mesmos e da
sociedade.
Este jogo ritual de formas articuladas e inarticula-
das é crucial para o entendimento da poluição. No ri-
tual, a forma é tratada como se estivesse imbuída de
poder para manter-se em vida, porém sempre sujeita a
atacar. O disforme é também creditado com poderes, al-
guns perigosos e alguns bons. Vimos como as abomi-
nações do Levítico são os inclassificáveis e obscuros
elementos que não se ajustam ao padrão do cosmos.
São incompatíveis com a santidade e a bênção. O jogo
da forma e do disforme é ainda mais claro nos rituais da
sociedade.
Primeiramente, considerem-se as crenças sobre pes-
soas em situação marginal. Estas são pessoas que estão
de algum modo excluídas do padrão social, que estão
deslocadas. Podem não estar fazendo nada de moral-
mente errado, mas seu status é indefinível. Tomemos,
por exemplo, um feto. Sua presente posição é ambígua,

118
igualmente seu futuro. Pois ninguém pode dizer de que
sexo ele será ou se sobreviverá aos riscos da infância.
Ele é freqüentemente tratado como vulnerável e peri-
goso. Os Leles encaram o feto e sua mãe como em
constante perigo, mas também creditam ao feto uma má
vontade caprichosa que o torna um perigo para os ou-
tros. Quando grávida, uma mulher lele tenta não se
aproximar de pessoas doentes para que a proximidade
da criança em seu ventre não piore a tosse ou febre.
Entre os Nyakyusas uma crença similar é notada.
Consideram que uma mulher grávida reduz com sua
aproximação a quantidade de cereais, porque o feto é
voraz e os arrebata. Ela não deve falar às pessoas que
estão ceifando ou preparando uma bebida fermentada,
sem primeiro fazer um gesto ritual de benevolência para
cancelar o perigo. Eles falam do feto "de queixo caído",
arrebatando comida, c explicam-no pela luta inevitável
da "semente de dentro" com a "semente de fora".
A criança no ventre... é como uma bruxa; como tal
ela prejudica a comida; a cerveja é estragada e tem sabor
desagradável; a plantação não cresce; não é fácil trabalhar o
ferro; o leite não é bom.

Mesmo o pai é posto em perigo na guerra ou na


caçada por sua mulher grávida (Wilson, 1957, pp.
138-139).
Lévy-Bruhl notou que o sangue menstrual e o abor-
to atraem algumas vezes a mesma espécie de crença.
Os Maoris consideram o sangue menstrual como uma es-
pécie de ser humano manqué. Se o sangue não fluísse
teria se tornado uma pessoa; tem por isso o status im-
possível de uma pessoa morta que nunca viveu. Ele
citou uma crença comum de que um feto nascido prema-
turamente tem um espírito malévolo, perigoso para os
vivos (pp. 390-396). Lévy-Bruhl não generalizou que o
perigo está na posição marginal, mas Van Gennep teve
mais perspicácia sociológica. Viu a sociedade como uma
casa com salas e corredores em que a passagem de um
para outro é perigosa. O perigo está nos estados de
transição, simplesmente porque a transição não é nem
um estado nem o seguinte, é indefinível. A pessoa que
tem de passar de um a outro, está ela própria em perigo
e o emana a outros. O perigo é controlado por um ritual
que precisamente a separa do seu velho status, a segre-

119
ga por um tempo e, então publicamente declara seu in-
gresso no novo status. Não somente a transição em si
é perigosa, mas também os rituais de segregação consti-
tuem a fase mais perigosa dos ritos. Assim, freqüente-
mente, lemos que rapazes morrem cm cerimônias de
iniciação ou que suas irmãs e mães são instruídas a re-
cear por sua segurança, ou que costumavam em dias
passados morrer de sofrimento ou de pavor, ou por pu-
nição sobrenatural por suas más ações. Vêm então, meio
de mansinho, os relatos de cerimônias reais que são tão
seguras que as ameaças de perigo soam como uma brin-
cadeira (Vansina, 1955). Mas podemos ter certeza de
que o perigo forjado expressa alguma coisa importante
sobre a marginalidade. Dizer que os rapazes arriscam
suas vidas é o mesmo que dizer que sair da estrutura for-
mal e entrar nas margens é ser exposto ao poder que
é suficiente para os matar ou fazê-los ·adultos. Natural-
mente o tema da morte e renascimento tem outras fun-
ções simbólicas: os iniciados morrem para a vida passa-
da e renascem para a nova. Todo o repertório de idéias
concernentes à poluição e à purificação é usado para
marcar a gravidade do evento e o poder do ritual para
refazer um homem - isto é constante.
Durante o período marginal que separa a morte ri-
tual e o renascimento ritual, os noviços em iniciação são
temporariamente proscritos. No decorrer do rito eles não
têm lugar na sociedade. Algumas vezes vão realmente
viver longe, fora da sociedade. Outras vezes vivem perto
o suficiente para que contactos não previstos ocorram
entre os seres sociais plenos e os proscritos. Então acha-
mo-los comportando-se como tipos de índole criminal e
perigosa. São autorizados a assaltar, roubar e saquear.
Este comportamento é até prescrito a eles. Comportar-se
anti-socialmcnte é a expressão própria de sua condição
marginal (Webster, 1908, Cap. 3). Ter estado nas mar-
gens é ter estado em contacto com o perigo, é ter ido
à fonte do poder. E compativel com as idéias de forma
e falta de forma tratar iniciantes que saem da reclusão
como se fossem eles próprios impregnados de poder,
perigo e calor, e que requerem, por isso, isolamento
e um tempo para arrefecer. A sujeira, obscenidade e ile-
galidade são tão simbolicamente relevantes para os ritos
de reclusão como outras expressões rituais de sua con-
dição. Eles não devem ser censurados por sua má con-

120
duta, tal como não se deve censurar o feto no ventre
por seu rancor e gula.
Parece que se uma pessoa não tem lugar num
sistema social, sendo, por conseguinte, marginal, toda
precaução contra o perigo deve partir dos outros. Ela
não pode evitar sua situação anormal. Isto é aproxima-
damente como nós próprios olhamos pessoas marginais
num contexto secular, e não ritual. Assistentes sociais,
em nossa sociedade, interessados no cuidado posterior de
ex-prisioneiros relataram a dificuldade de recolocá-los
em empregos estáveis, dificuldade que vem da atitude da
sociedade em geral. Um homem que tenha passado al-
gum tempo "engaiolado" é posto permanentemente "fo-
ra" do sistema social normal. Sem haver nenhum rito de
agregação que possa definitivamente levá-lo para uma
nova posição, ele permanece à margem com outras pes-
soas vistas igualmente como indóceis, indignas de con-
fiança, portadoras de todas as atitudes sociais errôneas.
O mesmo acontece com pessoas que são internadas em
instituições de tratamento de doenças mentais. Enquanto
ficam em casa seu singular comportamento é aceito. Des-
de que tenham sido classificadas formalmente como
anormais o mesmo comportamento é considerado into-
lerável. Um relatório sobre urn projeto canadense em
1951 para mudar a atitude em relação aos doentes men-
tais sugere que há um limiar de tolerância marcado pela
entrada num sanatório. Se uma pessoa nunca se afas-
tou da sociedade para esse estado marginal, qualquer
de suas excentricidades é tranqüilamente tolerada pe-
los vizinhos. O comportamento que de um psicólogo
classificaria imediatamente como patológico é comumen-
te rejeitado como "só uma esquisitice", ou "ele supera
isso", ou "no mundo tem gente de todo tipo". Mas uma
vez que um paciente é admitido num sanatório, reco-
lhe-se a tolerância. O comportamento que era primeira-
mente julgado como tão normal que as sugestões do psi-
cólogo levantavam forte hostilidade, eram agora julga-
dos anormais (citado em Cumming). Assim, os que tra-
balham pela saúde mental têm exatamente os mesmos
problemas em reabilitar seus pacientes liberados, como o
fazem as sociedades de ajuda aos prisioneiros. O fato de
que esses pressupostos comuns sobre ex-prisioneiros e
lunáticos se autovalidam não é aqui relevante. :.B mais
interessante saber que o status marginal produz as mes-

121
mas reações cm todo o mundo, e que estas são represen-
tadas deliberadamente nos ritos marginais.
Para traçar um mapa dos poderes e perigos num
universo primitivo, precisamos sublinhar o intercâm-
bio de idéias de forma e falta de forma. Assim, muitas
idéias sobre poder baseiam-se numa idéia da sociedade
como uma série de formas contrastadas com a falta de
forma circulldantes. H á poder nas formas, e outro po-
der na área inarticulada, margens, linhas confusas e além
dos limites externos. Se a poluição é uma classe par-
ticular de perigo, para ver qual é seu lugar no universo
de perigos, precisamos de um inventário de todas as
possíveis fontes de poder. Numa cultura primitiva, a fon-
te física do infortúnio não é tão significativa como a in-
tervenção pessoal à qual ela pode ser remetida. Os efei-
tos são os mesmos cm todo o mundo: seca é seca, fome
é fome; epidemia, parto, enfermidade, - a maior parte
dessas experiências são passadas em comum. Mas cada
cultura conhece uma série distintiva de leis que gover-
nam a maneira pela qual acontecem esses desastres. Os
elos principais entre pessoas e infortúnios são elos pes-
soais. Dessa forma, nosso inventário de poderes deve
proceder classificando todas as espécies de intervenções
pessoais nas venturas dos outros.
Os poderes espirituais que a ação humana pode
desencadear podem ser divididos em aproximadamente
duas classes: interna e externa. A primeira reside na
psique do agente - tal como o mau-olhado, bruxaria,
dons de visão ou profecia. A segunda são símbolos ex-
ternos sobre os quais o agente precisa trabalhar cons-
cienciosamente: conjuros, bênçãos, imprecações, encan-
tamentos, fórmulas mágicas e invocações. Esses poderes
requerem ações pelas quais o poder espiritual é des-
carregado.
A distinção entre fontes externas e internas de po-
der é freqüentemente correlata a outra distinção entre
poder controlado e não controlado. De acordo com crcJ:-
ças bastante difundidas, os poderes psíquicos internos
não são necessariamente provocados pela intenção do
agente. Este pode não estar muito ciente de que os possui
ou de que eles estão ativos. Essas crenças variam de lu-
gar para lugar. Por exemplo, Joana d'Arc não sabia
quando suas vozes falariam a ela, não poderia invocá-las

122
à vontade, era freqüentemente surpreendida pelo que di-
ziam e pelo conjunto de eventos que sua obediência a
elas desencadeava. Os Azandes acreditam que uma bru-
xa não sabe necessariamente que sua bruxaria está a
trabalhar, mas se ela já está prevenida, pode exercer
algum controle sobre sua ação.
Em contraste, o mago não pode proferir conjuros
por engano; a intenção específica é uma condição do
resultado. Uma maldição paterna geralmente precisa ser
pronunciada para ter efeito.
Onde entra a poluição neste contraste entre poder
incontrolado e controlado, entre a psique e o símbolo?
No meu modo de ver, poluição é uma fonte de perigos
numa classe totalmente diferente: as distinções entrevo-
luntário, involuntário, interno, externo, não são relevan-
tes. A poluição precisa ser identificada de uma ma-
neira diferente.
Antes de continuar com o inventário de poderes es-
pirituais, há outra classificação de acordo com a posi-
ção social daqueles que foram expostos ou que se ex-
põem a um perigo. Alguns poderes são exercidos em
nome da estrutura social; eles protegem a sociedade con-
tra o perigo que lhe dirigem os malfeitores. Seu uso pre-
cisa ser aprovado por todos os homens bons. Supõem-se
outros poderes perigosos para as sociedades e seu uso
é desaprovado; aqueles que os usam são malfeitores,
suas vítimas são inocentes e, todos os homens bons
tentarão persegui-los - estes são feiticeiros e bruxos.
Esta é a velha distinção entre magia branca e negra.
São estas duas classificações completamente distin-
tas? Aqui sugiro experimentalmente uma correlação:
onde o sistema social reconhece explicitamente posições
de autoridade, os que as ocupam, são todos investidos
com poder espiritual explícito, controlado, consciente,
externo e aprovado- poderes de bênção ou maldição.
Onde o sistema social requer pessoas para sustentar fun-
ções perigosamente ambíguas, essas pessoas são credita-
das com poderes incontroláveis, inconscientes, perigosos,
e desaprovados - tais como bruxaria e mau-olhado.
Em outras palavras, onde o sistema social é bem
articulado, procuro poderes articulados, investidos nos
pontos de autoridade. Onde o sistema social é mal arti-
culado, procuro poderes inarticulados, investidos naque-

123
les que são a fonte da desordem. Estou sugerindo que
o contraste entre forma e falta de forma circundante
pode ser considerado o responsável pela distribuição
dos poderes simbólicos e psíquicos: o simbolismo exter-
no preserva a estrutura social explícita e interna; po-
deres psíquicos sem forma a ameaçam a partir da não
estrutura.
Esta correlação é admissivelmente difícil de ser es-
tabelecida. Por um lado, é difícil ser preciso acerca da
estrutura social explicita. Certamente as pessoas carre-
gam consigo uma consciência de estrutura social. Elas
restringem suas ações de acordo com as simetrias e
hierarquias que vêem nisto, e lutam continuamente para
imprimir sua visão da parte relevante da estrutura aos
outros atores em sua cena. Esta consciência social foi
tão bem demonstrada por Goffman que não seria pre-
ciso retomá-la aqui. Não há itens de vestuário, alimen-
tos ou de outros usos práticos dos quais nos apoderamos
como adereços teatrais para dramatizar a maneira pela
qual queremos apresentar nossos papéis e a cena que
estamos representando. Tudo que fazemos é significati-
vo; nada existe que não possua seu peso simbólico cons-
ciente. Além do mais, nada é perdido na audiência. Goff-
man usa a estrutura dramática, com sua divisão entre
atores e audiência, palco e bastidores, para fornecer
uma estrutura a sua análise das situações cotidianas.
Outro mérito da analogia com o teatro é que uma estru-
tura dramática existe dentro de divisões temporais. Tem
um começo, um clímax e um fim. Por esta razão, Tur-
ner achou vantajoso introduzir a idéia de drama social
para descrever conjuntos de comportamento que qual-
quer um reconhece como formando unidades temporais
discretas (1957). Estou certa de que os sociólogos não
eliminaram a idéia do drama como uma imagem da
estrutura social, mas, para meus propósitos, bastará
dizer que por estrutura social não estou me referindo,
geralmente, a uma estrutura total que abrange o todo da
sociedade contínua e amplamente. Refiro-me a situa-
ções particulares nas quais atores individuais estão côns-
cios do maior ou menor âmbito de inclusividade. Nessas
situações se comportam como se se movessem em posi-
ções padronizadas em relação aos outros e, como se
escolhessem entre possíveis padrões de relações. Seu sen-
so de forma faz exigências a seu comportamento, con-

124
trola a avaliação de seus desejos, permite alguns e su-
prime outros.
Qualquer visão local e pessoal de todo o sistema
social não coincidirá necessariamente com aquela do
sociólogo. Algumas vezes no que se segue ao falar de
estrutura social, estarei me referindo aos principais con-
tornos, linhagens e hierarquia dos grupos descendentes,
ou chefias e à hierarquia de distritos, relações entre a
realeza e os plebeus. Outras vezes, estarei falando so-
bre pequenas subestruturas, elas próprias como uma
caixa chinesa contendo outras que completam o esque-
leto da estrutura principal. Parece que os indivíduos
estão, no contexto apropriado, cientes de todas essas es-
truturas e de sua relativa importância. Nem todos têm
a mesma idéia sobre qual nível particular da estrutura
é relevante num dado momento; sabem que há um pro-
blema de comunicação para ser superado para que a
sociedade exista. Através de cerimônias, linguagem e
gestos, fazem um constante esforço para se expressar e
par-a concordar numa visão de como é a estrutura so-
cial relevante. E toda a atribuição de perigos e poderes
faz parte desse esforço para comunicar e, conseqüente-
mente, para criar formas sociais.
A idéia de que aí pode haver uma correlação entre
autoridade explícita e poder espiritual controlado foi a
mim sugerida, primeiramente, por um artigo de Leach
em Rethinking Anthropology*. Ao desenvolver a idéia,
tomei uma direção um pouco diferente. O poder contro-
lado para prejudicar, ele sugere, é freqüentemente inves-
tido em pontos-chave explícitos no sistema de autori-
dade e contrastando com o poder não-intencional para
prejudicar, que se supõe estar escondido nas áreas me-
nos explícitas e fracamente articuladas dessa mesma so-
ciedade. Ele estava preocupado principalmente com o
contraste entre as duas espécies de poderes espirituais
usados em situações sociais paralelas e contrastantes. Ele
apresentou algumas sociedades como um conjunto de
sistemas internamente estruturados, interagindo entre si.
Vivendo dentro de um tal sistema, as pessoas estão ex-
plicitamente conscientes de sua estrutura. Seus pontos-
-chave são sustentados por crenças nas formas contro-
ladas de poder ligado ao controle de posições. Por
• Tradução braslltlrn: R~pi!Tisando a Antropologia, S.P., Ed. Pers--
pectiva, 1974, Debates 88. (N. da T.)

125
exemplo, chefes entre os Nyakyusas podem atacar seus
inimigos através de uma espécie de feitiçaria que envia
pítoos invisíveis atrás deles. Entre os Tallensis patrilinea-
res, o pai de um homem tem um direito corresponden-
temente controlado de acesso ao poder ancestral contra
aquele e, entre os Trobriandeses matrilioeares, consi-
dera-se que o tio materno mantém sua autoridade com
magia e encantamento conscientemente controlados. B
como se as posições de autoridade fossem dotadas de fios
elétricos com interruptores que pudessem ser operados
por aqueles que alcançam os lugares certos para propor-
cionar poder ao sistema como um todo.
Isto pode ser afirmado relativamente às linhas fa-
miliares de Durkheim. As crenças religiosas expressam
a consciência que a sociedade tem de si mesma; a estru-
tura social é creditada com poderes punitivos que a man-
tém existente. I sto é tranqüiJo. Mas, gostaria de suge-
rir que os que detêm posições na parte explícita da
estrutura tendem a ser creditados com poderes conscien-
temente controlados, em contraste com aqueles cuja fun-
ção é menos explícita e que tendem a ser creditados
com poderes inconscientes, incontroláveis, ameaçando
aqueles em posições mais bem definidas. O primeiro
exemplo de Lea.ch é o da esposa Kachin. Unindo dois
grupos poderosos, o do marido e o do irmão, ela detém
um papel interestrutural e acredita-se que ela seja a
agente de bruxaria inconsciente involuntária. Similar-
mente, julga-se que o pai entre os matrilineares Tro-
briandeses e Asbantis, e o irmão da mãe nos patrilinea-
res Tikopias e Tallensis, são uma involuntária fonte de
perigo. Nenhuma dessas pessoas deixa de ter um nicho
adequado na sociedade como um todo. Mas da pers-
pectiva de um subsistema interno ao qual não perten-
cem, mas no qual devem operar, são intrusos. Não são
suspeitos em seu próprio sistema e, podem estar exer-
cendo uma espécie de poder intencional a seu favor. B
possível que seu poder involuntário de causar dano não
seja nunca ativado. Pode permanecer adormecido pois
vivem sua vida pacificamente no canto do subsistema
que é seu lugar próprio, porém no qual são intrusos.
Mas, na prática, este papel é difícil de ser serena-
mente representado. Se algo vai mal, se sentem ressenti-
mento ou desgosto, então suas duplas lealdades e seu
status ambíguo na estrutura onde estão inseridos trans-

126
forma-os cm perigo para aqueles que pertencem inteira-
mente a ela. É a existência de qualquer pessoa zangada
numa posição intersticial que é perigosa, e não há nada
a fazer com suas intenções particulares.
Nesses casos, os pontos articulados e conscientes
na estrutura social são munidos de poderes articulados c
conscientes para proteger o sistema; as áreas inarticula-
das, desestruturadas, emanam poderes inconscientes que
fazem com que os outros peçam que a ambigüidade seja
reduzida. Quando tais pessoas intersticiais zangadas ou
infelizes são acusadas de bruxaria é como um aviso para
que controlem seus sentimentos de rebelião, de acordo
com a situação correta. Se tudo isto se mostrasse confir-
mado de maneira geral, então a bruxaria, definida como
uma pretensa força psíquica, também poderia ser de-
finida estruturalmente. Seria o poder psíquico anti-social
com o qual pessoas em áreas relativamente não-estrutu-
radas da sociedade são creditadas, sendo a acusação um
meio de exercer controle onde as formas ráticas de
contr e são difíceis. A bruxana, en ao, encontra a na
nao-estrutura. ruxas são os equivalentes sociais de
besouros e aranhas que vivem nas fendas das paredes e
nos lambris. Elas atraem o medo e a aversão que outras
ambigüidades e contradições atraem em outras estru-
turas de pensamento, e a espécie de poder a elas atri-
buído simboliza seu status ambíguo e inarticulado.
Ponderando sobre esta linha de pensamento, po-
demos distinguir diferentes tipos de inarticulação social.
Consideramos até aqui somente as bruxas que possuem
uma posição bem definida num subsistema e uma posi-
ção ambígua em outro, no qual, apesar disso, têm de-
veres. São intrusas legítimas. Joana d'Arc pode ser to-
mada como um esplêndido protótipo dessas: uma cam-
ponesa na corte, uma mulher no exército, uma intrusa
no conselho de guerra; a acusação de que era uma
bruxa põe-na inteiramente nessa categoria.
Mas, freqüentemente, supõe-se que a bruxaria ope-
ra em outra espécie de relação social ambígua. O me-
lhor exemplo vem das crenças em bruxaria dos Azandes.
A estrutura formal dessa sociedade girava em torno de
príncipes, sua corte, tribunais e exércitos, numa hierar-
quia bem definida, através dos assessores dos príncipes,
governadores locais até chefes de famílias. O sistema po-
lítico proporcionava um conjunto organizado de cam-

127
pos competitivos, de modo que os plebeus não se acha-
vam em competição com os nobres, nem os pobres con-
tra os ricos, nem os filhos contra os pais, nem mulheres
contra homens. Somente nessas áreas da sociedade, que
eram deixadas desestruturadas pelo sistema político, po-
diam os homens acusarem-se de bruxaria. Um homem
que tivesse derrotado um rival próximo na competi-
ção pelo cargo, poderia acusar o outro de feitiço por
ciúme e as co-esposas poderiam acusar-se uma à outra
de bruxaria. As bruxas azandes eram tidas como pe-
rigosas sem o saberem; sua bruxaria se tornava ativa
simplesmente pelos seus sentimentos de ressentimento ou
rancor. A acusação tentava regular a situação defen-
dendo um rival e condenando outro. Supunha-se que os
príncipes não fossem bruxos, mas acusavam-se uns
aos outros de feitiçaria, de acordo com o modelo que
estou tentando estabelecer.
Outro tipo de poder inconsciente para prejudicar,
que emanava de áreas inarticuladas do sistema social, é
ilustrado pelos Mandaris, cujos clãs proprietários de
terra aumentavam sua força adotando clientes. Estes de-
safortunados, por alguma razão, perderam seu direito
sobre seu próprio território e foram para um território
estrangeiro pedir proteção e segurança. Estão sem terras,
subalternos, dependendo de seu protetor que é membro
de um grupo de proprietários. Mas não s·ão completa-
mente dependentes. De uma forma bastante efetiva, a
influência e o status do protetor dependem de seu leal
séquito de clientes. Oientes que se tornam muito nume-
rosos e confiantes podem entrar em negociações com a
linhagem do patrão. A estrutura explícita da sociedade
é baseada nos clãs proprietários de terras. Os clientes
são provavelmente considerados por essas pessoas como
sendo bruxos. Sua bruxaria emana do ciúme de seus
protetores e opera involuntariamente. Um bruxo não
pode se controlar, é de sua natureza ser zangado, dele
emanando prejuízos. Nem todos os clientes são bruxos,
mas linhas hereditárias de bruxos são reconhecidas e
temidas. Aqui estão pessoas que vivem nos interstícios
da estrutura de poder, sentidas como uma ameaça por
aqueles com status mais bem definidos. Uma vez que
são creditados com poderes perigosos e incontroláveis,
dá-se uma desculpa para subjulgá-Jos. Podem ser acusa-
dos de bruxaria e violentamente despachados sem for-

128
maüdade ou deferimento. Num caso, a família do pro-
tetor mandou simplesmente erguer uma grande foguei-
ra, convidou o bruxo suspeito para participar de uma
refeição de porco assado e, imediatamente, amarrou-o
e colocou-o no fogo. Assim, a estrutura formal das li-
nhagens proprietárias de terras era assegurada contra
o campo relativamente fluido no qual os clientes sem
terra angariavam patronagem.
Os judeus na sociedade inglesa são aproximadamen-
te como os clientes Mandaris. A convicção em suas si-
nistras mas indefitúveis vantagens no comércio justifica
a discriminação contra eles - ao passo que sua real
ofensa é ter estado sempre fora da estrutura formal ela
cristandade.
Há provavelmente muito mais tipos variantes de
ambigüidade social ou status fracamente definidos, aos
quais é atribuída bruxaria involuntária. Seria fácil con-
tinuar enumerando exemplos. Não é preciso dizer que
não estou interessada em crenças de espécie secundária
ou com idéias de curta duração que florescem e, logo
a seguir, morrem. Se a correlação se mostrasse confir-
mada de maneira geral relativamente à distribuição das
formas dominantes e persistentes de poder espiritual,
isso esclareceria a natureza da poluição. Pois, como a
vejo, a poluição ritual emerge também do intercâmbio
entre a forma e a falta de forma circundante. Os peri-
gos da poluição assaltam quando a forma foi atacada.
Desse modo, teríamos uma tríade de poderes controlando
a sorte e o infortúnio: primeiramente, poderes formais
dirigidos por pessoas que representam a estrutura for-
mal e exercidos em favor da mesma; segundo, poderes
sem forma dirigidos por pessoas intersticiais; terceiro,
poderes que não são controlados por ninguém, mas ine-
rentes à estrutura, a qual ataca qualquer infração à for-
ma. Este esquema triplo para investigar as cosmologias
primitivas infelizmente malogra nas exceções que são
muito importantes para serem deixadas de lado. Uma
grande dificuldade é que a feitiçaria, que é uma forma
de poder espiritual controlado, é em muitas partes do
mundo creditada a pessoas que deveriam, segundo mi-
nha hipótese, ser acusadas de bruxaria involuntária. Pes-
soas malévolas, em posições intersticiais, anti-sociais, de-
saprovadas, que trabalham para prejudicar inocentes,
não deveriam estar usando o poder consciente, controla-

129
do e simbólico. Além disso, há chefes reais que emanam
poder inconsciente, involuntário para detectar deslealda-
des e destruir seus inimigos- chefes que, de acordo com
minha hipótese, estariam satisfeitos coro formas de po-
der explícitas c controladas. Portanto, a correlação que
tinha tentado demonstrar não é segura. De qualquer
modo, não a rejeitarei até ter olhado roais detidamente
os casos negativos.
Uma razão pela qual é difícil relacionar a estrutura
social com tipos de poderes místicos é que ambos os ele-
mentos de comparação são muito complexos. Não é sem-
pre fácil reconhecer a autoridade explícita. Por exemplo,
a autoridade entre os Leles é muito fraca, seu sistema
social traça uma linha cruzada de pequenas autoridades,
nenhuma realmente efetiva em termos seculares. Muitos
de seus status formais são mantidos pelo poder espiritual
para benzer ou amaldiçoar, que consiste em proferir uma
forma de palavras e cuspir. Amaldiçoar e benzer são
atributos de autoridade: um pai, uma mãe, um irmão da
mãe, uma tia, um proprietário de um peão, um chefe
de aldeia e, assim por diante, podem amaldiçoar. Nin-
guém mais pode procurar alcançar uma maldição e apli-
cá-la arbitrariamente. Um filho não pode almadiçoar o
pai, isso não funcionaria, se ele tentasse. Dessa forma,
esse modelo está de acordo com a regra geral que es-
tou procurando estabelecer. Mas se uma pessoa que te-
nha o direito de amaldiçoar abstém-se de formular sua
maldição, considera-se que a saliva contida em sua boca
possui o poder de causar dano. Melhor do que nutrir um
secreto rancor, qualquer um com um justo ressentimento
deveria falar alto e requerer uma compensação, a fim
de que a saliva de seu rancor não cause secretamente
danos. Nessa crença, temos tanto o poder espiritual con-
trolado como o incontrolado, atribuídos à mesma pes-
soa nas mesmas circunstâncias. Mas como seu padrão
de autoridade é fracamente articulado, este é dificilmen-
te um caso negativo. Ao contrário, serve para nos pre-
venir de que a autoridade pode ser um poder bastante
vulnerável, facilmente reduzido a nada. Deveríamos es-
tar preparados para elaborar a hipótese que leva mais
em conta as variedades de autoridade.
Há inúmeras semelhanças entre as maldições não
faladas dos Lcles e as crenças em bruxaria dos Mandaris.
Ambas estão ligadas a um status particular, ambas são

