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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS


INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS, COMUNICAÇÃO E ARTES
COMUNICAÇÃO SOCIAL – RELAÇÕES PÚBLICAS

SANDRO REGUEIRA

JESUS, UM PESSIMISTA FILANTRÓPICO.

MACEIÓ, ALAGOAS
2015
1

SANDRO REGUEIRA

JESUS, UM PESSIMISTA FILANTRÓPICO.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à


Universidade Federal de Alagoas, Instituto de
Ciências Humanas, Comunicação e Artes, como
requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel
em Comunicação Social, com habilitação em
Relações Públicas.

Orientador: Prof. Dr. Aloísio Nunes.

MACEIÓ, ALAGOAS
2015
2

FOLHA DE APROVAÇÃO

AUTOR: SANDRO REGUEIRA

Jesus, um Pessimista Filantrópico. Trabalho de Conclusão de Curso em


Comunicação Social (Relações Públicas), da Universidade Federal de Alagoas, na
forma normatizada e de uso obrigatório.

Trabalho de Conclusão de Curso submetido


ao corpo docente do Curso de Comunicação
Social da Universidade Federal de Alagoas e
aprovado em 24 de novembro de 2015, com
nota 10 (dez).

Prof. Dr. Aloísio Nunes, Universidade Federal de Alagoas


(Orientador)

Banca Examinadora:

Prof.ª Dr.ª Mirtes Torres, Universidade Federal de Alagoas


(Examinadora Interna)

Prof. Dr. Carlos de Gusmão, Universidade Federal de Alagoas


(Examinador Interno)

Prof.ª Esp. Adriana Thiara, Instituto Federal de Alagoas


(Examinadora Externa - Suplente)
3

A mim mesmo, às três companheiras a quem até


agora entreguei e espero ter recebido o coração,
minha família, PT e AE, minha banda, seus ouvintes e
todos os professores e professoras que tive e terei
durante a vida. Mesmo os mais conservadores foram
excelentes, sou um cara de sorte. Especialmente aos
amigos. Amigos são raros.
4

AGRADECIMENTOS

Ao Colégio Santíssimo Sacramento, do qual fui bolsista durante a maior parte da minha vida;
À minha mãe, que apesar de sempre reclamar, é a mulher mais formidável de toda a galáxia;
Ao meu pai, que apesar de tudo, me ensinou a idealizar e sonhar;
Ao futuro futebolista Pedro ―Bonitinho‖ Regueira e à Pitchulinha-Thati, Thati-Pitchulinha;
À Turma do Cabelo, Galera VL e Ehosprastxcho;
Àqueles que integraram e integram a Deslucro, inclusive os fãs e as maravilhosas Deslucretes;
Aos companheiros da Articulação de Esquerda e do Partido dos Trabalhadores;
À galera da ZRP, lugar onde fui criado, vide: Chokito e Edgard, amigos da mesinha do Rui; Tony,
vulgo Tonho e Biliu Cigana, casal de bros; e todos os que assistiam DBZ na casa do Rotieh;
À Marina, Bárbara e Alline, assim como às suas famílias;
À minhoca graúda que Marina desejou criar quando pequena;
À Dona Inês e ao Senhor Maurício, imprescindíveis num pedaço relevante da minha história;
Ao Thalmanny, meu grande (e talvez único) amigo de infância;
À galera que brincava nos corredores do 13C: Marcos, Thales Japa e Rodrigo Dodória;
Aos amigos RPGistas da Rua Industrial Breno Lins Cansanção;
Às amigas que apreciam um ―ótimo teijo‖: Bia e Mylla;
À Vó Marlene, Vô Valdemar e todos os meus tios, tias e primos da família Regueira. Especialmente
ao Tio Denys, que há tempos acredita em mim e ao meu primo Rodrigo, que sempre esteve presente;
À Tia Lucigl e todos que me trazem as boas lembranças de Sonho Verde;
Aos amigos que encontrei na Belt;
À Família Camilo, que se dispôs a me ajudar num momento de procela;
À Dona Élia, Alexandre, Urso (meu irmão) e todos os membros da família Pontes;
Ao meu querido orientador e professor, Aloísio Nunes;
Aos professores do curso de comunicação: Mario Riquelme, Amilton, Gusmão, Bispo e Mirtes;
Aos professores Nasson Paulo e Adriana Thiara, por serem decisivos na minha carreira;
Aos meus chefes e também mestres: Manoel Araújo, Flávia Chasan e John McBrown;
Aos meus professores secundaristas, especialmente: Marcos Damasceno, Tia Maura e Tia Mônica;
Ao Vô Jeová, Vó Marieta, Bibi, Nathália, Tia Neném, Adriana, Tio Dailtom, Tia Delza, Tia Bernadete,
Vó Gusta, e todos os parentes de Rio Largo. Estes me ensinaram grandes valores;
Cloud, Tifa, Barret, Cait Sith, Red XIII, Aeris, Vincent, Yuffie, Cid, Sonic e também ele: Son Goku.

Obs.: Todos aqui deveriam estar em caixa alta, negrito e sublinhado.


Obs.2: Obviamente faltou algum nome, ou alguma galera. Acreditem: vocês não são menos
relevantes ou importantes por conta disso.

Obrigado.
5

O dado mais importante que separa o ser humano de


todos os seus irmãos e primos da escala filogenética
é o conhecimento. Só o conhecimento liberta o
homem. Só através do conhecimento o homem é
livre, e em sendo livre, ele pode aspirar uma condição
melhor de vida para ele e todos os seus semelhantes.
Eu só consigo entender uma sociedade na qual o
conhecimento seja a razão de ser precípua que o
governo dá para a formação do cidadão. A minha
mensagem é positiva, é de que o homem tem de
saber, conhecer. Em conhecendo, ele é livre.

(Enéas Carneiro, programa Jô Soares, 1989)


6

RESUMO

Este trabalho de conclusão de curso aborda Jesus, figura central dos cultos e
religiões judaico-cristãs, como um pessimista classificado como do tipo filantrópico a
partir da fenomenologia na perspectiva teórica da semiótica peirceana. Apresenta
interdisciplinaridade com as áreas de teologia, filosofia, ciências sociais e história,
com foco precípuo na comunicação social, expondo-a por meio de escolas teóricas
diversas, com ênfase em semiótica peirceana. No intuito de ilustrar, a partir da
classificação discorrida por Peirce no texto ―Um Argumento Negligenciado para a
Realidade de Deus‖, os três tipos de pessimistas, o trabalho vale-se, dentre outros,
de: Austregesilo, Augusto dos Anjos, Leopardi, Schopenhauer e Voltaire; aponta,
principalmente a partir de Leonardo Boff, a evolução histórica da imagem de Jesus,
diferenciando a construção do Jesus histórico e do Jesus cristificado pela conjuntura
de diversas épocas, condutas e textos apologéticos; em seguida traça paralelo e
convergências entre o pessimismo filantrópico em Peirce e Jesus.

Palavras-chave: Charles Sanders Peirce. Semiótica. Jesus Cristo. Pessimismo.


Fenomenologia.
7

ABSTRACT

This work addresses Jesus, central figure in Judeo-Christian religions, as a


pessimistic classified as philanthropic from a phenomenological perspective in
Peirce's semiotics. It features an interdisciplinary approach with theology, philosophy,
social sciences and history with preciput focus in social media, exposing it through
various theoretical schools, emphasising Peirce's semiotics. In order to illustrate,
from Peirce‘s "A Neglected Argument for the Reality of God", the three types of
pessimists, the work makes use of Austregesilo, Augusto dos Anjos, Leopardi,
Schopenhauer and Voltaire; it points out, mostly from Leonardo Boff, the historical
evolution of the image of Jesus, differentiating the construction of the historical Jesus
and the christified Jesus through different eras, ducts and apologetic texts; then it
traces a parallel and similarities between the philanthropic pessimism in Peirce and
Jesus.

Keywords: Charles Sanders Peirce. Semiotic. Jesus Christ. Pessimism.


Phenomenology.
8

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Signo ........................................................................................................ 42


Figura 2 – A Tricotomia ............................................................................................. 45
Figura 3 – As 10 Classes Exploradas por Peirce no Sistema de Relações Cruzadas
.................................................................................................................................. 46
Figura 4 – A Trindade Sígnica e Cristã ..................................................................... 84
Figura 5 – As Tríades da Cosmogênese e da Antropogênese Aplicadas ao Deus do
Cristianismo............................................................................................................... 86
9

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – A Tricotomia na Classificação Sígnica .................................................... 46


Tabela 2 – Síntese explicativa para as 10 Classes do Sistema de Relações
Cruzadas
.................................................................................................................................. 47
Tabela 3 – O Pai Nosso ............................................................................................ 96
10

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 12
2 A COMUNICAÇÃO ................................................................................................ 17
2.1 ALGUMAS FACETAS DA COMUNICAÇÃO ....................................................... 17
2.2 TEORIA GERAL DOS SIGNOS: ABORDAGEM PEIRCEANA ........................... 32
2.2.1 Sobre a dimensão .......................................................................................... 32
2.2.2 Sobre a filosofia e a fenomenologia na Semiótica ...................................... 34
2.2.3 Entendendo a primeiridade, secundidade e terceiridade ........................... 38
2.2.3.1 Primeiridade .................................................................................................. 39
2.2.3.2 Secundidade ................................................................................................. 40
2.2.3.3 Terceiridade .................................................................................................. 41
2.2.4 O processo de comunicação na teoria geral dos signos ........................... 41
2.2.5 A classificação dos signos............................................................................ 44
3 O PESSIMISMO ..................................................................................................... 49
3.1 A COSMOVISÃO PESSIMISTA .......................................................................... 49
3.2 ALGO SOBRE O ―UM ARGUMENTO NEGLIGENCIADO PARA A REALIDADE
DE DEUS‖ ................................................................................................................. 58
3.2.1 A pequena síntese da divisão fenomenológica do pessimismo por Peirce
no ―Um Argumento Negligenciado‖ e alguns pessimistas ................................. 64
4 JESUS, UM PESSIMISTA FILANTRÓPICO.......................................................... 76
4.1 O JESUS DA FÉ ................................................................................................. 76
4.2 A METAFÍSICA DE JESUS ATRELADA AO JESUS HISTÓRICO E À
COSMOVISÃO DA SEMIÓTICA PEIRCEANA ......................................................... 83
4.3 O JESUS HISTÓRICO E O PESSIMISMO FILANTRÓPICO .............................. 88
5 CONCLUSÃO ...................................................................................................... 102
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 107
11

O primeiro problema para todos nós, homens e


mulheres, não é aprender, mas desaprender.

(Gloria Steinem, discurso no Vassar College).


12

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho irá apresentar Jesus a partir de uma perspectiva que, apesar
de parecer polêmica, não possui nada de estardalhaçador, a não ser que você seja
um fundamentalista daqueles que não admite a presença da palavra ―Jesus‖ com
qualquer outra que não goste, na mesma linha de uma frase. Este não é o meu
caso. Apesar de considerar a informação irrelevante, considero dizer que sou
cristão. Mas observe: este não é um trabalho sobre o cristianismo. Muito
menos sobre o mérito ou demérito da fé cristã. É um trabalho de comunicação
social a partir da perspectiva teórica da semiótica peirceana aplicada. ―Mas por
que escolher Jesus?‖ você pergunta. A resposta mais sincera que posso te dar é:
―Porque eu quis.‖ e isso deveria mesmo ser o suficiente. O pesquisador pesquisa
sobre o que quer pesquisar e este direito é legítimo; além do mais, bons
pensamentos só se desencadeiam com a fruição da liberdade, que é fundamental.
Porém, há algo que motiva a pesquisa. Observa a diferença metodológica na
questão? Pois bem.
Jesus é uma das figuras mais importantes da história da humanidade; sua
história, para aqueles que acreditam no seu viés messiânico ou não, foi suficiente
para dividir o calendário entre antes e depois do seu nascimento. Isso deveria ser
suficientemente relevante, mas não é. A vida de Jesus, especialmente como
apresentada no documento maior do cristianismo, a Bíblia, ainda que construída
apologeticamente, é referência histórica e cultural para a formação intelectual,
artística, social, psicológica, acadêmica, familiar, moral, ética, etc. da humanidade.
Ou seja: se você vive no ocidente, ainda que você seja um adepto radical da Ars
Goetia1, Jesus estará inevitavelmente presente de alguma maneira na sua vida.

O cristianismo abriu espaço teórico para o projeto científico da Modernidade


ao secularizar o mundo, e assim fazê-lo objeto de investigação. Houve um
conflito inicial entre a cosmovisão clássica sustentada pela hierarquia

1
Refere-se à prática de Invocação de Anjos ou a Evocação de Demônios descritos no grimório do
séc. 17, The Lesser Key of Solomon (A Chave Menor de Salomão) que retrata a Ars Goetia em sua
primeira seção (OCULTURA, 2007-2015).
13

romana, mas que foi superada por figuras religiosas como Copérnico e
Pascal. Gênios como Newton, Francis Bacon, filósofos como Kant, Hegel,
Nietzsche, Heidegger e o próprio Marx-Engels ou sociólogos e analistas
como Max Webber e Gramsci, entre tantos outros que se tornariam
incompreensíveis sem o seu contato com o cristianismo. Ressaltam políticos
notáveis que fizeram da fé cristã inspiração ética e humanística como
Adenauer na Alemanha, De Gaspari e Della Pira na Itália, De Gaulle na
França, Kannedy nos Estados Unidos, Mariátegui no Peru e Lula no Brasil.
(...) Brilharam na inteligência gênios como Orígenes, Santo Agostinho,
Santo Irineu, os mestre medievais como São Tomás de Aquino, São
Boaventura, Duns Scotus, Guilherme de Ockam; nos séculos XV e XVI
Huss, Lutero, Zwínglio, Calvino, Melanchton, Bartolomeu de las Casas, e
modernamente, Schleiermacher, Karl Barth, Rudoulf Bultmann, Jürgen
Moltmann, Karl Rahner, Dietrich Bonhofer, [S. C. Peirce] e, entre nós,
Gustavo Gutiérrez, Juan Luiz Segundo, Hugo Assmann, Jon Sobrino e
Paulo Freire. (...) o cristianismo [é] um acontecimento histórico aberto e
ainda em construção (BOFF, 2013, p. 182-187).

