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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO


CENTRO DE EDUCAÇÃO DE CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA
CURSO DE HISTÓRIA

CLEIDMAR AVELAR SANTOS

RAMON LLULL E O LIVRO DO GENTIO E DOS TRÊS SÁBIOS (1274-


1276): lançando as bases do diálogo inter-religioso

São Luís
2007
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CLEIDMAR AVELAR SANTOS

RAMON LLULL E O LIVRO DO GENTIO E DOS TRÊS SÁBIOS (1274-


1276): lançando as bases do diálogo inter-religioso

Monografia apresentada ao Curso de


História da Universidade Estadual do
Maranhão para obtenção do grau de
Licenciatura em História.

Orientadora: Profª Msª Maria de Lourdes


Lauande Lacroix

São Luís
2007
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CLEIDMAR AVELAR SANTOS

RAMON LLULL E O LIVRO DO GENTIO E DOS TRÊS SÁBIOS (1274-


1276): lançando as bases do diálogo inter-religioso

Monografia apresentada ao Curso de


História da Universidade Estadual do
Maranhão para obtenção do grau de
Licenciatura em História.

Orientadora: Prof. Msª Maria de Lourdes


Lauande Lacroix

Aprovada em: 04 / 12 /2007.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________
Profª Maria de Lourdes Lauande Lacroix (Orientadora)
Mestra em Filosofia da Educação
Fundação Getúlio Vargas (RJ)

________________________________________________
Profª Adriana Maria de Sousa Zierer
Doutora em História Medieval
Universidade Federal Fluminense (RJ)

________________________________________________
Prof. Mário Cella
Prof. Adjunto do Departamento de Filosofia
Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
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Dedico este trabalho a:

Deus, fonte de toda inspiração e de todos


os dons, que me conferiu capacidade e
energia para desenvolver esta pesquisa.

Cleonice Berta, minha mãe, melhor amiga


e meu grande exemplo de vida, pela sua
força, coragem, dignidade e caráter,
sempre ao meu lado em todos os
momentos me incentivando a continuar e
a crescer.

Tetê, minha querida “irmã de barriga


diferente”, amiga fiel e leal com quem
compartilho dificuldades e alegrias.
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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos professores: Lourdinha que aceitou gentilmente me orientar, ajudando


em todo o necessário no desenvolvimento deste trabalho; Adriana Zierer, que me auxiliou nos
primeiros passos da pesquisa e me fez descobrir o gosto pela Idade Média; Ricardo da Costa,
que através do seu site, compartilha e divulga as pesquisas sobre temas medievais; Esteve
Jaulent, por incentivar os pesquisadores da obra luliana.
Deixo meu agradecimento especial a todos os amigos, companheiros leais que não me
ajudaram somente nesta pesquisa, mas compartilham da minha vida, trazendo alegria à minha
existência, Silma Mendes, Sílvio Mattos, Marcelo Costa, Joise Amorim, Renato Marques,
Maria do Carmo Soares, Carmelita Leitão e a muitos outros que são luzes no meu caminho e
que devido ao espaço, não pude citar aqui, mas ocupam um lugar especial em meu coração.
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Ah, que grande bem aventurança seria se através


destas árvores todos os homens que existem
pudessem estar debaixo de uma mesma Lei e de
uma só crença!; que não houvesse nem rancor
nem má vontade neles, enquanto hoje se odeiam
uns aos outros pela diversidade e pela
contrariedade de crenças e de seitas! E que assim
como há um só Deus, Pai, Criador e Senhor de
tudo quanto existe, assim também todos os povos
existentes se unissem para ser um povo só no
caminho da salvação, e todos juntos tivessem
uma só fé, uma só Lei e dessem louvor e glória a
nosso Senhor Deus!

Ramon Llull
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RESUMO

O diálogo interreligioso. Esta pesquisa versa sobre o filósofo Ramon Llull, inserido no
contexto dos séculos XIII e XIV, que foi uma época de grande transformação. Neste período
expandiram-se as corporações de ofício, surgiram as universidades, houve um revigoramento
comercial e urbano e uma nova espiritualidade se esboçou, evidenciada pela formação de
novas ordens religiosas. Ramon Llull dedicou sua vida à conversão de não-cristãos e para este
propósito criou um método próprio, a Arte. Tal sistema consistia na argumentação baseada na
razão e na lógica e dispensava o uso de autoridades, pedra angular da educação medieval,
além de conciliar razão e fé, objetivo perseguido por praticamente todos os teólogos de sua
época. No Livro do Gentio e dos Três Sábios, Llull demonstra como esse método pode ser
aplicado de forma prática, criando uma disputa imaginária entre três sábios, um judeu, um
cristão e um muçulmano, na qual cada um tentou provar que sua fé era a verdadeira. Esta obra
na qual paira o respeito mútuo, mostra o pensamento diferencial deste autor, que embora
tivesse como meta a unificação de todos os homens no Cristianismo, exaltava a tolerância e o
debate em detrimento da força no convencimento do outro, visando o alcance da verdade e da
glória de Deus.

Palavras-chave: Arte. Monoteísmo. Disputa. Tolerância. Conversão


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ABSTRACT

Interreligious dialogue. This paper deals with the philosopher Ramon Llull introduced on XIII
and XIV centuries context that was a time of great transformation. In that epoch, occupation
corporations were expanded, the universities up-rose, there was a commercial and urban
increase and a new spirituality started to be delineated by a new religious order formation.
Ramon Llull had his life dedicated to the no-Christian conversion. He created this own
method – The Art – for this purpose. This system consisted in the argument based on reason
and logic without the authorities’ power, the medieval education main stone. In his The Pagan
and the three Wise Men Book, Llull showed how this method can be applied in a practical
way, through a dispute among three wise men a Judian, a Christian and a Mussulman in wich
each one tried to prove that his faith was the true. In this literary composition predominated
the natural respect and it shows this author’s differential thought that in spite of he had as goal
the all men unification around the Christianism, he praised the tolerance as well the discussion
in detriment of someone’s conviction power to reach the God’s truth and glory.

Keywords: Art. Monotheism. Dispute. Tolerance. Conversion


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SUMÁRIO

LISTA DE TABELAS ………………………………………………………............09


INTRODUÇÃO ..........................................................................................................10
1. AS INFLUÊNCIAS FILOSÓFICAS NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO
LULIANO ...................................................................................................................21
2.1 Convergências entre o método dialético universitário parisiense e a
argumentação doutrinária de Ramon Llull .............................................................28
2.2 Os conceitos aristotélicos utilizados na obra luliana ...............................................44
2. RAMON LLULL – SEU CONTEXTO HISTÓRICO.............................................52
3.1 Conversão, pregação e desenvolvimento da Arte. ...................................................55
3.2 A obra luliana e sua propagação ..............................................................................75
3. O DIÁLOGO INTERRELIGIOSO NO LIVRO DO GENTIO E DOS TRÊS
SÁBIOS: UMA APLICAÇÃO DA ARTE ...............................................................76
4.1 O debate ideal: a disputa como forma de alcançar a verdade e a unidade ..........83
CONCLUSÃO ..........................................................................................................100
REFERÊNCIAS .........................................................................................................107
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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Virtudes e Vícios segundo o Cristianismo.................................................84

Tabela 2 - As diferentes visões dos judeus sobre o Julgamento Final e o Além.......88

Tabela 3 - Conexão entre os vícios e os sentidos humanos.......................................89


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INTRODUÇÃO

A História busca desvendar o passado, mas nunca deve perder de vista a sua
relação com o presente. No mundo atual persistem diversas formas de intolerância e
preconceitos. Vale a pena buscar as origens de alguns deles. A intolerância com os hereges,
judeus, muçulmanos, homossexuais foi uma das características da sociedade européia
medieval. Porém esse período da História ao qual alguns autores referem-se pejorativa e
erroneamente como “Idade das Trevas” não foi somente um tempo de intolerância e
ignorância.
Atualmente a preocupação com a paz mundial tem aumentado. Alguns fatores que
dificultam essa busca são a intolerância religiosa, a não-aceitação e o desrespeito ao outro.
Exemplo disso são as inúmeras guerras no Oriente Médio, que embora motivadas também por
outros fatores, não deixam de ser fomentadas por questões religiosas. Essas guerras, de
tempos em tempos ganham novos personagens e agravantes, como a competição global pelo
petróleo e a política norte-americana de combate ao terrorismo. Qual a raiz desses conflitos?
Tais conflitos iniciaram-se durante o período medieval. Desde então, judeus,
cristãos e muçulmanos lutavam pela posse de Jerusalém, considerada uma cidade sagrada e o
centro das três religiões monoteístas. É importante destacar que desde o surgimento desses
conflitos, já havia mentes que pensavam na busca de uma unidade e no diálogo. O recorte
cronológico espacial do presente trabalho é a Europa, mais precisamente a Península Ibérica
nos séculos XIII e XIV, onde este desejo floresceu nas obras do filósofo maiorquino Ramon
Llull. Ele não foi o primeiro, nem o único a ter esta proposta, mas foi o primeiro a tentar este
fim de uma forma diferenciada, baseada na racionalidade, ainda que tenha assimilado muitos
preconceitos difundidos pela cristandade em relação às demais religiões
O homem medieval possuía uma visão dualista do mundo. As idéias de oposição
de forças estavam presentes em todos os elementos formadores da ideologia cristã. A alma do
homem era palco da luta do Bem contra o Mal, do Paraíso contra o Inferno, sendo seu destino
determinado pela adesão a Deus ou ao Diabo. A Igreja acaba encarnando uma visão
maniqueísta segundo a qual nas palavras de Nogueira (2000, p. 92) é impossível “[...] pensar
no bem sem pensar no mal”.
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Apesar da grande diversidade de tipos, a Idade Média apresenta um traço comum


a todos os homens: a religiosidade. A salvação era a maior meta que o homem medieval
buscava alcançar em sua vida. Para isso, estava disposto a todos os tipos de sacrifício,
inclusive tornar o seu corpo uma forma de penitência, mortificando-o.
Essas mortificações se davam das mais diversas maneiras: jejuando, abstendo-se
do vinho, do sexo, da busca por poderes e riquezas, inclusive a riqueza era vista como um
pecado relativo à vaidade, pois um homem não deveria almejar descer nem subir de condição
social; a hierarquia existente era “da vontade de Deus”, não devendo ser por isso modificada.
Sobre isso diz Vainfas (1992, p. 17): “Mas não bastava privar-se do sono ou da comida, não
bastava enfraquecer o corpo: era preciso flagelá-lo, torturá-lo, mortificá-lo”. Entende-se que
assim como havia uma hierarquia celeste, também deveria haver uma hierarquia terrestre que
garantisse o bom e harmonioso funcionamento da sociedade.
Esse pensamento deriva do pressuposto de que era através do corpo que a
salvação era atingida ou perdida. O corpo representava uma espécie de empecilho para que o
homem conseguisse alcançar a glória divina porque dele advinha as sensações ligadas aos
pecados capitais que são: gula, preguiça, luxúria, ira, cobiça, avareza e orgulho. Esses vícios
eram considerados o centro de todo o mal, por contraporem-se às sete virtudes que o cristão
deveria cultivar, sendo combatidos incessantemente através dos sermões de membros do
clero, preocupação constante daqueles que evangelizavam e exortavam os cristãos. Para os
medievos “[...] os vícios são os portadores do pecado”. (LE GOFF, 1989, p. 25).
O trabalho dentro deste contexto era visto de forma negativa por ser identificado
com a noção de castigo, tão presente na Cristandade. Era uma forma de purificação e
penitência, resultado da desobediência do primeiro homem. Essa visão polarizada de forças
opostas se dava em todos os âmbitos. O homem era considerado como uma obra de Deus já
que é a sua “imagem e semelhança”; oscilava entre aquele pronto a fazer a vontade de Deus e
o outro pronto a se entregar ao pecado. A imagem de Cristo como ser divino, mas antes de
tudo como humano, começa lentamente a substituir a imagem do Deus forte e vingativo do
Antigo Testamento. (SANTOS, 2007)
O cuidado para não pecar era tanto que esta preocupação se tornou uma idéia fixa
para o homem da época, que desejava muitas vezes o Paraíso menos pela sua glória, do que
pelo temor de padecer os males do Inferno. Esse temor é confirmado através da pintura,
literatura e demais manifestações artísticas e culturais do período, que abordaram quase que
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exclusivamente a temática religiosa, especialmente no tocante às representações do mundo


pós-morte, o Além desconhecido. Aliás, o mundo invisível e o visível não possuíam
fronteiras. A mente do medievo era povoada por monstros, fantasmas, bruxas e toda a sorte de
elementos mágicos e sobrenaturais.
Essa preocupação com o pecado, constante no pensamento deste homem, regia
todo o código de moral e conduta e o medo do que viria depois da morte, pois, para os
medievos o outro mundo que viria, Paraíso ou Inferno, era uma continuação e uma
conseqüência das atitudes praticadas no mundo terrestre. Sabemos que a crença ou a
descrença no Além modifica o comportamento humano.
Por esse motivo, a maneira como iria se dar a morte era tão temida pelos
medievos. A morte rápida ou abrupta impediria o homem de se preparar de forma conveniente
a alcançar a salvação. Se afastar dos vícios, porém, não era uma tarefa fácil já que o pecado
não só existe “[...] quando o homem ama mais outras coisas que as de Deus, invertendo a
ordem para a qual foi criado” (COSTA, 2005), mas também estava em toda a parte “[...]
tentando e corrompendo, explorando cada fraqueza e desejo” (NOGUEIRA, 2000, p. 41).
Assim a luta humana não era somente uma luta contra o mal, mas uma luta contra si mesmo.
Pensavam que o Diabo, astuto e malicioso, levava o homem a pecar, enganando-o,
dando-lhe a ilusão do prazer momentâneo. Ele assumia diversos aspectos, tendo o poder não
só de assumir a forma humana como também materializar-se em objetos, comidas ou
quaisquer outros elementos que pudessem conduzir a humanidade a pecar. O homem estava
envolto em suas teias, devendo estar vigilante permanentemente, pois qualquer deslize
poderia implicar em sua condenação eterna. Por isso, especialmente aqueles mais puros e
retos e também os integrantes do clero deveriam se resguardar, pois o Inimigo costumava
tentar por excelência aqueles que não pecavam.
A simbologia, traço forte do período em questão, era a forma de explicar o mundo
e seus elementos constitutivos, já que o mundo terreno, visível era um “reflexo distorcido” do
mundo invisível. Os animais, as pessoas, os números, as imagens, as cores e os
acontecimentos deste mundo, escondiam mensagens através das quais era desvendado o
mundo celestial.
Em uma sociedade impregnada pela religião ficava à sua margem um tipo de
homem: aquele que não crê. A grande preocupação com a conversão dos infiéis se deu
quando especialmente a partir do século XIII a ideologia cristã perdia seu espaço para as
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minorias. O esquema trifuncional do bispo Adalberon de Laon (séc XII) simplificava a


complexidade de tipos humanos presentes na sociedade medieval, mas dava uma noção de
como era distribuído o poder naquele período. Aqueles que possuíam a função de aproximar
os homens de Deus ocupavam o topo da pirâmide, sendo seguidos por aqueles a quem cabia a
defesa da sociedade e finalmente os responsáveis pela sua manutenção.
O período entre os anos 1000 a 1033 foi marcado por uma angústia e por um
sentimento de espera, pois se acreditava que a segunda vinda de Cristo ao mundo se daria
1000 anos após o seu nascimento ou sua morte. As pessoas, nessa atmosfera, buscavam estar
preparadas, vendo sinais e presságios desse acontecimento em todos os fenômenos e
transformações que estavam acontecendo.
Também a pregação da vinda do Anticristo veio enriquecer este imaginário de
expectativa. O Anticristo viria para atrapalhar o projeto divino de salvação traçado para os
homens. Seria uma figura popular que enganaria muitas pessoas e viria como “um lobo em
pele de cordeiro”, aparentemente como um bem. Essa fase foi marcada pela busca da
santidade, visando-se a preparação da alma para o encontro com o Criador.
Passados os anos de risco, seguiu-se um período de otimismo, de prosperidade e
de revitalização das cidades, de expansão agrícola. O mundo europeu sentia-se novamente
com vida e respirava com novo fôlego. A partir do ano 1000 foram ocorrendo lentas
modificações no pensamento medieval, acenando em direção ao humanismo. O homem
começava a notar que fazia parte do mundo, não podendo dele esquivar-se. Vislumbrava-se
uma nova classe, a burguesia; buscava-se o conhecimento e a tentativa de conciliação entre
razão e fé e “a ascensão das cidades foi um dos traços mais importantes do período central da
Idade Média”. (RICHARDS, 1993, p. 16).
As cidades passaram cada vez mais a significar liberdade, uma vez que na urbe, a
rigidez das normas era quebrada por meio das assembléias representativas e da mobilidade
social, ocorrendo em maior escala do que no campo. A educação primava pela dialética que
encontrou sua expressão máxima nas universidades.
Nesse momento começou a ocorrer o processo de transformação dos Estados em
futuras monarquias nacionais. Pouco a pouco o sentimento religioso passava a ser substituído
pelo sentimento nacional nascente. De acordo com Richards (1993, p.16):
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No século XI, os ingredientes necessários para a emergência de nações-


Estados já estavam presentes: a estabilização da Europa e a criação de
fronteiras e limites mais definidos, a introdução de instituições políticas
permanentes particularmente para se ocupar das finanças e da justiça; e,
talvez o mais importante, o começo de um deslocamento da lealdade das
comunidades locais e das organizações religiosas para a monarquia como
símbolo da nação.

Ao invés da velha ideologia de harmonização entre o poder temporal e espiritual,


vieram à tona, as contradições e os choques entre eles. A Questão das Investiduras
desencadeou uma luta violenta entre o poder real e o papado. Paris ascende como centro
cultural da época, cidade na qual se davam as grandes discussões.
Houve uma renovação espiritual: casas monásticas, novas regras, formas de vida
religiosa, peregrinações cujo ponto culminante foi o movimento cruzadístico e a idéia de
Guerra Santa. É importante lembrar que a noção de “guerra santa” nasceu com as Cruzadas.
Apesar dos muitos séculos que separam o mundo contemporâneo da Europa medieval, a idéia
da fé como justificativa para aniquilar os inimigos, continua a mesma de outrora.
As Cruzadas foram também uma válvula de escape para os desequilíbrios do
sistema feudal que entrava em declínio, o que pode ser atestado ao atentarmos para os
principais tipos humanos que participaram das Cruzadas, essencialmente os marginalizados da
sociedade feudal: os filhos mais novos de camponeses e nobres desprovidos de terras; os
criminosos e pessoas que buscavam indulgência para os seus pecados e comerciantes que
visavam expandirem seus lucros. Dessa maneira, a sociedade feudal expurgou-se de seus
elementos mais problemáticos.
O aludido empreendimento religioso acelerou a desintegração do sistema feudal,
provocou um maior afastamento entre cristãos do Oriente e do Ocidente, favoreceu o
comércio e as atividades mercantis, impulsionou o surgimento das ordens militares e
estabeleceu um câmbio cultural entre cruzados e árabes, embora notadamente seja inegável
que os primeiros sofreram muito mais influência destes últimos.
As Cruzadas são produtos diretos do contratualismo, religiosidade e belicismo e
possuíam um estatuto penitencial. Aqueles que participavam, acreditavam que receberiam
indulgência pelos seus pecados. Os homens tornavam-se assim soldados a serviço de Deus.
Porém, deve-se pontuar que nem todos os cristãos apoiaram as Cruzadas. Para os bizantinos e
mesmo entre alguns dos católicos romanos foram consideradas como abomináveis, jamais
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podendo ser resultado da vontade divina. Para os seus defensores eram feitas por Deus e para
Deus. Segundo Franco Jr (1999, p. 28):

[...] a elaboração efetiva da idéia de guerra santa se consumou com São


Bernardo (1091-1153). Para ele, a Cruzada, mais que um fato político e
militar, era uma liturgia, devendo por isso estar aberta a todos e não apenas
a uma elite. Pelo contrário, dela deveriam participar de preferência os maus
cristãos, os grandes pecadores. Uma atividade tão purificadora deveria ser
considerada santa. Como a Cruzada iria “vingar a honra ultrajada de Jesus”,
ela transformava a atividade guerreira de algo condenável numa virtude,
quase em santidade. O verdadeiro cruzado não lutaria apenas com a espada,
mas também com a fé, daí o combate terminar ou com a vitória militar ou
com a glória do martírio.

Por isso, na Europa medieval os conceitos de Paz de Deus e Trégua de Deus não
eram contraditórios em relação ao de guerra santa, pelo contrário, eles complementavam-se. A
guerra era condição de paz, já que seria proporcionadora da unidade.
Os séculos XIII e XIV foram repletos de mudanças estruturais; período de
expressão e de busca de novas liberdades por parte dos indivíduos, ainda que esbarrando no
enrijecimento das normas impostas pela Igreja. A sociedade medieval foi uma sociedade de
extremos, de opostos que a todo momento colidiam.
Com a redescoberta dos escritos aristotélicos e do Código de Justiniano, ocorreu
a promoção da reunião, organização e interpretação do conhecimento antigo. Os legistas
passaram a integrar o corpo burocrático estatal nas monarquias nacionais emergentes,
inclusive também no corpo secular, por meio do estabelecimento dos códigos canônicos
relativos à Igreja.
Ocorreu uma sensível modificação nos códigos de exercício, instrumentalização e
aplicação da justiça. O ordálio foi substituído pelas testemunhas nos processos e as punições
foram uniformizadas.
Estes séculos também podem ser considerados como séculos propícios a uma
maior individualidade, apesar da manutenção do espírito medieval de coletividade e
contratualismo. Esse individualismo manifestou-se na paulatina substituição do poema épico
pelo romance, pela dialética em detrimento da aceitação totalmente passiva das autoridades, a
procura da satisfação pessoal e espiritual, um desejo de autoconhecimento; “conhece-te a ti
mesmo”, foi a ética que passou a vigorar na mentalidade, levando o homem a uma auto-
análise.
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Esse individualismo fez com que a idéia de vassalo começasse a ceder lugar à de
súdito, ou seja, não só obedecer cegamente a um superior injusto, mas em estabelecer uma
troca mútua de direitos e deveres reivindicando assim uma maior igualdade entre as partes da
relação. Mesmo assim, as instituições coletivas continuaram a gozar de grande prestígio:
corporações, confrarias, ordens monásticas e militares, comunas e universidades, “[...] mas na
maioria destas organizações a condição de membro era obtida através da livre escolha
individual, e, pela primeira vez, havia uma ampla variedade de alternativas entre as quais
escolher”. (RICHARDS, 1993, p. 19).
O sentimento de individualismo religioso teve como conseqüência a explosão de
heresias. Ser herege era tornar-se um criminoso, que se colocava contra a Igreja e suas
normas, um traidor que ousava interpretar as Escrituras de forma autônoma. Eram perigosas
principalmente por colocar em xeque o papel da Igreja de mediadora entre Deus e os homens.
Mudanças significativas também foram introduzidas pelo Concílio Lateranense de
1215, visando a moralização do clero e um maior controle sobre os fiéis. A confissão deixou
de ser pública, passando a ser individual. Dessa forma, a penitência passou a ser negociada e
cumprida de forma restrita. O interesse pela intimidade e a intenção dos fiéis aumentou.
Como assinala Vainfas houve uma maior necessidade do controle no âmbito mental e uma
intenção acabava por se configurar em algo tão grave quanto o próprio pecado em si.
(VAINFAS, 1992).
Confissão e comunhão deviam ser praticadas, no mínimo, anualmente pelos
cristãos. Maior controle sobre os casamentos clandestinos e o registro de proclamas nos
casamentos oficializados, obrigatoriedade de licença papal e episcopal para pregar e lecionar.
Regulamentação de venerações de santos e relíquias. Proibição para o clero em participar de
jograis, jogos de azar, caça, beber ou tomar parte em qualquer atividade que manchasse sua
reputação.
Empreendimento de luta contra as heresias, produzindo manuais detalhados sobre
como identificá-las e combatê-las. Os suspeitos deveriam ser excomungados e terem seus
bens confiscados. Qualquer suspeita deveria ser imediatamente notificada. Maior controle
sobre o surgimento de novas ordens religiosas, pois muitas vezes estas se situavam na
fronteira entre o corpo da Igreja e a heresia e maior segregação em relação às minorias:
muçulmanos, judeus, leprosos, homossexuais, hereges e prostitutas. Isso ficou expresso na
adoção de uma vestimenta distintiva “a marca da infâmia” e resultou em um aumento da
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intolerância ao mesmo tempo em que, por outro lado, o clero regular apelava por outro tipo de
conversão, pautada no convencimento do outro pela razão.
Compartilhando dessa posição estavam São Francisco de Assis e Ramon Llull.
Este foi um místico que teve uma experiência com Deus através de uma visão de Jesus Cristo
crucificado durante cinco dias. Após esse acontecimento, mudou radicalmente seu estilo de
vida. Foi um laico, mas colocou sua vida a serviço de Deus e do seu propósito evangelizador.
De personalidade singular, conseguiu muitas vezes sintetizar estilos diferentes de
vida. Esteve sempre ligado às ordens mendicantes e “embora tenha pertencido a uma cultura
minoritária, desenvolveu um sistema de pensamento universalista.”
(COSTA; PASTOR, 2004).
Desenvolveu um conjunto de idéias, a Arte, uma filosofia através da qual elaborou
um método lógico com muitas aplicações práticas. No entanto o que mais nos interessa aqui
são as motivações de sua obra e para quem ela se dirigiu. Llull, assim como os cristãos da sua
época, sonhava com a unidade em torno do Cristianismo. Por isso a sua obra era voltada para
todos, mas principalmente para aqueles considerados infiéis (não-cristãos)1. Llull acreditava
ser possível converter judeus e muçulmanos através da razão em detrimento do uso da força.
Essas razões não deveriam se basear nas autoridades, mas em argumentos irrefutáveis.
A Idade Média é apontada como um período de intolerância ideológica e religiosa
onde as pessoas tinham medo de expressar suas idéias e onde seu estudo era algo pernicioso,
muitas vezes ignorando o fato de que houve um diálogo entre as religiões e um tipo de
educação que primava pela dialética e pelo debate na construção do conhecimento, inclusive
nas universidades, um dos maiores legados que este período nos deixou. As práticas
repressivas só passaram a vigorar quando a ideologia dominante viu que estava perdendo
espaço nas transformações que vinham se operando nos campos econômico e político.
O diálogo inter-religioso da época tinha uma conotação diferente da atual. Para
nós, ele implica em um respeito mútuo às diferenças. Ramon Llull buscava o diálogo como
forma de convencer judeus e muçulmanos que a doutrina cristã era a correta. Portanto, o
estudo de sua vida e obra trazem à tona questões atuais. Além de o tema abordado configurar-
se em uma preocupação mundial no presente, seu estudo é possibilitado pela grande
abundância de fontes que este filósofo nos legou. Toda a sua vida foi dedicada ao sonho de

1
Ramon Llull dirige-se a judeus, muçulmanos e hereges como infiéis. Sempre que o termo infiéis for utilizado
neste trabalho, será levando em consideração a expressão utilizada pelo autor.
27

unidade em torno de uma fé e ele não mediu esforços para concretizá-lo, realizando viagens
para propagar sua mensagem, escrevendo incansavelmente até sua morte, livros de exortação.
Este período foi caracterizado por uma intensa religiosidade que impregnou o
pensamento medieval, influenciando os homens em todas as suas atitudes cotidianas, desde o
seu nascimento até a morte. Como homem de seu tempo, Ramon Llull estava imbuído da
ideologia cristã, também por isso seu estudo é esclarecedor. Guardadas as devidas
peculiaridades, os seus escritos revelam traços da cultura, da ética e da moral medievais. Por
meio de suas obras é possível uma maior compreensão e aprofundamento dos valores
cultivados na época.
Além de sua importância histórica, Llull possui grande caráter filosófico, tendo
uma produção tão vasta, a ponto de chegarem até nós, centenas de seus escritos que abordam
problemas sociais, educação infantil, virtudes que os bons cristãos deveriam cultivar, diálogo
inter-religioso, entre outros, formando uma rica e diversificada literatura.
Este trabalho está dividido em três capítulos assim dispostos: na primeira parte
intitulada As influências filosóficas no pensamento luliano, traçaremos um pequeno esboço
sobre o pensamento desenvolvido pelos homens do período, abordando especialmente o
surgimento e a organização da Universidade de Paris. A escolha desta instituição está
relacionada a dois fatores: primeiro, por ser a Universidade mais ligada à Sé, gozando de
imenso prestígio na Cristandade. Segundo, porque devido a isso, Llull lá tentou difundir sua
Arte. É certo que o filósofo fez pelo menos três viagens a Paris com o intuito de que o seu
método fosse ensinado na Universidade. Estava a par das novas doutrinas filosóficas que
estavam em voga, especialmente o averroísmo, ao qual se opunha ferozmente, tratando-o
como um perigo para a unidade cristã.
Na Universidade parisiense as disputas eram mais acirradas e onde floresciam
muitas questões concernentes às relações entre razão e fé. Ramon foi um autodidata, não
possuindo formação acadêmica. Seus estudos, porém, fizeram com que este pudesse estar não
só em pé de igualdade, mas em uma posição privilegiada, frente aos universitários, uma vez
que conhecia profundamente a língua e a cultura árabes.
Esta universidade foi escolhida devido ao seu sistema de aprendizado, a
Escolástica, baseado essencialmente nos comentários das obras gregas para evidenciar a
novidade do método luliano, que recusava a argumentação alicerçada em autoridades. Neste
capítulo analiso ainda a importância que as obras de Aristóteles tinham para os filósofos
28

universitários dos séculos XIII e XIV. Embora Ramon Llull não utilizasse a leitura do
Estagirita para provar o que dizia, o maiorquino absorveu muito de seu pensamento,
notadamente em relação aos princípios éticos e metafísicos.
No segundo capítulo Ramon Llull – seu contexto histórico serão expostos alguns
dados biográficos do beato. Isto se faz necessário, pois seus objetivos e escritos estão
intrínsecos aos conhecimentos de sua vida. Com efeito, é indispensável conhecer
determinados episódios de sua existência como a visão de Jesus Cristo crucificado em seu
quarto e a iluminação no Monte Randa, para compreender sua conversão e seu método,
respectivamente. São enfocadas as viagens que o filósofo empreendeu e a forma como ele
buscou atingir as três metas de sua vida: edificar escolas que ensinassem as línguas árabes,
para formar missionários que pregassem aos infiéis, converter os não-cristãos ao Cristianismo
e doar sua vida pela causa de Cristo.
Verificaremos os diferentes meios pelos quais Llull se utilizou para alcançar estes
fins, seus fracassos e sucessos, bem como suas relações com as autoridades da época (reis,
papas, príncipes) e sua participação e posição diante dos acontecimentos de vulto do período
em que viveu.
O último capítulo O diálogo inter-religioso no Livro do Gentio e dos Três Sábios:
uma aplicação da Arte conterá uma reflexão sobre a obra, o contexto e a forma como foi
escrita, com uma análise das concepções do autor acerca das religiões em questão e sua
proposta de diálogo, que utiliza a Arte como método. O primeiro capítulo trata-se da
exposição do método contendo suas condições e possibilidades combinatórias. Os outros
capítulos nada mais são do que a própria aplicação do método.
Nesta parte será ressaltada a visão que Ramon Llull tinha sobre judeus e
muçulmanos, embora nesta obra ele assuma um tom mais respeitoso em relação a estes do que
em seus demais escritos. Assim, é possível entrever não só a profundidade do conhecimento
que o maiorquino tinha acerca das religiões monoteístas, como também as diferenças e
semelhanças entre a forma luliana e de seus contemporâneos de ver os não-cristãos.
A obra configura-se em um tratado apologético, mas não nos moldes dos tratados
de exortação da época, a exemplo dos de seu amigo Ramon de Penyafort, pois os sábios judeu
e muçulmano não só tiveram o mesmo espaço que o sábio cristão, como foram tratados de
forma honrosa e amigável. O escrito faz parte de todo um conjunto de obras com o seu
principal propósito: a unificação de todos os homens em torno da fé cristã.
29

Abordaremos O Livro do Gentio e dos Três Sábios, percebendo como Ramon


Llull abordava a questão do diálogo inter-religioso e o seu pensamento acerca deste tema,
identificando os argumentos doutrinários utilizados pelo autor na conversão dos infiéis,
verificando semelhanças e diferenças entre o modo de pensar luliano e de seus
contemporâneos, destacando sua singularidade na inovação do método que utilizou.
A metodologia adotada foi baseada na leitura e análise textual das seguintes fontes
primárias: O Livro do Gentio e dos Três Sábios (1274-1276), Vida Coetânea (1311), A
Disputa entre Pedro, o clérigo, e Ramon, o fantástico (1311), O Livro dos Anjos (1274-1283)
e O Livro da Ordem de Cavalaria (c. 1279-1283). A obra de Llull possui uma finalidade – a
conversão dos infiéis – e é preferível que seus escritos sejam analisados em conjunto. Seus
escritos se interligam e ele utiliza o mesmo método apologético em todos. Os conceitos
utilizados também são comuns, o que faz com que a leitura de um livro, facilite a
compreensão do outro, por meio do método comparativo.
O principal objeto da pesquisa, porém será O Livro do Gentio e dos Três Sábios
(1274-1276), buscando compreender como o autor via a questão da tolerância religiosa, bem
como as influências culturais e religiosas recebidas e como foi feita a apreensão e a
interiorização desses valores. A pesquisa se valerá também de bibliografia e apoio de artigos e
periódicos que colaborem na contextualização dos séculos XIII e XIV e na elucidação do
pensamento luliano.
30

1. AS INFLUÊNCIAS FILOSÓFICAS NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO


LULIANO

Durante muito tempo o período medieval foi injustiçado pelos historiadores.