130
psíquicas, internas, involuntárias. Mas, a maldição não
proferida é uma forma aprovada de poder espiritual, en-
quanto que o bruxo é desaprovado. Onde se revela a
maldição não proferida como causa do dano, a resti-
tuição é feita ao agente; quando a bruxaria é revelada,
o agente é brutalmente atacado. Assim, a maldição não
proferida está ao lado da autoridade; a sua ligação com
a maldição toma-a clara. Mas, no caso dos Leles, a
autoridade é fraca e forte no caso dos Mandaris. Isto su-
gere que para testar positivamente a hipótese, deveríamos
apresentar toda escala, a partir de nenhuma autoódade
formal de um lado, até a autoridade secular, efetivamen-
te forte, do outro. Em qualquer dos dois extremos, não
estou preparada para predizer a distribuição de poderes
espirituais, porque onde não bá autoridade formal, a
hipótese não se aplica, e onde a autoridade é firmemente
estabelecida por meios seculares, requer pouco suporte
espiritual e simbólico. Em condições primitivas a auto-
ridade é comumente precária. Por esta razão, devería-
mos estar prontos para levar em consideração os fra-
cassos daqueles que estão no poder.
Primeiramente, consideremos o caso de um homem
numa posição de autoridade que abusa dos poderes se-
culares de seu cargo. Se ficar claro que ele está agindo
erroneamente, fora de seu papel, não é merecedor do po-
der espiótual investido no mesmo. Então, deveóa haver
oportunidade para alguma mudança nos padrões de cren-
ças para acomodar sua defecção. Ele deveóa entrar na
classe das bruxas, exercendo poderes involuntários, in-
justos, em vez de poderes intencionalmente controlados
contra transgressores. Pois o funcionário que abusa do
poder é tão ilegítimo como um usurpador, um pesa-
delo, um parafuso solto, um peso morto no sistema so-
ciaL Freqüentemente, achamos esta substituição predita
na espécie de poder perigoso que se supõe que ele
exerce.
No Livro de Samuel, Saul é apresentado como um
líder que abusa dos poderes a ele outorgados por Deus.
Quando ele falha no desempenho do papel que lhe é
atribuído e conduz seus homens para a desobediência,
seu carisma o abandona e fúrias terríveis, depressões e
loucura o afHgem. Então, quando Saul abusa do poder,
perde o controle consciente c torna-se uma ameaça até
para seus amigos. Com a razão não mais sob controle,

131
o líder torna-se um perigo inconsciente. A figura de
Saul enquadra-se na idéia de que o poder espiritual
consciente está investido na estrutura explícita e o pe-
rigo incontrolado inconsciente está investido nos ini-
migos da estrutura.
Os Lugbaras têm uma outra e similar maneira de
conciliar suas crenças ao abuso do poder. Eles creditam
aos anciãos poderes especiais para invocar os ancestrais
contra os mais jovens que não agem de acordo com
os mais amplos interesses da linhagem. Temos aqui no-
vamente poderes conscientes controlados sustentando a
estrutura explícita. Mas se se pensar que um ancião é
motivado por seus próprios interesses pessoais, os an-
cestrais também não o ouvem, nem põem seu poder
à sua disposição. Aqui está pois um homem numa po-
sição de autoridade, exercendo impropriamente os po-
deres do ofício. Sua legitimidade está em dúvida, preci-
sa ser removido, e, para o remover, seus antagonistas
acusam-no de corrupção e emprego de bruxaria, um
poder misterioso, pervertido, que opera à noite (Middle-
ton). A acusação é em si mesma uma arma para escla-
recer e fortalecer a estrutura. Ela permite que a culpa
seja posta na fonte de confusão e ambigüidade. Assim,
esses dois exemplos desenvolvem simetricamente a idéia
de que o poder consciente é exercido a partir das posi-
ções-chave na estrutura e um perigo diferente das áreas
obscuras, negras.
A feitiçaria é um outro assunto. Como uma forma
de poder nocivo que faz uso de encantamentos, palavras,
ações e materiais físicos, pode somente ser usada cons-
ciente e deliberadamente. No argumento que temos se-
guido, a feitiçaria deveria ser usada por aqueles no con-
trole das posições-chave dentro da estrutura social, pois
é uma forma de poder espiritual deliberado e controlado.
Mas, não o é, sendo encontrada nos interstícios estrutu-
rais, onde temos localizado a bruxaria, bem como nos
postos de autoridade. À primeira vista, ela parece atra-
vessar a correlação da estrutura articulada com a cons-
ciência. Mas, numa inspeção mais cuidadosa, esta distri-
buição de feitiçaria é coerente com o padrão de autori-
dade que se harmoniza com crenças em feitiçaria.
Em algumas sociedades, as posições de autoridade
estão abertas à competição. :B difícil de se estabelecer

132
a legitimidade, difícil mantê-la, pois é sempre capaz de
se alterar. Em tais sistemas políticos muito fluidos, es-
peraríamos um tipo particular de crença no poder es-
piritual. A feitiçaria é diferente das maldições e invo-
cações dos ancestrais no sentido que ela não tem ne-
nhum mecanismo incorporado para se salvaguardar con-
tra abusos. A cosmologia lugbara, por exemplo, é do-
minada pela idéia dos ancestrais que mantêm os va-
lores das linhagens; a cosmologia israelita foi dominada
pela idéia da justiça de Jeová. Estas duas fontes de po-
der contêm um pressuposto de que não podem ser en-
ganadas ou exploradas. Se uma pessoa incumbida do
ofício abusa do poder, o suporte espiritual é retirado. Em
contraste, a feitiçaria é essencialmente uma forma de po-
der controlado e consciente que está aberto ao abuso.
Nas culturas centro-africanas, onde abundam crenças de
feitiçaria, esta forma de poder espiritual é desenvolvida
dentro da linguagem dos medicamentos. É livremente
disponível. Qualquer pessoa que se dê ao trabalho de
adquirir poder feiticeiro pode usá-lo. Em si mesmo, é
moral e socialmente neutro e não contém nenhum prin-
cípio para se salvaguardar contra abusos. Funciona ex
opere operato, e igualmente bem, quer sejam as inten-
ções do agente puras ou corruptas. Se a idéia de po-
der espiritual numa cultura é dominada por esta lin-
guagem médica, o homem que abusa de seu ofício e a
pessoa que está nas frinchas desestruturadas têm o mes-
mo acesso à mesma espécie de poderes espirituais tal
como os de linhagem ou os líderes da aldeia. Logo, se
a feitiçaria é acessível para qualquer pessoa que queira
adquiri-la, então poderemos supor que posições de con-
trole político são também disponíveis, abertas à compe-
tição, e que em tais sociedades não existem distinções
muito claras entre autoridade legítima, abuso de auto-
ridade e rebelião ilegítima.
As crenças em feitiçaria da África Central, de Oesté
a Leste, desde o Congo até o lago Niassa, sustentam que
os poderes espirituais malignos da feitiçaria são geral-
mente acessíveis. Em princípio, esses poderes estão in-
corporados nos chefes de grupos de descendência ma-
trilinear e espera-se que sejam usados por esses homens
de autoridade contra inimigos externos. Há uma ex-
pectativa geral de que o velho possa virar seus poderes

133
contra seus propnos seguidores e parentes e, se ele
está irritadiço ou genioso, a morte daqueles é corou-
mente atribuída a ele. Está sempre em risco de ser
derrubado de seu status um pouco elevado, degredado,
exilado ou condenado ao teste de veneno (Van Wing, pp.
359-360, Kopytoff, p. 90). Então, um outro contende-
dor tomará sua ftmção oficial e tentará exercê-la mais
cautelosamente. Tais crenças, como tenho tentado mos-
trar no meu estudo dos Leles, correspondem a um siste-
ma social no qual a autoridade é fracamente definida e
tem um pequeno domínio real ( 1963). Marwick afir-
mou que existem crenças similares entre os Cewas, que
têm um efeito liberador uma vez que qualquer jovem
pode plausivelmente acusar de feitiçaria um velho rea-
cionário incumbido de um ofício que ele próprio é qua-
lificado a ocupar quando o obstáculo representado pelo
mais velho tiver sido removido (1952). Se crenças em
feitiçaria realmente servem como instrumentos para pro-
moção pessoal, também asseguram que a escada de
promoção seja curta e instável.
O fato de qualquer pessoa poder ter nas mãos o
· poder feiticeiro e ser ele disponível para o uso contra
ou a favor da sociedade sugere uma outra classificação
cruzada de poderes espirituais. Pois, a feitiçaria na Áfri-
ca Central é freqüentemente um auxiliar necessário para
os papéis de autoridade. O irmão da mãe precisa estar
familiarizado com feitiçaria para poder combater os
feiticeiros inimigos e proteger seus descendentes.
:a uma faca de dois gumes, pois se ele o usa insen-
satamente, pode ser arruinado. Dessa forma, há sem-
pre a ·possibilidade, e também a expectativa, de que o
homem que ocupa uma posição de poder não consiga
desempenhá-la meritoriamente. A crença age como um
obstáculo ao uso do poder secular. Se um líder entre os
Cewas ou Leles se torna impopular, as crenças em feiti-
çaria contêm uma cláusula de evasão autorizando seus
descendentes a se desfazerem dele. Assim foi como li as
crenças tsav dos Tivs, tanto checando como validando a
eminente autoridade do ancião da linhagem (Bohan-
nan). Assim a feitiçaria livremente acessível· é uma for-
ma de poder espiritual que favorece o malogro. Esta é
uma classificação cruzada que põe a bruxaria e a feitiça-
ria na mesma categoria. Crenças de bruxaria são tam-

134
bém inclinadas a esperar o malogro de papéis e lidar
com ele de modo punitivo, como vimos. Mas, as cren-
ças de bruxaria esperam fracasso nos papéis intersticiais,
enquanto as crenças na feitiçaria o esperam em funções
de poder. Todo o quadro no qual os poderes espirituais
são correlates com a estrutura torna-se mais coerente
se contrastarmos esses poderes votados ao fracasso com
aqueles votados ao sucesso.
Noções teutônicas da Sorte, e algumas formas de
baraka e mana são crenças orientadas para o sucesso,
enquanto a feitiçaria é orientada para o fracasso. O mana
e a baraka islâmica emanam de posições de poder in-
dependentemente da intenção do incumbente. São ou po-
deres perigosos para atacar ou poderes benignos. Há
chefes e príncipes que exercem mana ou baraka cujo
mais simples contacto equivale a uma bênção e garan-
tia de êxito, e cuja presença pessoal constitui a diferen-
ça entre a vitória e a derrota na batalha. Mas, esses po-
deres nem sempre estão bem ancorados nas linhas gerais
do sistema social. Algumas vezes, a baraka pode ser um
poder benigno que opera independentemente da distri-
buição formal do poder e fidelidade na sociedade.
Se encontramos tal contágio benigno e autônomo
a desempenhar um importante papel nas crenças das
pessoas, podemos esperar que, ou a autoridade formal
é fraca, ou mal definida, ou que, por uma razão ou
outra, a estrutura política tem sido neutralizada de modo
que os poderes de bênção não podem emanar de seus
pontos-chave.
O Dr. Lewis descreveu um exemplo de uma estru-
tura social não sacralizada. Na Somália, há uma divisão
geral no pensamento entre poder secular e espiritual
(1963). Nas relações seculares o poder deriva do com-
bate de forças, e os somalianos são competitivos e be-
licosos. A estrutura política é um sistema guerreiro onde
a força é legal. Mas, na esfera religiosa, os somalianos
e os muçulmanos asseguram que o combate dentro da
comunidade é ilegal. Estas crenças profundamente man-
tidas desritualizam a estrutura social de maneira que os
somalianos não pretendem que bênçãos divinas ou peri-
gos emanem de seus representantes. A religião é repre-
sentada não por guerreiros, mas por homens de Deus.
Estes homens santos, especialistas religiosos e jurídicos

135
são mediadores não só entre os homens como também
entre os homens e Deus. São apenas relutantemente en-
volvidos na estrutura guerreira da sociedade. Como ho-
mens de Deus são creditados com poder espiritual. Logo,
sua oração (baraka) é forte, na medida em que se reti-
ram do mundo secular e são humildes, pobres e fracos.
Se este argumento é correto, poderia aplicar-se a ou-
tros povos islamizados cuja organização social é basea·
da em violento conflito interno. Entretanto, os Berbe-
res do Marrocos apresentam uma distribuição similar de
poder espiritual sem a justificativa teológica. O Prof.
Gellner disse-me que os Berberes não têm nenhuma no·
ção de que o combate na comunidade maometana seja
ilegal. Além do mais, é uma característica comum de sis·
temas políticos segmentários e competitivos que os Ü·
deres das forças coligadas desfrutem de menor crédito
pelo poder espiritual do que certas pessoas nos interstí-
cios das coligações políticas. Os homens santos da So-
mália devem ser vistos como o equivalente do sacerdo-
te do lugar santo da Terra Tallensi e o Homem da
Terra Nuer. O paradoxo do poder espiritual investido
• na fraqueza. física é mais bem explicado pela estrutura
social do que pela doutrina local que a justifica (Fortes
e Evans-Pritchard, 1940, p. 22).
Baraka, neste molde, é algo como bruxaria ao in-
verso. É um poder que não pertence à estrutura política
formal, mas que flui entre seus segmentos. Como as
acusações de bruxaria são usadas para reforçar a estru-
tura, assim, o povo, na estrutura, tenta fazer uso da ba-
raka. Como a feitiçaria e a bruxaria, sua existência e
força são provadas empiricamente, post hoc. Um bruxo
ou feiticeiro é identificado quando um infortúnio ocorre
a alguém contra quem tinha ressentimento. O infortú-
nio indica que há um bruxo trabalhando. O ressenti-
mento, sendo conhecido, indica um possível bruxo. É a
sua reputação de briguento que, essencialmente, chamará
a acusação contra ele. A baraka é também identificada
empiricamente, post hoc. Um surpreendente bom êxito
indica sua presença, muitas vezes realmente inesperada
(Westermarck, I, Cap. II). A reputação do homem san-
to para a piedade e o estudo concentra os interesses
sobre ele. Exatamente como a má reputação do bruxo
tornar-se·á pior a cada desastre que ocorra a seus vizi-

136
nhos, assim o bom nome do santo aumentará a cada
golpe de bom êxito. O efeito da bola de neve é o
mesmo.
Os poderes orientados para o fracasso têm uma re-
trocarga negativa. Se alguém que potencialmente os pos-
sui tenta ficar cheio de si a acusação coloca-o em seu
devido lugar. O medo da acusação funciona como um
termostato sobre qualquer pessoa à frente das disputas
reais. É um mecanismo de controle. Mas, os poderes
orientados para o sucesso têm a possibilidade de uma
retrocarga positiva. Poderiam se desenvolver indefinida-
mente para uma explosão. Como a bruxaria tem sido
chamada de ciúmes institucionalizado, a baraka pode
funcionar como admiração institucionalizada. Por esta
razão, ela se autovaüda quando opera num sistema li-
vremente competitivo. Está do lado dos grandes bata-
lhões. Empiricamente testada por sucessos, atrai partidá-
rios e, assim, adquire maior sucesso.
As pessoas tornam·se do fato possuidoras de baraka, sendo
tratadas como tal (Gellner, 1962).

Cabe esclarecer que não acredito que a baraka seja


sempre disponível para elementos que competem em sis-
temas sociais tribais. É uma idéia sobre o poder que
varia em condições políticas diferentes. Num sistema
autoritário, pode emanar dos portadores de autoridade e
validar seu status estabelecido, para desconforto de
seus adversários. Mas também tem a potencialidade de
idéias disruptivas sobre autoridade e sobre o certo e o
errado, já que sua única prova reside em seu sucesso.
O possuidor de baraka não é sujeito às mesmas restrições
morais que as demais pessoas (Westcrmarck, I, p. 198).
O mesmo se aplica ao mana e à sorte. Podem estar do
lado da autoridade estabelecida ou do lado do oportunis-
mo. Raymond Firth chega à conclusão de que, ao me-
nos em Tikopia, mana significa sucesso ( 1940). Os
mana da Tikopia expressam a autoridade de chefes he-
reditários. Firth refletiu sobre se a dinastia seria posta
em perigo caso o reino dos chefes não fosse afortunado
e concluiu ( corretamente por acaso) que a liderança se-
ria suficientemente forte para enfrentar tal tempestade.
Uma das grandes vantagens de se fazer sociologia num
copo d'água é ser capaz de discernir calmamente o que

137
seria confuso numa cena maior. Mas, é urna desvanta-
gem não ser capaz de observar quaisquer tempestades
e transformações sociais reais. De certo modo, toda a
Antropologia colonial, teve lugar num copo d'água. Se
mana significa sucesso, é um conceito apropriado ao
oportunismo político. As condições artificiais da paz co-
lonial podem ter camuflado esse potencial de conflito e
rebelião que os poderes orientados para o sucesso im-
plicam. A Antropologia tem freqüentemente sido fraca
em análises políticas. O equivalente a um documento
constitucional sem qualquer confusão, conflito ou esti-
mativas sérias do balanço de forças é, algumas vezes,
oferecido, ao invés de uma análise do sistema politico.
Isto deve, necessariamente, obscurecer a interpretação.
Seria proveitoso voltar a um exemplo pré-colonial.
A sorte, para nossos ancestrais teutônicos, como as
formas oportunistas e mercenárias de mana e baraka,
também parece ter operado livremente numa estrutura
politica competitiva, fluida, com pequeno poder heredi-
tário. Tais crenças podem sofrer mudanças rápidas nas
linhas de fidelidade e mudar juízos de certo e errado.
Tentei desenvolver, tanto quanto possível, o para-
lelo entre esses poderes orientados para o sucesso e a
bruxaria e feitiçaria, ambas orientadas para o fracasso e
capazes de operar independentemente da distribuição de
autoridade. Um outro paralelo com a bruxaria reside no
que diz respeito à natureza involuntária dessas forças de
sucesso. Um homem descobre que tem baraka devido a
seus efeitos. Muitos homens podem ser piedosos e vi.,.cr
fora do sistema guerreiro, mas, não muitos têm uma
grande baraka. Mana também pode ser inconscientemen-
te exercitada, mesmo por antropólogos, como Raymond
Firth ironicamente relatou quando uma magnífica pu-
xada de pesca foi atribuída a seu mana. As sagas dos
nórdicos estão plenas de crises resolvidas quando um
homem, repentinamente, descobre sua Sorte ou acha que
esta o tinha abandonado (Gronbech, v. I, Cap. 4).
Outra característica do poder de sucesso é o fato
de ser freqüentemente contagioso. :e transmitido mate-
rialmente. Qualquer coisa que tenha estado em contac-
to com baraka pode obter baraka. A Sorte era também
transmitida parcialmente através dos bens e tesouros uc
geração a geração. Se estes mudavam de dono, a Sorte

138
também mudava. Nesse aspecto, esses poderes são como
a poluição que transmite perigo pelo contacto. Porém,
os efeitos potencialmente fortuitos e disruptivos desses
poderes de sucesso contrastam com a poluição, austera-
mente empenhada em sustentar os esquemas do sistema
social existente.
Recapitulando, as crenças que atribuem poder espi-
ritual aos indivíduos nunca são neutras ou livres dos
poderes dominantes da estrutura social. Se algumas cren-
ças parecem conferir poderes espirituais livres de forma
casual, um exame mais atento mostra a coerência. As
únicas circunstâncias em que os poderes espirituais pare-
cem florescer, independentemente do sistema social for-
mal, são aquelas em que o próprio sistema é excepcio-
nalmente destituído de estrutura formal, quando a auto-
ridade legítima está sempre sob contestação ou quando
os segmentos rivais de um sistema político acéfalo fazem
uso da reconciliação. Então, os principais contendores
do poder .político têm que cortejar, por seu lado, os por-
tadores de poder espiritual livre. Assim, sem sombra de
dúvida, o sistema social é pensado como vivo, com po-
deres criativos e sustentadores.
Agora é o momento de identificar a poluição. Ad-
mitido que todos os poderes são partes do sistema social.
Expressam-no e fornecem instituições para manipulá-lo.
Isto significa que o poder, no universo, é em última aná-
lise preso à sociedade, visto que tantas mudanças de
sorte são causadas por pessoas, numa ou noutra po-
sição social. Mas, existem outros perigos para serem le-
vados em conta, os quais, as pessoas podem provocar
consciente ou inconscientemente, que não são parte da
psique e não devem ser comprados ou aprendidos por
iniciação ou treino. Estes são os poderes da poluição
inerentes à própria estrutura das idéias e que punem uma
quebra simbólica daquilo que deveria estar ligado ou li-
gando e aquilo que deveria estar separado. Resulta daí
que a poluição é um tipo de perigo incomum de ocorrer,
exceto onde as linhas da estrutura, cósmica ou social, são
claramente definidas.
Uma pessoa que polui está sempre em erro. Desen-
volveu alguma condição indevida ou, simplesmente, cru-
zou alguma Unha que não deveria ter sido cruzada, e este
desvio desencadeia perigo para alguém. Poluir, diversa-

139
mente da bruxaria e feitiçaria, é uma capacidade que os
homens partilham com os animais, pois a poluição nem
sempre é causada por humanos. Pode ser intencional-
mente cometida, mas a intenção é irrelevante para seu
efeito - é mais provável que aconteça inadvertida-
mente.
Isto é o mais próximo que posso chegar da definição
de uma classe particular de perigos, que não são pode-
res investidos em homens, mas que podem ser liberados
pela ação humana. O poder que apresenta um perigo
para os homens descuidados é, evidentemente, um po-
der inerente à estrulura de idéias, um poder através do
qual se espera que a estrutura se proleja a si mesma.

140
7. LIMITES EXTERNOS

A idéia de sociedade é uma imagem poderosa. Ela


é potente no seu próprio direito de controlar ou esti-
mular homens à ação. Esta imagem tem forma, limites
externos, margens e estrutura interna. Seus contornos en-
cerram poder de recompensar a conformidade e repelir
o ataque. Há energia em suas margens e áreas desestru-
turadas. Pelos símbolos da sociedade qualquer experiên-
cia humana de estruturas, margens c limites, está ao al-
cance da mão.
Van Gennep mostra como os limiares simbolizam
inícios de novos status. Por que o noivo carrega a noiva
para dentro da casa? Porque o degrau, a viga e os
umbrais da porta fazem uma moldura que é a condição
necessária e cotidiana de entrar numa casa. A experiên-
cia caseira de atravessar uma porta pode expressar
muitas espécies de entradas. O mesmo podemos di-

141
zer das encruzilhadas e arcos, novas estações, novas rou-
pas, e tudo o mais. Nenhuma experiência é demasiado
simples para entrar no ritual c receber um sentido ele-
vado. Quanto mais pessoal e íntima é a fonte de sim-
bolismo ritual, tanto mais diz sua mensagem. Quanto
mais o símbolo é extraído do fundo comum da experiên-
cia humana, tanto mais ampla e certa sua receptividade.
A estrutura de organismos vivos é melhor habilitada
a refletir formas sociais complexas do que batentes de
portas e Jintéis. Então, descobrimos que os rituais de
sacrifícios especificam a espécie de animal que será us::t-
do, jovem ou velho, masculino, feminino ou neutro, c
que essas regras significam vários aspectos da situação
que requer o sacrifício. A forma pela qual o animal deve
ser imolado é também declarada. Os Dinkas cortam o
animal longitudinalmente, através dos órgãos sexuais, se
o sacrifício é planejado para desfazer um incesto; em
metade, pelo meio, para celebrar uma trégua; sufocam-
no em algumas ocasiões e o esmagam com o pé, até
morrer, em outras. Ainda mais direto é o simbolismo que
opera sobre o corpo humano. O corpo é um modelo que
pode significar qualquer sistema limitado. Seus limites
podem representar quaisquer limites que estejam precá-
rios ou ameaçados. O corpo é uma estrutura complexa.
As funções de suas diferentes partes e suas relações pro-
porcionam uma fonte de símbolos para outras estru-
turas complexas. Não podemos, possivelmente, inter-
pretar rituais concernentes a excrementos, leite de peito,
saliva e tudo o mais, a menos que estejamos prepara-
dos para ver no corpo um símbolo da sociedade, e os
poderes e perigos creditados à estrutura social reprodu-
zidos em miniatura no corpo humano.
!! fácil ver que o corpo de um boi sacrificial está
sendo usado como um diagrama de uma situação social.
Mas, quando tentamos interpretar os rituais do corpo
humano da mesma maneira, a tradição psicológica deixa
de olhar a sociedade, voltando, de novo, para o indi-
víduo. Rituais públicos podem expressar interesses pú-
blicos quando usam batentes de portas ou sacrifícios ani-
mais; mas, os rituais públicos representados sobre o cor-
po humano são feitos para expressar interesses priva-
dos e pessoais. Não há justificativa possível para esta
mudança de interpretação, justamente porque os ri-
tuais penetram a carne humana. Que eu saiba, o caso

142
nunca foi metodicamente expresso. Seus protagonistas
trabalham, meramente com pressupostos incontestáveis
que se originam da forte similaridade entre certas for-
mas rituais e o comportamento de indivíduos psicopa-
tas. O pressuposto é que, em certo sentido, as culturas
primitivas correspondem aos estágios infantis do desen-
volvimento da psique humana. Conseqüentemente, tais
ritos são interpretados como se expressassem as mes-
mas preocupações que ocupam a mente dos psicopatas
ou crianças.
Tomarei duas modernas tentativas de usar culturas
primitivas para sustentar interpretações psicológicas.
Ambas derivam de uma longa linha de discussões si-
milares e ambas são enganosas porque a relação entre
cultura e psique individual não é esclarecida.
A obra de Bettelheim, Symbolic Wounds (Ferimen-
tos Simbólicos) é principalmente uma interpretação dos
ritos de circuncisão e iniciação. O autor tenta usar o
conjunto de rituais australianos e africanos para esclare-
cer o fenômeno psicológico. Está particularmente preo-
cupado em mostrar que os psicanalistas superenfatizaram
a inveja que as meninas têm do sexo masculino pas-
sando por cima da importância da inveja que os meninos
têm do sexo feminino. A idéia lhe veio originalmente ao
estudar grupos de crianças esquizofrênicas, próximas da
adolescência. Parece bastante provável que a idéia seja
importante e correta. Não estou, absolutamente, preten-
dendo criticar sua perspicácia em relação à esquizofre-
nia. Mas, quando argumenta que rituais explicitamente
designados para produzir sangramento genital em pes-
soas do sexo masculino, pretendem expressar a inveja
masculina do processo de reprodução feminino, o an-
tropólogo deveria protestar que esta é uma interpretação
inadequada de um rito público. Inadequada porque é
meramente descritiva. O que está sendo gravado na car-
ne humana é uma imagem da sociedade. E, quanto às
tribos divididas em metades e seções que ele cita, os
Mumgins e os Aruntas, parece mais provável que os
ritos públicos se refiram à criação de um símbolo de
simetria das duas metades da sociedade.
O outro livro é Li/e Against Death (Vida Contra
Morte), no qual Brown delineia uma comparação ex-
plícita entre a cultura do "homem arcaico" e nossa pró-
pria cultura, em termos das fantasias neuróticas e infan-

143
tis que elas parecem expressar. Seus pressupostos co-
muns acerca da cultura primitiva derivam de Roheim
( 1925) : a cultura primitiva é autoplástica, a nossa é
aloplástica. Os primitivos procuram realizar seus dese-
jos através de automanipulação, executando ritos cirúr-
gicos sobre seu próprio corpo para produzir fertilidade
na natureza, subordinação nas mulheres ou sucesso na
caça. Nas culturas modernas, procuramos atingir nossos
desejos operando diretamente no meio ambiente exter-
no, com resultados técnicos impressionantes que são a
mais óbvia distinção entre os dois tipos de cultura. Bet-
telheim adota este sumário das diferenças entre o ri-
tual e a tendência técnica na civilização. Mas, supõe que
a cultura primitiva seja produzida por personalidades
inadequadas, imaturas e ainda que as falhas psicológicas
dos selvagens sejam responsáveis por suas poucas rea-
lizações técnicas.
Se os povos pré-letrados tivessem estruturas de personalidade
tão complexas quanto as do homem moderno, se suas de-
fesas fossem tão elaboradas e sua consciência tão refinada e
exigente; se a interação dinâmica entre ego, superego e id fosse
tão complexa e, se seus egos fossem tão bem adaptados para
encontrar e mudar a realidade externa, teriam desenvolvi-
do sociedades igualmente complexas, embora provavelmente
diferentes. Suas sociedades têm, contudo, permanecido peque-
nas e relativamente ineficazes na adequação ao meio am-
biente externo. Pode ser que uma das razões para isso seja sua
tendência a tentar resolver problemas pela manipulação auto-
plástica, ao invés da manipulação aloplástica (p. 87).