Mas seria utilizar de Jesus num trabalho acadêmico, uma atrocidade? Não
seria demais polêmico? Não é desrespeitoso? As ciências humanas já não
superaram os vícios teístas, especialmente, os cristãos? Para aqueles que possam
levantar essas questões, aqui exponho: não desrespeito aqui qualquer religião ou
crença; só é polêmico o que possui tamanho para o ser, e isso não deporia contra
este trabalho; Peirce, o quadro teórico maior da perspectiva abordada por este
trabalho, além de teísta era cristão. O que creio ser suficiente para resolver as
demais questões. No entanto, apresento a perspectiva de um notável e curioso
acadêmico brasileiro, ex-ateu, para que os fundamentalistas acadêmicos,
convencidos da necessidade da separação absoluta entre Deus e academia,
possam refletir:

―Se Deus não existe e a alma é mortal, tudo é permitido‖ é um enunciado


profundamente racional. Não se trata do lamento de uma mente frágil. (...)
Sem Deus, perde-se a forma absoluta do juízo moral: estamos sós no
universo como animais ferozes que babam enquanto vagam pelo deserto e
contemplam a solidão dos elementos. A morte, que devolverá a
humanidade ao pó, é o fundamento último do nosso direito cósmico ao gozo
do mal. (...) Esse ciclo nos liberta da única forma verdadeira de
responsabilidade, a infinita. A moral é mera convenção e não está escrita na
poeira das estrelas. (...) Além de desconstruir, sabemos construir? O
homem pode ser a forma do homem? A modernidade achou que sim. Kant
pensou que, com seu risível imperativo categórico, nos salvaria, fundando a
racionalidade pura da moral. Conseguiu apenas a exclusão cotidiana de
toda forma de homem possível. A miserável ética utilitarista (a ética do
mundo possível), síntese da alma prática que só calcula, busca na universal
obsessão humana pelo prazer a fundamentação de uma ética para homens,
cuja forma universal são merceeiros ingleses (Marx). O humanismo
rousseauniano apostou na educação para a felicidade e virou auto-ajuda.
14

(...) A falácia comum é a suposição de que o intelecto teológico


necessariamente teme o sofrimento. (...) O erro de Nietzsche quando
reduz a religião ao ressentimento se transformou em ‗papo cabeça‘. (...) o
sentimento real de que deslizamos aceleradamente sobre fina casca de
gelo mortal é prova sublime do seu caráter profético. A história aqui nos
basta. Dostoievski anuncia a comédia trágica daqueles que deixaram
de acreditar em Deus e, por isso mesmo, passaram a acreditar em
qualquer reforma barata. Contrariamente ao que pensava a risível
crítica moderna da religião, o contato com Deus fortalece o intelecto
nas mais ínfimas estruturas lógicas e práticas de sua natureza
(PONDÉ, 2006, grifo nosso).

Superada a questão, deixando claro que não precisamos concordar para


que esta seja superada, podemos desaguar na antecipação do discorrer do trabalho.
Praticamente todo o texto girará em torno de um trecho de um denso escrito de
Peirce, intitulado: ―Um Argumento Negligenciado para a Realidade de Deus‖. Na
prática o texto expõe exatamente o que o título descreve. Foi redigido por Peirce
para atender ao pedido de um amigo matemático e isso será exposto no decorrer do
trabalho.
Neste texto, em um determinado parágrafo, Peirce aponta três categorias de
pessimistas. Estas categorias, como veremos, fazem jus às classificações de Peirce:
primeiridade, secundidade e terceiridade. Dentre estas categorias de pessimistas,
ele descreve brevemente qualidades básicas inerentes a cada uma delas. Cita
algumas personalidades como exemplos e após dar o seu pontapé inicial, deixa todo
o estudo restante para ser desbravado pelos futuros curiosos.
Para desenvolver esse estudo, apontarei primeiro algumas percepções do
que é a comunicação; discorrerei rapidamente sobre diversas teorias da
comunicação, como a teoria da agulha hipodérmica, teoria sistêmica da perspectiva
de Luhman, etc. e em seguida desenvolverei um pouco mais detalhadamente sobre
a semiótica peirceana. A partir desse desenvolvimento, o trabalho tomará um caráter
aparentemente mais filosófico, ao partir para a exposição e conceituação do
pessimismo através de diversos autores como Schopenhauer e Voltaire, e mesmo
de outros, como Augusto dos Anjos e Austregesilo.
Após discorrer sobre o pessimismo e buscar quebrar de alguma forma
qualquer espectro de preconceito que gire em torno do tema, passearei na teologia e
história, tomando como base algumas perspectivas cristãs católicas, protestantes e
astrológicas, mas tomando como base, principalmente, os estudos de Leonardo
Boff. Por que Boff? Boff é um leigo cristão, notavelmente um dos teólogos mais
15

respeitados em todo o mundo. É um estudioso assíduo da figura do Jesus Histórico


e normalmente discorre com tranquilidade sobre perspectivas comuns ao
catolicismo, correntes do protestantismo e mesmo o esoterismo cristão.
Todo esse passeio por entre ramos a priori distintos de estudos se dá pela
metodologia do pensamento peirceano. Veremos que todo o pensamento de Peirce
se inicia na fenomenologia, ou seja, pela categorização das coisas2. Sendo assim,
só é possível categorizar, a partir do momento em que se conhece o conjunto de
características que determinarão essas categorias. Essas características
naturalmente passeiam pela explanação de diversos conhecimentos, especialmente
os filosóficos.
O que este trabalho buscará é, além de contribuir com uma ciência que
rompe com o positivismo, que já deveria ter sido superado pela academia de
comunicação, seja como escola teórica, seja na prática acadêmica, dar seguimento
ao processo de categorização fenomenológica indicado por Peirce, neste caso,
tomando a base redigida por Peirce sobre o pessimismo, como elemento a ser
complementado; e Jesus, pensador e figura histórica, como figura a ser doravante
enquadrada, ou não, em alguma dessas categorias.

2
Observaremos no decorrer do trabalho.
16

Só há comunicação com signos.

(Aloísio Nunes, no quadro que figura na sala dos


professores do bloco de Comunicação Social da
Universidade Federal de Alagoas).
17

2 A COMUNICAÇÃO

2.1 ALGUMAS FACETAS DA COMUNICAÇÃO

A comunicação é cretina. Cretina por ser um objeto que não é objeto3. Ora,
se os estudos sobre a comunicação buscam a efemeridade de serem vistos como
ciência pelos vícios positivistas da academia estamos, nós que nos dedicamos a
estuda-la, fadados ao desgaste inerente da utopia. Pois, assim como, seguindo essa
trajetória, não fosse Freud e seus doravantes, a psicologia teria estagnado nos
meados da abordagem diferencial4 teríamos nós, da comunicação, subvertido à
tentação de sucumbir à pesquisa quase que unicamente quantitativa como forma de
mensuração inconteste e inequívoca, de algo que não deve ser simplificado, ou
reduzido de tal forma, sob a pena de criarmos um conhecimento limitado mas
travestido de verdade absoluta, que mais do que educador, se tornaria leviano.
Assim foi, realmente, que ocorreu durante os meados dos anos quarenta e
cinquenta, quando Shannon e Weaver apresentaram a Teoria Matemática da
Comunicação e foram aceitos e aclamados pela academia (NUNES, 2011, p. 28).
Aquilo era novidade: a comunicação finalmente passava a ser estudada oficialmente
sem ser confundida com filosofia, reduzida à retórica, ou mesmo substanciada à
aplicabilidade publicitária (NUNES, 2011, p. 26-28).
Felizmente, o pensamento cartesiano, de relação causa-efeito, radical do
positivismo enfraqueceu-se no decorrer do desenvolvimento das demais teorias
relacionadas às relações humanas e apesar de ter dado uma contribuição
significativa para a lógica do pensar, mostrou-se ultrapassada e de aplicabilidade
incoerente para tudo aquilo que não é estático e substancialista (RODRIGUES, L.
2008, p. 119).
Ao afirmar que a comunicação é ―um objeto que não é objeto‖, na verdade
corroboro em parte com a leitura de que:

3
Clarifico que este pensamento não é consensual e está apresentado, a priori, de forma superficial.
Será discutido no decorrer do texto.
4
A Psicologia diferencial baseia-se na tradição positivista e ―acredita que a tarefa da ciência é estudar
aquilo que é observável (positivo) e mensurável‖ (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2009, p. 181).
18

As várias disciplinas das ciências ditas humanas nos oferecem modos de


analisar a comunicação. É possível ver estes atos do ponto de vista
sociológico, por exemplo, atravessando filosofia até chegarmos a uma
5
interpretação lógica e matemática das mensagens . Por que, então, haver
quem afirme que o estudo da comunicação não tem objeto? Seria a
6
comunicação um desobjeto fantasmático ? [!] [...] Mesmo que poliforme
existe – é claro – um objeto da comunicação (JUNIOR apud NUNES, 2011,
p. 35-36, grifo nosso).

Júnior, portanto, não apresenta uma definição de objeto, mas a conclusão


(trivial, diga-se de passagem) de que existe um objeto para a comunicação que, a
meu ver, pode sim, ser visto como um ―desobjeto fantasmático‖, dada a imprecisão
que o caracteriza, principalmente, ao passo em que possui existência notória7. Não à
toa, normalmente a definição de comunicação, dá-se de forma altamente empírica:
―comunicar é ‗dizer algo a alguém‘‖ (MARTINI, 2012).
Como proceder, portanto, com os estudos relativos à comunicação, tendo
em vista a amplitude do tema? A premissa básica da lógica dirá que não sabemos
absolutamente nada sobre o tudo; porém, sobre algo específico, sabemos alguma
coisa. A paradoxalidade da afirmação acima pode ser metodologicamente
compreendida a partir da análise sistêmica e assertiva de que:

[...] existe uma totalidade que pode ser vista como um ambiente e que é
complexa. Quando, nesse ambiente, se formam sistemas, através de
elementos/processos (existentes nesse ambiente) que se enlaçam de forma
recursiva, retro-alimentada [SIC], diferenciando-se desse ambiente, temos,
então, o que Luhmann irá chamar de redução da complexidade desse
ambiente. [...] embora a existência de um sistema implique na redução da
complexidade do ‗sistema-mundo‘, isto não significa que o sistema em si
não apresente complexidade (RODRIGUES, L. 2008, p. 115, grifo do autor).

A teoria luhmanniana conceitua que aquilo que chamamos de ―realidade


social‖ se apresenta de forma complexa e que o esforço teórico, objetiva a redução
dessa complexidade. Luhmann argumenta que algo não pode ser visto como algo
independente de um sistema, algo que se torna um elemento do sistema.

5
No decorrer do texto, observaremos que a ideia de interpretação lógica e matemática das
mensagens é atual, desde que observada a partir da perspectiva do signo.
6
Se Peirce era adepto de neologismos (SANTAELLA, sd., p. 6), quem sou eu para indicá-los como
erros gramaticais? Ademais, sou crente na evolução linguística, não farei uso de ―sic‖ em
neologismos.
7
Salutar observar que a humanidade define mais facilmente Deus, que não possui existência mais
(consensualmente) notória, do que a comunicação.
19

Em vista, Luhmann observa que os elementos internos de um sistema não


interagem apenas quantitativamente, mas principalmente qualitativamente. Ou seja,
além das quantidades e possibilidades de interações dentre os elementos contidos
num sistema, há a qualidade das interações ocorridas por estes, sendo estas,
determinantes para as possibilidades de seletividade contingente apresentada pelo
sistema. Sendo assim, Luhmann atesta o vínculo entre entorno, sistema,
complexidade e sentido.

O sentido comporta sempre focalizar a atenção sobre uma possibilidade


dentre muitas outras [...] O sentido, definitivamente, é a conexão entre o
atual e o possível; não é um ou outro [...] O sentido é uma representação da
complexidade. O Sentido não é uma imagem ou um modelo usado pelos
sistemas psíquicos ou sociais, mas, simplesmente, um nova e poderosa
forma de afrontar a complexidade sob a condição inevitável de uma
seletividade forçosa (LUHMANN apud RODRIGUES, L. 2008, p.115-116).

É neste sentido que percebemos a impossibilidade de definir a comunicação.


O ato de comunicar, as consequências, trajetos, códigos, meios, etc. não são a
comunicação, eles estão contidos na comunicação. Seria desonesto reduzir a sua
totalidade8 a quaisquer dos elementos apresentados. Esta observação é importante.
No entanto, dentro de toda a complexidade do estudo da comunicação,
talvez a percepção e compreensão da existência do signo tenha sido a mais
esclarecedora argamassa já encontrada para o entendimento das relações de todas
as coisas para com todas as coisas. No estudo da linguagem Saussure afirmava
que:

[...] na língua não há senão diferenças e define o signo linguístico como a


junção de um significado e de um significante e que duas leis regem o
signo, assim estruturado. A primeira lei diz respeito à arbitrariedade do
signo, isto é, o signo nada tem a ver com a coisa representada, com as
coisas do mundo exterior. A segunda lei é sobre o caráter linear de todo
significante, isto quer dizer que não posso, por limitações orgânicas,
9
pronunciar dois sons ao mesmo tempo ; a um som seque-se outro som
(NUNES, 2011, p. 31).

8
Neste caso utilizo o sentido aristotélico da palavra ―totalidade‖, definida como ―um todo completo em
suas partes e perfeito em sua ordem‖ (ARISTÓTELES apud RODRIGUES, L. 2008, p. 108).
9
Ao contrário do que afirma Saussure, é possível pronunciar dois sons ao mesmo tempo: ―No
ocidente comenta-se da existência de apenas dois registros: a voz de cabeça e a de peito, mas há
também o strohbass também conhecido como mecanismo zero e o assovio (whistle/mecanismo 3).
Ex. os monges budistas e os xamãs tuvanos usam voz strohbass e ao mesmo tempo conseguem
fazer soar os harmônicos agudos [...]. Os índios brasileiros e cantores da Nova Guiné usam o
segundo registro: nasal e agudo‖ (PUCCI, 2006, grifo do autor).
20

Vale salientar que a apreciação de significado e significante são


observações relevantes, assim como é importante notar o papel das diferenças na
construção do signo10:

Para Saussure, portanto, a língua é um sistema de valores diferenciais, isto


é, a língua é uma forma na qual cada elemento, desde um simples som
elementar (f, por exemplo, na palavra fato, ou g, na palavra gato), só existe
e adquire seu valor e função por oposição a todos os outros. Cada
elemento, portanto, só é o que é por diferença em relação àquilo que todos
não são (SANTAELLA, sd., p. 17).

No entanto, Saussure exclui o mundo exterior da sua análise, enquanto ao


mesmo tempo afirma que ―Língua e pensamento são indissociáveis, tal uma folha
de papel, um sendo o verso e outro o anverso da folha: ao rasgarmos o papel,
afetamos ambos os lados da folha‖ (SAUSSURE apud RODRIGUES, F. sd., grifo
nosso).

Esta metáfora, utilizada por Saussure, pode ser ampliada, ou antes


reduzida, aos componentes do signo, o significado e o significante. A língua,
para Saussure, é a expressão do pensamento que, sem ela, é uma ‗massa
amorfa e indistinta‘. A expressão não se dá diretamente do pensamento aos
sons: ela é mediada pela língua, que é um sistema de signos. É na relação
que se estabelece no sistema que os signos adquirem seu valor, que
significam. A língua não é um sistema de signos justapostos, mas uma rede
de signos que se relacionam e, assim, significam. Entra aqui, na análise de
Saussure, a metáfora do jogo de xadrez: cada peça se define, adquire valor,
na relação que tem com as outras peças do jogo. Os signos, também, se
definem negativamente, pela oposição com outros signos do sistema. Mas
há que se distinguir, como acentua Saussure, o valor linguístico da
significação. O valor é um elemento da significação. A significação, para ele,
refere-se ao signo linguístico internamente, no seu componente conceitual
(RODRIGUES, F. Sd., grifo nosso).

Mas como pode Saussure indicar que a língua e o pensamento são


indissociáveis ao mesmo tempo em que exclui o mundo externo da sua análise?
Observemos que:

Se a referência de um sinal é um objeto sensorialmente perceptível,


minha representação é uma imagem interna, emersa das lembranças
de impressões sensíveis passadas e das atividades, internas e
externas, que realizei. [...] A representação é subjetiva: a representação
de um homem não é a mesma de outro. [...] A representação, por tal razão,
difere essencialmente do sentido de um sinal, o qual pode ser a propriedade
comum de muitos, e portanto, não é uma parte ou modo da mente individual
[...] (FREGE apud RODRIGUES, F. sd., grifo nosso).

