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São Luís
2007
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São Luís
2007
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BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Profª Maria de Lourdes Lauande Lacroix (Orientadora)
Mestra em Filosofia da Educação
Fundação Getúlio Vargas (RJ)
________________________________________________
Profª Adriana Maria de Sousa Zierer
Doutora em História Medieval
Universidade Federal Fluminense (RJ)
________________________________________________
Prof. Mário Cella
Prof. Adjunto do Departamento de Filosofia
Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
12
AGRADECIMENTOS
Ramon Llull
15
RESUMO
O diálogo interreligioso. Esta pesquisa versa sobre o filósofo Ramon Llull, inserido no
contexto dos séculos XIII e XIV, que foi uma época de grande transformação. Neste período
expandiram-se as corporações de ofício, surgiram as universidades, houve um revigoramento
comercial e urbano e uma nova espiritualidade se esboçou, evidenciada pela formação de
novas ordens religiosas. Ramon Llull dedicou sua vida à conversão de não-cristãos e para este
propósito criou um método próprio, a Arte. Tal sistema consistia na argumentação baseada na
razão e na lógica e dispensava o uso de autoridades, pedra angular da educação medieval,
além de conciliar razão e fé, objetivo perseguido por praticamente todos os teólogos de sua
época. No Livro do Gentio e dos Três Sábios, Llull demonstra como esse método pode ser
aplicado de forma prática, criando uma disputa imaginária entre três sábios, um judeu, um
cristão e um muçulmano, na qual cada um tentou provar que sua fé era a verdadeira. Esta obra
na qual paira o respeito mútuo, mostra o pensamento diferencial deste autor, que embora
tivesse como meta a unificação de todos os homens no Cristianismo, exaltava a tolerância e o
debate em detrimento da força no convencimento do outro, visando o alcance da verdade e da
glória de Deus.
ABSTRACT
Interreligious dialogue. This paper deals with the philosopher Ramon Llull introduced on XIII
and XIV centuries context that was a time of great transformation. In that epoch, occupation
corporations were expanded, the universities up-rose, there was a commercial and urban
increase and a new spirituality started to be delineated by a new religious order formation.
Ramon Llull had his life dedicated to the no-Christian conversion. He created this own
method – The Art – for this purpose. This system consisted in the argument based on reason
and logic without the authorities’ power, the medieval education main stone. In his The Pagan
and the three Wise Men Book, Llull showed how this method can be applied in a practical
way, through a dispute among three wise men a Judian, a Christian and a Mussulman in wich
each one tried to prove that his faith was the true. In this literary composition predominated
the natural respect and it shows this author’s differential thought that in spite of he had as goal
the all men unification around the Christianism, he praised the tolerance as well the discussion
in detriment of someone’s conviction power to reach the God’s truth and glory.
SUMÁRIO
LISTA DE TABELAS
INTRODUÇÃO
A História busca desvendar o passado, mas nunca deve perder de vista a sua
relação com o presente. No mundo atual persistem diversas formas de intolerância e
preconceitos. Vale a pena buscar as origens de alguns deles. A intolerância com os hereges,
judeus, muçulmanos, homossexuais foi uma das características da sociedade européia
medieval. Porém esse período da História ao qual alguns autores referem-se pejorativa e
erroneamente como “Idade das Trevas” não foi somente um tempo de intolerância e
ignorância.
Atualmente a preocupação com a paz mundial tem aumentado. Alguns fatores que
dificultam essa busca são a intolerância religiosa, a não-aceitação e o desrespeito ao outro.
Exemplo disso são as inúmeras guerras no Oriente Médio, que embora motivadas também por
outros fatores, não deixam de ser fomentadas por questões religiosas. Essas guerras, de
tempos em tempos ganham novos personagens e agravantes, como a competição global pelo
petróleo e a política norte-americana de combate ao terrorismo. Qual a raiz desses conflitos?
Tais conflitos iniciaram-se durante o período medieval. Desde então, judeus,
cristãos e muçulmanos lutavam pela posse de Jerusalém, considerada uma cidade sagrada e o
centro das três religiões monoteístas. É importante destacar que desde o surgimento desses
conflitos, já havia mentes que pensavam na busca de uma unidade e no diálogo. O recorte
cronológico espacial do presente trabalho é a Europa, mais precisamente a Península Ibérica
nos séculos XIII e XIV, onde este desejo floresceu nas obras do filósofo maiorquino Ramon
Llull. Ele não foi o primeiro, nem o único a ter esta proposta, mas foi o primeiro a tentar este
fim de uma forma diferenciada, baseada na racionalidade, ainda que tenha assimilado muitos
preconceitos difundidos pela cristandade em relação às demais religiões
O homem medieval possuía uma visão dualista do mundo. As idéias de oposição
de forças estavam presentes em todos os elementos formadores da ideologia cristã. A alma do
homem era palco da luta do Bem contra o Mal, do Paraíso contra o Inferno, sendo seu destino
determinado pela adesão a Deus ou ao Diabo. A Igreja acaba encarnando uma visão
maniqueísta segundo a qual nas palavras de Nogueira (2000, p. 92) é impossível “[...] pensar
no bem sem pensar no mal”.
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podendo ser resultado da vontade divina. Para os seus defensores eram feitas por Deus e para
Deus. Segundo Franco Jr (1999, p. 28):
Por isso, na Europa medieval os conceitos de Paz de Deus e Trégua de Deus não
eram contraditórios em relação ao de guerra santa, pelo contrário, eles complementavam-se. A
guerra era condição de paz, já que seria proporcionadora da unidade.
Os séculos XIII e XIV foram repletos de mudanças estruturais; período de
expressão e de busca de novas liberdades por parte dos indivíduos, ainda que esbarrando no
enrijecimento das normas impostas pela Igreja. A sociedade medieval foi uma sociedade de
extremos, de opostos que a todo momento colidiam.
Com a redescoberta dos escritos aristotélicos e do Código de Justiniano, ocorreu
a promoção da reunião, organização e interpretação do conhecimento antigo. Os legistas
passaram a integrar o corpo burocrático estatal nas monarquias nacionais emergentes,
inclusive também no corpo secular, por meio do estabelecimento dos códigos canônicos
relativos à Igreja.
Ocorreu uma sensível modificação nos códigos de exercício, instrumentalização e
aplicação da justiça. O ordálio foi substituído pelas testemunhas nos processos e as punições
foram uniformizadas.
Estes séculos também podem ser considerados como séculos propícios a uma
maior individualidade, apesar da manutenção do espírito medieval de coletividade e
contratualismo. Esse individualismo manifestou-se na paulatina substituição do poema épico
pelo romance, pela dialética em detrimento da aceitação totalmente passiva das autoridades, a
procura da satisfação pessoal e espiritual, um desejo de autoconhecimento; “conhece-te a ti
mesmo”, foi a ética que passou a vigorar na mentalidade, levando o homem a uma auto-
análise.
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Esse individualismo fez com que a idéia de vassalo começasse a ceder lugar à de
súdito, ou seja, não só obedecer cegamente a um superior injusto, mas em estabelecer uma
troca mútua de direitos e deveres reivindicando assim uma maior igualdade entre as partes da
relação. Mesmo assim, as instituições coletivas continuaram a gozar de grande prestígio:
corporações, confrarias, ordens monásticas e militares, comunas e universidades, “[...] mas na
maioria destas organizações a condição de membro era obtida através da livre escolha
individual, e, pela primeira vez, havia uma ampla variedade de alternativas entre as quais
escolher”. (RICHARDS, 1993, p. 19).
O sentimento de individualismo religioso teve como conseqüência a explosão de
heresias. Ser herege era tornar-se um criminoso, que se colocava contra a Igreja e suas
normas, um traidor que ousava interpretar as Escrituras de forma autônoma. Eram perigosas
principalmente por colocar em xeque o papel da Igreja de mediadora entre Deus e os homens.
Mudanças significativas também foram introduzidas pelo Concílio Lateranense de
1215, visando a moralização do clero e um maior controle sobre os fiéis. A confissão deixou
de ser pública, passando a ser individual. Dessa forma, a penitência passou a ser negociada e
cumprida de forma restrita. O interesse pela intimidade e a intenção dos fiéis aumentou.
Como assinala Vainfas houve uma maior necessidade do controle no âmbito mental e uma
intenção acabava por se configurar em algo tão grave quanto o próprio pecado em si.
(VAINFAS, 1992).
Confissão e comunhão deviam ser praticadas, no mínimo, anualmente pelos
cristãos. Maior controle sobre os casamentos clandestinos e o registro de proclamas nos
casamentos oficializados, obrigatoriedade de licença papal e episcopal para pregar e lecionar.
Regulamentação de venerações de santos e relíquias. Proibição para o clero em participar de
jograis, jogos de azar, caça, beber ou tomar parte em qualquer atividade que manchasse sua
reputação.
Empreendimento de luta contra as heresias, produzindo manuais detalhados sobre
como identificá-las e combatê-las. Os suspeitos deveriam ser excomungados e terem seus
bens confiscados. Qualquer suspeita deveria ser imediatamente notificada. Maior controle
sobre o surgimento de novas ordens religiosas, pois muitas vezes estas se situavam na
fronteira entre o corpo da Igreja e a heresia e maior segregação em relação às minorias:
muçulmanos, judeus, leprosos, homossexuais, hereges e prostitutas. Isso ficou expresso na
adoção de uma vestimenta distintiva “a marca da infâmia” e resultou em um aumento da
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intolerância ao mesmo tempo em que, por outro lado, o clero regular apelava por outro tipo de
conversão, pautada no convencimento do outro pela razão.
Compartilhando dessa posição estavam São Francisco de Assis e Ramon Llull.
Este foi um místico que teve uma experiência com Deus através de uma visão de Jesus Cristo
crucificado durante cinco dias. Após esse acontecimento, mudou radicalmente seu estilo de
vida. Foi um laico, mas colocou sua vida a serviço de Deus e do seu propósito evangelizador.
De personalidade singular, conseguiu muitas vezes sintetizar estilos diferentes de
vida. Esteve sempre ligado às ordens mendicantes e “embora tenha pertencido a uma cultura
minoritária, desenvolveu um sistema de pensamento universalista.”
(COSTA; PASTOR, 2004).
Desenvolveu um conjunto de idéias, a Arte, uma filosofia através da qual elaborou
um método lógico com muitas aplicações práticas. No entanto o que mais nos interessa aqui
são as motivações de sua obra e para quem ela se dirigiu. Llull, assim como os cristãos da sua
época, sonhava com a unidade em torno do Cristianismo. Por isso a sua obra era voltada para
todos, mas principalmente para aqueles considerados infiéis (não-cristãos)1. Llull acreditava
ser possível converter judeus e muçulmanos através da razão em detrimento do uso da força.
Essas razões não deveriam se basear nas autoridades, mas em argumentos irrefutáveis.
A Idade Média é apontada como um período de intolerância ideológica e religiosa
onde as pessoas tinham medo de expressar suas idéias e onde seu estudo era algo pernicioso,
muitas vezes ignorando o fato de que houve um diálogo entre as religiões e um tipo de
educação que primava pela dialética e pelo debate na construção do conhecimento, inclusive
nas universidades, um dos maiores legados que este período nos deixou. As práticas
repressivas só passaram a vigorar quando a ideologia dominante viu que estava perdendo
espaço nas transformações que vinham se operando nos campos econômico e político.
O diálogo inter-religioso da época tinha uma conotação diferente da atual. Para
nós, ele implica em um respeito mútuo às diferenças. Ramon Llull buscava o diálogo como
forma de convencer judeus e muçulmanos que a doutrina cristã era a correta. Portanto, o
estudo de sua vida e obra trazem à tona questões atuais. Além de o tema abordado configurar-
se em uma preocupação mundial no presente, seu estudo é possibilitado pela grande
abundância de fontes que este filósofo nos legou. Toda a sua vida foi dedicada ao sonho de
1
Ramon Llull dirige-se a judeus, muçulmanos e hereges como infiéis. Sempre que o termo infiéis for utilizado
neste trabalho, será levando em consideração a expressão utilizada pelo autor.
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unidade em torno de uma fé e ele não mediu esforços para concretizá-lo, realizando viagens
para propagar sua mensagem, escrevendo incansavelmente até sua morte, livros de exortação.
Este período foi caracterizado por uma intensa religiosidade que impregnou o
pensamento medieval, influenciando os homens em todas as suas atitudes cotidianas, desde o
seu nascimento até a morte. Como homem de seu tempo, Ramon Llull estava imbuído da
ideologia cristã, também por isso seu estudo é esclarecedor. Guardadas as devidas
peculiaridades, os seus escritos revelam traços da cultura, da ética e da moral medievais. Por
meio de suas obras é possível uma maior compreensão e aprofundamento dos valores
cultivados na época.
Além de sua importância histórica, Llull possui grande caráter filosófico, tendo
uma produção tão vasta, a ponto de chegarem até nós, centenas de seus escritos que abordam
problemas sociais, educação infantil, virtudes que os bons cristãos deveriam cultivar, diálogo
inter-religioso, entre outros, formando uma rica e diversificada literatura.
Este trabalho está dividido em três capítulos assim dispostos: na primeira parte
intitulada As influências filosóficas no pensamento luliano, traçaremos um pequeno esboço
sobre o pensamento desenvolvido pelos homens do período, abordando especialmente o
surgimento e a organização da Universidade de Paris. A escolha desta instituição está
relacionada a dois fatores: primeiro, por ser a Universidade mais ligada à Sé, gozando de
imenso prestígio na Cristandade. Segundo, porque devido a isso, Llull lá tentou difundir sua
Arte. É certo que o filósofo fez pelo menos três viagens a Paris com o intuito de que o seu
método fosse ensinado na Universidade. Estava a par das novas doutrinas filosóficas que
estavam em voga, especialmente o averroísmo, ao qual se opunha ferozmente, tratando-o
como um perigo para a unidade cristã.
Na Universidade parisiense as disputas eram mais acirradas e onde floresciam
muitas questões concernentes às relações entre razão e fé. Ramon foi um autodidata, não
possuindo formação acadêmica. Seus estudos, porém, fizeram com que este pudesse estar não
só em pé de igualdade, mas em uma posição privilegiada, frente aos universitários, uma vez
que conhecia profundamente a língua e a cultura árabes.
Esta universidade foi escolhida devido ao seu sistema de aprendizado, a
Escolástica, baseado essencialmente nos comentários das obras gregas para evidenciar a
novidade do método luliano, que recusava a argumentação alicerçada em autoridades. Neste
capítulo analiso ainda a importância que as obras de Aristóteles tinham para os filósofos
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universitários dos séculos XIII e XIV. Embora Ramon Llull não utilizasse a leitura do
Estagirita para provar o que dizia, o maiorquino absorveu muito de seu pensamento,
notadamente em relação aos princípios éticos e metafísicos.
No segundo capítulo Ramon Llull – seu contexto histórico serão expostos alguns
dados biográficos do beato. Isto se faz necessário, pois seus objetivos e escritos estão
intrínsecos aos conhecimentos de sua vida. Com efeito, é indispensável conhecer
determinados episódios de sua existência como a visão de Jesus Cristo crucificado em seu
quarto e a iluminação no Monte Randa, para compreender sua conversão e seu método,
respectivamente. São enfocadas as viagens que o filósofo empreendeu e a forma como ele
buscou atingir as três metas de sua vida: edificar escolas que ensinassem as línguas árabes,
para formar missionários que pregassem aos infiéis, converter os não-cristãos ao Cristianismo
e doar sua vida pela causa de Cristo.
Verificaremos os diferentes meios pelos quais Llull se utilizou para alcançar estes
fins, seus fracassos e sucessos, bem como suas relações com as autoridades da época (reis,
papas, príncipes) e sua participação e posição diante dos acontecimentos de vulto do período
em que viveu.