Vamos afirmar novamente, como muitos antropólo-


gos já o fizeram, que não hã fundamento para supor que
a cultura primitiva como tal seja produto de um tipo
primitivo de indivíduo, cuja personalidade se assemelha
à de neuróticos ou crianças. E vamos desafiar os psi-
cólogos a expressar os silogismos nos quais tal hipó-
tese deveria estar fundamentada. Subjacente a todo o ar-
gumento, está o pressuposto de que os problemas que os
rituais pretendem resolver são problemas psicológicos
pessoais. Bettelheim passa realmente a comparar o ri-
tualismo primitivo com a criança que machuca sua pró-
pria cabeça quando frustrada. Este pressuposto está sub-
jacente a todo seu livro.
Brown tem o mesmo pressuposto, mas seu racioci-
nio é mais sutil. Não supõe que a condição primitiva da
cultura seja causada por traços individuais, pessoais:

144
admite, muito apropriadamente, o efeito do condiciona-
mento cultural sobre a personaJidade individual. Passa,
porém, a considerar a cultura total como se ela, em sua
totalidade, pudesse ser comparada a uma criança ou a
um adulto retardado. A cultura primitiva faz uso da
magia corporal para alcançar seus desejos. S um está-
gio de evolução cultural, comparável àquele do erotismo
infantil anal. Partindo da máxima: "Sexualidade infantil
é compensação autoplástica para a perda do Outro; a
sublimação é compensação aloplástica pela perda do Eu"
( p. 170) , passa a argumentar que "a cultura arcaica"
está orientada para os mesmos fins da sexualidade infan-
til, que é fuga das duras realidades de perda, separação
e morte. Os epigramas são, por sua natureza, obscuros.
Esta é outra abordagem à cultura primitiva que eu gos-
taria de ver totalmente decifrada. Brown desenvolve o
tema brevemente, como segue:

O homem arcaico está preocupado com o complexo de


castração, o tabu do incesto e a dessexualização do pênis, isto é,
a transferência de impulsos genitais para a libido de objeti-
vos reprimidos que sustenta os sistemas de parentesco, nos
quais a vida arcaica está inserida. O baixo grau de sublimação
que corresponde ao baixo nível tecnológico, significa, para
nossas definições prévias, um ego mais fraco, que ainda não
chegou a um acordo (por negação) com seus próprios im-
pulsos pré-genitais. O resultado é que todos os fantásticos
desejos de narcisismo infantil se expressam de forma não su-
blimada, de modo que o homem arcaico retém o corpo má-
gico da infância (pp. 298-299).

Estas fantasias supõem que o próprio corpo pode-


ria preencher o desejo infantil do interminável, do pra-
zer auto-reabastecido. Elas são um vôo da realidade,
uma recusa de encarar a perda, separação c morte. O
ego desenvolve essas fantasias, através da sublimação.
Mortifica o corpo, nega a magia do excremento e, nessa
medida, encara a realidade. Mas a sublimação substitui
um outro conjunto de propósitos e fins irreais, forne-
cendo à pessoa uma outra espécie de falsa fuga da per-
da, separação e morte. S assim que entendo que o argu-
mento deva se desenvolver. Quanto mais material uma
tecnologia elaborada impõe, entre nós e a satisfação de
nossos desejos infantis, tanto ma.is ativamente atua a su-
blimação. Mas, o inverso parece questionável. Pode-
mos argumentar que, quanto menos o material básico

145
da circulação é desenvolvido, tanto menos a sublimação
atua? Qual a analogia precisa com fantasias infantis
que pode ser válida para uma cultura primitiva b aseada
numa tecnologia primitiva? Como um baixo nível tecno-
lógico implica "um ego que ainda não chegou a um
acordo (por negação) com seus próprios impulsos pré-
genitais?" Em que sentido uma cultura é mais sublimada
do que outra?
Obviamente, estas são questões técnicas, nas quais
o antropólogo não pode se empenhar. Mas, em relação
a dois pontos, o antropólogo tem algo a dizer. Um é o
problema de saber se podemos de fato dizer que as
culturas primitivas se deleitam em magia excrementosa.
A resposta para isto é certamente: não. O outro é se as
culturas primitivas parecem estar procurando uma eva-
são da realidade. Usam realmente sua magia, excremen-
tosa ou não, para compensar a perda de sucesso nos
campos externos de empenhos? Novamente a resposta é:
não.
P rimeiramente, tomemos a questão da magia excre-
mental. A informação está distorcida, primeiramente
quanto à ênfase relativa sobre o corporal como dis-
tinta de outros temas simbólicos, e, em segundo lugar,
no tocante a atitudes negativas ou positivas em rela-
ção aos restos do corpo vista no ritual primitivo.
Abordaremos inicialmente, o último ponto: o uso
de excremento e outros tegumentos corporais em cultu-
ras primitivas é geralmente incompatível com os te-
rnas da fantasia erótica infantil. Longe do excremento
etc. ser tratado como uma fonte de gratificação, seu
uso tende a ser condenado. Longe de ser pensado como
um instrumento de desejo, o poder que reside nas mar-
gens do corpo deve, mais freqüentemente, ser evitado.
Há duas razões principais pelas quais uma leitura ca-
sual de etnografia dá uma impressão falsa. A primeira
diz respeito à tendência do informante e, a segunda, à do
observador.
Supõem-se que os feiticeiros usem refugos corpo-
rais para perseguir seus desejos nefastos. Certamente
nesse sentido, a magia excremental contribui para os de-
sejos de quem a usa, mas a informação sobre feiti-
çaria é usualmente dada da perspectiva da pretensa ví-
tima. Vívidos relatos da materia medica da feitiçaria po-
dem sempre ser obtidos de supostas vítimas. Mas livros

146
de receitas de encantamentos ditados por feiticeiros con-
fessas são mais raros. ~ de se suspeitar que outros este-
jam usando refugos corporais contra alguém, ilicitamen-
te, mas isto não significa que os informantes pensem
nesse material como disponível para seu próprio uso.
Assim, uma espécie de ilusão óptica faz com que aquilo
que pertence ao lado negativo da folha de balanço apa-
reça íreqüentemente no lado positivo.
A inclinação do observador também exagera a ex-
tensão em que as culturas primitivas fazem uso mágico
positivo dos restos corporais. Por várias razões, melhor
conhecidas dos psicólogos, qualquer referência à magia
excremeotal parece saltar aos olhos do leitor e absorver
a atenção. Então, uma segunda distorção é introduzida.
Toda a riqueza e gama de simbolismos tende a ser
minimizada ou assimilada a alguns princípios escatológi-
cos. Tomemos como ilustração dessa tendência a pró-
pria discussão de Brown sobre o Mito Trickster dos ín-
dios Winnebagos, que mencionamos no Cap. 3. Os te-
mas anais ocorrem somente duas ou três vezes no cur-
so da longa série das aventuras de Trickster. Citei uma
dessas ocasiões em que Trickster tentava tratar seu
ânus como urna pessoa separada. A impressão de Brown
sobre o mito é tão diferente que, a princípio, pensei,
erroneamente, ter ele voltado em estilo erudito para uma
fonte mais primária que a de Radio ao dizer que: "O
Trickster das mitologias primitivas é circundado por uma
analidade insublimada e indistinta".
De acordo coro Brown, o Trickster Winnebago, que
é também um grande herói cultural, "pode criar o mun-
do através de uma brincadeira suja, a partir de ex-
cremento, barro, argila". Cita como exemplo um epi-
sódio do mito, no qual Trickster desafia uma prescrição
de não comer certo bulbo que enche sua barriga de
vento, cujas erupções o levantam cada vez mais alto.
Chama os humanos para não o deixarem subir, porém,
em agradecimento pela tentativa de ajudá-lo, numa erup-
ção final, espalha-os todos para longe. Inútil procurar na
estória contada por Radio qualquer sinal de que a de-
fecação de Trickster seja, de algum modo, criativa. Esta
é antes destrutiva. Pelo glossário e introdução de Radio
ficamos sabendo que Trickster não criou o mundo e não
é, em nenhum sentido, um h erói cultural. Radio con-
sidera que o episódio citado tem uma moral totalmen-

147
te negativa, coerente com o tema do desenvolvimento
gradual do Trickster como um ser social. Isso basta para
a tendência que vê tanta magia ex.cremental nas cul-
turas primitivas.
O próximo ponto, relativamente a paralelos cultu-
rais como erotismo anal, 6 perguntar em que sentido
quaisquer culturas primitivas estão fugindo das realida-
des de separação e perda. Será que tentam ignorar a
unidade da morte e da vida? Ao contrário, minha im-
pressão é de que aqueles rituais que mais explicitamen-
te creditam poder à matéria ruim estão fazendo o maior
esforço para afirmar a plenitude física da realidade. Lon-
ge de usar a magia corporal como uma fuga, as cul-
turas que mais francamente desenvolveram o simbo-
lismo corporal podem ser vistas a usá-lo para confrontar
a experiência com suas inevitáveis dores e perdas. Atra-
vés desses temas, encaram os grandes paradoxos da exis-
tência, como mostrarei no último capítulo. Aqui, limitar-
me-ei a comentar brevemente o assunto, porque es-
barra no paralelo com a psicologia infantil da seguinte
maneira: na medida em que a etnografia sustenta a
idéia de que as culturas primitivas tratam a sujeira co-
mo um poder criativo, ela contradiz a idéia de que esses
temas culturais podem ser comparados com as fantasias
da sexualidade infantil.
Para corrigir as duas distorções de evidência, às
quais esse assunto se inclina, deveríamos classüicar cui-
dadosamente os contextos nos quais a sujeira corporal
é considerada poderosa. Pode ser usada ritualmente para
o bem nas mãos daqueles investidos com poder de bên-
ção. O sangue, na religião hebraica, era visto como fon-
te da vida, e não deveria ser tocado, exceto em condi-
ções sagradas de sacrifício. Algumas vezes, a saliva de
pessoas em posições-chave é considerada eficaz para
benzer. Outras, o cadáver do último incumbente pro-
duz material para ungir seu sucessor real. Por exemplo,
o cadáver deteriorado da última rainha lovedu, nas
montanhas Drakensberg, é usado para misturar ungüen-
tos que habilitam a atual rainha a controlar o tempo
(Krige, pp. 273-274). Esses exemplos podem ser mul-
tiplicados. Repetem a análise do capítulo anterior, a
respeito dos poderes atribuídos à estrutura social ou re-
ligiosa, em sua própria defesa. O mesmo vale para a
sujeira corporal como instrumento ritual de dano. Pode

148
ser creditado aos iocumbentes de posições-chave, para
defender a estrutura, ou aos feiticeiros que abusam de
suas posições na estrutura ou ainda a estranhos que
arremessam pedaços de osso e outras coisas em pontos
fracos da estrutura.
Mas, agora, estamos prontos para abordar a ques-
tão central. Por que o refugo físico deveria ser um sím-
bolo de perigo e poder? Por que se deveria pensar que
os feiticeiros se quaüficam para a iniciação derraman-
do sangue, cometendo incesto ou antropofagia? Por que,
quando iniciados, deveria sua arte consistir em larga me-
dida na manipulação de poderes considerados inerentes
às margens do corpo humano? Por que deveriam as mar-
gens corporais ser consideradas especialmente investidas
de poder e perigo?
Primeiramente, podemos excluir a idéia de que os
rituais públicos expressam fantasias infantis comuns.
Esses desejos eróticos, que são considerados como o so-
nho da criança para se satisfazer dentro do limite do
corpo são presumivclmente comuns à raça humana.
Conseqüentemente, o simbolismo do corpo, faz parte do
estoque comum de símbolos, profundamente emotivo,
em virtude da experiência humana do indivíduo. Mas,
os rituais recorrem, seletivamente, a esse estoque comum
de símbolos. Alguns desenvolvidos aqui, outros ali. Ex-
plicações psicológicas não podem, por sua natureza,
dar conta do que é culturalmente distintivo.
Em segundo lugar, todas as margens são perigosas.
Se são empurradas desta ou daquela maneira, a forma
da experiência fundamental é alterada. Qualquer estru-
tura de idéias é vulnerável em suas margens. Deveríamos
esperar que os orifícios do corpo simbolizassem seus
pontos especialmente vulneráveis. O que sai deles é ma-
terial marginal da mais óbvia espécie. Saliva, sangue,
leite, urina, fezes ou lágrimas, atravessaram pela sim-
ples saída física, o limite do corpo. Assim, também, as
coberturas do corpo, a pele, a unha, mechas de cabelo
e o suor. O erro consiste em tratar as margens corpo-
rais isoladamente de todas as outras. Não há razão para
atribuir qualquer primazia à atitude do indivíduo com
relação a sua experiência física e emocional, mais do que
a sua experiência social e cultural. Esta é a chave que
explica a irregularidade com que diferentes aspectos do
corpo são tratados nos rituais do mundo. Em alguns, a

149
poluição menstrual é temida como um perigo letal; cm
outros, isso não ocorre (ver Cap. 9). Em outros, a po-
luição da morte é uma preocupação diária; em outros,
não o é de forma alguma. Em alguns, ainda, o excremen-
to é perigoso; cm outros é somente uma brincadeira.
Na India, a comida cozida e a saliva são propensas à
poluição, porém, os bosquímanos juntam sementes de
melão retiradas de suas bocas para mais tarde assá-las
e comê-las (Marshall Thomas, p. 44).
Cada cultura tem seus próprios problemas c riscos
específicos. As margens particulares do corpo a que suas
crenças atribuem poder dependem da situação em que
o corpo está refletido. Parece que nossos receios e dese-
jos mais profundos se expressam com uma espécie de
sagacidade espirituosa. Para entender a poluição do cor-
po devemos tentar rediscutir, desde perigos desconheci-
dos da sociedade até a seleção conhecida de temas cor-
póreos, e tentar reconhecer o tipo de adequação que
existe.
Buscando uma desesperada redução de todo o com-
portamento às preocupações pessoais dos indivíduos com
seus próprios corpos, os psicólogos estão meramente
aferrando-se a suas preocupações.
A irrisória observação de que o inconsciente vê um pênis
em todo objeto convexo e uma vagina ou ânus em todo objeto
côncavo foi uma vez feita contra a psicnnálise. Acho que esta
frase caracteriza bem os fatos (Ferenczi, Sex ln Psychoana/ysis,
p. 227, citação de Brown).

:B dever de todo artesão trabalhar com sua técnica.


Os sociólogos têm o dever de encontrar uma espécie
de reducionismo com a deles. Como é verdade que tudo
simboliza o corpo, então também é verdade (e tudo o
mais por aquela razão) que o corpo simboliza todo o
resto. A partir deste simbolismo, que de camadas em
camadas de significado interior remete à experiência do
eu com seu corpo, o sociólogo encontra justificativa, ao
tentar trabalhar em outra direção, para retirar algumas
amostras de insight sobre a experiência do eu na so-
ciedade.
Se o erotismo anal é expresso ao nível cultural, não
estamos autorizados a esperar uma população de eró-
ticos anais. Devemos procurar cm torno qualquer coi-
sa que tenha tornado adequada qualquer analogia cultu-

150
ral com erotismo anal. O procedimento é, de uma certa
forma, como a análise de Freud sobre o chiste. Tentando
descobrir uma conexão entre a forma verbal e o entre-
tenimento dela derivado, reduziu, laboriosamente, a in-
terpretação a algumas regras gerais. Nenhum escritor de
textos de comédia poderia usar regras para inven-
tar piadas, mas elas nos ajudam a ver conexões entre
o riso, o inconsciente e a estrutura das estórias. A ana-
logia é justa, pois a poluição é como uma forma inver-
tida de humor. Não é uma piada, pois ela não diverte.
Mas, a estrutura de seu simbolismo usa a comparação e
o duplo sentido, como a estrutura de um piada.
Quatro espécies de poluição social parecem mere-
cedoras de diferenciação. A primeira é o perigo pres-
sionando os limites externos; a segunda, o perigo que
surge da transgressão dos limites internos do sistema;
a terceira, o perigo nas margens das linhas. A quarta,
o perigo de contradição interna, quando alguns pos-
tulados básicos são negados por outros da mesma na-
tureza, de modo que, em certos pontos, o sistema pa-
rece estar em guerra consigo mesmo. Neste capítulo
mostro como o simbolismo dos limites do corpo é usado
nessa espécie de espírito humorístico não divertido, para
expressar perigo aos limites da comunidade.
A vida ritual dos Coorgs (Srinivas) dá a impressão
de um povo obcecado pelo medo de que impurezas pe-
rigosas penetrem em seu sistema. Tratam o corpo como
se fosse uma cidade cercada, cada entrada e saída guar-
dada por espiões e traidores. Qualquer coisa que saia
do corpo jamais deverá ser readmitida, mas rigorosa-
mente afastada. A poluição mais perigosa está em qual-
quer coisa que, após emergir uma vez, tenha conseguido
a reentrada. Um pequeno mito, trivial em relação a ou-
tros padrões, justifica de tal forma seu comportamento
e sistema de pensamento que o etnógrafo tem que se
referir a ele, três ou quatro vezes. Uma Deusa, em cada
prova de força ou astúcia, derrotava seus dois irmãos.
Desde que a futura primazia dependia do resultado
dessas provas, decidiram derrotar a deusa por meio
de um ardil. Induzida pela astúcia, retira da boca a bé-
tele que estava mastigando, para ver se era mais ver-
melha que a deles c, novamente, a introduz rapidamente
na boca. Assim que comprendeu haver comido algo que
já estivera em sua boca e, portanto, algo contaminado

151
pela saliva, embora chorasse e se lastimasse, aceitou a
justiça da derrota. O erro cancelou todas as suas vitó-
rias anteriores, ficando assim estabelecida como um di-
reito a eterna primazia de seus irmãos sobre ela.
Os Coorgs têm lugar dentro do sistema de castas
hindu. Existem boas razões para não os considerarmos
como excepcionais ou aberrantes na lndia (Dumont e
Pocock). Por isso, concebem o status em termos de pu-
reza ou impureza, tal como essas idéias são aplicadas
em todo o sistema de castas. As castas mais baixas são
as mais impuras e, são elas, por seus humildes serviços,
que habilitam as castas mais altas a serem livres das
impurezas corpóreas. Lavam as roupas, cortam o cabelo,
vestem os cadáveres etc. O sistema todo representa um
corpo no qual, pela divisão de trabalho, a cabeça se
encarrega do pensamento e da oração e as partes mais
desprezadas retiram o lixo. Cada comunidade de sub-
casta, numa região local, está consciente de seu prestígio
relativo na escala de pureza. Visto da posição do ego,
o sistema de pureza de casta é estruturado de forma as-
cendente. Os acima dele são mais puros. Todas as posi-
ções abaixo dele, mesmo estando intricadamente dis-
tintas entre si, lhe são poluidoras. Assim, para qualquer
ego, dentro do sistema, a não estrutura ameaçadora, con-
tra a qual precisam ser erguidas barreiras, está abaixo
dele. O triste humor da poluição como um comentário
sobre as funções corporais simboliza uma descida na es-
trutura de castas, pelo contacte> com fezes, sangue e ca-
dáveres.
Os Coorgs partilham com outras castas este medo
do que está fora e abaixo. Mas, vivendo em suas lon-
gínquas montanhas, eram também uma comunidade iso-
lada, mantendo apenas contacto ocasional e controlá-
vel com o mundo ao redor. Para eles, o modelo das
entradas e saídas do corpo humano é um foco simbóli-
co duplamente adequado para expressar o seu medo de
ser uma minoria, na sociedade mais ampla. Estou suge-
rindo que, quando rituais expressam apreensão sobre os
orifícios do corpo, a contrapartida sociológica desta
apreensão é uma preocupação no sentido de proteger
a unidade politica e cultural do grupo minoritário. Os is-
raelitas foram sempre em sua história uma minoria sob
grande pressão. Em suas crenças, todas as coisas expe-
lidas do corpo eram poluidoras: sangue, pus, excre-

152
mento, sêmen etc. Os limites ameaçados de seu cor-
po político estariam bem refletidos em sua preocupa-
ção pela integridade, unidade e pureza do corpo fí-
sico.
O sistema de casta hindu, embora abranja todas as
minorias, abarca cada uma como subunidade cultural
distintiva. Em qualquer localidade dada, é provável que
qualquer subcasta seja uma minoria; quanto mais puro
e alto for seu status no sistema de castas tanto mais
ela deverá ser parle de uma minoria. Logo, a repulsa
advinda do fato de tocar cadáveres e excrementos não
expressa meramente a ordem da casta no sistema como
um todo. A preocupação com os limites corpóreos ex-
pressa perigo para a sobrevivência do grupo.
Quando consideramos o que são as atitudes parti-
culares dos indianos em relação à defecação verifica-se
claramente que a abordagem sociológica da poluição de
casta é muito mais convincente do que a psicanalítica.
No ritual, sabemos que tocar excrementos é ser conta-
minado e que os limpadores de latrina ficam no mais
baixo grau da hierarquia de castas. Se esta regra de po-
luição expressasse preocupações individuais, deveríamos
esperar que os hindus fossem controlados e reservados
em relação ao ato da defecação. Torna-se um choque
considerável ler que uma descuidada negligência é sua
atitude normal, a tal ponto que, calçadas, varandas e
lugares públicos, ficam sujos de fezes até que um varre-
dor os limpe.
Os indianos defecam em qualquer lugar, principalmente
perto dos trilhos de estradas de ferro. Mas também defecam
nas praias, nas ruas; nunca procuram abrigo ... Sobre estas
figuras agachadas - para o visitante, depois de um tempo, tão
eternas e simbólicas quanto o Pl!nsador de Rodin - nunca se
escreveu, não são mencionadas em romances ou estórias, não
aparecem em documentários ou em filmes de longa metra&em.
Isto poderia ser visto como parte de uma permissiva intenção
embelezadora. Mas, a verdade é que os indianos não vêem
essa gente acocorada e, poderiam mesmo, com completa since-
ridade, negar que ela exista (Naipaul, Cap. 3).

Em vez de erotismo oral ou anal, é mais convin-


cente argüir que a poluição de casta representa somente
o que assevera ser. ~ um sistema simbólico, baseado na
imagem do corpo, cuja preocupação fundamental é a or-
denação da hierarquia social.

153
Vale a pena usar o exemplo indiano para pergun-
tar por que se atribui à saliva e excreções genitais maior
grau de poluição do que às lágrimas. "Se posso beber
suas lágrimas ardentemente", escreveu Jean Genet, "por-
que não, então, o límpido pingo na ponta do seu nariz?"
Para isto podemos replicar: primeiro que as secreções
nasais não são tão límpidas quanto as lágrimas. São mais
como melado do que água. Quando um espesso defluxo
verte do olho não é mais adequado à poesia do que o
defluxo nasal. Mas, admitidamente Jimpas, as lágrimas
correntes constituem material de poesia romântica: não
maculam. Parcialmente é assim, porque as lágrimas são
naturalmente incorporadas ao simbolismo de lavar. Lá-
grimas são como rios de água corrente. Purificam, lim-
pam, banham os olhos; como podem pois poluir? Porém,
mais significativamente, as lágrimas não são relacionadas
às funções físicas da digestão ou procriação. Por isso,
sua oportunidade de simbolizar relações sociais é li-
mitada. Isto é evidente quando refletimos sobre a es-
trutura de castas. Desde que o lugar, na hierarquia de
pureza, é biologicamente transmitido, o comportamen-
to sexual é importante para preservar a pureza da cas-
ta. Por esta razão, nas castas mais altas, o poluição li-
mítrofe focaliza, principalmente, a sexualidade. A liga-
ção de um indivíduo a uma casta é determinada por
sua mãe, pois, mesmo que ela tenha se casado numa
casta mais alta, seus filhos pertencem à casta dela.
Assim, as mulheres são o portão de entrada para a cas-
ta. A pureza feminina é cuidadosamente guardada e
quando se sabe que uma mulher manteve relações se-
xuais com um homem de uma casta inferior, ela é seve-
ramente punida. A pureza sexual masculina não acarreta
essa responsabilidade. Portanto, a promiscuidade mas-
culina é um assunto menos sério. Um simples banho ri-
tual é suficiente para purificar um homem do contacto
sexual com uma mulher de casta mais baixa. Mas, sua
sexualidade não se liberta inteiramente do peso da preo-
cupação que a poluição limítrofe atribui ao corpo. De
acordo com a crença hindu, uma qualidade sagrada é
inerente ao sêmen que não pode ser desperdiçado. Num
penetrante ensaio sobre a pureza feminina na !ndia
(1963), Yalman diz:

154
Enquanto deve ser protegida a pureza de casta nas mu-
lheres, podendo ser concedidas aos homens liberdades muitt>
maiores, é, naturalmente, melhor para os homens não des-
perdiçar a qualidade sagrada contida em seu sêmen. f: sabido
que são exortados não só a evitar mulheres de casta mais
baixa, mas toda mulher (Carstairs, 1956-57; Gough, 1956) .
Pois a perda de sêmen é a perda deste potente material ..
é melhor nunca dormir com mulher.

Tanto a fisiologia masculina quanto a feminina pres-


~-se à analogia com o recipiente que não deve emitir
copiosamente ou enfraquecer seus fluidos vitais. As mu-
lheres são justamente vistas como a entrada pela qual
o conteúdo puro pode ser adulterado. Os homens são
tratados como poros, através dos quais o precioso mate-
rial pode verter e ser perdido, sendo assim todo o siste-
ma enfraquecido.
Um duplo critério moral é freqüentemente aplicado
a delitos sexuais. Num sistema patrilinear de descendên-
cia, as esposas são a porta de entrada para o grupo.
Nisto, elas detêm um lugar análogo àquele das irmãs na
casta hindu. Através do adultério de uma esposa, san-
gue impuro é introduzido na linhagem. Assim, o sim-
bolismo do recipiente imperfeito tem apropriadamente
uma influência maior sobre as mulheres que sobre os
homens.
Se tratamos o ritual de proteção aos orifícios do
corpo humano como um símbolo de preocupações so-
ciais sobre entradas e saídas, a pureza de alimentos co-
zidos torna-se importante. Cito uma passagem sobre a
capacidade de o alimento cozido ser poluído e transmi-
tir poluição (num artigo critico anônimo, " Puro e Im-
puro", Contributions to Indian Sociology, III, jul. 1959,
p. 37):

Quando um homem usa um objeto, ele se torna parte dele,


participa dele. Então, sem dúvida, esta apropriação é maior
no caso do alimento, e ~ que a apropriação precede a ab-
sorção, como segue o ato de cozinhar. Pode se tomar o ato
de cozinhar, por implicar uma completa apropriação da comi-
da pelo grupo doméstico. f: quase como se, sendo antes "absor-
vida internamente" pelo indivíduo, a comida fosse, através do
ato de cozinhar, pré-digerida coletivamente. Uma pessoa não
pode compartilhar da comida preparada por outras pessoas sem
compartilhar da natureza delas. Este é um aspecto da situação.
Um outro aspecto, é que o alimento cozido, é extremamente
permeável à poluição.