10
O signo ao qual estou me referindo neste caso, é o descrito por Saussure.
21

Ou seja, se não há como dissociar a língua e o pensamento, tampouco é


possível dissociar o pensamento do mundo, das experiências, das impressões. A
objetividade e a subjetividade não apresentam uma relação dicotômica, ou mesmo
excludente. Isto é trivial. Não há como se ignorar a percepção de que:

Outra virtude é a de trabalhar de forma críptica (SIC) a tensão entre


subjetividade e objetividade, entre consciência e mundo, entre ser social e
consciência. É difícil definir esta tensão porque nenhum de nós escapa à
tentação de minimizar a objetividade toda poderosa. Então se diz que a
subjetividade arbitrariamente cria o concreto, cria a objetividade. [...] A
subjetividade muda no processo da mudança de objetividade. Eu me
transformo ao transformar. [...] Outro equívoco que está presente nesta
tensão é o de reduzir a subjetividade a um puro reflexo da objetividade.
Então, esta ingenuidade assume que só deve transformar-se a
objetividade para que, no dia seguinte mude a subjetividade. Não é
assim, porque os processos são dialéticos, contraditórios,
processuais (FREIRE, sd., p. 4, grifo nosso).

Logo, ao tempo em que Paulo Freire, conforme a citação acima, argumenta


que não se pode reduzir a subjetividade a um puro reflexo da objetividade,
indicando, inclusive, que o pensamento e o mundo11 são indissociáveis, Saussure
aparentemente equivoca-se ao indicar a arbitrariedade do signo como um elemento
isolado do mundo, assim como ao submetê-lo à condicionante da abstração.
Antecipando o assunto que será abordado no próximo capítulo deste trabalho,
observo que a ideia de signo não é consensual. Segundo Lúcia Santaella, Peirce,
por exemplo, discordará de Saussure e considerará o ambiente externo de forma
categórica:

As interferências são internas, isto é, as que vêm das profundezas do nosso


mundo interior, e externas, as que dizem respeito às forças objetivas
que atuam sobre nós. Essas forças vão desde o nível das percepções
que, pelo simples fato de estarmos vivos, nos inundam a todo instante, até o
nível das relações interpessoais, intersubjetivas, ou seja, as relações de
amizade, vizinhança, amor, ódio etc., encontrando ainda as forças sociais
que atuam sobre nós: as condições reais de nossa existência social,
isto é, as relações formais de classes sociais que variam de acordo
com as determinações históricas das sociedades em que se vive
(SANTAELLA, sd., p. 9, grifo nosso).

Porém, ao mesmo tempo, Santaella discorre que:

11
Entenda-se, neste caso, o mundo exterior que Aloísio Nunes cita em (2011, p. 31).
22

[...] a preocupação explícita desse pensador [Saussure] era a de fundar


uma ciência da linguagem verbal. Em nenhum momento foi por ele
demonstrada qualquer iniciativa no sentido de formular conceitos mais
gerais que pudessem servir de base para uma ciência mais ampla do que a
Lingüística [sic]. Ao contrário, consciente disso, Saussure apenas previu a
necessidade de existência dessa ciência mais vasta que ele batizou de
Semiologia. (SANTAELLA, sd., p. 17).

Qualquer teoria da comunicação que coloque o homem como aquele


que dá sentido aos sinais é falha, pois ignora o mundo antes da humanidade
(NUNES, 2011, p. 35). A comunicação antecedeu a humanidade. Portanto, se a
comunicação antecedeu a existência humana e sempre interferiu nas relações entre
os animais, podemos afirmar que os animais são também seres sociais:

Em resumo, das seis funções comunicativas do ser humano, duas – a


12
emotiva e a fática, certamente ocorrem também em espécies subumanas .
As duas outras – a cognitiva e a conativa – provavelmente ocorram; mas as
duas restantes – a poética e a metalinguística parecem ser exclusivamente
humanas. [...] A sentença de abertura do texto de Lindauer diz ‗em última
análise todos os animais são seres sociais‘. A conclusão dessa
afirmação é que toda a união orgânica implica em um instrumento de
comunicação (SEBEOK apud NUNES, 2011, p. 78, grifo nosso).

Diante do estudo, é relevante citarmos as construções metafísicas em torno


da comunicação. Uma corrente teológica denominada ―Teologia da Comunicação‖,
define a comunicação como uma ramificação consequente do sacrifício de Deus ao
mundo13. Na perspectiva cristã defendida pela Igreja Católica Apostólica Romana,
Jesus é Deus na unidade do Espírito Santo (VATICANO, sd.):

Cada uma das nossas comunicações tem em sua raiz a grande


comunicação que Deus fez ao mundo do seu Filho Jesus e do Espírito
Santo, através da vida, morte e ressurreição de Jesus e da vida do próprio
Jesus na Igreja. [...] Toda comunicação deve ter presente como fundamento
a grande comunicação de Deus, capaz de dar o ritmo e a medida justos a
todo gesto comunicativo. Segue-se disso que um gesto será mais
comunicativo quando não só comunicar informações, mas também colocar
em relação às pessoas. [...]Toda mentira é uma rejeição dessa
comunicação. Quando nos confiamos com coragem à imitação de Jesus,
sabemos que somos também verdadeiros e autênticos. Quando nos

12
Fica registrada a minha insatisfação com o uso do termo ―subumano‖ para a descrição dos outros
seres vivos presentes na natureza. Considero a expressão arrogante.
13
Ainda que a figura de Deus seja controversa no meio acadêmico, considero relevante a suave
citação do conceito de comunicação desta corrente teológica em face do tema a ser abordado. Peirce
era Cristão e essa faceta da sua vida teve grande influência na produção da sua obra. Um dos textos
mais importantes para o desenvolvimento deste trabalho possui o título: ―Um argumento
negligenciado para a realidade de Deus‖. O título do texto é autoexplicativo.
23

separamos desse espírito, tornamo-nos opacos e não comunicantes. [...] A


comunicação nas famílias e nos grupos também depende desse modelo.
[...] A comunicação na Igreja também obedece a essas leis. [...] É
intercâmbio dos corações na graça do Espírito Santo. Por isso, as suas
características são a confiança mútua, a parrésia, a compreensão do outro,
a misericórdia (MARTINI, 2012, grifo do autor).

O texto limitado pelo vício em dogmas, que constitui a citação de Martini,


apesar de não ter em si o brilho da reflexão acadêmica, deve ser levado em conta,
principalmente, se considerarmos o impacto da instituição Igreja na formação
cultural e social da humanidade. Ora, ―se todo o fato da cultura é comunicação e
pode ser explicado segundo os esquemas que presidem a qualquer fato de
comunicação‖ (ECO apud NUNES, 2011, p. 34), não podemos negar que:

De facto [sic], as Igrejas não são entidades abstratas, mas sim, instituições
inseridas na História, e é unicamente na história que se dá também a
educação. Da mesma forma, o trabalho educativo das Igrejas não pode ser
compreendido fora do condicionamento da realidade concreta onde se
situam (FREIRE, 1978, p. 11).

Sendo assim, não apenas a Igreja, mas toda e qualquer instituição deve ser
observada do ponto de vista da interferência, em forma de comunicação, na
formação e comportamento da sociedade, já que ―o armazenamento e a circulação
de informação e conteúdo simbólico têm sido aspectos centrais da vida social14‖
(THOMPSON, 2011, p. 35). Thompson alega ainda que há quatro formas principais
de poder, que ele classifica como: econômico, coercitivo, político, e simbólico 15
(2011, p. 32-39). Interessando-nos, neste contexto, o poder onde a comunicação se
inscreve; tomemos a sua definição:

14
Em síntese, John B. Thompson vem afirmar que: ―[...] os meios de comunicação têm uma dimensão
simbólica irredutível: eles se relacionam com a produção, o armazenamento e a circulação de
materiais que são significativos para os indivíduos que os produzem e os recebem. [...] [para ele] o
desenvolvimento dos meios de comunicação é, em sentido fundamental, uma reelaboração do
caráter simbólico da vida social. [...] A comunicação mediada é sempre um fenômeno social
contextualizado [...] é fácil focalizar o conteúdo simbólico das mensagens da mídia e ignorar a
complexa mobilização das condições sociais que subjazem à produção e circulação destas
mensagens. [...] Se comunicação é uma forma de ação, a análise da comunicação deve se basear,
pelo menos em parte, na análise da ação e na consideração do seu caráter socialmente
contextualizado‖ (2011, p. 35-37, grifo do autor). Observe que Thompson utiliza a condicionante ―se‖
ao destacar que a ―comunicação é uma forma de ação‖. Como já afirmei e justifiquei anteriormente,
entendo as ações oriundas da comunicação como contidas na comunicação.
15
―Estas distinções são de caráter essencialmente analítico‖ (THOMPSON, 2011, p. 39).
24

O quarto tipo de poder é cultural ou simbólico, que nasce na atividade de


produção, transmissão, e recepção do significado das formas simbólicas. A
atividade simbólica é característica fundamental da vida social, em
igualdade de condições com a atividade produtiva, a coordenação dos
indivíduos e a atividade coerciva. Os indivíduos se ocupam constantemente
com as atividades de expressão de si mesmos em formas simbólicas ou de
interpretação das expressões usadas pelos outros; eles são continuamente
envolvidos na comunicação uns com os outros e na troca de informações de
conteúdo simbólico. Assim fazendo, servem-se de toda sorte de recursos
que descreverei como ‗meios de informação e comunicação‘. Estes
recursos incluem os meios técnicos de fixação e transmissão; as
habilidades, competências e formas de conhecimento empregadas na
produção, transmissão e recepção da informação e do conteúdo simbólico
(que Bourdieu chama de ‗capital cultural‘); e o prestígio acumulado, o
reconhecimento e o respeito tributados a alguns produtores ou instituições
(‗capital simbólico‘). Na produção de formas simbólicas, os indivíduos se
servem destas e de outras fontes para realizar ações que possam intervir no
curso dos acontecimentos com consequências as mais diversas. As ações
simbólicas podem provocar reações, liderar respostas de determinado teor,
sugerir caminhos e decisões, induzir a crer e a descer, apoiar os negócios
do estado ou sublevar as massas em revolta coletiva. Usarei o termo ‗poder
simbólico‘ para me referir a esta capacidade de intervir no curso dos
acontecimentos, de influenciar as ações dos outros e produzir eventos por
16
meio da produção e da transmissão de formas simbólicas (THOMPSON,
2011, p. 42).

Sobre a Igreja, Thompson afirma que há ―uma grande variedade de


instituições que assumem um papel particular historicamente importante na
acumulação dos meios de informação e comunicação‖ e em seguida complementa
ao dizer que as instituições religiosas, educacionais e da mídia ―e outras instituições
culturais forneceram importantes bases para a acumulação dos meios de informação
e comunicação‖ (2011, p. 43).
É notável que o pensamento, ainda que permeado pela lógica ontológica
tradicional, em Thompson, não reduz a relevância das suas afirmações. No entanto,
para compreendê-lo melhor, é imprescindível que seja posto o conceito de
informação, para em seguida desaguarmos no debate inerente às relações de poder
apontadas acima.

16
Para manter a compreensão da citação fiel ao contexto apresentado pelo autor, vejo como
relevante a reprodução desta nota de rodapé presente no texto original: ―A expressão ‗poder
simbólico‘ é tomada de Bourdieu; [...] Contudo, o uso que faço desta expressão se diferencia em
vários aspectos da maneira usada por Bourdieu. Mais importante, não desejo inferir, como o faz
Bourdieu, que o exercício do poder simbólico pressupõe necessariamente uma forma de
‗desconhecimento‘ (méconnaissance) da parte daqueles que são submetidos a ele. O exercício do
poder simbólico muitas vezes implica uma crença comum e ativa cumplicidade e em alguns casos
estas crenças podem estar erroneamente enraizadas numa compreensão limitada das bases sociais
do poder, mas estas deveriam ser vistas mais como possibilidades contingentes do que
pressuposições necessárias‖ (2011, p. 42, grifo do autor).
25

A informação, segundo Aloísio Nunes, é um processo de quantificação, ou


melhor, uma ―medida de liberdade de alguém para escolher quando está diante do
processo de selecionar uma mensagem‖ (2011, p. 29). São inerentes ao conceito de
informação, questões como o ruído, o caos17 e a redundância. Ao concebermos o
fato como uma interpretação humana, logo, falível e poli interpretativa; encontramos
sentido claro na afirmação de que:

Quanto maior for a liberdade de escolha, maior será a informação e maior


será a incerteza de que a mensagem realmente selecionada, será uma
determinada mensagem que singularizamos. Assim sendo, maior liberdade
18
de escolha, maior incerteza e maior informação. [...] Se introduzimos
ruídos, então a mensagem recebida conterá distorções, certos erros e
certos materiais estranhos, que certamente nos conduziriam a dizer que a
mensagem recebida exibe, devido a defeitos causados por ruídos, um
intensificado grau de incerteza. Porém, se a incerteza é intensificada, a
informação é ampliada, e isto repercute como se as deformações da
fidelidade fossem benéficas (SHANNON; WEAVER apud NUNES, 2011, p.
29-30).

Como antecipado na nota de rodapé de número 17 (este que vos escreve


realmente ora para que a leitora ou leitor esteja acompanhando todas as notas de
rodapé), o processo de heterogeneidade e pluralização da informação, esgotou a
teoria da agulha hipodérmica19 apresentada por Lasswell, que ainda assim, mesmo
de fora empírica, foi de grande valia para a história política moderna, seja na

17
Aloísio Nunes faz na sua obra o uso do termo ―entropia‖. Entendo o termo como limitante, pois a
entropia, apesar de apresentar um limite infinito de possibilidades, possui amarras, enquanto o caos
representa, talvez, a entidade maior da desordem e consequentemente da infinidade de
possibilidades. Vale dizer neste caso, que a bela afirmação poética de John Green, através da
personagem Hazel Grace Lancaster, faz sentido: ―Não sou formada em matemática, mas sei de uma
coisa: existe uma quantidade infinita de números entre 0 e 1. Tem o 0,1 e o 0,12 e o 0,112 e uma
infinidade de outros. Obviamente, existe um conjunto ainda maior entre o 0 e o 2, ou entre o 0 e o 1
milhão. Alguns infinitos são maiores que outros.‖ (2012, p. 215).
18
Observa-se aqui uma leitura similar a do ―Princípio de Incerteza‖, utilizado pela física. A teoria da
agulha hipodérmica perde o seu sentido e eficácia quando a emissão das diversas interpretações do
fato se torna heterogênea. Paradoxalmente, a informação se torna mais completa e menos convicta,
na medida em que a sua pluralidade é atestada. De forma similar, o determinismo científico é posto
em xeque por este princípio: ―o determinismo também parece ameaçado pelo princípio de incerteza,
que estabelece que não podemos medir com precisão, a posição e a velocidade de uma partícula
simultaneamente. Quanto maior é a precisão com que medimos a posição, menor será a precisão
com que determinamos a velocidade, e vice-versa. [...] Por melhores que sejam nossos ordenadores,
se lhes introduzirmos dados imprecisos, obteremos predições também imprecisas‖ (HAWKING,
2001).
19
―Teoria Hipodérmica, ou Bullet Theory, assim chamada por acreditar-se que a comunicação de
massa se dava de acordo com o modelo da agulha hipodérmica, onde cada elemento do público seria
atingido profundamente pela mensagem dos mass media, sendo facilmente manipulado‖ (DE
SOUSA; VARÃO. 2006., p. 3).
26

expansão do partido nacionalista em diversos países, nacional-socialista na


Alemanha, ou mesmo na expansão do pensamento Marxista na União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas, China, Iugoslávia, dentre outros. Para que
façamos pequena leitura da influência da comunicação nas relações de poder,
discorrerei brevemente sobre o uso da comunicação num dos movimentos políticos
mais importantes do século XX, o nazismo.