Comumente foi apontado como um tempo de mediação e reprodução das idéias dos antigos.
Segundo essa visão, o mérito dos medievos teria sido apenas o de conservar a herança greco-
romana sem nada acrescentar a ela.
A afirmação dessa visão da Idade Média é distorcida, na medida em que
identificou o modo de produção e as relações feudais como retrógrados e inibidores do
progresso. Atualmente os estudos historiográficos vêm resgatando o verdadeiro sentido desse
período histórico, suas contribuições e percalços, deixando de lado a forma preconceituosa
que atribui e associa a Idade Média com um retrocesso em todos os níveis.
Uma importante observação a ser feita é a que diz respeito ao conhecimento
antigo. Ele não chegou às mãos dos medievos de forma sistematizada. É preciso atentar para o
fato de que o pensamento greco-romano era tão heterogêneo quanto disperso. Além disso, não
era puro e fechado em si mesmo. Ele recebeu diversas influências orientais e adaptou-se
muitas vezes às idéias dos contextos nos quais floresceu, especialmente com a expansão
macedônica.

Não se limitava porém, a atividade intelectual, a copiar e venerar os textos; a


Idade Média não foi uma época de esterilidade na produção, antes procurou
enriquecer a herança recebida e adaptá-la às suas necessidades e
preocupações. As traduções e os comentários foram, sem dúvida, a grande
marca desse período. (INÁCIO; LUCA, 1994, p. 35)

No final do período antigo, a filosofia começa a assumir uma nova postura que a
aproxima da ética e da religião “[...] abandonando o espírito de investigação que a
caracterizara." (INÁCIO; LUCA, 1994, p. 15). Os neoplatônicos fornecem uma espécie de
síntese do pensamento grego: a distinção do ser humano em três partes constitutivas (espírito,
alma e corpo) e um retorno do homem à unidade com sua fonte original e superior. Aqui
também temos a visão presente no Livro dos Anjos, na qual seu autor atribui ao anjo três
dimensões ou potências que são a memória, a inteligência e a vontade. Assim como no ser
humano, espírito, alma e corpo são intrínsecas, no anjo essas potências são indissociáveis e
completam-se em perfeita harmonia. De acordo com o autor, o corpo é um empecilho no
31

conhecimento da verdade. Por isso, os anjos são mais perfeitos do que o homem, já que não
possuem o corpo para dificultar seu conhecimento sobre as verdades eternas. (RAMON
LLULL, 2002).
Esses pensadores irão oferecer instrumentos importantes, posteriormente
utilizados pela doutrina cristã. É possível afirmar que no início do período medieval a
filosofia tendeu ao mundo metafísico, deixando de lado o conhecimento do próprio homem e
o universo que havia sido patente durante toda a Antiguidade. O próprio centro do
pensamento cristão dispensava o auxílio filosófico, uma vez que sua meta advinha de fontes
sobrenaturais e seu objetivo último era a salvação e não propriamente a reflexão. Com relação
ao legado antigo, os pensadores cristãos colocaram-se de duas formas: rejeitando-o ou
tentando adaptá-lo à doutrina nascente.
Desse ponto inicia-se um longo processo desenvolvido durante a Idade Média: a
adequação do pensamento racional helênico às verdades evangélicas cristãs, o que resultará
em uma nova filosofia que tem uma relação um tanto conturbada com a fé, ora contradizendo-
a, ora lhe fornecendo bases explicativas.
Ao conjunto da filosofia cristã damos a denominação Patrística, ou seja, relativa
aos primeiros padres da Igreja. Um dos nomes mais importantes dessa filosofia foi Santo
Agostinho. Ele nasceu em uma colônia romana da África, Numídia em 354. Passou grande
parte de sua vida indiferente às questões religiosas. Foi professor de retórica e abraçou o
maniqueísmo como filosofia.
Sua mudança de pensamento deu-se quando teve contato com os sermões de
Ambrósio. Passa então a nutrir dúvidas em seu espírito a respeito de qual caminho deveria
seguir. Esse conflito psicológico residia em ter que optar por uma vida mundana ou espiritual.
Recebe então uma revelação através da qual abraça o Cristianismo. Como muitos dos santos
medievais, Agostinho levava uma vida indiferente à religião até certa altura de sua existência,
mais ligada a questões mundanas quando então recebeu uma espécie de “chamado” para
mudar de vida, dedicando-se às obras divinas. (JERPHAGNON, 2004). Assim também
ocorreu com São Francisco de Assis e o próprio filósofo Ramon Llull cuja análise é o objetivo
deste trabalho.
O bispo de Hipona teve uma grande produção entre sermões, cartas e tratados, e
influenciou de forma decisiva os teólogos medievais, sendo considerado como um dos
32

fundadores da Patrística, inclusive sendo pioneiro na apropriação da filosofia antiga para


servir à fé cristã ou seja:

Ao tornar-se cristão, o antigo retor (sic) não tencionava renunciar à herança


cultural da qual até então se servira; impunha-se porém cristianizá-la, de
acordo com a tradição patrística. A esta tarefa entregou-se Agostinho,
invocando o Livro do Êxodo onde os hebreus, antes de deixarem o Egito,
receberam de Deus a ordem de se apropriarem dos objetos de ouro e prata e
os levarem consigo. Assim deveria pois fazer o pensador cristão: subtrair dos
autores antigos, para integrar na sabedoria cristã, todas as verdades de que a
filosofia pagã fosse possuidora. (INÁCIO; LUCA, 1994, p. 22)

No pensamento agostiniano Deus é transcendente, criou o mundo e tudo o que


nele existe, inclusive o tempo. Todas as coisas foram criadas de uma só vez, porém algumas
já em sua forma acabada e outras ainda em processo de evolução. O homem é dotado de
corpo e alma, sendo esta última, superior e dividida em três faculdades: memória, inteligência
e vontade. Ramon Llull receberá diversas influências2, absorvendo inclusive essa percepção
da alma humana. Para o maiorquino, memória, inteligência e vontade são complementares e
agem em conjunto para que o homem cumpra a primeira intenção para a qual foi criado: amar
e honrar a Deus.
Pode-se afirmar que o pensamento agostiniano assentava-se em duas bases: as
Sagradas Escrituras e a filosofia helênica. Por isso dava igual peso à razão e a fé na
compreensão das coisas divinas. Embora baseando-se em Platão3 não acreditava que o
conhecimento sensível fosse de todo enganoso. Ele oferecia um suporte para a apreensão do
real. A criatura seria sempre inferior ao seu criador. Embora os sentidos forneçam algum
conhecimento, este é mutável, devido à transitoriedade do mundo material. O acesso às
verdades imutáveis é possível ao homem, porém este acesso só pode ser alcançado por meio
da intervenção divina.

2
Identificamos muitas influências no pensamento luliano, tanto de autores antigos, quanto de contemporâneos
medievais, dentre os quais destacamos: Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Dionísio Areopagita, São Tomás de
Aquino, além daqueles que influenciaram na manifestação de sua espiritualidade: São Francisco de Assis e São
Domingos.
3
Platão defendia a separação entre o mundo das idéias e o mundo material. A matéria não é o real, mas apenas
um invólucro da essência escondida pela forma. Foi muito tempo aceito pelos cristãos, pois suas idéias não
confrontavam a doutrina cristã como a de seu discípulo Aristóteles, especialmente porque creditava também na
imortalidade da alma e na existência de um ser supremo.
33

Essa teoria é denominada Teoria da Iluminação, pois através de uma luz sobre a
inteligência humana, é produzida a razão que permeia o inteligível. Ramon Llull da mesma
forma estabelece um equilíbrio entre razão e fé e como veremos no segundo capítulo deste
estudo age conforme as instruções divinas que lhe vão sendo reveladas, inclusive o próprio
conjunto de sua Arte.
Contudo, contrariamente ao que acreditava Llull, Agostinho vê o corpo não como
um empecilho, mas como um instrumento de perceber o mundo “[...] na medida em que as
sensações atuam como advertência e estímulo para que se busque no próprio interior a
verdadeira compreensão”. (INÁCIO; LUCA, 1994, p. 27).
A verdade não pode, portanto ser ensinada. É uma busca individual encontrada
segundo a fé e o mérito de cada homem. Embora latente em cada homem, o grau de
compreensão é variável de um para outro e apesar de não condenar o estudo científico já que a
natureza é obra divina e o seu entendimento conduz a uma maior comunhão com Deus, sua
teoria não fomenta a experimentação, já que a verdade é algo pessoal e pré-existente em cada
ser. A vontade é a mais importante das três faculdades, pois é ela quem impulsiona o homem
ao conhecimento, ao livre-arbítrio e conseqüentemente à salvação.
O livre-arbítrio é uma idéia-chave na compreensão da teoria de Agostinho. Ele é
nada mais que a livre escolha do homem. Se este opta pelo pecado, então o mal resultante não
provém de Deus que é o Bem Supremo, mas da responsabilidade humana.
O bispo de Hipona nomeava como Cidade de Deus, o Paraíso celestial e a Cidade
dos homens, o mundo terreno. Estas duas cidades só seriam separadas definitivamente por
ocasião do Juízo Final, quando a primeira prevaleceria sobre a segunda. É interessante notar
as diferentes noções de temporalidade: a cidade terrena é efêmera. Seus reinos e suas ações
têm um caráter transitório. A cidade celeste é a única na qual reinará a paz eterna.
Apesar dos muitos séculos que os separaram, Ramon Llull e Agostinho têm
denominações estritamente semelhantes quanto ao que seria o pecado. Ambos crêem que o
pecado é um desvio humano que prefere os prazeres corporais à obediência e ao cumprimento
da vontade divina. Também a visão política de ambos era bastante parecida: poder espiritual e
poder temporal possuem atribuições distintas. Um não deve interferir nas ações do outro, mas
deveria reinar entre eles um espírito de colaboração mútua. Ao poder temporal cabia
promover a fé cristã para que os indivíduos priorizassem a salvação e a ascensão espiritual.
34

O pensamento de Llull foi desenvolvido em um período de efervescência


intelectual, enquanto o pensamento de Agostinho foi elaborado em um momento de crise e
insegurança, durante o esfacelamento do Império Romano. Porém, o período áureo de sua
influência se deu de forma mais acentuada entre seus pósteros, os medievais, marcando o
pensamento filosófico e a doutrina cristã por cerca de oito séculos, inaugurando a polêmica
que seria discussão entre todos os pensadores medievais: a relação entre razão e fé.
Com o clima de grande instabilidade e medo, gerado pelas guerras, epidemias e
fome que marcaram a queda do Império Romano do Ocidente, a Igreja foi a única instituição
que conseguiu manter um equilíbrio, conservando assim, uma parte da cultura. Os pensadores
cristãos assentaram seus estudos em três fontes: os livros sagrados, a literatura patrística e os
textos antigos devidamente adaptados à doutrina cristã.
Os mosteiros ocidentais configuravam-se em um recanto de cultura e entre as
atividades dos monges figuravam a leitura e o estudo. O medo cotidiano no mundo da
primeira fase da Idade Média entravava a expansão do saber, uma vez que a preocupação dos
homens concentrava-se em dois pontos: a sobrevivência material e a salvação da alma. Essas
comunidades monásticas recebiam, em sua maioria, crianças pobres e cuidavam delas e de sua
educação. A pedagogia incluía castigos e surras, conforme recomendam alguns livros bíblicos
como o Livro do Eclesiástico na seguinte passagem:

Quem ama o próprio filho, usa bastante o chicote, para no fim se alegrar [...]
Não lhe dê liberdade na juventude, nem feche os olhos para os defeitos dele.
Obrigue-o a curvar o pescoço enquanto ainda é jovem, e bata nas costas dele
enquanto é menino, para que não cresça teimoso, não lhe desobedeça e nem
lhe cause muito sofrimento. Corrija seu filho e faça-o responsável, para
depois você não tropeçar na insolência dele. (Eclo, 30, 1. 11-13).

Mesmo assim, de acordo com alguns autores, essa severidade visava um bem,
reconhecido pelos próprios educandos; “Basta buscar os textos de época que vemos a
felicidade dos egressos dos mosteiros pelo fato de terem sido amparados, criados e educados”.
(COSTA, 2003).
A ciência na Idade Média assumiu vários conceitos, de acordo com o que cada
filósofo julgava digno de ser chamado como tal, porém o conceito aristotélico de ciência foi o
mais difundido, ou seja, ciência é conhecimento demonstrativo que nasce da necessidade.
Assim, a busca pela santidade era considerada uma das finalidades da ciência e
35

conseqüentemente da filosofia, a fim de aproximar o homem de Deus. Por isso, é necessário


tomar cuidado com determinadas afirmações tais como dizer, por exemplo, que nesse período
não ocorreram estudos nesses campos; antes devemos tentar compreender as aspirações e
prioridades dos homens da época. A Idade Média passou por diversas fases. As manifestações
mentais e culturais foram se transformando ao longo do tempo. Assim, a educação da Alta
Idade Média tem contornos diferentes dos da Idade Média Central.
Principalmente do século XII em diante a filosofia e a ciência alcançaram um
êxito considerável. O crescimento demográfico e a expansão das cidades colaboraram nesse
processo e são perceptíveis as mudanças na mentalidade que começam a acontecer nesse
período, direcionando-se sempre para o humanismo, mas nunca ou quase nunca perdendo o
seu norte religioso.
O aparecimento do intelectual como novo personagem da sociedade está
associado à revitalização das cidades. Elas surgiram como um novo espaço de manifestação
cultural. Com efeito, o modelo do intelectual na Idade Média, é o citadino. Gradativamente as
escolas monásticas vão perdendo espaço para as escolas urbanas e universidades
No século XIII as corporações de ofício tornaram-se mais numerosas. Desde o seu
surgimento em meados do século XI, essas organizações tinham o objetivo de proteger seus
membros da concorrência e servir à defesa dos interesses de seu ofício asseguraando o
segredo de técnicas de trabalho e a obtenção de benefícios. As universidades têm suas origens
nessas corporações.
A corporação universitária vai ser marcada pela constante busca de autonomia
frente aos poderes temporais e eclesiásticos. O processo de ensino estava nas mãos dos
membros do clero. O chanceler, bispo encarregado da chefia das escolas, tinha o privilégio de
conferir licença para o exercício da docência. O controle do ensino pelos eclesiásticos vai
diminuindo gradativamente com a entrada em cena de novos atores. Cada vez mais os leigos
assumem a tarefa do ensino e as universidades começam a fornecer os mestres.
Os soberanos e os burgueses buscavam manter as universidades sob o seu
controle. Os primeiros porque além de prestígio, essas entidades forneciam funcionários para
os seus quadros. Os últimos porque mestres e estudantes colocavam limites à exploração
econômica “[...] fazendo incidir um imposto sobre os aluguéis, impondo um teto máximo ao
preço dos gêneros alimentícios, fazendo com que fosse respeitada a justiça nas transações
comerciais”. (LE GOFF, 2003, p. 97).
36

A autonomia universitária foi conquistada em meio à numerosos e por vezes


sangrentos conflitos. A corporação universitária tinha consciência de seu poder e sua forte
coesão garantia sua vitória nesses conflitos. Suas principais armas eram a greve e a secessão.
Dessa forma, tanto os poderes temporais quanto os espirituais reconheciam os universitários
como uma camada necessária trazendo vantagens econômicas e culturais para a sociedade.
Esta autonomia estava assentada sobre três privilégios básicos: independência jurídica, direito
à greve e monopólio sobre a formação e a conferência dos graus.
Os universitários contaram com a poderosa ajuda do papado. Este protegia as
universidades, mas não visando sua autonomia e sim sua submissão ao corpo eclesiástico,
sobretudo em Paris. Essa ajuda, a longo prazo, custará caro aos universitários, pois os estudos
e o ensino estarão quase que irremediavelmente atrelados à Santa Sé, sofrendo inclusive
proibições que poderiam pôr em risco sua doutrina, podendo-se citar como exemplos disso, a
proibição das leituras de Aristóteles em Paris (1210)4 e a criação da Universidade de Tolouse
com a finalidade expressa de combater as heresias. A corporação universitária assume várias
facetas. Embora esteja atrelada aos poderes eclesiásticos não raro rompe com suas regras, com
seus membros tendendo ao laicismo.

Desse modo, já naquela época, ela ultrapassava o quadro urbano em que


nasceu. Melhor ainda, é levada a se opor – violentamente, às vezes – aos
habitantes da cidade, tanto no plano econômico quanto no plano jurisdicional
e político.
Parece, assim, condenada a cavalgar a classes e os grupos sociais. Parece
destinada, em relação a todos, a uma sucessão de traições. Para a Igreja, para
o Estado, para a Cidade, ela pode ser um cavalo de Tróia. Ela é
inclassificável. (LE GOFF, 2003, p. 101)

Também é original por não se tratar de uma organização local a exemplo das
demais corporações; ela é abrangente e universal tanto em seu corpo (professores e
estudantes) quanto em suas atividades e conhecimentos. Não possuem uma organização
uniforme. Suas regras internas variavam de uma cidade para outra. Será enfocada apenas a
universidade de Paris por três motivos:

4
Em 1210 foi proibido o ensino das obras relacionadas às ciências naturais de Aristóteles. Novas proibições
incluindo os livros de metafísica ocorreram em 1231, 1245 e 1263, por interditos de Inocêncio III. Sabe-se,
contudo, que essas proibições nunca tiveram efeito prático sobre estudantes e mestres, pois todos continuavam
lendo indiscriminadamente os textos e comentários sobre os escritos do Estagirita.
37

a) essa universidade fornece um modelo mais ou menos padrão, que dá uma noção geral
do funcionamento das demais universidades, ainda que sofrendo variações;
b) por ser uma instituição de grande prestígio, onde as idéias e discussões ligadas a
Aristóteles alcançaram maior amplitude e;
c) porque Ramon Llull teve diversas passagens por ela, com a finalidade de apresentar e
demonstrar sua Arte. As circunstâncias nas quais se deram estas passagens serão
discutidas posteriormente.

1.1 Convergências entre o método dialético universitário parisiense e a argumentação


doutrinária de Ramon Llull

É interessante falar um pouco a respeito da metodologia de estudo adotado nas


escolas do século XII, porque em linhas gerais, o método seguido nas universidades era o
mesmo, com poucas alterações. O primeiro passo nesse método era a lectio. Tratava-se da
leitura de um trecho, geralmente de um escritor clássico, pelo professor aos seus alunos. Em
seguida, o mestre explicava o assunto. Enquanto isso, os alunos faziam anotações chamadas
reportationes. Para fixar o assunto, os estudantes medievais recorriam a várias técnicas, em
sua maioria as mnemotécnicas.
Nesse primeiro momento, o ensino oral predominava sobre o escrito. Somente
mais tarde com uma baixa no custo dos livros, eles passaram a ser mais utilizados. Sobre as
questões obscuras ou não compreendidas do texto, os ouvintes levantavam as quaestiones.
Destas, surgiam as disputatio, debates entre professor e alunos ou entre grupos de alunos,
seguindo as indicações da lógica e da dialética. Esses debates não tinham é claro aquele nível
das disputatio universitárias do século XIII, mas de certa maneira, preparavam os alunos
intelectualmente, fortalecendo seu espírito e sua memória. Os medievais muito valorizaram
este tipo de ensino, especialmente no tocante à garantia de fixação dos conteúdos, como fica
explícito na fala de Radulphus Brito (Ca. 1300), segundo Oliva apud Ullmann (2000, p. 57):
38

Afirmo convictamente que aprendemos mais sendo ensinados do que através


dos nossos próprios esforços, pois uma lição ouvida é mais proveitosa do
que dez lições lidas individualmente. É por isso que Plínio diz que ‘a voz
viva afeta muito mais o intelecto do que a leitura de livros’. E ele dá a
seguinte justificativa para a sua afirmação: ‘a fala do professor, as
expressões faciais, os gestos e todo o comportamento fazem o aluno
aprender melhor e mais efetivamente, e o que você ouve de outra pessoa
penetra mais fundo na sua mente do que aquilo que você aprende por si
mesmo’.

Essa afirmação do conteúdo também era possibilitada pelas constantes revisões. O


conteúdo lido e explicado durante as manhãs, era retomado nas tardes e noites. Mais um
método auxiliar nessa função de fixar os assuntos eram as glosas. Consistiam na cópia de um
texto com espaços reservados nas margens e entre as linhas. Esses espaços eram preenchidos
pelos mestres, que colocavam os sentidos das palavras mais complicadas do texto e as
citações dos autores antigos. E ainda mais: os mestres sempre iniciavam suas aulas pedindo
contas da lectio do dia anterior e fazendo uma recapitulação periódica dos temas estudados.
Nessas escolas ocorriam também representações de vidas dos santos, de cunho moralizante.
Esse conjunto de técnicas foi denominado Escolástica, derivado das palavras
schola, scholasticus, que significavam “relativos à escola, à cultura”. Mais do que um
método, foi um conjunto de técnicas de aprendizagem e estudos. Os principais que podemos
destacar são a importância que os estudiosos davam às palavras e as relações entre o nome e a
essência das coisas, o papel essencial da memória, o completo domínio da lógica, dialética e
retórica, posto em prática nas disputas e, é claro, a reflexão sobre os textos, as autoridades.
Estas eram as Sagradas Escrituras e os textos antigos.
Era aplicado a todas as áreas de conhecimento do período, e pode ser definida
como:

[...] estudo filosófico e teológico, numa grande síntese do patrimônio comum


do pensamento humano, orientado pelo conhecimento, que provenha da
experiência sensível (ciência), quer se origine da reflexão (filosofia), quer se
valha da Revelação divina (teologia). Foi Tomás de Aquino quem realizou
admiravelmente a integração desses três conhecimentos.
(ULLMANN, 2000, p.62)
39

Daí decorrerem muitas contradições principalmente aquelas relativas à razão e a


fé, que irão permear as discussões dos pensadores da época. Essas questões tornaram-se
problemáticas com a introdução dos textos de Aristóteles no ensino.
É bom atentar para o fato de que diferentemente de hoje, as universidades não
eram instituições de ensino superior. Não havia na Idade Média uma sistematização do ensino
no referente às suas etapas. Portanto, muitos alunos ingressavam nas universidades sem
mesmo saber ler ou escrever, cumprindo a estas instituições ministrarem um ensino básico, já
que nem todos os alunos admitidos, tinham passado previamente por uma escola.
É difícil precisar a idade dos estudantes e a duração dos estudos, sobretudo,
devido às várias funções da universidade. É quase certo que elas cuidavam de estudos básicos
de modo paralelo às escolas. Também não sabemos que tipo de conhecimento prévio era
necessário para ingressar na universidade. De forma geral, os estudos nas faculdades duravam
seis anos à exceção do curso de Teologia.
A Universidade de Paris foi originada das escolas monásticas de São Vítor, Santa
Genoveva e Notre Dame. Os ensinos aplicados nessas escolas foram ampliados e reformados,
ou seja, além dos tradicionais trivia e quadrivalia foram anexadas as obras Aristotélicas, além
de obras de Platão e estudos de origem árabe. Essas inclusões foram possibilitadas, sobretudo,
pelo incansável trabalho de tradução feitos principalmente na Espanha e na Sicília, pois lá o
grego ainda era conhecido, enquanto que em outras partes da Europa havia caído em desuso.
Em Paris funcionava o sistema de nações. Esse sistema foi aplicado à Faculdade
de Artes. Segundo essa divisão, mestres e estudantes se agrupavam de acordo com seu local
de origem, tendo cada nação seu procurador que atuava junto ao reitor. A universidade
parisiense era composta por quatro faculdades: Teologia, Medicina, Direito Canônico e Artes.
A faculdade que mais nos interessa aqui é a última, pois nela se davam os embates filosóficos
do qual trata este trabalho.
O estudo de Artes era pré-requisito para todas as carreiras. O estudo da Filosofia
era base para todos os outros cursos como colaborador na compreensão dos demais estudos.
Até mesmo por formarem uma corporação, estudantes e mestres estavam juntos na defesa de
seus interesses, especialmente em relação à autonomia universitária.
Um acontecimento célebre envolvendo a Universidade de Paris foi um confronto
da polícia onde vários estudantes foram mortos. As autoridades da época não se pronunciaram
o que culminou com a reação do corpo universitário em abandonar Paris, dispersando-se entre
40

outras cidades. Essa ausência durou dois anos (1229-1231) e abalou muito a posição de
destaque desse centro. Os professores fizeram várias exigências, como a responsabilidade pela
elaboração de estatutos para o funcionamento interno da universidade. Essas exigências foram
atendidas pela Parens Scientiarun.
Os estatutos da universidade prescreviam as formas de admissão, programas e
exames. As provas eram bastante rígidas e se davam em diferentes fases. Normalmente o
exame se dava tanto na forma escrita (produção de comentários), como no domínio da
oralidade (participação em disputas, respondendo as questões colocadas pelo júri).
Sobre os programas e o ensino, podemos dizer que eram organizados basicamente
em função de comentários feitos sobre textos antigos em especial de Aristóteles. A exigência
do domínio da lógica e da dialética eram condições da Faculdade de Artes. Apesar da rigidez
dos exames, estes eram realizados em meio a um clima festivo e de acordo com uma
programação que incluía banquetes, festas e trocas de presentes. De acordo com Le Goff
(2003, p. 109) essas manifestações “[...] correspondiam ao rito no qual a corporação tomava
consciência de sua solidariedade profunda. A tribo intelectual se revelava nesses jogos aos
quais cada país levava às vezes sua rota tradicional: bailes na Itália, corridas de touros na
Espanha”.
As festas religiosas estavam intrínsecas ao calendário universitário. Embora os
estudos fossem rigorosos, essas festas intercaladas aos exames compensavam a gravidade da
pressão escolar. E nessas ocasiões o divertimento geralmente extrapolava os limites prescritos
com vinho, músicas e mulheres, resultando em muito barulho, exageros de toda a ordem e
brigas com os habitantes das cidades:

Nos trajes dos estudantes e professores do medievo, além do status


acadêmico, percebe-se uma função significante de um setor da cultura,
fazendo parte do homo ludens. O vestuário acadêmico caracteriza-se como
aspecto lúdico profano, temporário e tem como efeitos o contraste, a união, a
estética e a identificação dos integrantes de uma universitas. Importante era
reconhecer os scholares, nas ruas da cidade, por ocasião de arruaças com
outros cidadãos. Isso permitia levá-los ao tribunal do studium para lhes
serem aplicados os devidos castigos. [...] como em todos os tempos e
lugares, também em Paris os estudantes eram buliçosos e, ao lado dos bons,
havia os que causavam desordens e arruaças. (ULLMANN, 2000, p. 157)

Os símbolos universitários consistiam em diversas insígnias como cetros, bastões


e anéis, utilizados nas cerimônias solenes e procissões religiosas. Esses anéis eram análogos
41

aos brasões das famílias nobres e funcionavam como selos na autenticação de documentos
oficiais.
Além dessas cerimônias para os novos graduados, também existiam ritos de
iniciação. Estes, embora se manifestando de forma diferente dos trotes atuais, possuíam
praticamente o mesmo espírito. Neles os calouros eram expostos a várias brincadeiras de
cunho satírico que ironizavam em sua maioria as origens rústicas dos novos estudantes.
Devido à natureza eclesiástica da corporação, o mundo universitário também
estava impregnado de religiosidade. A piedade era uma virtude recomendada aos intelectuais;
a devoção aos santos padroeiros e a participação nas atividades religiosas como procissões.
Tem destaque uma devoção pela Virgem Maria, expressa na produção de poemas e
coletâneas. Inicia-se daí uma preocupação com a moral profissional e a adoção de regras que
regessem cada ofício, passaram a definir toda uma nova ética específica.
Os materiais utilizados pelo intelectual tornavam-se cada vez mais numerosos,
principalmente em comparação com o clérigo da Alta Idade Média. O intelectual do século
XIII acumula em si três habilidades fundamentais: ler, escrever e ensinar. A importância da
oralidade no ensino era equivalente ao uso do livro como ensinamento escrito. O livro era o
ponto de partida a partir do qual surgiam os comentários e as disputas. Primeiramente devido
ao seu custo, não eram tão utilizados. Mais tarde, com a baixa nos seus custos, foi sendo cada
vez mais requisitado e necessário. Com a sua popularização, gradualmente deixa de ser um
objeto de luxo para se tornar uma necessidade de todos os estudantes.
Com o aumento da procura foram desenvolvidas novas técnicas na fabricação do
livro, tornando-o mais simples, mais acessível e de mais fácil manuseio. Os progressos pouco
a pouco transformaram a espessura das folhas tornando-as mais flexíveis e menos amareladas.
Passa a ser menor, a letra carolíngia é substituída pela cursiva; a ornamentação diminuiu, o
uso de abreviaturas e índices aumentou tornando as consultas mais rápidas. Surgiram ainda
novas categorias derivadas da atividade universitária: livreiros e copistas.
As universidades foram instrumentos de ascensão social, na medida em que seu
acesso era de certa forma, democrático. Embora a maior parte dos estudantes e mestres
saíssem da nobreza, os exames, como processo de admissão abriam uma brecha para os
estudantes pobres. Esses membros iriam engrossar o corpo da Igreja e do Estado. Mesmo e
apesar disso, esse espaço também gerava críticos que tendiam a um rompimento com a
ideologia preponderante.
42

Ainda que a razão tenha sido submetida à fé, é um fato relevante constatar que
embora a fé seja uma questão de crença, os filósofos passaram a tentar encontrar meios
racionais para a justificação de seus dogmas.5 É dessa maneira que iremos encontrar um Llull
dedicado a provar a veracidade do Cristianismo mediante as “razões necessárias”.
De forma semelhante ao ensino das escolas, o estudo universitário seguia
basicamente três etapas: lectio, 6quaestio, e disputatio, que é a fase mais produtiva do
processo. Nela eram expostos oralmente os pontos de vista, debatidos de forma livre.
As disputas eram bastante plurais. Distinguiremos somente as mais importantes.
As ordinárias realizavam-se semanalmente. Eram presididas por um professor, responsável
pela escolha do tema e definia os defendentes que iriam discorrer sobre uma tese. Após sua
exposição entravam então os opponentes com argumentos para derrubar a tese apresentada.
Todo esse processo verbal era traçado em latim. Essas teses eram discutidas embasadas nos
seguintes argumentos: revelação divina, razão, lógica e autoridade.