155
Este trecho, parece uma correta transliteração do
simbolismo de poluição dos indianos em relação à co-
mida cozida. Mas, o que se ganha, oferecendo-se um re-
lato descritivo como se fosse explanativo? Na lndia, o
processo de cozinhar é visto como o início da ingestão
e, por conseguinte, cozinhar é suscetível à poluição, da
mesma forma que comer. Mas, por que este complexo é
encontrado na lndia e, em partes da PoHnésia, no Ju-
daísmo e em outros lugares, mas não em qualquer lu·
gar que as pessoas sentam para comer? Sugiro que a
comida não é provavelmente poluída, a menos que os
limites externos do sistema social estejam sob pressão.
Podemos prosseguir a [iro de explicar por que o ato de
cozinhar na lndia deve ser ritualmente puro. A pureza
das castas está correlacionada com uma elaborada divi-
são hereditária do trabalho entre as mesmas. O trabalho
executado por uma casta carrega um peso simbólico:
isto diz algo a respeito do status relativamente puro da
casta em questão. Algumas espécies de trabalho corres-
pondem às funções excrementárias do corpo, por exem-
plo, aquela dos lavadores, barbeiros, varredores, como
vimos. Algumas profissões estão envolvidas com ma-
tanças ou bebidas alcoólicas, assim como curtidores,
guerreiros, e os que preparam bebidas. Por isso ficam
numa posição inferior na escala de pureza, de forma que
suas ocupações são discrepantes dos ideais bramânicos.
Mas, o momento em que a comida é preparada para a
mesa é aquele em que a inter-relação da estrutura de
pureza e da ocupacional precisa ser exatamente estabele-
cida. Pois o aUmento é produzido pelo esforço combi-
nado de diversas castas, de graus variáveis de pureza:
o ferreiro, o carpinteiro, o cordoeiro, o camponês. Antes
de ser permitida ao corpo, é necessária uma ruptura sim-
bólica para expressar a separação do aUmento de con-
tactos impuros, porém necessários. O processo de co-
zinhar, entregue ao cuidado de mãos puras, provê
essa ruptura ritual. Tais rupturas são previsíveis quan-
do a produção de alimentos está em mãos relativamente
impuras.
Estas são as tinhas gerais nas quais os rituais
primitivos devem ser relacionados com a ordem social
e a cultura onde são encontrados. Os exemplos que dei
são rudes, pretendendo exemplificar uma ampla objeção

156
a uma certa abordagem de temas rituais. Acrescento
mais um, também rude, para salientar minha idéia. Exis-
te uma vasta literatura desenvolvida por psicólogos sobre
as idéias de poluição dos Yuroks (Erikson, Posinsky).
Esses índios do Norte da Califórnia, que vivem da pes-
ca de salmão no rio Klamath, pareceriam ter sido obse-
dados pelo comportamento dos üquidos, se é que se
pode dizer que suas regras de poluição expressam uma
obsessão. São cuidadosos em não misturar água boa com
má, em não urinar nos rios, em não misturar água doce
com a do mar etc. Insisto em que essas regras não de-
vem implicar neuroses obsessivas e não devem ser inter-
pretadas a não ser que a fluida falta de forma de sua
vida social altamente competitiva seja levada em conta
(Dubois).
Em resumo, há, inquestionavelmente, uma relação
entre preocupações individuais e o ritual primitivo. Mas,
a relação não é aquela relação simples proposta por
alguns psicanalistas. O ritual primitivo forma-se sobre
a experiência individual, naturalmente. Isto é um truís-
mo. Mas, forma-se tão seletivamente sobre ela que não
se pode dizer que tenha sido primordialmente inspirado
pela necessidade de resolver problemas individuais co-
muns à raça humana, ainda menos explicada por pes-
quisas clínicas. Os primitivos não estão tentando curar
ou evitar neuroses pessoais através de seus rituais pú-
blicos. Psicólogos podem nos dizer se a expressão pú-
blica de ansiedades individuais tem a probabilidade de
solucionar ou não problemas pessoais. Certamente, de-
vemos supor que é provável alguma interação do gê-
nero. Mas isto não está em causa. A análise do sim-
bolismo ritual não pode começar até reconhecermos o
ritual como uma tentativa de criar e manter urna cul-
tura particular um conjunto de pressupostos através do
qual a experiência é controlada.
Qualquer cultura é uma série de estruturas rela-
cionadas que abrangem formas sociais, valores, cosmolo-
gia, o todo do conhecimento e, através da qual toda ex-
periência é mediada. Certos temas culturais são expressos
por ritos de manipulação do corpo. Neste sentido geral,
a cultura primitiva pode ser considerada autoplâstica.
Mas, o objetivo desses rituais não é o retraimento nega-
tivo da realidade. As asserções que fazem usualmente

157
não devem ser comparadas ao retraimento da criança
no ato de chupar o dedo e na masturbação. Os rituais
representam a forma das relações sociais e dão a elas
expressão visível, capacitando as pessoas a conhece-
rem sua própria sociedade. Os rituais influem sobre o
corpo político por intermédio do agente simbólico do
corpo físico.

158
8. LINHAS INTERNAS

No pnnctpiO deste século, acreditava-se que as


idéias primitivas de contágio não tinham nada a ver com
a ética. Essa foi a maneira pela qual uma categoria
especial de ritual chamada magia foi instituída como
discussão erudita. Se se pudesse mostrar alguma rela-
ção entre o ritual de poluição e a moral, seu lugar
estaria, exatamente, dentro do campo da religião. Para
completar nosso estudo de como a religião primitiva
sofreu nas mãos da Antropologia antiga, resta mostrar
que a poluição tem, de fato, muito a ver com a moral.
:e verdade que as regras de poluição não corres-
pondem, exatamente, às regras morais. Alguns tipos de
comportamento podem ser julgados errados e mesmo
assim não provocarem crenças de poluição, enquanto
outros, julgados não muito repreensíveis, são tidos como
sendo poluitivos e perigosos. Aqui e ali, descobrimos

159
que o que é errado é também poluitivo. As regras de po-
luição apenas realçam um pequeno aspecto do com-
portamento moralmente desaprovado. Mas, precisamos
ainda perguntar se a poluição toca na moral de uma
maneira arbitrária ou não.
Para responder a isso, precisamos considerar mais
de perto as situações morais e pensar nas relações entre
consciência e estrutura social. De modo geral, a cons-
ciência particular e o código de moral pública influen-
ciam-se continuamente. Como David Pole diz:
O código público que faz e molda a consciência particular
é, por sua vez, refeito e moldado por ela. . . Na legítima reci-
procidade do processo, o código público e a consciência par-
ticular confluem: cada um resulta do outro e, ao mesmo
tempo, contribui para o outro, canaliza-o e é canalizado. Os
dois, similarmente, são novamente dirigidos e desenvolvidos
(pp. 91-92).

Usualmente, não é necessário fazer muita distinção


entre os dois. Entretanto, achamos que não podemos
entender esse campo da poluição, a menos que entremos
na esfera que fica entre o comportamento que um indi-
víduo aprova para si e aquele que ele aprova para os
outros; entre o que aprova como uma questão de prin-
cípios e o que deseja veementemente para si, aqui e
agora, em contradição com o princípio; entre o que
aprova a longo prazo e o que aprova a curto prazo. Em
tudo isto há um campo para a discrepância.
Começaríamos por reconhecer que não é fácil de-
finir as situações morais. São comumente mais obscuras
e contraditórias do que bem definidas. :S da natureza
de uma regra moral ser geral e sua aplicação a um
contexto particular deve ser incerta. Por exemplo, os
Nueres acreditam que o homicídio dentro da comunidade
local e o incesto são ilícitos. Mas, um homem pode ser
levado a romper a regra do homicídio, seguindo uma
outra regra de comportamento aprovado. Visto que os
Nueres são ensinados desde meninos a defender seus di-
reitos pela força, qualquer homem pode, involuntaria-
mente, matar seu companheiro de aldeia numa briga.
Além disso, as regras de relacionamento sexual proibidas
são complicadas e a avaliação genealógica, em alguns
sentidos, é obscura. Um homem não pode, facilmente,
ter certeza se uma mulher em particular está para ele

160
num grau de parentesco proibido ou não. Assim pode
haver, freqüentemente, mais que uma opinião sobre
qual a ação certa, cm virtude do desacordo, sobre o
que é relevante para o julgamento moral e sobre a con-
seqüência avaliada de um ato. As regras de poluição,
em contraste com as morais, são inequívocas. Não de-
pendem da intenção ou de um correto equilíbrio entre
direitos e deveres. A única questão material é se um
contacto proibido ocorreu ou não. Se os perigos da po-
luição fossem estrategicamente colocados ao longo dos
pontos cruciais do código moral, poderiam, teoricamen-
te, reforçá-lo. Mas, tal distribuição estratégica de regras
poluitivas é impossível, visto que o código moral, por
sua natureza, não pode ser reduzido a algo simples, firme
e seguro.
Quando examinamos mais detidamente as rela-
ções entre atitudes poluitivas e morais, discernimos es-
forços semelhantes para reforçar, dessa maneira, um có-
digo moral simplificado. Para permanecer na mesma tri-
bo, os Nueres não podem sempre saber se cometeram
ou não incesto. Mas, acreditam que o incesto traz infor-
túnio sob a forma de doença da pele, que pode ser evi-
tada por sacrifício. Se sabem que se expuseram ao pe-
rigo, devem, então, realizar o sacrifício; se julgam que
o grau de parentesco é distante e, portanto, o perigo é
insignificante, devem abandonar a questão para ser tra-
tada post hoc, pelo aparecimento ou não da doença de
pele. Assim, as regras de poluição podem servir para
resolver incertas questões morais.
As atitudes dos Nueres em relação aos contactos
que consideram perigosos não são necessariamente de re-
provação. Ficariam horrorizados num caso de incesto
entre mãe e filho, mas, muitos dos relacionamentos
que lhes são proibidos não provocam muita condena-
ção. Um "pequeno incesto" é algo que poderia acon-
tecer entre as melhores famílias, em qualquer tempo.
Encaram igualmente os efeitos do adultério como peri-
gosos ao marido traído; está sujeito a ter dores nas
costas, quando, posteriormente, tiver relações com a es-
posa, e isto somente pode ser evitado por um sacri-
fício, para o qual o animal deveria ser fornecido pelo
adúltero. Mas, ainda que um adúltero possa ser assassi-
nado sem compensação, se for pego em flagrante, os
Nueres não parecem desaprovar o adultério em si mes-

161
mo. Tem-se a impressão de que perseguir as mulheres
de outros homens é visto como um esporte perigoso, ao
qual, normalmente, qualquer homem pode ser tentado a
se entregar (Evans-Pritchard, 1951).
Ora, é o mesmo Nuer que tem temores da poluição
e que faz julgamentos morais: o antropólogo não acre-
dita que as freqüentes punições letais por incesto e adul-
tério sejam externamente impostas sobre eles, por seu
severo deus, no interesse de que se mantenha a estru-
tura social. A integridade da estrutura social está em
debate, quando são feitas violações das regras de adul-
tério e incesto, pois a estrutura local consiste inteira-
mente em categorias de pessoas definidas por regu-
lamentos de incesto, remuneração de casamento, status
-;onjugal. Para terem produzido uma tal sociedade, os
Nueres, evidentemente, precisaram elaborar complicadas
regras sobre incesto e adultério e, para mantê-las, têm
confirmado as regras, por ameaças de perigo de con-
tactos proibidos. Essas regras e sanções expressam a
consciência pública, expressam os Nueres quando pen-
sam em termos gerais. Qualquer caso particular de in-
cesto ou adultério interessa aos N ueres de diferentes ma-
neiras. Os homens parecem se identificar mais com os
adúlteros do que com os maridos feridos. Seus senti-
mentos de desaprovação moral não estão envolvidos com
o matrimônio e a estrutura social, quando confrontados
com um caso particular. Portanto, um motivo da discre-
pância entre as regras de poluição e os julgamentos
morais. Sugere que as regras de poluição devam ter
uma outra função social útil - de coordenar a desapro-
vação moral quando esta tarda. O marido nuer, desabi-
litado ou ainda, agonizante pela poluição do adultério,
é reconhecido como a vítima do adúltero; a menos que
este pague a penalidade e providencie o sacrifício, será
morto pelo marido.
Outro ponto geral é sugerido por este exemplo. De-
mos exemplos de comportamentos que os Nueres enca-
ram muitas vezes como moralmente neutros e que acre-
ditam, não obstante, provocar perigosas manifestações
de poder. Existem também tipos de comportamento que
os Nueres encaram como totalmente repreensíveis mas
que não julgam provocarem perigos automáticos. Por
exemplo, é um dever positivo para um filho honrar seu
pai e atos de desrespeito filial são vistos como muito

162
errados. Mas, diferentemente, a falta de respeito para
com os sogros não está sujeita a punição automática. A
diferença social entre as duas situações é que o pai, como
chefe de toda a família e controlador do seu rebanho,
está numa posição económica importante para afirmar
seu status superior, enquanto o sogro e a sogra não o
estão. Isto está de acordo com o princípio geral de que,
quando o sentido de ultraje é adequadamente equipado
com sanções práticas na ordem social, é provável que a
poluição não apareça. Onde, humanamente falando, o ul-
traje é, comuroente, impune, crenças de poluição tendem
a ser chamadas para suplementar a falta de outras
sanções.
Em suma, se pudéssemos extrair, de todo o volume
de comportamento dos Nueres, certos tipos de compor-
tamento que são por eles condenados, teríamos um ma-
pa de seu código moral. Se pudéssemos fazer um outro
mapa de suas crenças de poluição, acharíamos que ele
toca os limites da moralidade aqui e ali, mas não é, de
maneira alguma congruente com a mesma. Grande parte
de suas regras de poluição dizem respeito à etiqueta entre
marido e mulher e entre parentes afins. As punições
que julgam dever recair sobre aqueles que quebram essas
regras podem ser interpretadas pela fórmula de Radclif-
fe-Brown acerca do valor social: as regras expressam o
valor do casamento naquela sociedade. São regras es-
pecfficas de poluição, como aquela que proíbe à esposa
beber o leite das vacas que foram pagas para seu casa-
mento. Tais regras não coincidem com regras morais,
embora possam expressar a sanção a atitudes gerais
(tal como o respeito ao rebanho do marido). Estas
regras estão apenas indiretamente relacionadas com o
código moral na medida em que chamam atenção sobre
o valor do comportamento que assenta na estrutura da
sociedade, sendo o próprio código de moralidade re-
lacionado com aquela mesma estrutura social.
Existem pois outras regras de poluição que tocam
o código moral mais de perto, como as que proíbem o
incesto ou homicídio dentro da comunidade local. O fato
de que as crenças de poluição fornecem uma espécie
de punição impessoal para transgressões proporciona
um meio de sustentar o sistema moral aceito. Os exem-
plos dos Nueres sugerem a maneira pela qual as crenças
de poluição podem sustentar o código moral:

163
(1) Quando uma situação é moralmente mal defi-
nida, uma crença de poluição pode fornecer uma regra
para determinar post hoc se a infração ocorreu ou não.
(2) Quando princípios morais entram em conflito,
uma regra de poluição pode reduzir a confusão provi-
denciando um simples foco de preocupação.
(3) Quando a ação que é para ser vista como mo-
ralmente errada não provoca indignação moral, a crença
nas conseqüências prejudiciais de uma poluição pode
ter o efeito de agravar a seriedade da ofensa, e então,
conduzir a opinião para o lado do que é certo.
( 4) Quando a indignação moral não é reforçada
por sanções práticas, as crenças de poluição podem for-
necer um impedimento aos transgressores.
Este último ponto pode ser ampliado. Numa socie-
dade de pequena escalada é pouco provável que o me-
canismo de retribuição seja forte ou muito certo em
sua ação. Cremos que as crenças de poluição reforçam-
no de duas diferentes maneiras: ou o próprio trans-
gressor é considerado vítima de seu próprio ato ou al-
guma vítima inocente sofre o ataque do perigo. Espera-
ríamos que isto se alterasse de uma maneira regular.
Em qualquer sistema social, pode haver algumas normas
morais fortemente mantidas, cuja violação não pode ser
punida. Por exemplo, quando a ajuda a si mesmo é a
única maneira de corrigir o errado, o povo une-se para
proteger-se em grupos que buscam vingança para seus
membros. Em tal sistema, talvez não exista nenhuma ma-
neira fácil de exigir vingança quando um assassinato foi
cometido dentro do próprio grupo; matar deliberada-
mente, ou ainda expulsar o membro do grupo, poderia
ofender o princípio mais forte de todos. Comumente,
nesses casos, descobrimos que se espera que o perigo da
poluição recaia sobre a cabeça do fratricida.
Este é um problema muito düereote da poluição
cujos perigos recaem, não sobre a cabeça do transgres-
sor, mas sobre a do inocente. Vimos que o marido
inocente nuer é aquele cuja vida está em perigo, quan-
do sua esposa comete adultério. Existem muitas varia-
ções sobre este tema. Muitas vezes, é a esposa culpada,
outras, é o marido traído, outras vezes, são os filhos,
cujas vidas correm perigo. O próprio adúltero não é,

164
muitas vezes, considerado em perigo, embora os Ontongs
de Java, tenham essa crença (Hogbin, p. 153). No caso
do fratricídio acima, não deixa de haver a indignação
moral. O problema é uma questão prática de como pu-
nir em vez de como estimular o fervor moral contra o
crime. O perigo substitui a punição humana ativa. No
caso da poluição do adultério, a crença de que os ino-
centes estão em perigo ajuda a marcar o delinqüente e
despertar o fervor moral contra ele. Assim, neste caso,
as idéias de poluição fortalecem a exigência de punição
humana ativa.
Foge ao âmbito deste estudo coletar e comparar
um grande número de exemplos. Mas, aqui está um
campo que seria interessante de aparelhar com pesquisa
documental. Quais são as circunstâncias precisas em que
se considera que a poluição do adultério põe em risco o
marido traído, o feto ou as crianças, o delinqüeote ou
a inocente esposa? Sempre que o perigo segue o adul-
tério secreto, num sistema social, no qual alguém tem
o direito de alegar danos se o adultério é conhecido, a
crença de poluição age como um detector post hoc do
crime. Isto ajusta-se ao caso nuer acima. Um outro
exemplo vem numa declaração feita por um marido
nyakyusa:

Se estou sempre bem e forte e descubro que me sinto can-


sado, ao andar ou trabalhar na enxada, penso: "O que é isso?
Olha só, sempre estive bem e agora estou muito cansado". Meus
amigos dizem: ":1:: um:l mulher, você deitou com uma mulher
que estava menstruada". E, se depois de comer começa a
diarréia, eles dizem: ":1:: uma mulher, eles oometeram adultério!"
Minhas esposas o negam. Vamos ao adivinho e alguém é apa-
nhado; se ela concordar, pronto, mas, se ela o negasse, íamos
antigamente para a prova venenosa. A mulher bebia sozinha,
eu não. Se ela vomitasse, então cu estava derrotado, a mulher
era boa, mas se o veneno a pegasse, então seu pai pagar-me-ia
uma vaca (Wilson, 1957, p. 133).

Similarmente, quando se acredita que uma mulher


abortará se tiver cometido adultério enquanto grávida, e
que seu filho morrerá, se cometer adultério enquanto o
amamentar, alguém pode ter um caso de reparação por
sangue, em cada adultério confessado. Se, as moças
normalmente se casam antes da puberdade e espera-
se que vá da gravidez ao parto e do parto ao período
de amamentação, de três a quatro anos, e então, para

165
uma outra gravidez, o marido está, teoricamente, asse-
gurado contra a infidelidade até a sua menopausa. Além
disso, o comportamento da própria esposa é, desse mo-
do, pesadamente sancionado através dos perigos para
seus filhos e para sua própria vida, na hora do parto.
Tudo isso faz sentido. Aqui, crenças de poluição assegu-
ram relações matrimoniais. Mas, ainda não estamos
respondendo por que, em alguns casos, o marido pode-
ria ser a vítima e, em outros, a esposa em trabalho de
parto ou, as crianças, ou ainda, em outros, como entre
os Bembas, a pessoa inocente, seja o marido ou a mu~
lher, que está automaticamente em perigo.
A resposta deve situar-se num exame minucioso da
distribuição dos direitos e deveres no casamento e nos
vários interesses e vantagens de cada uma das partes. A
incidência variável de perigo permite que o julgamento
moral aponte indivíduos diferentes: se a própria esposa
está em perigo, ao ponto de arriscar sua própria vida no
trabalho de parto, a indignação é suscitada contra seu
sedutor. Isto sugere uma sociedade onde é menos pro-
vável que a esposa receba uma surra por sua má con-
duta. Se a vida do marido está em perigo, então, presu-
rnivelmente, a culpabilidade recai sobre a mulher ou
seu amante. Como um palpite (mais para fazer alguma
sugestão a ser testada do que por ter muita confiança
em sua veracidade), não poderia ser que o perigo re-
caísse sobre a esposa quando, por uma razão ou outra,
ela não pudesse ser castigada publicamente? Será tal-
vez porque a presença de sua família na aldeia a pro-
teja? Então, deveriamos esperar que, no caso oposto,
quando o perigo recai sobre o marido, isto lhe ofereça
uma desculpa suplementar para dar na mulher uma
boa surra, ou pelo menos convocar a opinião da co-
munidade contra seu comportamento dissoluto. Sugiro
aqui que é na sociedade onde o casamento é estável e
onde as esposas são mantidas sobre controle que o pe-
rigo do adultério pode recair sobre o marido traído.
Discutimos até agora quatro maneiras pelas quais
a poluição tende a apoiar valores morais. O fato de que
as poluições sejam mais fáceis de anular que os defeitos
morais nos dá um outro conjunto de situações. Algumas
poluições são muito graves para que seja permitido ao
infrator sobreviver. Mas, muitas delas têm um corretivo
simples para desfazer seus efeitos. Existem ritos de anu-

166
lação, resolução, esquecimento, lavagem, apagamento,
defumação etc., que com pouco tempo e esforço podem,
satisfatoriamente, eliminá-las. O cancelamento de uma
ofensa moral depende do estado de espírito da parte
ofendida e do prazer de esperar a vingança. As conse-
qüências sociais de algumas ofensas espalham-se em to-
das as direções e não podem nunca ser anuladas. Os
ritos de reconciliação que representam o sepultamento
do erro têm o efeito criativo de todo ritual. Podem aju-
dar a apagar a memória do erro e encorajar o cresci-
mento do sentimento correto. Deve haver uma vanta-
gem para a sociedade em geral em tentar reduzir ofensas
morais a ofensas de poluição, que podem ser imediata-
mente limpas por ritual. Lévy-BrubJ, que deu muitos
exemplos de rituais de purificação ( 1936, Cap. Vlll),
teve a perspicácia de notar que o ato da restituição em
si assume o status de um rito de anulação. Ele mostra
que a lei de talião é mal entendida se for vista mera-
mente como a satisfação de uma necessidade brutal de
vingança:

Associa-se à necessidade de uma contra·ação igual ou se-


melhante à ação a lei de talião. . . porque ele sofreu um ata-
que, recebeu um ferimento e foi vítima de um mal, sente-se
exposto a uma influência ruim. Uma ameaça de infortúnio
paira sobre ele. Para se tranqüjljzar, para recobrar a calma e
segurança, a má influência assim liberta, deve ser detida, neu-
tralizada. Ora, este resultado não será obtido a menos que o
ato por ele sofrido seja anulado por um ato similar, na di-
reção oposta. Isto é precisamente o que a vingança propor-
ciona ao primitivo (pp. 392-395).

Lévy-Bruhl não cometeu o erro de supor que um


ato puramente externo é suficiente. Notou, como antro-
pólogos têm continuado a notar desde então, os árduos
esforços que são feitos para conciliar o coração e a
mente com os atos públicos. A contradição entre o com-
portamento externo e as emoções secretas é uma fonte
freqüente de ansiedade e de infortúnio esperado. Esta
é uma nova contradição que pode surgir do próprio ato
de purificação. Portanto, poderíamos reconhecê-lo como
uma poluição por si mesma autônoma. Lévy-Brubl dá
muitos exemplos do que chama os efeitos mágicos do
rancor (p. 186 ).
Estas poluições, que estão escondidas entre o ato
visível e o pensamento invisível, são como bruxaria.

167
São perigos que vêm das fendas da estrutura e, como a
bruxaria, seu poder inerente de fazer mal não depende
nem da ação externa nem de qualquer intenção deli-
berada. São perigosas em si mesmas.
Existem dois modos distintos de cancelar uma po-
luição: um é o ritual que não faz perguntas sobre o
motivo da poluição e não procura identificar o respon-
sável; o outro é o rito confessional. A julgar pela apa-
rência, esperar-se-ia que fossem aplicados a diferentes
situações. O sacrifício nuer é um exemplo do primeiro.
Os infortúnios são associados, pelos Nueres, a ofensas
que lhes são feitas, mas não procuram relacionar um
infortúnio particular a uma ofensa particular. A questão
é vista como acadêmica, pois o único recurso a eles
aberto é o mesmo em todos os casos: o sacrifício. Uma
exceção é o caso do adultério que mencionamos. É ne-
cessário conhecer o adúltero para que se possa apresen-
tar o animal para o sacrifício e também ser multado.
Refletindo sobre esse exemplo, podemos supor que a
confissão, desde que sempre torna precisa a natureza
da ofensa e permite localizar a culpa, constitui uma
boa base para exigir reparação.
Uma nova espécie de relação entre poluição e moral
surge quando somente a purificação é considerada como
tratamento adequado para erros morais. Então, todo o
conjunto de idéias, incluindo poluição e purificação,
torna-se uma espécie de rede de segurança que per-
mite às pessoas executar o que, em termos de estrutura
social, seria semelhante a proezas acrobáticas sobre um
fio de arame suspenso. O equilibrista ousa o impossível
e desafia despreocupadamente as leis da gravidade. A
simples purificação habilita as pessoas a desafiar com
impunidade as difíceis realidades de seu sistema social.
Por exemplo, os Bembas têm tal confiança em sua técni-
ca de purificação concernente ao adultério que, embora
acreditem ter o adultério perigos letais, dão vazão a seus
desejos a curto prazo. Discutirei mais detalhadamente
este caso no próximo capítulo. Aqui, o que é relevante,
é o temor aparentemente .contraditório do sexo e do
prazer advindo dele já comentado pela Dra. Richards
(pp. 154-155), e o papel dos ritos de purificação na
superação dos temores. Insiste em que nenhum Bemba
supõe que o medo da poluição do adultério dissuade
alguém do mesmo.
168
A partir disto, somos levados ao último ponto que
relaciona a poluição à moral. Qualquer conjunto de sím-
bolos pode encarregar-se de sua própria vida cultural e
mesmo adquirir iniciativa no desenvolvimento das insti-
tuições sociais. Por exemplo, entre os Bembas, as regras
de poluição sexual, diante das circunstâncias, pareceriam
expressar aprovação da fidelidade entre marido e mu-
lher. Na prática o divórcio é agora comum e, tem-se a
impressão (Richards, 1940) de que apelam para o di-
vórcio e para um novo casamento, como um meio de
evitar a poluição do adultério. Este desvio radical dos
objetivos de outrora é possível somente quando outras
forças de desintegração estão em ação. Não podemos
supor que, repentinamente, os temores de poluição to-
mam os freios entre os dentes e galopam com o sistema
social. Mas, ironicamente, podem fornecer razões para
romper com o código moral que durante um certo
tempo trabalharam para manter.
Idéias de poluição podem distrair a atenção dos
aspectos sociais e morais de uma situação, focalizando-a
numa simples questão material. Os Bembas acreditam
que a poluição do adultério seja transmitida através do
fogo. Por isso, a esposa cuidadosa parece ser obsedada
pelo problema de proteger sua lareira contra sujeiras
adúlteras, menstruais e de homicidas.
É difícil exagerar a força dessas crenças ou o alcance com
que afetam a vida diária. Numa aldeia, na hora de cozinhar,
as crianças menores são mandadas aqui e ali, para arranjar
''novo fogo" dos vizinhos que estão ritualmente puros (p. 33).