O desenvolvimento da propaganda moderna está associado, de várias


formas, aos conflitos armados do século XX. As técnicas modernas de
persuasão e convencimento das massas tiveram sua origem em parte
creditadas às necessidades bélicas no decorrer das inúmeras guerras do
século, mas, sobretudo, aos dois conflitos mundiais (MARTINO, 2007, p.
38).

Goebbels20 nunca foi um teórico da comunicação. Era doutor em filosofia e


no máximo redigiu algo sobre comunicação nos seus diários e em poucos artigos de
jornal (MARTINO, 2007, p. 36). No entanto, a sua experiência reverbera
consequências na sociedade até a contemporaneidade. ―Goebbels era o
responsável pela imprensa alemã. Rádio, cinema, jornais e revistas estavam sob
seu controle direta ou indiretamente. O resultado foi um poder inigualável dentro do
complicado organograma do partido‖ (MARTINO, 2007, p. 37). Goebbels fazia uso
altamente empírico da comunicação, na verdade ele inclusive desacreditava a
aplicação de processos teóricos na comunicação; no entanto, partia do pressuposto
de que poderia manipular a população fazendo uso da comunicação de massas e
demais elementos, assim como Lasswell mais tarde. Ele referia-se a quase tudo da
comunicação como ―propaganda‖, pudera, a comunicação passou a surgir como
objeto de estudo somente no final da década de quarenta (NUNES, 2011, p. 28):

Não há processo teórico de determinar que espécie de propaganda é mais


ou menos eficaz. A propaganda que produz os resultados desejados é boa,
e toda a outra é má. Não se pode pôr a questão de distrair, porque a função
da propaganda não é divertir, mas produzir resultados palpáveis. (...) A
Propaganda é sempre um meio em ordem a um fim. A propaganda é uma
arte que se pode ensinar ao comum das pessoas, como tocar violino. Mas,
depois, chega-se a um ponto em que se diz: ‗Aqui tem de se parar. O que

20
Clarifico ao leitor que não possuo nenhuma espécie de partidarismo com as perversões do
pensamento nazista. No entanto, é inegável que a experiência de Goebbels e Hitler na Alemanha é
de notório e inquietante sucesso. Sou da opinião de que este tema jamais se esgotará na academia.
27

21
falta ensinar só pode ser conseguido por um gênio‘ (GOEBBELS apud
MARTINO, 2007, p.38).

Goebbels talvez tenha sido a personificação do pragmatismo duro, criticado


décadas depois por Peirce22, já que para ele ―a eficácia é ao mesmo tempo fim e
método possível‖ (MARTINO, 2007, p. 38).
O crescimento dos meios de informação, especialmente jornais em
circulação, teve alguma influência no fim do século XIX, mas teve seu ponto
culminante, a ponto de gerar preocupação específica com o assunto, apenas no
século XX (HABERMAS apud MARTINO, 2007, p. 39). Os meios de comunicação de
massa preocupavam os interessados em fomentar uma possível ‗opinião pública‘.
Goebbels sabia que o potencial desses meios ainda precisava ser explorado e já
observava um conceito de aplicabilidade extremamente atual de que ―A herança
cultural que recebemos do passado só pode se tornar útil ao presente, bastante útil,
se a apresentarmos com meios modernos‖ (GOEBBELS apud MARTINO, 2007, p.
39). Em termos de uso da comunicação como instrumento disseminador de
ideologia, Martino observa em análise à Goebbels:

À primeira vista, toda propaganda é ideológica porquanto defenda um statu


quo preestabelecido. No entanto, em sua acepção mais comum, a
propaganda ideológica é aquela vinculada explicitamente à ação política. A
campanha eleitoral, o marketing político, as agências de comunicação
partidárias ou governamentais fazem parte do circuito da produção
ideológica em seu sentido estrito [...] Assim, quando se fala em propaganda
ideológica, pensa-se acertadamente no convencimento de uma massa em
relação a esta ou aquela questão política [...] Nesse sentido, a propaganda
ideológica tem um alcance muito maior do que sua correlata comercial. A
ideologia deve ser transformada em prática pela propaganda (2007, p. 40-
41).

Naquele tempo, Goebbels já tinha ciência das objeções intelectuais à sua


propaganda, no entanto as ignorava por acreditar que as massas eram ignorantes
(MARTINO, 2007, p. 42). Este tipo de pensamento o conduziu a crer que a
propaganda deveria ser repetitiva e simples, mas principalmente culminou num

21
―O gênio da propaganda, nesta frase de Goebbels, é ele mesmo‖ (MARTINO, 2007, p. 38).
22
―Naturalmente, ninguém jamais ouviu falar de pragmatismo. As pessoas não se importam com
métodos! Elas querem resultados. Dá a elas todos os diamantes que fizeres, e poderás ter o método
de fazê-los por si mesmo‖ (PEIRCE, 2003, p. 124).
28

programa de governo que tinha como base os ―rádios do povo23‖, aparelhos de rádio
vendidos por preços meramente simbólicos, que sintonizavam somente as rádios
germânicas. Este programa gerou o seguinte resultado: em 1933 aproximadamente
um milhão de famílias haviam se beneficiado com os rádios; supracitando, rádios
que sintonizavam apenas estações de rádios germânicas durante o governo nazista
(MARTINO, 2007, p. 45). Apesar de parecer redundante, é válido citar que neste
período, a imprensa alemã era controlada pelo governo:

Assim como a imprensa moderna, Goebbels já sabia o valor da transmissão


de uma opinião protegida pela objetividade aparente do campo jornalístico.
Embora toda a imprensa alemã fosse controlada pelo Partido, alguns jornais
mantinham uma relativa independência para ter mais força diante da opinião
pública dos inimigos. Literalmente, um jornalismo objetivo para inglês ver
(MARTINO, 2007, p.47).

Exposto o suficiente para compreender a utilização da propaganda como


ferramenta de poder simbólico descrito por Thompson, é válido agarrarmo-nos ao
exemplo dos ―rádios do povo‖, para compreender outra abordagem interessante com
relação à comunicação. Para Marshall McLuhan o meio não é apenas meio: ―O meio
é a mensagem‖ (MCLUHAN, s.d., p. 21). Após lermos sobre a utilização dos rádios
na política de comunicação de Goebbels, talvez seja mais simples a compreensão
da mensagem de McLuhan. Porém, é importante que compreendamos o significado
de ―meio‖ para este autor:

Os significados que McLuhan irá explorar para a palavra meio são muitos. A
maioria destes significados são sentidos que a própria Língua Inglesa
admite, muito próximos daqueles presentes na Língua Portuguesa. Assim,
os principais significados de meio em McLuhan podem variar ou mesmo
aglutinar os seguintes sentidos: 1) como maneira, ou modo, veículo para a
realização de diferentes operações; 2) daí o sentido que ganha, quando a
operação em questão for a comunicação, de veículo de comunicação, que,
por sua vez, se apresenta, praticamente, como sinônimo das diferentes
mídias (media, plural de medium, em latim e em inglês): TV, rádio, cinema,
jornais, revistas, etc; 3) como sinônimo de extensões tecnológicas, sentido
que ganhou enorme divulgação no próprio Understanding media; 4) como
ambiente, substância envolvente , no sentido em que se fala de meio
ambiente — sem que isto signifique, necessariamente, meio ambiente
biológico; 5) como sinônimo de público, oposto à ideia de privado.
(PEREIRA, 2004, p.2, grifos do autor).

23
Em alemão, Volksempfangänger, traduzido pelo autor.
29

Sendo assim, compreendo que ao afirmar que o meio é a mensagem,


McLuhan diz que a relevância maior da mensagem não está propriamente no seu
resultado, mas em todo o processo que conduz ao resultado24.

[...] o ―conteúdo‖ de qualquer meio ou veículo é sempre outro meio ou


veículo. [...] a ―mensagem‖ de qualquer meio ou tecnologia é a mudança de
escala, cadência ou padrão que esse meio ou tecnologia introduz nas
coisas humanas. [...] é o meio que configura e controla a proporção e a
forma das ações e associações humanas. [...] Na verdade não deixa de ser
bastante típico que o ―conteúdo‖ de qualquer meio nos cegue para a
natureza desse meio (MCLUHAN, s.d., p.22-23).

Para McLuhan, o exemplo perfeito para explicar ―o meio como mensagem‖


seria a luz e a energia elétrica, para ele, meios tão difusos e descentralizadores que
virão a por em xeque os antigos conceitos sobre a real relevância do conteúdo. A
energia elétrica, portanto, é informação pura, porém não percebemos isto no nosso
cotidiano justamente porque ela precisa de algum suporte, logo, um conteúdo para
ser notada.

Não percebemos a luz elétrica como meio de comunicação simplesmente


porque ela não possui ‗conteúdo‘. É o quanto basta para exemplificar como
se falha no estudo dos meios e veículos. Somente compreendemos que a
luz elétrica é um meio de comunicação quando utilizada no registro do
nome de algum produto [neon ou letreiro]. O que aqui notamos, porém, não
é a luz, mas o ‗conteúdo‘ (MCLUHAN, s.d., p. 23).

No entanto, as mensagens da eletricidade (seja na forma de energia, seja de


luz) são diversas. Há instantaneidade, não há centralização, não há facetas, há um

24
McLuhan também divide, baseando-se numa relação de interação, os meios de comunicação entre
―quentes e frios‖. Para ele, o meio quente prolongaria um dos nossos sentidos e estaria diretamente
ligado à alta definição, enquanto o meio frio estaria ligado àquilo que deve ser preenchido pelo
espectador/ouvinte. Exemplificando: no cinema, tudo está pronto para que nos concentremos, a
imagem é perfeita, som perfeito, cadeiras confortáveis e as conversas paralelas, assim como
qualquer ação que possa vir a gerar ruídos (nos diversos sentidos da palavra) são vistos como
deselegantes, isso tudo faz com que o cinema seja um meio quente. No entanto, quando vamos
assistir TV em casa, temos que lidar com pessoas passando na frente da tela, fantasmas na
transmissão, chiados, telefones tocando, barulho de carros na rua, campainha, sol refletindo na tela,
dentre outra imensidão de acontecimentos que na prática tiram a sua concentração, mas não
necessariamente interferem na compreensão da mensagem transmitida por aquele meio. Logo, a TV
é um meio frio. Para compreendermos melhor o paradoxo de mais essa afirmação de McLuhan, diz
Ferreira: ―[...] a identificação do receptor com um veículo de comunicação varia na relação inversa da
sua eficiência representativa. Ou seja, quanto mais frio for o veículo maior a participação do
imaginário [envolvimento emocional e prazer] e, no oposto, quanto mais quente tendencialmente
temos um menor envolvimento emocional‖ (FERREIRA, 2012).
30

todo que independe de perspectivas, o que é positivo do ponto de vista do autor já


que:

O próprio processo histórico só tem sentido num tempo homogéneo, numa


sequência ininterrupta de acontecimentos onde cada elemento ocupa um
lugar específico. A percepção destas dimensões como meras quantidades
contínuas e mensuráveis terá tido como efeito imediato, segundo McLuhan,
a dessacralização do mundo da Natureza e do poder (SUBTIL, 2003, p.8).

Para McLuhan, é na arte, mais precisamente no cubismo, onde o homem


percebe o todo que independe de perspectivas. O artista seria diferenciado por
ser experto em compreender o mundo de perspectivas incomuns àqueles que
não são dotados desta qualidade25 (MCLUHAN, s.d., p.34). No cubismo o a cima,
a baixo, verso, frente, etc. exibidos de uma única vez numa tela pintada em duas
dimensões, ―desfaz a ilusão da perspectiva em favor da apreensão sensória do todo‖
(MCLUHAN, s.d., p.27). Na realidade, McLuhan vê na evolução da mídia a
reorganização da sociedade, como se de alguma maneira esta se autorregulasse e
retroalimentasse, conforme as novas necessidades advindas, principalmente, das
modificações tecnológicas influentes no contingente comunicacional da sociedade 26.

McLuhan chama de ‗sonâmbulos‘ os que dizem que é o uso que se faz das
tecnologias que determina o seu valor. Para ele, o poder transformador da
mídia é a própria mídia. [...] A mídia afeta a maneira como os indivíduos
agem e interagem na recepção de suas mensagens, modificando a
organização social da vida diária. Segundo o autor canadense, o homem é
constantemente modificado pelas suas próprias invenções, mesmo que tais
modificações sejam invisíveis. o que verdadeiramente interessa não é o que
a rádio ou televisão dizem, mas sim o fato de existirem, trazendo
transformações à sociedade (DE LIMA, 2001, p.5).

As afirmações de De Lima sobre McLuhan, inevitavelmente nos conduz aos


conceitos de Luhmann com relação a auto-poiesis. Luhmann explica que
autorreferência designa a unidade do sistema consigo mesmo, ou seja, o sistema
além de não poder operar além dos limites que o designam como unidade e sistema,

25
NUNES afirma algo similar ao discorrer sobre a língua, diz ele: ―Cada um de nós está, enfim,
aprisionado na língua e os poetas são os mais dotados da habilidade de trapaceá-la‖ (2011, p. 33).
26
Podemos incluir: o rádio, a televisão, o telefone fixo, o telefone celular, as redes e mídias sociais,
etc. ―[...] os diversos dispositivos novos de comunicação prepararam o caminho até o transistor,
naquilo que foi chamado com certo toque de exagero ‗a revolução da mídia do século XX‘‖ (BRIGGS;
BURKE. 2006, p. 126).
31

não pode operar como uma rede, ou de forma capilar, diretamente, numa relação
causal (causa e efeito). Assim sendo: ―Todo o sistema autopoiético é autorreferente,
mas nem todo o sistema autorreferente é autopoiético‖ (RODRIGUES, L. 2008).

Poiesis significa criação, produção e um sistema autopoiético constitui-se


num sistema fechado do ponto de vista operativo; auto-referenciado [sic],
uma vez que os elementos que o constituem relacionam-se de forma
retroalimentada, recursiva, uns com os outros; autopoiéticos, porque um
sistema com esta característica não apenas se autoreferencia [sic], mas se
autoproduz, se produz como unidade. Para melhor compreendermos o
conceito de autopoiésis, é necessário que pensemos no sistema como
fechado – sempre do ponto de vista de suas operações – e, portanto,
diferenciado de tudo mais que não seja ele próprio. Neste sentido, temos o
sistema operando como um circuito fechado, e todo um meio que o
contorna e que pode ser visto como o entorno desse circuito. Assim,
sistema e entorno diferenciam-se um do outro. (RODRIGUES, L. 2008,
p.112-113).

Assim, podemos dizer que a autopoiésis constitui-se na propriedade que os


sistemas fechados e autorreferidos têm de, a partir de seus próprios elementos,
produzir a si como unidades diferenciadas. Entretanto, nesse processo de
autoprodução, a capacidade que tais sistemas têm em se autorrepararem, sem,
contudo, perderem as suas identidades, é o que define a autopoiésis, diferenciando-
a, por exemplo, da auto-organização.
Observando estas características e o exposto por McLuhan, não seria, a
priori, controverso afirmar que a comunicação e a sociedade funcionam como um
sistema autopoiético, caminhando assim em direção ao que fora exposto por
Luhmann. No entanto, seria esta afirmação a condutora prima para o desenvolver
das necessidades inteligíveis das teorias da comunicação?27 A reflexão é
interessante, mas não é o objeto de estudo deste trabalho. Aloísio Nunes, doutor em
semiótica, afirma categoricamente no bonito quadro que ilustra a sala dos
professores do Bloco de Comunicação Social da Universidade Federal de Alagoas:
―Só há comunicação com signos‖ 28.