O argumento oriundo da tradição, com a certeza de que, num pensamento


trabalhado, examinado e criticado por várias gerações, o erro, em grande parte,
estava excluído. Essa convicção expressaram-na os medievais com o axioma:
securus iudicat orbis terrarum (o mundo inteiro julga com segurança). Por
outras palavras, consideravam o consenso universal como fonte certa de
conhecimento (ULLMANN, 2000, p. 65)

No dia seguinte à disputa, o mestre retomava a discussão, dando seu parecer, a


determinatio magistri, escrita posteriormente por um aluno ou pelo próprio mestre.
Independentemente do tipo de disputa, era observado sempre o seguinte esquema:

EXPOSIÇÃO → ARGUMENTOS FAVORÁVEIS → ARGUMENTOS CONTRÁRIOS → SOLUTIO

5
Vários são os termos utilizados para designar os homens dedicados às atividades intelectuais na Idade Média:
Le Goff usa intelectuais, tencionando enfatizar o tipo humano em detrimento das instituições e estruturas e
também clérigos, para especificar aquele que pensa e ao mesmo tempo ensina seu pensamento. Na Idade Média
o termo clérigo era aplicado não apenas aos membros do clero, mas a todas as pessoas que se aplicavam aos
estudos opondo-se a laico, não letrado. Os clérigos não eram obrigados ao celibato. Verger opta por homens de
saber quase pela mesma razão. Utilizo o termo filósofos levando em consideração a forma como os próprios
homens do período se intitulavam.
6
Nas universidades os bacharéis eram responsáveis pela revisão (lectio extraordinária) da matéria na parte da
tarde, sendo nomeados como repetitores.
43

Dentre as disputas extraordinárias destacam-se: quodilbet, disputatio magistralis e


dispuatio sorbonica.
A mais especial, porém, era a quodlibética, realizada duas vezes ao ano, por
ocasião da Páscoa ou Natal. Chegava mesmo a ser uma forma especial de competição que
exigia além de inteligência, muita presença de espírito e até mesmo sagacidade. Tratava a
respeito de qualquer tema, e até por esse motivo, possuía um caráter imprevisível. O professor
era o sabatinado e ninguém sabia de antemão qual o assunto a ser discutido. Acreditamos que
essa era a mais esperada forma de disputa e aquela que mais inflamava o espírito e colocava
provas de fogo para o intelecto. Provavelmente era também a que mais atraía expectadores e
despertava o temor nos mestres, sem dúvida, pois, por mais bem preparados que estivessem,
eles nunca poderiam prever que tipo de perguntas teriam que responder.
A disputatio magistralis era a disputa entre dois professores em presença dos
alunos. Sua finalidade era “[...] alargar os conhecimentos dos scholares”. (ULLMANN, 2000,
p. 68) e a disputatio sorbonica de origem da Universidade de Sorboune. Diferenciava-se pelo
seu conteúdo, relativo aos assuntos teológicos. Devido aos bons resultados foi introduzida em
caráter obrigatória como requisito aos candidatos à licenciatura em teologia.
Essas disputas galgaram seu máximo sucesso nas faculdades de Artes, Teologia e
Direito, mas eram comuns em todas as faculdades. O individualismo e até mesmo o exagero
retórico e dialético conduziam as disputas por vezes a debates improdutivos, sem nenhuma
aplicação prática. Some-se a isso que elas nem sempre transcorriam em um clima harmônico e
respeitoso, o que obrigou a Universidade de Paris a criar um estatuto específico para as
disputas da Faculdade de Artes, conhecida pelos tumultos.
É interessante o cuidado dispensado ao registro dessas discussões onde eram
colocadas em público as idéias e controvérsias, fossem elas de origem filosófica ou teológica.
Esse trabalho de conservação foi obra dos estenógrafos (taquígrafos) e das calígrafas. Os
primeiros anotavam através de símbolos e códigos que adiantavam e tornavam rápidos os
registros. Já as últimas faziam uma espécie de “tradução” desses símbolos, desenvolvendo os
textos e tornando-os inteligíveis.
Através deste método puderam ser conservadas não só disputas, mas também
sermões e aulas. Foi herdado dos gregos e também utilizado pelos romanos e poetas. De
acordo com Ullmann (2000, p. 73) “parece que se tratava de um ofício lucrativo e de emprego
44

seguro, pois, no Egito, bastava um mestre de estenografia abrir uma escola, e a clientela
acorria numerosa”.
As disputas tornaram-se mais do que uma exigência curricular. Elas gozavam de
grande popularidade e eram esperadas como um grande acontecimento, especialmente se o
mestre que iria presidir a disputa tivesse muito prestígio entre os estudantes. As disputas como
descreve Verger (2001, p. 271):

Permitiam que aos estudantes já experientes se treinassem visando aos


exames [...], exercitassem sua memória, brilhassem aos olhos dos
assistentes, ainda que fosse às custas de seus colegas. Mas a disputa
era também um elemento constitutivo do ensino que permitia abordar,
até mesmo melhor e mais livremente do que a lectio, os verdadeiros
problemas filosóficos ou científicos.

As questões materiais afetaram bastante, mestres e estudantes, sendo muitas vezes


decisivos nas escolhas doutrinais abraçadas. O intelectual vivia um dilema: como não era
mais um membro da Igreja sustentado pela sua ordem precisava encontrar outra forma para
sobreviver. Que forma seria esta? Para os mestres havia três saídas: o salário, o benefício ou a
prebenda.
Embora grande parte dos mestres optasse por receber salários pagos pelos
estudantes, essa solução livrava os mestres da dependência em relação aos poderes temporais,
mas era potencialmente problemática em outros pontos: os alunos também passavam por
problemas da mesma ordem, não podendo muitas vezes pagar pelo que aprendiam; fora isso,
havia a crítica à suposta “venda do conhecimento”. A Igreja que tudo fez para manter o ensino
sob seu estrito controle condenava os professores que recebiam salário, taxando-os de
simoníacos. Assim como o usurário que vende o tempo, o mestre que recebe salário vende o
saber, que é um dom dado por Deus. A concepção dos professores, porém, era bem diferente:
todo aquele que trabalha deve receber por seu trabalho.

Quando o professor optava por receber benefício, acabava perdendo sua


liberdade de expressão pois por esse caminho, o papado se ligava por laços de
interesse aos intelectuais, condenados a lhe solicitar benefícios, e extinguia, ou
pelo menos freava consideravelmente, o movimento que os levava a abraçar o
laicato.
O resultado é que só podiam ser professores nas universidades aqueles que
aceitassem essa dependência material em relação à Igreja.
(LE GOFF, 2003, p. 127)
45

Sobre isso podemos dizer ainda que a Igreja fez questão de distinguir as funções do
clero: aos professores cabia ensinar, ou seja, transmitir conhecimentos e ciência aos seus
alunos, porém pregar era uma atividade específica dos membros da Igreja.
Apesar de o papado ter decretado no Concílio de Latrão (1179) a gratuidade do
ensino, os estudantes necessitavam de outros recursos como moradia, alimentação e compra
de livros. Os estudantes quase sempre eram ajudados pela família. Contudo, mesmo com a
constante interferência da Igreja nas questões do ensino muitos membros da universidade
eram leigos. Com isso, a Igreja influenciava os estudantes a se direcionarem em faculdades
referentes às carreiras eclesiásticas e afins em detrimento das carreiras civis.
Paris era a universidade de maior prestígio na época e também indubitavelmente a
mais atrelada à Igreja. Isso é patente pelo número de bulas e interferências papais na estrutura
e no ensino universitários. Proibição a membros do clero de estudar Medicina e Direito Civil
e o ensino de Aristóteles, demonstram essa estreita ligação. Mas convém não acentuar
demasiadamente a influência da Igreja sobre a universidade parisiense. Se é certo que muitas
regras foram impostas à universidade, também é certo que na maioria das vezes elas não
foram seguidas. Sabe-se que a leitura da obras de Aristóteles nunca deixou de acontecer, bem
como a procura pelas carreiras apontadas como mundanas pela Sé, em outras universidades; o
que implica dizer que esse controle era exercido apenas aparentemente.
Os graus conferidos por Paris seguiam a seguinte linha: bacharelado; com este
título o indivíduo poderia auxiliar o professor, ministrar lectiones e interferir nas disputas.
Para ser bacharel, estudava-se seis anos; a licenciatura, através da qual o graduado obtinha
licença para lecionar, primeiro sob a orientação de um mestre, passando em seguida por testes
orais, quando então recebia permissão para ser professor. Os próximos títulos eram o magister
e doctor. O primeiro era dirigido somente aos filósofos e o segundo para os professores de
teologia, direito canônico e medicina.

Do ponto de vista escolar, a obtenção desses títulos máximos nada mais


representava do que uma formalidade. Antecediam-nos disputas sucessivas,
com bacharéis e seus futuros pares. Seguia-se a inceptio, isto é, o novel
doutor, em presença de toda a faculdade, recebia do chanceler as insígnias
do seu grau: barrete, anel de ouro e um livro. Ao novo mestre ou doutor
cabia, depois, oferecer um suntuoso banquete, acompanhado de diversões e
brindes. Fácil é de imaginar-se que tal cerimônia demandava grandes gastos
e, muitas vezes, obrigava o anfitrião a endividar-se. Isso fazia com que não
poucos estudantes desistissem do doutorado e se contentassem com a
licentia, bem menos dispendiosa. Tomando em conta o número de anos de
46

estudo, em comparação com a longevidade mais curta do que a de nossos


dias, convencemo-nos de que os estudos realmente eram levados a sério.
Demais isso, a demora para obter o grau deve-se em parte, ao ensino oral,
naquele tempo por falta de bibliotecas. (ULLMANN, 2000, p. 170).

A Universidade de Paris foi com certeza aquela na qual ocorreram mais polêmicas
e que tinha a atmosfera mais agitada dentre as universidades do período. Dentre essas
polêmicas uma que alvoroçou os espíritos foi a querela entre seculares e regulares. Embora a
questão tivesse a ver com problemas da corporação universitária, as discórdias eram
originadas por questões ideológicas e doutrinárias.
A greve geral de 1229 abriu espaço para o ingresso das ordens mendicantes no
ensino parisiense. Eles tiveram recomendação papal para lecionar a Sacra doctrina. É preciso
entender os objetivos das ordens mendicantes para compreender os desdobramentos das
disputas filosóficas e teológicas com os seculares.
Elas surgiram no século XIII e são quatro (pregadores, menores, carmelitas e
agostinianos). Dessas as mais conhecidas são a dos pregadores (dominicanos) e a dos menores
(franciscanos). As regras propostas por estas ordens configuravam-se em um ideal totalmente
novo para a época. Em primeiro lugar, por colocarem-se nas cidades, nos espaços de
convivialidade, em contraposição às demais ordens que buscavam o isolamento7, numa
evidente posição defensiva em relação aos demais homens e seus vícios. Depois por sua
forma de sobreviver: a mendicância, prática que os caracterizou.
Um importante fator que possibilitou a atuação e o sucesso dos mendicantes foi a
grande simpatia que lhes dispensavam reis e papas. Isso foi um importante trunfo nas mãos
dessas ordens por ocasião das querelas com os seculares que os viam como concorrentes
indesejáveis. Tudo leva a crer que a criação de novos mosteiros observava regras como nos
esclarece Le Goff (1994, p. 231): “a distância mínima que devia separar as igrejas de duas
ordens mendicantes no interior de uma cidade era fixada em trezentas cannes em linha recta,
isto é, cerca de quinhentos metros”. Também deveriam ser previamente autorizados pelo
pontífice.

7
As igrejas não surgiam em determinados lugares por acaso. Elas estão relacionadas com o divino e o social. A
geografia religiosa medieval não fugia à regra. A cidade era um lugar promíscuo e favorável à proliferação de
vícios, na visão desses religiosos. Era necessário então, que fosse resgatada.
47

Os conventos eram edificados preferencialmente em cidades grandes e populosas,


principalmente da parte dos dominicanos. Essa preferência se deve também a um outro ponto:
estes religiosos acreditavam que o campo se espelhava nas cidades, portanto, evangelizadas,
elas serviriam como um bom exemplo. Sua forma de se dirigir as pessoas inaugurou uma
nova fase na pregação: aproximaram a palavra de Deus dos homens; tornaram-na mais
simples, mais acessível. Participavam da realidade cotidiana dos fiéis atentando para as suas
necessidades e especificidades e fizeram isso de uma maneira pedagógica, recorrendo a meios
originais (uso de fábulas, exempla e até mesmo pequenas representações teatrais).

A pregação acabará por sair às praças, em púlpitos exteriores, provisórios ou


permanentes (em Paris, em 1439, Michelozzo e Donatello constroem e
ornamentam um), o sermão com seus pregadores populares em voga,
verdadeiros “ídolos” da multidão, tomará proporções de meeting.
Os mendicantes também sabem encontrar a fórmula que satisfaz as
aspirações dos leigos a viver uma vida espiritual que seja simultaneamente a
sua e os associe à dos clérigos. (LE GOFF, 1994, p. 234)

Foram peças fundamentais nas transformações mentais da época, consolidando a


crença na existência de um lugar intermediário entre o Paraíso e o Inferno: o purgatório. O
surgimento deste terceiro local está intimamente relacionado com as mudanças sociais, ou
seja, com o surgimento de novos ofícios e da revitalização das cidades, com a inserção de
novos costumes e novas manifestações de pecado que passaram a vigorar. Então tornou-se
adequado enquadrar essas novas práticas, que embora indesejáveis não se constituíam
doravante em vícios mortais.
No decorrer do tempo, ocorreu com os mendicantes um fenômeno já conhecido de
outras ordens. Com o sucesso de seus membros e atraindo cada vez mais adeptos e
benfeitores, passaram a se distanciar lentamente dos carismas que inicialmente cultivavam, ou
seja, terminaram por se corromper com a riqueza e o prestígio comprometendo o espírito de
pobreza e humildade pregado por elas. Não faltaram, é claro, manifestações daqueles que
repudiavam o relaxamento das regras visando resgatar o espírito original. No entanto “muita
gente pensava que os mendicantes tinham sido perdidos pelas cidades que haviam querido
salvar” (LE GOFF, 1994, p. 238).
São Francisco de Assis (1182), fundador da ordem dos menores era contra os
estudos, por considerar que eles corrompiam o ideal de pobreza e humildade que era a
48

essência desta ordo. Com o tempo, porém, tornou-se menos resistente à idéia de modo que
seus sucessores passaram a estudar, sem maiores reservas. De sua parte os dominicanos
sempre primaram pelos estudos, inclusive, estes recomendados por São Domingos, para
combater as heresias – objetivo da ordem – era preciso ser intelectualmente preparado para
refutar os infiéis. Também sobreviviam por meio da mendicância. A principal questão entre
regulares e seculares de matriz teológica era qual seria

[...] mais concorde com o Evangelho a dos seculares ou a dos regulares?


Estes, com todo entusiasmo, iam de cidade em cidade, pregando e
convocando as multidões para a penitência. Competiam, assim, com os
párocos, os quais queriam excluir os intrusos dos trabalhos de pastoral e da
pregação. (ULLMANN, 2000, p. 221).

Essa questão de tal modo incidia sobre uns e outros que “[...] não se movia tão-
somente no plano teórico, mas era uma verdadeira luta de classes”. (ULLMAN, 2000, p. 221).
Não se tratava, pois, apenas de um problema em relação ao ensino. Os mendicantes atraíam
cada vez mais para si os fiéis, os estudantes, a atenção e preferência do papado, que
praticamente tomou partido dos mendicantes em todas as contendas.
É claro que os seculares não assistiram a ascensão dos regulares passivamente;
muitos escreveram tratados combatendo e criticando o comportamento dos mendicantes. O
que levava os regulares a tornarem-se um corpo estranho na universidade era justamente o
fato de não se integrarem às normas corporativas. Por ocasião de greve, ignoravam as ações
dos demais professores dando aulas normalmente. As universidades não funcionavam em
prédios específicos. Isso facilitava para os frades, uma vez que, ministravam as aulas em seus
próprios conventos.
Outro ponto de discórdia era pertencerem à faculdade de teologia, mas recusarem-
se a cursar as disciplinas de Filosofia. Nessas, o domínio completo era dos mestres seculares.
Também, eram regidos pelos superiores de suas ordens, constituindo-se literalmente em corpo
independente, o que era um grande temor para os mestres seculares que perderiam boa parte
de seus alunos. Os títulos dos mendicantes eram recebidos diretamente do pontífice, o que
muitas vezes os isentavam de várias exigências necessárias para conseguir licença em teologia
o que aconteceu com o próprio Tomás de Aquino, como nos esclarece Ullmann (2000, p. 231)
49

Em 1256, o aquinate licenciou-se em teologia e, no ano seguinte, conquistou


o doutorado. Porém, já estava lecionando desde 1252. Isso, na realidade,
contrariava os estatutos de Roberto de Courçon, de 1215, os quais
prescreviam que o mestre de teologia só podia lecionar, se contasse trinta e
cinco anos de idade.

Além disso, a concessão de títulos acadêmicos ao frades geravam conseqüências


dentro das próprias ordens, pois causava diferenciação entre os irmãos:

No tocante à concessão desses títulos acadêmicos aos frades, no medievo, é


mister assinalar alguns aspectos desconhecidos de quase todos.
Os frades magistri ou doctores gozavam de privilégios especiais nas Ordens
de que faziam parte e nelas constituíam uma verdadeira casta ou classe
separada, com direitos fora do comum. Vejamos alguns casos peculiares: a)
entre os franciscanos, os graduados especialmente os magistri, faziam jus a
cargos e dignidades dentro e fora da Ordem; tinham direito a um socius e,
depois, ainda a um famulus (=servo); moravam em quarto próprio e não em
dormitório comum; eram isentos de coro e da missa conventual; podiam
andar a cavalo, nas viagens (os demais iam a pé). b) Entre os dominicanos,
maximi para os lectores de teologia, os privilégios eram ainda maiores.
Além das regalias próprias dos franciscanos, eram dispensados dos jejuns e
abstinências, de fazer a refeição em comum com os outros confrades, de
realizar trabalhos pastorais. Tudo quanto necessitavam para viver e para os
gastos pessoais estava-lhes asegurado. c) Privilégios semelhantes tinham-nos
os carmelitas e os agostinianos.
Fácil é de ver que tais benesses só podiam ser causa de inveja. Por isso,
provocaram uma verdadeira corrida à obtenção de títulos acadêmicos, não
por amor à ciência, mas por amor às regalias. [...]
Duplo reflexo tiveram tais abusos: 1. Nas Ordens, o relaxamento da pobreza,
da austeridade e da vida comum; 2. No ensino, o despreparo dos professores
e a queda do nível intelectual das Ordens. (ULLMANN, 2000, p. 223)

Em resumo, os mendicantes não obedeciam as decisões tomadas pelos


professores, nem os estatutos da universidade. O baluarte da luta entre seculares e regulares
do lado dos primeiros foi Guilherme de Saint-Amour, que tão a sério levou as rixas que
acabou sendo afastado da Igreja. Outros inimigos declarados dos frades eram Siger de
Brabante, Nicolau de Lisieux e Geraldo de Abbeville. Suas intenções eram afastar os
mendicantes da docência, para que estes voltassem a atuar apenas em seus conventos.
Também visavam desviar contingentes de alunos do propósito de ingressar nestas ordens. Os
frades responderam à altura com escritos defendendo-se das acusações e ressaltando a má fé
da parte de seus agressores.
50

As investidas se davam em várias frentes, pois além das costumeiras queixas, os


seculares questionavam o próprio sentido religioso destas ordens. Apesar de algumas
diferenças doutrinárias (os dominicanos eram simpatizantes de Aristóteles e os franciscanos,
mais tradicionais, seguiam o platonismo agostiniano), menores e pregadores uniram-se frente
ao inimigo comum.
As intervenções papais nem sempre sortiam um efeito satisfatório, muitas vezes
acirrando ainda mais os ânimos, gerando novas disputas e inúmeros impasses. Enquanto
seculares ameaçavam deixar Paris, caso os mendicantes permanecessem nas cátedras, os
regulares continuavam se recusando a seguir os estatutos e a corporação universitária.
Enquanto o papado se posicionava a favor dos frades, bem como o rei São Luís, a maior parte
do clero e do episcopado era sensível às reivindicações dos seculares.
De qualquer modo, em 1257 foi proibida pelo papa a publicação de panfletos
contra os mendicantes, assegurando sua manutenção no studium e a despeito de todas as
crises e controvérsias das quais foram o cerne, os mendicantes brilharam na universidade,
fornecendo grandes pensadores. Suas obras de grande valor suscitam reflexões até a
atualidade além de introduzir no ensino elementos da filosofia grega, que serviram de
exemplo para outras ordens religiosas na medida em que seu zelo pelo estudo acabou
inspirando-as a buscar conhecimentos
Apesar de deslocados da corporação, os membros dessas ordens eram
reconhecidos pelos estudantes, sendo muitos “[...] sensíveis às vantagens do ensino dos
mendicantes, mais ainda ao brilho de suas personalidades e à novidade de alguns aspectos de
sua doutrina: paradoxo que acabou por complicar o caso e o tornou nebuloso aos olhos dos
historiadores”. (LE GOFF, 2003, p. 132).
Outro ponto-chave nas divergências é a pobreza. Os intelectuais, assim como os
demais trabalhadores, defendiam que o sustento do homem deve se dar por meio do seu
trabalho. Os seculares aprofundam esse problema, colocando que a pregação de pobreza
executada pelos mendicantes não tem base cristã, exemplificando com as recomendações de
São Paulo apóstolo de que cada homem devia ganhar o pão com o suor do seu rosto.

Ademais, não cobiceis prata, nem ouro, nem vestes de ninguém. Vocês
mesmos sabem que estas minhas mãos providenciaram o que era necessário
para mim e para os que estavam comigo. Em tudo mostrei a vocês que é
trabalhando assim que devemos ajudar os fracos, recordando as palavras do
51

próprio Senhor Jesus, que disse: “Há mais felicidade em dar do que em
receber” (At, 20, 33-35).

Os papas colocaram-se ao lado dos mendicantes garantindo seus privilégios e sua


manutenção no corpo das universidades, posição compreensível, sobretudo devido à
obediência que essas ordens lhes devotavam.
Um dos problemas da Escolástica colocado por vários autores foi o arraigamento
excessivo aos autores antigos, especialmente Aristóteles. Isso dificultou os pensadores
medievais no desenvolvimento de um pensamento independente, embora outros discordem
disso. Mesmo que os filósofos medievais tenham adaptado o aristotelismo aos seus
problemas, isso gerou contradições notáveis:
a) os filósofos, especialmente os cristãos, fizeram uma tentativa de adaptação do
aristotelismo à doutrina cristã. A visão do Estagirita principalmente quando se
observa o contexto no qual suas idéias foram desenvolvidas é praticamente
inconciliável com o Cristianismo ou seja, as idéias de Aristóteles iam de encontro
à doutrina cristã;
b) discordando, favorecendo ou complementando, os pensadores medievais
gravitavam irremediavelmente em torno do pensamento dos antigos;
c) ao colocarem-se como trabalhadores do intelectual, rejeitando a idéia de que seu
trabalho fosse manual os universitários colocavam-se em uma posição ambígua
pois;
d) adotavam arbitrariamente dos antigos o conceito pejorativo de trabalho manual;
os filósofos buscavam também poder político e um status de destaque social
distintivo dos trabalhadores manuais;
e) dizemos arbitrariamente, porque ao adotar esse posicionamento ignoravam sua
própria condição como bem exemplifica o trecho seguinte:

A Escolástica não soube dar valor ao trabalho manual – vício capital,


porque, isolando o trabalho privilegiado do intelectual, permitia que ela
própria fizesse um trabalho de sapa contra as bases da condição
universitária, ao mesmo tempo que separava o intelectual dos outros
trabalhadores com os quais estava solidária no canteiro urbano.
(LE GOFF, 2003, p. 136)
52

Mas a principal contradição para alguns, tentativa para outros, foi o


estabelecimento de uma relação sadia entre razão e fé, sem que a crença em uma gerasse o
descrédito e a invalidade da outra. E mais uma vez o X da questão situava-se em Aristóteles.
Daí podemos identificar diversas correntes com interpretações ora tendendo a um rompimento
com a religião, ora tingindo o racionalismo aristotélico com as cores cristãs.

Não é um, são pelo menos dois Aristóteles que penetram no Ocidente: o
verdadeiro, e o de Averróis. É mais ainda, na verdade, porque cada
comentador, ou quase, tinha o seu Aristóteles. Mas duas tendências se
desenham nesse movimento: a dos grandes doutores dominicanos, Alberto
Magno e Tomás de Aquino, que querem conciliar Aristóteles e as Escrituras;
a dos averroístas que, onde vêem contradição, aceitam-na e querem seguir
tanto Aristóteles como a Escritura. (LE GOFF, 2000, p. 140)

Dessa forma, são perceptíveis pelo menos cinco grandes linhas no pensamento
dos filósofos do século XIII:
a) Os filósofos ligados à tradição agostiniana, baseada em Platão, defensora da
iluminação da razão humana por Deus e da predestinação do homem.
b) Aqueles que tomavam o pensamento original de Aristóteles afastando-se da
teologia e adotando uma postura mais próxima do racionalismo.
c) Os averroístas, partidários da “doutrina da dupla verdade”8.
d) Os tomistas, que buscavam moldar o aristotelismo aos dogmas cristãos.
e) Os livre-pensadores, que formularam outras teorias explicativas, desvinculadas
de todas as correntes já citadas.
Outra dificuldade da Escolástica reside em estabelecer uma relação entre teoria e
prática. Enquanto como método enfatizava as argumentações e especulações, vários
intelectuais clamavam por um empirismo. Em outras palavras, reclamavam que a teoria fosse
exemplificada na prática. A verdade, segundo esses pensadores, está na comprovação
experimental, isentando os espíritos da dúvida, diferentemente da especulação e das vãs
discussões que iludiam os espíritos com uma verdade, de acordo com eles, apenas aparente.
Apesar das críticas ao método escolástico, oriundas, sobretudo dos pensadores
modernos, é inegável que ela rendeu bons frutos e atendeu às aspirações filosóficas e
teológicas da época, com o mérito de ter feito “[...] a colocação exata e analítica do problema

8
Essa doutrina admitia uma verdade filosófica e outra teológica, quer dizer, mesmo quando elas entrassem em
flagrante contradição, ambas deveriam ser consideradas como verdadeiras, sendo uma resultado da razão e outra
da fé.
53

a ser discutido; clareza nos conceitos e definições; arrazoados precisos, sem digressões, que
aguçam o entendimento; expressão rigorosa, lógica, silogística em latim”.
(ULLMANN, 2000, p. 75).
Outra vantagem inerente ao método escolástico era a preparação intelectual,
emocional e psicológica dos estudantes, de uma maneira que, na maior parte das vezes,
garantia o aprendizado. Contudo, os intelectuais acabaram por constituir-se em uma espécie
de casta, afastando-se da sociedade que faziam parte, distanciando-se tanto das camadas
privilegiadas quanto das camadas populares, praticamente formando uma classe à parte dos
problemas e conflitos sociais, envolvida somente em seu próprio mundo.