No próximo capítulo veremos por que suas ansieda-


des sobre sexo foram transferidas da cama para a mesa.
Mas, a razão por que o fogo precisa ser protegido de-
pende da configuração dos poderes que controlam seu
universo. A morte, o sangue e a frieza são confronta-
dos por seus opostos, vida, sexo e fogo. Todos os seis
poderes são perigosos. Os três poderes positivos são pe-
rigosos se não forem separados um dos outros e estão
em perigo de contacto com a morte, o sangue e a frie-
za. O ato sexual deve estar sempre separado do resto
da vida pelo rito de purificação que só marido e mu-
lher podem realizar um para o outro. O adúltero é wn
perigo público porque seu contacto macula todas as la-
reiras para cozinhar e ele não pode ser purificado. A

169
partir daí vemos que as ansiedades sobre sua vida so-
cial são apenas parte da explicação da poluição sexual
do Bemba. Para explicar por que o fogo (em vez de,
por exemplo, o sal, como entre alguns de seus vizi-
nhos) transmitiria poluição, precisaríamos abordar a
ioter-relação sistemática dos próprios símbolos mais àe-
talhadamente do que nos seria possível no presente.
Este rápido esboço é até onde posso chegar quanto
à relação entre poluição e moral. Era necessário mos-
trar que a relação está longe de ser muito simples
antes de retornar à idéia de sociedade como um comple-
xo conjunto de caixas chinesas, tendo cada subsistema
pequenos subsistemas independentes, e assim, indefini-
damente, até onde quisermos aplicar a análise. Creio
que as pessoas, realmente, pensam que seu próprio am-
biente social consiste de outras pessoas ligadas ou se-
paradas por linhas que devem ser respeitadas. Algu-
mas dessas linhas são protegidas por firmes sanções fí-
sicas. Existem igrejas nas quais mendigos não dormem
nos bancos, porque o sacristão chamará a polícia. Em
última instância, as castas mais baixas da lndia acos-
tumaram-se a se manter em seus lugares em virtude de
semelhantes sanções sociais efetivas e, em toda a gama
do sistema de castas, forças políticas e econômicas, aju-
dam a manter o sistema. Mas, onde as linhas são pre-
cárias, achamos idéias de poluição que vêm para sus-
tentá-las. O cruzamento f'tsico da barreira social é con~
siderado como uma poluição perigosa, com qualquer
uma das conseqüências que acabamos de examinar. O
poluidor toma-se um objeto de desaprovação duplamen-
te nocivo, primeiramente porque cruzou a linha e, em
segundo lugar, porque colocou outras pessoas em perigo.

170
9. O SISTEMA EM GUERRA CONSIGO MESMO

Quando a comunidade é atacada do exterior, ao


menos o perigo externo fomenta internamente a soli-
dariedade. Quando é atacada do interior por indivíduos
descontrolados, estes podem ser punidos e a estrutura,
publicamente reafirmada. Mas, é possível que a estru-
tura seja autodestruidora. Isto tem sido, há muito, um
tema familiar para antropólogos (ver Gluckman. 1962).
Talvez todos os sistemas sociais estejam construídos so-
bre contradições, em certo sentido em guerra consigo
mesmos. Mas, em alguns casos, os diferentes fins que
os indivíduos são encorajados a alcançar, estão mais har-
moniosamente relacionados que em outros.
A colaboração sexual é, por sua natureza, fértil,
construtiva, a base comum da vida social. Mas, algumas
vezes, descobrimos que, em vez da dependência e har-
monia, as instituições sexuais expressam uma rígida se-

171
paração e um violento antagonismo. Até agora temos no-
tado uma espécie de poluição sexual que expressa um
desejo de manter o corpo (físico e social) intacto. Suas
regras são expressas para controlar entradas e saídas.
Outra espécie de poluição sexual origina-se do desejo
de manter em ordem as linhas internas do sistema so-
cial. No último capítulo, como observamos, as regras
controlam contactos individuais que destroem essas li-
nhas, adultérios, incestos etc. Mas, estas, de modo al-
gum, esgotam os tipos de poluição sexual. Um terceiro
tipo pode originar-se do conflito entre as finalidades
que podem ser propostas na mesma cultura.
Em culturas primitivas, quase por definição, a dis-
tinção dos sexos é a distinção social primária. Isto quer
dizer que algumas instituições importantes sempre se
assentam na diferença de sexo. Se a estrutura social é
fracamente organizada, então homens e mulheres ainda
poderiam esperar seguir suas próprias inclinações no sen-
tido de escolher ou desfazer-se de seus parceiros se-
xuais, sem nenhuma conseqüência lamentável para toda
a sociedade. Mas, se a estrutura social primitiva é ri-
gorosamente articulada, é quase compelida a infringir a
relação entre homens e mulheres. Encontramos então
idéias de poluição interessadas em sujeitar h omens e
mulheres aos seus papéis atribuídos como mostrarei no
último capítulo.
Há uma exceção que mostraremos imediatamente.
:B provável que o sexo seja livre da poluição numa socie-
dade em que os papéis sexuais são diretamente impos-
tos. Em tal caso, qualquer pessoa que ameaçasse des-
viar-se seria imediatamente punida com força física.
Isto supõe uma eficiência administrativa e um consenso
que são raros em qualquer lugar, especialmente em so-
ciedades primitivas. Como exemplo, podemos conside-
rar os Walbiris da Austrália Central, um povo que, sem
hesitar, se utiliza da violência para assegurar que o com-
portamento sexual dos indivíduos não debilite aquela
parte da estrutura social que se fundamenta sobre a re-
Lação matrimonial. Como no resto da Austrália, uma
grande parte do sistema social depende das regras que
governam o casamento. Os Walbiris vivem num meio
ambiente deserto. Estão cônscios da dificuldade de so-
brevivência da comunidade e sua cultura aceita como um
de seus objetivos que todos os membros da comunidade

172
trabalhem e sejam tratados, de acordo com suas habili-
dades e necessidades. Isto significa que a responsabi-
lidade pelos enfermos e velhos recai sobre os sãos. Uma
disciplina estrita é afirmada por toda a comunidade, os
jovens estãos sujeitos aos mais velhos, e sobretudo, as
mulheres estão sujeitas aos homens. Geralmente, uma
mulher casada vive à distância de seu pai e irmãos. Isto
significa que, embora teoricamente tenha direito a que
eles a protejam, na prática isto é nulo. Ela fica sob o
controle do marido. Como regra geral, se o sexo fe-
minino fosse completamente submetido ao masculino,
nenhum problema seria colocado pelo princípio de do-
minação masculina. Poderia ser imposto direta e cruel-
mente, onde aplicado. Isto parece ser o que acontece
entre os Walbiris. Pela mínima reclamação ou negligên-
cia ao dever, as mulheres walbiris são surradas ou lan-
cetadas. Nenhuma reparação pelo sangue pode ser rei-
vindicada por uma mulher morta por seu marido e nin-
guém tem o direito de intervir entre marido e mulher.
A opinião pública nunca reprova o homem que tenha,
violenta ou mesmo letalmente, assegurado sua autori-
dade sobre a mulher. Assim, é impossível a uma mu-
lher opor um homem contra outro. Por mais vigoro-
samente que tentem seduzir a esposa um do outro,
os homens estão em perfeito acordo sobre um ponto.
Concordam que nunca deveriam permitir que seus de-
sejos sexuais dessem a uma mulher em particular o po-
der de barganha ou a oportunidade de intriga.
Esse povo não tem crenças a respeito de poluição
sexual. Nem o sangue menstrual é evitado, e não exis-
tem crenças acerca de que o contacto com ele traga
perigo. Embora a definição do status matrimonial seja
importante em sua sociedade, ele é protegido por meios
manifestos. Aqui, não há nada precário ou contraditó-
rio em relação à dominação masculina (Meggitt, 1962).
Não são impostas quaisquer restrições aos homens
walbiris. Seduzem as mulheres uns dos outros quando
podem sem mostrar qualquer preocupação especial para
com a estrutura social baseada no casamento. Este é
preservado pela completa subordinação das mulheres
em relação aos homens e pelo sistema reconhecido de
ajuda própria. Quando um homem penetra no domínio
sexual de um outro, sabe o que arrisca, uma briga e
possível morte. O sistema é perfeitamente simples. Exis-

173
tem conflitos entre os homens, mas não entre princí-
pios. Nenhum julgamento moral é evocado numa situa-
ção que pode ser contradito cm outra. O povo é fiel
a essas regras particulares pela ameaça de violência
física. O capítulo anterior sugeria que, quando esta
ameaça é desinibida, podemos esperar que o sistema
social persista sem o suporte de crenças de poluição.
~ importante reconhecer que a dominação masculi-
na nem sempre prospera com tão cruel simplicidade. No
capítulo anterior, vimos que, quando as regras morais são
obscuras ou contraditórias, há uma tendência para que
as crenças de poluição simpHfiquem ou esclareçam o
ponto em questão. O caso walbiri sugere uma corre-
lação. Quando a dominação masculina é aceita como um
princípio central da organização social e aplicada sem
inibição e com plenos poderes de coerção física, as
crenças na poluição do sexo não devem, comumente, ser
altamente desenvolvidas. Por outro lado, quando o prin-
cípio de dominação masculina é aplicado para ordenar
a vida social, mas é contrário a outros princípios tal
como o da independência feminina, ou o direito ine-
rente das mulheres, como sexo mais fraco de serem mais
protegidas da violência do que os homens, então é pro-
vável que floresça a poluição sexual. Antes de prosse-
guirmos, há uma outra espécie de exceção a consi-
derar.
Achamos muitas sociedades nas quais os indivíduos
não são coagidos ou, de outro modo, firmemente apega-
dos aos seus papéis sexuais atribuídos embora a estru-
tura social seja baseada na associação dos sexos. Nesses
casos, existe o recurso a um desenvolvimento sutil, le-
galista, de instituições especiais. Os indivíduos podem,
até certo ponto, seguir seus caprichos pessoais, porque a
estrutura social está amortecida por ficções de uma es-
pécie ou outra.
A organização politica dos Nueres é totalmente in-
formulada. Não têm instituições explícitas de governo
ou administração. Tal estrutura política fluida e intan-
gível, como eles a exibem, é expressão espontânea e
movediça de suas lealdades conflitantes. O único prin-
cípio de alguma firmeza que dá forma a sua vida tribal
é o princípio de genealogia. Ao pensar suas unidades
territoriais como se representassem segmentos de uma
única estrutura genealógica eles impõem certa ordem

174
em seus agrupamentos políticos. Os Nueres proporcio-
nam uma ilustração natural de como um povo pode
criar e manter uma estrutura social no campo das idéias,
e não primariamente, ou, de modo algum, no campo ex-
terno, físico, do cerimonial, palácios ou cortes de jus-
tiça (Evans-Pritcbard, 1940).
O princípio genealógico que aplicam às relações
políticas de toda a tribo é importante para eles num outro
contexto, ao nível íntimo e pessoal de reivindicar um
direito sobre o gado e esposas. Assim, não só seu lugar
no cenário político mais amplo, mas sua herança pes-
soal é determinada para um homem nuer pelas alianças
definidas através do casamento. Dos direitos de pater-
nidade dependem tanto a estrutura de linhagens, como
toda sua estrutura política. Todavia, os Nueres não vêem
o adultério e a deserção tão tragicamente como alguns
outros povos com sistemas de linhagens agnáticas nos
quais a paternidade é estabelecida pelo casamento. Real-
mente, um marido nuer, poderia lancetar o sedutor de
sua mulher, se o pegasse em flagrante. Mas, de outro
modo, se souber da infidelidade da esposa, pode so-
mente exigir duas cabeças de gado - uma para a repa-
ração e a outra para sacrifício - uma não muito se-
vera penalidade comparada com outros povos que cos-
tumavam banir adúlteros (Meck, pp. 218-9) ou escravi-
zá-los. Ou, comparado com um beduíno, a quem não se-
ria permitido levantar a cabeça novamente na socieda-
de, até que a desonrada parenta fosse morta (Salim,
p. 61). A diferença é que o casamento legal nuer é
relativamente invulnerável aos caprichos dos cônjuges
individuais. A maridos e mulheres pode ser permitido se
separarem e viverem longe, sem alterar o status legal do
casamento ou dos filhos da esposa (Evans-Pritchard,
Cap. III, 1951). As mulheres nueres gozam de um status
extraordinariamente Livre e independente. Se alguma se
torna viúva, os irmãos do marido têm o direito de tê-la
em casamento levirático, para criar a família em nome
do homem morto. Mas, se ela não aceitasse esse arran-
jo, não poderiam forçá-la. ~ livre para escolher seus
próprios amantes. A única segurança que é garantida
para a linhagem do homem morto é que qualquer filho,
quem quer o tenha gerado, é afiliado àquela linha-
gem da qual o gado do casamento original foi pag~.
A regra de que quem quer que pague o gado tem o

175
direito às crianças é a regra que distingue casamento
legal, praticamente indestrutível, de relações conjugais.
A estrutura social repousa numa série de casamentos le-
gais, estabelecidos pela transferência do gado. Assim, é
protegido por meio institucional prático, em relação a
qualquer incerteza que possa ameaçá-lo no que concerne
ao livre comportamento de homens e mulheres. Contras-
tando com a simplicidade completa e não-formulada de
sua organização politica, os Nueres exibem espantosa
sutileza jurídica na definição de casamento, cuncubinato,
divórcio e separação conjugal.
:E: este desenvolvimento, creio cu, que os torna ca-
pazes de organizar suas instituições sociais sem crenças
opressivas na poluição do sexo. É verdade que protegem
seu gado de mulheres menstruadas, mas um homem não
tem que se purificar, se tocar em alguma delas. Ele so-
mente deveria evitar o relacionamento sexual com sua
esposa durante seus períodos menstruais, uma regra de
respeito que é considerada como expressão de preocupa-
ção por seus filhos não nascidos. Esta é uma regra
muito mais branda do que algumas regras de abstinência
que mencionaremos posteriormente.
Anteriormente, mencionamos um outro exemplo de
uma ficção jurídica que tira o peso da estrutura social
das relações sexuais. :E: a discussão de Nur Yalman so-
bre a pureza feminina na lndia do Sul e no Ceilão
(1963). Ali a pureza das mulheres é protegida como o
portão de entrada para as castas. A mãe é o parente de-
cisivo para estabelecer a pertença à casta. Através das
mulheres, o sangue e a pureza da casta são perpetuados.
Por conseguinte, sua pureza sexual é importantíssima e,
qualquer rumor de possível ameaça a ela é prevenido e
impedido. Isto nos levaria a esperar uma vida intolerá-
vel de restrições às mulheres. Na verdade, é isto que en-
contramos para a casta mais alta e pura entre todas.
Os brâmanes nambudiris de Malabar são uma pe-
quena, rica e exclusiva casta de proprietários de terras
sacerdotais. Assim, têm se mantido observando uma re-
gra que proíbe a divisão de suas propriedades. Em cada
farnília, só o filho mais velho se casa. Os outros podem
manter concubinas de castas mais baixas, mas nunca se
casar. No que diz respeito a suas infortunadas mulhe-
res, uma reclusão rigorosa é sua sorte. De qualquer mo-
do, poucas entre elas se casam, até que, no seu leito de

176
morte, um rito de casamento afirme sua liberdade do
controle de seus guardiães. Se saem de suas casas, seus
corpos são completamente cobertos por roupas e som-
brinhas escondem sua faces. Quando um de seus ir-
mãos se casa, elas podem assistir à celebração através de
fendas nas paredes. Até em seu próprio matrimônio, uma
mulher nambudiri tem que ser substituída na usual
aparição pública da noiva, por uma moça nayar. So-
mente um grupo muito rico poderia permitir submeter
suas mulheres a uma sentença vitalícia de esterilidade
para a maioria c de segregação para todas. Esse tipo
de crueldade corresponde, à sua maneira, à mesma
crueldade com que os homens walbiris aplicam seus
princípios.
Mas, apesar de idéias similares sobre a pureza das
mulheres predominar nas outras castas, esta dura so-
lução não tem sido adotada. Os brâmanes ortodoxos,
que não tentam manter suas herdades patrimoniais intac-
tas e permitem a seus filhos casarem-se, preservam a
pureza de suas mulheres ordenando que as moças se
casem antes da puberdade com maridos convenientes.
Eles usam de forte pressão moral e religiosa para asse-
gurar que toda moça brâmane esteja, apropriadamente,
casada antes de sua primeira menstruação. Em outras
castas, se não arranjam um casamento real antes da pu-
berdade, então um rito substitutivo de casamento é ab·
solutamente exigido. No centro da lndia, ela pode pri-
meiro estar casada com uma flecha ou com um pilão
de madeira. Isto conta como um primeiro casamento e
dá à moça o status de casada, de modo que qualquer
má conduta de sua parte possa ser considerada na casta
ou nas cortes locais nos moldes de uma mulher casada.
As moças nayares meridionais são famosas na 1n-
dia, pela liberdade sexual de que gozam. Nenhum marido
permanente é reconhecido. As mulheres vivem em casa
c têm relacionamento livre com um grande número de
homens. A posição de casta dessas mulheres e de seus
filhos torna-se ritualmente segura por um rito na pré-
puberdade de casamento substitutivo. O homem que
faz o papel de noivo no ritual é de um status de casta
apropriado e provê a paternidade ritual para a futura
prole da noiva. Se se acreditar que uma moça nayar,
em qualquer tempo, manteve relacionamento com um
homem de casta mais baixa, será tão severamente pu-

177
njda quanto uma mulher dos brâmanes nambururis. Mas
fora guardar-se contra tal lapso, sua vida é tão livre
e ioeontrolada como talvez a de qualquer mulher den-
tro do sistema de casta e em grande contraste com o
regime de reclusão de suas vizinhas nambudiris. A fic-
ção do primeiro casamento tem afastado dela muito da
responsabilidade de proteger a pureza de sangue de
casta.
Basta de exceções.
Agora, veremos alguns exemplos de estruturas so-
ciais que assentam em grave paradoxo ou contradição.
Nesses casos onde nenhum abrandamento de ficções
legais intervém para proteger a liberdade dos sexos,
abstinências exageradas se desenvolveram em torno das
relações sexuais.
Em diferentes culturas, as teorias aceitas do poder
cósmico dão lugar mais ou menos explícito à energia se-
xual. Nas culturas da lnrua hindu.ísta, por exemplo, e da
Nova Guiné, o simbolismo do sexo ocupa um lugar
central na cosmologia. Mas, entre os Nilotes africanos,
em contraste, a analogia sexual parece ser muito me-
nos desenvolvida. Seria inútil pretender relacionar as
linhas gerais dessas variações metafísicas com as dife-
renças na organização social. Mas, dentro de cada re-
gião cultural, achamos interessantes variações menores
sobre o tema de poluição e simbolismo sexual. Podemos
e devemos tentar relacioná-las com outras variações
locais.
A Nova Guiné é uma área onde o medo de polui-
ção sexual é uma característica cultural (Read, 1954).
Mas, dentro do mesmo idioma cultural, um grande con-
traste separa o modo como os Arapeshes do Rio Sepik
e os Mae Engas do Planalto Central tratam do tema
da diferença sexual. O primeiro, parece, tenta criar uma
simetria total entre os sexos. Todo poder é pensado sobre
o modelo de energia sexual. A feminilidade somente é
perigosa aos homens como a masculinidade às mulheres.
As mulheres são dadas como vivificantes e, quando grá-
vidas, alimentam os filhos com seu próprio sangue; quan-
do as crianças nascem são alimentadas pelos homens
com sangue vivificante tirado para esta finalidade do
pênis. Margaret Mead enfatiza que cada sexo tem que
ter precaução em relação aos poderes perigosos do ou-

178
tro. Cada sexo aproxima-se do outro com controle de-
liberado (1940).
Os Mae Engas, por outro lado, não procuram qual
quer simetria. Temem a poluição feminina para seus
homens e todos os empreendimentos masculinos e não
entra em causa nenhum equilíbrio entre as duas espé-
cies de perigos e poderes sexuais (Meggitt, 1964). Para
tais diferenças, podemos tentar procurar correlações so-
ciológicas.
Os Mae Engas moram numa área de população den-
sa. Sua organização local é baseada no clã, uma com-
pacta e bem definida unidade militar e política. Os ho-
mens do clã escolhem suas mulheres de outros clãs.
Assim, eles se casam com estrangeiras. A regra de exo-
gamia do clã é bastante comum. O fato de implicar ten-
são e dificuldades da situação matrimorual depende de
quão exclusivos, localizados e rivais são os clãs que se
casam entre si. No caso dos Engas, não são somente
estrangeiros, mas inimigos tradicionais. Os homens Mae
Engas, estão, individualmente, envolvidos numa intensa
competição pelo prestígio. Competem, ferozmente, para
trocar porcos e objetos de valor. Suas esposas são esco-
lhidas entre as muitas forasteiras com as quais, ha-
bitualmente, trocam porcos e conchas, e também, bri-
gam. Deste modo, para cada homem, seus afins mas-
culinos são também, comumente, seus companheiros de
trocas cerimoniais (um relacionamento competitivo) e
o clã deles é o inimigo militar de seu próprio clã. Assim,
a relação conjugal tem que agüentar as tensões do forte
sistema social competitivo. A crença enga sobre a po-
luição sexual sugere que as relações sexuais adquirem o
caráter de um conflito entre inimigos, nas quais o ho-
mem vê a si próprio como ameaçado por sua companhei-
ra sexual, o membro intruso do clã inimigo. Há uma for-
te crença que assegura que contactos com mulheres en-
fraquecem a força masculina. Estão tão preocupados em
evitar o contacto feminino que o medo da contaminação
sexual reduz, efetivamente, o número de relações se-
xuais. Meggitt provou que o adultério costumava ser
desconhecido, e o divórcio, praticamente inaudito.
Desde a meninice, os Engas são ensinados a evita-
rem a companhia feminina e, periodicamente, entram
em reclusão para se purificarem do contacto feminino.
As duas crenças dominantes em sua cultura são a supe-

179
rioridade do princípio masculino e sua vulnerabilidade
à influência feminina. Só um homem casado pode se
arriscar à relação sexual porque os remédios especiais
para proteger a virilidade só são disponíveis aos ho-
mens casados. Mas até no casamento os homens temem
a atividadc sexual e parecem reduzi-la ao mínimo ne-
cessário à procriação. Acima de tudo temem o sangue
menstrual:
Acreditam que o contacto com ele ou com uma mulher
menstruada fará, na ausência de uma contramagia apropriada,
adoecer um homem e causará vômitos persistentes, "destruirá"
seu sangue de modo que ele se tornará negro, corromperá seus
fluidos vitais, de modo que, sua pele escurece e se enruga.
sua carne se estraga, suas faculdades mentais se embotam per-
manentemente e, eventualmente, conduz a um lento enfraque-
cimento e morte.

A própria visão do Dr. Meggitt é de que "a equa-


ção Mae de feminilidade, sexualidade e perigo" deve ser
explicada pela tentativa de fundamentar o casamento
numa aliança que abarque as maiores relações competiti-
vas em seu sistema social altamente competitivo.
Até recentemente, os clãs brigavam constantemente por
causa de reservas de terras insuficientes, roubo de porcos e
falhas em pagar dívidas e a maioria dos homens perdidos
na batalha, em qualquer clã, foi morta por seus vizinhos pró-
ximos. Ao mesmo tempo, em virtude do acidentado terreno
montanhoso, a proximidade tem sido uma variável significante
na determinação das reais escolhas de casamentos. Assim, há
uma correlação relativamente alta entre casamentos interclã-
nicos e freqüência de homicídios com referência à prcximidad::
dos clãs. Os Mae reconhecem essa concomitância de uma ma-
neira crua, quando dizem: "Casamos com o povo com que
lutamos" (Meggitt, 1964).

Notamos que o terror dos Mae Engas da ·poluição


feminina contrasta com a crença no poder e perigo equi-
librados dos dois sexos que aparece na cultura dos Ara-
peshes montanheses. .E: muito interessante notar, além
disso, que os Arapesbes desaprovam a exogamia local.
Se um homem desposasse uma mulher da planície Ara-
pesh tomaria elaboradas precauções para arrefecer a
sexualidade mais perigosa dela.
Se ele se casa com uma, não dever{l desposá-la precipita-
damente, ma~. permitir que ela permaneça cm casa por vários
meses, acostumando-se a ele, arrefecendo a possível paixão do

180
pouco conhecimento e reserva. Então, ele poderia copular com
ela e tamb-ém observá-la. Prosperam seus inhames? Encontra
ele caça ao caçar? Sendo assim, tudo está bem. Do contrário,
vai se abster do relacionamento com esta mulher perigosa, hiper-
sexuada, até que se passem muitas luas, com medo de que
parte de sua potência, sua própria força física, a habilidade
para alimentar outras pessoas de quem gosta mais, sejam per-
manentemente prejudicadas (Mead, 1940, p. 345).

Este exemplo parece apoiar a opinião de Meggitt de


que a exogamia local, nas condições competitivas e ten..
sas da vida dos Engas significa um pesado fardo de ten-
são em seu casamento. Se for assim, então poderiam os
Engas presumivelmente estar livres de suas crenças mui-
to inconvenientes, se pudessem suavizar suas ansiedades
na fonte. Mas, esta é uma sugestão totalmente imprati-
cável. Significaria ou abandonar suas violentas trocas
competitivas com os clãs rivais ou abandonar seus ca-
samentos exogâmicos - ou parar de brigar, ou ainda,
parar de esposar as irmãs dos homens com os quais bri-
gam. Qualquer dessas escolhas significaria um maior
reajustamento ao seu sistema social. N·a prática e no
fato histórico, quando semelhante ajustamento veio de
fora, com a vinda de missionários que faziam prega-
ções sobre o sexo e da administração australiana in-
terditando o combate, os Engas abandonaram facilmen-
te suas crenças no perigo do sexo feminino.
A contradição que os Engas se esforçam por supe-
rar pela abstinência, é a tentativa de construir um casa-
mento sobre a inimizade. Mas uma outra dificuldade,
talvez mais comum em sociedades primitivas, emerge
de uma contradição na atribuição de papéis masculinos
e femininos. Se o princípio de dominação masculina é
elaborado de modo coerente, não precisa necessaria-
mente contradizer quaisquer outros princípios básicos.
Mencionamos dois exemplos bastante diferentes nos
quais a dominação masculina é apJicada com desapie-
dada simplicidade. Mas, o princípio depara-se com pro-
blemas, se existir qualquer outro que proteja as mu-
lheres do controle físico. Pois isto dá oportunidade às
mulheres de opor um homem contra o outro e, assim,
desconcertar o princípio de dominação masculina.
A sociedade inteira está provavelmente baseada
numa contradição, se o sistema for daqueles em que os
homens definem seu status em termos de direitos sobre

181
as mulheres. Se houver livre competição entre os ho-
mens, isto dá margem a que uma mulher descontente
se volte, ou para o marido ou para seus guardiães ri-
vais, obtendo novos protetores e novas alianças, e assim,
dissolvendo a estrutura de direitos e deveres anterior-
mente construída ao seu redor. Esta espécie de contra-
dição no sistema social surge somente se não houver
possibilidade de facto de coagir as mulheres. Por exem-
plo, ela não aparece se existir um sistema político cen-
tralizado que joga o peso de sua autoridade contra as
mulheres. Onde o sistema jurídico pode ser exercido
contra as mulheres, elas não podem fazer estragos ao
mesmo. Mas, um sistema político centralizado não é
aquele em que o status masculino é, principalmente, ex-
presso em termos de direitos sobre as mulheres.
Os Leles são um exemplo de um sistema social que
está, continuamente, sujeito a arruinar-se na contradi-
ção que o estratagema feminino dá à dominação masculi-
na. Todas as rivalidades masculinas são expressas na
competição pelas esposas. Um homem sem nenhuma
esposa está no degrau mais baixo de uma escala de
status. Com uma esposa -pode obter um início, pro-
criando e assim, qualificando-se para entrar em asso-
ciações de culto remunerativas. Com o nascimento de
uma filha, pode começar a solicitar os serviços de um
genro. Com várias filhas, poderá solicitar muitos.
genros, sobretudo com netas, ele está ascendendo na
escala de privilégio e respeito. Isto porque as mulheres
que ele gera são mulheres que ele pode oferecer em
casamento a outros homens. E assim, ele estabelece
um séquito de homens. Todo homem maduro poderia
esperar adquirir duas ou três esposas e, nesse meio
tempo, os homens jovens teriam que esperar no celi-
bato. A poligenia em si torna intensa a competição por
esposas. Mas, as várias outras maneiras, nas quais o
sucesso masculino na esfera dos homens estava ligado
ao controle das mulheres, seriam muito complicadas
para serem relatadas aqui (ver Douglas, 1963). Toda
sua vida social era dominada por uma instituição que
pagava compensação por transferir direitos sobre as
mulheres. O efeito claro era que as mulheres eram tra-
tadas, sob esse aspecto, como uma espécie de moeda
que os homens reivindicavam e estabeleciam débitos um
com o outro. As dívidas mútuas dos homens amontoa-