O último capítulo O diálogo inter-religioso no Livro do Gentio e dos Três Sábios:
uma aplicação da Arte conterá uma reflexão sobre a obra, o contexto e a forma como foi
escrita, com uma análise das concepções do autor acerca das religiões em questão e sua
proposta de diálogo, que utiliza a Arte como método. O primeiro capítulo trata-se da
exposição do método contendo suas condições e possibilidades combinatórias. Os outros
capítulos nada mais são do que a própria aplicação do método.
Nesta parte será ressaltada a visão que Ramon Llull tinha sobre judeus e
muçulmanos, embora nesta obra ele assuma um tom mais respeitoso em relação a estes do que
em seus demais escritos. Assim, é possível entrever não só a profundidade do conhecimento
que o maiorquino tinha acerca das religiões monoteístas, como também as diferenças e
semelhanças entre a forma luliana e de seus contemporâneos de ver os não-cristãos.
A obra configura-se em um tratado apologético, mas não nos moldes dos tratados
de exortação da época, a exemplo dos de seu amigo Ramon de Penyafort, pois os sábios judeu
e muçulmano não só tiveram o mesmo espaço que o sábio cristão, como foram tratados de
forma honrosa e amigável. O escrito faz parte de todo um conjunto de obras com o seu
principal propósito: a unificação de todos os homens em torno da fé cristã.
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No final do período antigo, a filosofia começa a assumir uma nova postura que a
aproxima da ética e da religião “[...] abandonando o espírito de investigação que a
caracterizara." (INÁCIO; LUCA, 1994, p. 15). Os neoplatônicos fornecem uma espécie de
síntese do pensamento grego: a distinção do ser humano em três partes constitutivas (espírito,
alma e corpo) e um retorno do homem à unidade com sua fonte original e superior. Aqui
também temos a visão presente no Livro dos Anjos, na qual seu autor atribui ao anjo três
dimensões ou potências que são a memória, a inteligência e a vontade. Assim como no ser
humano, espírito, alma e corpo são intrínsecas, no anjo essas potências são indissociáveis e
completam-se em perfeita harmonia. De acordo com o autor, o corpo é um empecilho no
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conhecimento da verdade. Por isso, os anjos são mais perfeitos do que o homem, já que não
possuem o corpo para dificultar seu conhecimento sobre as verdades eternas. (RAMON
LLULL, 2002).
Esses pensadores irão oferecer instrumentos importantes, posteriormente
utilizados pela doutrina cristã. É possível afirmar que no início do período medieval a
filosofia tendeu ao mundo metafísico, deixando de lado o conhecimento do próprio homem e
o universo que havia sido patente durante toda a Antiguidade. O próprio centro do
pensamento cristão dispensava o auxílio filosófico, uma vez que sua meta advinha de fontes
sobrenaturais e seu objetivo último era a salvação e não propriamente a reflexão. Com relação
ao legado antigo, os pensadores cristãos colocaram-se de duas formas: rejeitando-o ou
tentando adaptá-lo à doutrina nascente.
Desse ponto inicia-se um longo processo desenvolvido durante a Idade Média: a
adequação do pensamento racional helênico às verdades evangélicas cristãs, o que resultará
em uma nova filosofia que tem uma relação um tanto conturbada com a fé, ora contradizendo-
a, ora lhe fornecendo bases explicativas.
Ao conjunto da filosofia cristã damos a denominação Patrística, ou seja, relativa
aos primeiros padres da Igreja. Um dos nomes mais importantes dessa filosofia foi Santo
Agostinho. Ele nasceu em uma colônia romana da África, Numídia em 354. Passou grande
parte de sua vida indiferente às questões religiosas. Foi professor de retórica e abraçou o
maniqueísmo como filosofia.
Sua mudança de pensamento deu-se quando teve contato com os sermões de
Ambrósio. Passa então a nutrir dúvidas em seu espírito a respeito de qual caminho deveria
seguir. Esse conflito psicológico residia em ter que optar por uma vida mundana ou espiritual.
Recebe então uma revelação através da qual abraça o Cristianismo. Como muitos dos santos
medievais, Agostinho levava uma vida indiferente à religião até certa altura de sua existência,
mais ligada a questões mundanas quando então recebeu uma espécie de “chamado” para
mudar de vida, dedicando-se às obras divinas. (JERPHAGNON, 2004). Assim também
ocorreu com São Francisco de Assis e o próprio filósofo Ramon Llull cuja análise é o objetivo
deste trabalho.
O bispo de Hipona teve uma grande produção entre sermões, cartas e tratados, e
influenciou de forma decisiva os teólogos medievais, sendo considerado como um dos
32
2
Identificamos muitas influências no pensamento luliano, tanto de autores antigos, quanto de contemporâneos
medievais, dentre os quais destacamos: Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Dionísio Areopagita, São Tomás de
Aquino, além daqueles que influenciaram na manifestação de sua espiritualidade: São Francisco de Assis e São
Domingos.
3
Platão defendia a separação entre o mundo das idéias e o mundo material. A matéria não é o real, mas apenas
um invólucro da essência escondida pela forma. Foi muito tempo aceito pelos cristãos, pois suas idéias não
confrontavam a doutrina cristã como a de seu discípulo Aristóteles, especialmente porque creditava também na
imortalidade da alma e na existência de um ser supremo.
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Essa teoria é denominada Teoria da Iluminação, pois através de uma luz sobre a
inteligência humana, é produzida a razão que permeia o inteligível. Ramon Llull da mesma
forma estabelece um equilíbrio entre razão e fé e como veremos no segundo capítulo deste
estudo age conforme as instruções divinas que lhe vão sendo reveladas, inclusive o próprio
conjunto de sua Arte.
Contudo, contrariamente ao que acreditava Llull, Agostinho vê o corpo não como
um empecilho, mas como um instrumento de perceber o mundo “[...] na medida em que as
sensações atuam como advertência e estímulo para que se busque no próprio interior a
verdadeira compreensão”. (INÁCIO; LUCA, 1994, p. 27).
A verdade não pode, portanto ser ensinada. É uma busca individual encontrada
segundo a fé e o mérito de cada homem. Embora latente em cada homem, o grau de
compreensão é variável de um para outro e apesar de não condenar o estudo científico já que a
natureza é obra divina e o seu entendimento conduz a uma maior comunhão com Deus, sua
teoria não fomenta a experimentação, já que a verdade é algo pessoal e pré-existente em cada
ser. A vontade é a mais importante das três faculdades, pois é ela quem impulsiona o homem
ao conhecimento, ao livre-arbítrio e conseqüentemente à salvação.
O livre-arbítrio é uma idéia-chave na compreensão da teoria de Agostinho. Ele é
nada mais que a livre escolha do homem. Se este opta pelo pecado, então o mal resultante não
provém de Deus que é o Bem Supremo, mas da responsabilidade humana.
O bispo de Hipona nomeava como Cidade de Deus, o Paraíso celestial e a Cidade
dos homens, o mundo terreno. Estas duas cidades só seriam separadas definitivamente por
ocasião do Juízo Final, quando a primeira prevaleceria sobre a segunda. É interessante notar
as diferentes noções de temporalidade: a cidade terrena é efêmera. Seus reinos e suas ações
têm um caráter transitório. A cidade celeste é a única na qual reinará a paz eterna.
Apesar dos muitos séculos que os separaram, Ramon Llull e Agostinho têm
denominações estritamente semelhantes quanto ao que seria o pecado. Ambos crêem que o
pecado é um desvio humano que prefere os prazeres corporais à obediência e ao cumprimento
da vontade divina. Também a visão política de ambos era bastante parecida: poder espiritual e
poder temporal possuem atribuições distintas. Um não deve interferir nas ações do outro, mas
deveria reinar entre eles um espírito de colaboração mútua. Ao poder temporal cabia
promover a fé cristã para que os indivíduos priorizassem a salvação e a ascensão espiritual.
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Quem ama o próprio filho, usa bastante o chicote, para no fim se alegrar [...]
Não lhe dê liberdade na juventude, nem feche os olhos para os defeitos dele.
Obrigue-o a curvar o pescoço enquanto ainda é jovem, e bata nas costas dele
enquanto é menino, para que não cresça teimoso, não lhe desobedeça e nem
lhe cause muito sofrimento. Corrija seu filho e faça-o responsável, para
depois você não tropeçar na insolência dele. (Eclo, 30, 1. 11-13).
Mesmo assim, de acordo com alguns autores, essa severidade visava um bem,
reconhecido pelos próprios educandos; “Basta buscar os textos de época que vemos a
felicidade dos egressos dos mosteiros pelo fato de terem sido amparados, criados e educados”.
(COSTA, 2003).
A ciência na Idade Média assumiu vários conceitos, de acordo com o que cada
filósofo julgava digno de ser chamado como tal, porém o conceito aristotélico de ciência foi o
mais difundido, ou seja, ciência é conhecimento demonstrativo que nasce da necessidade.
Assim, a busca pela santidade era considerada uma das finalidades da ciência e
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Também é original por não se tratar de uma organização local a exemplo das
demais corporações; ela é abrangente e universal tanto em seu corpo (professores e
estudantes) quanto em suas atividades e conhecimentos. Não possuem uma organização
uniforme. Suas regras internas variavam de uma cidade para outra. Será enfocada apenas a
universidade de Paris por três motivos:
4
Em 1210 foi proibido o ensino das obras relacionadas às ciências naturais de Aristóteles. Novas proibições
incluindo os livros de metafísica ocorreram em 1231, 1245 e 1263, por interditos de Inocêncio III. Sabe-se,
contudo, que essas proibições nunca tiveram efeito prático sobre estudantes e mestres, pois todos continuavam
lendo indiscriminadamente os textos e comentários sobre os escritos do Estagirita.
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a) essa universidade fornece um modelo mais ou menos padrão, que dá uma noção geral
do funcionamento das demais universidades, ainda que sofrendo variações;
b) por ser uma instituição de grande prestígio, onde as idéias e discussões ligadas a
Aristóteles alcançaram maior amplitude e;
c) porque Ramon Llull teve diversas passagens por ela, com a finalidade de apresentar e
demonstrar sua Arte. As circunstâncias nas quais se deram estas passagens serão
discutidas posteriormente.
outras cidades. Essa ausência durou dois anos (1229-1231) e abalou muito a posição de
destaque desse centro. Os professores fizeram várias exigências, como a responsabilidade pela
elaboração de estatutos para o funcionamento interno da universidade. Essas exigências foram
atendidas pela Parens Scientiarun.
Os estatutos da universidade prescreviam as formas de admissão, programas e
exames. As provas eram bastante rígidas e se davam em diferentes fases. Normalmente o
exame se dava tanto na forma escrita (produção de comentários), como no domínio da
oralidade (participação em disputas, respondendo as questões colocadas pelo júri).
Sobre os programas e o ensino, podemos dizer que eram organizados basicamente
em função de comentários feitos sobre textos antigos em especial de Aristóteles. A exigência
do domínio da lógica e da dialética eram condições da Faculdade de Artes. Apesar da rigidez
dos exames, estes eram realizados em meio a um clima festivo e de acordo com uma
programação que incluía banquetes, festas e trocas de presentes. De acordo com Le Goff
(2003, p. 109) essas manifestações “[...] correspondiam ao rito no qual a corporação tomava
consciência de sua solidariedade profunda. A tribo intelectual se revelava nesses jogos aos
quais cada país levava às vezes sua rota tradicional: bailes na Itália, corridas de touros na
Espanha”.
As festas religiosas estavam intrínsecas ao calendário universitário. Embora os
estudos fossem rigorosos, essas festas intercaladas aos exames compensavam a gravidade da
pressão escolar. E nessas ocasiões o divertimento geralmente extrapolava os limites prescritos
com vinho, músicas e mulheres, resultando em muito barulho, exageros de toda a ordem e
brigas com os habitantes das cidades:
aos brasões das famílias nobres e funcionavam como selos na autenticação de documentos
oficiais.
Além dessas cerimônias para os novos graduados, também existiam ritos de
iniciação. Estes, embora se manifestando de forma diferente dos trotes atuais, possuíam
praticamente o mesmo espírito. Neles os calouros eram expostos a várias brincadeiras de
cunho satírico que ironizavam em sua maioria as origens rústicas dos novos estudantes.
Devido à natureza eclesiástica da corporação, o mundo universitário também
estava impregnado de religiosidade. A piedade era uma virtude recomendada aos intelectuais;
a devoção aos santos padroeiros e a participação nas atividades religiosas como procissões.
Tem destaque uma devoção pela Virgem Maria, expressa na produção de poemas e
coletâneas. Inicia-se daí uma preocupação com a moral profissional e a adoção de regras que
regessem cada ofício, passaram a definir toda uma nova ética específica.
Os materiais utilizados pelo intelectual tornavam-se cada vez mais numerosos,
principalmente em comparação com o clérigo da Alta Idade Média. O intelectual do século
XIII acumula em si três habilidades fundamentais: ler, escrever e ensinar. A importância da
oralidade no ensino era equivalente ao uso do livro como ensinamento escrito. O livro era o
ponto de partida a partir do qual surgiam os comentários e as disputas. Primeiramente devido
ao seu custo, não eram tão utilizados. Mais tarde, com a baixa nos seus custos, foi sendo cada
vez mais requisitado e necessário. Com a sua popularização, gradualmente deixa de ser um
objeto de luxo para se tornar uma necessidade de todos os estudantes.
Com o aumento da procura foram desenvolvidas novas técnicas na fabricação do
livro, tornando-o mais simples, mais acessível e de mais fácil manuseio. Os progressos pouco
a pouco transformaram a espessura das folhas tornando-as mais flexíveis e menos amareladas.
Passa a ser menor, a letra carolíngia é substituída pela cursiva; a ornamentação diminuiu, o
uso de abreviaturas e índices aumentou tornando as consultas mais rápidas. Surgiram ainda
novas categorias derivadas da atividade universitária: livreiros e copistas.
As universidades foram instrumentos de ascensão social, na medida em que seu
acesso era de certa forma, democrático. Embora a maior parte dos estudantes e mestres
saíssem da nobreza, os exames, como processo de admissão abriam uma brecha para os
estudantes pobres. Esses membros iriam engrossar o corpo da Igreja e do Estado. Mesmo e
apesar disso, esse espaço também gerava críticos que tendiam a um rompimento com a
ideologia preponderante.
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Ainda que a razão tenha sido submetida à fé, é um fato relevante constatar que
embora a fé seja uma questão de crença, os filósofos passaram a tentar encontrar meios
racionais para a justificação de seus dogmas.5 É dessa maneira que iremos encontrar um Llull
dedicado a provar a veracidade do Cristianismo mediante as “razões necessárias”.
De forma semelhante ao ensino das escolas, o estudo universitário seguia
basicamente três etapas: lectio, 6quaestio, e disputatio, que é a fase mais produtiva do
processo. Nela eram expostos oralmente os pontos de vista, debatidos de forma livre.
As disputas eram bastante plurais. Distinguiremos somente as mais importantes.
As ordinárias realizavam-se semanalmente. Eram presididas por um professor, responsável
pela escolha do tema e definia os defendentes que iriam discorrer sobre uma tese. Após sua
exposição entravam então os opponentes com argumentos para derrubar a tese apresentada.
Todo esse processo verbal era traçado em latim. Essas teses eram discutidas embasadas nos
seguintes argumentos: revelação divina, razão, lógica e autoridade.
5
Vários são os termos utilizados para designar os homens dedicados às atividades intelectuais na Idade Média:
Le Goff usa intelectuais, tencionando enfatizar o tipo humano em detrimento das instituições e estruturas e
também clérigos, para especificar aquele que pensa e ao mesmo tempo ensina seu pensamento. Na Idade Média
o termo clérigo era aplicado não apenas aos membros do clero, mas a todas as pessoas que se aplicavam aos
estudos opondo-se a laico, não letrado. Os clérigos não eram obrigados ao celibato. Verger opta por homens de
saber quase pela mesma razão. Utilizo o termo filósofos levando em consideração a forma como os próprios
homens do período se intitulavam.