Sua língua, o latim, se permanece uma língua viva porque sabe se adaptar às
necessidades da ciência do tempo e deve com isso exprimir todas as
novidades, não recebe porém o enriquecimento das línguas vulgares em
pleno desenvolvimento, e afasta os intelectuais da massa leiga, de seus
problemas, de sua psicologia [...] um dos grandes riscos dos intelectuais
escolásticos é formar uma tecnocracia intelectual (grifos nossos)
(LE GOFF, 2003, p. 147).

1.2 Os conceitos aristotélicos utilizados na obra luliana

Ao que tudo indica, as universidades foram as instituições de ensino mais


valorizadas e de maior prestígio na época. Também foram as que nos legaram maior número
de documentos e que permitem vislumbrar sua organização, seu funcionamento e sua relação
com a sociedade. Tratam-se de organismos genuinamente medievais sem precedentes
históricos.
Sua organização foi se aprimorando no decorrer do tempo, inclusive de uma
forma geral, as faculdades evoluíram em seu caráter científico. A Faculdade de Artes
parisiense, por exemplo, a princípio essencialmente voltada para o ensino da gramática e da
lógica, torna-se uma verdadeira academia filosófica,

[...] onde se ensinavam a física, a metafísica, a psicologia e a moral sobre a


base dos textos de Aristóteles e dos comentários de Averróis, aos estudantes
54

que já haviam recebido uma formação inicial em pequenas escolas pré-


universitárias. Esse alargamento – que, em compensação praticamente não se
valia das disciplinas científicas do quadrivium – suscitou muito
naturalmente, sobretudo em Paris, uma reivindicação de autonomia tanto
intelectual quanto profissional dos regentes em Artes, desejosos de comentar
livremente o conjunto de textos filosóficos que eles conheciam sem ter que
sofrer o controle e a eventual censura dos teólogos (VERGER, 1999, p. 86)

Os pensadores ocidentais produziram vastos comentários analíticos de textos.


Essa foi uma das marcas registrada da atividade intelectual dos medievos. Essa prática era
bastante semelhante à dos árabes que faziam análises críticas e comparavam vários textos
antigos, o que era facilitado pelo profundo conhecimento que possuíam da língua grega. Mas
o que pensava esse filósofo tão solicitado pelos medievais?
A mudança na forma de pensar dos gregos ocorreu após o surgimento da pólis,
passando de uma visão essencialmente mítica para a introdução de uma racionalidade do
homem ao olhar para si próprio e para o universo. Essas mudanças trazem modelos novos de
indivíduo: o cidadão e o filósofo. A filosofia grega é dividida em três períodos: período pré-
socrático, socrático e pós-socrático. Os primeiros marcam o abandono do pensamento mítico
na filosofia. Com os socráticos o centro cultural passa a ser Atenas e o período posterior
caracteriza-se pela expansão macedônica e o helenismo, que mesclou correntes filosóficas
gregas e orientais.
Embora grande parte da filosofia luliana tenha sido inspirada em Aristóteles é
possível identificar outras influências gregas no seu pensamento, por exemplo, a noção de ser
e não-ser. Llull atribuiu o não-ser ao falso e o ser àquilo que é verdadeiro. Não se trata de uma
questão de existência. Ser e não-ser na Arte de Ramon Llull são conceitos relacionados ao
bem e ao mal. O não-ser é tudo o que não é bom. O ser por sua vez é construído por um
conjunto de virtudes.
Alguns elementos do pensamento grego foram retomados no período medieval.
Os filósofos sofistas9 foram muito criticados pelos seus contemporâneos, sobretudo por
cobrarem pelas aulas que ministravam. Na Idade Média a “venda do saber” era tão mal vista
quanto à “venda do tempo”. Sendo dons não deveriam ser negociados, mas sim
compartilhados.

9
O termo sofista vem de sophos e significa “sábio” “aquele que elabora sofismas”. Com o tempo passou a se
identificar com “aquele que elabora sofismas, subterfúgios, enganador”, colaborando para a visão negativa dos
pensadores sofistas na sociedade grega.
55

Os sofistas deram uma grande contribuição na organização do ensino, formando o


currículo de estudos utilizados durante todo o período medieval, o trivium (gramática, retórica
e dialética) e o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música).
Outro legado destes filósofos aos medievais foi a preocupação com a persuasão.
Ora, na sociedade grega, o cidadão tinha como principais instrumentos a palavra e a razão
para defender seus posicionamentos. Entre os medievos, o uso do raciocínio e da lógica
essencialmente nas disputas parte do mesmo princípio de argumentação através do qual “[...]
não basta dizer o que se considera verdadeiro, é preciso demonstrá-lo pelo raciocínio. Pode-se
dizer que aí se encontra o embrião da lógica, mais tarde desenvolvida por Aristóteles.”
(ARANHA; MARTINS, 2003, p. 120), pensamento que vai ao encontro das idéias de Llull
que visava convencer seus interlocutores por meio das “razões necessárias”.
Aristóteles foi um macedônico de educação nobre; mudou-se para Atenas, onde
ingressou na escola de Platão, sendo recebido na academia por Eudóxio. Essa academia
dedicava-se especialmente à filosofia, geometria e matemática. A filosofia grega era
caracterizada principalmente pela busca da verdade e a descoberta do homem e do universo.
Logo Aristóteles destacou-se como grande orador e demonstrou-se vivaz em suas
especulações filosóficas.
Embora amigos, Aristóteles e Platão tiveram vários atritos no campo das idéias.
Após a morte de seu mestre, o Estagirita deixou a escola. Muitos autores acreditam que as
críticas de Aristóteles a Platão iam além do cunho filosófico. Por ocasião da morte de Platão,
Espeusipo assumiu a direção da academia, o que fez com que Aristóteles fundasse o Liceu,
uma escola rival à academia. Jacot (1973a, p. 496) chega mesmo a afirmar que:

Da maneira que em Platão, o pensamento do filósofo sofreu no decorrer dos


anos, uma evolução na qual podemos distinguir três estados: o primeiro é o
dos vinte anos passados na Academia, onde Aristóteles ainda que não
partilhando sempre das idéias de seu mestre, era essencialmente platônico,
senão ele não permaneceria na Academia. O segundo estado é o da
permanência em Assos, onde Aristóteles começa a se distanciar das teorias
de Platão. O terceiro estado é o de Atenas, onde o Liceu é uma escola
nitidamente rival da Academia.

Desejava ser o diretor da academia, o que não aconteceu. Retirou-se, sendo


posteriormente preceptor de Alexandre, filho de Felipe II da Macedônia, que viria ser
56

conhecido pela história como um grande conquistador, desde a tenra idade, domando cavalos
selvagens e exercendo um grande poder de liderança.
Depois de voltar para Atenas e fundar o Liceu passou a dar aulas. Durante as
manhãs as aulas versavam sobre conhecimentos mais profundos, ou seja, era direcionado aos
alunos que mais se destacavam. Pela tarde as questões discutidas tinham caráter mais
superficial. Os discípulos da academia de Aristóteles tinham aulas caminhando, sendo por
isso chamados de “peripatéticos” do grego “Peri” = perímetro e “patéticos” = aqueles que
caminham.
Aristóteles não costumava viajar muito, parecia sentir-se bem em Atenas.
Escreveu diversos tratados sobre moral e ética, inclusive Ética a Nicômaco, dedicada ao filho
de seu segundo casamento. De acordo com o filósofo o ser humano estava caracterizado por
três esferas assim esquematizadas:

A divisão da mente humana de acordo com Aristóteles

PSIQUÊ
alma
NOUS virtudes emoções instintos SOMA

espírito pensamentos física

O homem deve procurar desvendar a essência escondida nas aparências e trazer as


idéias para o mundo prático. É aí que se dará o exercício da virtude. Ramon Llull também
atribuirá uma grande ênfase e importância ao cultivo de virtudes para a felicidade do homem,
seu bom relacionamento social e é claro, como uma forma de se aproximar da vontade Deus.
Para os gregos a virtude é sempre um bem. Todas as atitudes humanas visam um bem.
57

Exemplo: a medicina visa a saúde. Porém há um bem supremo que está acima de todos os
outros. Esse bem máximo é a felicidade, busca comum a todos os homens. É absoluta e auto-
suficiente, uma vez que diferentemente dos bens menores não visa um fim específico,
constituindo um fim em si mesma:

Ora, parece que a felicidade, acima de qualquer outra coisa, é considerada


como esse sumo bem. Ela é buscada sempre por si mesma e nunca no
interesse de uma outra coisa; enquanto a honra, o prazer, a razão, e todas as
demais virtudes, ainda que as escolhamos por si mesmas (visto que as
escolheríamos mesmo que nada delas resultasse), fazemos isso no interesse
da felicidade, pensando que por meio dela seremos felizes. Mas a felicidade
ninguém a escolhe tendo em vista alguma outra virtude, nem, de uma forma
geral, qualquer coisa além dela própria. (ARISTÓTELES, 2006, p. 26)

A virtude está classificada em duas categorias: as intelectuais, relativas à


inteligência e ao discernimento; e as morais, relativas ao comportamento e a ética humanas. A
virtude intelectual está associada ao ensino e ao aprendizado. Já a virtude moral refere-se ao
hábito. O sensível está ligado à natureza, o moral, ao exercício. Somos bons naquilo que
fazemos. Também dá uma noção do que seriam as paixões, afirmando que elas podem ser
tanto positivas, quanto negativas, mas ressaltando que a virtude implica em escolhas e a
paixão é algo involuntário.
O virtusosismo 10 é um instrumento de alcance dessa felicidade, ou seja: não é
suficiente apenas fazer algo. É preciso executá-lo bem. É decisivo que a inteligência deva ser
usada para sublimar o elevado. Todos têm virtude e potencial, porém, para que esse potencial
se manifeste, a virtude deve ser praticada. É o exercício que torna o homem virtuoso. Daí
extrai-se a relação entre teoria e práxis. A designação de virtude para Aristóteles é a seguinte:
virtude é o meio termo entre dois vícios: o excesso e a falta. Alguns exemplos são citados em
sua obra Ética a Nicômaco como a covardia (ausência de coragem) e a temeridade (excesso) e
a avareza (ausência de generosidade) e a prodigalidade (gastar perdulariamente).
Nesse contexto, a virtude não é algo exterior ao homem, faz parte do cotidiano e
também é algo construído, no decorrer de toda uma vida. O sábio é perfeitamente virtuoso e
mais do que isso, uma pessoa feliz. A felicidade também inclui as vicissitudes e a
compreensão da vida, ou seja, entender a dor e o prazer é ter percepção do que realmente
consiste o existir.
10
Por exemplo: qualquer pianista é capaz de tocar piano, mas apenas o virtuoso irá tocar magistralmente.
58

Llull se utilizou especialmente dos conceitos engendrados pelo Estagirita. Os


principais conceitos da obra aristotélica são: substância, essência e acidente: ao contrário de
Platão, não separa o mundo sensível do inteligível. A substância é o conjunto formado pela
forma e o conteúdo. A essência diz respeito aos atributos que caracterizam uma substância
como tal. O acidente é o atributo ocorrente que pode ou não acontecer com a substância,
porém sem alterá-la em sua essência. Exemplo: o homem dotado de corpo e mente é uma
substância. Sua essência consiste no uso da racionalidade. Essa característica diferencia
homem dos outros seres. Suas características acidentais (ser gordo, magro, belo ou feio) não
alteram a sua essência como ser dotado de razão. (MARCONDES, 2005)
a) matéria, forma: matéria e forma são indissociáveis. A matéria é aquilo que
forma o ser, e a forma refere-se à idéia. Exemplo: o ouro é a matéria de uma
determinada jóia, porém sua forma é dada pelo ourives que irá trabalhá-la;
b) ato, potência, movimento: são conceitos complementares. O ato é a força
motriz que leva a potência a se desenvolver, ou seja, todo ser existe em ato
(desenvolvimento da potência) e potência, ou seja, desenvolvendo habilidades,
aperfeiçoando suas características latentes. “[...] o movimento, é portanto, a
passagem da potência para o ato. É ‘o ato de um ser em potência enquanto tal’.
É a potência se atualizando” (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 123).
Em Aristóteles já aparece a idéia de Deus como gerador de todas as coisas, o Ato
Puro. Todas as coisas são contingentes, necessitando de um ato para desenvolver sua
potência, exceto Deus. Ele é incausado e o primeiro motor que determina as outras
existências. A mesma noção é adotada por Llull, apenas com uma nomenclatura diferente. De
acordo com os escritos do filósofo maiorquino Deus é incriado e suas virtudes também
incriadas são as Dignidades.
D’Ele advêm todas as coisas. Deus é a causa da existência humana e além de ser a
“causa primeira” de todo ser existente e deve ser também a primeira intenção dos seres
criados amá-Lo e honrá-Lo. Da interpretação de Deus, como Ato Motor, resulta a idéia de que
é imutável, pois, se não o fosse, haveria uma causa anterior a Ele próprio.
Llull desenvolveu vários desses conceitos em suas obras, com modificações que
atendiam ao seu propósito religioso. Assim considera também que o mundo sensível é fonte
de conhecimento, mas esse conhecimento é inacabado. Também pensa as virtudes
praticamente sob a mesma ótica do Estagirita, mas atribui todo bem e toda a felicidade à
59

Deus, enquanto o filósofo grego pautava a felicidade na utilização da racionalidade, sendo


cada homem responsável pelos seus sucessos e derrotas.
O retorno dos medievos para as obras de Aristóteles traz à tona um profundo
dilema, pois o pensamento aristotélico vai de encontro aos dogmas cristãos, inclusive acerca
de Deus. De acordo com ele:
a) Deus é transcendente e está voltado para si próprio, ignorando as demais
criaturas; o Deus cristão é um Deus totalmente Onipotente, Onisciente e
Onipresente e está constantemente influenciando ou interferindo nas
atitudes humanas, tão preocupado com a felicidade dos seres que criou, que
foi capaz de enviar seu próprio Filho para morrer pela humanidade;
b) o mundo não foi criado e é eterno; a teologia cristã prega que o mundo foi
criado por Deus em seis dias, segundo a narração do Livro do Gênesis11. O
mundo terreno não é eterno. Somente o extraterreno é perene. O fim do
mundo no qual vivemos se dará com a segunda vinda de Cristo à Terra
quando separará os bons dos maus;
c) a alma não é imortal, portanto nada mais há, além da existência presente;
para os cristãos a alma é imortal e toda a teologia cristã e humana estão em
função da crença na imortalidade da alma e na vida após a morte;
d) a Natureza é o objeto da ciência por excelência. Suas leis são apreendidas
através da experiência, possibilitada pelos sentidos; toda forma de
conhecimento de acordo com grande parte dos filósofos cristãos, a ciência e
a filosofia servem para o propósito de conduzir o homem à compreensão de
Deus e a busca pela verdade; e essa compreensão não se dá somente através
da razão, mas principalmente da iluminação divina.
Dessa maneira é compreensível o impacto e as controvérsias que o pensamento
aristotélico extremamente racional trazido à Europa medieval cristã impregnada de
religiosidade em suas entranhas e com todo o seu entendimento voltado para as questões da fé
e da salvação provocou, principalmente porque as traduções das obras aristotélicas eram feitas
pelos árabes e, portanto, adaptadas para justificar o pensamento desenvolvido por estes,
bastante diferenciado dos dogmas cristãos ocidentais.

11
A narrativa da criação completa está em Gn 1, 1-31.
60

Assim é que o averroísmo latino irá fazer ao mesmo tempo muitos simpatizantes e
muitos opositores, inclusive Ramon Llull que combateu fervorosamente a doutrina de
Averróis, classificando-a como tão perigosa quanto à fé islâmica, observando o grande
número de adeptos que ambas conquistavam. O maiorquino se utilizará dos conceitos do
filósofo grego, mas se manterá fiel aos preceitos de sua religião, até porque em contraste com
os demais intelectuais de seu tempo que se apoiavam nas autoridades, como já citado
anteriormente, Llull irá colocar em prática um método que se por um lado, aproveita
elementos da Escolástica, paradoxalmente rompe com ela em um de seus pilares. Ele pode ser
considerado como o fundador de uma espécie de “filosofia alternativa”, visando fins
religiosos, mas sendo aplicada de acordo com a observância de outros princípios.
61

2. RAMON LLULL – SEU CONTEXTO HISTÓRICO

Nas biografias de homens e mulheres que viveram durante a Idade Média é


comum observarmos uma grande lacuna em suas histórias. Isto porque nelas, sempre existe
um acontecimento que produz uma mudança de comportamento “[...] según La persona de
quien se trate, su acceso a La vida política, su graduación acadêmica o su conversión a uma
vida más religiosa” (GAYÀ, 2005). No caso de Ramon Llull essa cisura localiza-se a partir da
conversão, a sua experiência mística ao ver Jesus Cristo crucificado em seu quarto.
Vida Coetânea biografia mais utilizada por aqueles que estudam sua vida, é uma
versão autorizada pelo próprio Ramon Llull, mas é possível perceber que ela segue o mesmo
esquema das hagiografias do período, embora fiel à linha de pensamento do filósofo. Na
realidade o ponto crucial da narrativa não é propriamente informar sobre a vida do beato, mas
divulgar os propósitos que ele desenvolveu em vida: a missão evangelizadora com o intuito de
unificar todos os homens em torno da religião cristã e a aplicação do seu método: A Arte.
Sua cronologia é bastante imprecisa e enquanto alguns períodos de sua vida são
suficientemente pormenorizados, outros são praticamente ignorados. Sabemos, por exemplo,
que teve uma educação nobre e que foi casado tendo dois filhos, porém tais fatos nos são
dados a conhecer somente por alto, sem maiores detalhes. A ênfase situa-se mesmo em suas
peregrinações e na atividade pregadora.
Llull fazia parte de uma família, ocupada com atividades comerciais que
provavelmente não se envolvia em questões políticas, apesar de suas estreitas relações com a
corte e o próprio rei de Maiorca. Era possuidora de muitas terras, usufruto da conquista de
Jaime I; como recompensa pela participação de alguns membros da família de Ramon Llull na
campanha expansionista do rei, foi contemplada com pedaços do território conquistado.
A conquista de Maiorca foi motivada por fatores econômicos. A ilha era um
importante eixo no comércio do Mediterrâneo. Essa empresa já havia sido tentada inclusive
pelas cidades italianas de Gênova e Pisa, tanto por meio das armas como por meio de relações
diplomáticas com os muçulmanos que lá estavam estabelecidos. Grande entreposto de
pessoas, possibilitou a confluência de pessoas das mais diversas origens. De acordo com o
professor Ricardo da Costa, este foi um fator que influenciou o pensamento luliano, dando-lhe
um certo caráter eclético.
62

Llull passou toda a primeira parte de sua vida em Maiorca. Foram lá que
aconteceram suas experiências místicas; lá ele decidiu mudar de vida e estabelecer os
propósitos que se tornaram a meta de sua existência. “Portanto, seus anos de sua formação
intelectual e de seu ideal político foram forjados durante o reinado de Jaime I, o Conquistador,
e sob a proteção do infante Jaime, futuro Jaime II de Maiorca” (COSTA, 2002).
A ilha pertencia aos muçulmanos antes de ser conquistada por Jaime I. Os
primeiros anos de vida de Ramon coincidiram com a expansão comercial de Aragão que se
direcionou para o Mediterrâneo (norte da África, sul da Itália, além de Sicília e Sardenha).
Essa expansão além de favorecer economicamente o reino, foi decisiva na formação cultural
da população, ajudando a firmar o catalão como língua para o comércio e relações
diplomáticas.
A ilha de Maiorca constituía-se em um núcleo para onde convergiam os mais
diferentes grupos, tanto étnicos, quanto religiosos. Esse grande universalismo irá se refletir na
obra de Llull que revelará um conhecimento profundo não só da realidade cristã, mas também
de outras visões de mundo paralelas a esta.
Ramon Llull casou-se com Blanca Picany, mulher que também pertencia a uma
família influente de Maiorca. Deste casamento, nasceram duas crianças: Domingos e
Madalena. É possível cogitarmos tendo por base seus escritos futuros que apesar da distância
da família engendrada pela sua vida missionária, Llull tinha uma grande estima pelos seus
familiares, fato atestado na obra Doutrina para crianças, escrita para o seu filho. Embora sua
família se ocupasse de diversas atividades, tudo leva a crer que obtiveram êxito na maioria
delas, sendo o próprio Ramon um homem abastado, que ocupou altos postos na administração
real, como senescal do rei e preceptor do príncipe Jaime II.
Devido à própria natureza das atividades que exercia, não tinha sido necessária
uma grande preparação teórica, mas apenas uma educação básica de gramática, ou seja, nesse
primeiro momento de sua vida, não demonstrou uma grande preocupação com a ciência. Esta
só iria se manifestar por ocasião do surgimento da necessidade de uma melhor formação
intelectual para os seus propósitos religiosos.
Em sua juventude, sabia ler, escrever e falar corretamente, mas adquiriu essas
habilidades através da cultura trovadoresca, que continuou a influenciar suas obras mesmo
após sua conversão. Lia muitos romances de cavalaria, escrevendo ele próprio, canções e
trovas. Sua primeira experiência mística se deu coincidentemente quando escrevia uma
63

canção para uma dama. Mais tarde, Llull muito se culparia pelo próprio comportamento nessa
fase de sua vida, fase em que era entregue aos vícios da carne, sendo infiel em seu matrimônio
além de ser em suas próprias palavras, “dissoluto e mundano”.
Após a sua conversão, segue-se um período conturbado no reino de Maiorca.
Jaime I ao morrer, lega a Jaime II, Montpellier, as ilhas Baleares, os condados de Rossillon e
Cerdaña, Vallespir e Conflent e a Pedro III, Aragão, Catalunha e Valência. Este último,
descontente com tal divisão obriga seu irmão a reconhecer pelo Tratado de Perpignan, que
dirigia as terras apenas na qualidade de vassalo. Na realidade, essas medidas faziam parte de
um projeto mais ambicioso: a hegemonia catalã no Mediterrâneo, a fim de controlar o
comércio marítimo.
Apesar de não tomar partido, parece claro que Llull estava ao lado de Jaime II,
pois logo após a firmação do tratado, abandona Maiorca, retornando somente após a
restituição do trono a Jaime II. Pode-se especular também que os laços de amizade e respeito
entre Ramon e Jaime II eram grandes, uma vez que fora seu preceptor. Durante o período em
que estava fora do comando da ilha, estabeleceu sua corte em Perpignan e Montpellier, as
quais Llull também passou a freqüentar.
As guerras envolvendo os territórios de Aragão e das Sicílias tiveram muitos
desenlaces e envolveram autoridades de vulto como o papado e reis franceses. A despeito de
todos estes choques, Llull não se envolveu nas questões políticas, continuando a cuidar de
seus objetivos religiosos. É assim que obtém do rei de Aragão, permissão para pregar nas
mesquitas e sinagogas de seu reino, levando-nos a supor que em sua visão, o ideal de unidade
cristã, deveria estar acima de quaisquer interesses políticos e (ou) econômicos. As obras que
comentavam acerca da relação entre os reis e os seus súditos, não deixam dúvidas quanto a
isso. Sua exortação para o seguimento de um caminho virtuoso não é aplicada somente ao
povo, mas a todos os segmentos sociais da época, como membros da Igreja e homens de
poder temporal.
Sempre procurou o apoio de reis, príncipes e papas, para ajudá-lo em seu objetivo.
Nem sempre conseguiu êxito e esse será um traço que marcará suas obras. Muitas delas são
narrativas de experiências vividas pelo próprio Ramon. Isso pode ser percebido em diversas
fases; nos primeiros escritos toda a esperança e confiança no sucesso do método
desenvolvido; em fases posteriores a decepção com o pouco caso das autoridades com tarefa
considerada tão urgente e elevada para o filósofo: unificar a Cristandade e mais tarde, um
64

enrijecimento de suas posições em relação aos muçulmanos. Esses reflexos autobiográficos


dos quais suas obras se acham impregnadas, revelam que este lança uma crítica aos homens
do período que não se ocupavam da primeira intenção de amar a Deus. Ele faz isso sempre em
forma de analogias utilizando personagens de seus escritos.

2.1 Conversão, pregação e desenvolvimento da Arte.

A experiência mística de Llull possui de certa maneira um caráter simbólico. O


filósofo viu Jesus Cristo crucificado durante cinco dias, sempre quando estava terminando a
canção para a dama a qual estava enamorado naquele momento. Aqui parece claro que há
uma oposição entre duas formas de amor: o amor carnal, pecaminoso e o amor espiritual e
divino de Deus. Este último sobressai, fazendo com que o pecador renuncie toda a vida
passada, colocando-se a serviço desse novo e verdadeiro amor.
O caminho escolhido para trilhar essa nova vida foi influenciado pelas grandes
revoluções espirituais e educacionais que ocorriam naquele século. Muitos homens e
mulheres estavam desenvolvendo uma forma alternativa de santidade: eram leigos, cujos
carismas mais observados eram a pobreza e a simplicidade, ou seja, pessoas que não
ingressavam necessariamente em ordens monásticas, mas, contudo, abraçavam um modelo de
vida penitente.
Essa nova espiritualidade foi disseminada pelas ordens mendicantes. Mais tarde,
retomaremos as duas que mais estiveram presentes na caminhada luliana: dominicanos e
franciscanos. A simpatia de Llull por estas ordens colocou-o em situação de grande dúvida,
sobre qual hábito deveria tomar. Abordaremos algumas das diferenças básicas entre elas, no
sentido de compreender os pontos que geraram confusão e indecisão para o maiorquino.
Um outro ponto importante a ser considerado é que a conversão de Llull embora
tenha marcado uma ruptura, acompanhada de uma radical mudança de comportamento,
delinearam seus objetivos religiosos e doutrinários gradualmente. E vale destacar que esses
propósitos também foram adequando-se às condições sociais e políticas encontradas pelo
65

beato. A primeira inspiração foi a conversão dos infiéis, 12seguida da redação de livros contra
os erros daqueles e a fundação de escolas onde se aprendessem as línguas necessárias à
missão. Mais tarde vão somar-se a esta, a luta contra os averroístas, a busca pelo martírio, a
fomentação das Cruzadas e a unificação das ordens militares.
Ramon não deixou imediatamente sua casa. Essa decisão veio quando ele
participou da festa de São Francisco. Nessa festa, durante uma pregação, sentiu-se tocado pelo
exemplo de São Francisco de Assis13, decidindo daí, fazer o mesmo. A partir daí, vendeu seus
bens, deixando somente o necessário para o sustento de sua esposa e filhos. Por sua vez, o
desenvolvimento de um método aplicável a questões universais se dará posteriormente no
Monte Randa. Esses anos são primordiais, pois neles são formuladas as principais diretrizes
da ação luliana. São neles que o maiorquino busca superar suas próprias limitações a fim de
tornar-se apto ao ideal que se havia proposto a alcançar.
O primeiro passo foi melhorar sua formação intelectual com intensa dedicação ao
estudo do latim e do árabe. Para tal, adquiriu um escravo mouro e durante nove ou dez anos
empenhou-se com afinco em aprender o máximo possível sobre a cultura e religião árabes.
Esse mesmo escravo, após uma discussão, tenta matá-lo, fato descrito mais ou menos como
um milagre, já que Llull não queria punir o escravo com a morte, pois guardava gratidão pelo
que este lhe tinha ensinado. Quando pensava sobre isso, sem saber o que fazer, ocorreu uma
espécie de intervenção sobrenatural e o próprio escravo suicidou-se, limpando assim a
consciência do beato.

12 Llull pautará sua missão evangelizadora na passagem bíblica que diz que ninguém tem maior amor do que

aquele que dá a vida por seu irmão. Por isso o beato estava disposto a fazer qualquer sacrifício para assegurar a
salvação dos infiéis.

13 Francisco de Assis nasceu provavelmente em 1182 na Itália. Filho de um abastado mercador de tecidos,
podemos dizer que pertencia a uma família de comerciantes em franca ascensão e com um estilo de vida
próximo da aristocracia. Dessa forma, Francisco vivia à maneira dos jovens nobres de sua época antes de sua
conversão. Deixou pouquíssimos documentos escritos e mesmo assim, estes são mais esclarecedores quanto à
espiritualidade praticada por Francisco do que em relação a sua trajetória de vida. Sua conversão ocorreu ainda
na juventude. Tinha um desejo de ingressar na carreira cavaleiresca, aspiração comum entre os jovens fidalgos
da época. Também foi bastante influenciado literariamente pelo espírito trovadoresco. Uma longa moléstia
obrigou-o a abandonar essas atividades. Nesse período passou por uma grande reflexão que o levaria à uma
mudança radical de comportamento. Decidiu então dedicar-se ao serviço de Deus e dos excluídos de sua
sociedade. Despojou-se de seus pertences e até mesmo de suas roupas e iniciou sua carreira pregadora. Apesar de
uma inicial desconfiança de seus contemporâneos, logo passou a ter seguidores. Vida Coetânea torna o relato de
vida do maiorquino semelhante ao do poverello, pelo menos no que diz respeito à maneira de sua conversão e a
espiritualidade adotada após a mudança de vida. Francisco de Assis adotou uma postura humilde e respeitosa
frente aos não-cristãos. Participou da quinta cruzada, não se identificando contudo com as ações dos cruzados. A
violência e a intolerância que preponderavam nestes choques com os mulçumanos com certeza iam de encontro
aos seus valores espirituais. Em contato com o sultão Malek-al-Kamil teve uma conversa bastante civilizada,
retornando assim como um amigo para os seus.
66

Vida Coetânea esclarece que ao lançar-se aos estudos, intencionava dirigir-se a


Paris, certamente à Universidade, porém foi demovido dessa idéia por amigos. Esse é um bom
ponto a ser pensado. Por que a objeção aos estudos em Paris? Afinal não era esta universidade
que gozava de maior prestígio junto à Sé? Ramon de Penyafort, dominicano,14 convenceu-o a
regressar à Maiorca, quando curiosamente a ordem dos pregadores era a que mais prezava
pela formação intelectual de seus membros, inclusive detendo cátedras nessa universidade. O
certo é que, só após redigir sua Arte é que o filósofo visitaria a cidade de Paris.
A atividade dele nesse período restringiu-se a duas práticas: estudo e
contemplação. Suas primeiras obras são O Livro da Contemplação, a Ars compendiosa
inveniendi veritatem e o Compêndio lógico de Algazali. Segundo Jordi Gaya essas são (em
especial o Livro da Contemplação) as obras-chave para a compreensão do sistema luliano. Ao
tomar conhecimento dessas obras, o rei Jaime, submeteu-as a um conselho formado por
franciscanos para averiguar seu conteúdo, obtendo um parecer favorável.
Este rei foi uma das autoridades da época que mais contribuiu na concretização
dos propósitos de Llull, autorizando seus livros e fundando o Mosteiro de Miramar, onde
treze franciscanos estudavam a Arte e o árabe. Pode-se afirmar que a Arte é um método lógico
destinado a comprovar a fé, ou seja, provar que esta é demonstrável por meio da razão. Foi
reformulado inúmeras vezes pelo seu criador visando sempre sua compreensão pelo maior
número possível de pessoas.
O Livro da Contemplação é uma obra de grande complexidade e foi escrita
primeiramente em árabe. Por sua vez a versão catalã

[...] ocupa el lugar de honor em La historia de La literatura catalana. Caso


prácticamente único em La historia de lãs lenguas romances, el catalán
tiene em los escritos de Ramon Llull, y muy especialmente em el Libre de
contemplació, um inicio que no deberá aguardar siglos de evolución para
obtner su obra maestra. La obra de Llull explora todas lãs posibilidades de
vocabulário, de estructura gramatical o de recursos estilísticos de La nueva
lengua. Estamos apuntando a outro de los riquísimos aspectos de La figua
de Ramon Llull. (GAYÀ, 2005)

A Ars compendiosa inveniendi veritatem possui uma estrutura totalmente


diferente do Livro da Contemplação, porque consiste na própria exposição do método. Seu
texto, muito mais breve, utiliza letras e figuras. Após essa introdução, segue mostrando a

14Ramon Llull estabelecerá um forte elo, mantido durante toda a sua vida com as ordens mendicantes. Apesar
das diferenças estruturais e espirituais dessas ordens, Llull foi bem recebido e influenciado por ambas.
67

explicação destes sinais e sua aplicação prática, exemplificando seu uso em questões
teológicas.