27
Esta não é uma pergunta retórica. A resposta é: não sei.
28
De forma interessante, nas minhas prematuras pesquisas, não encontrei, até então, algo que
caracterizasse antagonismo, ou dicotomia real entre a teoria semiótica peirceana e a teoria sistêmica
luhmanniana (pelo contrário, observei, inclusive, alguns complementos), a não ser em questões-fins
como a existência ou não da verdade como algo absoluto. O lusco-fusco advindo da inquietação
certamente me conduzirá, num futuro não tão longínquo, a aprofundar-me nos consensos e
contrassensos dessas duas abordagens, complexas, legítimas e admiráveis.
32

2.2 TEORIA GERAL DOS SIGNOS29: ABORDAGEM PEIRCEANA

2.2.1 Sobre a dimensão

A tarefa que inauguro é [...] esboçar uma teoria tão compreensiva que, por
longo tempo, todo o trabalho da razão humana — na filosofia de todas as
escolas e espécies, na matemática, na psicologia, na ciência física, na
histórica, na sociologia e em qualquer outro departamento que possa haver
— deve aparecer como preenchimento de seus detalhes. O primeiro passo
para isso é encontrar conceitos simples aplicáveis a qualquer assunto
(PEIRCE apud SANTAELLA, sd., p. 11-12).

A afirmação de Charles Sanders Peirce parece pretensiosa, mesmo ao


descobrirmos que aos onze anos de idade este já era estudioso em química; além
do mais fora matemático, físico, astrônomo, realizou trabalhos relevantes em
geodésia, metrologia, espectroscopia, biologia, geologia; sendo nas ciências
humanas devoto da linguística, filologia e história; na psicologia se tornou o primeiro
psicólogo experimental dos Estados Unidos; era poliglota30 e conhecedor profundo
da literatura. Em vida publicou mais de doze mil páginas, deixando cerca de oitenta
mil manuscritos a serem publicados31 (SANTAELLA, sd. p. 3-4).
No século XX praticamente observamos o nascer de duas ciências: a linguística, que
estuda a linguagem verbal; e a semiótica, que estuda toda e qualquer linguagem 32
(SANTAELLA, sd. p. 2). Experto em lógica, desde o início Peirce percebe no
pensamento cartesiano, a insuficiência metodológica para o dirimir as problemáticas
advindas dos estudos da linguagem, observe:

Peirce vai fundar sua teoria, seu pragmatismo e, portanto, sua semiótica
numa postura anti-cartesiana. O fundamento para a verdade, o bem, o belo,
em Peirce, não está em Deus nem no homem, está no signo. E a semiótica

29
―Teoria geral dos signos‖ e ―Semiótica peirceana‖ são nomenclaturas sinônimas.
30
―[...] conhecia ainda mais de uma de uma dezena de línguas‖ (SANTAELLA, sd., p. 3).
31
Os manuscritos de Peirce foram vendidos para a Universidade de Harvard, após sua morte.
(MIRADOR apud UOL..., sd.)
32
Importante esclarecimento: ―o termo linguagem se estende aos sistemas aparentemente mais
inumanos como as linguagens binárias de que as máquinas se utilizam para se comunicar entre si e
com o homem (a linguagem do computador, por exemplo), até tudo aquilo que, na natureza, fala ao
homem e é sentido como linguagem. Haverá, assim, a linguagem das flores, dos ventos, dos ruídos,
dos sinais de energia vital emitidos pelo corpo e, até mesmo, a linguagem do silêncio. Isso tudo, sem
falar do sonho que, desde Freud, já sabemos que também se estrutura como linguagem‖
(SANTAELLA, sd. p. 2).
33

é a teoria do signo, ou melhor, a semiótica é a lógica da comunicação


(NUNES, 2011, p. 166).

Para Peirce, qualquer coisa que interaja com qualquer coisa e de qualquer
forma, possui uma linguagem; ainda que essa linguagem esteja fundada no caos 33.
Desta maneira:

34
O que quer que exista, ex-siste , isto é, realmente age sobre outros
existentes, assim obtém uma auto-identidade, e é definitivamente
individual[,] ou seja, todas as coisas que existem interferem nas demais
coisas que existem (PEIRCE apud RODRIGUES, C. 2003, p. 89, grifo
nosso).

Portanto, ao mesmo tempo, todas as coisas que existem, ao agir sobre


outros existentes, interagem. Se interagem, possuem linguagem, logo são signos:

Quando dizemos teoria geral, entretanto, é preciso ter em mente o grau de


generalidade que está aí envolvido. De um lado, tem-se a generalidade do
objeto que essa teoria visa abraçar, de outro, o grau de generalidade da
própria teoria. Quanto ao objeto, para Peirce, o próprio homem é signo, o
pensamento e a vida inteira de qualquer pessoa é signo. Mas Peirce foi
mais longe: qualquer outra coisa que qualquer coisa possa ser, ela também
é signo. Para além dos limites logo e antropocêntricos, a generalidade do
35
conceito de signo peirciano vai até o ponto de afirmar que o universo
inteiro está permeado de signos, se é que ele não seja composto
exclusivamente deles (SANTAELLA, 1999, p. 303, grifo nosso).

Complementando este pensamento, num outro texto, Santaella ainda diz


sobre a semiótica peirceana:

Seu campo de indagação é tão vasto que chega a cobrir o que chamamos
de vida, visto que, desde a descoberta da estrutura química do código
genético, nos anos 50, aquilo que chamamos de vida não é senão uma
espécie de linguagem, isto é, a própria noção de vida depende da existência
de informação no sistema biológico. Sem informação não há mensagem,
não há planejamento, não há reprodução, não há processo e mecanismo de
controle e comando. No caso da vida, estes são necessariamente ligados a
uma linguagem, a uma ordenação obtida a partir de um compartimento

33
Ainda sobre o caos: ―O caos não é só caótico; ele pode ser generativo. É caótico porque
destrói certa ordem que não atende mais as demandas de um povo; é generativo porque a
partir de um novo rearranjo dos fatores, instaura uma nova ordem que faz a vida do povo
melhor‖ (BOFF, 2015, grifo nosso).
34
Talvez seja esta a afirmação mais bela e crucial de todo este estudo.
35
As palavras ―peirceano‖, ―peirciano‖ e possíveis sinônimos, são neologismos não constantes no
dicionário. Referem-se ao que se partidariza às teorias de Sanders Charles Peirce.
34

armazenador da informação como a DNA (substância universal portadora


do código genético). Portanto, os dois ingredientes fundamentais da vida
são: energia (que torna possíveis os processos dinâmicos) e informação
(que comanda, controla, coordena, reproduz e, eventualmente, modifica e
adapta o uso da energia). Sem a linguagem seria impossível a vida, pelo
menos como a conceituamos agora: algo que se reproduz, que tem um
comportamento esperado e certas propensões. Nessa medida, não apenas
a vida é uma espécie de linguagem, mas também todos os sistemas e
formas de linguagem tendem a se comportar como sistemas vivos, ou seja,
eles reproduzem, se readaptam, se transformam e se regeneram como as
coisas vivas [ou seja, como sistemas autopoiéticos] (SANTAELLA, sd. p. 2).

Pode parecer invasivo, no entanto, a pretensão de Peirce nunca foi tomar o


lugar das demais ciências, mas fundá-las logicamente na construção das mesmas
como linguagem: ―nos fenômenos, sejam eles quais forem [...] a Semiótica busca
divisar e deslindar seu ser de linguagem, isto é, sua ação de signo. Tão-só e
apenas. E isso já é muito‖ (SANTAELLA, sd. p. 2).

2.2.2 Sobre a filosofia e a fenomenologia na Semiótica

A Semiótica, como observado, surge como uma ciência densa, ainda que
ocupada pelo estudo de uma única coisa, o signo. Ainda que a priori isto pareça
simples, a posteriori se torna absurdo, pois ao ser observada a dimensão do tema,
conclui-se que tudo o que possa existir é signo. Evidentemente, dentre tanta
pluralidade, a teoria geral dos signos não poderia jamais se organizar e tomar a
forma da ciência séria que é, caso não encontrasse o seu lugar dentro do conjunto
imenso de ciências com que faz interlocução direta. Há sim, portanto, uma posição
clara de dependência da semiótica para com as ciências que a antecedem
(SANTAELLA, sd. p.5). Como qualquer outro sistema, a semiótica formou-se a partir
da constatação da relação de unidade e interdependência dentre os elementos que
a compõem36; ainda que o signo esteja em tudo, ele não é tudo, mas algo que está

36
É elementar observar que sistemas não são entidades que existem desde sempre, eles passam a
existir a partir de eventos entre elementos e processos pré-existentes. Com isso, surge uma unidade
diferenciada, cujo único objetivo é a manutenção dessa individualidade. ―A individualização que se
formou se funda exatamente na diferença; diferença entre sistema e entorno‖ (RODRIGUES, 2008,
p.117). No entanto, a identidade surge por meio de uma seleção de possibilidades dentre as quais
são infinitas. Ou seja, a partir do momento em que há o surgimento de uma diferenciação entre
coisas, sendo elas: ambiente e sistema, este processo é obrigatoriamente fruto de uma seleção de
possibilidades que constitui o caráter contingente de todo o sistema autopoiético, definido por Léo
Rodrigues, sucintamente, como: ―[...] aquela seleção de possibilidades que se constituiu como um
sistema atual constitui-se ao mesmo tempo numa identidade/sentido, isto é a forma que a própria
auto-referência [sic] assume; o sistema mesmo‖ (2008, p.115).
35

em tudo, assim, o signo a partir desta perspectiva, é similar a perspectiva


panenteísta de Deus:

37
(...) descobrimos que todos estamos no Mistério e que o Mistério está em
nós. Nós somos o Mistério por participação. (...) A esta mútua presença,
sem cada um perder a sua própria identidade, chamamos de panenteísmo.
Panenteísmo – que não deve ser confundido com panteísmo – significa que
Deus-Mistério está no mais íntimo de cada ser, e cada ser está no mais
íntimo do Deus-Mistério. Tudo é pericorético, quer dizer, tudo realiza a
pericórese (a inter-retro-penetração), que é a existência de todos com
todos, com Deus, por Deus, para Deus e através de Deus. E Deus-Mistério
realiza seu Mistério com o universo, pelo universo, por meio do universo e
para o universo, ficando o universo sempre universo e Deus-Mistério
sempre Deus-Mistério. Mas eles estarão para sempre entrelaçados e
eternamente em comunhão. Não há separação, só distinção. Não há
um abismo que se interponha porque por todos os lados há pontes e
redes de relações includentes. Diferente é a compreensão panteísta.
Para ela, tudo é Deus: a pedra é Deus, o mar é Deus, o animal é Deus, o
ser humano é Deus. Aqui se apagam as diferenças que podem levar a
absurdos. No panenteísmo se afirmam as diferenças entre Criador e
criatura, mas a presença de um no outro é tanta que, apesar das diferenças,
sempre estão em comunhão e um dentro do outro (BOFF, 2013, p.54-55,
grifo nosso).

É importante que compreendamos a semiótica, sobretudo, como uma


filosofia, ou correremos o risco de incompreender a sua amplitude, assim como,
muitos dos devaneios advindos das reflexões de Peirce e dos demais estudiosos da
teoria geral dos signos. Sobre isso, Santaella diz que:

Antes de mais nada, é preciso enfatizar que a lógica ou semiótica


peirceana é, sobretudo, uma filosofia [...] esse ponto de partida é
necessário em qualquer colocação a respeito de Peirce, visto que, quando
ignoradas ou mal compreendidas as bases fenomenológicas e
epistemológicas sobre as quais se alicerça todo seu pensamento,
corre-se o risco de tomar a semiótica como mera pirotecnia
terminológica, como um mero corpo técnico para dar conta de
atualizações instrumentalistas do conhecimento que visam a uma
apropriação utilitária imediata. Contrariamente a isso, a semiótica como
disciplina filosófica dispõe da fundamentação necessária para lidarmos com
todos os complexos problemas levantados pela ontologia, epistemologia,
filosofia da mente, filosofia da ciência, enfim, por todos os possíveis
desmembramentos e setorizações do pensamento filosófico, para os quais
Peirce pretendia dar uma fundação comum na semiose por ele concebida
como sinônimo de inteligência, continuidade, crescimento e vida
(SANTAELLA, 1999, p. 302, grifo nosso).

37
Para Boff, Deus é Mistério (BOFF, 2013).
36

Santaella parece corroborar com Peirce quanto o uso instrumentalizado do


conhecimento, ou melhor, com a despreocupação relativa aos métodos. Em 1908,
Peirce escrevia em ―Um Argumento Negligenciado para a Realidade de Deus‖:

Naturalmente, ninguém jamais ouviu falar de pragmatismo. As pessoas não


se importam com métodos! Elas querem resultados. Dá a elas todos os
diamantes que fizeres e poderás ter o método de fazê-los por si mesmo
(PEIRCE, 2003, p. 124).