6
Nas universidades os bacharéis eram responsáveis pela revisão (lectio extraordinária) da matéria na parte da
tarde, sendo nomeados como repetitores.
43
seguro, pois, no Egito, bastava um mestre de estenografia abrir uma escola, e a clientela
acorria numerosa”.
As disputas tornaram-se mais do que uma exigência curricular. Elas gozavam de
grande popularidade e eram esperadas como um grande acontecimento, especialmente se o
mestre que iria presidir a disputa tivesse muito prestígio entre os estudantes. As disputas como
descreve Verger (2001, p. 271):
Sobre isso podemos dizer ainda que a Igreja fez questão de distinguir as funções do
clero: aos professores cabia ensinar, ou seja, transmitir conhecimentos e ciência aos seus
alunos, porém pregar era uma atividade específica dos membros da Igreja.
Apesar de o papado ter decretado no Concílio de Latrão (1179) a gratuidade do
ensino, os estudantes necessitavam de outros recursos como moradia, alimentação e compra
de livros. Os estudantes quase sempre eram ajudados pela família. Contudo, mesmo com a
constante interferência da Igreja nas questões do ensino muitos membros da universidade
eram leigos. Com isso, a Igreja influenciava os estudantes a se direcionarem em faculdades
referentes às carreiras eclesiásticas e afins em detrimento das carreiras civis.
Paris era a universidade de maior prestígio na época e também indubitavelmente a
mais atrelada à Igreja. Isso é patente pelo número de bulas e interferências papais na estrutura
e no ensino universitários. Proibição a membros do clero de estudar Medicina e Direito Civil
e o ensino de Aristóteles, demonstram essa estreita ligação. Mas convém não acentuar
demasiadamente a influência da Igreja sobre a universidade parisiense. Se é certo que muitas
regras foram impostas à universidade, também é certo que na maioria das vezes elas não
foram seguidas. Sabe-se que a leitura da obras de Aristóteles nunca deixou de acontecer, bem
como a procura pelas carreiras apontadas como mundanas pela Sé, em outras universidades; o
que implica dizer que esse controle era exercido apenas aparentemente.
Os graus conferidos por Paris seguiam a seguinte linha: bacharelado; com este
título o indivíduo poderia auxiliar o professor, ministrar lectiones e interferir nas disputas.
Para ser bacharel, estudava-se seis anos; a licenciatura, através da qual o graduado obtinha
licença para lecionar, primeiro sob a orientação de um mestre, passando em seguida por testes
orais, quando então recebia permissão para ser professor. Os próximos títulos eram o magister
e doctor. O primeiro era dirigido somente aos filósofos e o segundo para os professores de
teologia, direito canônico e medicina.
A Universidade de Paris foi com certeza aquela na qual ocorreram mais polêmicas
e que tinha a atmosfera mais agitada dentre as universidades do período. Dentre essas
polêmicas uma que alvoroçou os espíritos foi a querela entre seculares e regulares. Embora a
questão tivesse a ver com problemas da corporação universitária, as discórdias eram
originadas por questões ideológicas e doutrinárias.
A greve geral de 1229 abriu espaço para o ingresso das ordens mendicantes no
ensino parisiense. Eles tiveram recomendação papal para lecionar a Sacra doctrina. É preciso
entender os objetivos das ordens mendicantes para compreender os desdobramentos das
disputas filosóficas e teológicas com os seculares.
Elas surgiram no século XIII e são quatro (pregadores, menores, carmelitas e
agostinianos). Dessas as mais conhecidas são a dos pregadores (dominicanos) e a dos menores
(franciscanos). As regras propostas por estas ordens configuravam-se em um ideal totalmente
novo para a época. Em primeiro lugar, por colocarem-se nas cidades, nos espaços de
convivialidade, em contraposição às demais ordens que buscavam o isolamento7, numa
evidente posição defensiva em relação aos demais homens e seus vícios. Depois por sua
forma de sobreviver: a mendicância, prática que os caracterizou.
Um importante fator que possibilitou a atuação e o sucesso dos mendicantes foi a
grande simpatia que lhes dispensavam reis e papas. Isso foi um importante trunfo nas mãos
dessas ordens por ocasião das querelas com os seculares que os viam como concorrentes
indesejáveis. Tudo leva a crer que a criação de novos mosteiros observava regras como nos
esclarece Le Goff (1994, p. 231): “a distância mínima que devia separar as igrejas de duas
ordens mendicantes no interior de uma cidade era fixada em trezentas cannes em linha recta,
isto é, cerca de quinhentos metros”. Também deveriam ser previamente autorizados pelo
pontífice.
7
As igrejas não surgiam em determinados lugares por acaso. Elas estão relacionadas com o divino e o social. A
geografia religiosa medieval não fugia à regra. A cidade era um lugar promíscuo e favorável à proliferação de
vícios, na visão desses religiosos. Era necessário então, que fosse resgatada.
47
essência desta ordo. Com o tempo, porém, tornou-se menos resistente à idéia de modo que
seus sucessores passaram a estudar, sem maiores reservas. De sua parte os dominicanos
sempre primaram pelos estudos, inclusive, estes recomendados por São Domingos, para
combater as heresias – objetivo da ordem – era preciso ser intelectualmente preparado para
refutar os infiéis. Também sobreviviam por meio da mendicância. A principal questão entre
regulares e seculares de matriz teológica era qual seria
Essa questão de tal modo incidia sobre uns e outros que “[...] não se movia tão-
somente no plano teórico, mas era uma verdadeira luta de classes”. (ULLMAN, 2000, p. 221).
Não se tratava, pois, apenas de um problema em relação ao ensino. Os mendicantes atraíam
cada vez mais para si os fiéis, os estudantes, a atenção e preferência do papado, que
praticamente tomou partido dos mendicantes em todas as contendas.
É claro que os seculares não assistiram a ascensão dos regulares passivamente;
muitos escreveram tratados combatendo e criticando o comportamento dos mendicantes. O
que levava os regulares a tornarem-se um corpo estranho na universidade era justamente o
fato de não se integrarem às normas corporativas. Por ocasião de greve, ignoravam as ações
dos demais professores dando aulas normalmente. As universidades não funcionavam em
prédios específicos. Isso facilitava para os frades, uma vez que, ministravam as aulas em seus
próprios conventos.
Outro ponto de discórdia era pertencerem à faculdade de teologia, mas recusarem-
se a cursar as disciplinas de Filosofia. Nessas, o domínio completo era dos mestres seculares.
Também, eram regidos pelos superiores de suas ordens, constituindo-se literalmente em corpo
independente, o que era um grande temor para os mestres seculares que perderiam boa parte
de seus alunos. Os títulos dos mendicantes eram recebidos diretamente do pontífice, o que
muitas vezes os isentavam de várias exigências necessárias para conseguir licença em teologia
o que aconteceu com o próprio Tomás de Aquino, como nos esclarece Ullmann (2000, p. 231)
49
Ademais, não cobiceis prata, nem ouro, nem vestes de ninguém. Vocês
mesmos sabem que estas minhas mãos providenciaram o que era necessário
para mim e para os que estavam comigo. Em tudo mostrei a vocês que é
trabalhando assim que devemos ajudar os fracos, recordando as palavras do
51
próprio Senhor Jesus, que disse: “Há mais felicidade em dar do que em
receber” (At, 20, 33-35).
Não é um, são pelo menos dois Aristóteles que penetram no Ocidente: o
verdadeiro, e o de Averróis. É mais ainda, na verdade, porque cada
comentador, ou quase, tinha o seu Aristóteles. Mas duas tendências se
desenham nesse movimento: a dos grandes doutores dominicanos, Alberto
Magno e Tomás de Aquino, que querem conciliar Aristóteles e as Escrituras;
a dos averroístas que, onde vêem contradição, aceitam-na e querem seguir
tanto Aristóteles como a Escritura. (LE GOFF, 2000, p. 140)
Dessa forma, são perceptíveis pelo menos cinco grandes linhas no pensamento
dos filósofos do século XIII:
a) Os filósofos ligados à tradição agostiniana, baseada em Platão, defensora da
iluminação da razão humana por Deus e da predestinação do homem.
b) Aqueles que tomavam o pensamento original de Aristóteles afastando-se da
teologia e adotando uma postura mais próxima do racionalismo.
c) Os averroístas, partidários da “doutrina da dupla verdade”8.
d) Os tomistas, que buscavam moldar o aristotelismo aos dogmas cristãos.
e) Os livre-pensadores, que formularam outras teorias explicativas, desvinculadas
de todas as correntes já citadas.
Outra dificuldade da Escolástica reside em estabelecer uma relação entre teoria e
prática. Enquanto como método enfatizava as argumentações e especulações, vários
intelectuais clamavam por um empirismo. Em outras palavras, reclamavam que a teoria fosse
exemplificada na prática. A verdade, segundo esses pensadores, está na comprovação
experimental, isentando os espíritos da dúvida, diferentemente da especulação e das vãs
discussões que iludiam os espíritos com uma verdade, de acordo com eles, apenas aparente.
Apesar das críticas ao método escolástico, oriundas, sobretudo dos pensadores
modernos, é inegável que ela rendeu bons frutos e atendeu às aspirações filosóficas e
teológicas da época, com o mérito de ter feito “[...] a colocação exata e analítica do problema
8
Essa doutrina admitia uma verdade filosófica e outra teológica, quer dizer, mesmo quando elas entrassem em
flagrante contradição, ambas deveriam ser consideradas como verdadeiras, sendo uma resultado da razão e outra
da fé.
53
a ser discutido; clareza nos conceitos e definições; arrazoados precisos, sem digressões, que
aguçam o entendimento; expressão rigorosa, lógica, silogística em latim”.
(ULLMANN, 2000, p. 75).
Outra vantagem inerente ao método escolástico era a preparação intelectual,
emocional e psicológica dos estudantes, de uma maneira que, na maior parte das vezes,
garantia o aprendizado. Contudo, os intelectuais acabaram por constituir-se em uma espécie
de casta, afastando-se da sociedade que faziam parte, distanciando-se tanto das camadas
privilegiadas quanto das camadas populares, praticamente formando uma classe à parte dos
problemas e conflitos sociais, envolvida somente em seu próprio mundo.
Sua língua, o latim, se permanece uma língua viva porque sabe se adaptar às
necessidades da ciência do tempo e deve com isso exprimir todas as
novidades, não recebe porém o enriquecimento das línguas vulgares em
pleno desenvolvimento, e afasta os intelectuais da massa leiga, de seus
problemas, de sua psicologia [...] um dos grandes riscos dos intelectuais
escolásticos é formar uma tecnocracia intelectual (grifos nossos)
(LE GOFF, 2003, p. 147).
9
O termo sofista vem de sophos e significa “sábio” “aquele que elabora sofismas”. Com o tempo passou a se
identificar com “aquele que elabora sofismas, subterfúgios, enganador”, colaborando para a visão negativa dos
pensadores sofistas na sociedade grega.
55
conhecido pela história como um grande conquistador, desde a tenra idade, domando cavalos
selvagens e exercendo um grande poder de liderança.
Depois de voltar para Atenas e fundar o Liceu passou a dar aulas. Durante as
manhãs as aulas versavam sobre conhecimentos mais profundos, ou seja, era direcionado aos
alunos que mais se destacavam. Pela tarde as questões discutidas tinham caráter mais
superficial. Os discípulos da academia de Aristóteles tinham aulas caminhando, sendo por
isso chamados de “peripatéticos” do grego “Peri” = perímetro e “patéticos” = aqueles que
caminham.
Aristóteles não costumava viajar muito, parecia sentir-se bem em Atenas.
Escreveu diversos tratados sobre moral e ética, inclusive Ética a Nicômaco, dedicada ao filho
de seu segundo casamento. De acordo com o filósofo o ser humano estava caracterizado por
três esferas assim esquematizadas:
PSIQUÊ
alma
NOUS virtudes emoções instintos SOMA
Exemplo: a medicina visa a saúde. Porém há um bem supremo que está acima de todos os
outros. Esse bem máximo é a felicidade, busca comum a todos os homens. É absoluta e auto-
suficiente, uma vez que diferentemente dos bens menores não visa um fim específico,
constituindo um fim em si mesma:
11
A narrativa da criação completa está em Gn 1, 1-31.
60
Assim é que o averroísmo latino irá fazer ao mesmo tempo muitos simpatizantes e
muitos opositores, inclusive Ramon Llull que combateu fervorosamente a doutrina de
Averróis, classificando-a como tão perigosa quanto à fé islâmica, observando o grande
número de adeptos que ambas conquistavam. O maiorquino se utilizará dos conceitos do
filósofo grego, mas se manterá fiel aos preceitos de sua religião, até porque em contraste com
os demais intelectuais de seu tempo que se apoiavam nas autoridades, como já citado
anteriormente, Llull irá colocar em prática um método que se por um lado, aproveita
elementos da Escolástica, paradoxalmente rompe com ela em um de seus pilares. Ele pode ser
considerado como o fundador de uma espécie de “filosofia alternativa”, visando fins
religiosos, mas sendo aplicada de acordo com a observância de outros princípios.
61
Llull passou toda a primeira parte de sua vida em Maiorca. Foram lá que
aconteceram suas experiências místicas; lá ele decidiu mudar de vida e estabelecer os
propósitos que se tornaram a meta de sua existência. “Portanto, seus anos de sua formação
intelectual e de seu ideal político foram forjados durante o reinado de Jaime I, o Conquistador,
e sob a proteção do infante Jaime, futuro Jaime II de Maiorca” (COSTA, 2002).
A ilha pertencia aos muçulmanos antes de ser conquistada por Jaime I. Os
primeiros anos de vida de Ramon coincidiram com a expansão comercial de Aragão que se
direcionou para o Mediterrâneo (norte da África, sul da Itália, além de Sicília e Sardenha).
Essa expansão além de favorecer economicamente o reino, foi decisiva na formação cultural
da população, ajudando a firmar o catalão como língua para o comércio e relações
diplomáticas.
A ilha de Maiorca constituía-se em um núcleo para onde convergiam os mais
diferentes grupos, tanto étnicos, quanto religiosos. Esse grande universalismo irá se refletir na
obra de Llull que revelará um conhecimento profundo não só da realidade cristã, mas também
de outras visões de mundo paralelas a esta.
Ramon Llull casou-se com Blanca Picany, mulher que também pertencia a uma
família influente de Maiorca. Deste casamento, nasceram duas crianças: Domingos e
Madalena. É possível cogitarmos tendo por base seus escritos futuros que apesar da distância
da família engendrada pela sua vida missionária, Llull tinha uma grande estima pelos seus
familiares, fato atestado na obra Doutrina para crianças, escrita para o seu filho. Embora sua
família se ocupasse de diversas atividades, tudo leva a crer que obtiveram êxito na maioria
delas, sendo o próprio Ramon um homem abastado, que ocupou altos postos na administração
real, como senescal do rei e preceptor do príncipe Jaime II.
Devido à própria natureza das atividades que exercia, não tinha sido necessária
uma grande preparação teórica, mas apenas uma educação básica de gramática, ou seja, nesse
primeiro momento de sua vida, não demonstrou uma grande preocupação com a ciência. Esta
só iria se manifestar por ocasião do surgimento da necessidade de uma melhor formação
intelectual para os seus propósitos religiosos.