El Ars compendiosa inveniendi veritatem crea que será el esquema


permanete de la presentación Del Arte luliana: exposición de lãs figuras,
elenco de los resultados combinatórios contenidos em las figuras y
aplicación a cuestiones diversas, com referencia a todos los âmbitos de La
realidad.
Los elementos que llenan este esquema Iran sufriendo modificacioes muy
importantes, comportando La incorporación de elementos nuevos y
padeciendo La perdida de otros anteriores. Siguiendo cronológicamente
esta evolución, se accede a uma lucha tenaz de Ramon Llull por conseguir
audiência para sus propósitos, plenamente convencido de La utilidad
misionera, y aún universal, de su sistema. (GAYÀ, 2005)

Existem poucas informações sobre o funcionamento e a metodologia do


monastério de Miramar, bem como a participação de Llull nesse projeto. No entanto sabe-se
que sua estadia entre Montpellier e Maiorca, a frenética atividade literária do filósofo
deslancha. Seus escritos constituem um conjunto bem heterogêneo. Textos vigorosos,
recheados de reflexões, analogias, simbolismos, traços autobiográficos e idéias de reformismo
social, além do conteúdo filosófico e teológico que figuram como o principal ponto de sua
obra são produzidos. A partir daí, parece que seu porto será a cidade de Montpellier, onde
redigiu numerosos livros.
Também desse período em diante, identificamos uma nova forma através da qual
Llull irá lutar pelos seus projetos, ou seja, começa a desenvolver estratégias, específicas e
concretas para alcançar seus objetivos. Daí então começam suas andanças, numerosas
viagens, cujas metas eram conseguir apoio das autoridades da época para seus propósitos,
apresentar a Arte, nos meios intelectuais e é claro, promover a atividade pregadora.

Los acontecimientos posteriores, por outra parte, nos obligan a considerar


que esta estância de Ramon Llull em Montpellier significo um cambio de
estratégia. Habían transcurrido ya veinte años desde su conversión. La
mayor parte de ellos los había pasado em su tierra natal, dedicando cada
vez más espacio a La vida contemplativa, y asistiendo a La primera
andadura Del monastério de Miramar. A partir de ahora su vida se
desarrollará em contínuos viajes, trás el objetivo de conseguir atraer a SUS
planes las instancias verdaderamente decisivas de su época: el Papado, La
Universidad de París, el Rey de Francia, los órganos de decisión de las
ordenes mendicantes, ES decir los capítulos generales, e incluso um
Concilio Ecuménico. (GAYÀ, 2005)
68

Em 1287, Llull parte para Roma, a fim de conseguir o apoio papal. Nessa ocasião,
o papa Honório IV morre, e o filósofo ruma para Paris, antes da eleição do novo pontífice.
Sua primeira estadia em Paris durou aproximadamente um ano. Apesar da ausência de
informações sobre este período, presume-se que seu objetivo era conhecer a Universidade
parisiense. Llull intentava também o apoio dessa instituição que além de ser o centro mais
ligado à Sé, era também o local onde estavam os homens de saber mais destacados da época.
Foi lá que travou conhecimento com aquele que será posteriormente seu principal discípulo e
autor do Breviculum, Thomas Le Myésier.
As viagens de Ramon à Paris foram essenciais no sentido de mostrar os pontos de
dificuldade na compreensão do seu método. Ao ler publicamente sua Arte, pôde perceber a
pouca compreensão dos conceitos utilizados. A utilização de elementos árabes como os
sufis,15 também comprometiam o entendimento por parte dos cristãos que ignoravam traços
da cultura árabe. Apesar de buscar o apoio de instâncias importantes da Cristandade (papas,
reis, universidades), nunca perdeu a dimensão universalista de sua missão. Foi buscando a
absorção de seu pensamento também pelos leigos que reelaborou seu sistema inúmeras vezes
e escreveu obras destinadas a um público mais amplo compilando “muitos livros para a
capacidade dos homens iletrados” (RAMON LLULL, 1311b).
A pouca receptividade que a Arte luliana teve em Paris, levou o seu autor a uma
grave autocrítica. Ora, isso é perfeitamente compreensível se levarmos em conta que a base de
seus escritos e de sua ação evangelizadora era a Arte. Se não era compreendida, nem aceita,
como poderia frutificar e lograr êxito ao motivo para o qual fora concebida? Isso gerou um
sentimento de insegurança e dúvida sobre sua própria capacidade na execução do projeto
divino. “Llull Duda de su capacidad y Del valor de su entrega. Se insinua, sin Duda, La
grave crisis autodestructiva que padecerá três años después”. (GAYÀ, 2005)
Mas o maiorquino também atribuía o não entendimento de sua obra entre os
universitários devido à ausência de sentimento religioso entre eles. Com efeito, como já

15 O sufismo era uma forma de meditação que visava transportar o homem do mundo material para o plano
espiritual por meio da contemplação e da oração repetida, até a sua completa interiorização. Trata-se de um
conjunto de técnicas corporais e mentais para entrar-se em transe. Os sufistas acreditavam que poderiam
unificar-se com Deus misticamente, através destas práticas. O sufismo não é uma tendência organizada no
sentido de que é realizada de maneiras diferentes entre sunitas e xiitas. Em seu primórdio, não contou sempre
com a aprovação de toda a comunidade muçulmana, sendo alguns sufistas acusados de blasfêmia pela sua noção
de harmonia com Deus.
69

tratado no capítulo anterior desta pesquisa, os filósofos parisienses situavam-se em uma


delicada posição fronteiriça entre razão e fé. É significativa também a preocupação que ele
tinha em relação aos muçulmanos. Embora pregasse também em sinagogas, é inegável que os
maiores esforços doutrinários dirigiram-se aos primeiros. Talvez porque considerasse que a
religião cristã, possuía mais pontos de convergência com o Judaísmo do que com o
Islamismo. Por este motivo, acabou tendo um conhecimento considerável sobre a cultura
árabe.
De volta à Roma, passou por Gênova. Possuía conhecidos lá, era familiarizado
com a família Spinola e com círculos de comerciantes e dirigentes políticos. Essas fases são
brevemente descritas na Vida Coetânea. Em compensação, os episódios seguintes,
protagonizados em Túnis são bem mais detalhados. Ao embarcar, Llull sente medo, fazendo-o
desistir de embarcar. Esse fato traz uma crise moral gravíssima ao filósofo. Sentindo-se
envergonhado e triste por ter sucumbido à em tentação, logo caiu doente e abatido.
É nessa ocasião que o autor da Arte se deparou pela primeira vez com sua própria
fraqueza e vulnerabilidade. Essa espécie de depressão sobreveio como uma forma de punição
pela sua falha. Na Vida Coetânea “encontramos diversos episódios que hay que valorar em
referencia al núcleo de La crisis: La angustia Del creyente ante La propia incapacidad para
someterse al sacrifício que le pide su conciencia religiosa” (GAYÀ, 2005) .
Ao ser medicado pelos dominicanos, escutou uma voz que lhe disse que era nesta
ordem que deveria alcançar sua salvação e só não tomou o hábito, devido a ausência do prior.
Mesmo assim, meditou longamente sobre isso. Sua dúvida residia no fato de os franciscanos
terem recebido sua Arte de forma positiva. Quer dizer: deveria optar pela sua própria salvação
ingressando na ordem dos pregadores ou escolher a salvação de muitas almas abraçando a
ordem dos freires menores já que estes não relegariam sua Arte ao esquecimento? “E o dito
reverendo mestre Ramon elegeu mais cedo sozinho ser danado do que perder sua Arte, com a
qual muitos poderiam se salvar, tanto que havemos dito que amava mais seu próximo do que a
si mesmo.” (RAMON LLULL, 1311b).
Para entender o dilema vivido por Llull é importante compreender algumas
diferenças cruciais entre dominicanos e franciscanos. A pregação de São Francisco e seus
companheiros sempre gerou desconfianças no clero segular, que talvez os julgassem
despreparados intelectualmente para falar sobre as Escrituras ou talvez os tivessem como
70

membros de um novo movimento herético. Mesmo assim, ele sempre procurou colocar-se em
uma posição respeitosa e obediente face à Igreja.
Ao retornar à Itália, o pregador enfrentou diversos problemas, sendo o mais grave
deles, as decisões autônomas tomadas por seus seguidores durante sua ausência. Para resolver
parte do problema, estabeleceu uma regra aprovada pelo papa em 1223. Mesmo assim, antes
de sua morte, viu muitos de seus seguidores enveredarem por novos rumos. Dentre os
principais valores prezados por São Francisco de Assis temos:
a) A pobreza e a simplicidade. Vauchez esclarece-nos magistralmente acerca dos
ideais franciscanos em relação à primeira:

Assim se explica a sua hostilidade visceral face ao dinheiro, que ele proibia
aos irmãos de receber e possuir. Isto porque a posse da moeda não confere
apenas uma sensação de poder ilusória, falseia igualmente as relações entre
os homens e situa os que possuem entre os opressores. Em conformidade
com as idéias econômicas de seu tempo, o filho de Pietro Bernardone estava
convencido de que a quantidade de dinheiro disponível no mundo era
constante e que, ao enriquecer ou acumular riqueza se empobrecia os outros.
(VAUCHEZ, 1994, p. 257)

Para imitar a Cristo, seu maior referencial, fazia-se necessário despojar-se de


todos os elementos materiais que desvirtuavam os homens semeando entre eles
desigualdade e contendas. Ora, a posse de dinheiro implicava em poder e este,
distancia os homens pelos sentimentos de cobiça e inveja que desperta. Por
isso, ao ingressar na ordem o candidato deveria distribuir todos os seus bens
entre os pobres, ficando apenas com algumas peças de roupa;
b) a mendicidade em conseqüência da pobreza. Ao contrário das futuras
acusações dos seculares essa mendicância não era sinônimo de parasitismo.
Cada homem deveria viver de seu trabalho, dividindo tudo com seus irmãos
de comunidade e recorrendo à esmola apenas quando não conseguisse suprir
suas necessidades por meio de seu esforço;
c) a obediência literal à sacra doctrina. Ao contrário dos teólogos de sua época
que viam as Escrituras como um grande símbolo a ser codificado, Francisco
traduzia da maneira mais simples possível o significado do Evangelho.
Embora nutrindo profunda admiração pelos teólogos via o saber com grande
cautela;
71

d) a prevenção em relação aos estudos. Isso se explicava pelo fato de o


conhecimento também conferir status e poder observando que “[...] numa
época em que os livros valiam muito e eram ainda assimilados a tesouros, o
simples facto de os possuir não se arriscaria a colocar os irmãos ao lado dos
ricos e a conduzi-los à presunção, dando-lhes a ilusão de ter resposta para
tudo?” (VAUCHEZ, 1994, p. 258)
e) Obediência. Assim como o homem deve “pisar nas pegadas de Cristo” o
religioso deve seguir as prescrições de sua ordo. É certo que apesar de pregar
valores, em certa medida, originais para o seu tempo, Francisco de Assis
jamais se chocou com as autoridades do seu tempo, fosse das Escrituras ou
dos próprios homens da Igreja. Nesse sentido, aproximou-se de Ramon Llull
que além de também ter feito seguidores e criado um método próprio para
alcançar tanto as verdades da fé quanto as da razão, sempre se colocou a
serviço da religião cristã, jamais ficando à parte dela, mas antes, reforçando-a.
Ambos eram em certa medida místicos cuja “[...] obediência à Igreja exclui
qualquer servilismo e não deixa de reivindicar o apelo particular que Deus lhe
dirigiu” (VAUCHEZ, 1994, p. 260). Embora seus seguidores tenham
interpretado sua mensagem de diversas maneiras, ela ilustra a emergência de
novas formas de estabelecer o tão desejado elo entre Deus e suas criaturas.16
Por sua vez a ordem fundada por São Domingos17 dava uma atenção toda especial aos
estudos. Domingos reforçou a formação teológica de seus irmãos, dando-lhes uma preparação
específica para a pregação, prática rejeitada pelos primeiros freires menores. Além disso, os
votos de pobreza dos dominicanos eram menos rígidos. Outra diferença estava na própria
admissão dos membros nas ordens. Enquanto os pregadores eram membros do clero com

16Colocamos aqui o termo “criaturas” respeitando o pensamento franciscano que incluía todas as formas de vida
- animais, rios, plantas e a natureza de uma forma geral – como dotados do amor de Deus.

17 Nasceu em Caleruga, em mais ou menos 1170. Também de origem nobre, ingressou no clero desde a tenra

idade, ficando desde já conhecido por sua caridade. Logo ao assumir o cargo de subprior teve contato com as
heresias que naquele momento expandiam-se consideravelmente. Ao chegar no campo em companhia de um
irmão foi mal recebido. Com isso, Domingos percebeu que a simplicidade era uma forma mais adequada de
atingir as populações mais rústicas. Deixou seu cargo de subprior e mudou de tática, revestindo de conversão na
imitação dos apóstolos, humildade e a prática da mendicidade, quase simultaneamente à execução da mesma
prática pelos franciscanos. Daí resolveu então estabelecer-se em Tolosa, uma comunidade de irmãos com dois
objetivos bastante específicos: converter os hereges, reintegrando-os à Igreja e suprir as insuficiências do clero
secular. Esse é outro ponto diferente entre franciscanos e dominicanos. Os primeiros transformaram-se em uma
ordem de forma espontânea. No caso dos últimos já surgiram submetidos a uma regra e antes de inovar, seguiam
carismas já consagrados adotando a regra de Santo Agostinho.
72

formação específica, os menores igualavam as funções de clérigos e leigos. Entre a ordem de


São Domingos:

[...] os conversos (religiosos não sacerdotes) que os assistiam eram remetidos


para as tarefas materiais: assegurar a vida quotidiana dos conventos e ganhar
o alimento dos irmãos clérigos indo mendigar. Parece que S. Domingos
desejou conferir-lhes um poder importante no seio da ordem, confiando-lhes
a inteira responsabilidade do aspecto temporal a fim de que os pregadores,
livres de toda a preocupação, pudessem entregar-se unicamente a tarefas
espirituais. Mas os seus companheiros opuseram-se. Ateve-se assim a
fórmulas mais tradicionais, inspiradas em Cister e Prémontré, onde os
conversos se achavam subordinados aos clérigos em todos os planos.
(VAUCHEZ, 1994, p. 267).

No tocante ao lugar desempenhado pelos estudos e os livros na formação da


palavra pregada pelos dominicanos é válido afirmar que estavam mais sintonizados com a
nova realidade vigente nos séculos XII e XIII, que conferira aos intelectuais, um lugar todo
especial na sociedade. Apesar de ser bastante sensível à cultura e ao conhecimento, Domingos
não deixou obras escritas de grande vulto.
Depois de tais esclarecimentos fica mais fácil entender porque Ramon Llull ficou
em dúvida sobre qual ordem deveria ingressar. Embora uma leitura superficial possa
erroneamente sugerir uma semelhança exagerada a essas ordens (que não deixa de existir
quanto à espiritualidade), são patentes as diferenças na organização interna de cada uma, na
forma de ver o mundo e de colocar em prática seus carismas.
Se por um lado, Llull como os dominicanos primava por uma boa formação
intelectual que permitisse argumentar de forma convincente junto aos infiéis, a inspiração
franciscana parece ter sido extremamente marcante na decisão de Ramon em abandonar seu
lar e seus bens para pregar. O ponto causador dessa indecisão situava-se na Arte que o beato
temia muito que se perdesse, pois era a sua maior arma na realização do projeto de conversão
e o fruto mais direto de seu contato com Deus.
Mas no que consiste a Arte? Em um conjunto de obras produzidas ao longo de sua
vida. Mais que isso, trata-se de um método para alcançar verdades da razão e da fé, um
método lógico que visa a resolução de todos os tipos de questões, útil tanto na formulação
teórica quanto na aplicação teórica. Um método que fornecia leis gerais para todas as ciências
conhecidas na época. Um método com símbolos e conceitos próprios, mas, que uma vez
73

compreendidos, poderiam ser utilizados da forma mais ampla e geral, como assim ocorria
com todo o conteúdo de seus demais escritos.

O beato propõe-nos uma ciência das ciências, um mecanismo em torno do


qual possamos agrupar, estudar e explicar todos os outros conhecimentos.
Além disso, sempre o faz olhando para dentro, isto é, fazendo referência ao
coração artístico de sua obra. (BONNER, 200-?).

Essa tentativa de criação de uma ciência universal foi uma das originalidades de
Llull. Essa idéia foi retomada por muitos filósofos que viveram depois dele. O filósofo
acreditava que para chegar à verdade era preciso se desfazer de todos os pré-conceitos,
despojando-o de julgamentos prévios, ou seja, para chegar ao conhecimento, todas as
possibilidades deverão ser testadas. Por isso a utilização de autoridades era totalmente
desnecessária na aplicação do método luliano.
De uma forma bem simples podemos denominar como fazendo parte desse
conjunto a Ars compendiosa inveniendi veritatem ou Ars Magna (127-?), Ars demonstrativa
(127-?), Ars inventiva (1289), Tabula Generalis (1293), Arbre de Sciencia (1296), Logica
Nova (1303), Ars Generalis ultima (1308) e Ars Brevis (1308). O cerne da questão trazida a
tona pela Arte, fazia parte de um debate mais amplo, travado durante praticamente toda a
Idade Média, pelos homens de saber e ciência: a conciliação, o equilíbrio e as relações entre
fé e razão. Seriam elas complementares? Uma anulava a outra? Uma ajudava na compreensão
da outra? Ou negavam-se mutuamente?
Alguns estudiosos acreditam que a Arte luliana foi inspirada em algum modelo da
cabala judaica18. Isso porque nela Llull se utilizou de figuras e letras para expor as Dignidades
divinas e também consistia em um modelo combinatório que permitia diferentes resultados.
Os conceitos apresentados versavam sobre virtudes, vícios, sujeitos, perguntas e os princípios
relativos (da criação) e absolutos (Dignidades). De acordo com ele as Dignidades possuíam
um duplo movimento (ad intra e ad extra). Exemplificando esse pressuposto, citamos o caso
do próprio Deus que possuía uma atividade ad intra, a contínua relação ocorrida entre a
Santíssima Trindade e um movimento ad extra, a relação de Deus com os homens.

18 A Cabala era um sistema complexo que possuía duas vertentes chamadas de teúrgica e antropocêntrica. Para o
nosso estudo, vale apontar que a Arte de Llull possuía uma certa semelhança com essa filosofia. Na Cabala era
possível atingir-se o conhecimento de Deus através da meditação dos conceitos das sephiras. Estas se tratavam
nada mais nada menos que das Dignidades divinas. Claro que em cada doutrina essas dignidades variavam, mas
idéia geral era de que o conhecimento de Deus poderia ser atingido por meio do conhecimento de sua essência.
74

Na Cabala existe uma combinação das vinte e duas letras do alfabeto hebreu. A
combinação e a permutação dessas letras permitia a apreensão das características e potências
de Deus assim definida por Souza (2005):

Permutar e combinar estas letras e depois pronunciar, anotar e contemplar o


resultado destas operações (que valem para todo o alfabeto) levariam o
místico a um estado de êxtase por comungar com as potências de cada letra e
com o poder do signo formado pelas mesmas. Não obstante, esta escola
utiliza este método para realizar exegeses bíblicas, formando proposições
com a permutação de letras e palavras, bem como atribuindo às mesmas um
valor numérico.

Ambos os sistemas são estruturados logicamente, com a combinação de letras e


figuras, acreditam poderem alcançar a verdade por meio de sua utilização e que a revelação de
Deus passa pelo conhecimento de suas potências. Também se utilizam de símbolos comuns
como a árvore, para facilitar a compreensão e a visualização dos conceitos e são
autoreferenciais. No caso da Arte de Llull a árvore é usada também como um recurso de
memorização dos conceitos.
A região em que Llull vivia, a Península Ibérica, proporcionava um contato entre
as religiões, filosofias e culturas das três religiões monoteístas da época. Embora Ramon não
tenha aprendido a falar o hebraico – não havia necessidade já que os judeus que viviam em
Maiorca falavam catalão, o filósofo aprendeu muito sobre eles. Ele teve o mérito de perceber
as peculiaridades tanto da cultura árabe quanto da judaica, absorvendo alguns de seus valores
e reutilizando-os de forma modificada em sua própria obra.

Assim, faz-se imprescindível demonstrar as correlações metodológicas entre


a Arte luliana e a Cabala judaica, por acreditar que os métodos eram um
modus operandi característico da época e da região em que ambas as
filosofias coexistiram (SOUZA, 2005).

Um importante diferencial da obra luliana, especialmente se levarmos em


consideração o período em que viveu, é a ausência de citações à autoridades. Como já
exposto, o ensino medieval, suas discussões e comentários estavam todos pautados na
recorrência ás autoridades. Ela apresenta-se como uma espécie de “autoridade alternativa”,
uma vez que se trata de um sistema baseado na inspiração divina decodificada e racionalizada
75

através de um método, que embora de conteúdo religioso, pouco ou nunca fazia menção à
Bíblia.
Também não fazia referência à cultura escrita do período, como as inúmeras
traduções gregas e comentários sobre essas obras, o que leva Bonner (200-?) a afirmar que é
espantoso o caráter “[...] ahistórico, abstrato, descontextualizado e autorefencial [...]” das
obras lulianas. Dos séculos XI ao XIV, lentamente vai se processando uma mudança de uma
transmissão de cultura por meio da oralidade para uma cultura escrita, fenômeno influenciado
diretamente pela recuperação de textos antigos e uma nova produção, resultado a um só tempo
da síntese e interpretação desses mesmos escritos. Essa produção era fragmentária pois,

Destarte, no ensino predominaram não as leituras seqüenciais dos textos


básicos, mas as de florilégios e compilações não somente de sentenças, mas
também de receitas espirituais, de decisões canônicas, de exempla para os
pregadores, de vidas de santos, etc. Esta fragmentação pedagógica e
intelectual acentuou-se ainda mais com a formação universitária medieval
básica, que consistia, como se sabe, nas quaestiones disputatae.
(BONNER, 200-?)

A recorrência ao uso de autoridades acabava gerando problemas complexos dos


quais destacamos apenas dois: as contradições que surgiam entre reconhecidas autoridades na
mesma área e o retardamento de uma postura mais científica, uma vez que as autoridades
eram muitas vezes dotadas de uma infalibilidade que neutralizava questionamentos que lhes
fossem contrários, ou seja, muitas vezes as teorias formuladas deveriam enquadrar-se à letra
das autorictas.
Pode-se afirmar então, que a educação medieval era formada através do estudo e
comentário dos textos, recorrendo-se correntemente à esses mesmos textos para justificar
posições ou seja “[...] baseado na intertextualidade, que constituía a sua justificação e razão de
ser” (BONNER, 200-?). Llull colocava-se positivamente contra essa forma de construção do
conhecimento. Recorria às razões necessárias, inaugurando assim uma forma original de
condução das próprias disputas. O Livro do Gentio e dos Três Sábios é uma forma de
demonstrar de que maneira os debates poderiam ser prolíficos sem passar pela discussão de
interpretações textuais, mas de interpretações racionais. Em suas obras razão e fé não se
anulam, mas andam de mãos dadas. Somente contando com as duas juntas, o homem poderia
entender e amar a Deus.
76

Podemos depreender disso, que a autoridade sugerida por Llull é a própria


autoridade divina. O homem (no caso, o filósofo), estava apenas no papel coadjuvante de
organizador do método, tornando-o inteligível aos outros homens, quer dizer, sua obra era em
certa medida autoreferencial, pois a base de argumentação racional utilizada por ele era
extraída de sua própria Arte.
Mesmo tendo conseguido a aprovação de sua obra em várias instituições de
ensino da época, inclusive a Universidade de Paris, após a sua morte, os seguidores de Llull,
não foram bem vistos justamente devido ao caráter independente de seus escritos. Naquele
contexto controlador no qual a Igreja atribuía a si própria o papel de única intermediária entre
Deus e os homens, qualquer livre interpretação acerca dos dogmas cristãos era tida como um
perigo para a unidade da instituição. Apesar de ser reconhecidamente um defensor da unidade
cristã,

[...] tal empresa, pela sua auto-suficiência e pela sua proposta de


métodos alternativos, não apenas formava uma comunidade
intelectualmente e espiritualmente isolada da sociedade bien pensant,
senão que pela sua atitude aberta ou implicitamente crítica dos
poderes públicos e da Igreja, naturalmente iria suscitar a oposição
destes estamentos. (BONNER, 200-?).

Após esses acontecimentos, Ramon finalmente rumou para Túnis, iniciando assim
sua ação missionária entre os muçulmanos. Dirigiu-se inicialmente aos sábios islâmicos,
colocando em prática seu método, através de um debate por meio do qual pretendia provar
que a doutrina que seguiam era falsa, demonstrando as razões necessárias.
Nesse período algumas cidades da África praticavam o comércio com a Europa.
Em Túnis, por exemplo, existiam muitos mercadores maiorquinos com seus funduqs19 e uma
capela cristã onde vivia um cônsul. Llull não era o primeiro a pregar em terras muçulmanas.
Outras missões implementadas pelos membros das ordens mendicantes já vinham ocorrendo.
As tentativas de conversão se davam diretamente com os membros da elite local. Ao se
dirigirem aos líderes políticos e religiosos, os pregadores estavam demonstrando respeito e
primando pelas relações de paz e pelo comércio entre as cidades envolvidas. Ramon desejava
que todos compartilhassem de um amor devoto por Deus e tomassem parte na sua missão.

19 Locais onde funcionavam depósitos na parte inferior e hospedarias na parte superior do prédio.
77

Buscou o tom conciliatório, norteando o diálogo primeiramente nos pontos


convergentes entre cristãos e muçulmanos ou seja: a crença no Deus único e na existência das
Dignidades divinas. Essas Dignidades eram chamadas hadras pelos místicos muçulmanos.
Estes místicos também participavam de um ritual chamado tariqa. Eram conhecidos como
sufis.
Nele, os islâmicos recitavam poemas de louvor, acompanhados de exercícios
corporais, respiratórios, de danças e músicas. Era uma forma de invocação, meditação e
tentativa de aproximação com Deus. O Livro do Amigo e do Amado foi inspirado na tradição
sufi:

Llull conhecia bem esta elevada forma de expressão religiosa. Em sua época,
o sufismo espanhol estava bastante entrelaçado com o estudo da filosofia e
dependia em boa medida do desenvolvimento do misticismo no norte da
África (WATT, 1995, p. 157).