182
varo-se de modo que tinham dados direilos sobre mo-
ças não nascidas por gerações afora. Um homem sem
nenhum direito sobre mulheres era um caso tão terrí-
vel quanto um homem de negócios moderno que não ti-
vesse conta bancária. Do ponto de vista de um homem,
as mulheres eram os objetos mais desejáveis que sua cul-
tura tinha a oferecer. Desde que todos os insultos e
obrigações poderiam ser acomodados pela transferên-
cia de direitos sobre mulheres, era perfeitamente ver-
dade dizer, como eles faziam, que a única razão pela
qual iam à guerra era devida às mulheres.
Uma menina lele devia crescer como uma coquete.
Desde a infância era o centro das atenções afetuosas,
brincalhonas e de flerte. Seu marido-noivo jamais obti-
nha sobre ela mais do que um controle bastante limi-
tado. Tinha o direito de castigá-la, certamente, mas, se
o exercesse muito violentamente, e sobretudo, se perdes-
se sua afeição, ela poderia achar algum pretexto para
persuadir os irmãos de que o marido a negligenciava. A
mortalidade infantil era alta e o aborto ou morte de
uma criança trazia os parentes da esposa, rigorosamen-
te, à porta do marido, para pedir explicações. Desde que
os homens competiam uns com os outros pelas mulhe-
res, havia oportunidade para estas de maquinarem e
intrigarem. Nunca faltavam sedutores esperançosos e
nenhuma mulher duvidava de que poderia conseguir um
outro marido se lhe conviesse. O marido cujas mulhe-
res eram fiéis até a meia-idade tinha que ser muito
atencioso tanto com a mulher quanto com a sogra. Uma
etiqueta perfeitamente elaborada governava as relações
conjugais, com muitas ocasiões nas quais pequenos ou
grandes presentes eram dados pelo marido. Quando a
mulher estava grávida ou doente, ou logo após o parto,
ele tinha que ser atencioso em arranjar cuidados médi-
cos adequados. Se se soubesse que uma mulher estava
insatisfeita com sua vida seria logo cortejada - e havia
várias alternativas abertas a ela pelas quais poderia
tomar a iniciativa para pôr fim a seu casamento.
Disse o suficiente para mostrar por que os ho-
mens ]eles deveriam mostrar-se preocupados acerca de
suas relações com mulheres. Ainda que, em alguns
contextos, pensassem sobre as mulheres como tesouros
desejáveis, falavam delas também como imprestáveis,
pior que cachorros, grosseiras, ignorantes, instáveis, ir-

183
responsáveis. Socialmente, as mulheres eram, realmen-
te, todas essas coisas. Não estavam de modo algum in-
teressadas no mundo dos homens no qual elas e suas
filhas eram trocadas como peões nos jogos de prestígio
dos homens. Eram astuciosas para se aproveitarem das
oportunidades que se lhes oferecessem. Se eram cúmpli-
ces, mãe e fi lha juntas poderiam destruir qualquer pla-
no que as aborrecesse. Assim, basicamente, os homens
tinham que afirmar sua gabada dominância pelo fas-
cínio, persuadindo com agrados e adulando. Havia um
tom de voz lisonjeiro e especial que eles usavam para
as mulheres.
As atitudes dos Lcles em relação ao sexo eram com-
postas de prazer, desejo de fertilidade e reconhecimento
de perigo. Tinham toda a razão em desejar fertilidade,
como mostrei, e seus cultos religiosos eram endereça-
dos a este fim. A atividade sexual era considerada pe-
rigosa em si mesma, não para os cônjuges, mas para
os fracos e doentes. Qualquer um que fosse recém-che-
gado de uma relação sexual deveria evitar o doente,
senão, pelo contacto indireto, sua febre poderia subir.
Os recém-nascidos morreriam por semelhante contacto.
Conseqüentemente, um ramo de ráfia amarela era de-
pendurado na entrada de uma cabana para avisar a
todas as pessoas responsáveis que uma pessoa doente
ou um recém-nascido ali estava. Este era um perigo
geral. Mas, havia perigos especiais para os homens.
Uma esposa tinha o dever de limpar o marido depois de
uma relação sexual e, então, lavar-se antes de tocar na
comida. Cada mulher casada mantinha um pequeno re-
cipiente de água escondido na relva fora da aldeia, onde
poderia lavar-se em segredo. Deveria estar bem es-
condido e fora do caminho pois se um homem tropeçasse
no recipiente, por acaso, seu vigor sexual seria enfraque-
cido. Se ela negligenciasse sua ablução, e ele comesse
da comida por ela preparada, perderia a virilidade. São
esses os perigos que seguem a legítima relação sexual.
Mas, uma mulher menstruada não poderia cozinhar
para o marido ou atiçar o fogo, senão ele cairia doente.
Ela poderia preparar a comida, mas quando se apro-
ximasse do fogo tinha que chamar uma amiga para aju-
dá-la. Esses perigos são riscos só para homens, não
para outras mulheres ou crianças. Finalmente, uma mu-
lher menstruada era um perigo para toda a comunidade

184
se entrasse na floresta. Não só sua menstruaçãp infa-
livelmente arrasaria qualquer empreendimento na flo-
resta de que deveria incumbir-se, mas considerava-se que
produziria condições desfavoráveis aos homens. A caça
poderia ser difícil durante um longo tempo após e os
rituais baseados cm plantas da floresta poderiam não
ter eficácia. As mulheres achavam essas regras extrema-
mente fatigantes, especialmente porque estavam regu-
larmente com falta de braços para trabalhar e atra-
sadas em semear, capinar, coletar e pescar.
O perigo do sexo era também controlado por re-
gras que protegiam os empreendimentos masculinos da
poluição feminina e os empreendimentos femininos da
poluição masculina. Todo ritual tinha que ser prote-
gido da poluição feminina; os oficiantes (mulheres
eram geralmente excluídas das tarefas do culto) abs-
tinham-se da relação sexual, na noite anterior. O mes-
mo ocorria quanto à guerra, à caça e à extração
do vinho das palmeiras. Do mesmo modo, as mulheres
deveriam se abster de relação sexual antes de plantar
amendoim ou milho, pescar ou no fabrico de sal ou
cerâmica. Esses temores são simétricos para os homens
e mulheres. A condição geralmente estipulada para li-
dar com qualquer grande crise ritual era pedir abstinên-
cia sexual para toda a aldeia. Assim, quando nasciam
gêmeos, ou quando um gêmeo proveniente de outra al-
deia aí entrava pela primeira vez, ou durante rituais im-
portantes de fertilidade e anlifeitiçaria, os que moravam
na aldeia ouviriam anunciar noite após noite: "Cada
homem durma em sua esteira sozinho; cada mulher dur-
ma em sua esteira sozinha". Ao mesmo tempo ouvi-
riam anunciar: "Não vá ninguém brigar hoje à noite.
Ou se você precisa brigar, não brigue em segredo. Dei-
xem que escutemos o barulho para podermos impor uma
multa". A briga era, como a relação sexual, vista como
sendo destruidora da condição ritual apropriada da al-
deia. Estragava o ritual e a caça. Mas a briga era sem-
pre má, enquanto a relação sexual só era má em certas
(embora freqüentes) ocasiões.
Atribuo a preocupação dos Leles sobre os perigos
rituais do sexo ao papel realmente disruptivo atribuído
aos sexos em seu sistema social. Seus homens criaram
uma escala de status, cujos estágios sucessivos galgavam
ao adquirir cada vez mais controle sobre as mulheres.

185
Mas, tornavam todo o sistema aberto à competição c,
assiro, permitiam uma dupla regra às mulheres, como
instrumentos passivos, e também como intrigantes ati-
vas. Os homens estavam certos ao temerem que as mu-
lheres pudessem estragar seus planos, e os temores dos
perigos do sexo apenas refletiam. muito precisamente,
seu funcionamento em sua estrutura social.
A poluição feminjna numa sociedade desse tipo é
bastante relacionada à tentativa de tratar, simultanea-
mente, as mulheres cqmo pessoas e como moedas de
transações masculinas. Homens e mulheres são realça-
dos como pertencentes a esferas mutuamente hostis e
distintas. Inevitavelmente, resulta num antagonismo se-
xual e isto está refletido na idéia de que cada sexo
constitui um perigo para o outro. Os perigos particulares
que o contacto feminino poderia trazer aos homens ex-
pressam sua contradição de tentar usar as mulheres co-
mo moedas sem reduzi-las à escravidão. Se alguma vez
já se pensou numa cultura comercial, que o dinheiro é
a origem de todo mal, o sentimento de que as mulheres
são a origem de todos os males para os homens leles
seria mais justificado. Na verdade a estória do jardim
do :Bden tocou profundamente os corações masculinos
dos Leles. Uma vez contada pelos missionários, era
contada e recontada nos lares pagãos com prazer con-
vencido.
Os Yuroks do Norte da Califórnia despertaram, em
mais de uma oportunidade, o interesse dos antropólogos
e psicólogos pela natureza radical de suas idéias sobre
pureza e impureza, como dissemos. :B uma cultura que
está morrendo. Quando o Prof. Robins estudou a lín-
gua dos Yuroks, em 1951, havia somente cerca de seis
adultos que falavam yurok. Este parece ter sido um
outro exemplo de uma cultura altamente competitiva e
aquisitiva. As mentes dos homens estavam preocupadas
em adquirir riquezas na forma de conchas-moeda que
conferiam prestígio, penas raras e pele de animal, e
ainda, lâminas de obsidianas importadas. À parte aqueles
que tinham acesso às rotas ao longo das quais os objetos
de valor estrangeiros eram comerciados, a maneira nor-
mal de adquirir riqueza era pela rapidez que vingavam
os delitos e exigiam reparação. Todo insulto tinha seu
preço, mais ou menos estandardizado. Havia possibilida-
de de pechinchar, desde que se chegasse ao preço final

186
ad hoc, de acordo com o valor que um homem estabele-
cia sobre si mesmo e do apoio que poderia reunir entre
seus parentes próximos (Kroeber). Os adultérios de es-
posas e os casamentos das filhas eram fontes de renda
importantes. Um homem que perseguia as esposas de
outros homens poderia despejar sua fortuna na repa-
ração do adultério.
Os Yuroks acreditaram tanto que o contato com as
mulheres destruiria seus poderes de adquirir riqueza que
sustentavam que as mulheres e o dinheiro nunca po-
deriam ser mantidos em contacto. Sentia-se, sobretudo,
ser fatal à futura prosperidade de um homem ter re-
lação sexual na casa em que ele mantinha seus cordões
de moeda-concha. No inverno, quando estava muito frio
para se estar fo"ra de casa, parece que se privavam to-
talmente do sexo. Os bebês yuroks tendiam a nascer na
mesma época do ano nove meses após o início do
verão. Tão rigorosa separação entre negócio e prazer
levou Walter Goldschmidt a comparar os valores dos
Yuroks com os da ética protestante. O tema envolveu-o
num ilusório prolongamento da noção de economia ca-
pitalista, de modo que compreenderia tanto a pesca de
salmão dos Yuroks quanto a Europa do século XVI. Ele
mostrou que um grande valor emprestado à castidade,
parcimônia e busca de riqueza caracterizava ambas as
sociedades. Deu também muita ênfase ao fato de que
os Yuroks poderiam ser classificados como capitalistas
primitivos uma vez que admitiam o controle privado dos
meios de produção, diferentemente da maioria dos outros
povos primitivos. Bem, é verdade que os indivíduos
yuroks disseram-se donos de lugares de pesca e de coleta
de frutos e, que estes poderiam, em último recurso, ser
transferidos de um indivíduo a outro para a liquidação
das dividas. Mas, esta é uma alegação muito especial
para constituir a base de classificação de economia como
capitalista. Tais transferências ocorriam apenas excep-
cionalmente como uma espécie de execução de hipoteca
quando um homem não tinha nenhuma concha-moeda
ou outra riqueza móvel para pagar as grandes dívidas,
e é óbvio que não havia nenhum mercado regular na
propriedade real. As dívidas dos Yuroks não eram geral-
mente dívidas comerciais, mas sim dívidas de honra. Co-
ra Dubois forneceu-nos uma explicação esclarecedora de
povos circunvizinhos onde a violenta competição pelo

187
prestígio ocorria numa esfera mais ou menos isolada
da esfera de subsistência da economia . .B muito mais
significativo para entender sua idéia de poluição fem i-
nina o fato de que os homens yuroks possuíam um
sentido real no qual a busca de riquezas c de mulheres
era contraditória.
Encontramos esse complexo de Dalila, crença de
que as mulheres enfraquecem ou iludem, em várias for-
mas extremas entre os Mae Engas da Nova Guiné, en-
tre os Leles do Congo e entre os índios Yuroks da Cali-
fórnia. Onde ele ocorre, descobrimos que as preocupa-
ções dos homens com o comportamento das mulheres
são justificadas e que a situação das relações homens/
mulheres é tão tendenciosa que as mulheres são diag-
nosticadas, desde o princípio, como traidoras.
Nem sempre são os homens que têm medo da po-
luição sexual. Em consideração à simetria, deveríamos
procurar um exemplo em que são as mulheres que se
comportam como se a alividade sexual fosse altamente
perigosa. Audrey Richards diz que os Bembas de Zâm-
bia se comportam como se fossem obsedados pelo me-
do da impureza sexual. Mas, observa que este é o com-
portamento culturalmente estandardizado e, de fato, ne-
nhum temor parece restringir sua liberdade individual.
Ao nível cultural, o medo da relação sexual parece de
tal modo dominante "que nem se pode exagerar". Ao ní-
vel pessoal há "o prazer declarado nas relações sexuais
expresso pelos Bembas" (1956, p. 154).
Em outros lugares, incorre-se na poluição sexual
por contacto direto, mas aqui ela se dá quando me-
diada pelo contacto com o fogo . Não há nenhum pe-
rigo em ver ou tocar uma pessoa impura, sexualmente
ativa, alguém quente com sexo, como os Bembas dizem.
Mas, se tal pessoa se aproximar do fogo, qualquer comi-
da cozida naquelas chamas é perigosamente contami-
nada.
É preciso haver duas pessoas para haver relação
sexual, mas somente uma para preparar uma refeição.
Supondo-se que a poluição seja transmitida através do
alimento cozido, a responsabilidade é firmemente esta-
belecida para as mulheres bembas. Uma mulher bemba
tem que estar continuamente alerta para proteger sua
lareira do contacto com qualquer adulto que possa ter
tido relação sexual, sem a purificação ritual. O perigo

188
é letal. Qualquer criança que coma alimento cozido num
fogo contaminado pode morrer. Uma mãe bemba man-
tém-se ocupada apagando os fogos suspeitos e acen-
dendo outros novos c puros.
Embora os Bembas acreditem que toda atividade
sexual seja perigosa, a tendência de suas crenças indica
o adultério como o perigo real e prático. Um casal está
habilitado a administrar a purificação ritual, um para o
outro, depois do ato sexual. Mas um adúltero não pode
ser purificado a menos que peça a sua esposa para aju-
dá-lo, pois a purificação não é um rito feito a sós.
A Ora. Richards não nos conta como a impureza do
do adultério é anulada em qualquer caso ou como, a lon-
go prazo, a adúltera alimenta seus próprios filhos. Essas
crenças, nos assegura ela, não os dissuadem do adul-
tério. Assim acredita-se que adúlteros perigosos estão em
liberdade. Embora possam conscientemente tentar não
tocar na lareira onde o alimento das crianças está sendo
cozido, eles sempre permanecem um perigo público em
potencial.
Tem-se que nessa sociedade as mulheres são mais
preocupadas que os homens a respeito da poluição se-
xual. Se seus filhos morrem (e a taxa de mortalidade
infantil é muito alta) elas podem ser acusadas de des-
cuidadas pelos homens. Na terra de Malawi, entre os
Yaos e Cewas, é expresso um conjunto de crenças simi-
lares a respeito da poluição do sal. Todas as três tribos
reconhecem a descendência através da linha feminina e,
em todas as três espera-se que os homens deixem sua
aldeia natal e ingressem na aldeia da esposa. Isto for-
nece um modelo da estrutura da aldeia, pelo qual um
núcleo de mulheres aparentadas em linha reta atrai os
homens de outras aldeias para se estabelecerem coroo
seus maridos. O futuro da aldeia como unidade política
depende de que se mantenha esses forasteiros morando
lá. Mas deveríamos esperar que os homens tivessem
muito menor interesse em construir um casamento está-
vel. A mesma regra de sucessão matrilinear volta seus
interesses para os filhos de suas irmãs. Embora a aldeia
seja construída sobre o laço conjugal, a linhagem matri-
linear não o é. Os homens são trazidos à aldeia pelo
casamento, as mulheres aí nascem.
Em toda a Africa Central a idéia de uma boa al-
deia que cresce e resiste é um valor fortemente assegu-

189
rado pelos homens e mulheres. Mas, as mulheres têm um
duplo interesse em manter os maridos. Uma mulher
bemba desempenha o papel que mais lhe satisfaz, quan-
do na meia-idade, como uma matriarca em sua própria
aldeia, ela pode esperar a velhice cercada por suas fi-
lhas e netas. Mas, se um homem bemba achar os pri-
meiros anos de casamento cansativos, ele simplesmente
abandonará a esposa e voltará para casa (Riehards, p.
41). Além do mais, se todos os homens se fossem, ou
mesmo metade deles, a aldeia não mais seria viável
como uma unidade económica. A divisão do trabalho co-
loca as mulheres bembas numa posição particularmente
dependente. Realmente, numa região onde é agora co-
mum para 50% dos homens adultos estarem ausentes
como migrantes para a cidade, as aldeias bembas sofrem
maior desintegração que as aldeias de outras tribos no
Zâmbia (Watson).
Os ensinamentos às moças bembas em suas ceri-
mônias da puberdade ajudam-nos a relacionar esses as-
pectos da estrutura social e das ambições das mulheres
aos seus temores da poluição sexual. A Dra. Ricbards
registra que as moças são firmemente doutrinadas com
a necessidade de se comportarem submissamente a seus
maridos; isto é interessante, pois são consideradas como
particularmente autoritárias e difíceis de controlar. As
candidatas são humilhadas enquanto a virilidade de seus
maridos é exaltada. Isto tem sentido se considerarmos o
papel do marido bemba como análogo, de uma maneira
contrária, ao da esposa mae enga. Ele está sozinho e
é um forasteiro na aldeia da esposa. Mas é um homem
e não uma mulher. Se não se sente feliz vai-se embora
e põe um fim nisto. Não pode ser punido como uma es-
posa fugitiva. Não existe nenhum acordo legal pelo qual
a ficção de um casamento legal possa ser preservada sem
insistir na realidade. Sua presença física na aldeia da
esposa é mais importante para aquela aldeia do que os
direitos que ele obtém no casamento são para si próprio,
e ele não pode ser intimidado a ali permanecer. Se a
mulher enga é uma Dalila, ele é Sansão no campo dos
filisteus. Se ele se sentir humilhado, pode derrubar os
pilares da sociedade, pois se todos os maridos se revol-
tassem e se fossem, a aldeia poderia ser arruinada. Não
é de surpreender que as mulheres fiquem preocupadas
em agradá-los e lisonjeá-los. Não é de surpreender que

190
queiram se proteger contra os efeitos do adultério. O
marido não aparece como perigoso ou sinistro, mas,
acanhado, capaz de ser amedrontado, necessitado de ser
convencido de sua própria masculinidade e dos perigos
dela. Precisa estar certo de que sua esposa está cuidan-
do dele, alerta para purificá-lo, zelando pelo fogo. Ele
não pode fazer nada sem ela, nem mesmo se aproximar
de seus próprios espíritos ancestrais. Nas preocupações
auto-impostas da mulher sobre a poluição sexual, as
mulheres bembas aparecem como o número oposto dos
maridos mae engas. Ambos encontram na situação de
casamento as ansiedades que dizem respeito à estrutura
da sociedade mais ampla. Se a mulher bemba não qui-
sesse ficar em casa e tornar-se uma matrona influente,
se fosse preparada para segujr o marido humildemente
até a aldeia dele, ela poderia suavizar sua preocupação
sobre a poluição sexual.
Em todos os exemplos citados sobre essa espécie de
poluição, o problema básico é um caso de querer asso-
biar e chupar cana. Os Engas querem lutar com os clãs
inimigos mas também se casar com as mulheres de tais
clãs. Os Leles querem usar as mulheres como peões dos
homens, e ainda tomar partido das mulheres contra os
homens. As mulheres bembas desejam ser livres e inde-
pendentes e se comportarem de modo a ameaçar destruir
seu casamento, e ainda querem que seus maridos per-
maneçam com elas. Em cada caso a situação perigosa,
que tem de ser contornada através de lavagens e abs-
tinências, tem em comum com as outras o fato de as
normas de comportamento serem contraditórias. A mão
esquerda está brigando com a direita, como no mito
Trickster dos Winnebagos.
Há alguma razão para que todos esses exemplos do
sistema social em guerra consigo próprio sejam extraídos
das relações sexuais? Existem muitos outros em que so-
mos levados a um comportamento contraditório, pelos
cânones normais da nossa cultura. A política nacional re-
ferente à senda é um moderno campo em que esta es-
pécie de análise poderia ser facilmente aplicada. Entre-
tanto, os temores da poluição não parecem incluir o
conjunto de contradições que não envolvem sexo. Tal-
vez a resposta seja que nenhuma outra pressão social
é potencialmente tão explosiva quanto aquelas que re-
primem as relações sexuais. Podemos vir a simpatizar

191
com a extraordinária exigência de São Paulo de que a
nova sociedade cristã não deveria ser nem masculina
nem feminina.
Os casos por nós considerados podem. elucidar a
importância exagerada atribuída à virgindade nos pri-
meiros séculos do Cristianismo. A Igreja primitiva dos
Atos estava estabelecendo, no tratamento das mulhe-
res, um modelo de liberdade e igualdade que era contrá-
rio ao tradicional costume judeu. A barreira do sexo no
Oriente Médio naquela época era uma barreira de opres-
são, como está implícito nas palavras de São Paulo:
Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não
há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo
Jesus (Gálatas, 3, 28).

Esforçando-se para criar uma nova sociedade que


pudesse ser livre, ilimitada, sem coerção ou contradição,
era sem dúvida necessário estabelecer um novo conjunto
de valores positivos. A idéia de que a virgindade possuía
valor positivo especial estava destinada a encontrar ter-
reno propício num pequeno grupo minoritário perse-
guido. Pois, como vimos, essas condições sociais os con-
duzem. a crenças que simbolizam o corpo como um rxi-
piente imperfeito que somente será perfeito se puder se
tornar impermeável. Posteriormente, a idéia de alto va-
lor da virgindade seria bem escolhida para o projeto de
mudar o papel dos sexos no casamento e na sociedade
em geral (Wangermann). A idéia da mulher como aVe-
lha Eva, junto aos temores da poluição sexual, pertence
a um tipo específico de organização social. Se essa or-
dem social tem que ser mudada, a Segunda Eva, uma
fonte virgem de redenção que esmaga o mal sob os pés,
é um potente e novo símbolo a apresentar.

192
1O. O SISTEMA DESTROÇADO E RENOV ADO

Passemos agora a confrontar nossa questão inicial:


pode haver algum povo que confunda o sagrado com o
sujo? Vimos como a idéia de contágio opera na religião
c na sociedade. Vimos que são atribuídos poderes a
qualquer estrutura de idéias, e que as regras de absti-
nência formam um reconhecimento público visível de
seus limites. Mas, isto não significa que o sagrado seja
sujo. Cada cultura deve ter suas próprias noções de su-
jeira e contaminação que são contrastadas com suas no-
ções da estrutura positiva que não deve ser negada. Falar
sobre uma combinação confusa do Sagrado e do Sujo é
um completo disparate. Mas, permanece ainda verdade
que, freqüentemente, as religiões sacralizam justamente
as coisas sujas que foram rejeitadas com aversão. Deve-
mos, por isso, perguntar como a sujeira, que é nor-
malmente destrutiva, algumas vezes se torna criativa.
Primeiramente, notamos que nem todas as coisas
sujas são usadas construtivamente no ritual. Não basta
que alguma coisa seja suja para que seja tratada como
potente para o bem. Em Israel é impensável que coisas

193
sujas tais como cadáveres e excrementos pudessem ser
incorporados no ritual do Templo, mas somente sangue,
e apenas sangue derramado cm sacrifício. Entre os Oyos
Iorubas onde a mão esquerda é usada para trabalho sujo
e é profundamente insultante ofertar a mão esquerda, os
rituais normais sacralizam a precedência do lado direito,
especialmente a dança à direita. Mas, no ritual do gran-
de culto Ogboni, os iniciados devem amarrar suas rou-
pas do lado esquerdo e dançar somente para a esquer-
da (Morton-Williams, p. 369). O incesto é uma polui-
ção entre os Bushongs mas um ato de incesto ritual faz
parte da sacralização de seu rei e ele alegar ser a su-
jeira da nação: Moi, ordure, nyec (Vansina, p. 103).
E assim por diante. Embora somente indivíduos espe-
cíficos em ocasiões específicas possam quebrar as re-
gras, é também importante perguntar por que esses con-
tactos perigosos são freqüentemente exigidos nos rituais.
Uma resposta está na própria natureza da sujeira. A
outra está na natureza dos problemas metafísk:os c dos
tipos particulares de reflexões que exigem expressão.
Tratemos, primeiramente, da sujeira. No processo
da imposição da ordem, seja na mente ou no mundo
exterior, a atitude para com pedaços e partes rejeitados
passa por dois estágios. Primeiro estão, reconhecida-
mente, fora de lugar, uma ameaça à boa ordem, e
assim, são considerados desagradáveis e varridos vigo-
rosamente. Neste estágio têm alguma identidade: podem
ser vistos como pedaços indesejáveis oriundos de seja lá
o que for: cabelo, comida ou embrulho. Este é o estágio
em que são perigosos; sua semi-identidade ainda ade-
re-se a elas e a claridade da cena na qual se introme-
teram é prejudicada pela sua presença. Mas, um longo
processo de pulverização, decomposição e putrefação
aguarda qualquer coisa física que tiver sido reconheci-
da como suja. No fim, qualquer identidade desapareceu.
A origem dos vários pedacinhos e partes está perdida e
entraram na massa do lixo comum. E desagradável reme-
xer no refugo para recuperar algo, pois isso restaura a
identidade. Enquanto a identidade está ausente, o lixo
não é perigoso. Também não cria percepções ambí-
guas, pois pertence, claramente, a um lugar definido, um
monte de lixo de uma espécie ou outra. Até os ossos
dos reis enterrados suscitam pouca admiração c o pen-
samento de que o ar está cheio de restos mortais de

194
defuntos de raças passadas não possui nenhum poder
para comover. Onde não há dHerenciação, não há con-
taminação.
São mais numerosos que os vivos, mas onde estão todos os
seus ossos?
Para todo homem vivo há um milhão de mortos,
Foi sua poeira para dentro da terra que nunca é vista?
Aí não haveria ar para respirar, sendo ele tão denso,
Nenhum espaço para o vento soprar ou a chuva cair:
A terra seria uma nuvem de poeira, um solo de ossos,
Sem lugar nem para nossos esqueletos.
É perda de tempo pensar sobre isso, contar suas partículas,
Quando tudo está igual e não há nenhuma diferença nelas.
(S. Sitwell, Tumba de Agamênon).

Neste último estágio de desintegração total, a su-


jeira é completamente indiferenciável. Assim, um ciclo
foi completado. A sujeira foi criada pela atividade di-
ferenciadora da mente, é um subproduto da criação da
ordem. Assim, ela começou de um estado de não-dife-
renciação; através do processo de diferenciação, seu pa-
pel foi o de ameaçar as distinções feitas; finalmente,
retorna a seu verdadeiro caráter indiscriminável. A fal-
ta de forma é por isso um símbolo adequado do co-
meço, do crescimento, assim como da decadência.
Neste argumento, tudo que se diz para explicar o
papel revivificante da água no simbolismo religioso pode
também aplicar-se à sujeira :
Na água tudo é "solvido", toda "forma" é demolida, tudo
que aconteceu deixa de existir; nada do que era antes per-
dura depois da imersão na água, nem um contorno, nem um
"sinal", nem um evento. A imersão é o equivalente, ao nível
humano, da morte ao nível cósmico, do cataclisma (o Di-
lúvio) que, periodicamente dissolve o mundo no oceano pri-
mevo. Quebrando todas as formas, destruindo o passado, n
água possui este poder de purificação, de regeneração, de
dar novo nascimenLo. . . A água purifica e regenera porque
anula o passado, e restaura - mesmo se por um momento -
a integridade da aurora das coisas (Eliade, 1958, p. 194).

No mesmo livro, Eliade passa a assimilar à água


outros símbolos de renovação que podemos, sem nos de-
longarmos sobre a questão, associar igualmente com
cinzas e corrupção. O primeiro é simbolismo de escuri-
dão e, o outro, a orgiástica celebração do Ano Novo
(pp. 398-9).