Em sua juventude, sabia ler, escrever e falar corretamente, mas adquiriu essas
habilidades através da cultura trovadoresca, que continuou a influenciar suas obras mesmo
após sua conversão. Lia muitos romances de cavalaria, escrevendo ele próprio, canções e
trovas. Sua primeira experiência mística se deu coincidentemente quando escrevia uma
63
canção para uma dama. Mais tarde, Llull muito se culparia pelo próprio comportamento nessa
fase de sua vida, fase em que era entregue aos vícios da carne, sendo infiel em seu matrimônio
além de ser em suas próprias palavras, “dissoluto e mundano”.
Após a sua conversão, segue-se um período conturbado no reino de Maiorca.
Jaime I ao morrer, lega a Jaime II, Montpellier, as ilhas Baleares, os condados de Rossillon e
Cerdaña, Vallespir e Conflent e a Pedro III, Aragão, Catalunha e Valência. Este último,
descontente com tal divisão obriga seu irmão a reconhecer pelo Tratado de Perpignan, que
dirigia as terras apenas na qualidade de vassalo. Na realidade, essas medidas faziam parte de
um projeto mais ambicioso: a hegemonia catalã no Mediterrâneo, a fim de controlar o
comércio marítimo.
Apesar de não tomar partido, parece claro que Llull estava ao lado de Jaime II,
pois logo após a firmação do tratado, abandona Maiorca, retornando somente após a
restituição do trono a Jaime II. Pode-se especular também que os laços de amizade e respeito
entre Ramon e Jaime II eram grandes, uma vez que fora seu preceptor. Durante o período em
que estava fora do comando da ilha, estabeleceu sua corte em Perpignan e Montpellier, as
quais Llull também passou a freqüentar.
As guerras envolvendo os territórios de Aragão e das Sicílias tiveram muitos
desenlaces e envolveram autoridades de vulto como o papado e reis franceses. A despeito de
todos estes choques, Llull não se envolveu nas questões políticas, continuando a cuidar de
seus objetivos religiosos. É assim que obtém do rei de Aragão, permissão para pregar nas
mesquitas e sinagogas de seu reino, levando-nos a supor que em sua visão, o ideal de unidade
cristã, deveria estar acima de quaisquer interesses políticos e (ou) econômicos. As obras que
comentavam acerca da relação entre os reis e os seus súditos, não deixam dúvidas quanto a
isso. Sua exortação para o seguimento de um caminho virtuoso não é aplicada somente ao
povo, mas a todos os segmentos sociais da época, como membros da Igreja e homens de
poder temporal.
Sempre procurou o apoio de reis, príncipes e papas, para ajudá-lo em seu objetivo.
Nem sempre conseguiu êxito e esse será um traço que marcará suas obras. Muitas delas são
narrativas de experiências vividas pelo próprio Ramon. Isso pode ser percebido em diversas
fases; nos primeiros escritos toda a esperança e confiança no sucesso do método
desenvolvido; em fases posteriores a decepção com o pouco caso das autoridades com tarefa
considerada tão urgente e elevada para o filósofo: unificar a Cristandade e mais tarde, um
64
beato. A primeira inspiração foi a conversão dos infiéis, 12seguida da redação de livros contra
os erros daqueles e a fundação de escolas onde se aprendessem as línguas necessárias à
missão. Mais tarde vão somar-se a esta, a luta contra os averroístas, a busca pelo martírio, a
fomentação das Cruzadas e a unificação das ordens militares.
Ramon não deixou imediatamente sua casa. Essa decisão veio quando ele
participou da festa de São Francisco. Nessa festa, durante uma pregação, sentiu-se tocado pelo
exemplo de São Francisco de Assis13, decidindo daí, fazer o mesmo. A partir daí, vendeu seus
bens, deixando somente o necessário para o sustento de sua esposa e filhos. Por sua vez, o
desenvolvimento de um método aplicável a questões universais se dará posteriormente no
Monte Randa. Esses anos são primordiais, pois neles são formuladas as principais diretrizes
da ação luliana. São neles que o maiorquino busca superar suas próprias limitações a fim de
tornar-se apto ao ideal que se havia proposto a alcançar.
O primeiro passo foi melhorar sua formação intelectual com intensa dedicação ao
estudo do latim e do árabe. Para tal, adquiriu um escravo mouro e durante nove ou dez anos
empenhou-se com afinco em aprender o máximo possível sobre a cultura e religião árabes.
Esse mesmo escravo, após uma discussão, tenta matá-lo, fato descrito mais ou menos como
um milagre, já que Llull não queria punir o escravo com a morte, pois guardava gratidão pelo
que este lhe tinha ensinado. Quando pensava sobre isso, sem saber o que fazer, ocorreu uma
espécie de intervenção sobrenatural e o próprio escravo suicidou-se, limpando assim a
consciência do beato.
12 Llull pautará sua missão evangelizadora na passagem bíblica que diz que ninguém tem maior amor do que
aquele que dá a vida por seu irmão. Por isso o beato estava disposto a fazer qualquer sacrifício para assegurar a
salvação dos infiéis.
13 Francisco de Assis nasceu provavelmente em 1182 na Itália. Filho de um abastado mercador de tecidos,
podemos dizer que pertencia a uma família de comerciantes em franca ascensão e com um estilo de vida
próximo da aristocracia. Dessa forma, Francisco vivia à maneira dos jovens nobres de sua época antes de sua
conversão. Deixou pouquíssimos documentos escritos e mesmo assim, estes são mais esclarecedores quanto à
espiritualidade praticada por Francisco do que em relação a sua trajetória de vida. Sua conversão ocorreu ainda
na juventude. Tinha um desejo de ingressar na carreira cavaleiresca, aspiração comum entre os jovens fidalgos
da época. Também foi bastante influenciado literariamente pelo espírito trovadoresco. Uma longa moléstia
obrigou-o a abandonar essas atividades. Nesse período passou por uma grande reflexão que o levaria à uma
mudança radical de comportamento. Decidiu então dedicar-se ao serviço de Deus e dos excluídos de sua
sociedade. Despojou-se de seus pertences e até mesmo de suas roupas e iniciou sua carreira pregadora. Apesar de
uma inicial desconfiança de seus contemporâneos, logo passou a ter seguidores. Vida Coetânea torna o relato de
vida do maiorquino semelhante ao do poverello, pelo menos no que diz respeito à maneira de sua conversão e a
espiritualidade adotada após a mudança de vida. Francisco de Assis adotou uma postura humilde e respeitosa
frente aos não-cristãos. Participou da quinta cruzada, não se identificando contudo com as ações dos cruzados. A
violência e a intolerância que preponderavam nestes choques com os mulçumanos com certeza iam de encontro
aos seus valores espirituais. Em contato com o sultão Malek-al-Kamil teve uma conversa bastante civilizada,
retornando assim como um amigo para os seus.
66
14Ramon Llull estabelecerá um forte elo, mantido durante toda a sua vida com as ordens mendicantes. Apesar
das diferenças estruturais e espirituais dessas ordens, Llull foi bem recebido e influenciado por ambas.
67
explicação destes sinais e sua aplicação prática, exemplificando seu uso em questões
teológicas.
Em 1287, Llull parte para Roma, a fim de conseguir o apoio papal. Nessa ocasião,
o papa Honório IV morre, e o filósofo ruma para Paris, antes da eleição do novo pontífice.
Sua primeira estadia em Paris durou aproximadamente um ano. Apesar da ausência de
informações sobre este período, presume-se que seu objetivo era conhecer a Universidade
parisiense. Llull intentava também o apoio dessa instituição que além de ser o centro mais
ligado à Sé, era também o local onde estavam os homens de saber mais destacados da época.
Foi lá que travou conhecimento com aquele que será posteriormente seu principal discípulo e
autor do Breviculum, Thomas Le Myésier.
As viagens de Ramon à Paris foram essenciais no sentido de mostrar os pontos de
dificuldade na compreensão do seu método. Ao ler publicamente sua Arte, pôde perceber a
pouca compreensão dos conceitos utilizados. A utilização de elementos árabes como os
sufis,15 também comprometiam o entendimento por parte dos cristãos que ignoravam traços
da cultura árabe. Apesar de buscar o apoio de instâncias importantes da Cristandade (papas,
reis, universidades), nunca perdeu a dimensão universalista de sua missão. Foi buscando a
absorção de seu pensamento também pelos leigos que reelaborou seu sistema inúmeras vezes
e escreveu obras destinadas a um público mais amplo compilando “muitos livros para a
capacidade dos homens iletrados” (RAMON LLULL, 1311b).
A pouca receptividade que a Arte luliana teve em Paris, levou o seu autor a uma
grave autocrítica. Ora, isso é perfeitamente compreensível se levarmos em conta que a base de
seus escritos e de sua ação evangelizadora era a Arte. Se não era compreendida, nem aceita,
como poderia frutificar e lograr êxito ao motivo para o qual fora concebida? Isso gerou um
sentimento de insegurança e dúvida sobre sua própria capacidade na execução do projeto
divino. “Llull Duda de su capacidad y Del valor de su entrega. Se insinua, sin Duda, La
grave crisis autodestructiva que padecerá três años después”. (GAYÀ, 2005)
Mas o maiorquino também atribuía o não entendimento de sua obra entre os
universitários devido à ausência de sentimento religioso entre eles. Com efeito, como já
15 O sufismo era uma forma de meditação que visava transportar o homem do mundo material para o plano
espiritual por meio da contemplação e da oração repetida, até a sua completa interiorização. Trata-se de um
conjunto de técnicas corporais e mentais para entrar-se em transe. Os sufistas acreditavam que poderiam
unificar-se com Deus misticamente, através destas práticas. O sufismo não é uma tendência organizada no
sentido de que é realizada de maneiras diferentes entre sunitas e xiitas. Em seu primórdio, não contou sempre
com a aprovação de toda a comunidade muçulmana, sendo alguns sufistas acusados de blasfêmia pela sua noção
de harmonia com Deus.
69
membros de um novo movimento herético. Mesmo assim, ele sempre procurou colocar-se em
uma posição respeitosa e obediente face à Igreja.
Ao retornar à Itália, o pregador enfrentou diversos problemas, sendo o mais grave
deles, as decisões autônomas tomadas por seus seguidores durante sua ausência. Para resolver
parte do problema, estabeleceu uma regra aprovada pelo papa em 1223. Mesmo assim, antes
de sua morte, viu muitos de seus seguidores enveredarem por novos rumos. Dentre os
principais valores prezados por São Francisco de Assis temos:
a) A pobreza e a simplicidade. Vauchez esclarece-nos magistralmente acerca dos
ideais franciscanos em relação à primeira:
Assim se explica a sua hostilidade visceral face ao dinheiro, que ele proibia
aos irmãos de receber e possuir. Isto porque a posse da moeda não confere
apenas uma sensação de poder ilusória, falseia igualmente as relações entre
os homens e situa os que possuem entre os opressores. Em conformidade
com as idéias econômicas de seu tempo, o filho de Pietro Bernardone estava
convencido de que a quantidade de dinheiro disponível no mundo era
constante e que, ao enriquecer ou acumular riqueza se empobrecia os outros.
(VAUCHEZ, 1994, p. 257)
16Colocamos aqui o termo “criaturas” respeitando o pensamento franciscano que incluía todas as formas de vida
- animais, rios, plantas e a natureza de uma forma geral – como dotados do amor de Deus.
17 Nasceu em Caleruga, em mais ou menos 1170. Também de origem nobre, ingressou no clero desde a tenra
idade, ficando desde já conhecido por sua caridade. Logo ao assumir o cargo de subprior teve contato com as
heresias que naquele momento expandiam-se consideravelmente. Ao chegar no campo em companhia de um
irmão foi mal recebido. Com isso, Domingos percebeu que a simplicidade era uma forma mais adequada de
atingir as populações mais rústicas. Deixou seu cargo de subprior e mudou de tática, revestindo de conversão na
imitação dos apóstolos, humildade e a prática da mendicidade, quase simultaneamente à execução da mesma
prática pelos franciscanos. Daí resolveu então estabelecer-se em Tolosa, uma comunidade de irmãos com dois
objetivos bastante específicos: converter os hereges, reintegrando-os à Igreja e suprir as insuficiências do clero
secular. Esse é outro ponto diferente entre franciscanos e dominicanos. Os primeiros transformaram-se em uma
ordem de forma espontânea. No caso dos últimos já surgiram submetidos a uma regra e antes de inovar, seguiam
carismas já consagrados adotando a regra de Santo Agostinho.
72
compreendidos, poderiam ser utilizados da forma mais ampla e geral, como assim ocorria
com todo o conteúdo de seus demais escritos.
Essa tentativa de criação de uma ciência universal foi uma das originalidades de
Llull. Essa idéia foi retomada por muitos filósofos que viveram depois dele. O filósofo
acreditava que para chegar à verdade era preciso se desfazer de todos os pré-conceitos,
despojando-o de julgamentos prévios, ou seja, para chegar ao conhecimento, todas as
possibilidades deverão ser testadas. Por isso a utilização de autoridades era totalmente
desnecessária na aplicação do método luliano.
De uma forma bem simples podemos denominar como fazendo parte desse
conjunto a Ars compendiosa inveniendi veritatem ou Ars Magna (127-?), Ars demonstrativa
(127-?), Ars inventiva (1289), Tabula Generalis (1293), Arbre de Sciencia (1296), Logica
Nova (1303), Ars Generalis ultima (1308) e Ars Brevis (1308). O cerne da questão trazida a
tona pela Arte, fazia parte de um debate mais amplo, travado durante praticamente toda a
Idade Média, pelos homens de saber e ciência: a conciliação, o equilíbrio e as relações entre
fé e razão. Seriam elas complementares? Uma anulava a outra? Uma ajudava na compreensão
da outra? Ou negavam-se mutuamente?
Alguns estudiosos acreditam que a Arte luliana foi inspirada em algum modelo da
cabala judaica18. Isso porque nela Llull se utilizou de figuras e letras para expor as Dignidades
divinas e também consistia em um modelo combinatório que permitia diferentes resultados.
Os conceitos apresentados versavam sobre virtudes, vícios, sujeitos, perguntas e os princípios
relativos (da criação) e absolutos (Dignidades). De acordo com ele as Dignidades possuíam
um duplo movimento (ad intra e ad extra). Exemplificando esse pressuposto, citamos o caso
do próprio Deus que possuía uma atividade ad intra, a contínua relação ocorrida entre a
Santíssima Trindade e um movimento ad extra, a relação de Deus com os homens.
18 A Cabala era um sistema complexo que possuía duas vertentes chamadas de teúrgica e antropocêntrica. Para o
nosso estudo, vale apontar que a Arte de Llull possuía uma certa semelhança com essa filosofia. Na Cabala era
possível atingir-se o conhecimento de Deus através da meditação dos conceitos das sephiras. Estas se tratavam
nada mais nada menos que das Dignidades divinas. Claro que em cada doutrina essas dignidades variavam, mas
idéia geral era de que o conhecimento de Deus poderia ser atingido por meio do conhecimento de sua essência.
74
Na Cabala existe uma combinação das vinte e duas letras do alfabeto hebreu. A
combinação e a permutação dessas letras permitia a apreensão das características e potências
de Deus assim definida por Souza (2005):
através de um método, que embora de conteúdo religioso, pouco ou nunca fazia menção à
Bíblia.
Também não fazia referência à cultura escrita do período, como as inúmeras
traduções gregas e comentários sobre essas obras, o que leva Bonner (200-?) a afirmar que é
espantoso o caráter “[...] ahistórico, abstrato, descontextualizado e autorefencial [...]” das
obras lulianas. Dos séculos XI ao XIV, lentamente vai se processando uma mudança de uma
transmissão de cultura por meio da oralidade para uma cultura escrita, fenômeno influenciado
diretamente pela recuperação de textos antigos e uma nova produção, resultado a um só tempo
da síntese e interpretação desses mesmos escritos. Essa produção era fragmentária pois,
Após esses acontecimentos, Ramon finalmente rumou para Túnis, iniciando assim
sua ação missionária entre os muçulmanos. Dirigiu-se inicialmente aos sábios islâmicos,
colocando em prática seu método, através de um debate por meio do qual pretendia provar
que a doutrina que seguiam era falsa, demonstrando as razões necessárias.