O beato sabia como se fazer ouvir, pois pregava utilizando tradições dos próprios
muçulmanos. Sua atitude de respeito frente aos artigos da lei de Maomé, já era um grande
diferencial em relação aos demais pregadores de sua época, que debatiam apontando inicial e
diretamente aquilo que consideravam como os erros dos infiéis . Usava o conhecimento do
outro, como uma arma na sua conversão, não utilizando-a no sentido de hostilizar, mas de ser
compreendido mais facilmente. A postura de Ramon Llull em relação às demais religiões não
foi sempre a mesma. Assim encontramos simultaneamente informações bastante ofensivas aos
muçulmanos na Doutrina Pueril e uma postura responsável e ponderada no Livro do Gentio e
dos Três Sábios.
Ele seguiu os cânones expressos no período para esse tipo de debate. Este
acontecia entre as autoridades de cada religião não envolvendo a população local. Havia é
claro, outras questões envolvidas. Essa postura de cunho estratégico possibilitava a paz nas
relações comerciais. “Para ello se exigía el respeto y La no ingerência em los asuntos
internos, los religiosos em primer término” (GAYÀ, 2005).
Ramon respeitava os padrões colocados e buscava situar suas ações dentro dos
códigos colocados pelas autoridades as quais recorria. É assim que irá redigir inúmeras
petições a reis e papas, expondo suas idéias, pedindo apoio para executá-las. Embora seus
pedidos tenham sido por vezes ignorados, não raro o filósofo obteve êxito em suas
78

ingerências, como por exemplo a fundação da Escola de Miramar, a autorização para pregar
em mesquitas e sinagogas e a influência na organização de uma cruzada. E, ainda que não
raro se ressentisse em ser considerado louco, fantástico, era considerado por muitos como
sábio, o que é atestado pela sobrevivência do lulismo, séculos após a sua morte, persistência
meritória também aos seus discípulos.
Em suas duas viagens à África, Ramon defendeu sua fé, de forma distinta, com
um pensamento alterado entre uma e outra. Em Túnis, estava imbuído de otimismo, de
tolerância e respeito. Visava colocar na prática, o modelo de diálogo proposto em suas obras,
sobretudo no Livro do Gentio e dos Três Sábios. Em sua segunda viagem, ao norte da África,
dessa vez para Bugia, adota uma postura mais radical e pragmática sendo favorável às
cruzadas e entregando-se ao martírio.
Sua visita à Roma foi infrutífera. A despeito de todos os esforços, não conseguiu
ajuda para os seus projetos de conversão dos infiéis. Também sua segunda visita à Paris não
foi muito proveitosa. Teve oportunidade de mais uma vez ler publicamente sua Arte e ter um
contato mais direto com as questões debatidas principalmente nas faculdades de Artes e
Teologia, além de estabelecer elos com os cartuchos de Vauvert, os escritores de sua
autobiografia.
A partir de então, Llull passou a conhecer de perto os “erros” divulgados entre os
próprios cristãos. O filósofo, de conhecimento de teses condenatórias às novas idéias, acaba
rotulando-as sob a denominação “averroísmo”, ao qual se disporá a erradicar sobretudo em
sua terceira viagem à Paris.
Embora a idéia do martírio já viesse sendo gestada em sua mente há algum tempo,
Llull manteve-se ainda numa linha conciliatória travando debates e sermões com os
sarracenos que encontrava pregando nas mesquitas e sinagogas e direcionando novos escritos
para judeus e muçulmanos. Um outro acontecimento que muito provavelmente pode ter
afetado a postura luliana frente à maneira de conversão, foi a perda da Terra Santa. Pouco a
pouco, vai se tornando mais favorável às Cruzadas. Devido às suas muitas viagens chegou
mesmo a pensar em estratégias que poderiam ajudar os cristãos na retomada do território.
Apesar de sua idade avançada, Llull continuou viajando a fim de pregar aos infiéis
e durante este período nunca deixou de escrever. Mesmo a sua busca pelo martírio foi algo
que ele buscou, já com uma idéia do que poderia lhe ocorrer de antemão. Por isso escolheu
pregar entre os muçulmanos. Essa busca pelo martírio, vislumbrava dois propósitos: retornar
79

às origens do cristianismo primitivo – morrer em defesa da fé era a garantia de acesso à glória


celestial – e servir como exemplo de conversão.
É notável que o caráter conciliador das ações do maiorquino estava cedendo lugar
a uma espécie de radicalismo. Assim é que ao fazer sua segunda viagem missionária à África,
afirma em árabe com altos brados que “a lei dos muçulmanos é falsa e errônea” (RAMON
LLULL, 1311b), causando obviamente um grande furor entre os islâmicos. Estes ao invés de
argumentarem com o beato (já conhecendo sua fama), acharam mais conveniente encerrá-lo
em um cárcere, reconhecendo que era difícil ou mesmo impossível refutar as razões
apresentadas por Ramon como esclarece o trecho a seguir:

Um dos legistas muçulmanos conhecia Ramon. Tinha escutado suas prédicas


e viajara com ele de Gênova para Túnis: mesmo em alto-mar Llull não
desperdiçava a chance de pregar e dialogar com os muçulmanos. O legista
aconselhou que a Sura não o trouxesse ao palácio para ser interrogado pois
ele tinha “tais razões contra nossa lei que será difícil, senão impossível,
responder-lhe. (COSTA, 2001)

O dogma cristão da Santíssima Trindade era o fator que gerava maior litígio entre
cristãos e muçulmanos.20 Para estes últimos repartir um Deus em três era o mesmo que cultuar
o politeísmo. Diziam que Deus era um só e que Jesus Cristo não era Deus, mas apenas um
mensageiro Dele. E apesar de acreditarem nas Dignidades como hadras, não acreditavam
nelas da mesma forma que Llull as explicava. No pensamento luliano, todas as coisas estão
organizadas em trilogias, como reflexo, imagem e semelhança da Santíssima Trindade, como,
por exemplo, a alma, dotada de inteligência, vontade e memória. Portanto, podemos constatar
que mesmo os pontos convergentes entre as doutrinas como a crença nas Dignidades divinas,
geravam inúmeras discordâncias e atritos.
A primeira idéia entre as autoridades muçulmanas foi a de punir o beato com a
morte, o que não ocorreu graças à intervenção do cádi21 da cidade, que achou mais
conveniente encerrá-lo no cárcere. Ao ser conduzido para fora da cidade, sofreu inúmeras
agressões dos mouros que desejavam linchá-lo. Observe-se que o filósofo já se encontrava em

20
A Santíssima Trindade é a base da doutrina crista que crê em um Deus uno e trino composto de Pai (Deus),
Filho (Jesus Cristo) E Espírito Santo. O Islamismo nega e recusa este dogma. Este ponto constituiu-se em um
dos maiores problemas para Llull, posto que, tornava a lei muçulmana e a cristã inconciliáveis.

21 Representante do sultão, exercendo também as funções de juiz e notário.


80

idade avançada (por volta dos 60), fator que parece não ter influenciado nem sua atividade
intelectual nem suas ações.
Nesse meio tempo, recebeu visitas de mestres muçulmanos que tentaram
convertê-lo ao islamismo. Llull permanece irredutível. Vendo que seus esforços eram em vão,
as autoridades decidiram expulsá-lo de suas terras. Antes porém, o maiorquino redigiu a
Disputa del Cristiano Ramon com el sarraceno Hamar. No navio rumo à Gênova ocorreu um
naufrágio, no qual Llull e outro viajante escapam com vida, mas seus livros são perdidos.
Sobre este ponto vale assinalar que, sendo um homem precavido, espalhava seus escritos
pelos diversos locais aonde ia. Por isso mesmo após o naufrágio perdeu somente alguns
exemplares, mas não teve sua obra destruída.
Ramon Llull não obteve sucesso na utilização do seu método apologético, não
chegando a conquistar seu grande sonho: a conversão dos infiéis. O maiorquino também se
preocupava deveras com a Terra Santa que se encontrava em mãos muçulmanas e com a
expansão não só territorial, mas também ideológica do Islamismo. A partir de então, apoiou as
cruzadas como forma de recuperar a posse de Jerusalém e possibilitar a conversão
muçulmana.
Paulatinamente, vai deixando de lado sua postura pacífica e conciliadora, presente
no Livro do Gentio e dos Três Sábios e nas primeiras obras escritas logo após sua conversão.
Ainda assim, não deixou a razão de lado e sempre colocou o diálogo como forma privilegiada
de contato. Embora imbuído dos preconceitos cristãos e da ideologia católica da qual fazia
parte, sempre adotou um comportamento próprio, diferencial dos seus contemporâneos, tanto
no método utilizado, quanto na postura adotada.

Apesar de não ter conseguido na prática implementar seu ideal de conversão,


os ideais lulianos de comunhão e diálogo calcados na razão e na
compreensão do outro em sua plenitude tornam sua mensagem sempre atual
enquanto nesse mundo houver fé. (COSTA, 2001).

Sua terceira visita à Paris parece ter sido a mais proveitosa. Foi ouvido por
mestres e estudantes, recebendo uma carta de aprovação à sua Arte e a expressão de sua
compatibilidade com a doutrina cristã. Foi então que incluiu um novo alvo apontado como
erro tão grave quanto as religiões judaica e muçulmana: o averroísmo, linha de pensamento
81

que, de acordo com ele, punha em dúvida o princípio da fé. Seu desejo era de que tais teorias
fossem extirpadas da Universidade de Paris.
Ramon Llull não só acreditava que fé e razão eram complementares como julgava
que os artigos da fé, podiam ser comprovados por meio da razão. Para ele, o real podia ser
atingido pelo homem através de um método. Esse método que relaciona vontade, lembrança e
entendimento é a Arte, onde a verdade é propriedade do real. Desse modo, era impensável
para esse filósofo uma doutrina que admitisse duas verdades, uma de acordo com a razão e
outro concordante com a fé. Para ele, os averroístas representavam um perigo mortal para a
unidade cristã e os defensores desta doutrina, tão perigosos quanto os muçulmanos.
Outra preocupação foi a unificação das ordens militares. Parece que Llull
manteve-se neutro nessas questões, apesar da gravidade que alcançaram. Foi a Ordem dos
Templários ao lado da Ordem dos Hospitalários, a única a impor o controle no caos que se
instalou na Terra Santa durante o período das Cruzadas. Os Hospitalários também eram
monges guerreiros que dividiam seu tempo entre orações e lutas, além de prestar assistência
médica aos peregrinos.
Estas ordens acabaram entrando em choque em algumas ocasiões, chegando a
serem concorrentes. A insistência de Ramon na unificação das ordens militares situava-se no
fato de que a perda de São João de Acre foi atribuída à desunião e brigas de poder entre essas
ordens. Não só ele como vários autores da época defendiam essa idéia. Uma ordem única
deveria ser chefiada por um rei.
Nesse período, os templários sofreram graves acusações e perseguições por parte
do rei da França. Ramon não se envolveu na questão da ordem dos Templários. Jaime II era
favorável a ordem, enquanto que o rei da França buscava de todas as maneiras destruí-la,
tecendo graves acusações contra Ordem, acusações estas, nunca comprovadas22

22 O surgimento da Ordem do Templo de Salomão ou Ordem dos Templários como ficou mais conhecida
posteriormente foi conseqüência direta das Cruzadas. Sua finalidade era proteger os peregrinos que iam à Terra
Santa, pois apesar da vitória militar a região continuou insegura e instável; as cidades conquistadas eram
cercadas de muçulmanos. O fundador dessa ordem foi um cavaleiro chamado Hugo de Payns. A eles juntaram-se
mais nove homens, oriundos em sua maioria da nobreza francesa. Os membros recebiam além da formação
monástica, formação militar, jurando defender a fé cristã com suas espadas. Apesar dos votos de pobreza com o
tempo porém a ordem enriqueceu devido às doações de terras e bens feitas por nobres. Gozavam de isenção de
impostos e chegaram mesmo a se envolver em atividades financeiras como empréstimos, depósitos e
investimentos. Os problemas dos Templários começaram quando o rei francês Felipe, o Belo acusou os membros
da ordem de heresia. Embora as acusações não tenham sido comprovadas, muitos de seus membros foram presos
ou mortos pela Inquisição. A maioria dos estudiosos desse conflito supõe que as graves acusações que o rei fez
teve o propósito de se apoderar De suas riquezas. Com efeito, o rei francês tornou-se o soberano mais poderoso
da Cristandade, usando sua influência inclusive para eleger um papa também francês, Clemente V em 1305. Para
82

O Concílio de Viene, ocorrido em 1311 e convocado por Clemente V configurou-


se em uma excelente oportunidade para Llull expor suas novas idéias, sempre apresentadas
em forma de petições. Seus dez pedidos englobavam todas as questões que envolviam sua
missão, porém muitas delas ligadas aos estudos: fundação de escolas de línguas em Roma,
Paris e Toledo, perda das cátedras para os filósofos discordantes da teologia cristã e reformas
nos estudos de direito e medicina.
Outras solicitações diziam respeito à reconquista da Terra Santa, como a
unificação das ordens militares e estabelecimento de dízimo para financiar as Cruzadas. Por
fim, clama por um programa de pregação em mesquitas e sinagogas e a regulamentação de
prebendas e hábitos religiosos. Grande parte de suas petições foram atendidas, mesmo aquelas
referentes à Terra Santa.

Contudo, motivos mais circunstanciais pesaram também nestas viagens. No


ano de 1285, Jaime II, rei de Maiorca e protetor de Lúlio, perdeu as ilhas
Baleares ao aliar-se, contra seu irmão Pedro II, de Catalunha e Aragão, com
Felipe IV o Belo, da França. É possível que Lúlio, sempre à procura de um
protetor poderoso que o ajudasse na consecução de seus objetivos, preferisse
Felipe IV da França a Alfonso II de Aragão, que, apesar de ser irmão de
Jaime II, era também filho e sucessor de Pedro II. O certo, porém é que
Lúlio viu-se forçado a abandonar sua ilha e a viver viajando pelo continente,
sobretudo a Montpellier, ao sul da França, cidade onde fixara sua corte
Jaime II. Nas suas idas a Paris, Lúlio procurou cativar o interesse da corte
francesa para os seus projetos práticos [...]. (JAULENT, 2001)

Llull passou a mostrar-se favorável às Cruzadas depois da perda de territórios em


Jerusalém pelos cristãos. Mas com certeza a sua visão sobre esse movimento contrastava com
a dos demais homens de sua época. Para ele não deviam praticar o extermínio, mas a
conversão dos infiéis.

Numa primeira época, Lúlio afirmava que a evangelização dos infiéis


deveria ser essencialmente uma obra de amor, realizada principalmente pela
inteligência. Daí seu desejo de propor aos sábios e aos homens de cultura de
outras religiões a verdade católica. Iluminar, assim, em primeiro lugar os
espíritos a fim de preparar os corações para a infusão da graça. A conversão
das almas, pensava Lúlio, não podia ser senão um ato de liberdade. Mais
tarde, perante o fracasso de seus esforços pacíficos, aperfeiçoará a sua

maiores informações sobre os Templários sugiro as leituras de READ, Piers Paul. Os Templários: Imago, 2000.;
BURMAN, Edward. Os Templários. Os cavaleiros de Deus: Nova Era, 1997. e DEMURGER, Alain. Os
Cavaleiros de Cristo: Jorge Zahar, 2002.
83

posição e afirmará que, se o adversário recusar o diálogo, a cristandade terá


então o direito de o obrigar, pela força, a aceitá-lo. É isso o que nos dirá no
seu célebre Liber de Fine23. (JAULENT, 200-?)

No seu Livro da Aquisição da Terra Santa, Ramon expõe as estratégias políticas e


militares que poderiam possibilitar essa conquista. Seu contato com reis e papas, bem como
suas viagens, davam-lhe uma posição privilegiada para distinguir e formular estratégias. O
primeiro passo seria a união entre a cristandade oriental e ocidental pondo fim ao Cisma
iniciado em 1024. Julgava que a união da cristandade possibilitaria um êxito mais rápido. Por
tudo isso, é fácil perceber que Llull não era um visionário. Ele sabia bem o que queria e como
alcançar. (RAMON LLUL, 1305)
Em sua terceira viagem missionária dirige-se à Sicília. Nesse momento as relações
entre Maiorca e Sicília eram as melhores possíveis. O rei de Maiorca era primo do rei da
Sicília e estes tinham estabelecido um pacto com Túnis melhorando as condições de
comerciantes maiorquinos. Desse projeto também fazia parte um plano de reforma religiosa
organizada por laicos e o clero diocesano. Jordi afirma que “[...] en tales circunstancias La
colaboración de Ramon Llull no podia sino ser bien recibida; y para Llull La ocasión era
uma nueva oportunidad que no podía perderse.” (GAYÀ, 2005)
Ramon compartilha da visão de que os laicos eram peças fundamentais no
processo de pregação, por meio de disputas com os infiéis, especialmente a classe dos
comerciantes, que devido à natureza de sua atividade tinham maior contato com os
muçulmanos.
As circunstâncias de sua morte são desconhecidas, mas provavelmente ocorreu em
Maiorca por volta de 1316.

23 Com relação ao Livro do Fim, pode ser dito que ele configura-se em um verdadeiro manual para a conversão

dos muçulmanos e a conquista da Terra Santa. Seus capítulos vão expondo detalhadamente os passos que os
cristãos devem seguir para conseguir tais objetivos, orientando de que forma os cristãos deveriam disputar com
os sarracenos, contra os judeus, contra os pagãos, contra os heréticos e orientando de que forma os poderes
temporais poderiam colaborar nessa empresa, a maneira que deveria se desenvolver a guerra, caso fosse
necessário o uso da força, explicitando inclusive o lugar, os participantes e as estratégias a serem utilizadas.
84

2.2 A obra luliana e sua propagação

O lulismo se estendeu por mais de trezentos anos e alcançou grande relevo


especialmente dentro do movimento renascentista. Isso é compreensível, se levarmos em
consideração que a obra e especialmente o método desenvolvido por Llull, ia ao encontro dos
anseios universalistas daqueles que viviam os novos ideais do Renascimento.
Seus manuscritos foram difundidos não só na Península Ibérica, mas em toda a
Europa. E sua produção foi tão vasta que, até recentemente (século XIX) muitas de suas obras
ainda permaneciam inéditas. Escreveu em catalão, latim e árabe. As obras escritas em árabe
foram perdidas, mas os escritos que foram conservados, fornecem uma grande fonte de
pesquisa para estudos nas mais diversas áreas (história, filosofia, teologia, botânica, zoologia,
pedagogia, entre outras), bem como se configuram em uma ferramenta de análise poderosa
para compreender o pensamento dos homens medievais.
Na contemporaneidade foram criados diversos institutos visando a pesquisa, o
conhecimento e a propagação dos escritos lulianos. Dentre eles, destacamos a Maioricensis
Schola Llullistica. Este centro criado nos anos trinta por diversos colaboradores deu o
primeiro impulso na expansão do lulismo para outros países. Graças ao empenho de Ludwig
Klaiber, bibliotecário na Biblioteca universitária de Friburgo que falava castelhano, catalão e
fazia muitos contatos com os estudiosos da Península Ibérica e de Friedrich Stegmuller,
catedrático de Teologia da Universidade de Friburgo, foi criado um novo centro de pesquisa
luliana dentro da universidade o Raimundus-Lullus-Institut que funciona até hoje, mantido
pelo Estado de Baden-Wurttemberg. Esse núcleo conta com o apoio financeiro tanto da
Universidade quanto de outras instituições alemães.
Esse interesse em desenvolver as potencialidades oferecidas pela obra de Ramon
Llull está presente também no Brasil. O IBFC (Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência
Raimundo Lúlio “Ramon Llull”), possui vários estudos e informações sobre o lulismo,
promovendo encontros e intercâmbios, entre os pesquisadores de diferentes regiões do país.
Existem grupos de pesquisas lulianas formados na Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES), Universidade Federal do Ceará (UFCE) e Universidade Estadual do Maranhão
(UEMA). O trabalho desses centros têm se mostrado extremamente prolíficos com a tradução
e publicação desses escritos.
85

3. O DIÁLOGO INTERRELIGIOSO NO LIVRO DO GENTIO E DOS TRÊS SÁBIOS:


UMA APLICAÇÃO DA ARTE

Esta obra torna-se bastante complexa, não só pelo tema em questão, o debate
envolvendo as três religiões monoteístas da época, mas pelos conceitos utilizados para
demonstrar a doutrina de cada uma. A leitura da obra exige um conhecimento prévio sobre as
doutrinas em questão, a fim de compreendermos o quanto o maiorquino conhecia sobre elas e
quais os aspectos considerados por Llull, levando em conta que seu escrito é antes de tudo
um texto apologético.
A fé é a propriedade pela qual cremos naquilo que não vemos, não
compreendemos. Porém a fé por si só não basta para nos fazer crer em algo, mesmo quando o
fato está inserido no campo religioso. É necessária a razão para fundamentar o conteúdo da fé.
E é essa relação entre razão e fé que será explorada por Ramon Llull ao longo de toda obra.
Nela os três sábios tentaram provar por meio de argumentos racionais que sua fé era
verdadeira. De acordo com o filósofo é necessário entender para amar. A aliança entre o crer e
o entender é a marca registrada do autor, sobretudo no Livro do Gentio e dos Três Sábios.
Llull está inserido em um contexto de projetos missionários por parte da Coroa
catalano-aragonesa. A reconquista da ilha de Maiorca pelo rei Jaime I foi violenta, porém,
vista pelos cristãos como uma devolução dos seus territórios aos seus primitivos donos. Llull
estava vivendo em um local de confluência entre cristãos, judeus e muçulmanos. Estes
últimos viviam em condições desprivilegiadas. A maioria continuou a viver na ilha, mas sob a
condição de escravos, exceto aqueles que colaboraram com o conquistador.
Os muçulmanos tiveram suas mesquitas transformadas em igrejas, oficinas e
moradias (JAULENT, 2001). A conversão destes ao Cristianismo melhorava sua condição,
inclusive isentando-os do pagamento de impostos. Apesar de ter se dedicado com especial
atenção à conversão dos muçulmanos, Llull iniciou seu trabalho doutrinário com os judeus,
uma vez que julgava o Judaísmo mais parecido com o Cristianismo. Já os judeus gozavam de
uma relativa autonomia em Maiorca, conservando suas práticas religiosas, governo próprio e
uma boa organização, com economia estruturada.
A ação missionária vai modificando-se e de acordo com Bonner, a partir de 1263,
os cristãos passaram a tentar conhecer melhor o credo dos judeus e muçulmanos, utilizando
86

seus próprios escritos para rebatê-los. Isso fez com que vários cristãos como Ramon Llull,
passassem a ler, estudar e conhecer as leis judaicas e muçulmanas. No Livro do Gentio e dos
Três Sábios, demonstra ser um hábil conhecedor destas doutrinas, o que fica expresso
principalmente nas perguntas que o gentio lança aos sábios destas religiões.
Llull era bastante favorável às disputas e debates. O Livro do Gentio e dos Três
Sábios é uma prova disso. Porém, o ponto diferencial do filósofo reside na forma como ele
acredita que deveriam ser encaminhadas essas disputas. Muito comuns na época, sobretudo
nas universidades, calcavam-se nas autoridades, sendo as principais delas Aristóteles, Boécio
e as Sagradas Escrituras.
Em todo o conjunto de seus escritos Llull jamais se utilizou do conhecimento
bíblico. Para ele era importantíssimo que a veracidade da doutrina cristã fosse comprovada
racionalmente e de forma argumentativa, condenando severamente o artifício de recorrer às
autoridades. (RAMON LLULL, 2001). Acreditava que mais almas poderiam ser convertidas
se o método utilizado fosse adequado. Faz alusão ao sultão Miramoli que desejava saber a
verdade, mas não a conheceu, uma vez que um cristão não soube demonstrar sua fé através do
que nomeia como “razões necessárias”.
Tais “razões necessárias” foram dadas ao maiorquino no Monte Randa em 1274,
ano em que foi escrito o livro. Nessa ocasião, ele desenvolveu seu método argumentativo, a
base de sua Arte com o intuito de aproximá-la o máximo possível do entendimento do maior
número de homens.
O filósofo concebe que a realidade é abrangente e dinâmica não podendo ser
abarcada pela idéia. Exemplo: uma cadeira em sua realidade exprime muito mais do que
qualquer idéia que dela possa se fazer. O conceito imobiliza e mascara a essência. É no
pensamento humano que irá se concretizar a união entre idéia e realidade. O ser humano
ajusta-se ao real na medida em que suas idéias são verdadeiras. Há, portanto, uma ligação
entre o ser e o conhecer. A realidade da pessoa irá determinar seu conhecimento.
Não há precisão quanto à data e local onde o livro foi escrito. Os estudiosos de
Llull especulam que ela foi escrita provavelmente em Maiorca para ser utilizada na escola
missionária de Miramar, entre os anos de 1274 e 1276.
O Livro do Gentio e dos Três Sábios é uma das primeiras obras escritas após a
experiência no Monte Randa e uma das primeiras nas quais Llull mostra objetivamente como
pode ser exercida e praticada a Arte. Trata-se de uma disputa, que embora semelhante às
87

disputas ocorridas no meio universitário da época, é pautada em argumentos bastante


originais. Pode ter sido inspirada pela Disputa de Barcelona ocorrida em 1263. Não existem
documentos que possam confirmar essa influência, mas alguns indícios nos levam a crer nessa
hipótese.
Llull foi amigo do rei Jaime I vivendo boa parte de sua juventude na corte.
Algumas sessões ocorreram no palácio do rei. Curiosamente, a conversão de Llull acontece no
mesmo ano em que transcorreu esse debate. As idéias apresentadas no Livro do Gentio e dos
Três Sábios sobre o local, o desenvolvimento e a argumentação filosófica são bastante
próximas das condições reais do Debate de Barcelona.
O debate real foi bastante inflamado, como o eram em geral todas as disputas que
ocorriam naquele momento. Esse debate ocorrido em cinco sessões foi travado entre o rabino
Nahmânides e um judeu convertido ao Cristianismo, Paulo Cristão. O objetivo desses debates
embora nem sempre respeitosos, não era a condenação dos não-cristãos, mas o seu
convencimento. Os cristãos não mediam esforços para esse intento, uma vez que não
julgavam como verdadeiras as demais doutrinas.
Tendo como exemplo esse debate, o filósofo pôde engendrar, a partir do que
assistiu uma forma de disputa diferente, que resultasse mais proveitosa e racional e
possibilitasse um resultado favorável aos cristãos. Mais tarde, ele escreverá uma outra obra A
Disputa entre Pedro, o clérigo, e Ramon, o fantástico (1311), seguindo via de regra, os
mesmos cânones do Livro do Gentio e dos Três Sábios. Ambas se tratam de uma disputa, mas
enquanto na primeira ele travará um diálogo com um cristão que embora membro do clero,
está em pecado, na segunda seus interlocutores são um gentio e dois representantes de outras
religiões.
O Livro do Gentio e dos Três Sábios é uma obra mais extensa e bem elaborada,
dividida em um prólogo, que irá apresentar os personagens, as paisagens, a história em si, um
livro introdutório contendo os princípios que irão reger a disputa, seguindo-se de uma parte da
obra para cada sábio, expor sua doutrina. A disputa com Pedro é um escrito mais simples,
resumido e também mais dinâmico, pois enquanto na outra obra cada sábio aguardará sua vez
de falar, nesse debate as perguntas e respostas são imediatas e diretas.
Outra diferença é a própria receptividade daqueles que debatem. Os sábios do
Livro do Gentio, e também o próprio gentio, estavam imbuídos de boa vontade para escutar o
que lhes ia ser revelado. Mostravam-se dispostos a conhecer a verdade, receber e refletir sobre
88

os pontos que estavam sendo tratados, quer dizer, eles não eram portadores da verdade, mas
estavam à sua procura. Essa característica está ausente no diálogo com Pedro, pois em toda a
obra fica bem explícito que o clérigo não está disposto a aceitar e refletir sobre o que Ramon
lhe diz, mas julga-se correto e por essa falta de humildade afunda-se ainda mais no próprio
erro.
A Disputa entre Pedro, o Clérigo, e Ramon, o fantástico é uma disputa bastante
breve, levando-se em consideração que as disputas medievais comumente seguiam-se por
dias. Ramon imaginou este debate quando estava a caminho do Concílio de Viene (1311),
onde iria apresentar suas petições. Com efeito, na narrativa, Llull e o clérigo encontram-se a
caminho do Concílio. Pedro ouvira falar que Ramon era um grande fantástico. Para nós,
fantástico, é um termo que designa algo maravilhoso, fora do comum. Para o medievo,
fantasia, era sinônimo de loucura, falta de senso. Para se certificar, inquire sobre o que
Ramon iria pedir no Concílio.
Llull expõe seus três propósitos básicos: fundação de escolas de línguas que
formassem pessoas que fossem pregar aos infiéis até converter a todos; o estabelecimento de
uma única ordem militar para restituir a Terra Santa e, a extinção da doutrina averroísta.
Diante disso, o clérigo concorda que Llull era realmente um louco, ao que ele rebate de forma
bastante serena que busca coisas possíveis e que além de realizáveis, dariam bons frutos.
Neste debate, a primeira parte é justamente para provar quem dos dois é realmente
fantástico. E como sempre ocorria nas disputas perpetradas por Llull, esta parte servia para
definir as diretrizes que orientariam a disputa. Assim sendo, iniciaram, partindo do conceito
do que era fantasia.
O clérigo e Llull começam então a falar sobre sua vida, o que vai informar a um
tempo, sobre as diferenças nos modos de agir, nas personalidades e nas metas de um e outro.
Enquanto o clérigo desejara tornar-se um homem rico, Llull fizera-se pobre por amor a Deus e
à sua missão. Da fala do clérigo, podemos tirar as seguintes conclusões: este, era movido pela
ambição e pelo apego aos bens materiais, inclusive usando sua posição para enriquecer a si e a
sua família, e ainda ia ao Concílio com o objetivo de subir à prelatura. Ora, desde aí,
percebeu-se que, embora sendo um membro do clero, Pedro estava corrompido pelas coisas
mundanas e em vez de estar voltado para Deus e o seu serviço, estava voltado apenas para si
próprio.
89

Discutindo ainda sobre fantasia, Pedro afirma que Llull mesmo não conseguindo
seus objetivos, continuava a persegui-los em vão. O filósofo rebate mostrando que a maioria
dos homens, a exemplo do próprio Pedro, estavam mais voltados para as questões mundanas,
razão pela qual não obtinha a ajuda necessária para seus propósitos.
Outro ponto no qual o beato foi questionado diz respeito à Arte. Para Pedro parece
inverossímil um método único, aplicável a todas as ciências “[...] pois cada uma das ciências
tem seus próprios princípios” (RAMON LLULL, 1311a) ao que ele retruca que a Arte tem
princípios gerais comum a todas as ciências. O clérigo compartilhava da visão dos filósofos
de sua época que não acreditavam que a fé pudesse ser provada, como revela sua expressão ao
dizer que “[...] se a fé fosse demonstrável, perderia seu mérito, como tem sido dito, já que a fé
não tem mérito onde a razão humana lhe oferece uma prova experimental”.
(RAMON LLULL, 1311a).
O clérigo também se baseava nas autoridades, pois embora durante o debate com
Ramon, não tenha recorrido a nenhuma, diz que Ramon é um fantástico porque finge “[...]
possuir uma ciência altíssima e profunda que ninguém vos transmitiu” (RAMON LLULL,
1311a).
A explicação para a forma distorcida de Pedro compreender o mundo é que este se
encontrava desviado do que o maiorquino chama de “primeira intenção” que é amar e honrar
a Deus. Em todo o opúsculo fica claro que a vaidade do clérigo fazia com que ele buscasse
honrar somente a si próprio. Por isso estava em pecado, de acordo com a definição luliana de
que pecar “[...] é inverter a intenção para a qual foi criado”. (COSTA, 2005)
Por isso, mesmo sendo clérigo, Pedro se encontrava pervertido e a sua posição
dentro da Igreja tornava seu pecado ainda mais grave, pois “[...] quanto mais alto é o grau de
seu ofício, mais e mais é repreensível, pois atua maximamente contra o fim” (RAMON
LLULL, 1311a). Ora, um membro do clero viciado servia de exemplo tanto quanto um
virtuoso, mas era um exemplo ruim, que não deveria ser seguido. Como poderia converter os
infiéis se não dava bons exemplos?
O transcorrer do debate não altera a forma de pensar de Pedro. Ele encontrava-se,
partindo da lógica luliana em uma situação mais vergonhosa do que a do gentio do Livro do
Gentio e dos Três Sábios. Este último poderia alegar a seu favor, a ignorância em que se
achara por toda a vida. Pedro por sua parte, mesmo tendo conhecimento de tudo que Llull lhe
90

apontara, colocava sua felicidade nas coisas terrenas, não se ocupando do ofício para o qual
fora ordenado.
Essa disputa é um bom exemplo do caráter reformador de toda a obra luliana.
Embora seu maior objetivo fosse converter os infiéis, o filósofo tinha consciência de que a
própria Igreja precisava de uma renovação e uma purificação nas suas práticas. Pedro, um
clérigo imaginário, representa todos os membros corruptos e desviados do clero. Embora
admitindo a fé cristã como verdadeira e defendendo que a Salvação só se daria através do
intermédio da Igreja, Ramon não ignorava que muitos de seus membros se esquivassem de
suas obrigações.
Tal disputa mostra a outra faceta de um debate. Enquanto no Livro do Gentio e
dos Três Sábios todas as idéias se desenvolvem em um clima harmonioso, respeitoso e mais
ainda, onde todos compreendem os argumentos de todos ainda que não concordem com eles,
na disputa com Pedro é demonstrada toda uma intolerância e ignorância. Tanto é que ao final
do debate entre os três sábios e o gentio, todos se separam satisfeitos e dispostos a repetir esse
exercício, quantas vezes se fizesse necessário para o conhecimento de qual fé seria a
verdadeira. Já o debate entre Ramon e Pedro, se encerra de forma inacabada. Sem argumento,
Pedro prefere retirar-se, recusando-se a continuar argumentando até provar o que dizia.
Portanto, O Livro do Gentio e dos Três Sábios é, sobretudo, o exemplo fornecido
por Llull de uma disputa ideal. Seus cânones estavam totalmente de acordo com o pensamento
de tolerância desenvolvido pelo filósofo e os princípios utilizados devidamente moldados aos
conceitos da Arte. É esta forma de diálogo que ele procurou utilizar em seus contatos com os
não-cristãos, mesmo que na realidade esta maneira de diálogo tenha se mostrado bastante
difícil de ser colocada em prática. O importante é que, sobretudo esta obra configura-se no
corolário dessa tentativa de compreensão mútua que o filósofo acreditava ser o ponto de
partida para a unificação de todos os homens em torno da religião cristã. (MERCANT, 1998).
Llull, a exemplo de todas as suas obras começa o livro dedicando todo louvor,
honra e glória a Deus. Enumera seus pecados, mas coloca explicitamente sua vontade e
empenho na salvação daqueles que erram.
Inicia deixando claro que seu livro é destinado ao entendimento dos homens
leigos, portanto antecipando que este será escrito da forma mais clara e sucinta possível.
Divide-se em seis partes: o prólogo, onde há apresentação do cenário e das personagens; os
quatro livros sendo que o primeiro tem a função de demonstrar os parâmetros que irão nortear
91

a disputa entre os três sábios; nos demais seguem-se as exposições das doutrinas defendidas
por cada sábio. Cada um destes sábios terá que convencer através de argumentos lógicos que
a sua fé é a melhor.
Vale a pena destacar que o gentio, embora desconhecendo a existência da vida
eterna, não é um ignorante, mas um homem “muito sábio em filosofia” (RAMON LLULL,
2001, p. 42). Este sábio, sentindo aproximar-se da hora de sua morte, ficou mergulhado em
profunda melancolia, sabendo que logo teria que deixar este mundo e seus prazeres. Era
desprovido de conhecimento religioso. Então resolveu partir de sua terra natal e ir para uma
floresta a fim de consolar seu coração. A floresta no período medieval era tida como obra de
Deus, expressão de sua perfeição e bondade e lugar de refúgio para os homens. É no meio
dessa encantadora floresta descrita por Llull (cheia de flores, fontes, córregos e animais) é que
o gentio irá ter sua revelação.24
Caminhando neste local e averiguando tal beleza, mais ainda afundava seu
coração no desespero e na angústia, até que encontrou uma trilha. Esta trilha também foi
percorrida por três sábios. Esse grupo chegou a um bosque com cinco árvores. Essas árvores
possuíam flores que alegoricamente representavam Deus, as virtudes criadas e incriadas e os
vícios. Quem dá as explicações acerca das árvores, suas flores e de como estas combinavam
entre si, assim como suas condições é uma bela dama chamada Inteligência. Essas condições
podem ser resumidas em nove premissas:
1. A Deus devem ser atribuídas toda honra, glória e poder.
2. As virtudes divinas25 devem concordar entre si e possuírem a mesma importância
3. As virtudes criadas serão mais aprazíveis quanto mais significarem e
demonstrarem as virtudes incriadas.
4. Virtudes criadas e incriadas sempre deverão concordar entre si e;
5. Não poderão concordar com os vícios
6. O conveniente é negar os vícios e a contrariedade entre as virtudes e afirmar as
formas pelas quais tudo isso é captado pelo conhecimento humano.