195
Em sua última fase, portanto, a sujeira se mostra
como um símbolo adequado da criativa falta de forma.
Mas é de sua primeira fase que extrai sua força. O pe-
rigo a que se arrisca o transgressor do limite é o poder.
Aquelas margens vulneráveis e aquelas forças atacante.'>
que ameaçam destruir a boa ordem representam os po-
deres inerentes ao cosmos. O ritual que pode aproveitá-
los para o bem está, na verdade, aproveitando o poder.
Isto é tudo quanto às aptidões do próprio símbolo.
Agora, vejamos as situações vivas a que ele se aplica,
e que são, irremediavelmente, sujeitas ao paradoxo. A
busca da pureza é perseguida pela rejeição. Segue que,
quando a pureza não é um símbolo, mas algo vivido,
deve ser pobre e improdutiva. Faz parte de nossa con-
dição que a pureza pela qual lutamos e sacrificamos
tanta coisa se tome difícil e morta como uma pedra,
quando a obtemos. Está tudo muito certo para o poeta
que louva o inverno como o
Protótipo de arte,
Que mata todas as formas de vida e sentimento
Salva o que é puro e que sobreviverá.
{Roy Campbell)

Outra coisa é tentar e fazer da nossa existência


uma forma lapidar inalterável. A pureza é inimiga da
mudança, da ambigüidade e comprometimento. Na ver-
dade, muitos de nós nos sentiríamos mais seguros se
nossa experiência pudesse ser inflexível c fixada na for-
ma. Como Sartre escreveu tão amargamente a respeito
do anti-sernita:
Como poderia alguém escolher raciocinar falsamente? e
simplesmente o velho anseio pela impermeabilidade. . . existem
pessoas que são atraídas pela permanência da pedra. Gostariam
de ser sólidas e impenetráveis, não desejam mudança: pois
quem sabe o que a mudança poderia trazer?. . . É como se
suas próprias existências estivessem perpetuamente cm suspen-
so. Mas desejam existir de todos os modos imediatamente, e
todos em um momento. Não têm nenhum desejo de adquirir
idéias, querem que sejam inatas. . . querem adotar um modo
de vida no qual o raciocínio e a busca pela verdade desem-
penhe apenas um papel secundário, na qual nada é buscado a
não ser o que já foi descoberto, na qual ninguém nunca 1>e
tomará nada mais além do que já era ( 1948).

Esta diatribe implica uma divisão entre o nosso pen-


samento e o rígido pensamento maniqueísta do anti-sc-

196
mita. Considerando que, naturalmente, a ânsia pelo ri-
gor existe em todos nós. Faz parte de nossa condição
humana almejar linhas rígidas e conceitos claros. Quan-
do os temos, é preciso ainda encarar o fato de que al-
gumas realidades nos iludem, ou mesmo nos cegam para
a inadequação dos conceitos.
O paradoxo final na busca da pureza é uma tentati-
va de impor a experiência em categorias lógicas da não-
-contradição. Mas, a experiência não é amena e aqueles
que fazem a tentativa vêem-se levados à contradição.
Onde a pureza sexual é envolvida, é óbvio que, se
implica nenhum contacto entre os sexos, não é somen-
te uma negação do sexo, mas deve ser, literalmente, es-
téril. Também leva à contradição. Desejar que todas as
mulheres sejam castas em todos os tempos é contrário
a outros desejos e, se for seguido coerentemente, con-
duzirá a inconveniências do mesmo tipo daquelas a que
se submetem os homens mae engas. As moças nobres da
Espanha do século XVII viram-se num dilema em que
ambos os lados incluíam a desonra. Santa Tereza d'Avila
foi educada numa sociedade em que a sedução de uma
moça tinha que ser vingada por seu irmão ou pai. Assim,
se ela recebesse um amante, arriscava a honra e ainda a
vida dos homens. Mas sua honra pessoal exigia que
ela fosse generosa e que não se recusasse a seu amante;
pois era impensável rejeitar totalmente amantes. Exis-
tem muitos outros exemplos de como a busca da pu-
reza cria problemas e algumas curiosas soluções.
Uma solução é desfrutar da pureza indiretamente.
Algo semelhante a uma satisfação vicária conferiu sua
aura, sem dúvida, ao respeito pela virgindade no co-
meço do Cristianismo, dá um prazer extra para os brâ-
manes nambudiris quando enclausuram suas irmãs, e
intensifica o prestígio dos brâmanes entre as castas mais
baixas, em geral. Em certas chefias, os Pendes de Kasai
esperam que seus chefes vivam em abstenção sexual.
Assim, um homem conserva o conforto de sua chefia em
nome de seus súditos polígamos. Para assegurar que não
haja lapso por parte do chefe que, ao ser empossado,
já deixou para trás a mocidade, os súditos colocam-lhe
um estojo peniano para o resto da vida (de Sous-
berghe).
Algumas vezes a pretensão à pureza superior é ba-
seada na decepção. Os homens adultos da tribo Cbagga

197
Pode-se esquematizar suas principais divisões como
dois círculos concêntricos. O círculo da sociedade hu-
mana encerra os homens como caçadores e adivinhos,
mulheres e crianças e também, anomalamente, os aru-
mais que vivem na sociedade humana. Na aldeia, esses
não-humanos são ou animais domésticos, cachorros e
galinhas, ou indesejáveis parasitas, ratos e lagartos. I! im-
pensável que se comam cachorros, ratos ou lagartos. O
alimento dos homens poderia ser a caça recolhida do
campo pelas flechas e armadilhas dos caçadores. As ga-
linhas apresentam cqmo que um problema de casuística
que os Leles resolvem considerando inconveniente que
as mulheres as comam, embora esse alimento seja possí-
vel e até bom para os homens. As cabras, recentemen-
te introduzidas, são criadas para a troca com outras tri-
bos e não para comer.
Toda esta meticulosidade e discriminação poderia,
se coerentemente completada, fazer com que sua cultu-
ra se apresentasse como uma daquelas que rejeita a su-
jeira. Mas o que importa é o que acontece na avaliação
final. Na parte principal, seus rituais formais são basea-
dos na discriminação de categorias, humano, animal,
macho, fêmea, jovem, velho etc. Mas são conduzidos
através de uma série de cultos que permitem a seus
iniciados comer o que é normalmente perigoso e proi-
bido, animais carnívoros, o peito da caça e animais
novos. Num culto íntimo um monstro híbrido, que na
vida secular esperar-se-ia que eles abominassem é reve-
rentemente comido pelos iniciados, sendo considerado a
fonte mais poderosa de fertilidade. Neste ponto vê-se
que isto é, afinal, continuando com nossa metáfora do
jardim, uma religião composta. Aquilo que é rejeitado
é reinvestido para uma renovação de vida.
Os dois mundos, humano e animal, não são absolu-
tamente independentes. Muitos animais existem, pensam
os Leles, para serem a presa dos caçadores. Alguns
animais de toca ou noturnos, ou amantes da água, são
animais-espíritos que têm conexão especial com os ha-
bitantes não-animais do mundo animal, os espíritos. Os
humanos dependem desses espíritos para a prosperidade,
a fertilidade e o fortalecimento. A atividade norma] é que
os humanos saiam e obtenham o que necessitam da es-
fera animal. Os animais e espíritos, caracteristicamente,
desconfiam dos homens e não vêm espontaneamente para

202
o mundo humano. Os homens, como caçadores e adivi-
nhos, exploram ambos os aspectos desse outro mundo,
para o alimento e cura. As mulheres, fracas e vulnerá-
veis, necessitam especialmente da ação masculina naque-
le outro mundo. As mulheres evitam os animais-espíritos
e não comem sua carne. Não são nunca caçadoras e só
se tomam adivinhas se nascem, ou dão à luz, gêmeos.
Na interação dos dois mundos seu papel é passivo, mas
necessitam, especialmente, do auxilio dos espíritos, pois
as mulheres são propensas à esterilidade ou, se concebem,
ao aborto, e os espíritos podem fornecer remédios.
A parte esta relação normal de ataque e ritual
masculino em nome das mulheres e crianças, existem
duas espécies de pontes mediadoras entre os humanos
e o selvagem. Uma é para o mal e a outra é para o bem.
A ponte mais perigosa é feita por uma transferência
perversa de aliança por humanos que se tomam feiti-
ceiros. E les dão as costas à sua própria espécie e cor-
rem em companhia da caça, lutam com os caçadores,
trabalham contra os adivinhos para conseguir deter a
morte em lugar da cura. Moveram-se para a esfera ani-
mal e induziram alguns animais a mudarem-se da es-
fera animal para a esfera humana. Estes mais tarde são
seus carnívoros familiares, que roubam galinhas da al-
deia e fazem aí o trabalho dos feiticeiros.
O outro modo ambíguo de ser refere-se à fertilida-
de. g da natureza dos humanos reproduzirem com dor
e perigo e que seus nascimentos normais sejam singula-
res. Ao contrário, considera-se que os animais são natu-
ralmente fecundos; reproduzem sem dor c perigo e seus
nascimentos normais ocorrem em par ou em maior nú-
mero. Quando um casal humano produz gêmeos ou tri-
gêmcos, é capaz de romper os limites humanos normais.
De certa forma são anômalos, roas da manei ra mais aus-
piciosa poss[vel. Tem uma contrapartida no mundo ani-
mal e este é o monstro benigno ao qual os Leles prestam
um culto formal, o pangolim ou o escamoso tamanduá.
A vida dele contradiz todas as mais óbvias categorias
animais. Tem escamas como um peixe, porém sobe em
árvores.:e mais como um lagarto ovíparo que um ma-
mífero, ainda que amamente o filhote. E, o que é mais
significativo, contrariamente a outros pequenos mamí-
feros, nasce apenas um de cada vez. Em vez de fugir
ou atacar, ele se enrola numa pequena bola e espera

203
que o caçador passe. Os pais de gêmeos humanos e o
pangolim da floresta são ritualizados como fontes de
fertilidade. Em lugar de uma existência abominável e
mais tarde anômala, o pangolim é comido numa cerimô-
nia solene pelos iniciados que se tornam assim capazes
de ministrar fertilidade à espécie.
Este é um mistério de mediação de uma esfera ani-
mal que corresponde aos fascinantes mediadores huma-
nos descritos por Eliade em sua narrativa do Xamanis-
mo. Em suas descrições do comportamento do pangolim
e em sua atitude para com este culto, os Leles dizem
coisas que, estranhamente, lembram passagens do Velho
Testamento, interpretadas na tradição cristã. Como o
cordeiro de Abraão na mata e como Cristo, o pango-
lim é tido como uma vítima voluntária. Ele não é cap-
turado, mas pelo contrário vem para a aldeia. :e uma
vítima majestosa: a aldeia trata seu cadáver como um
chefe vivo e exige o comportamento de respeito como
para seu chefe, sob pena de futuro desastre. Se seus ri-
tuais são sinceramente desempenhados, as mulheres con-
ceberão e os animais cairão nas armadilhas dos caça-
dores e atirar-se-ão sob suas flechas. Os mistérios do
pangolim são mistérios dolorosos:
"Agora entrarei na casa da aflição", eles cantam
quando os iniciados carregam seu cadáver ao redor da
aldeia. Nenhuma outra de suas canções de culto me foi
contada, com cxceção dessa atormentada frase. Este
culto tem, obviamente, muito tipos diferentes de signi-
ficado. Limito-me aqui a comentar dois aspectos: um
é a maneira pela qual ele obtém a união de opostos que
é uma fonte de poder para o bem; o outro é a sub-
missão aparentemente voluntária do animal à própria
morte.
No Cap. 1 expliquei por que, para o objetivo de
estudar a poluição, eu necessitaria de uma maior aproxi-
mação da religião. Defini-la como a crença em seres es-
pirituais é estreito demais. Acima de tudo, é impossível
discutir a matéria deste capítulo a menos que se leve
em consideração a ânsia comum dos homens de fazerem
uma unidade de toda sua experiência e de superarem
as distinções e separações em atos de expiação. A com-
binação dramática de opostos é um tema que satisfaz
psicologicamente o alcance da interpretação em vários
níveis. Mas, ao mesmo tempo, qualquer ritual que ex-

204
presse a feliz união de opostos é também um veículo
próprio para temas essencialmente religiosos. O culto
pangolim dos Leles é apenas um exemplo, dos quais mui-
tos outros poderiam ser citados, de cultos que convidam
seus iniciados a se virarem de frente e confrontarem as
categorias sobre as quais toda sua cultura circundante foi
construída e a reconhecê-las como criações fictícias, fei-
tas pelo homem, devido ao seu aspecto arbitrário. Atra-
vés de seu cotidiano, e especialmente de sua vida ri-
tual, os LeJes preocupam-se com a forma. I ncessante-
mente representam as discriminações pelas quais sua
sociedade e ambiente cultural existem, e metodicamente
punem ou atribuem infortúnio às violações das regras
de abstinência. Pode ser que o peso das regras não
seja opressivo. Mas, por um esforço consciente, cor-
respondem através delas à idéia de que as criaturas
do céu são, por natureza, diferentes das criaturas da
terra, de modo que se considera perigoso para uma mu-
lher grávida comer estes últimos, e nutritivo comer os
animais do céu etc. Quando eles se preparam para
comer, representam visivelmente as discriminações cen-
trais do seu cosmos, tal como os antigos israelitas ence-
naram uma liturgia de santidade.
Vem então o culto interno de toda a vida ritual,
no qual os iniciados do pangolim, imunes aos perigos
que matariam homens não iniciados, se aproximam, ma-
nipulam, matam e comem o animal que combina, na sua
própria existência, todos os elementos que a cultura
lele mantém separados. Se pudessem escolher entre
nossas filosofias a mais adequada aos momentos do rito,
seriam existencialistas primitivos. Pelo mistério daquele
rito reconhecem algo da natureza fortuita e convencio-
nal das categorias cm cujo molde têm sua experiência.
Se evitassem de modo coerente a ambigüidade, pode-
riam empenhar-se na divisão entre ideal e realidade.
Mas, enfrentam a ambigüidade numa forma extrema e
concentrada. Atrevem-se a agarrar o paogoUm e empre-
gá-lo no uso ritual, proclamando que este tem mais po-
der do que qualquer outro rito. Assim, o culto pangolim
consegue inspirar uma profunda meditação sobre a na-
tureza da pureza e da impureza e sobre a limitação da
contemplação humana da existência.
O pangolim não apenas domina as distinções no
universo. Seu poder para o bem é liberado por sua mor-

205
te e ele parece deliberadamente assumi-la. Se sua reli-
gião fosse um só bloco, poderíamos, a partir do prece-
dente, classificar a reUgião dos Lcles como uma afirma-
ção da sujeira e esperar que eles encarassem a aflição
com resignação, e fizessem da morte ocasião de rituais
confortadores de expiação e renovação. Porém, as no-
ções metafísicas que estão todas em ordem no quadro
ritual separado do culto do pangolim são um outro as-
sunto quando a morte real atingiu um membro da fa-
mília. Então, os Leles rejeitam completamente a morte
ocorrida.
Diz-se frcqüentemente que nesta ou naquela tribo
africana o povo não reconhece a possibilidade de mor-
te natural. Os Leles não são loucos. Reconhecem que a
vida deve ter um fim. Mas, se fosse para os fatos se-
guirem seu curso natural, eles esperariam que todas as
pessoas sobrevivessem a seu período de vida natural e,
vagarosamente, baixassem da senilidade à cova. Quando
isto acontece eles se regozijam, pois este ancião ou aque-
la anciã triunfou sobre todas as ciladas que estão no
caminho e alcançou um bom fim. Mas isto raramente
acontece. Na maioria dos casos, as pessoas, segundo os
Leles, são atacadas pela feitiçaria bem antes de alcan-
çarem seu objetivo. E a feitiçaria não pertence à ordem
natural das coisas, segundo a sua visão. A feitiçaria era
uma reflexão tardia, mais um acidente na criação. Neste
aspecto de sua cultura constituem um bom exemplo da
preocupação com a saúde descrita por William James.
Para os Leles, o mal não deve ser incluído no sistema
total do mundo, mas para ser eliminado sem concessão.
Todo mal é causado pela feitiçaria. Podem visualizar cla-
ramente o que a realidade poderia ser sem a feitiçaria e,
continuamente, se esforçam para realizá-la pela elimi-
nação dos feiticeiros.
Uma forte tendência milenária está implicita no mo-
do de pensar de qualquer povo cuja metafísica empurra o
mal para fora do mundo da realidade. Entre os Leles,
a tendência milenária irrompe em paixão em seus re-
correntes cultos de antifeitiçaria. Quando um novo culto
aparece consome todo o aparato de sua religião tradicio-
nal. O elaborado sistema de anomal ias rejeitadas e afir-
madas apresentadas por seus cultos é regularmente re-
jeitado como obsoleto pelo último culto de antifeitiçaria

206
que não passa de uma tentativa de introduzir o milênio
imediatamente.
Assim, temos que considerar duas tendências na re-
ligião lele: uma pronta para arrancar até os véus im-
postos pelas necessidades de pensamento e encarar a
realidade diretamente; a outra, uma recusa da necessi-
dade, uma recusa do lugar do sofrimento c mesmo da
morte na realidade. Dessa forma, o problema de William
James é convertido na questão de saber que tendên-
cia é a mais forte.
Se o lugar do culto do pangolim em sua visão de
mundo for aquele por mim descrito, esperar-se-ia que
fosse ligeiramente orgiástico, uma destruição temporária
da forma apolínea. Talvez em sua origem, sua festa de
comunhão fosse uma ocasião mais dionisíaca. Mas não
há nada remotamente incontrolado nos ritos !eles. Não
fazem uso de drogas, danças, hipnotismo ou qualquer
das artes pelas quais o controle consciente do corpo é
afrouxado. Mesmo o único tipo de adivinho que se acre-
dita estar em direta comunhão de transe com os espí-
ritos da floresta, e que canta para eles durante toda a
noite, quando eles o visitam, canta num estilo sério e
austero. Estas pessoas estão muito mais preocupadas
com o que a religião pode distribuir em termos de fer-
tilidade, curas e sucesso na caçada, do que em aper-
feiçoar o homem e obter a união religiosa no sentido
mais amplo. Grande parte de seus ritos são verdadeira-
mente ritos de magia, executados com vistas a uma cura
específica ou na véspera de uma caçada determinada,
e intentam produzir um imediato e tangível sucesso.
A maior parte do tempo, os adivinhos leles não parecem
melhor que muitos Aladins esfregando suas lâmpadas
e esperando que as maravilhas tomem forma. Somen-
te seus ritos de iniciação neste culto dão um indício
de outro nível de compreensão religiosa. Mas o ensi-
namento desses ritos é revestido pela absorção apai-
xonada das pessoas na feitiçaria e antifeitiçaria. Impor-
tantes questões políticas e pessoais esperam a conseqüên-
cia de alguma acusação de feitiçaria. Os ritos que pren-
dem o interesse público são os que descobrem feiticei-
ros ou os inocentam, defendem contra eles ou restauram
o que danificaram. Fortes pressões sociais forçam o
povo a culpar a feitiçaria de todas as mortes. f: assim
que, seja o que for que sua religião formal diga sobre

207
a natureza do universo e sobre o lugar do caos, o sofri-
mento e a desintegração na realidade, os Leles estão so-
cialmente comprometidos com uma visão diferente. Nes-
ta visão, o mal está fora da cena normal das coisas;
não faz parte da realidade. Dessa maneira, os Leles pa-
recem mostrar o controlado sorriso dos cientistas cris-
tãos. Se pudessem ser classificados não conforme suas
práticas de culto, mas conforme as crenças que, perio-
dicamente, destroem aquelas práticas, apareceriam aber-
tamente como um povo preocupado com o salutar, que
rejeita a sujeira e insensível à lição do gentil pangolim.
Seria injusto tomar os Leles como exemplo de um
povo que tenta eludir todo o assunto da morte. Cito o
caso deles, principalmente, para mostrar a dificuldade
em avaliar uma atitude cultural para com essas coisas.
Aprendi muito pouco sobre suas doutrinas esotéricas
porque eram segredos guardados cuidadosamente pelos
participantes masculinos do culto. Tal esoterismo em si
mesmo é relevante. A reserva religiosa tele é um con-
traste claro com muitas outras regras abertas de admis-
são e publicidade do ritual de culto dos Ndembus, que
vivem a sudeste dos L eles. Se os sacerdotes, por várias
razões sociais, mantêm sua doutrina secreta, o mínimo
que pode resultar disto é a desinformação dos antropó-
logos. ~ menos provável que os temores da feitiçaria
predominem sobre o ensinamento religioso, se a doutri-
na religiosa for mais amplamente difundida.
Para os Leles, então, parece que as principais re-
flexões ocasionadas pela morte são pensamentos de vin-
gança. Qualquer morte é tratada como desnecessária,
devida a um crime por parte de um ser humano de-
pravado e anti-social. Assim como o foco de todo sim-
bolismo de poluição é o corpo, o problema final a que
conduz a perspectiva da poluição é a desintegração cor-
poral. A morte apresenta um desafio a qualquer sistema
metafísico, mas o desafio não precisa ser enfrentado in-
teiramente. Estou sugerindo que, tratando toda morte
como resultado de um ato individual de traição e ma-
ücia humana, os Leles estão evitando suas implicações
metafísicas. Seu culto do pangolim sugere uma medita-
ção sobre a inadequação das categorias do pensamento
humano, mas apenas poucos são convidados a fazê-la
e não é explicitamente relacionada à sua experiência da
morte.

208
Pode parecer que dei atenção demasiada ao culto
do pangolim !ele. Não há nenhum livro !ele de Teologia
ou Filosofia para estabelecer o significado do culto. As
implicações metafísicas não me foram expressas em
tantas palavras pelos Leles, nem também me intrometi na
conversa dos adivinhos que estavam discutindo tal assun-
to. Na verdade, registrei ( 1957) que principiei a abor-
dagem do modelo cósmico ao simbolismo animal !ele
porque estava frustrada em meus interrogatórios diretos
que buscavam as razões para sua abstinência de ali-
mento. Eles nu oca diriam: "Evitamos os animais aoô-
malos porque, desafiando as categorias de nosso u ni-
verso, incitam profundos sentimentos de inquietação".
Mas, sobre cada animal evitado lançar-se-iam em inves-
tigações sobre sua história natural. A lista completa de
anomalias torna claro os simples princípios taxinômicos
que são usados. Mas o pangolim foi sempre tido como
o mais inacreditável monstro. No primeiro interrogató-
rio, ele parecia ser uma besta tão fantástica que não
pude acreditar em sua existência. Ao perguntar por
que ele devia ser o foco de um culto de fertilidade nova-
mente frustrei-me: isto era um mistério dos acestrais,
cuja origem se perdera no tempo.
Que espécie de provas para o significado desse cul-
to, ou de qualquer outro pode ser sensivelmente exigida?
Pode ter muitos níveis e espécies de significados dife-
rentes. Mas o único em que baseio meus argumentos é o
significado que emerge de um padrão cujas partes se po-
de mostrar incontestavelmente que estão regularmente
relacionadas entre si. Nenhum membro da sociedade es-
tá, necessariamente, ciente do padrão global, assim como
tampouco os que falam são capazes de explicitar os pa-
drões lingüísticos que empregam. Luc de Heusch ana-
lisou meu material e mostrou que o pangolim concen-
tra em seu ser mais discriminações centrais da cultura
lele do que eu mesma tinha compreendido. Posso talvez
justificar minha interpretação da razão pela qual o ma-
tam e comem ritualmente, mostrando que em outras
religiões primitivas foram registradas perspectivas me-
tafisicas similares. Além disso, os sistemas de crenças,
comumente, não sobrevivem, a menos que ofereçam re-
flexões num plano mais profundo do que aquelas ha-
bitualmente creditadas às culturas primitivas.

209
A maioria das religiões promete fazer, através de
seus ritos, algumas mudanças nos eventos externos.
Quaisquer que sejam as promessas que razem, a morte
deve, de algum modo, ser reconhecida como inevitável.
~ comum esperar que o maior desenvolvimento metafí-
sico seja acompanhado por mais pessimismo e desprezo
pelas boas coisas desta vida. Se religiões como o Budismo
ensinam que a vida individual é uma coisa pequena c
que seus prazeres são passageiros e iosatisfatórios, co-
locam-se pois numa posição filosófica segura para con-
templar a morte no contexto do propósito cósmico de
uma existência que tudo impregna. De modo geral, as
religiões primitivas e a aceitação costumeira do leigo
das mais elaboradas filosofias religiosas coincidem: es-
tão menos preocupados com a filosofia e mais interes-
sados nos benefícios materiais que a conformidade ritual
e moral podem trazer. Segue-se, porém, que aquelas
religiões que mais têm enfatizado os efeitos instrumen-
tais de seus rituais são mais vulneráveis à descrença. Se
os fiéis chegaram a pensar sobre os ritos como recur-
sos para a saúde e a prosperidade, tal como muitas
lâmpadas maravilhosas que funcionam quando se as es-
frega, chega um dia que todo o aparato ritual deve
parecer um esforço inútil. Em alguma parte, as crenças
devem ser salvaguardadas contra o desapontamento ou
podem não conseguir aquiescência.
Uma forma de proteger o ritual do ceticismo é su-
por que um inimigo, de dentro ou de fora da comu-
nidade, está continuamente anulando seu bom efeito.
Nessa linha, a responsabilidade pode ser atribuída a
demônios imorais ou a bruxas e feiticeiros. Mas, esta é
apenas uma fraca proteção, pois afirma que os fiéis estão
certos em tratar o ritual como um instrumento de seus
desejos, mas confessa a fraqueza do ritual para realizar
seu propósito. Assim, as religiões que explicam o mal
pela referência à demonologia ou feitiçaria são defi-
cientes para oferecer uma maneira de compreender o
todo da existência. Chegam perto de uma visão otimista,
preocupada com a saúde pluralista, do universo. E, por
incrível que pareça, o protótipo de filosofias preocupadas
com a saúde, como William James as descreveu, a Ciên-
cia Cristã, era propensa a suplementar sua inadequada
aproximação do mal por uma espécie de demonologia in-
ventada ad hoc. Sou agradecida a Rosemary Harris por

210
me haver transmitido a referência à crença de Mary Ba-
ker Eddy num "malicioso magnetismo animal" que ela
considerou responsável pelos males que não poderia ig-
norar (Wilson, 1961, pp. 126-127).
Outra forma de proteger a crença de que a reli-
gião pode distribuir a prosperidade aqui c agora é fazer
com que a eficácia ritual dependa de condições difíceis.
Por um lado, o rito pode ser muito complicado e difícil
de executar: se os mínimos detalhes entram numa ordem
errada, ele todo está invalidado. Esta é uma aproxima-
ção estritamente instrumental, mágica no sentido mais
pejorativo. Por outro lado, o sucesso do rito pode de-
pender de que as condições morais sejam corretas: os
executores e a audiência deveriam estar num estado de
espírito próprio, livre de culpa, de rancores etc. Uma
condição moral para a eficácia do ritual pode unir os
crentes aos mais altos propósitos de sua religião. Os
profetas de Israel, gritando "O Juízo Final, ô Juízo Fi-
nal, ô Juízo Final!", fizeram muito mais do que forne-
cer uma explicação do porquê do fracasso dos rituais
em dar a paz e a prosperidade. Ninguém que os ouvisse
poderia ter uma visão do ritual estritamente mágica.
A terceira maneira é que o ensinamento religioso
mude seu programa de ação. Na maior parte dos contex-
tos cotidianos conta-se aos fiéis que seus campos p ros-
perarão e que suas famílias aumentarão, se obedecerem
ao código moral e executarem os serviços próprios ao
ritual. Assim, em outro contexto, todo esse esforço pie-
doso é desacreditado, o desacato é atirado sobre o com-
portamento correto, os objetivos materialistas são subi-
tamente desdenhados. Não podemos dizer que, repenti-
namente, se tomam religiões de injunções, prometendo
apenas desilusões nesta vida. Mas, de algum modo,
movem-se ao longo desse caminho. Assim, por exemplo,
os iniciantes ndembus de Chihamba são preparados pa-
ra destruir o espírito branco que, como aprenderam, é
seu avô, fonte de toda a fertilidade e saúde. Tendo-o
destruído, afirmam que são inocentes e devem alegrar-se
(Turner, 1962). O ritual diário ndembu é intensiva-
mente executado, sendo visto como o instrumento para
obter boa saúde e boa caça. Seu mais importante culto,
Cbihamba, é seu momento de desilusão. Por ele, seus
outros cultos não atingem a imunidade no que concer-

211
ne ao descrédito. Mas, Turner insiste em que o objeto
dos rituais Chihamba é usar o paradoxo e a contradição
para expressar verdades inexprimíveis em outros ter-
mos. No Chiharnba, enfrentam a mais profunda realida-
de e medem seus objetivos por um padrão diferente.
Estou tentada a supor que muitas religiões primiti-
vas que oferecem sucesso material com uma das mãos
protegem-se com a outra contra a experiência crua, pro-
longando em muito sua perspectiva. Pois um enfoque
restrito sobre a saúde física c a felicidade torna a re-
ligião vulnerável à descrença. E assim podemos supor
que a própria lógica das promessas vergonhosamente
não cumpridas pode levar os oficiantes dos cultos a
meditarem sobre temas mais vastos e profundos, tais co-
mo o mistério do mal e a morte. Se isto for verdade, po-
deríamos esperar que os cultos de aspectos mais materia-
listas apresentassem, em algum ponto central, no ciclo
ritual, um culto do paradoxo da unidade final da vida
e da morte. Em tal ponto a poluição da morte, tratada
como um papel criativo e positivo, pode ajudar a preen-
cher a lacuna metafísica.
Podemos ilustrar com o exemplo do ritual da mor-
te dos Nyakyusas, que vivem ao norte do lago Niassa.
Associam explicitamente a sujeira com a loucura; aque-
les que são dementes comem imundícies. Existem duas
formas de loucura: uma é enviada por Deus e a outra
vem da negligência para com o ritual. Assim, explici-
tamente, vêem o ritual como a fonte de discriminação
e conhecimento. Qualquer que seja a causa da loucura,
os sintomas são os mesmos. O louco come a sujeira e
tira suas roupas. A sujeira é vista como significando
excreção, lama, rãs: "o comer da sujeira pelos loucos é
como a sujeira da morte, as fezes são o cadáver" (Wil-
son, 1957, pp. 53, 80-81). Desse modo, o ritual con-
serva a sanidade e a vida: a loucura traz a imundície
e é uma espécie de morte. O ritual separa a vida da
morte: "O morto, se não é separado dos vivos, traz
loucura para estes". Esta é uma idéia bastante perspicaz
de como o ritual funciona ecoando o que já vimos no
Cap. 4. Ora, os Nyakyusas não são tolerantes à sujeira,
mas bastante cônscios da poluição. Observam restrições
minuciosas para evitar o contacto com refugos corpóreos
que são vistos como muito perigosos:

212
Considera-se que a Ubanyali, a sujeira, se origina dos flui-
dos sexuais, a menstruação e o parto, tanto quanto de um ca-
dáver, e do sangue de um inimigo mo,rto. Todos são vistos
como repugnantes e perigosos e os fluidos sexuais são parti-
cularmente perigosos para uma criança (p. 131).