Nesse período algumas cidades da África praticavam o comércio com a Europa.
Em Túnis, por exemplo, existiam muitos mercadores maiorquinos com seus funduqs19 e uma
capela cristã onde vivia um cônsul. Llull não era o primeiro a pregar em terras muçulmanas.
Outras missões implementadas pelos membros das ordens mendicantes já vinham ocorrendo.
As tentativas de conversão se davam diretamente com os membros da elite local. Ao se
dirigirem aos líderes políticos e religiosos, os pregadores estavam demonstrando respeito e
primando pelas relações de paz e pelo comércio entre as cidades envolvidas. Ramon desejava
que todos compartilhassem de um amor devoto por Deus e tomassem parte na sua missão.
19 Locais onde funcionavam depósitos na parte inferior e hospedarias na parte superior do prédio.
77
Llull conhecia bem esta elevada forma de expressão religiosa. Em sua época,
o sufismo espanhol estava bastante entrelaçado com o estudo da filosofia e
dependia em boa medida do desenvolvimento do misticismo no norte da
África (WATT, 1995, p. 157).
O beato sabia como se fazer ouvir, pois pregava utilizando tradições dos próprios
muçulmanos. Sua atitude de respeito frente aos artigos da lei de Maomé, já era um grande
diferencial em relação aos demais pregadores de sua época, que debatiam apontando inicial e
diretamente aquilo que consideravam como os erros dos infiéis . Usava o conhecimento do
outro, como uma arma na sua conversão, não utilizando-a no sentido de hostilizar, mas de ser
compreendido mais facilmente. A postura de Ramon Llull em relação às demais religiões não
foi sempre a mesma. Assim encontramos simultaneamente informações bastante ofensivas aos
muçulmanos na Doutrina Pueril e uma postura responsável e ponderada no Livro do Gentio e
dos Três Sábios.
Ele seguiu os cânones expressos no período para esse tipo de debate. Este
acontecia entre as autoridades de cada religião não envolvendo a população local. Havia é
claro, outras questões envolvidas. Essa postura de cunho estratégico possibilitava a paz nas
relações comerciais. “Para ello se exigía el respeto y La no ingerência em los asuntos
internos, los religiosos em primer término” (GAYÀ, 2005).
Ramon respeitava os padrões colocados e buscava situar suas ações dentro dos
códigos colocados pelas autoridades as quais recorria. É assim que irá redigir inúmeras
petições a reis e papas, expondo suas idéias, pedindo apoio para executá-las. Embora seus
pedidos tenham sido por vezes ignorados, não raro o filósofo obteve êxito em suas
78
ingerências, como por exemplo a fundação da Escola de Miramar, a autorização para pregar
em mesquitas e sinagogas e a influência na organização de uma cruzada. E, ainda que não
raro se ressentisse em ser considerado louco, fantástico, era considerado por muitos como
sábio, o que é atestado pela sobrevivência do lulismo, séculos após a sua morte, persistência
meritória também aos seus discípulos.
Em suas duas viagens à África, Ramon defendeu sua fé, de forma distinta, com
um pensamento alterado entre uma e outra. Em Túnis, estava imbuído de otimismo, de
tolerância e respeito. Visava colocar na prática, o modelo de diálogo proposto em suas obras,
sobretudo no Livro do Gentio e dos Três Sábios. Em sua segunda viagem, ao norte da África,
dessa vez para Bugia, adota uma postura mais radical e pragmática sendo favorável às
cruzadas e entregando-se ao martírio.
Sua visita à Roma foi infrutífera. A despeito de todos os esforços, não conseguiu
ajuda para os seus projetos de conversão dos infiéis. Também sua segunda visita à Paris não
foi muito proveitosa. Teve oportunidade de mais uma vez ler publicamente sua Arte e ter um
contato mais direto com as questões debatidas principalmente nas faculdades de Artes e
Teologia, além de estabelecer elos com os cartuchos de Vauvert, os escritores de sua
autobiografia.
A partir de então, Llull passou a conhecer de perto os “erros” divulgados entre os
próprios cristãos. O filósofo, de conhecimento de teses condenatórias às novas idéias, acaba
rotulando-as sob a denominação “averroísmo”, ao qual se disporá a erradicar sobretudo em
sua terceira viagem à Paris.
Embora a idéia do martírio já viesse sendo gestada em sua mente há algum tempo,
Llull manteve-se ainda numa linha conciliatória travando debates e sermões com os
sarracenos que encontrava pregando nas mesquitas e sinagogas e direcionando novos escritos
para judeus e muçulmanos. Um outro acontecimento que muito provavelmente pode ter
afetado a postura luliana frente à maneira de conversão, foi a perda da Terra Santa. Pouco a
pouco, vai se tornando mais favorável às Cruzadas. Devido às suas muitas viagens chegou
mesmo a pensar em estratégias que poderiam ajudar os cristãos na retomada do território.
Apesar de sua idade avançada, Llull continuou viajando a fim de pregar aos infiéis
e durante este período nunca deixou de escrever. Mesmo a sua busca pelo martírio foi algo
que ele buscou, já com uma idéia do que poderia lhe ocorrer de antemão. Por isso escolheu
pregar entre os muçulmanos. Essa busca pelo martírio, vislumbrava dois propósitos: retornar
79
O dogma cristão da Santíssima Trindade era o fator que gerava maior litígio entre
cristãos e muçulmanos.20 Para estes últimos repartir um Deus em três era o mesmo que cultuar
o politeísmo. Diziam que Deus era um só e que Jesus Cristo não era Deus, mas apenas um
mensageiro Dele. E apesar de acreditarem nas Dignidades como hadras, não acreditavam
nelas da mesma forma que Llull as explicava. No pensamento luliano, todas as coisas estão
organizadas em trilogias, como reflexo, imagem e semelhança da Santíssima Trindade, como,
por exemplo, a alma, dotada de inteligência, vontade e memória. Portanto, podemos constatar
que mesmo os pontos convergentes entre as doutrinas como a crença nas Dignidades divinas,
geravam inúmeras discordâncias e atritos.
A primeira idéia entre as autoridades muçulmanas foi a de punir o beato com a
morte, o que não ocorreu graças à intervenção do cádi21 da cidade, que achou mais
conveniente encerrá-lo no cárcere. Ao ser conduzido para fora da cidade, sofreu inúmeras
agressões dos mouros que desejavam linchá-lo. Observe-se que o filósofo já se encontrava em
20
A Santíssima Trindade é a base da doutrina crista que crê em um Deus uno e trino composto de Pai (Deus),
Filho (Jesus Cristo) E Espírito Santo. O Islamismo nega e recusa este dogma. Este ponto constituiu-se em um
dos maiores problemas para Llull, posto que, tornava a lei muçulmana e a cristã inconciliáveis.
idade avançada (por volta dos 60), fator que parece não ter influenciado nem sua atividade
intelectual nem suas ações.
Nesse meio tempo, recebeu visitas de mestres muçulmanos que tentaram
convertê-lo ao islamismo. Llull permanece irredutível. Vendo que seus esforços eram em vão,
as autoridades decidiram expulsá-lo de suas terras. Antes porém, o maiorquino redigiu a
Disputa del Cristiano Ramon com el sarraceno Hamar. No navio rumo à Gênova ocorreu um
naufrágio, no qual Llull e outro viajante escapam com vida, mas seus livros são perdidos.
Sobre este ponto vale assinalar que, sendo um homem precavido, espalhava seus escritos
pelos diversos locais aonde ia. Por isso mesmo após o naufrágio perdeu somente alguns
exemplares, mas não teve sua obra destruída.
Ramon Llull não obteve sucesso na utilização do seu método apologético, não
chegando a conquistar seu grande sonho: a conversão dos infiéis. O maiorquino também se
preocupava deveras com a Terra Santa que se encontrava em mãos muçulmanas e com a
expansão não só territorial, mas também ideológica do Islamismo. A partir de então, apoiou as
cruzadas como forma de recuperar a posse de Jerusalém e possibilitar a conversão
muçulmana.
Paulatinamente, vai deixando de lado sua postura pacífica e conciliadora, presente
no Livro do Gentio e dos Três Sábios e nas primeiras obras escritas logo após sua conversão.
Ainda assim, não deixou a razão de lado e sempre colocou o diálogo como forma privilegiada
de contato. Embora imbuído dos preconceitos cristãos e da ideologia católica da qual fazia
parte, sempre adotou um comportamento próprio, diferencial dos seus contemporâneos, tanto
no método utilizado, quanto na postura adotada.
Sua terceira visita à Paris parece ter sido a mais proveitosa. Foi ouvido por
mestres e estudantes, recebendo uma carta de aprovação à sua Arte e a expressão de sua
compatibilidade com a doutrina cristã. Foi então que incluiu um novo alvo apontado como
erro tão grave quanto as religiões judaica e muçulmana: o averroísmo, linha de pensamento
81
que, de acordo com ele, punha em dúvida o princípio da fé. Seu desejo era de que tais teorias
fossem extirpadas da Universidade de Paris.
Ramon Llull não só acreditava que fé e razão eram complementares como julgava
que os artigos da fé, podiam ser comprovados por meio da razão. Para ele, o real podia ser
atingido pelo homem através de um método. Esse método que relaciona vontade, lembrança e
entendimento é a Arte, onde a verdade é propriedade do real. Desse modo, era impensável
para esse filósofo uma doutrina que admitisse duas verdades, uma de acordo com a razão e
outro concordante com a fé. Para ele, os averroístas representavam um perigo mortal para a
unidade cristã e os defensores desta doutrina, tão perigosos quanto os muçulmanos.
Outra preocupação foi a unificação das ordens militares. Parece que Llull
manteve-se neutro nessas questões, apesar da gravidade que alcançaram. Foi a Ordem dos
Templários ao lado da Ordem dos Hospitalários, a única a impor o controle no caos que se
instalou na Terra Santa durante o período das Cruzadas. Os Hospitalários também eram
monges guerreiros que dividiam seu tempo entre orações e lutas, além de prestar assistência
médica aos peregrinos.
Estas ordens acabaram entrando em choque em algumas ocasiões, chegando a
serem concorrentes. A insistência de Ramon na unificação das ordens militares situava-se no
fato de que a perda de São João de Acre foi atribuída à desunião e brigas de poder entre essas
ordens. Não só ele como vários autores da época defendiam essa idéia. Uma ordem única
deveria ser chefiada por um rei.
Nesse período, os templários sofreram graves acusações e perseguições por parte
do rei da França. Ramon não se envolveu na questão da ordem dos Templários. Jaime II era
favorável a ordem, enquanto que o rei da França buscava de todas as maneiras destruí-la,
tecendo graves acusações contra Ordem, acusações estas, nunca comprovadas22
22 O surgimento da Ordem do Templo de Salomão ou Ordem dos Templários como ficou mais conhecida
posteriormente foi conseqüência direta das Cruzadas. Sua finalidade era proteger os peregrinos que iam à Terra
Santa, pois apesar da vitória militar a região continuou insegura e instável; as cidades conquistadas eram
cercadas de muçulmanos. O fundador dessa ordem foi um cavaleiro chamado Hugo de Payns. A eles juntaram-se
mais nove homens, oriundos em sua maioria da nobreza francesa. Os membros recebiam além da formação
monástica, formação militar, jurando defender a fé cristã com suas espadas. Apesar dos votos de pobreza com o
tempo porém a ordem enriqueceu devido às doações de terras e bens feitas por nobres. Gozavam de isenção de
impostos e chegaram mesmo a se envolver em atividades financeiras como empréstimos, depósitos e
investimentos. Os problemas dos Templários começaram quando o rei francês Felipe, o Belo acusou os membros
da ordem de heresia. Embora as acusações não tenham sido comprovadas, muitos de seus membros foram presos
ou mortos pela Inquisição. A maioria dos estudiosos desse conflito supõe que as graves acusações que o rei fez
teve o propósito de se apoderar De suas riquezas. Com efeito, o rei francês tornou-se o soberano mais poderoso
da Cristandade, usando sua influência inclusive para eleger um papa também francês, Clemente V em 1305. Para
82
maiores informações sobre os Templários sugiro as leituras de READ, Piers Paul. Os Templários: Imago, 2000.;
BURMAN, Edward. Os Templários. Os cavaleiros de Deus: Nova Era, 1997. e DEMURGER, Alain. Os
Cavaleiros de Cristo: Jorge Zahar, 2002.
83
23 Com relação ao Livro do Fim, pode ser dito que ele configura-se em um verdadeiro manual para a conversão
dos muçulmanos e a conquista da Terra Santa. Seus capítulos vão expondo detalhadamente os passos que os
cristãos devem seguir para conseguir tais objetivos, orientando de que forma os cristãos deveriam disputar com
os sarracenos, contra os judeus, contra os pagãos, contra os heréticos e orientando de que forma os poderes
temporais poderiam colaborar nessa empresa, a maneira que deveria se desenvolver a guerra, caso fosse
necessário o uso da força, explicitando inclusive o lugar, os participantes e as estratégias a serem utilizadas.
84
Esta obra torna-se bastante complexa, não só pelo tema em questão, o debate
envolvendo as três religiões monoteístas da época, mas pelos conceitos utilizados para
demonstrar a doutrina de cada uma. A leitura da obra exige um conhecimento prévio sobre as
doutrinas em questão, a fim de compreendermos o quanto o maiorquino conhecia sobre elas e
quais os aspectos considerados por Llull, levando em conta que seu escrito é antes de tudo
um texto apologético.
A fé é a propriedade pela qual cremos naquilo que não vemos, não
compreendemos. Porém a fé por si só não basta para nos fazer crer em algo, mesmo quando o
fato está inserido no campo religioso. É necessária a razão para fundamentar o conteúdo da fé.
E é essa relação entre razão e fé que será explorada por Ramon Llull ao longo de toda obra.
Nela os três sábios tentaram provar por meio de argumentos racionais que sua fé era
verdadeira. De acordo com o filósofo é necessário entender para amar. A aliança entre o crer e
o entender é a marca registrada do autor, sobretudo no Livro do Gentio e dos Três Sábios.
Llull está inserido em um contexto de projetos missionários por parte da Coroa
catalano-aragonesa. A reconquista da ilha de Maiorca pelo rei Jaime I foi violenta, porém,
vista pelos cristãos como uma devolução dos seus territórios aos seus primitivos donos. Llull
estava vivendo em um local de confluência entre cristãos, judeus e muçulmanos. Estes
últimos viviam em condições desprivilegiadas. A maioria continuou a viver na ilha, mas sob a
condição de escravos, exceto aqueles que colaboraram com o conquistador.
Os muçulmanos tiveram suas mesquitas transformadas em igrejas, oficinas e
moradias (JAULENT, 2001). A conversão destes ao Cristianismo melhorava sua condição,
inclusive isentando-os do pagamento de impostos. Apesar de ter se dedicado com especial
atenção à conversão dos muçulmanos, Llull iniciou seu trabalho doutrinário com os judeus,
uma vez que julgava o Judaísmo mais parecido com o Cristianismo. Já os judeus gozavam de
uma relativa autonomia em Maiorca, conservando suas práticas religiosas, governo próprio e
uma boa organização, com economia estruturada.
A ação missionária vai modificando-se e de acordo com Bonner, a partir de 1263,
os cristãos passaram a tentar conhecer melhor o credo dos judeus e muçulmanos, utilizando
86
seus próprios escritos para rebatê-los. Isso fez com que vários cristãos como Ramon Llull,
passassem a ler, estudar e conhecer as leis judaicas e muçulmanas. No Livro do Gentio e dos
Três Sábios, demonstra ser um hábil conhecedor destas doutrinas, o que fica expresso
principalmente nas perguntas que o gentio lança aos sábios destas religiões.