24
Llull descreve a floresta como “eremitério” o que sugere que o autor também via este local como um lugar de
encontro por excelência com Deus. Ricardo da Costa em seu artigo Ramon Llull e o dialogo interreligioso:
cristãos, judeus e muçulmanos na cultura ibérica medieval: O Livro do Gentio e dos Três Sábios (c. 1274) e a
Vikuah (c.1264) de Nahmânides sobre a Disputa de Barcelona de 1263, diz que o nome desse local é locus
amoenus e é o lugar ideal para debates intelectuais. Coloca também que nessa obra o cenário é tão importante
que acaba virando uma espécie de personagem.
25
Também denominadas como virtudes incriadas.
92

7. As virtudes criadas também deverão concordar entre si.


8. O que for conveniente para aproximar o homem de Deus é verdadeiro; para
afastar é falso.
9. Que as virtudes mais amadas devem ser as mais contrárias aos vícios e os vícios
mais odiados os mais contrários às virtudes.
Os homens que possuírem discernimento para utilizar-se sabiamente das flores
das árvores alcançarão a Salvação. Desde o início, Llull coloca o desejo de unidade ao afirmar
através de um dos sábios como seria bom que todos os homens professassem a mesma fé e
fossem regidos por uma só lei. (RAMON LLULL, 2001). Também desde o início ele coloca
que as leis serão defendidas sem o uso de autoridades.
A descrição do gentio vai ao encontro dos padrões medievais do que seria um
sábio: magro, pálido, com grande barba e cabelos longos. Ao colocar os três sábios a par de
sua situação, rogou para que eles demonstrassem a existência de Deus e da ressurreição para
que pudesse sair do sofrimento em que se encontrava.
Decidiram então os sábios ajudarem ao gentio. Optaram por utilizar o método
revelado pela dama Inteligência, utilizando das flores das árvores para provar sua doutrina.
Chegaram a um acordo e passaram a explicar o que significavam as flores das árvores para o
gentio.

3.1 O debate ideal: a disputa como forma de alcançar a verdade e a unidade

A partir daqui, Llull inicia seu método de argumentação explicando de forma


detalhada as propriedades de cada flor. Seu princípio pauta-se na conveniência. Conveniência
é algo referente ao ser e o inconveniente ao não-ser. Utilizando a mesma lógica há a
conclusão de que tudo o que é bom é amável e tudo o que é mau, é odiável. Daí, portanto o
que é bom é também verdadeiro e conveniente. Essas flores correspondem às virtudes criadas
(justiça, fortaleza, prudência, temperança, fé caridade e esperança), virtudes divinas ou
incriadas (Bondade, Grandeza, Poder, Perfeição, Amor, Sabedoria e Eternidade) e vícios
(Gula, luxúria, acídia, soberba, avareza, ira e inveja).
93

A seguir traçaremos um breve paralelo entre O Livro do Gentio e dos Três Sábios
e O Livro dos Anjos. Estas duas obras utilizam os mesmos princípios e conceitos e uma
auxilia no entendimento de outra. As virtudes e os vícios, por exemplo, servem para explicar
no Livro dos Anjos as semelhanças e diferenças entre Deus, anjos e homens. As virtudes
incriadas ou divinas se unem para formar Deus, estando presente n’Ele de forma infinita e
formando os anos de forma finita, inclusive distinguindo um anjo de outro, pela sua
quantidade. As virtudes humanas são as criadas, através das quais o homem combate os vícios
e se aproxima da vontade de Deus. (RAMON LLULL, 2002). Cada virtude criada se opõe a
um vício como demonstrado no esquema abaixo:

Tabela 1 – Virtudes e Vícios segundo o Cristianismo

VÍCIOS VIRTUDES
Gula Temperança
Luxúria Prudência
Acídia Fé
Soberba Esperança
Avareza Caridade
Ira Fortaleza
Inveja Justiça

Outro ponto importante é que o anjo é formado de três elementos: memória


vontade e entendimento. As três completam-se com a memória lembrando a Glória de Deus,
que é entendida pela inteligência para que este queira mais a Deus. No Livro do Gentio e dos
Três Sábios Llull estabelece essa relação também no homem. Amamos o que entendemos e
queremos o que amamos. Essa é uma das finalidades de seus tratados apologéticos. O gentio
passa a amar e querer a glória divina a partir do momento que tem conhecimento dela. O que
os sábios fazem na primeira parte do livro é mostrar como virtudes criadas, virtudes incriadas
e vícios, se combinam ou se opõem. Também demonstram ao gentio a existência de Deus e da
vida eterna.
Ao ser informado de tais coisas o gentio demonstra grande caridade, pois em seu
coração lamentou por todos aqueles que ainda se encontravam no erro, principalmente aqueles
de sua terra, além dos seus pais que já haviam morrido. Aqui o gentio faz um questionamento
94

bastante crítico aos sábios. Por que estes não se apiedavam das demais pessoas que ignoravam
a existência de Deus? Nesse momento os sábios revelam que não acreditam na mesma Lei,
causando grande confusão e perplexidade na mente do gentio.
Nesse ponto, há um desentendimento entre os sábios que ficaram apontando os
erros dos outros sem chegarem a um acordo. Então, o gentio sugere uma disputa para que
pudessem chegar à verdade. Note-se que a preocupação com a verdade estava presente em
todas as disputas sendo sua principal finalidade. Para Llull, ela adquire ainda maior
importância na medida em que o verdadeiro condizia com o bom e o belo. No tratado
apologético aqui estudado as regras da disputa travada serão as nove premissas dadas pela
dama Inteligência.
Apesar do desentendimento inicial, logo os sábios voltam à cordialidade e o
respeito. A exposição de cada sábio seguirá a ordem cronológica na qual surgiram suas
doutrinas.
O Judaísmo é a religião monoteísta mais antiga da qual se tem conhecimento.
Embora existam atualmente judeus espalhados pelo mundo inteiro, o Judaísmo se faz muito
forte no Estado de Israel para onde muitos judeus têm migrado, desde antes de sua fundação.
A palavra Judaísmo advém de Judéia, capital do antigo reino de Israel. A religião é também
conhecida como mosaica devido ao papel que Moisés tem para os judeus.
A religião judaica é indissociável da História, uma vez que todos os
acontecimentos são marcados pela interferência ou vontade divinas. Consiste em um pacto
que Deus fez com seu povo escolhido, o povo hebreu, que mais tarde se tornaria o povo
judeu. Pode-se afirmar que foi aquela mais influenciada por circunstâncias históricas que
delinearam seus costumes e tradições. Por exemplo: a saída do Egito originou o ritual da
Páscoa; a guerra contra os filisteus impôs a necessidade da organização de uma monarquia
centralizada; a dispersão pelo mundo fez com que sua tradição oral fosse registrada no
Talmude, para que não se perdesse, ou seja, o Judaísmo buscou adaptar seus preceitos às
modificações que ocorriam em sua relação com os fatos históricos e sua relação com os outros
povos.
Os sábios concordam previamente que durante a exposição o único interventor
deverá ser o gentio. Isso deriva do pensamento luliano que acreditava estarmos mais aptos a
aprender quando estamos de boa vontade em relação ao que buscamos entender, “[...] porque
95

pela contestação se origina a má vontade no coração do homem, e pela má vontade turba-se o


entendimento para a compreensão” (RAMON LLULL, 2001, p. 83).
Cada sábio vai defender os artigos de sua fé. O judeu é o primeiro e seus artigos
são oito:
1. Crer em um Deus único.
2. Que esse Deus é o criador de todas as coisas
3. Que Ele deu a Lei a Moisés.
4. Que Ele enviará o Messias para libertar os judeus de seu cativeiro
5. Crer na Ressurreição
6. Crer no juízo final quando Deus virá separar os justos dos pecadores.
7. Acreditar na glória de Deus e
8. Na existência do Inferno.
Um a um os artigos vão ser defendidos de acordo com as flores das árvores
escolhidas livremente pelo sábio. Destacaremos aqui os pontos principais:
No período medieval foi aceita pelos estudiosos a Teoria dos Quatro Elementos de
Empédocles e Aristóteles. De acordo com ela, os corpos terrestres possuem quatro estados:
frio, quente, seco e úmido que se unem em proporções diferentes formando os corpos. Estes
estados referem-se aos elementos terra, água, ar e fogo. A presença de cada um deles é que
determina as características, a saúde e o humor dos homens. (RAMON LLULL, 1275-1285).
Toda a criação terrena consiste na combinação e variação destes elementos. Assim
todos os sábios concordavam que o mundo formado de matéria efêmera não poderia ser
eterno
Ao falar sobre a criação, o judeu toca em um ponto bastante abordado por Llull
em outros de seus escritos: a eternidade do mundo. Ora, se o mundo é criado por Deus e como
tudo que foi criado tem início e fim, assim também o mundo é finito, pois se assim não o
fosse, se igualaria à infinitude de Deus o que não é possível, uma vez que o mundo é formado
de coisas corruptíveis.
O gentio questiona se Deus criou o mal. Este ao responder divide o mal em duas
categorias: o mal causado pela culpa e o mal causado pela pena. A pena aqui é vista como
concordante com a justiça e portanto criada por Deus para que através dela os pecadores
possam ser punidos.
96

Vale a pena ressaltar que em diversos momentos da exposição do judeu o gentio


se revelou satisfeito com as demonstrações, sobretudo naqueles artigos que mais se
aproximavam dos dogmas cristãos. Ao explanar sobre a criação do mundo, o sábio cita
Aristóteles, porém não o utilizando como prova de seus argumentos, mas a título ilustrativo.
Já foi mostrada a grande influência de Aristóteles sobre os pensadores da época.
A Lei foi dada a Moisés através da Bondade divina que a deu de graça a fim de
restaurar o povo judeu em sua caminhada. E a deu por justiça, porque o homem só pode julgar
sobre aquilo que sabe. De posse da Lei, o homem pode discernir o que é bom ou ruim.
É importante frisar que o Deus dos judeus, Iahweh é o Deus da Aliança. A sorte
de seu povo está relacionada com o cumprimento dos preceitos estabelecidos na Torá. Ele é
uno, exige fidelidade total, o que pode ser percebido pela maneira como se dirige a seu povo:

Não tenhas outros deuses diante de mim. Não faça para você ídolos,
nenhuma representação daquilo que existe no céu e na terra, ou nas águas
que estão debaixo da terra. Não se proste diante desses deuses, nem sirva a
eles, porque eu, Javé seu Deus, sou um Deus ciumento: quando me odeiam,
castigo a culpa dos pais nos filhos, netos e bisnetos; mas quando me amam e
guardam os meus mandamentos, eu os trato com amor por mil gerações
(grifos nossos) (Ex 20, 3-6).

Baseado nesta passagem Scliar questiona se nesse momento o Judaísmo pode ser
considerado como um monoteísmo puro, pois ele admite a existência de outros deuses.
(SCLIAR, 1994). Mas é, sobretudo, um Deus próximo do homem que se dirigiu diretamente a
vários justos do povo hebreu como Abraão, Moisés, entre outros, orientando-os para que estes
conduzissem o povo segundo seus mandamentos.
Ao falar sobre a vinda do Messias, o judeu esclarece os principais pontos de
divergência entre a sua lei e a dos cristãos, inclusive começando daí a sua crítica à lei cristã.
Os judeus crêem que o Messias virá para retirá-los do cativeiro. Faz menção aos cativeiros
anteriores.
Os cativeiros citados pelo judeu equivalem justamente a dois importantes
momentos para a história do povo judeu: quando estes foram escravos no Egito e mais tarde
quando foram levados como cativos para a Babilônia. Estas narrativas encontram-se nos
livros do Êxodo e do profeta Isaías.
97

O cativeiro é uma maneira de seu povo demonstrar devoção e amor a Deus, já que
mesmo sem saber por que se encontravam em tal sofrimento louvam e têm fé e esperança. O
judeu coloca o sofrimento como uma escolha que o povo de Israel fez com enorme
humildade, humildade tal que não existe nem nos cristãos, nem nos sarracenos que ele chama
de orgulhosos e soberbos e os têm como seus algozes.
O gentio não escuta de forma passiva, mas questiona e dá opiniões acerca do que
lhes falam seus interlocutores. No caso do judeu, por exemplo, ele exprime o pensamento de
que os judeus possam estar sendo castigados por algo que fazem julgando correto.26
No artigo seguinte “Sobre a Ressurreição”, o judeu revela as divergências sobre a
doutrina entre os próprios judeus. Estes estão divididos em três grupos:

Tabela 2 – As diferentes visões dos judeus sobre o Julgamento Final e o Além

Aqueles que não acreditam na Ressurreição, uma vez que consideram que é
GRUPO impossível para o corpo corruptível do homem, retornar ao estado anterior ao da
1 sua morte. Além disso, consideram o Paraíso como um local de deleite espiritual
e não corporal, portanto, acham que é inviável que os homens lá comam e
bebam.
Crêem que a Ressurreição se dará após o fim do mundo e em seguida reinará a
GRUPO paz e todos defenderão somente uma fé, que é obviamente a fé judaica. Isso
2 acontecerá por algum tempo. Virão outros tempos em que todos morrerão e não
haverá mais ressurreição do corpo, mas somente da alma.
Deste terceiro grupo participará o sábio, que acredita que todos ressuscitarão
GRUPO após o fim do mundo. Os maus serão punidos no Inferno, mas esta pena é
3 temporária. Apenas uma pequena minoria que cometeu pecados gravíssimos
ficará lá pela eternidade.

Novamente o gentio irá repreender o judeu, replicando que seu povo não deveria
se achar dividido sobre algo tão importante.
O dia do juízo é o artigo seguinte e é a própria razão de ser das árvores. Se não
houvesse julgamento, não haveria diferenças entre bons e maus, nem entre virtudes e vícios.

26
Llull habilmente coloca esta dúvida na personagem do gentio. Na realidade o próprio autor acreditava que o
sofrimento dos judeus advinha por não aceitar Jesus Cristo como Messias.
98

A doutrina judaica assim como a cristã está alicerçada na crença deste julgamento. Ele norteia
as atitudes do homem em vida e por causa dele foi criado todo um código moral e religioso,
para que esse homem possa alcançar um melhor fim no dia da ressurreição. Nesse dia,
ninguém escapará de prestar contas. Segundo o judeu, nesse dia todos os homens verão a
Deus e receberão sua sentença publicamente. Todos saberão o que está reservado a todos “[...]
e tudo isto em um só tempo e em um só lugar”. (RAMON LLULL, 2001, p. 114)
O dia do juízo é a manifestação máxima da sabedoria, poder e justiça divinos.
Apesar das réplicas do gentio, os sábios lhe têm um amor piedoso, pois desejam que ele
conheça a verdade. Um exemplo disso é a forma de tratamento quase paternal com a qual se
dirigem a ele: “Amado filho, bem sabes [...]” (grifos nossos). (RAMON LLULL, 2001, p.
116).
Falando sobre o Paraíso, o judeu afirma que lá não existirão coisas corporais
como comidas, bebidas e mulheres. Os medievais consideravam tudo o que se referia ao
corpo e aos sentidos como corruptível e uma forma de condução ao pecado. É através das
sensações que o homem peca e cada vício está intimamente ligado com os sentidos.

Tabela 3: Conexão entre os vícios e os sentidos humanos

GULA Ligada ao paladar; comer exageradamente


ACÍDIA Preguiça; descanso excessivo do corpo
AVAREZA Sentimento de apego às coisas materiais
Ligada também ao sentimento; também chamado de soberba, é o sentir-se
ORGULHO
superior a outrem
LUXÚRIA Coração; deleite carnal
IRA Coração; raiva incontrolável
INVEJA Sentimento de cobiçar o que é do outro, também ligado à matéria.

Por isso é compreensível a lógica apresentada pelo judeu; se as coisas materiais e


corporais levam o homem a esquecer-se das coisas divinas, logo, o Paraíso deve ser composto
de coisas espirituais; alegria, cantos, orações, etc. A plenitude espiritual torna desnecessária a
busca por prazeres mundanos. Já no Inferno, os homens são punidos no corpo e na alma,
sentindo fome, sede, calor, frio e dor, para manifestar a justiça de Deus. E mais ainda: ao
99

morrerem, os homens deverão necessariamente ter lembrança deste mundo, para que no outro,
saibam as razões de estarem sendo punidos ou recompensados.
A crença na existência do Inferno colabora para que o homem procure a retidão.
Sobre o Inferno, também existem diversas opiniões entre os judeus. Alguns acreditam que ele
se localiza no mundo em que estamos; outros no ar, outros em tormentos infindáveis e outros
ainda na perda da glória celeste.
O judeu encerra sua explanação afirmando que sarracenos e cristãos estão no erro
e admoestando o gentio que a maior pena está reservada para os que pecam conhecendo a
verdade.
Todos os sábios antes de iniciarem sua exposição rezam de acordo com os
costumes de sua religião. Por isso ao iniciar, o sábio cristão fez menção à Trindade Santa
através do sinal-da-cruz. Os artigos cristãos são quatorze, todos referentes a Cristo, sendo que
sete dizem respeito à sua natureza divina e sete à sua natureza humana. Adverte o gentio de
que os artigos cristãos requerem muita fé e inteligência para serem entendidos e cridos.
O gentio contenta-se com a explicação de apenas um sábio quando há existência
de pontos comuns. Por esse motivo o sábio cristão não precisou provar a existência de um
Deus único (artigo já provado pelo judeu), mas sim passou ao ponto seguinte, referente à
Trindade. Este é um dos artigos mais complexos da lei da cristã e um nos quais mais o sábio
se deteve ao explicar. Ramon Llull utiliza largamente em seus escritos a analogia. A analogia
é uma espécie de semelhança entre duas coisas. Llull faz isso a fim de facilitar o entendimento
daqueles que acessarão sua obra. Ao falar sobre a Trindade faz uso da seguinte analogia:

O mundo é dividido em animal, sensível e intelectual. Na natureza animal


estão todas as coisas viventes e sensíveis, que são compostas de corpo e
alma sensível. Na natureza sensível estão todas as coisas que são corporais e
não tem vida. Na natureza intelectual estão os anjos, as almas e tudo aquilo
que não tem corpo. E estas três naturezas constituem o mundo, que se
compõem delas. Cada uma destas três naturezas tem seus indivíduos. E
como isto é assim, por isso a Trindade de Deus e a Unidade são significadas
pela unidade e trindade que se encontra em todas as criaturas.
(RAMON LLULL, 2001, p. 137).

O cristão assim define Deus: “E que dois, amante e amado, provenha aquela outra
propriedade pessoal que seja amante e amada, e que os três, amantes e amados, sejam uma
Essência amante e amada em si mesma, sua infinita bondade e seu infinito poder”
100

(RAMON LLULL, 2001, p. 140).


Ao falar sobre a bondade e a soberba, afirma que Deus tem infinitas as suas
Dignidades e ao doar um tanto dessa essência para outro ser, não fica incompleto e não há
alterações em seu Ser. Comenta sobre o livre-arbítrio. A escolha, a liberdade são dadas pela
bondade e sabedoria de Deus. Isto concorda com a humildade do homem. Portanto Deus não
cria o mal, mas deixa os homens livres para optarem entre o bem e o mal27.
Em Deus já havia obra, mesmo antes da criação do mundo. Isso tira o receio do
homem de chegar um tempo em que nada exista. Deus vive eternamente em si mesmo.
Quanto mais complexo é um ser, mais coisas podem ser entendidas sobre ele. É a partir disso
que o sábio diz que o homem pode entender mais de Deus sendo Este Três do que Um,
lembrando que o Deus cristão é a um só tempo uno e trino. Porém o outro lado da moeda é
que ao mesmo tempo quanto mais detalhes, mais escapáveis serão e portanto se entendemos
mais do mais completo também ignoramos mais. Aqui temos então um ponto importante:
quanto maior o entendimento do homem, menos ele recorrerá à fé, pois o homem deve
esforçar-se para compreender, mas recorrer à fé, naqueles pontos que não for capaz de
entender.28
O fato de haver três em uma só pessoa gera confusão na mente do gentio. Para os
humanos existe uma ordem entre o surgimento de cada coisa. De acordo com esta ordem, os
pais são anteriores aos filhos. Como explicar isso, dentro da doutrina cristã? O sábio replica
que devido à grande perfeição divina e à diferença de temporalidade entre a natureza criada e
a incriada, o processo de geração de Deus é diferente do humano. Como em Deus não há
início, meio ou fim, não há relação de anterioridade ou posterioridade Nele. Além de não
existir tal relação também não há mais nobreza no Pai, no Filho ou no Espírito Santo. Todos
são iguais.
Falando sobre a recriação29, o cristão explica que para que a bondade de Deus
fosse melhor expressa é que Este uniu-se à criatura tornando-se homem. Isto se dá para que

27
Essa é a resposta que o sábio cristão deu ao gentio quando este perguntou por que Deus com a sua bondade,
não impede o mal de existir. É interessante que o gentio tenha feito esta pergunta a todos os sábios.
28
Chega a impressionar a maneira como Llull consegue sintetizar os pontos principais do Cristianismo. Além de
explanar sobre estes complexos artigos da profissão de fé, ele menciona a questão do livre arbítrio e seu papel na
salvação do homem, a importância da Virgem Maria na devoção dos fiéis, menciona a existência dos anjos, e o
exemplo dos santos, a concepção do surgimento do homem e do universo na teologia cristã, enfatizando a paixão
de Cristo ao dizer que existe maior perfeição em perdoar do que em criar.
101

através da união entre Deus e os homens, estes possam ser absolvidos das culpas e dos
pecados. Se Cristo não tivesse morrido pelos pecados do homem, todos estariam condenados.
E afirma que há maior perfeição em perdoar a culpa do que em criar. Esse perdão é geral, pois
o pecado estende-se por toda a espécie humana.
A ira é contrária à misericórdia. O homem pode mortificar sua ira ao relembrar da
misericórdia cristã que com sua morte salvou o homem. Igualmente a esperança, fez com que
o homem seja mais forte contra as tentações. A espera da glória celeste faz o homem adotar
um melhor comportamento, mais condizente com as virtudes.
Apesar do respeito mútuo, os sábios vez ou outra criticam os fundamentos
religiosos dos outros. O cristão, por exemplo, chega a afirmar que os muçulmanos “têm
coração duro e um entendimento embotado, por isso não conseguem compreender a Lei
Cristã” (RAMON LLULL, 2001, p. 173). Ao descrever o Paraíso o cristão faz isso. Para ele o
homem não comerá, nem beberá na glória eterna. Seu deleite será espiritual e não carnal.
Nossa Senhora Santa Maria e todos os anjos, arcanjos, santos e mártires estão nessa glória que
não tem fim.
O papel de Nossa Senhora como mãe do Criador e mediadora é muito importante.
Ela é apontada como mulher justa e virtuosa. Na criatura, o nascimento se dá em virtude da
corruptibilidade do corpo feminino o que não aconteceu na Recriação. Jesus Cristo é filho da
perfeição (Deus) e de um ser imaculado (Virgem Maria). Llull mais uma vez utiliza-se da
analogia: assim como o sol passa pelo vidro sem corrupção ou alteração alguma, assim
também ocorreu na natividade de Cristo, sem alteração na virgindade de sua mãe.
A natividade de Deus é então melhor que a dos outros homens. O autor mostra
também ser influenciado pelo pensamento da época: para ele, o homem é superior à mulher
em sua natureza. Deus ao escolher Maria, exprime grande humildade pois deu tal honra a uma
mulher destituída de bens temporais.
Tanto o anjo quanto a alma racional são imortais30. Jesus ao morrer teve sua alma
separada do corpo, mas mesmo assim ela permaneceu ligada à divindade. A alma de Jesus
Cristo desceu ao Inferno com a finalidade de libertar Adão, os profetas e todos os justos que
morreram antes de sua vinda a este mundo.