Desde cedo, Peirce foi um ávido estudioso da filosofia38, porém podemos


encontrar clara influência de Kant e Hegel39 na formulação do seu pensamento.
(SANTAELLA, sd., p. 6). Já vimos que a teoria semiótica de Peirce é, sobretudo,
uma filosofia. A fenomenologia40 é a base fundamental da teoria semiótica de Peirce.
A fenomenologia é a ciência que estuda o fenômeno. Fenômeno é: ―[...] qualquer
coisa que esteja de algum modo e em qualquer sentido presente à mente‖41
(SANTAELLA apud NUNES, 2011, p.167, grifo nosso). ―Para ele, a primeira
instância de um trabalho filosófico é a fenomenológica. A tarefa precípua de um
filósofo é a de criar a Doutrina das Categorias, que tem por função realizar a
mais radical análise de todas as experiências possíveis‖42 (SANTAELLA, sd., p.
6, grifo nosso). Assim sendo, apenas a partir da fenomenologia é possível a

38
―Aos 16 anos de idade, começou a estudar Kant e, alguns anos mais tarde, sabia a Crítica da
Razão Pura [obra de Kant] de cor‖ (SANTAELLA, sd., p.4, grifo do autor).
39
―O mais grandioso dentre todos os filósofos que já existiram‖ (PEIRCE apud SANTAELLA, sd., p.
6). A influência de Hegel é realmente notória na construção da filosofia e sociologia. As
classificações de Hegel (apesar de Peirce creditar a Kant esta característica da sua obra) foram
pesadas por diversos autores, por exemplo: ―Em seu rascunho sobre a Dialética da Natureza, Engels
acreditava que as leis dialéticas, conforme estabelecidas por Hegel, poderiam ser reduzidas a três:
transformação da quantidade em qualidade, e vice-versa; interpenetração ou unidade e luta entre os
contrários, ou lei da contradição; e negação da negação” (POMAR, 2011, p. 7, grifo do autor).
40
Em muitos casos o termo ―faneroscopia‖ pode ser encontrado nos escritos de Peirce. Possuem
sentidos similares.
41
Assim, percebemos a interdependência da relação entre o pensamento e a materialidade na
construção dialética, observando-se que ―o pensamento humano gera produtos concretos capazes de
afetar e transformar materialmente o universo, ao mesmo tempo [em] que são por ele afetados‖
(SANTAELLA, sd., p. 5).
42
Peirce explica que ―A fenomenologia ou doutrina das categorias tem por função desenredar a
emaranhada meada daquilo que, em qualquer sentido, aparece, ou seja, fazer a análise de todas as
experiências é a primeira tarefa a que a filosofia tem de se submeter. Ela é a mais difícil de suas
tarefas, exigindo poderes de pensamento[s] muito peculiares, a habilidade de agarrar nuvens, vastas
e intangíveis, organizá-las em disposição ordenada, recolocá-las em processo‖ (PEIRCE apud
SANTAELLA, sd. p.7)
37

compreensão da arquitetura do pensamento de Peirce, que, metodologicamente,


arquiteta uma estrutura constituída por uma espécie de ―edifício filosófico‖, que
consta a seguir:

Edifício filosófico peirceano:


1 — Fenomenologia43
1.1 – Primeiridade
1.2 – Secundidade
1.3 - Terceiridade
2 — Ciências Normáticas
2.1 — Estética
2.2 — Ética
2.3 — Semiótica ou Lógica
2.3.1 — Gramática pura
2.3.2 — Lógica Crítica
2.3.3 — Retórica pura
3 — Metafísica44

Assim como esperado, a fenomenologia é a primeira instância do ―edifício


filosófico de Peirce‖, baseando-se na fenomenologia, surgem as ciências normáticas
(que são subdividas em sequência), para seguidamente surgir a metafísica como
terceiro item desta estrutura. Santaella explica:

Para ele [Peirce], a primeira instância de um trabalho filosófico é a


fenomenológica. [...] A Fenomenologia, como base fundamental para
qualquer ciência, meramente observa os fenômenos e, através da análise,

43
―Entendendo-se por fenômeno qualquer coisa que esteja de algum modo e em qualquer sentido
presente à mente, isto é, qualquer coisa que apareça, seja ela externa (uma batida na porta, um raio
de luz, um cheiro de jasmim), seja ela interna ou visceral (uma dor no estômago, uma lembrança ou
reminiscência, uma expectativa ou desejo), quer pertença a um sonho, ou uma [ideia] geral e abstrata
da ciência, a fenomenologia seria, segundo Peirce, a descrição e análise das experiências que estão
em aberto para todo homem, cada dia e hora, em cada canto e esquina de nosso cotidiano. A
fenomenologia peirceana começa, pois, no aberto, sem qualquer julgamento de qualquer espécie: a
partir da experiência ela mesma, livre dos pressupostos que, de antemão, dividiriam os fenômenos
em falsos ou verdadeiros, reais ou ilusórios, certos ou errados. Ao contrário, fenômeno é tudo aquilo
que aparece à mente, corresponda a algo real ou não‖ (SANTAELLA, sd. p.7).
44
―Definindo realidade ou real como sendo precisamente aquilo que é de modo independente das
nossas fantasias, pois que ‗vivemos num mundo de forças que atuam sobre nós, sendo essas forças,
e não as transformações lógicas do nosso próprio pensamento, que determinam em que devemos,
por fim, acreditar‘, fica claro por que a Metafísica comparece como resultante e não antecedente de
toda sua filosofia‖ (SANTAELLA, sd., p.6).
38

postula as formas ou propriedades universais desses fenômenos. Devem


nascer daí as categorias universais de toda e qualquer experiência e
pensamento. Numa recusa cabal a qualquer julgamento avaliativo a priori, a
Fenomenologia é totalmente independente das ciências normativas. É,
porém, sob a base da Fenomenologia que as ciências normativas se
desenvolvem obedecendo à seqüência [sic] seguinte: Estética, Ética e
Semiótica ou Lógica. Tendo todas elas por função ‗distinguir o que deve e o
que não deve ser‘, a Estética se define como ciência daquilo que é
objetivamente admirável sem qualquer razão ulterior. É a base para a Ética
ou ciência da ação ou conduta que da Estética recebe seus primeiros
princípios. Sob ambas, e delas extraindo seus princípios, estrutura-se em
três ramos a ciência Semiótica, teoria dos signos e do pensamento
deliberado. Por fim, como última ciência desse edifício aparece a Metafísica
ou ciência da realidade (Sd., p. 6, grifo do autor).

Segundo Aloísio Nunes (2011, p. 167), são três as formas que o ser humano
organiza os fenômenos; sendo elas ligadas ao: sentimento; existência material; e
reflexão. Estas formas de classificação receberam os respectivos nomes:
primeiridade, secundidade e terceiridade, denominativos estranhos e neológicos sob
a justificativa de serem ―palavras inteiramente novas, livres de falsas associações a
quaisquer termos já existentes‖ (SANTAELLA, sd., p. 7).

2.2.3 Entendendo a primeiridade, secundidade e terceiridade

Peirce entendia que a fenomenologia, base do seu pensamento, tinha como


função precípua:

[...] desenredar a emaranhada meada daquilo que, em qualquer sentido,


aparece, ou seja, fazer a análise de todas as experiências é a primeira
tarefa a que a filosofia tem de se submeter. Ela é a mais difícil de suas
tarefas, exigindo poderes de pensamento muito peculiares, a habilidade de
agarrar nuvens, vastas e intangíveis, organizá-las em disposição ordenada,
recolocá-las em processo (PEIRCE apud SANTAELLA, sd. P.7).

Corroborando com este pensamento, Peirce decide categorizar toda e


qualquer experiência, considerando como tal: ―tudo aquilo que se força sobre nós,
impondo-se ao nosso reconhecimento, e não confundindo pensamento com
pensamento racional‖ (SANTAELLA, sd., p. 7). Assim sendo, Peirce conclui que toda
e qualquer coisa que surja na consciência pode ser classificado em três elementos,
sendo estes, também, os elementos formais da consciência. São eles: qualidade;
reação; mediação. Porém, para fins científicos, Peirce optou pelo uso
39

respectivamente correspondente dos termos: primeiridade; secundidade;


terceiridade.

(...) a secundidade pressupõe a primeiridade; e a terceiridade, a


secundidade e a primeiridade, tal qual uma escada em que um degrau se
faz necessário para que se atinja o próximo. Assim, só existe um segundo
no momento em que ele é confrontado com um primeiro. Só existe um
terceiro quando um primeiro e um segundo se relacionam para gerá-lo
(PONTE; NIEMEYER. 2010, p.3).

Vale salientar que, ainda que resultante de anos de estudos, a classificação


de Peirce foi desacreditada por ele mesmo, sendo retomada como base de estudos
apenas nos anos seguinte, re-aceita e doravante consagrada como reflexão
fundamental da sua obra45 (SANTAELLA, sd., p; 7).

2.2.3.1 Primeiridade

Confesso que o estudo e compreensão do que é primeiridade gerou-me uma


inquietação apaixonante. Um dos mais felizes momentos da pesquisa deste trabalho
foi encontrar a feliz e belíssima explicação de Santaella ao que concerne o que ela
chama de ―presentidade‖. Para que compreendamos o complexo conceito de
primeiridade, compreender a analogia feita para descrever o que seria a
presentidade é fundamental. A primeiridade trata exatamente da qualidade da
consciência imediata. Algo que denomina a essência da mais pura percepção. Antes
de identificarmos e interpretarmos, nós percebemos; e é neste minúsculo estágio
onde constatamos a qualidade de sentimento, que encontramos o sentido da
primeiridade. O lindo texto da Santaella sobre a primeiridade, onde ela
analogamente fala da presentidade, segue:

Se fosse possível parar, para examinar, num determinado instante, de que


consiste o todo de uma consciência, qualquer consciência, a minha ou a
sua, isto é, de que consiste esse labiríntico ‘lago sem fundo‘, num instante
qualquer em que é o que é, por que é tudo ao mesmo tempo, repito, se
fosse possível parar essa consciência no instante presente, ela não
seria senão presentidade como está presente. Trata-se, pois, de uma
consciência imediata tal qual é. Nenhuma outra coisa senão pura

45
Sobre isso, Schopenhauer diria que ―toda verdade passa por três estágios: primeiro, é
ridicularizada; depois, enfrenta violenta oposição; e, finalmente, é aceita como algo evidente‖
(SCHOPENHAUER apud MULLER, 1993, p. XV).
40

qualidade de ser e de sentir. A qualidade da consciência imediata é uma


impressão (sentimento) in totum, indivisível, não analisável, inocente e
frágil. Tudo que está imediatamente presente à consciência de alguém
é tudo aquilo que está na sua mente no instante presente. Nossa vida
inteira está no presente. Mas, quando perguntamos sobre o que está lá,
nossa pergunta vem sempre muito tarde. O presente já se foi, e o que
permanece dele já está grandemente transformado, visto que então nos
encontramos em outro presente, e se pararmos, outra vez, para pensar
nele, ele também já terá voado, evanescido e se transmutado num outro
presente (SANTAELLA, sd., p. 9, grifo nosso).

Sendo assim, compreendemos que a primeiridade nada mais é do que o


presente na sua forma mais imediata. E ainda que paradoxalmente a volatilidade
seja da natureza do presente, o sentimento de qualidade está intrínseco ao mesmo.
Por isso é importante dizer que a consciência na primeiridade, nada mais é do que a
qualidade do sentir, sem poder ser confundida com os objetos do sentir. Por
exemplo, qualidade do sentir do dourado de um anel não pode ser confundida com a
percepção do próprio anel; e ―esse estado-quase, aquilo que é ainda possibilidade
de ser, deslancha irremediavelmente para o que já é, e no seu ir sendo, já foi.
Entramos no universo do segundo‖ (SANTAELLA, sd., p.10).

2.2.3.2 Secundidade

A secundidade trada da percepção factual da qualidade. Ou seja, a


percepção material, do mundo real que nos cerca. Enquanto a percepção do
sentimento como qualidade existe na primeiridade, esta qualidade toma forma
apenas num objeto material e é nisto que reside a secundidade.

Certamente, onde quer que haja um fenômeno, há uma qualidade, isto é,


sua primeiridade. Mas a qualidade é apenas uma parte do fenômeno, visto
que, para existir, a qualidade tem de estar encarnada numa matéria. A
factualidade do existir (secundidade) está nessa corporificação material. A
qualidade de sentimento não é sentida como resistindo num objeto material.
É puro sentir, antes de ser percebido como existindo num eu. Por isso,
meras qualidades não resistem. É a matéria que resiste. Por conseguinte,
qualquer sensação já é (SANTAELLA, sd., p. 10).

No entanto, observe que a percepção da qualidade de sentimento, ainda que


desaguada numa qualidade factual, não condiz, apenas conduz, à reflexão. E é
neste estágio de reflexão que chegamos na terceiridade.
41

2.2.3.3 Terceiridade

A terceiridade é o estágio da percepção. Mas o que seria a percepção?


Vejamos:

Diante de qualquer fenômeno, isto é, para conhecer e compreender


qualquer coisa, a consciência produz um signo, ou seja, um pensamento
como mediação irrecusável entre nós e os fenômenos. [...] Perceber não é
senão traduzir um objeto de percepção em um julgamento de percepção, ou
melhor, é interpor uma camada interpretativa entre a consciência e o que é
percebido. [...] Nessa medida, o simples ato de olhar já está carregado de
interpretação, visto que é sempre o resultado de uma elaboração cognitiva,
fruto de uma mediação sígnica que possibilita nossa orientação no espaço
por um reconhecimento e assentimento diante das coisas que só o signo
permite (SANTAELLA, sd., p. 10).

Se na primeiridade sentimos a qualidade e na secundidade a atestamos


factualmente, é na terceiridade que faremos a síntese intelectual de tudo isso. É na
terceiridade que encontramos a reflexão, o pensamento, portanto é importante
ressaltar que: ―algumas das idéias [sic] de terceiridade que, devido à sua
importância na filosofia e na ciência, requerem estudo atento são: generalidade,
infinitude, continuidade, difusão, crescimento e inteligência‖ (SANTAELLA, sd., p.
10).

2.2.4 O processo de comunicação na teoria geral dos signos

Já vimos que para Peirce todas as coisas estão intercaladas ao signo. Assim
sendo, a partir da teoria geral dos signos, não podemos compreender o processo de
comunicação de forma que não seja o signo a figura central desta comunicação.
Portanto, em qualquer situação em que haja comunicação, esta se dará por meio de
uma tríade inseparável: objeto; signo; interpretante. Para efeito de didática,
Santaella desenvolveu a seguinte figura:
42

Figura 1 – Signo (SANTAELLA, sd., p. 12).

O homem conhece o mundo por poder representá-lo. Essa representação,


necessariamente, se dá em outra representação.

Daí que o signo seja uma coisa de cujo conhecimento depende do signo,
isto é, aquilo que é representado pelo signo. Daí que, para nós, o signo seja
um primeiro, o objeto um segundo e o interpretante um terceiro. Para
conhecer e se conhecer o homem se faz signo e só interpreta esses signos
traduzindo-os em outros signos (SANTAELLA, sd., p. 12).

Compreender, portanto, é traduzir um pensamento em outro pensamento:

[...] compreender, interpretar é traduzir um pensamento em outro


pensamento num movimento ininterrupto, pois só podemos pensar um
pensamento em outro pensamento. É porque o signo está numa relação a
três termos que sua ação pode ser bilateral: de um lado, representa o que
está fora dele, seu objeto, e de outro lado, dirige-se para alguém em cuja
mente se processará sua remessa para um outro signo ou pensamento
onde seu sentido se traduz. E esse sentido, para ser interpretado tem de ser
traduzido em outro signo, e assim ad infinitum.[...] O significado, portanto, é
aquilo que se desloca e se esquiva incessantemente. O significado de um
pensamento ou signo é um outro pensamento. Por exemplo: para
esclarecer o significado de qualquer palavra, temos que recorrer a uma
outra palavra que, em alguns traços, possa substituir a anterior. Basta
folhear um dicionário para que se veja como isto, de fato, é assim. [...] Eis
aí, num mesmo nó, aquilo que funda a miséria e a grandeza de nossa
condição como seres simbólicos. Somos no mundo, estamos no mundo,
mas nosso acesso sensível ao mundo é sempre como que vedado por essa
crosta sígnica que, embora nos forneça o meio de compreender,
transformar, programar o mundo, ao mesmo tempo usurpa de nós uma
existência direta, imediata, palpável, corpo a corpo e sensual com o
sensível (SANTAELLA, sd., p.12, grifo do autor).

Observando este pensamento, podemos concluir equivocadamente que o


signo, é, portanto, dependente de uma representação mental. Porém, Santaella
43

observa que ―Peirce leva a noção de signo tão longe a ponto de que um signo não
tenha necessariamente de ser uma representação mental, mas pode ser uma ação
ou experiência, ou mesmo uma mera qualidade de impressão‖ (Sd., p. 12). Isso
quebra com o argumento de que, necessariamente, o interpretante deverá ter,
necessariamente, alguma forma inteligível de consciência para que seja dada a
existência do signo. De forma simplista, podemos dizer que algo que existe, logo
pensa, pois se comunica e interfere em tudo mais que existe, de forma inteligível, ou
não.
Ora exposta a tríade: ―objeto; signo; interpretante‖; sigamos, pois, com o
discorrer do que vêm a ser as partes:
Signo e objeto:

O signo é uma coisa que representa uma outra coisa: seu objeto. Ele só
pode funcionar como signo se carregar esse poder de representar, substituir
uma outra coisa diferente dele. Ora, o signo não é o objeto. Ele apenas está
no lugar do objeto. Portanto, ele só pode representar esse objeto de um
certo modo e numa certa capacidade. Por exemplo: a palavra casa, a
pintura de uma casa, o desenho de uma casa, a fotografia de uma casa, o
esboço de uma casa, um filme de uma casa, a planta baixa de uma casa, a
maquete de uma casa, ou mesmo o seu olhar para uma casa, são todos
signos do objeto casa. Não são a própria casa, nem a idéia [sic] geral que
temos de casa. Substituem-na, apenas, cada um deles de um certo modo
que depende da natureza do próprio signo. A natureza de uma fotografia
não é a mesma de uma planta baixa. [...] Um signo intenta representar, em
parte pelo menos, um objeto que é, portanto, num certo sentido, a causa ou
determinante do signo, mesmo se o signo representar seu objeto
falsamente. Mas dizer que ele representa seu objeto implica que ele afete
uma mente, de tal modo que, de certa maneira, determine naquela mente
algo que é mediatamente devido ao objeto. Essa determinação da qual a
causa imediata ou determinante é o signo, e da qual a causa mediata é o
objeto, pode ser chamada o Interpretante (SANTAELLA, sd., p. 12).