Llull era bastante favorável às disputas e debates. O Livro do Gentio e dos Três
Sábios é uma prova disso. Porém, o ponto diferencial do filósofo reside na forma como ele
acredita que deveriam ser encaminhadas essas disputas. Muito comuns na época, sobretudo
nas universidades, calcavam-se nas autoridades, sendo as principais delas Aristóteles, Boécio
e as Sagradas Escrituras.
Em todo o conjunto de seus escritos Llull jamais se utilizou do conhecimento
bíblico. Para ele era importantíssimo que a veracidade da doutrina cristã fosse comprovada
racionalmente e de forma argumentativa, condenando severamente o artifício de recorrer às
autoridades. (RAMON LLULL, 2001). Acreditava que mais almas poderiam ser convertidas
se o método utilizado fosse adequado. Faz alusão ao sultão Miramoli que desejava saber a
verdade, mas não a conheceu, uma vez que um cristão não soube demonstrar sua fé através do
que nomeia como “razões necessárias”.
Tais “razões necessárias” foram dadas ao maiorquino no Monte Randa em 1274,
ano em que foi escrito o livro. Nessa ocasião, ele desenvolveu seu método argumentativo, a
base de sua Arte com o intuito de aproximá-la o máximo possível do entendimento do maior
número de homens.
O filósofo concebe que a realidade é abrangente e dinâmica não podendo ser
abarcada pela idéia. Exemplo: uma cadeira em sua realidade exprime muito mais do que
qualquer idéia que dela possa se fazer. O conceito imobiliza e mascara a essência. É no
pensamento humano que irá se concretizar a união entre idéia e realidade. O ser humano
ajusta-se ao real na medida em que suas idéias são verdadeiras. Há, portanto, uma ligação
entre o ser e o conhecer. A realidade da pessoa irá determinar seu conhecimento.
Não há precisão quanto à data e local onde o livro foi escrito. Os estudiosos de
Llull especulam que ela foi escrita provavelmente em Maiorca para ser utilizada na escola
missionária de Miramar, entre os anos de 1274 e 1276.
O Livro do Gentio e dos Três Sábios é uma das primeiras obras escritas após a
experiência no Monte Randa e uma das primeiras nas quais Llull mostra objetivamente como
pode ser exercida e praticada a Arte. Trata-se de uma disputa, que embora semelhante às
87
os pontos que estavam sendo tratados, quer dizer, eles não eram portadores da verdade, mas
estavam à sua procura. Essa característica está ausente no diálogo com Pedro, pois em toda a
obra fica bem explícito que o clérigo não está disposto a aceitar e refletir sobre o que Ramon
lhe diz, mas julga-se correto e por essa falta de humildade afunda-se ainda mais no próprio
erro.
A Disputa entre Pedro, o Clérigo, e Ramon, o fantástico é uma disputa bastante
breve, levando-se em consideração que as disputas medievais comumente seguiam-se por
dias. Ramon imaginou este debate quando estava a caminho do Concílio de Viene (1311),
onde iria apresentar suas petições. Com efeito, na narrativa, Llull e o clérigo encontram-se a
caminho do Concílio. Pedro ouvira falar que Ramon era um grande fantástico. Para nós,
fantástico, é um termo que designa algo maravilhoso, fora do comum. Para o medievo,
fantasia, era sinônimo de loucura, falta de senso. Para se certificar, inquire sobre o que
Ramon iria pedir no Concílio.
Llull expõe seus três propósitos básicos: fundação de escolas de línguas que
formassem pessoas que fossem pregar aos infiéis até converter a todos; o estabelecimento de
uma única ordem militar para restituir a Terra Santa e, a extinção da doutrina averroísta.
Diante disso, o clérigo concorda que Llull era realmente um louco, ao que ele rebate de forma
bastante serena que busca coisas possíveis e que além de realizáveis, dariam bons frutos.
Neste debate, a primeira parte é justamente para provar quem dos dois é realmente
fantástico. E como sempre ocorria nas disputas perpetradas por Llull, esta parte servia para
definir as diretrizes que orientariam a disputa. Assim sendo, iniciaram, partindo do conceito
do que era fantasia.
O clérigo e Llull começam então a falar sobre sua vida, o que vai informar a um
tempo, sobre as diferenças nos modos de agir, nas personalidades e nas metas de um e outro.
Enquanto o clérigo desejara tornar-se um homem rico, Llull fizera-se pobre por amor a Deus e
à sua missão. Da fala do clérigo, podemos tirar as seguintes conclusões: este, era movido pela
ambição e pelo apego aos bens materiais, inclusive usando sua posição para enriquecer a si e a
sua família, e ainda ia ao Concílio com o objetivo de subir à prelatura. Ora, desde aí,
percebeu-se que, embora sendo um membro do clero, Pedro estava corrompido pelas coisas
mundanas e em vez de estar voltado para Deus e o seu serviço, estava voltado apenas para si
próprio.
89
Discutindo ainda sobre fantasia, Pedro afirma que Llull mesmo não conseguindo
seus objetivos, continuava a persegui-los em vão. O filósofo rebate mostrando que a maioria
dos homens, a exemplo do próprio Pedro, estavam mais voltados para as questões mundanas,
razão pela qual não obtinha a ajuda necessária para seus propósitos.
Outro ponto no qual o beato foi questionado diz respeito à Arte. Para Pedro parece
inverossímil um método único, aplicável a todas as ciências “[...] pois cada uma das ciências
tem seus próprios princípios” (RAMON LLULL, 1311a) ao que ele retruca que a Arte tem
princípios gerais comum a todas as ciências. O clérigo compartilhava da visão dos filósofos
de sua época que não acreditavam que a fé pudesse ser provada, como revela sua expressão ao
dizer que “[...] se a fé fosse demonstrável, perderia seu mérito, como tem sido dito, já que a fé
não tem mérito onde a razão humana lhe oferece uma prova experimental”.
(RAMON LLULL, 1311a).
O clérigo também se baseava nas autoridades, pois embora durante o debate com
Ramon, não tenha recorrido a nenhuma, diz que Ramon é um fantástico porque finge “[...]
possuir uma ciência altíssima e profunda que ninguém vos transmitiu” (RAMON LLULL,
1311a).
A explicação para a forma distorcida de Pedro compreender o mundo é que este se
encontrava desviado do que o maiorquino chama de “primeira intenção” que é amar e honrar
a Deus. Em todo o opúsculo fica claro que a vaidade do clérigo fazia com que ele buscasse
honrar somente a si próprio. Por isso estava em pecado, de acordo com a definição luliana de
que pecar “[...] é inverter a intenção para a qual foi criado”. (COSTA, 2005)
Por isso, mesmo sendo clérigo, Pedro se encontrava pervertido e a sua posição
dentro da Igreja tornava seu pecado ainda mais grave, pois “[...] quanto mais alto é o grau de
seu ofício, mais e mais é repreensível, pois atua maximamente contra o fim” (RAMON
LLULL, 1311a). Ora, um membro do clero viciado servia de exemplo tanto quanto um
virtuoso, mas era um exemplo ruim, que não deveria ser seguido. Como poderia converter os
infiéis se não dava bons exemplos?
O transcorrer do debate não altera a forma de pensar de Pedro. Ele encontrava-se,
partindo da lógica luliana em uma situação mais vergonhosa do que a do gentio do Livro do
Gentio e dos Três Sábios. Este último poderia alegar a seu favor, a ignorância em que se
achara por toda a vida. Pedro por sua parte, mesmo tendo conhecimento de tudo que Llull lhe
90
apontara, colocava sua felicidade nas coisas terrenas, não se ocupando do ofício para o qual
fora ordenado.
Essa disputa é um bom exemplo do caráter reformador de toda a obra luliana.
Embora seu maior objetivo fosse converter os infiéis, o filósofo tinha consciência de que a
própria Igreja precisava de uma renovação e uma purificação nas suas práticas. Pedro, um
clérigo imaginário, representa todos os membros corruptos e desviados do clero. Embora
admitindo a fé cristã como verdadeira e defendendo que a Salvação só se daria através do
intermédio da Igreja, Ramon não ignorava que muitos de seus membros se esquivassem de
suas obrigações.
Tal disputa mostra a outra faceta de um debate. Enquanto no Livro do Gentio e
dos Três Sábios todas as idéias se desenvolvem em um clima harmonioso, respeitoso e mais
ainda, onde todos compreendem os argumentos de todos ainda que não concordem com eles,
na disputa com Pedro é demonstrada toda uma intolerância e ignorância. Tanto é que ao final
do debate entre os três sábios e o gentio, todos se separam satisfeitos e dispostos a repetir esse
exercício, quantas vezes se fizesse necessário para o conhecimento de qual fé seria a
verdadeira. Já o debate entre Ramon e Pedro, se encerra de forma inacabada. Sem argumento,
Pedro prefere retirar-se, recusando-se a continuar argumentando até provar o que dizia.
Portanto, O Livro do Gentio e dos Três Sábios é, sobretudo, o exemplo fornecido
por Llull de uma disputa ideal. Seus cânones estavam totalmente de acordo com o pensamento
de tolerância desenvolvido pelo filósofo e os princípios utilizados devidamente moldados aos
conceitos da Arte. É esta forma de diálogo que ele procurou utilizar em seus contatos com os
não-cristãos, mesmo que na realidade esta maneira de diálogo tenha se mostrado bastante
difícil de ser colocada em prática. O importante é que, sobretudo esta obra configura-se no
corolário dessa tentativa de compreensão mútua que o filósofo acreditava ser o ponto de
partida para a unificação de todos os homens em torno da religião cristã. (MERCANT, 1998).
Llull, a exemplo de todas as suas obras começa o livro dedicando todo louvor,
honra e glória a Deus. Enumera seus pecados, mas coloca explicitamente sua vontade e
empenho na salvação daqueles que erram.
Inicia deixando claro que seu livro é destinado ao entendimento dos homens
leigos, portanto antecipando que este será escrito da forma mais clara e sucinta possível.
Divide-se em seis partes: o prólogo, onde há apresentação do cenário e das personagens; os
quatro livros sendo que o primeiro tem a função de demonstrar os parâmetros que irão nortear
91
a disputa entre os três sábios; nos demais seguem-se as exposições das doutrinas defendidas
por cada sábio. Cada um destes sábios terá que convencer através de argumentos lógicos que
a sua fé é a melhor.
Vale a pena destacar que o gentio, embora desconhecendo a existência da vida
eterna, não é um ignorante, mas um homem “muito sábio em filosofia” (RAMON LLULL,
2001, p. 42). Este sábio, sentindo aproximar-se da hora de sua morte, ficou mergulhado em
profunda melancolia, sabendo que logo teria que deixar este mundo e seus prazeres. Era
desprovido de conhecimento religioso. Então resolveu partir de sua terra natal e ir para uma
floresta a fim de consolar seu coração. A floresta no período medieval era tida como obra de
Deus, expressão de sua perfeição e bondade e lugar de refúgio para os homens. É no meio
dessa encantadora floresta descrita por Llull (cheia de flores, fontes, córregos e animais) é que
o gentio irá ter sua revelação.24
Caminhando neste local e averiguando tal beleza, mais ainda afundava seu
coração no desespero e na angústia, até que encontrou uma trilha. Esta trilha também foi
percorrida por três sábios. Esse grupo chegou a um bosque com cinco árvores. Essas árvores
possuíam flores que alegoricamente representavam Deus, as virtudes criadas e incriadas e os
vícios. Quem dá as explicações acerca das árvores, suas flores e de como estas combinavam
entre si, assim como suas condições é uma bela dama chamada Inteligência. Essas condições
podem ser resumidas em nove premissas:
1. A Deus devem ser atribuídas toda honra, glória e poder.
2. As virtudes divinas25 devem concordar entre si e possuírem a mesma importância
3. As virtudes criadas serão mais aprazíveis quanto mais significarem e
demonstrarem as virtudes incriadas.
4. Virtudes criadas e incriadas sempre deverão concordar entre si e;
5. Não poderão concordar com os vícios
6. O conveniente é negar os vícios e a contrariedade entre as virtudes e afirmar as
formas pelas quais tudo isso é captado pelo conhecimento humano.
24
Llull descreve a floresta como “eremitério” o que sugere que o autor também via este local como um lugar de
encontro por excelência com Deus. Ricardo da Costa em seu artigo Ramon Llull e o dialogo interreligioso:
cristãos, judeus e muçulmanos na cultura ibérica medieval: O Livro do Gentio e dos Três Sábios (c. 1274) e a
Vikuah (c.1264) de Nahmânides sobre a Disputa de Barcelona de 1263, diz que o nome desse local é locus
amoenus e é o lugar ideal para debates intelectuais. Coloca também que nessa obra o cenário é tão importante
que acaba virando uma espécie de personagem.
25
Também denominadas como virtudes incriadas.
92
A seguir traçaremos um breve paralelo entre O Livro do Gentio e dos Três Sábios
e O Livro dos Anjos. Estas duas obras utilizam os mesmos princípios e conceitos e uma
auxilia no entendimento de outra. As virtudes e os vícios, por exemplo, servem para explicar
no Livro dos Anjos as semelhanças e diferenças entre Deus, anjos e homens. As virtudes
incriadas ou divinas se unem para formar Deus, estando presente n’Ele de forma infinita e
formando os anos de forma finita, inclusive distinguindo um anjo de outro, pela sua
quantidade. As virtudes humanas são as criadas, através das quais o homem combate os vícios
e se aproxima da vontade de Deus. (RAMON LLULL, 2002). Cada virtude criada se opõe a
um vício como demonstrado no esquema abaixo:
VÍCIOS VIRTUDES
Gula Temperança
Luxúria Prudência
Acídia Fé
Soberba Esperança
Avareza Caridade
Ira Fortaleza
Inveja Justiça
bastante crítico aos sábios. Por que estes não se apiedavam das demais pessoas que ignoravam
a existência de Deus? Nesse momento os sábios revelam que não acreditam na mesma Lei,
causando grande confusão e perplexidade na mente do gentio.
Nesse ponto, há um desentendimento entre os sábios que ficaram apontando os
erros dos outros sem chegarem a um acordo. Então, o gentio sugere uma disputa para que
pudessem chegar à verdade. Note-se que a preocupação com a verdade estava presente em
todas as disputas sendo sua principal finalidade. Para Llull, ela adquire ainda maior
importância na medida em que o verdadeiro condizia com o bom e o belo. No tratado
apologético aqui estudado as regras da disputa travada serão as nove premissas dadas pela
dama Inteligência.
Apesar do desentendimento inicial, logo os sábios voltam à cordialidade e o
respeito. A exposição de cada sábio seguirá a ordem cronológica na qual surgiram suas
doutrinas.
O Judaísmo é a religião monoteísta mais antiga da qual se tem conhecimento.
Embora existam atualmente judeus espalhados pelo mundo inteiro, o Judaísmo se faz muito
forte no Estado de Israel para onde muitos judeus têm migrado, desde antes de sua fundação.
A palavra Judaísmo advém de Judéia, capital do antigo reino de Israel. A religião é também
conhecida como mosaica devido ao papel que Moisés tem para os judeus.
A religião judaica é indissociável da História, uma vez que todos os
acontecimentos são marcados pela interferência ou vontade divinas. Consiste em um pacto
que Deus fez com seu povo escolhido, o povo hebreu, que mais tarde se tornaria o povo
judeu. Pode-se afirmar que foi aquela mais influenciada por circunstâncias históricas que
delinearam seus costumes e tradições. Por exemplo: a saída do Egito originou o ritual da
Páscoa; a guerra contra os filisteus impôs a necessidade da organização de uma monarquia
centralizada; a dispersão pelo mundo fez com que sua tradição oral fosse registrada no
Talmude, para que não se perdesse, ou seja, o Judaísmo buscou adaptar seus preceitos às
modificações que ocorriam em sua relação com os fatos históricos e sua relação com os outros
povos.