O contacto com o sangue menstrual é perigoso


para um homem, especialmente para um guerreiro; daí
as elaboradas restrições sobre cozinhar para um homem
durante a menstruação.
Mas, apesar dessa evitação normal, o ato central
no ritual do luto é para recepcionar ativamente a su-
jeira. Limpam o refugo para os acompanhantes do en-
terro.
O refugo é o refugo da morte, é a sujeira. "Deixe-a vir
agora", diremos. "Não a deixe vir mais tarde, nós nunca po-
demos fugir da loucura ... " Significa "Nós lhe demos tudo, te-
mos comido imundícies da terra." Porque se alguém fica louco,
come imundícies, fezes. . . (p. 53).

Suspeitamos que haja muito mais coisas a se dizer


sobre a interpretação deste rito. Mas, vamos deixá-la no
ponto em que os breves comentários dos Nyakyusas o
tomaram: uma admissão voluntária dos símbolos da
morte é uma espécie de profilaxia contra os efeitos
da morte; a sanção ritual da morte é uma proteção, não
contra a morte, mas sim contra a loucura (p. 89). Em
todas as outras ocasiões, eles evitam as fezes e a imun-
dície, e consideram um sinal de loucura não fazê-lo.
Mas, em face da própria morte eles renunciam a tudo,
declarando mesmo ter comido imundícies como o faz
um louco para manter sua razão. Se negligenciarem o
ritual que aprova livremente a corrupção do corpo, s~
brevirá a loucura; a sanidade está assegurada se exe-
cutarem o rituaL
Outro exemplo da amenização da morte pela boa
acolhida, se assim podemos dizer, é a do assassínio ri-
tual pelo qual os Dinkas submetem à morte seus velhos
mestres de lança. Este é o rito central da religião dinka.
Todos seus outros ritos e os expressivos sacrifícios san-
grentos empalidecem ao lado deste outro que não é um
sacrifício. Os mestres de lança são um clã hereditário
de sacerdotes. Sua divindade, Carne, é um símbolo da
vida, da luz e da verdade. Os mestres de lança podem
ser possuídos pela divindade; os sacrifícios que executam

213
e as bênçãos que distribuem são mais eficazes que a
de outros homens. São mediadores entre a tribo e a
divindade. A doutrina subjacente ao ritual da sua morte
é a de que à vida dos mestres de lança não deverá
ser permitido escapar com seu último suspiro do seu
corpo agonizante. Mantendo vida em seu corpo, ela é
preservada; o espírito do mestre de lança é assim trans-
mitido a seu sucessor para o bem da comunidade. Esta
pode viver como uma ordem racional por causa do
destemido auto-sacrifício de seu sacerdote.
Entre os viajantes estrangeiros este rito era repu·
tado como uma brutal sufocação de um velho sem es-
perança. Um estudo profundo das idéias religiosas dos
Dinkas revela que o tema central é que o velho escolhe
livremente a hora, o lugar e a maneira de morrer. O
próprio velho pede para que lhe preparem sua morte.
Pede isso do povo pelo bem do povo. Ele é reverente-
mente levado para seu túmulo, e ali deitado diz suas úl-
timas palavras para seus filhos pesarosos, antes que sua
morte natural seja antecipada. Por sua decisão livre e
deliberada, despoja a morte da incerteza do seu tempo
e lugar de vinda. Sua própria morte desejada, ritual-
mente enquadrada pela própria cova, é uma vitória co-
munal para todo seu povo (Lienhardt). Enfrentando a
morte e agarrando-a firmemente, ele disse algo a seu
povo sobre a natureza da vida.
O elemento comum nesses dois exemplos de ritual
de morte é exercício de uma escolha livre e racional de
suportá-la. Idéia algo semelhante está na auto-imolação
do pangolim dos Leles, e ainda na morte ritual de Kavu-
la entre os Ndembus, pois, este espírito branco não fica
zangado, mas até satisfeito por ser assassinado. Este é,
porém, um outro tema que a poluição da morte pode
expressar, se se converter seu sinal de mal para bem.
A vida animal e vegetal não podem deixar de de-
sempenhar seu papel na ordem do universo. Não têm
outra escolha, a não ser viver de acordo com a natureza
de seu comportamento. Ocasionalmente, uma espécie
particular ou um indivíduo sai da linha e os humanos
reagem por evitação deste ou daquele tipo. A própria
reação ao comportamento ambíguo expressa a expecta-
tiva de que todas as coisas poderão normalmente se con-
formar aos princípios que governam o mundo. Mas, em
sua experiência como homens, as pessoas sabem que

214
sua conformidade pessoal não é tão certa. Punições,
pressões morais, regras sobre não tocar e não comer,
uma firme estrutura ritual, tudo isso pode fazer algo
para levar o homem para a harmonia com o resto do
ser. Mas, na medida em que é negado o consentimento,
também o é o desempenho imperfeito. Aqui, novamente,
podemos discernir os existencialistas primitivos cuja fuga
da cadeia da necessidade repousa apenas no exercício da
escolha. Quando alguém abraça livremente os símbolos
da morte ou a própria morte, então é coerente com
tudo que vimos até agora que se deveria esperar como
conseqüência uma grande liberação de poder.
O velho mestre de lanças, dando o sinal para seu
próprio assassinato, pratica formalmente um ato ritual.
Não tem nada da exuberância de São Francisco de Assis
rolando nu na imundície e dando as boas-vindas à sua
Irmã Morte. Mas, seu ato toca o mesmo mistério. Quan-
do alguém sustenta a idéia de que a morte e o sofri-
mento não são parte integral da natureza, o engano é
corrigido. Se houve uma tentação para tratar o .ritual co-
mo uma lâmpada mágica para ser esfregada a fim de
obter riquezas e poderes ilimitados, o ritual mostra seu
outro lado. Se a hierarquia de valores é cruamente ma-
terial, está dramaticamente minada pelo paradoxo e pela
contradição. Descrevendo esses escuros temas, os sím-
bolos de poluição são tão necessários quanto o uso do
preto em qualquer representação. Logo, achamos a cor-
rupção venerada em lugares e tempos sagrados.

215
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224
lNDICE
ABERCROMDIE M. L. John· Bemba, 12, 166, 168 e ss.,
son, 52. 188-91.
Aborígines, 108 e s. BBRNDT, R., 109.
ADAM, V., 11 8. BETTELHEIM. R., 143 e S.
Adultério, 161 e s. Bua, J. S. e C8RYSTAL,
A.JOSE, Dr., 44. G., 28, 30 e s.
Andamaneses, 84, 118. BLACK, M. e RoWLEY, H.
AQUINO, Sto. Tomás de, H ., 69.
79. BOUANNAN, P. J., 134.
ARe, Joana d', 122, 127. Brâmane, 47 e ss., 176 e
AssTS, S. Francisco de, 2 15. ss., 197.
ÁVTLA, Sta. Tereza d', 197. BRoWN, Normao O., 143-
Azande, 12, 96, 108, 111 ·47, 150.
e ss., 123, 127 e s. Budistas, 114, 210.
Bosquímanos, 75, 87 e ~ .•
Baraka, 77, 135-8. 102.
BARTLBIT, F. c., 51, 95. Bruxaria, 119, 122, 123,
BBAITTB, }., 97. 127 e ss.
Beduíno, 175. Bushong, 111, 194.

225
C\RSTAJ:R!, M. 155. GeLLNBR, E., 111, 136 e
CASSIRER, E. 38, 97, 101. S.
Cewa. 134, 189. GSNET,J., 154.
Chagga, 197 e s. Geomancia, 106.
CKARDIN, Teilhard de, 99. GLUCKMAN, M., 76, 171.
Cbeyenne, 109. GOPFMAN, E., 124.
COLSON, E., 110. GOLDSCHMIOT, W., 187.
Contágio, 15 e s., 22. GoooY, J., 76.
Cozinhar, 155 e s., 188 e GouGH, 155.
S. GREEN, T. H., 27 e ss.
Coorgs, 84, 151 e s. GllÕN'BECH, v. P. 1., 138.
CuMMING, E. e J., 121.
Hadza, 98 e s.
DARWIN, Charles, 26, 29. HARDY, Thomas, 19.
Dinka, 82, 85-87, 105, 142, HARPER, E. B., 21 e ss., 47
213 e s. e ss.
Dogon, 99. HARRIS, R., 210.
DOUGLAS, M., 182. HEGNER, R., ROOT, F. e
DJUVER, R. S., 61, 71. AUGUSTJNE, D., 44.
DIUVER, R. S. e WHITE, H. HEUSCH, L. de, 209.
A., 73. Hindu, 21 e ss., 103, 114,
DUBOIS, C., 157, 187. 152-55.
DUMONT, L. e P OCOCK, D., Hirace, 57, 71 e s., 93 (v.
152. q uerogrilo).
DURXHEIM, E., 32 e ss., 83 HoooEN, M., 24 e s.
e ss., 96 e s., 113. HOODIN, H. L., 165.
HOMERO, 40, 103, 104.
Ehanzu, 118. Hoou, S., 65.
EHRENZWEIG, A. 52. HORTOM, R., 104.
EICHROOT, W., 39 e s., 65. Higiene, 12, 33-4, 43-56.
ELIADB, M., 20, 22, 116,
195, 204. ljo, 104 e s.
ELIOT, George, 93. Incesto, 160 e ss.
EPSTEIN, I., 60. Ioruba, 45, 194.
~tica, 27-8, 29, 161 e ss. Islã, 114, 135 e s.
Protestante, 187. Israel, 39-40, 45, 152, 193,
EvANs-PRITCHARD, E., 12, 205, 211.
55, 96 e s., 111 e s.,
136, 162 e ss., 175 e }AMES, o.
B., 39.
ss. JAMES, W., 46, 198 e SS.,
Ex-prisioneiros, 121. 206, 207. 210.
JOWETT, B., 27-28.
Feitiçaria, 108, 132 e ss., JUNG, C., 105.
146 e s., 148 e s., 206 e
ss. KeLLOO, S. H., 44.
FESTINGER, L., 55. KNOX, R., 21.
F INLBY, M., 40. KOPYTOFF, 1., 134.
Fogo, 169 e s., 188 e s. KluMER, Noah, 46.
FIRTH, R ., 137 e s. KRioe, E. J. e J. 0 ., 148.
FORTES, M., 104, 136. KROEBER, H. L., 187.
PRAZER, J., 22 e s., 32, 33,
35-41, 61, 76 e s., 83, LAGRANGE, M. J., 45.
95 e s., 102, 110, 113. Lágrimas, 154.
FREEDMAN, M ., 106. LEACH, E. R., 125-6.
FREUD, S., 91, 97, 151. LB BoM, G., 33.

226
Lele, 109, 119, 130-1, 134, NADEL, S. F., 76.
182, 184 e ss., 188, 201 NAIPAtJL, v.S., 153.
e ss. Nayar, 177.
LÉVI·STRAtJSS, C., 90-1, Ndembu, 208, 211, 2 14.
116. NIGHTINOALE, Florence, 27.
Levítico, 55, 51-14, 93, Nuer, 12, 54, 71, 160 e
118. ss., 174 e ss.
LÉVY-BRUJIL, L., 95-7, 101, Nyakyusa, 119, 126, 165,
110, 114, 119, 167. 212 e s.
L BWJS, F. M., 135.
LtENHARDT, R. G., 76, 82, O ESTERLEY,W. O. E. e
85-6, 116, 214. Box, G. H., 39.
Lovedu, 148. Ü"NJANS, R. B., 105.
Lugbara, 132. Ontong de Java, 165.
Pangolim, 203 e ss.
MACHT, David I., 45 e s. PeoERSEN, 69.
Mae Enga, 178 e ss., 190 e Pende, 197.
s., 197. P FEJFPER, R. H., 62, 79,
Magia, 30, 31 e ss. e s.
M AIMÔNIDf!S, M ., 45, 59 e POLB, 0. 160.
s., 64 e s., 84. P OSPISIL, Leopold, 98.
MAUNOWSKI, B ., 76, 83. Protestante, 79-80.
Malweza, 109 e s.
Mana, 11, 135-8. Querogrilo, 58, 71, 97 (v.
Mandari, 128 e s., 130 e s. hirace ).
Marett, 101, 110, 11 3.
M ARSHALL, L., 75, 102. RADCLIFFE-BROWN, R., 83
MARsHALL-THOMAS, E., 87, e s., 118, 163.
150. RADJ.:N, P., 95, 99-101, 111,
MARWICX, M. G., 134. 147.
M.wss, M., 76, 88. RAUM, 0., 198.
McNerLL e GAMER, 78. REAo, H ., 95.
MEAD, M., 178, 181. REAo, K. E., 178.
Materialismo médico, 43- RlCHAJU>s, A. I., 12, 168 e
-6. s., 188, 190.
Medo, 11-13, 15. RlCHA'RDS, H. J .• 62.
MEEK, C. K., 175. RtcHTER, M., 27 e s.
MEGOIT, M., 173, 179, RtooeuR, P., 11, 116.
180 e s. ROBERTSON SMini, W., 23-
Menstrual, 150, 180, 184 ·42, 61, 77. 111.
e s., 213. R OBINS, R. H., 186.
ROHEIM, G., 144.
MlCK.Ll!M, N., 61 e s.
MIDDLETON, J., 132.
Rose, H. ]., 41, 94.
MILNER, M., 81. Sal, 170, 189.
Mórmons, 114. SAUM, S. M., 175.
MORTON-WILLIAMS, P., Sanatório, 121.
194. Santidade, 20-22, 24, 60,
MOISÉS, 44 e SS., 60 e SS., 69-71, 74.
66. SARTRE, J.-P., 53, 196.
Morte, 205 e s., 208, 212- SAUL, 13 e s.
· 15. SAYOON, P. P., 61.
MOULINIER, Louis, 40 e s. SmNA, Santa Catarina de,
Murinbata, 99. 20.

227
SITWELL, S. 195. VAN Ü ENNEP, L., 119, 141.
SMITH, Adam, 25. VANSINA, J.,
111, 120, 194.
Somália, 135. VAN W ING, J.
134.
Sorte, 77, 135-8. Velho Testamento, 17, 21,
SoussEROHB, L, de, 197. 39, 61, 65-6, 78, 97, 204.
SPENCER, Herbert, 33.
SRINIVAS, S., 84, 151. Walbiri, 112 e ss., 177.
STANNER, w. E. H., 108. WANOBRMANN, F., 192.
STEIN, S., 60, 63. WARD, Sr.a H., 27.
STEINER, F.. 14, 20. WATSON, W. 190.
WEBSTER, H., 11 8, 120.
TALCOTf~ PARSONS, T. c., WBSLEY, John, 24, 27.
33. WESTERMARCK, E., 136 e S.
TALLENSI, 104 e S., 126. WJIATELBY, R.• 22.
TBMPELS, P., 103. WIIATMOUOJl, Joshua, 4l.
Tikopia, 126. WI LSON, B. R., 211-212.
Tiv, 134. W ILSON, M., 119, 165.
Trickster, 99-101, 147 e. s., Winoebago, 147, 191.
191.
T robriandeses, 126 e s. YALMAN, N., 154, 176.
T'ult.NBULL, C., 107. Yao, 189.
T URNER, V. W., 89-9 1, Yurok, 157, 186 e ss.
124, 211 e s.
TYLOR, H. B., 25-7, 29, 34, Z.umNER, R. H., 38, 65.
96, 101, 102, 110, 113. Zoroastrismo, 65.

228
COLEÇÃO DEBATES

I. A Personagem de Ficção, A. Rosenfcld, A. Cândido,


Décio de A. Prado, Paulo Emílio S. Gomes.
2. Informação. Linguagem. Comunicaçcío, Décio Pignatari.
3. O Balanço da Bo.fsa e outras Bossas, Augusto de Campos.
4. Obra Aberta, Umberto Eco.
5. Sexo e Temperamento, Margaret Mead.
6. Fim do Povo Judeu?, Georges Friedmann.
7. Texto/Comexto, Anatol Rosenfeld.
8. O Sentido e a M áscara, Gerd A. Bornheim.
9. Problemas de Física Modema, W. Heisenberg, E. Schroe-
dinger, Max Born, Pierre Auger.
10. Distúrbios Emocionais e Anti-Semitismo, N. W. Acker-
man e M . Jahoda.
11. Barroco Mineiro, Lourival Gomes Machado.
12. Kafka: pró e contra, Güntber Anders.
I 3. Nova História e Novo Mundo, Frédéric Mauro.
14 . As Estruturas Narrativas, Tzvetan Todorov.
I 5. Sociologia do Esporte, Georges Magnane.
16 . A Arte no Horizonte do Provável, Haroldo de Campos.
17 . O Dorso do Tigre, Benedito Nunes.

229
18. Quadro da Arquitetura no Brasil, Nestor Goulart Reis
Filho.
19. Apocalípticos c Integrados, Umberto Eco.
20. Babel & A ntibabel, Paulo Rónai.
2 1. Planejamento no Brasil, Betty Mindlin Lafer.
22. Lingiifstica. Poética. Cinema, Roman Jakobson.
23. LSD, John Casbman.
24. Crítica e Verdade, Roland Barthes.
25. Raça e Ciência I, Juan Comas e outros.
26. Sltazam!, Alvaro de Moya.
27. As Artes Plásticas na Semana de 22, Aracy Amaral.
28. História e Ideologia, Francisco l glésias.
' 29. Pem: Da Oligarquia Econômica d Militar, Arnaldo Pe-
droso D'Horta.
30. Pequena Estética, Max Bense.
31. O Socialismo Utópico, Martin Buber.
32. A Tragédia Grega, Albin Lesky.
33. Filosofia em Nova Chave, Susanne X. Langer.
34. Tradição, Ciência do Povo, Luís da Câmara Cascudo.
35. O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco, Alfonso
Ávila.
36. Sartre, Gerd A. Borobeim.
37. Planejamemo Urba11o, Le Corbusier.
38. A R eligião e o Surgimento do Capitalismo, R. H. Tawney.
39. A Poétíca de Maiakóvski, B6ris Schnaiderman.
40. O Visível e o b n•isíve/, Merleau-Ponty.
41. A Multidão Solitária, David Riesman.
42. Maiakóvski e o Teatro de Vanguarda, A. M. Ripellino.
43. A Grande Esperança do Século XX, J. Fourastié.
44. Contracomunicação, Décio Pignatari.
45 . Unissexo, Charles Winick.
46 . A Arte de Agora, Agora, Herbert Read.
47. Bauhaus - Novarquitetura, Walter Gropius.
48. Signos cm Rotação, Octavio Paz.
49 . A Escritura e a Difcrenfia, Jacques Derrida.
50. Linguagem e Mito, Ernst Cassirer.
51. A s Formas do Falso, Walnice Gaivão.
52. M ito e R ealidade, Mircea Eliade.
53. O Trabalho em Migalhas, Georges Friedmann.
54. A Significação no Cinema, Christian Metz.
55. A Música Hoje, Pierre Boulez.
56. Raça e Ciência li, L. C. Dunn e outros.
57. Figuras, Gérard Genettc.
58. Rumos de uma Cultura Tecnológica, Abraham Moles.
59. A Linguagem do Espaço e do Tempo, Hugb Laccy.
60. Formalismo e Futurismo, .Krystyna Pomorska.
61. O Cris8ntemo e a Espada, Ruth Benedict.
62 . Estética e História, Bernard Berenson.
63. Morada Paulista, Luís Saia.
64. Entre o Passado e o Fuwro, Hannah Arendt.
65. Política Científica, Darcy M. de Almeida e outros.
66. A Noite da Madrinha, Sergio Miceli.
67. 1822: Dimensões, Carlos Guilherme Mota e outros.

230
68. Kitsch, Abraham Moles.
69. Estética e Filosofia, Mikel Dufrenne.
70. Sistema dos Objetos, Jean Baudrillard.
71. A Arte na Era da Máquina, Maxwell Fry.
72. Teoria e Realidade, Mario Bunge.
73. A Nova Arte, Gregory Battcock.
74. O Cartaz, Abraham Moles.
15. A Prova de Goedel, Emest Nagel e James R. Newman.
76. Psiquiatria e Antipsiquiatria, David Cooper.
77. A Caminho da Cidade, Eunice Ribeiro Durhan.
78. O Escorpião Encalacrado, Davi Arrigucci Júnior.
79. O Caminho Critico, Northrop Frye.
80. Economia Colonial, J. R. Amaral Lapa.
81. Falência da Crítica, Leyla Perrone-Moisés.
82. Lazer e Cultura Popular, Joffre Dumaz.edier.
83. Os Signos e a Crítica, Cesare Segre.
84. Introdução à Semanálise, Júlia Kristeva.
85. Crises da República, Hannah Arendt.
86. Fórmula e Fábula, WiJii Bolle.
87. Saída, Voz e úaldade, Albert Hirschman.
88. Repensando a Antropologia, E. R. Leach.
89. Semiótica e Literatura, Décio Pignatari.
90. Limites do Crescimento, Donella H. Meadows e outros.
91. Manicômios, Prisões e Conventos, Erving Goffman.
92. Maneirismo: O M 1m do como Labirinto, Gostav R. Hocke.
93. Fenomenologia e Estrlllura/ismo, Andrea Bonomi.
94. Cozinhas, etc., Carlos A. C. Lemos.
95. As Religiões dos Oprimidos, Vittorio Lanternari.
96. Os Três Estabelecimentos Humanos, Le Corbusier.
97. As Palavras sob as Palavras, Jean Starobinski.
98. Introdução à Literatura Fantástica, Tzvetan Todorov.
99. Significado nas Artes Visuais, Erwin Panofsky.
100. Vila Rica, Sylvio de Vasconcellos.
101. Tributação lndireta nas Economias em Desmvolvimento,
John F. Due.
102. Metáfora e Montagem, Modesto Carone Netto.
I 03. Repertório, M ichel Butor.
104. Valise de Crorrópio, Julio Cortãzar.
105. A Metáfora Crítica, João Alexandre Barbosa.
106. Mundo, Homem, Arte em Crlse, Mário Pedrosa.
107. Ensaios Críticos, Ramón Xirau.
I08. Do Brasil à América, Frédéric Mauro.
109. O Jazz, do Rag ao Rock, Joachim Bcrcndt.
110 . Etc ... , Etc ... Um Livro 100% Brasileiro, Blaise Cen-
drars.
III. Território da Arquitetura, Vittorio Gregotti.
112. A Crise Mundial da Educação, Philip H. Coombs.
113. Teoria e Projeto na Primeira Era da Máquina, Reyner
Banham.
114. O Substarrtwo e o Adjetivo, Jorge Wilheim.
J 15. A Estrutura das Revoluções Científicas, Thomas S. Kuhn.
116 . A Bela E:poca do Cinema Brasileiro, Vicente Paula
Araújo.

231
1 17. Crise Regional e P/anejamento, Amelia Cohn.
118. O Sistema Político Brasileiro: Estrutura e Processo, Celso
Lafer.
119. O Extase Religioso, Joan M. Lewis.
120. Pureza e Perigo, Mary Douglas.
121. H istória: Corpo do Tempo, José Honório Rodrigues.
122. Escritos sobre um Corpo, Severo Sarduy.
I 23 . Linguagem e Cinema, Christian Metz.
124. O Discurso Engenhoso no Brasil, Antônio Saraiva.
I 25. Psicana/isar, Serge Leclair.
126. Magistrados e Feiticeiros na França do Século XVIII, R.
Mandrou.
127. Marcel Ducltamp, Octavio Paz.
128. Cabala, Gerschom G . Scholem.
129. Sintaxe e Semlintica na Gram6tica Transformacional, A.
Bonomi e G. Usberti.
130. O Teatro e sua Realidade, Bernard Dort.
131. Escritos sobre a História, Fernaod Braudel.
132. Escritos, Jacques Lacan.

232
SOCIOLOGIA DA CULTURA - Karl Mannheim
(col. Estudos)
REPENSANDO A ANTROPOLOGIA - E. R. Leach
(col. Debates)
AS RELIGiõES DOS OPRIMIDOS - Vittorio Lan-
ternari (col. Debates)
SOCIODINAMICA DA CULTURA - Abraham Mo-
les (col. Estudos)

Clt=NCIA: ESTUDO - DEBATE


Antropologia
Filosofia
Lingüística O HOMEM,
Estética EM VISOES
Polftica DIVERSIFICADAS: sua vivência
Sociologia sua evolução
História sua cu ltura
Composição
lmpre11io
Acabamento
Rua Cadete, 209 - Slo Paulo
Tel s.: 67-7905 - 67-3585
..
~--r"'-"' ·~

Próximo lançamento
História: Corpo do Tempo
.lo.~é Honório Rodri~~tues

Este livro, publicado em inglês, foj traduzido sob a orien-


taç4o do Conjunto de ADtropologia da UNJCAMP. Numa
óptica funcionalista, analisa os rituais de poluição em vúios
povos e culturas, considerando os conceitos de pureza e su-
jeira como parte de um "todo maior", de uma umdade fun·
cional a que se integram de maneira harmoniosa e consis·
tente. A idéia de pureza - e do perigo a que se expõe - é
empregada como analogia para expressar uma visão geral de
ordem social.
Mary Douglas reporta-se às teorias de Malinowski e
Radclíffe-Browo, e cita côm ·freqüêocia Evans-Pritcba.rd. Sua
obra, controvertida e pessoal, procura 'integrar elementos de
uma pesquisa diversificada no tempo e no espaço a conceitos
fundamentais de Antropologü Cultural.
As antinomias pureza/impureza, limpeza/~ujeira, contá-
gio/ purificação, ordem I desordem siío as constantes de uma te-
mática que abrange desde alimentação e higiene até rellclio
e tabus sexuais. E inclui as "abominações" do Velbo Testa-
mento e rellgiio de povos da Polinésia e da África Central,
conceito de impureza entre os pj)VOS hindus e costumes de
índios norte-americanos, observações do quotidiano da autora
e interpretação de preceitos cristãos.

debates

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