Interpretante:

[...] a interpretação de um signo é outro signo. O interpretante não é o


intérprete Cumpre reter da definição a noção de interpretante. Não se refere
ao intérprete do signo, mas a um processo relacionai que se cria na mente
do intérprete. A partir da relação de representação que o signo mantém com
seu objeto, produz-se na mente interpretadora um outro signo que traduz o
significado do primeiro (é o interpretante do primeiro). Portanto, o significado
de um signo é outro signo [...]porque esse seja lá o que for, que é criado na
mente pelo signo, é um outro signo (tradução do primeiro) (SANTAELLA,
sd., p.12).

Assim sendo, então, se a relação do signo dá-se com o objeto, como poderíamos
avaliar a significação de uma música instrumental, por exemplo? Ouvir ―A Gershwin
44

Night‖46, com Seiji Ozawa regendo a orquestra de Berlim e Marcus Roberts Trio,
certamente produzirá emoções fantásticas em qualquer apreciador da boa música,
neste caso, especialmente aos apreciadores de jazz e música clássica, no entanto,
ainda que estes sentimentos, ou mesmo visões afloradas pela emoção existam,
―aquele signo, dada a limitação do nosso repertório, não produzira em nós senão um
interpretante dinâmico de primeiro nível, isto é, emocional‖ (SANTAELLA, sd., p.13).

2.2.5 A classificação dos signos

O signo designa ―algo que está para outra coisa‖, mas para compreendê-lo é
de suma importância que o tenhamos como uma imensa correlação de variáveis.
Quando falamos em signos, como vimos na Figura 1, estamos falando da
articulação e interação de diversas variáveis. Para Santaella: ―O signo não é, pois,
um objeto com determinadas propriedades, mas uma relação ou uma função.
Classificar os signos equivale, então, a classificar esta relação que é a função
sígnica‖ (2013). Assim sendo, Peirce divide os signos, conforme as suas funções
sígnicas, em três tricotomias. São elas, o signo em relação ao: signo-meio, onde o
signo se relaciona com ele próprio; signo-objeto, onde o signo se relaciona com o
seu objeto; signo-interpretante, onde o signo se relaciona com o seu interpretante
(GRIMM, 2013). Portanto, cada tricotomia apresenta um subconjunto tricotômico que
se vale da primeiridade, secundidade e terceiridade. Como veremos a figura abaixo:

46
É altamente recomendável que qualquer pessoa assista e/ou escute esse concerto pelo menos
uma vez na vida. É excelente e inspirador. Seiji Ozawa é um dos maiores maestros do seu tempo e
Marcus Roberts, um exímio pianista e jazzista, apesar da sua condição de cegueira total. A banda de
Marcus Roberts é um espetáculo à parte. Essa fusão de jazz com música clássica caiu extremamente
bem, principalmente da forma como, onde e por quem foi apresentada.
45

Figura 2: A Tricotomia (SANTAELLA, 2013).

A primeira tricotomia apresenta o caráter de apresentação do signo: na


primeiridade, Quali-signo: ―Em si mesmo o signo é da classe da natureza das
aparências. Qualisigno é uma qualidade que é um signo, que funciona como um
signo sem qualquer referência a qualquer outra ‗coisa‘‖ (Idem, p.8). Na secundidade,
Sin-signo: ―Em si mesmo o signo é da natureza de um objeto ou fato individual.
Sinsigno é uma ocorrência, um fato, um evento particular, que é um signo‖ (Ibidem,
p.9). Na terceiridade: Legi-signo: ―Em si mesmo o signo é da natureza de um tipo
geral. O legisigno é um signo que é uma ‗lei‘‖ (Ibidem, p.10).
A segunda tricotomia indica o caráter interpretativo do signo: na
primeiridade, Ícone, ―Uma representação ‗cuja relação com seu objeto é uma mera
comunidade de alguma qualidade‘‖ (GRIMM, 2013, p.13). Na secundidade, Índice,
―Uma representação cuja ‗relação com o seu objeto consiste em uma
correspondência de fato‘‖ (Idem, p.14). Na terceiridade, Símbolo, ―Uma
representação cujo ‗fundamento da relação com seu objeto é uma relação
imputada‘‖ (Ibid. p, 15).
A terceira tricotomia indica o sígno com relação ao seu interpretante. Na
primeiridade, Rema, uma hipótese. Na secundidade, Dicente, algo que existe, um
fato. Na terceiridade, Argumento, um signo de lei. Em síntese:
46

Tabela 1: A Tricotomia na Classificação Sígnica (SANTAELLA, 2013).

1. O signo em si mesmo:
qualidades = quali-signo
fatos = sin-signo
ter a natureza de leis ou hábitos = legi-signo

2. O signo em conexão com o objeto


2.1 uma conexão de fato, não-cognitiva = índice
2.2 uma similaridade = ícone
2.3 hábitos (de uso) = símbolo

3. O signo como representação para o interpretante


3.1 sendo qualidades, apresentando-se ao interpretante como mera hipótese ou rema
3.2 sendo fatos, apresentando-se ao interpretante como dicentes
3.3 sendo leis, apresentando-se ao interpretante como argumentos

Após estabelecida a classificação tricotômica, Peirce concebe um


complemento a este modelo, valendo-se do cruzamento entre as classes expostas,
para a criação de novas classes. Porém, há um limite de interação que é
estabelecido pela ordem da lógica tricotômica: ―Um primeiro pode ser qualificado
apenas como primeiro; Um segundo pode ser qualificado por um primeiro e por um
segundo; e um terceiro pode ser qualificado por um primeiro, segundo e terceiro‖
(SAVAN apud GRIMM, 2013, p.23). Assim sendo, este cruzamento, ao respeitar as
regras, combina-se em vinte e sete tipos de signo, porém Peirce trabalha em dez:

Figura 3: As 10 Classes Exploradas por Peirce no Sistema de Relações Cruzadas (GRIMM,


2013, p.25).
47

A tabela a seguir explica as classes expostas na Figura 3 a partir de Lúcia


Santaella:

Tabela 2: Síntese explicativa para as 10 Classes do Sistema de Relações Cruzadas


(SANTAELLA, 2013).

I. Quali-signo, icônico, remático: uma cor qualquer que serve como signo de algo; um
sentimento de vermelhidão; uma palidez.
II. Sin-signo, icônico, remático: um diagrama individual, com a curva da variação do dólar em relação ao
real no último semestre
III. Sin-signo, indicativo, remático: um grito espontâneo
IV. Sin-signo, indicativo, dicente: ―é um catavento‖
V. Legi-signo, icônico, remático: um diagrama geral, abstraída sua individualidade, com a mesma curva
acima citada, independente da realidade factual.
VI. Legi-signo, indicativo, remático: um pronome demosntrativo
VII. Legi-signo, indicativo, dicente: um pregão de rua; sinais de trânsito
VII. Legi-signo, simbólico, remático: um substantivo comum; conceitos gerais: azul
IX. Legi-signo, simbólico, dicente: uma proposição; uma frase corrente, como ―todos os brasileiros são
sul-americanos‖ ou ―alface é verde‖ ou ―o céu é azul‖.
XI. Legi-signo, simbólico, argumental: sistemas de axiomas (“premissa que se admite universalmente
verdadeira”: 2+3=3+2 ou a ordem dos fatores não altera o produto), silogismo (duas proposiões,
chamadas premissas, delas se tira uma terceira, nelas logicamente implicada, chamada
conclusão: Todo homem é mortal; José é homem; José é mortal).

Um detalhamento maior dessas classificações não apetece a este trabalho.


Para que tenhamos noção da dimensão dessas classificações, ―foram estabelecidas
10 tricotomias, isto é, 10 divisões triádicas do signo, de cuja combinatória resultam
64 classes de signos e a possibilidade lógica de 59.049 tipos de signos‖
(SANTAELLA, sd, p.13). Obviamente, nem Peirce se dedicou a classificar e
descrever as mais de cinquenta e nove mil classe sígnicas, deixando para os futuros
pesquisadores esta tarefa (Idem). No entanto, o exposto até agora é suficiente para
que compreendamos o desaguar deste trabalho.
48

Não é justo destroçar uma pessoa quando a saúde e


a exuberância dela são uma ameaça a você.

(Jenny Holzer, em um dos seus banquinhos).


49

3 O PESSIMISMO

3.1 A COSMOVISÃO PESSIMISTA

O pessimismo, prática comum do cotidiano humano, normalmente é


rechaçado, ou mesmo inassumido pela maioria dos seus praticantes. Pudera,
pessimismo nada mais é do que a união do radical ―péssimo‖ com o sufixo grego
―ismo‖. Logo ―pessim-ismo‖ denota, por meio do seu sufixo, um substantivo que se
traduz em: ciência, escola, sistema político ou religioso (CEGALLA, sd., p. 89).
O ―péssimo‖ opõe o ―ótimo‖, ao menos num universo social construído a
partir da predominância do raciocínio dialético, ou seja, valendo-se de oposições
para fundamentar-se, porém superficial. Ora! A própria mensagem contida na prática
do pensamento dialético corrobora com o pensamento já citado neste trabalho, de
Marshall McLuhan47; logo, o pensamento dialético é o meio que se torna mensagem
a partir do momento em que expõe a contradição inerente da vista a priori deste; o
péssimo e o ótimo, assim como luz e trevas, água e fogo, ou qualquer outra analogia
equivalente, necessariamente se findariam no ato do seu encontro. Podemos
pensar: ―Ôxe, mas em qual momento podemos encontrar luz e sombra no mesmo
lugar?‖, pois bem, a resposta será: ―Em nenhum‖. E isso não se contraporia a
qualquer lei básica da física que não permita que dois corpos ocupem o mesmo
espaço ao mesmo tempo. Elementar que luz e sombra não são corpos, mas para
fins didáticos, um objeto não necessariamente se finda ao encontrar outro objeto,
mas se adapta e se constrói. Um copo encontra o seu complemento na mesa, que
obtém o seu suporte no chão. Todos são objetos impossibilitados de ocupar o
mesmo local no espaço ao mesmo tempo, mas isso não os torna inimigos práticos
ou semânticos, mas complementos fundamentais, que podem assim ser vistos, por
terem na sua simplicidade a compreensão da sua existência e das suas funções,
pelos humanos.

47
O meio é a mensagem.
50

O péssimo e o ótimo, a luz e as trevas, são tais qual o copo e a água e a


mesa e piso. Construções contínuas e nem sempre compreendidas. Porém, a
compreensão não é um pré-requisito para a existência. Sobre isso, podemos refletir
que ―verdadeiro, sem falsidade, certo e mais do que real, aquilo que está em baixo é
como aquilo que está em cima, e o que está em cima é como o que está em baixo
para cumprir as maravilhas de uma coisa‖ (TRISMEGISTO apud ORDEM
ROSACRUZ, 2009, p.28).
Observemos doravante algumas construções relativas ao pessimismo.
Austregesilo, um dos mais notáveis membros da história da Academia Brasileira de
Letras, ao declarar que ―o sorriso paira na rua porque esta o faz mecanicamente
desabrochar, pelas mutações constantes de aspectos e personagens, e a variedade
é o caminho mais seguro para a alegria de viver‖ (1922, p. 10), contestava48 a
existência do pessimismo, tendo em vista que qualquer pessimismo seria afundado
pelo riso, que surgiria de forma natural. No entanto, Austregesilo reconhecia que
nem todo o riso denota necessariamente felicidade, ao relembrar da arte:

Gwynplaine fôra roubado e mutilado na face pelos comprachicos. Um dia


entrou no parlamento inglês, pois era barão de Chancharlie, par da
Inglaterra. No seu maior e mais elegante discurso fez a defesa dos
desgraçados e acusações aos grandes que o cercavam. Um riso geral de
escarneo foi a resposta obtida. No maior calor das apostrofes o orador ria
sempre pela mutilação que recebera no rosto; é esta a narrativa de
L’Homme querit, de Victor Hugo (sic) (1922, p.11, grifo do autor).

Médico que era, mais precisamente, neurologista, trouxe a sua percepção


para as ciências médicas e frisou:

Em medicina registam-se casos de risos morbidos, sem prazer; risos


impressionadores e macabros. Ha histericas que gargalham porque a mola
da sugestibilidade doentia as obriga a isso; é o riso comvulsivo, indomavel,
agustioso, cheio de irritação e espasmo. Encontra a fórmula analoga nas
cocegas nas crianças, que iniciam a reacção pelo riso alegre e terminam na
angustia, no choro e na raiva. Ainda se contam risos morbidos assinalados
por Brissaud e Bechtereff em enfermidades graves do encefalo: são os risos
e choros esmasmodicos consecutivos a certas lesçoes duplas dos
hemisferios cerebrais. Por qualquer coisa, por uma simples pergunta, o
paciente ri ou chora convulsivamente em tristes caretas e lagrimas
inexpressivas e automaticas: isso sóe acontecer nos pseudo-bulbares (sic)
(1922, p.12).

48
Interpreto a contestação como irônica, tendo em vista que a ironia é a base da filosofia que
doravante virá a ser defendida por Austregesilo: o Pessimismo Risonho.
51

Vale salientar que Austregesilo, valendo-se de Bergson, acredita que o rir é


uma característica própria da espécie humana: ―Uma paisagem poderá ser bela,
graciosa, sublime, insignificante ou feia, porém jamais será risível‖ (1922, p.13-14),
afirmava. Muitos definem o homem ―o animal que sabe rir‖, mas acrescenta o filósofo
francês citado, ―tambem (sic) o animal que faz rir, pois só pela semelhança ou pelas
relações humanas é que há o riso‖ (1922, p.13-14).
Para Austregesilo, o riso não era necessariamente uma dádiva, mas uma
condicionante humana. Era um privilégio que antevia um fardo: a obrigação de
pensar.

Tudo excele na vida desde que se prove que a vida é boa, ou por outra, que
o homem não é máu. Eis um conceito que jamais será demonstrado, porque
para provar-se que o homem é máu, faz-se mister haver o elemento bom;
onde o buscar fora do proprio homem? Logo o homem nem é bom nem
máu; é o unico animal que sabe sorrir e por este privilegio poderá construir
as bases racionais de conceitos filosóficos (sic) (AUSTREGESILO. 1922,
p.16-17).