Os sábios concordam previamente que durante a exposição o único interventor
deverá ser o gentio. Isso deriva do pensamento luliano que acreditava estarmos mais aptos a
aprender quando estamos de boa vontade em relação ao que buscamos entender, “[...] porque
95
Não tenhas outros deuses diante de mim. Não faça para você ídolos,
nenhuma representação daquilo que existe no céu e na terra, ou nas águas
que estão debaixo da terra. Não se proste diante desses deuses, nem sirva a
eles, porque eu, Javé seu Deus, sou um Deus ciumento: quando me odeiam,
castigo a culpa dos pais nos filhos, netos e bisnetos; mas quando me amam e
guardam os meus mandamentos, eu os trato com amor por mil gerações
(grifos nossos) (Ex 20, 3-6).
Baseado nesta passagem Scliar questiona se nesse momento o Judaísmo pode ser
considerado como um monoteísmo puro, pois ele admite a existência de outros deuses.
(SCLIAR, 1994). Mas é, sobretudo, um Deus próximo do homem que se dirigiu diretamente a
vários justos do povo hebreu como Abraão, Moisés, entre outros, orientando-os para que estes
conduzissem o povo segundo seus mandamentos.
Ao falar sobre a vinda do Messias, o judeu esclarece os principais pontos de
divergência entre a sua lei e a dos cristãos, inclusive começando daí a sua crítica à lei cristã.
Os judeus crêem que o Messias virá para retirá-los do cativeiro. Faz menção aos cativeiros
anteriores.
Os cativeiros citados pelo judeu equivalem justamente a dois importantes
momentos para a história do povo judeu: quando estes foram escravos no Egito e mais tarde
quando foram levados como cativos para a Babilônia. Estas narrativas encontram-se nos
livros do Êxodo e do profeta Isaías.
97
O cativeiro é uma maneira de seu povo demonstrar devoção e amor a Deus, já que
mesmo sem saber por que se encontravam em tal sofrimento louvam e têm fé e esperança. O
judeu coloca o sofrimento como uma escolha que o povo de Israel fez com enorme
humildade, humildade tal que não existe nem nos cristãos, nem nos sarracenos que ele chama
de orgulhosos e soberbos e os têm como seus algozes.
O gentio não escuta de forma passiva, mas questiona e dá opiniões acerca do que
lhes falam seus interlocutores. No caso do judeu, por exemplo, ele exprime o pensamento de
que os judeus possam estar sendo castigados por algo que fazem julgando correto.26
No artigo seguinte “Sobre a Ressurreição”, o judeu revela as divergências sobre a
doutrina entre os próprios judeus. Estes estão divididos em três grupos:
Aqueles que não acreditam na Ressurreição, uma vez que consideram que é
GRUPO impossível para o corpo corruptível do homem, retornar ao estado anterior ao da
1 sua morte. Além disso, consideram o Paraíso como um local de deleite espiritual
e não corporal, portanto, acham que é inviável que os homens lá comam e
bebam.
Crêem que a Ressurreição se dará após o fim do mundo e em seguida reinará a
GRUPO paz e todos defenderão somente uma fé, que é obviamente a fé judaica. Isso
2 acontecerá por algum tempo. Virão outros tempos em que todos morrerão e não
haverá mais ressurreição do corpo, mas somente da alma.
Deste terceiro grupo participará o sábio, que acredita que todos ressuscitarão
GRUPO após o fim do mundo. Os maus serão punidos no Inferno, mas esta pena é
3 temporária. Apenas uma pequena minoria que cometeu pecados gravíssimos
ficará lá pela eternidade.
Novamente o gentio irá repreender o judeu, replicando que seu povo não deveria
se achar dividido sobre algo tão importante.
O dia do juízo é o artigo seguinte e é a própria razão de ser das árvores. Se não
houvesse julgamento, não haveria diferenças entre bons e maus, nem entre virtudes e vícios.
26
Llull habilmente coloca esta dúvida na personagem do gentio. Na realidade o próprio autor acreditava que o
sofrimento dos judeus advinha por não aceitar Jesus Cristo como Messias.
98
A doutrina judaica assim como a cristã está alicerçada na crença deste julgamento. Ele norteia
as atitudes do homem em vida e por causa dele foi criado todo um código moral e religioso,
para que esse homem possa alcançar um melhor fim no dia da ressurreição. Nesse dia,
ninguém escapará de prestar contas. Segundo o judeu, nesse dia todos os homens verão a
Deus e receberão sua sentença publicamente. Todos saberão o que está reservado a todos “[...]
e tudo isto em um só tempo e em um só lugar”. (RAMON LLULL, 2001, p. 114)
O dia do juízo é a manifestação máxima da sabedoria, poder e justiça divinos.
Apesar das réplicas do gentio, os sábios lhe têm um amor piedoso, pois desejam que ele
conheça a verdade. Um exemplo disso é a forma de tratamento quase paternal com a qual se
dirigem a ele: “Amado filho, bem sabes [...]” (grifos nossos). (RAMON LLULL, 2001, p.
116).
Falando sobre o Paraíso, o judeu afirma que lá não existirão coisas corporais
como comidas, bebidas e mulheres. Os medievais consideravam tudo o que se referia ao
corpo e aos sentidos como corruptível e uma forma de condução ao pecado. É através das
sensações que o homem peca e cada vício está intimamente ligado com os sentidos.
morrerem, os homens deverão necessariamente ter lembrança deste mundo, para que no outro,
saibam as razões de estarem sendo punidos ou recompensados.
A crença na existência do Inferno colabora para que o homem procure a retidão.
Sobre o Inferno, também existem diversas opiniões entre os judeus. Alguns acreditam que ele
se localiza no mundo em que estamos; outros no ar, outros em tormentos infindáveis e outros
ainda na perda da glória celeste.
O judeu encerra sua explanação afirmando que sarracenos e cristãos estão no erro
e admoestando o gentio que a maior pena está reservada para os que pecam conhecendo a
verdade.
Todos os sábios antes de iniciarem sua exposição rezam de acordo com os
costumes de sua religião. Por isso ao iniciar, o sábio cristão fez menção à Trindade Santa
através do sinal-da-cruz. Os artigos cristãos são quatorze, todos referentes a Cristo, sendo que
sete dizem respeito à sua natureza divina e sete à sua natureza humana. Adverte o gentio de
que os artigos cristãos requerem muita fé e inteligência para serem entendidos e cridos.
O gentio contenta-se com a explicação de apenas um sábio quando há existência
de pontos comuns. Por esse motivo o sábio cristão não precisou provar a existência de um
Deus único (artigo já provado pelo judeu), mas sim passou ao ponto seguinte, referente à
Trindade. Este é um dos artigos mais complexos da lei da cristã e um nos quais mais o sábio
se deteve ao explicar. Ramon Llull utiliza largamente em seus escritos a analogia. A analogia
é uma espécie de semelhança entre duas coisas. Llull faz isso a fim de facilitar o entendimento
daqueles que acessarão sua obra. Ao falar sobre a Trindade faz uso da seguinte analogia:
O cristão assim define Deus: “E que dois, amante e amado, provenha aquela outra
propriedade pessoal que seja amante e amada, e que os três, amantes e amados, sejam uma
Essência amante e amada em si mesma, sua infinita bondade e seu infinito poder”
100
27
Essa é a resposta que o sábio cristão deu ao gentio quando este perguntou por que Deus com a sua bondade,
não impede o mal de existir. É interessante que o gentio tenha feito esta pergunta a todos os sábios.
28
Chega a impressionar a maneira como Llull consegue sintetizar os pontos principais do Cristianismo. Além de
explanar sobre estes complexos artigos da profissão de fé, ele menciona a questão do livre arbítrio e seu papel na
salvação do homem, a importância da Virgem Maria na devoção dos fiéis, menciona a existência dos anjos, e o
exemplo dos santos, a concepção do surgimento do homem e do universo na teologia cristã, enfatizando a paixão
de Cristo ao dizer que existe maior perfeição em perdoar do que em criar.
101
através da união entre Deus e os homens, estes possam ser absolvidos das culpas e dos
pecados. Se Cristo não tivesse morrido pelos pecados do homem, todos estariam condenados.
E afirma que há maior perfeição em perdoar a culpa do que em criar. Esse perdão é geral, pois
o pecado estende-se por toda a espécie humana.
A ira é contrária à misericórdia. O homem pode mortificar sua ira ao relembrar da
misericórdia cristã que com sua morte salvou o homem. Igualmente a esperança, fez com que
o homem seja mais forte contra as tentações. A espera da glória celeste faz o homem adotar
um melhor comportamento, mais condizente com as virtudes.
Apesar do respeito mútuo, os sábios vez ou outra criticam os fundamentos
religiosos dos outros. O cristão, por exemplo, chega a afirmar que os muçulmanos “têm
coração duro e um entendimento embotado, por isso não conseguem compreender a Lei
Cristã” (RAMON LLULL, 2001, p. 173). Ao descrever o Paraíso o cristão faz isso. Para ele o
homem não comerá, nem beberá na glória eterna. Seu deleite será espiritual e não carnal.
Nossa Senhora Santa Maria e todos os anjos, arcanjos, santos e mártires estão nessa glória que
não tem fim.
O papel de Nossa Senhora como mãe do Criador e mediadora é muito importante.
Ela é apontada como mulher justa e virtuosa. Na criatura, o nascimento se dá em virtude da
corruptibilidade do corpo feminino o que não aconteceu na Recriação. Jesus Cristo é filho da
perfeição (Deus) e de um ser imaculado (Virgem Maria). Llull mais uma vez utiliza-se da
analogia: assim como o sol passa pelo vidro sem corrupção ou alteração alguma, assim
também ocorreu na natividade de Cristo, sem alteração na virgindade de sua mãe.
A natividade de Deus é então melhor que a dos outros homens. O autor mostra
também ser influenciado pelo pensamento da época: para ele, o homem é superior à mulher
em sua natureza. Deus ao escolher Maria, exprime grande humildade pois deu tal honra a uma
mulher destituída de bens temporais.
Tanto o anjo quanto a alma racional são imortais30. Jesus ao morrer teve sua alma
separada do corpo, mas mesmo assim ela permaneceu ligada à divindade. A alma de Jesus
Cristo desceu ao Inferno com a finalidade de libertar Adão, os profetas e todos os justos que
morreram antes de sua vinda a este mundo.
29
O termo utilizado é recriação, levando em consideração que a primeira criação foi a de Adão. A recriação é o
nascimento de Cristo. Adão trouxe o pecado e Jesus Cristo redime o pecado.
30
Ainda falando desse artigo o cristão coloca que o homem é superior ao animal porque é dotado de uma alma
racional.
102
b) os cristãos que pecam terão maior pena do que os infiéis que pecam, pois estes
não O conhecem e em decorrência disso;
c) também serão perdoados de maiores pecados que os demais homens.
É necessário que o juiz supremo seja Deus e homem, para que sua sentença possa
ser vista e compreendida pelos homens. Ao concluir, o sábio coloca que o homem tem “a
memória para lembrar, o entendimento para entender e a vontade para amar a Deus e às suas
obras”.31 (RAMON LLULL, 2001, p. 199). Ele lembra que estão disputando de uma “nova
maneira”, o que demonstra que Llull expõe aqui, como acreditava que deveriam acontecer as
disputas reais. Sua disputa imaginária (dos três sábios querendo provar a veracidade de sua fé)
é nada mais nada menos que uma sugestão de como Llull desejava que fossem os debates
reais na sua época.
Todos os sábios iniciaram a oração conforme seu costume. O sarraceno lavou
partes de seu corpo, ajoelhou-se e beijou a terra. Os artigos de sua crença são doze: crer em
Deus como criador e em Maomé como profeta, no Alcorão como lei, na pergunta do anjo ao
homem morto em sua tumba, na morte de todas as coisas com exceção de Deus, na
Ressurreição, na exaltação de Maomé no dia do juízo; no juízo final e na existência do Paraíso
e do Inferno.
Cada uma das religiões monoteístas escolheram homens que passaram a ser
símbolos de fé e confiança e mensageiros de Deus. Moisés para os judeus, Cristo para os
cristãos e Maomé32 para os islâmicos. Estes homens foram exemplos, referenciais e os
responsáveis pela Lei e os artigos adotados por cada religião. A particularidade cristã é que
Cristo é tido como mais que um mensageiro de Deus. Ele é a encarnação do próprio Deus.
Vale mencionar que o Judaísmo e o Cristianismo exerciam influência em boa
parte do Oriente Médio. Assim, o profeta do Alcorão, deu origem a uma nova religião, mas
31
Tal como é explicado no Livro dos Anjos (1274-1283), cujo conceito já fiz menção anteriormente.
32
Maomé, Mohammed ou Muhammad é considerado o fundador da religião islâmica. Ele nasceu em Meca,
Arábia, no final do século VI, ficando órfão ainda na infância; foi entregue aos cuidados de um dos seus tios,
Abu Talib. Na Arábia de sua época, a sociedade organizava-se de acordo com o sistema tribal. Esse sistema era
regulado pelos laços de sangue. Dessa maneira, o assassinato de um dos membros de uma tribo era vingado por
meio do assassinato de um membro da tribo do assassino, o que desencadeava uma série de rixas sangrentas.
Não havia outro código e as leis da tribo eram as únicas e no caso de serem transgredidas, resultavam no
afastamento do membro desobediente. Essas tribos cultuavam várias divindades, sendo a principal a pedra negra
de Meca que recebia visitas de peregrinos. Assim, Maomé com sua doutrina, instaurou não só um novo modelo
religioso, mas também uma nova organização política, através de meios tanto diplomáticos quanto militares,
conseguindo unificar a Arábia sob um só domínio e religião, um feito notável, considerando-se a grande
fragmentação político-religiosa dessa região.
104
também recebeu elementos das duas religiões abraâmicas já existentes como nos esclarecem
Gaarder; Hellern; Notaker (2000, p. 120):
33
Para os muçulmanos a divisão de Deus em três pessoas configura-se em um politeísmo.
34
Parece ilógico que Deus tenha criado o pecado, se, mais tarde, no julgamento irá condenar o homem por pecar.
35
Entende-se nesse contexto por verdade a existência de um Deus único e da glória da Ressurreição
105
discorda do sarraceno, argumentando que Deus não poderia enviar um profeta contra outro,
nem renegando o que já foi dito.
Se o Cristão colocou que na pessoa de Cristo, Deus revelou a humildade através
de sua pobreza, o sarraceno também afirma que Deus revelou humildade e sabedoria ao enviar
Maomé para revelar sua Lei, já que foi um homem “leigo e sem letras”. Considera o Alcorão
como o livro mais belo já escrito que “[...] nem os anjos, nem os demônios poderiam fazer
[...]” (RAMON LLULL, 2001, p. 208).
Ao discutir o Alcorão, o sarraceno toca no “calcanhar de Aquiles” de judeus e
cristãos. Diz que Jerusalém embora sendo uma cidade sagrada para eles foi entregue por Deus
nas mãos dos sarracenos “e nela se lê o Alcorão e nenhum outro livro nem nenhuma lei é ali
tão honrada como o Alcorão” (RAMON LLULL, 2001, p. 208). Para o sábio esse fato é uma
comprovação do poder e da justiça de Deus.
Também é prova da sabedoria de Deus ter enviado o Alcorão, pois através dele, o
homem toma conhecimento da existência de um Paraíso com grandes riquezas e mulheres
para que na terra não inveje os outros.
Mais uma particularidade da fé muçulmana é que estes crêem que o homem ao ser
morto e sepultado dois anjos de Deus lhes fazem cinco perguntas:
1. Quem é Deus?
2. De quem é a sua Lei?
3. Qual a sua Lei?
4. Maomé é profeta?
5. Meca está ao sul?
Sobre estas perguntas, bem-aventurados serão aqueles que responderem: é o meu
Criador, minha lei é a de Deus, Maomé é mensageiro de Deus e sim.