29
O termo utilizado é recriação, levando em consideração que a primeira criação foi a de Adão. A recriação é o
nascimento de Cristo. Adão trouxe o pecado e Jesus Cristo redime o pecado.
30
Ainda falando desse artigo o cristão coloca que o homem é superior ao animal porque é dotado de uma alma
racional.
102

De acordo com o princípio luliano da conveniência, Deus se fez homem,


morrendo para salvá-lo e significar o Seu amor para que com isso o homem não tenha seu
querer contrário ao amor divino.
O sábio cristão coloca em diversos pontos que o pecado original foi a gula que fez
com que Adão desobedecesse a Deus. Adão, portanto, rebaixou o homem a um estado de
vileza. Jesus Cristo é o restaurador, na medida em que veio para que voltasse a haver
concordância entre o homem e sua finalidade (amar e contemplar a Deus. Por isso – afirma o
sábio – é um erro que os sarracenos digam que Cristo não morreu, para dar-lhe honra. A honra
Dele está justamente em ter morrido pelo homem para que este possa ter esperança Naquele.).
A perfeição de Deus é manifestada na descida ao inferno sem sofrer dano,
tormento, nem corromper-se. Também sem sofrimento em sua alma. Este sábio acreditava que
a crença cristã é mais verdadeira que a dos judeus. O cristão colocou que crer que o Messias
já veio, está mais de acordo com a fé e a esperança do que crer que Ele ainda está por vir.
O corpo é ressuscitável assim como o foi o de Jesus Cristo. Para ilustrar suas
palavras o sábio utilizou o exemplo do próprio gentio. Ora, se este que estava triste ficou feliz
em ter a esperança na vida após a morte, imagina então sua felicidade agora em crer na
ressurreição. As almas racionais têm um local próprio para estarem. Este local não é o mundo
em que vivemos, por isso a alma de Cristo ascendeu ao seu lugar.
No último artigo, o cristão revela que o grande poder de Deus é manifestado no
julgamento. Pois somente Ele tem a propriedade de julgar todas as almas. O homem por ser
criatura, não possui tal capacidade, pois se a possuísse, não seria mais criatura e sim Criador.
A justiça e a sabedoria estão interligadas ao conhecimento da seguinte maneira: “[...] quanto
maior a sabedoria, tanto mais a justiça é dirigida a julgar sabiamente, e tanto mais longe está
da ignorância” (RAMON LLULL, 2001, p. 195).
É interessante perceber que tanto a doutrina judaica quanto a cristã estão pautadas
na culpa do homem. De acordo com ela, é que um homem ganha ou perde sua salvação. Aqui
mais uma vez o cristão afirma ser sua religião melhor que as demais, reiterando que em
nenhuma outra, tantos homens se sacrificaram ou dedicaram sua vida por amor a Deus. Esses
homens (religiosos e mártires) desprezaram as coisas mundanas. Para ele a justiça e a
misericórdia são manifestadas no povo cristão porque:
a) o Deus homem, esteve ligado à pobreza;
103

b) os cristãos que pecam terão maior pena do que os infiéis que pecam, pois estes
não O conhecem e em decorrência disso;
c) também serão perdoados de maiores pecados que os demais homens.
É necessário que o juiz supremo seja Deus e homem, para que sua sentença possa
ser vista e compreendida pelos homens. Ao concluir, o sábio coloca que o homem tem “a
memória para lembrar, o entendimento para entender e a vontade para amar a Deus e às suas
obras”.31 (RAMON LLULL, 2001, p. 199). Ele lembra que estão disputando de uma “nova
maneira”, o que demonstra que Llull expõe aqui, como acreditava que deveriam acontecer as
disputas reais. Sua disputa imaginária (dos três sábios querendo provar a veracidade de sua fé)
é nada mais nada menos que uma sugestão de como Llull desejava que fossem os debates
reais na sua época.
Todos os sábios iniciaram a oração conforme seu costume. O sarraceno lavou
partes de seu corpo, ajoelhou-se e beijou a terra. Os artigos de sua crença são doze: crer em
Deus como criador e em Maomé como profeta, no Alcorão como lei, na pergunta do anjo ao
homem morto em sua tumba, na morte de todas as coisas com exceção de Deus, na
Ressurreição, na exaltação de Maomé no dia do juízo; no juízo final e na existência do Paraíso
e do Inferno.
Cada uma das religiões monoteístas escolheram homens que passaram a ser
símbolos de fé e confiança e mensageiros de Deus. Moisés para os judeus, Cristo para os
cristãos e Maomé32 para os islâmicos. Estes homens foram exemplos, referenciais e os
responsáveis pela Lei e os artigos adotados por cada religião. A particularidade cristã é que
Cristo é tido como mais que um mensageiro de Deus. Ele é a encarnação do próprio Deus.
Vale mencionar que o Judaísmo e o Cristianismo exerciam influência em boa
parte do Oriente Médio. Assim, o profeta do Alcorão, deu origem a uma nova religião, mas

31
Tal como é explicado no Livro dos Anjos (1274-1283), cujo conceito já fiz menção anteriormente.
32
Maomé, Mohammed ou Muhammad é considerado o fundador da religião islâmica. Ele nasceu em Meca,
Arábia, no final do século VI, ficando órfão ainda na infância; foi entregue aos cuidados de um dos seus tios,
Abu Talib. Na Arábia de sua época, a sociedade organizava-se de acordo com o sistema tribal. Esse sistema era
regulado pelos laços de sangue. Dessa maneira, o assassinato de um dos membros de uma tribo era vingado por
meio do assassinato de um membro da tribo do assassino, o que desencadeava uma série de rixas sangrentas.
Não havia outro código e as leis da tribo eram as únicas e no caso de serem transgredidas, resultavam no
afastamento do membro desobediente. Essas tribos cultuavam várias divindades, sendo a principal a pedra negra
de Meca que recebia visitas de peregrinos. Assim, Maomé com sua doutrina, instaurou não só um novo modelo
religioso, mas também uma nova organização política, através de meios tanto diplomáticos quanto militares,
conseguindo unificar a Arábia sob um só domínio e religião, um feito notável, considerando-se a grande
fragmentação político-religiosa dessa região.
104

também recebeu elementos das duas religiões abraâmicas já existentes como nos esclarecem
Gaarder; Hellern; Notaker (2000, p. 120):

Os judeus se estabeleceram em toda a Arábia depois da queda de Jerusalém e


da destruição do Templo, no ano 70 d.C., e aos poucos passaram a adotar a
língua e o estilo de vida árabes, ao mesmo tempo que mantinham sua própria
crença e seu culto mosaico.
Também o cristianismo se espalhou rapidamente por todo o Oriente Médio
durante os primeiros séculos da nossa era. Havia Estados cristãos como a
Abissínia (atual Etiópia). Muitas tribos beduínas se converteram ao
cristianismo, e era possível encontrar cristãos entre os escravos e as camadas
inferiores em Meca.
Provavelmente foram os monges e eremitas cristãos, os quais viviam
isolados do mundo no deserto da Arábia, que exerceram a maior influência
sobre Maomé.

No primeiro artigo: “crer na existência de um só Deus”, embora o gentio dissesse


já ter compreendido através da fala do sábio judeu, assim como o cristão fez questão de
explicar que seu Deus é uno e trino, o sarraceno também quis esclarecer que o seu Deus não é
composto.33
Na explicação do segundo artigo “criador” o sarraceno diz que Deus criou todas
as coisas, inclusive o mal e a culpa. Essa pergunta já tinha sido feita pelo gentio aos outros
sábios; a resposta do sarraceno é que foi diferente. Por isso, o gentio irá refutar dizendo que
este está indo contra as condições das árvores, uma vez que se Deus tivesse criado o mal e os
vícios, isso seria contrário à sua Bondade e Justiça34.
A obra O Livro do Gentio e dos Três Sábios, mostra com clareza o
posicionamento luliano. Este combatia mais aos sarracenos do que aos judeus. É
perfeitamente verificável que o sábio mais contestado pelo gentio é o sarraceno. De acordo
com este sábio Deus também teria deixado alguns homens no erro para que aqueles que estão
na verdade35, estejam aptos a exortar e converter aqueles que ainda não estão no caminho
certo.
O sábio afirma que por prudência, Deus mandou homens em diferentes épocas,
para que as mudanças e costumes se adequem para melhor servi-Lo. Mais uma vez o gentio

33
Para os muçulmanos a divisão de Deus em três pessoas configura-se em um politeísmo.
34
Parece ilógico que Deus tenha criado o pecado, se, mais tarde, no julgamento irá condenar o homem por pecar.
35
Entende-se nesse contexto por verdade a existência de um Deus único e da glória da Ressurreição
105

discorda do sarraceno, argumentando que Deus não poderia enviar um profeta contra outro,
nem renegando o que já foi dito.
Se o Cristão colocou que na pessoa de Cristo, Deus revelou a humildade através
de sua pobreza, o sarraceno também afirma que Deus revelou humildade e sabedoria ao enviar
Maomé para revelar sua Lei, já que foi um homem “leigo e sem letras”. Considera o Alcorão
como o livro mais belo já escrito que “[...] nem os anjos, nem os demônios poderiam fazer
[...]” (RAMON LLULL, 2001, p. 208).
Ao discutir o Alcorão, o sarraceno toca no “calcanhar de Aquiles” de judeus e
cristãos. Diz que Jerusalém embora sendo uma cidade sagrada para eles foi entregue por Deus
nas mãos dos sarracenos “e nela se lê o Alcorão e nenhum outro livro nem nenhuma lei é ali
tão honrada como o Alcorão” (RAMON LLULL, 2001, p. 208). Para o sábio esse fato é uma
comprovação do poder e da justiça de Deus.
Também é prova da sabedoria de Deus ter enviado o Alcorão, pois através dele, o
homem toma conhecimento da existência de um Paraíso com grandes riquezas e mulheres
para que na terra não inveje os outros.
Mais uma particularidade da fé muçulmana é que estes crêem que o homem ao ser
morto e sepultado dois anjos de Deus lhes fazem cinco perguntas:
1. Quem é Deus?
2. De quem é a sua Lei?
3. Qual a sua Lei?
4. Maomé é profeta?
5. Meca está ao sul?
Sobre estas perguntas, bem-aventurados serão aqueles que responderem: é o meu
Criador, minha lei é a de Deus, Maomé é mensageiro de Deus e sim.
Falando sobre a morte, o sarraceno fez a seguinte associação: IMPERFEIÇÃO =
mortalidade e PERFEIÇÃO = imortalidade. Por isso todos os seres viventes morrerão,
inclusive anjos e demônios, mas todos reviverão. Para ele “[...] a prudência pode ser maior em
conhecer a morte, maior caridade pode existir naquilo que retornou da morte para a vida que
naquilo que nunca morreu.” (RAMON LLULL, 2001, p. 216).
Sobre a ressurreição este diz que a terra será muito branca e haverá grande calor e
os homens suarão de acordo com os seus pecados. Os anjos descerão de céu em céu, até que
106

Deus venha fazer o julgamento. Tudo isto após quarenta dias e do toque da trombeta do anjo
Serafim.
No oitavo artigo, o sarraceno demonstra a grande estima, respeito, admiração e fé
dos seus para com Maomé. Quando Deus estiver julgando, ele será o único justo a rogar pelos
homens e Deus o ouvirá. Mais ainda, afirma que nem Adão, Noé, Abraão, Moisés ou Cristo
terão coragem para fazê-lo, inclusive dizendo que Cristo não será digno para tal, por ter
deixado que os povos o adorassem como se fosse Deus. Pela prece de Maomé, homens serão
retirados até mesmo do inferno.
Associa a ciência à soberba, por isso Deus ouvirá Maomé, um homem sem
ciência.36 Na Idade Média era comum que os mestres ensinassem seus estudantes a serem
humildes não desprezando nenhuma forma de conhecimento e aprendendo com todos, não se
julgando melhor que os demais após ter alcançado o conhecimento. (COSTA, 2003)
Julga que os sarracenos têm mais fé e esperança do que judeus e cristãos, por
acreditarem que pelas preces de Maomé, sairão do inferno. Mais uma vez o gentio discorda,
afirmando que, com efeito, se as coisas transcorressem de tal forma “Deus amaria mais uma
fé e esperança grandes do que uma perfeição e uma justiça grandes, e isto é impossível.”
(RAMON LLULL, 2001, p. 221).
O sarraceno explica que todos prestarão contas, inclusive animais e aves, para
espanto do gentio que não vê o porquê de seres sem discernimento, terem que prestar contas,
ao que o sarraceno respondeu que estes servirão de exemplo para os homens pecadores que
desejarão não existir.
Curiosamente ao falar sobre a pesagem dos pecados que o sarraceno chama de
“males”, indica a existência de um lugar entre o Paraíso e o Inferno, onde ficarão os homens
cujos bens igualarem-se aos males que cometeram37.
O caminho o Paraíso será “estreito como um fio de cabelo”, e a velocidade com a
qual cada homem passará, será o reflexo do seu merecimento à glória e se não merecer cairá
deste lugar para o inferno. Quanto mais trabalhos o homem tiver para alcançar o Paraíso, mais
será amado por Deus e menos sentirá penosos os seus esforços.

36
É importante frisar que o conceito de ciência não era ponto comum entre as mentes da época. Cada intelectual
dividia o conhecimento de acordo com sua própria perspectiva.
37
A noção lembra um pouco a do Purgatório cristão. Nem todos os cristãos e religiosos acreditavam na
existência do Purgatório. Nos escritos de Llull, por exemplo, não encontramos menção a esse local.
107

A glória celeste está dividida em duas: a espiritual (ver Deus, amá-Lo e


contemplá-Lo), tal como cristãos e judeus acreditam e a corporal, ligada aos sentidos. Aqui
está uma das principais diferenças entre sarracenos e cristãos. Estes últimos vêem os sentidos
como empecilhos para alcançar a glória divina e são condutores do pecado. Apenas no inferno
serão utilizados, como castigos dos injustos.
O sarraceno diz que o homem verá belos palácios de ouro e pedras preciosas,
lindos tecidos, donzelas e natureza exuberante. Ouvirá cantos de anjos, homens e mulheres
louvando a Deus. Poderá também falar com seus amigos. Cheirará odores agradáveis,
degustará iguarias, frutas e manjares de todo o tipo e sentirá prazer corporal ao unir-se com
virgens dadas por Deus. E de acordo com a glória uns terão mais mulheres que outros. Essas
mulheres jamais envelhecerão e permanecerão sempre virgens, mesmo após terem se unido
aos homens.38
O gentio questiona se ocorrerá o mesmo com as mulheres, ao que o sábio nega,
afirmando assim como o cristão, que Deus deu maior honra aos homens do que às mulheres.
Após ouvir os três sábios, o gentio começou a repetir tudo o que lhe haviam dito.
Esse ato revela um traço da pedagogia medieval, o da repetição para melhor fixar o conteúdo
aprendido. Segundo Costa o próprio termo decorar, de cor, significa de coração, ou seja, os
homens aprendem com mais facilidade as coisas que amam ou têm no coração. Esse ato do
gentio alegrou e honrou os sábios que através deste gesto perceberam a importância que ele
dera às suas palavras, afirmando “[...] que não tinham falado com um homem sem coração,
nem ouvidos”. (RAMON LLULL, 2001, p. 237).
Seguindo-se a isso o gentio, que agora não mais o era, faz uma bela oração
semelhante a um salmo, exaltando a Deus e pedindo-Lhe perdão pelo tempo em que havia
passado em ignorância. Também exaltou as virtudes, desejando-as para seu coração,
rechaçando um a um os vícios mortais. Reconheceu agora chorar de alegria e não pela
angústia em que se achava anteriormente. Os três sábios que o observavam tiveram piedade e
ao mesmo tempo culpa "[...] porque reconheciam que o gentio concebera em tão pouco tempo
maior devoção para louvar o nome de Deus do que eles que por muitos anos tiveram
conhecimento de Deus." (RAMON LLULL, 2001, p. 244).

38
Nessa parte o sarraceno explica que alguns povos não têm essa visão da glória, mas que estes não merecem
crédito por serem estudiosos de Lógica e Ciências Naturais. O sábio demonstra um profundo desprezo por essas
áreas e chega a afirmar que estes povos para os sarracenos não passam de hereges.
108

Quando o agora ex-gentio quis expor por qual lei havia optado, os sábios
discordaram. Cada um preferiu pensar que ele escolhera a sua lei, afirmando que se isso lhes
fosse revelado, não teriam mais “verdades a descobrir”.
A separação entre o ex-gentio e os sábios foi muito sugestiva. Depois de ser
abençoado pelos sábios, ele encontrou dois gentios de sua terra e supomos que este transmitirá
a eles tudo o que aprendeu e julgou correto.
Os sábios por sua vez firmaram um pacto: chegarem a defender uma mesma fé!
Mas aquela que fosse a verdadeira. E para descobrir isso iriam disputar todos os dias,
seguindo a maneira que haviam disputado em testemunho do gentio. Pediram perdão um ao
outro caso tivessem ofendido suas leis e combinaram “[...] o lugar e a hora onde debater, e a
maneira como se honrar e servir e disputar; e o modo de, quando tivessem concordado e unido
em uma fé, irem pelo mundo dando glória e louvor ao nome de nosso Senhor Deus.”
(RAMON LLULL, 2001, p. 248).
Llull esclarece que os sábios cumpriram sua palavra e ao concluir seu livro, mais
uma vez, coloca que o objetivo de seus escritos é a busca pela verdade e traz um pedido:
“despertar os que dormem”, para que estes possam contribuir com a sua causa. É provável que
aqui, o nosso filósofo esteja se referindo aos reis e papas de sua época para que estes o
ajudassem nas três metas que estabelecera para a sua vida e que é a mesma meta alcançada
pelos sábios da obra: ir pelo mundo livrando os homens dos erros e conduzindo-os a Deus.
109

CONCLUSÃO

Os historiadores que trabalham com religião e religiosidade têm dificuldades em


encontrar um conceito que se adeqüe a todas as formas de expressão religiosa nos mais
diversos tempos e contextos. O conceito norteador neste trabalho foi apresentado por C. P.
Tiele (1830-1902) no qual a religião implica em uma relação de dependência entre o poder
natural e o sobrenatural e o sobrenatural, sendo o primeiro submetido ao segundo. Essa
relação se expressa através das emoções (amor, confiança, medo); conceitos (doutrinas,
crenças) e ações (ritos e princípios éticos).
A religião traz um conjunto de regras morais e éticas, que direciona o
comportamento humano; é antes de tudo uma filosofia, que busca explicar o mundo e o
próprio homem, de onde viemos, para onde vamos; marca as relações do ser humano com a
natureza e o divino; coloca a noção de que o ser humano existe porque foi criado por um ser
divino e transcendental e deve explicações sobre seus atos em todos os níveis de sua
existência. É uma necessidade humana, uma resposta para o mistério da vida.
Antes de tratar sobre as três religiões incluídas no debate do Livro do Gentio e dos
Três Sábios tentei dar um panorama geral sobre a doutrina, a organização, a experiência e é
claro, o desenvolvimento de cada uma no decorrer da História.
Ao falarmos sobre Ramon Llull podemos destacá-lo como um homem que
colocou em prática o princípio da tolerância, uma vez que esta consiste em respeito. Não
implica no desaparecimento das diferenças, nem na anulação de sua própria crença. Está
relacionada com a coexistência pacífica, até mesmo porque a religião não se relaciona
somente com a espiritualidade desenvolvida por cada indivíduo, mas influencia diretamente
nos demais aspectos da vida dos crentes.
A religiosidade tem se manifestado de uma forma nova na contemporaneidade. É
notável que muitos indivíduos recebam influências e se identifiquem com mais de uma
religião, ou no mínimo tem procurado conhecer melhor outras doutrinas, a exemplo do que
Llull fez em sua época.
Assim como a intolerância gera conflitos no âmbito religioso, o despotismo
provoca prejuízos políticos. A democracia é abandonada em nome de ideais revolucionários
de mudanças sociais que acabam resultando em frustração, abuso e uma busca pela
110

aniquilação de opositores. A democracia permite a liberdade e a livre expressão entre aqueles


que a adotam.
As posições radicais sejam políticas, sejam religiosas tendem a extremos
perigosos: a ditadura e o fundamentalismo, que em diversos momentos da História levaram a
humanidade a guerras insanas e derramamento de sangue. De fato, os últimos levantamentos
estatísticos têm sido reveladores a respeito deste tema. Milhões de pessoas foram mortas em
situações de não-beligerância em regimes totalitários e autoritários.
E é um fato notável que autoritarismo político e intolerância religiosa quase
sempre andam de mãos dadas. A segunda surge na maioria das vezes como uma conseqüência
da primeira, embora a questão da tolerância religiosa esteja intrínseca ao pensamento
individual e a experiência de vida de cada indivíduo. Ela é um valor que pode ou não ser
adotado e mais do que isso, uma postura e uma prática de respeito às diferenças.
Os atentados terroristas do 11 de setembro nos Estados Unidos, motivados por
questões religiosas, trouxeram abalos políticos e econômicos aos norte-americanos, inclusive
ao ideal democrático do qual seu governo julga-se portador. O exercício de poder deste país,
deve se direcionar àqueles que realmente possam se constituir em uma ameaça à paz mundial.
Se fizer isso de forma arbitrária desrespeitando as regras internacionais que sua própria nação
ajudou a formular, estará se igualando aos próprios que combate.
Por outro lado é preciso distinguir com clareza e racionalidade quem são os
verdadeiros inimigos. Dessa forma é necessário ponderar que o fundamentalismo é um
fenômeno que pode ocorrer em qualquer religião, não sendo característica peculiar do
Islamismo e que ele corresponde apenas a uma ala, uma minoria dos muçulmanos.
A própria idéia de que Maomé tem sido favorável aos atentados de 11 de
setembro é absurda, pois o Profeta nunca apoiou massacres indiscriminados. A palavra islam,
significa “submissão total e incondicional a Deus e está relacionada com Salam, “paz”.
Atualmente cada vez mais as pessoas buscam informação e conhecimento, não só
sobre o Islam, mas do Oriente como um todo. Vários estudiosos sérios como Bernard Lewis,
Francis Fukuymana e Maxime Rodinson tem ajudado a desmistificar a imagem do Islamismo
como “a religião da espada”.
Não só questões religiosas contribuem para a incompreensão mútua entre Oriente
e Ocidente. A globalização empreendida pelos Estados Unidos e a contínua aculturação não
foram assimiladas pelos orientais. Estes não vêem o capitalismo, a democracia e o avanço
111

tecnológico como o modelo ideal para solucionar todos os problemas. Não se trata de um
desconhecimento, mas de uma rejeição do modelo cultural norte-americano, pois vários
seqüestradores do 11 de setembro moravam e estudavam no Ocidente.
Essa cisão Oriente/Ocidente remonta justamente à Idade Média, principalmente ao
período das Cruzadas, quando os contatos entre as duas culturas se intensificaram. Nesse
momento ocorria exatamente o inverso de hoje: a cultura ocidental era minoritária e perdia
espaço para a oriental.
Naquele tempo a situação era bem diferente. O Islã era a grande potência mundial
e a Europa a periferia cultural. Esta só passou a ganhar destaque e estender sua visão de
mundo ao resto do globo a partir do século XIX.
As influências se deram de forma desproporcional. Enquanto os estudantes
europeus liam avidamente textos escritos por árabes, estudavam em universidades orientais e
inspiravam-se nos avanços de sua medicina e costumes, estes foram bem pouco influenciados
pela cultura européia que julgavam inferior.
A Península Ibérica, em especial a Espanha muçulmana, pode ser apontada como
um exemplo de relativa paz e harmonia entre as três religiões monoteístas. Era permitido a
autoridades religiosas não-muçulmanas pregar nas mesquitas, desde que não se ofendesse o
profeta Maomé. Judeus e muçulmanos gozavam de muitas crenças comuns e compartilhavam
de muitos pontos convergentes, como a noção da interferência divina na História em favor de
seu povo.
O crescimento da intolerância cresceu com o advento da Modernidade, quando os
cristãos perceberam que sua posição não era hegemônica. Com a conquista destes territórios
pelos cristãos gradativamente a intolerância cresceu e foi dando lugar a uma contínua
repressão religiosa. Nesse sentido os cristãos ocidentais tiveram uma postura diferente dos
orientais. Enquanto estes mantiveram a liberdade religiosa nos locais que conquistaram, os
cristãos ocidentais logo demonstraram que não abrigariam comunidades e ideologias
religiosas diferentes com o mesmo respeito que muçulmanos e bizantinos.
Atualmente dois conflitos de cunho político-religioso ganharam grande vulto: os
conflitos árabe-israelenses e os conflitos entre radicais do Islã e a cultura ocidental. Estas
questões são complexas e já vem se desenvolvendo ao longo de séculos. Enfocada
brevemente, só resta aludir sobre a segunda questão. Sobre os judeus pode-se afirmar que
embora tenham sido um povo envolvido em conflitos com outras nações desde o seu
112

nascimento, eles passaram a ter o estigma da perseguição acentuado durante a Idade Média,
quando cristãos passaram a acusá-los de serem “os assassinos de Cristo”.
O atual Estado de Israel nasceu não só como um fruto de uma antiga aspiração de
unidade dos judeus, mas também da necessidade prática, perante o anti-semitismo
disseminado em todos os lugares onde procuravam abrigo e o perigo de extermínio
materializado pelo governo nazista durante a Segunda Guerra Mundial.
Este movimento nacionalista visando a formação de um Estado foi denominado
sionista. Foi iniciado ainda no século XIX pelo judeu vienense Theodor Herzl. Ele foi um dos
primeiros a vislumbrar na Palestina a pátria perdida pelos seus. Estimulou então a imigração
para aquele território. Nesse período, a região encontrava-se sob o domínio dos turcos
otomanos. Gradativamente os judeus para lá se deslocaram passando a dividir o espaço com
os árabes.
Mais tarde a região acabou tutelada pela Inglaterra que colaborou com os
interesses dos judeus em se estabelecerem como nação. Com o nazismo foram ocasionadas
novas ondas imigratórias. Os palestinos reagiram contra esse fenômeno realizando ataques
armados contra oficiais britânicos e judeus. Daí, passaram a se formar de ambos os lados
organizações militares que viriam se atacar mutuamente.
A Organização das Nações Unidas decidiu em 1947, dividir a Palestina em dois
estados: um judeu e um árabe, ficando Jerusalém sob a administração internacional, erro
capital, pois se tal medida veio a calhar para os judeus, era para os árabes, impensável, pois se
tratava da perda de seus territórios. A partir de então a guerra entre árabes e israelenses tem
sido contínua e até o presente momento parece não ter solução.
A ligação intrínseca entre religião e política, tanto entre árabes quanto entre os
israelenses, dificulta ainda mais o diálogo, conduzindo a um radicalismo que não é validado
por nenhuma das doutrinas. Com efeito, nos livros sagrados destas religiões, mesmo o
Alcorão que legitima a Guerra Santa, não estabelece que a religião deva ser utilizada para este
fim.
Podemos destacar que a obra de Llull está intrínseca aos acontecimentos da época
em que viveu: a perda da Terra Santa pelos cristãos, o avanço muçulmano tanto no campo
ideológico quanto geográfico, pelo menos no Oriente e o método escolástico no ensino
universitário. Também ressaltamos o grande poder de adaptação que o método luliano
alcançou. O filósofo maiorquino ampliou, simplificou e transformou a Arte com o objetivo de
113

que esta alcançasse o maior número de homens possível, atendendo assim seu principal
propósito, a conversão dos não-cristãos e a reforma moral espiritual e moral dos próprios
cristãos.
Todos os fatos frisados acima contribuíram e influenciaram a vida e a obra
lulianas. Assim, podemos traçar uma associação de cada um desses fatos aos objetivos que
Ramon buscou executar.
Seu objetivo foi a unidade cristã. Converter todos os homens ao Cristianismo. A
fundação de escolas para formar missionários, a criação da Arte e o martírio eram, na verdade,
os meios e não os fins; eram instrumentos para alcançar este objetivo. O pensamento
filosófico de Llull é bastante complexo, mas sua vida torna-se simples de compreender se
observamos que ela foi dedicada a um único propósito: a conversão das almas.
Os acontecimentos da época determinaram mudanças nos meios utilizados pelo
beato, mas não em sua finalidade. Assim é que primeiramente Ramon Llull busca ciência para
exercer sua tarefa. A primeira conseqüência disso é o desenvolvimento da Arte. Porém este
método ia de encontro a escolástica. Llull embasou seu método na autoridade divina e não nos
gregos. Isto não foi resultado de seus estudos, mas de uma experiência mística.
Mesmo assim, o filósofo tomou de empréstimo do ensino universitário o exercício
das disputas como forma de se alcançar a verdade. A diferença estava na forma de
argumentação. Também assimilou a principal questão debatida nos séculos XIII e XIV: as
relações entre razão e fé, sendo, contudo, inovador, ao afirmar que a fé poderia ser
demonstrada através da razão.
Desta maneira torna-se um defensor do diálogo e da conversão por meio da
palavra. Esta postura paulatinamente vai cedendo lugar a outra mais ofensiva, colocando-se a
favor das Cruzadas. Ora, este pensamento está ligado à perda da Terra Santa para os
muçulmanos e ao crescimento no número de adeptos do Islamismo. Os cristãos e inclusive o
perspicaz Ramon, perceberam a perda progressiva de seu espaço no mundo, o que provocou
um enrijecimento em relação aos não-cristãos. Mas é preciso destacar que o maiorquino
certamente desaprovava as carnificinas promovidas pelos cruzados.
A luta deveria enfocar a conversão e não a aniquilação do outro, ou seja,
converter, deveria ser, antes de tudo, um ato de amor. Tanto é que desenvolve todo um plano
de ação para a retomada dos territórios sagrados que enfatiza, sobretudo, quem e como
deveria pregar, explicitado com pormenores em seu Livro do Fim e no Livro da Aquisição da
114

Terra Santa. A cruzada espiritual e ideológica para o filósofo sobrepõe a cruzada militar e
torna-se sua causa e fim. Para tanto, era preciso que os infiéis tomassem consciência de seus
erros, o que ocorreria se aqueles responsáveis por sua conversão estivessem devidamente
preparados. E a principal arma intelectual a ser usada era a Arte que possui cinco finalidades:
1. Conhecer e amar a Deus
2. Buscar a virtude e rechaçar os vícios
3. Convencer os infiéis.
4. Resolver questões de toda a natureza utilizando a lógica e,
5. Adquirir conhecimento das outras ciências.
O Livro do Gentio e dos Três Sábios é a obra na qual Ramon Llull demonstra
como o seu método poderia ser aplicado na prática. Não podemos nos iludir achando que ele
está desprovido de preconceitos. Isto é inevitável, uma vez que o livro, obra escrita por um
cristão, expõe o ponto de vista que um cristão possuía do Islamismo e do Judaísmo. Mas foi
inovador, sobretudo, por configurar-se em uma tentativa de compreensão e respeito ao outro.
Ramon não só procurou conhecer a cultura dos outros (judeus e muçulmanos)
como reconheceu seus valores e costumes, chegando mesmo a absorver muitos deles, como
ficou evidenciado em algumas de suas obras, expostas neste texto, ou seja, por mais que
considerasse as demais doutrinas falsas e (ou) errôneas, culturalmente, não colocava a
sociedade em que vivia em um patamar de superioridade; pelo contrário, propunha inclusive,
reformas urgentes no seio da própria Cristandade.
Neste contexto, sem esquecer das mortes causadas por intolerâncias de matizes
não só religiosas, mas também étnicas, políticas, sexuais, econômicas e culturais, que ocorrem
atualmente O Livro do Gentio e dos Três Sábios traz uma grande atualidade. Apesar dos
séculos de distância que nos separam deste filósofo, o diálogo pensado pelo maiorquino se
efetivado, poderia ter contemporizado as tensões que se avolumaram no decorrer dos séculos,
atendendo, com isto, a aspiração contemporânea de encontrar um meio harmônico de
convivência entre Oriente e Ocidente.
Desde então, Ramon Llull percebia que a intolerância era uma força destruidora e
que a destruição do outro não fazia parte do projeto divino, independentemente da doutrina
escolhida. Quantas guerras, mortes e derramamento de sangue poderiam ser evitados se as
forças em litígio considerassem e refletissem apenas sobre o epílogo desta obra! Os homens
não devem e nem precisam acreditar nas mesmas idéias. A diversidade é benéfica quando
115

multiplica o conhecimento, quando se torna base para novos aprendizados. Mas para que isso
aconteça é necessário que aprendamos a conviver e a respeitar nossas diferenças a exemplo da
disputa imaginária criada pelo filósofo, onde o judeu, o muçulmano e o cristão são
merecidamente chamados de sábios.
116

REFERÊNCIAS

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