Falando sobre a morte, o sarraceno fez a seguinte associação: IMPERFEIÇÃO =
mortalidade e PERFEIÇÃO = imortalidade. Por isso todos os seres viventes morrerão,
inclusive anjos e demônios, mas todos reviverão. Para ele “[...] a prudência pode ser maior em
conhecer a morte, maior caridade pode existir naquilo que retornou da morte para a vida que
naquilo que nunca morreu.” (RAMON LLULL, 2001, p. 216).
Sobre a ressurreição este diz que a terra será muito branca e haverá grande calor e
os homens suarão de acordo com os seus pecados. Os anjos descerão de céu em céu, até que
106
Deus venha fazer o julgamento. Tudo isto após quarenta dias e do toque da trombeta do anjo
Serafim.
No oitavo artigo, o sarraceno demonstra a grande estima, respeito, admiração e fé
dos seus para com Maomé. Quando Deus estiver julgando, ele será o único justo a rogar pelos
homens e Deus o ouvirá. Mais ainda, afirma que nem Adão, Noé, Abraão, Moisés ou Cristo
terão coragem para fazê-lo, inclusive dizendo que Cristo não será digno para tal, por ter
deixado que os povos o adorassem como se fosse Deus. Pela prece de Maomé, homens serão
retirados até mesmo do inferno.
Associa a ciência à soberba, por isso Deus ouvirá Maomé, um homem sem
ciência.36 Na Idade Média era comum que os mestres ensinassem seus estudantes a serem
humildes não desprezando nenhuma forma de conhecimento e aprendendo com todos, não se
julgando melhor que os demais após ter alcançado o conhecimento. (COSTA, 2003)
Julga que os sarracenos têm mais fé e esperança do que judeus e cristãos, por
acreditarem que pelas preces de Maomé, sairão do inferno. Mais uma vez o gentio discorda,
afirmando que, com efeito, se as coisas transcorressem de tal forma “Deus amaria mais uma
fé e esperança grandes do que uma perfeição e uma justiça grandes, e isto é impossível.”
(RAMON LLULL, 2001, p. 221).
O sarraceno explica que todos prestarão contas, inclusive animais e aves, para
espanto do gentio que não vê o porquê de seres sem discernimento, terem que prestar contas,
ao que o sarraceno respondeu que estes servirão de exemplo para os homens pecadores que
desejarão não existir.
Curiosamente ao falar sobre a pesagem dos pecados que o sarraceno chama de
“males”, indica a existência de um lugar entre o Paraíso e o Inferno, onde ficarão os homens
cujos bens igualarem-se aos males que cometeram37.
O caminho o Paraíso será “estreito como um fio de cabelo”, e a velocidade com a
qual cada homem passará, será o reflexo do seu merecimento à glória e se não merecer cairá
deste lugar para o inferno. Quanto mais trabalhos o homem tiver para alcançar o Paraíso, mais
será amado por Deus e menos sentirá penosos os seus esforços.
36
É importante frisar que o conceito de ciência não era ponto comum entre as mentes da época. Cada intelectual
dividia o conhecimento de acordo com sua própria perspectiva.
37
A noção lembra um pouco a do Purgatório cristão. Nem todos os cristãos e religiosos acreditavam na
existência do Purgatório. Nos escritos de Llull, por exemplo, não encontramos menção a esse local.
107
38
Nessa parte o sarraceno explica que alguns povos não têm essa visão da glória, mas que estes não merecem
crédito por serem estudiosos de Lógica e Ciências Naturais. O sábio demonstra um profundo desprezo por essas
áreas e chega a afirmar que estes povos para os sarracenos não passam de hereges.
108
Quando o agora ex-gentio quis expor por qual lei havia optado, os sábios
discordaram. Cada um preferiu pensar que ele escolhera a sua lei, afirmando que se isso lhes
fosse revelado, não teriam mais “verdades a descobrir”.
A separação entre o ex-gentio e os sábios foi muito sugestiva. Depois de ser
abençoado pelos sábios, ele encontrou dois gentios de sua terra e supomos que este transmitirá
a eles tudo o que aprendeu e julgou correto.
Os sábios por sua vez firmaram um pacto: chegarem a defender uma mesma fé!
Mas aquela que fosse a verdadeira. E para descobrir isso iriam disputar todos os dias,
seguindo a maneira que haviam disputado em testemunho do gentio. Pediram perdão um ao
outro caso tivessem ofendido suas leis e combinaram “[...] o lugar e a hora onde debater, e a
maneira como se honrar e servir e disputar; e o modo de, quando tivessem concordado e unido
em uma fé, irem pelo mundo dando glória e louvor ao nome de nosso Senhor Deus.”
(RAMON LLULL, 2001, p. 248).
Llull esclarece que os sábios cumpriram sua palavra e ao concluir seu livro, mais
uma vez, coloca que o objetivo de seus escritos é a busca pela verdade e traz um pedido:
“despertar os que dormem”, para que estes possam contribuir com a sua causa. É provável que
aqui, o nosso filósofo esteja se referindo aos reis e papas de sua época para que estes o
ajudassem nas três metas que estabelecera para a sua vida e que é a mesma meta alcançada
pelos sábios da obra: ir pelo mundo livrando os homens dos erros e conduzindo-os a Deus.
109
CONCLUSÃO
tecnológico como o modelo ideal para solucionar todos os problemas. Não se trata de um
desconhecimento, mas de uma rejeição do modelo cultural norte-americano, pois vários
seqüestradores do 11 de setembro moravam e estudavam no Ocidente.
Essa cisão Oriente/Ocidente remonta justamente à Idade Média, principalmente ao
período das Cruzadas, quando os contatos entre as duas culturas se intensificaram. Nesse
momento ocorria exatamente o inverso de hoje: a cultura ocidental era minoritária e perdia
espaço para a oriental.
Naquele tempo a situação era bem diferente. O Islã era a grande potência mundial
e a Europa a periferia cultural. Esta só passou a ganhar destaque e estender sua visão de
mundo ao resto do globo a partir do século XIX.
As influências se deram de forma desproporcional. Enquanto os estudantes
europeus liam avidamente textos escritos por árabes, estudavam em universidades orientais e
inspiravam-se nos avanços de sua medicina e costumes, estes foram bem pouco influenciados
pela cultura européia que julgavam inferior.
A Península Ibérica, em especial a Espanha muçulmana, pode ser apontada como
um exemplo de relativa paz e harmonia entre as três religiões monoteístas. Era permitido a
autoridades religiosas não-muçulmanas pregar nas mesquitas, desde que não se ofendesse o
profeta Maomé. Judeus e muçulmanos gozavam de muitas crenças comuns e compartilhavam
de muitos pontos convergentes, como a noção da interferência divina na História em favor de
seu povo.
O crescimento da intolerância cresceu com o advento da Modernidade, quando os
cristãos perceberam que sua posição não era hegemônica. Com a conquista destes territórios
pelos cristãos gradativamente a intolerância cresceu e foi dando lugar a uma contínua
repressão religiosa. Nesse sentido os cristãos ocidentais tiveram uma postura diferente dos
orientais. Enquanto estes mantiveram a liberdade religiosa nos locais que conquistaram, os
cristãos ocidentais logo demonstraram que não abrigariam comunidades e ideologias
religiosas diferentes com o mesmo respeito que muçulmanos e bizantinos.
Atualmente dois conflitos de cunho político-religioso ganharam grande vulto: os
conflitos árabe-israelenses e os conflitos entre radicais do Islã e a cultura ocidental. Estas
questões são complexas e já vem se desenvolvendo ao longo de séculos. Enfocada
brevemente, só resta aludir sobre a segunda questão. Sobre os judeus pode-se afirmar que
embora tenham sido um povo envolvido em conflitos com outras nações desde o seu
112
nascimento, eles passaram a ter o estigma da perseguição acentuado durante a Idade Média,
quando cristãos passaram a acusá-los de serem “os assassinos de Cristo”.
O atual Estado de Israel nasceu não só como um fruto de uma antiga aspiração de
unidade dos judeus, mas também da necessidade prática, perante o anti-semitismo
disseminado em todos os lugares onde procuravam abrigo e o perigo de extermínio
materializado pelo governo nazista durante a Segunda Guerra Mundial.
Este movimento nacionalista visando a formação de um Estado foi denominado
sionista. Foi iniciado ainda no século XIX pelo judeu vienense Theodor Herzl. Ele foi um dos
primeiros a vislumbrar na Palestina a pátria perdida pelos seus. Estimulou então a imigração
para aquele território. Nesse período, a região encontrava-se sob o domínio dos turcos
otomanos. Gradativamente os judeus para lá se deslocaram passando a dividir o espaço com
os árabes.
Mais tarde a região acabou tutelada pela Inglaterra que colaborou com os
interesses dos judeus em se estabelecerem como nação. Com o nazismo foram ocasionadas
novas ondas imigratórias. Os palestinos reagiram contra esse fenômeno realizando ataques
armados contra oficiais britânicos e judeus. Daí, passaram a se formar de ambos os lados
organizações militares que viriam se atacar mutuamente.
A Organização das Nações Unidas decidiu em 1947, dividir a Palestina em dois
estados: um judeu e um árabe, ficando Jerusalém sob a administração internacional, erro
capital, pois se tal medida veio a calhar para os judeus, era para os árabes, impensável, pois se
tratava da perda de seus territórios. A partir de então a guerra entre árabes e israelenses tem
sido contínua e até o presente momento parece não ter solução.
A ligação intrínseca entre religião e política, tanto entre árabes quanto entre os
israelenses, dificulta ainda mais o diálogo, conduzindo a um radicalismo que não é validado
por nenhuma das doutrinas. Com efeito, nos livros sagrados destas religiões, mesmo o
Alcorão que legitima a Guerra Santa, não estabelece que a religião deva ser utilizada para este
fim.
Podemos destacar que a obra de Llull está intrínseca aos acontecimentos da época
em que viveu: a perda da Terra Santa pelos cristãos, o avanço muçulmano tanto no campo
ideológico quanto geográfico, pelo menos no Oriente e o método escolástico no ensino
universitário. Também ressaltamos o grande poder de adaptação que o método luliano
alcançou. O filósofo maiorquino ampliou, simplificou e transformou a Arte com o objetivo de
113
que esta alcançasse o maior número de homens possível, atendendo assim seu principal
propósito, a conversão dos não-cristãos e a reforma moral espiritual e moral dos próprios
cristãos.
Todos os fatos frisados acima contribuíram e influenciaram a vida e a obra
lulianas. Assim, podemos traçar uma associação de cada um desses fatos aos objetivos que
Ramon buscou executar.
Seu objetivo foi a unidade cristã. Converter todos os homens ao Cristianismo. A
fundação de escolas para formar missionários, a criação da Arte e o martírio eram, na verdade,
os meios e não os fins; eram instrumentos para alcançar este objetivo. O pensamento
filosófico de Llull é bastante complexo, mas sua vida torna-se simples de compreender se
observamos que ela foi dedicada a um único propósito: a conversão das almas.
Os acontecimentos da época determinaram mudanças nos meios utilizados pelo
beato, mas não em sua finalidade. Assim é que primeiramente Ramon Llull busca ciência para
exercer sua tarefa. A primeira conseqüência disso é o desenvolvimento da Arte. Porém este
método ia de encontro a escolástica. Llull embasou seu método na autoridade divina e não nos
gregos. Isto não foi resultado de seus estudos, mas de uma experiência mística.
Mesmo assim, o filósofo tomou de empréstimo do ensino universitário o exercício
das disputas como forma de se alcançar a verdade. A diferença estava na forma de
argumentação. Também assimilou a principal questão debatida nos séculos XIII e XIV: as
relações entre razão e fé, sendo, contudo, inovador, ao afirmar que a fé poderia ser
demonstrada através da razão.
Desta maneira torna-se um defensor do diálogo e da conversão por meio da
palavra. Esta postura paulatinamente vai cedendo lugar a outra mais ofensiva, colocando-se a
favor das Cruzadas. Ora, este pensamento está ligado à perda da Terra Santa para os
muçulmanos e ao crescimento no número de adeptos do Islamismo. Os cristãos e inclusive o
perspicaz Ramon, perceberam a perda progressiva de seu espaço no mundo, o que provocou
um enrijecimento em relação aos não-cristãos. Mas é preciso destacar que o maiorquino
certamente desaprovava as carnificinas promovidas pelos cruzados.
A luta deveria enfocar a conversão e não a aniquilação do outro, ou seja,
converter, deveria ser, antes de tudo, um ato de amor. Tanto é que desenvolve todo um plano
de ação para a retomada dos territórios sagrados que enfatiza, sobretudo, quem e como
deveria pregar, explicitado com pormenores em seu Livro do Fim e no Livro da Aquisição da
114
Terra Santa. A cruzada espiritual e ideológica para o filósofo sobrepõe a cruzada militar e
torna-se sua causa e fim. Para tanto, era preciso que os infiéis tomassem consciência de seus
erros, o que ocorreria se aqueles responsáveis por sua conversão estivessem devidamente
preparados. E a principal arma intelectual a ser usada era a Arte que possui cinco finalidades:
1. Conhecer e amar a Deus
2. Buscar a virtude e rechaçar os vícios
3. Convencer os infiéis.
4. Resolver questões de toda a natureza utilizando a lógica e,
5. Adquirir conhecimento das outras ciências.
O Livro do Gentio e dos Três Sábios é a obra na qual Ramon Llull demonstra
como o seu método poderia ser aplicado na prática. Não podemos nos iludir achando que ele
está desprovido de preconceitos. Isto é inevitável, uma vez que o livro, obra escrita por um
cristão, expõe o ponto de vista que um cristão possuía do Islamismo e do Judaísmo. Mas foi
inovador, sobretudo, por configurar-se em uma tentativa de compreensão e respeito ao outro.
Ramon não só procurou conhecer a cultura dos outros (judeus e muçulmanos)
como reconheceu seus valores e costumes, chegando mesmo a absorver muitos deles, como
ficou evidenciado em algumas de suas obras, expostas neste texto, ou seja, por mais que
considerasse as demais doutrinas falsas e (ou) errôneas, culturalmente, não colocava a
sociedade em que vivia em um patamar de superioridade; pelo contrário, propunha inclusive,
reformas urgentes no seio da própria Cristandade.
Neste contexto, sem esquecer das mortes causadas por intolerâncias de matizes
não só religiosas, mas também étnicas, políticas, sexuais, econômicas e culturais, que ocorrem
atualmente O Livro do Gentio e dos Três Sábios traz uma grande atualidade. Apesar dos
séculos de distância que nos separam deste filósofo, o diálogo pensado pelo maiorquino se
efetivado, poderia ter contemporizado as tensões que se avolumaram no decorrer dos séculos,
atendendo, com isto, a aspiração contemporânea de encontrar um meio harmônico de
convivência entre Oriente e Ocidente.
Desde então, Ramon Llull percebia que a intolerância era uma força destruidora e
que a destruição do outro não fazia parte do projeto divino, independentemente da doutrina
escolhida. Quantas guerras, mortes e derramamento de sangue poderiam ser evitados se as
forças em litígio considerassem e refletissem apenas sobre o epílogo desta obra! Os homens
não devem e nem precisam acreditar nas mesmas idéias. A diversidade é benéfica quando
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multiplica o conhecimento, quando se torna base para novos aprendizados. Mas para que isso
aconteça é necessário que aprendamos a conviver e a respeitar nossas diferenças a exemplo da
disputa imaginária criada pelo filósofo, onde o judeu, o muçulmano e o cristão são
merecidamente chamados de sábios.
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FONTES:
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