Interpretando o riso dessa maneira fatalista, Austregesilo concebeu um


conceito pessimista. A doutrina do ―Pessimismo Risonho‖ foi criada por um amigo e
Austregésilo, sob a justificativa de que ―todo homem tem direito de filosofar, quando
haja tempo e pendor para isto‖ (1922, p.14-15). A base do Pessimismo Risonho
reside ―na grande ironia acobertada por simulado optimismo, e cuja equivalencia
filosófica coincide justamente com o pessimismo risonho‖ (sic) (1922, p. 16-17).
Curioso que, consequente ao ―direito‖ de filosofar, Austregesilo indica que há
um prazer intelectual em pensar, sintetizando, inclusive que ―falar mal de alguem é o
maior prazer intelectual que existe, pois está no alcance de todo o mundo‖ (sic)
(1922, p.25), o que pode servir para justificar toda a vasão e importância dada por
diversas vezes, especialmente àquelas críticas rasas, que independem de fonte,
mas insistem em se travestir de verdade absoluta, interferindo muitas vezes
diretamente nas vidas das pessoas, quando na verdade, não passam de hobby
insano e desconstrutivo, comumente associado à imaturidade, à preguiça, ou
mesmo à pequenez intelectual. Porém, como identifica Martin Page na sua obra de
ficção ―Como Me Tornei Estúpido‖:

(...) inteligência é a palavra que designa baboseiras bem construídas e


lindamente pronunciadas, que é tão traiçoeira que frequentemente é mais
vantajoso ser um besta do que um intelectual consagrado. A inteligência
52

torna a pessoa infeliz, solitária, pobre, enquanto o disfarce de inteligente


oferece a imortalidade efêmera do jornal e a admiração dos que acreditam
no que leem (2005, p.7).

Para compreendermos o pensamento pessimista risonho de Austregesilo,


que é didaticamente viável para que compreendamos os tipos de pessimistas que
abordaremos no decorrer deste trabalho, é válida a análise do seguinte trecho:

De nada valem os anélitos de ventura bem as descrenças, porque a


humanidade é bifacial, ri de um lado e chora de outro; almeja a fortuna e
pratica o mal; cria a higiene infantil e açula os odios da guerra; purifica e
perverte a mulher; arruína as florestas e planta arvores; retalha a terra e
atulha os mares; mata pombas e cordeiros e amansa hienas e jaguares; e a
vida é sempre a mesma, nem bôa, nem má, porque é, em essencia,
imortal e indestructivel. Para completá-la, entretê-la ou justificá-la, o
homem cria o animal para devorá-lo, e prega o vegerarianismo; condena o
alcool, o fumo o opio, e o Estado formúla, monopoliza e fomenta o comercio
de tais produtos; ensina o alfabeto e mata a crença; imagina a arte e
deforma a natureza; esculpe estatuas que vivem pelas linhas suaves da
beleza feminina e mata a forma palpitante da mulher com os dispauterios da
moda... e a vida é a mesma, sempre a mesma, repetida, rítmica, indelevel.
E‘ o proprio homem que soluça a morte de um filho e aplaude o
assassinio colectivo das batalhas; cria tribunais e glorifica os
iconoclastas e revolucionarios; simboliza no palhaço a sua alegria
movediça e evoca ao mesmo tempo a figura merencorea do Nazareno;
escreve poemas e metaliza o pensamento; ama pelos labios e odeia pela
acções; dá esmola aos pobres e expulsa convalencentes dos hospitais;
cultiva flores nos jardins e vê murcharem tisicas no operariado das fabricas;
adora o sol, mas só ama, goza e pensa á noite; crê e descrê; nasce, vive,
mata e morre; adora a Deus e invoca amiude Satan... e a vida humana é a
mesma, sempre a mesma, eterna e em seus prazeres e dôres porque o
homem se polariza indiferentemente no bem ou no mal, sofre e goza
simultaneamente, e as bocas que riem e os olhos que choram, soluçam e
sorriem como écos mutuos. A felicidade e o infortunio são ânsias ou
interjeições neutras que servem para socorrer os mil pensamentos e
multifários sucessos da humanidade. O conceito da felicidade é uma
coisa tão inútil que passa a ser comica porque cada individuo coloca a
fortuna sempre em oposição a sua maneira de existir. E‘ a maior e a
mais incuravel das molestias da humanidade. Basta pensarmos que no
mesmo comenos, no mesmissimo instante os varios anelos de felicidade
aspirados pelo homem estão no dinheiro, na pobreza, no genio e na
demência, na beleza e na deformação, no amor e no odio, na vida e na
morte, na politica ou na tebaida, na infancia ou na velhice, na cidade ou no
campo, nos marulhos dos pombais ou nos esgares dos atletas, nas
entrosagens complicadas das sociedades ou na simpleza do aldeão, na
suplica religiosa, no ateismo absoluto, no prazer mundano ou no ascetismo
dos insulados, na acção ou na indolencia, quer dizer que os bilhões de
cerebros que simbolizam ou desejam a fortuna, julgam-se tão
contraditoriamente que acabamos concluindo pela inexistencia dela,
porque um facto ou um conceito não pódem existir por componentes
opostas e que se destróem incessantemente. Ora o mundo foi feito
para a vida que não é boa nem má, pois é imperiosa, e porque acima
dos juizos que dela fazem os homens estão as duas leis fatais da
nutrição e reprodução. Quem quizer que escolha qualificativos graves ou
leves, filosoficos ou religiosos, utilitarios ou materiaes para bordar, vestir, ou
acobertar os impulsos do crescite et multipicamini. A melhor maneira de
53

filosofar é pôr em uma urna duas cedulas em que se escrevam as palavras


dôr ou prazer, bem ou mal. O papel tirado ao acaso será o conceito
filosófico de cada um... porque a vida em si é imortal e por conseguinte
indiferente aos epítetos dos pessimistas e optimistas... é o vaso misteriosos
em que o homem diariamente derrama lagrimas e o faz transbordar de
sorrisos... (sic) (AUSTREGESILO, 1922, p.44-48, grifo nosso).

Valendo-se do escrito a cima, podemos elencar alguns pontos fundamentais


do pensamento de Austregesilo: ele condena os homens e a busca por uma suposta
felicidade que não pode existir se considerarmos os excessos de verdades
contraditórias existentes nas paradoxais ações humanas, nas diversas culturas,
doutrinas, religiões, etc. Para ele, a vida é fundamentalmente indestrutível e o bom e
o mal são frames, percepções individuais que surgem conforme o amor próprio 49 de
cada um, na sua individualidade50. Austregesilo parece corroborar, ao menos em
parte, com o pensamento autopoiético já elencado neste trabalho. Ele crê,
fundamentando-se no filósofo Epicteto, de uma forma bastante deprimente,
inclusive, que não passamos de personagens, extensões do pensamento e do
querer de quem nos observa. Se somos todos autopoiéticos, portanto, o mundo é
mesmo um reflexo de nós mesmos. As pessoas são e estão no mundo, portanto,
são reflexos nossos também51:

Lembra-te que nesta vida és um representante de uma comédia, tal qual ao


Autor dela parecer; se breve, breve; se longa, longa. Se quizer que
representes um pobre, faze de representar aquela figura o melhor que
poudéres: e assim se fôr a de um manco, ou de um príncipe, ou de um
plebeu, porque o teu oficio é representar bem a figura que te derem; o
escolher qual ha de ser de outrem. (sic) (EPICTETO apud
AUSTREGESILO, 1922, p. 29-30).

49
―Dois homens, no inicio da civilisação, plantaram na terra uma arvore. Esta deu dois frutos: O meu
e o teu. Cada um comeu o seu fruto. Depois de bem mastigados, deglutidos, e digeridos, tiveram uma
duvida: se não haveriam trocado os pomos. Dessa incerteza se originou a primeira briga, a primeira
ansia de vitoria, e até hoje como avataras os dois querelantes e lutadores povoam a alma humana, e
o amor-proprio foi a arma escolhida para os duelos singulares e colectivos...‖ (sic) (AUSTREGESILO,
1922, p.32, grifo do autor)
50
Porém para Austregesilo ―A grandeza do homem está na colaboração social para a felicidade
colectiva, no intercambio de acções e idéias para manter a vida e como consequencias as
sociedades, e aí está a obra util do genio que é colectivo e não individual. Pela propria condição
biologica e social, a humanidade conduz os homens desde que eles se agitem, como dizia Comte,
mas tanto é grande a obra do general como a do soldado‖ (sic) (1922, p.20-21).
51
E nós, portanto, nos refletimos em nós mesmos? É nisto que reside a nossa autopoiésis?
54

É impossível exprimirmos sobre o pessimismo sem lembrarmos-nos do


nome que, talvez, mais e melhor represente essa cosmovisão: Arthur
Schopenhauer. Schopenhauer foi um dos mais importantes pensadores da
humanidade. Ele apresenta nas suas exposições fatalismos dramáticos e
percepções contundentes acerca da humanidade. Schopenhauer é um infeliz. Não
no sentido pejorativo da palavra (se é que este sentido inexiste), mas um infeliz
fatalista convencido e convicto, sobretudo da infelicidade inescapável. Para
Schopenhauer o homem não presta52. Existir é uma tortura porque somos
obrigados a pensar e pensar conduz à reflexão que conduz à percepção do caos
pejorativo, que conduz à impotência, desespero, medo, angústia, desaguando assim
num ciclo vicioso e ininterrupto que se não leva à danar, leva ao dano:

―Viver é sofrer‖, esta é uma máxima que pode sintetizar o pensamento de


Schopenhauer em relação à espécie humana, em relação presença do
homem no mundo. A sua convicção de que o mundo é regido pela dor e
pelo sofrimento está evidenciada em passagens como essa em que nos diz:
―Embora toda infelicidade individual apareça como exceção, a infelicidade
em geral constitui a regra‖ (NETO, 2000, p.9).

Schopenhauer é um radical que beira o fundamentalismo, no que se diz


respeito ao existir naturalmente triste do ser humano. Ele ―chega a considerar as
visões otimistas acerca da vida como um a afronta, como um engodo‖ (NETO, 2000,
p.9). Curiosamente, faz ataques sucessivos à figura de Deus, ao menos ao Deus
visto como ser de atuação perfeita, como é exposto em Leibniz53:

Donde se segue que, possuindo Deus a sabedoria suprema e infinita, age


de modo mais perfeito, não sé em sentido metafísico, mais ainda
moralmente falando, e que pode dizer-se assim, a nosso ver, que quanto
mais esclarecido e informado se estiver acerca das obras de Deus, tanto
mais se estará disposto a achá-las excelentes e satisfazendo inteiramente
tudo o que se tiver podido desejar (LEIBINIZ apud NETO, 2000, p.11).

Na prática, Schopenhauer simplesmente acredita que o mundo não é cor-de-


rosa, mais do que isso, ironiza àqueles que creem que a vida é bela:

52
Talvez seja este o fundamento maior de todo o seu pensamento.
53
A exposição do pensamento de Leibniz é de suma importância neste trabalho por dois motivos: 1)
Leibniz é o extremo oposto radical de Arthur Schopenhauer, talvez o maior ícone da cosmovisão
pessimista da história da humanidade; 2) Peirce o utiliza como referência clara do que um pessimista
filantrópico, não pode ser - apesar da sua empatia. Discutiremos isso no decorrer do trabalho.
55

Se, colocássemos sob os olhos de cada um as dores, os sofrimentos


horríveis a que a vida nos expõe, o pavor tomar-nos-ia: peguem no mais
endurecido dos otimistas, passeiem-no através dos hospitais, dos lazaretos,
dos gabinetes onde os cirurgiões fazem mártires; através das prisões, das
câmaras de tortura, dos telheiros para escravos; nos campos de batalha, e
nos locais de execução; abramlhe (sic) todos os negros retiros onde se
esconde a miséria, que foge dos olhares dos curiosos indiferentes; para
acabar, façam-no lançar um a olhadela na prisão de Ugolino, na Torre da
Fome, ele vera, então, bem o que é o seu meilleur des mondes possibles.
(SCHOPENHAUER apud NETO, 2000, p.9-10).

Leibniz é um grande entusiasta da figura do ―Deus pai onipotente‖ que


discutiremos no decorrer deste trabalho valendo-se, principalmente, de Leonardo
Boff. Para Leibniz, Deus realmente escreve certo por linhas tornas. Mas Deus
escreve?

Resta a seguinte questão: porque e que um tal Judas, o traidor, que não é
senão na idéia (sic) de Deus, existe atualmente? Mas, para essa questão,
não há que esperar resposta neste mundo, a não ser que no geral se deve
dizer que, visto Deus ter achado bem que ele existisse, - não obstante o
pecado que previa, este mal tem de ser compensado com acréscimos no
universo, que Deus tirara dele um bem maior e que resultara, em suma, que
esta serie das coisas em que esta compreendida a existência deste
pecador, e a mais perfeita entre todos os outros modos possíveis. Mas,
explicar sempre a admirável economia desta escolha, isso não é possível
enquanto formos viandantes neste mundo; e já bastante sabê-lo sem o
compreender (LEIBNIZ apud NETO, 2000, p.11).

Ou seja, para Leibniz, Deus é tão perfeito que o ―mal‖ é, não mais do que,
um mal necessário para que exista o bem54. Obviamente Schopenhauer delira
quando escuta o que, pra ele, é uma ignorância estupefata. Observe o que
Schopenhauer escreve sobre o autor em questão:

Além disso, os verdadeiros sofismas com que Leibniz pretende demonstrar


que este mundo é o melhor dos mundos possíveis podem ser contrastados
com a prova séria e real de que o mundo é o pior dos mundos possíveis.
Entendemos por possível, não todo aquele com o qual a fantasia pode
sonhar, mas o que pode existir e sobreviver na realidade. Mas este mundo
está construído de tal maneira que só pode existir com grande dificuldade e
se fosse pior organizado, não poderia se manter. Portanto, um mundo pior
não poderia ter existência, não é possível. Logo, este é o pior dos mundos

54
Para refletir, vale supracitar: ―Tudo excele na vida desde que se prove que a vida é boa, ou por
outra, que o homem não é máu. Eis um conceito que jamais será demonstrado, porque para provar-
se que o homem é máu, faz-se mister haver o elemento bom; onde o buscar fora do proprio homem?
(sic) (AUSTREGESILO. 1922, p.16-17).
56

possíveis. Mundos possíveis. (SCHOPENHAUER apud NETO, 2000, p.12,


55
grifo nosso, tradução nossa ).

Para alguns autores, como Cacciola, o mundo é ruim e isso é empírico. O


empirismo nos faz perceber a existência e preponderância do mal, o relativismo
moral, dentre outros. O mundo quando percebido ―de fora‖ pode até nos dar alguma
condução para uma cosmovisão teísta, no entanto, a vida empírica, o dia a dia, nos
faz perceber que o mundo ―é tudo, menos um a teofania‖ (apud NETO, 2000, p.12).
É importante que compreendamos a epistemologia do pensamento
Schopenhaueriano para que assim compreendamos, também, o seu desaguar.
Schopenhauer acredita que não se conhecem a vontade humana, mas somente a
manifestação:

O mundo considerado como representação é apenas um dos aspectos que


o constitui. Neste aspecto está abarcado todo o reino dos fenômenos,
56
regidos pelo principio de razão (menos no que tange a arte ) e onde se
encontra o tempo, o espaço, a causalidade e o principio da individuação.
Mas existe algo que esta fora deste aspecto, a saber, a vontade. A vontade
que Schopenhauer compara aos conceitos de idéias (sic), de Platão e
de coisa em si, de Kant, é a essência que constitui a vida de todos os
seres. Como essência dos seres, a vontade esta fora, portanto, do
reino dos fenômenos. A vontade, como coisa em si, é mesmo
incognoscível [Somente no seu processo de anulação ela toma-se
cognoscível, ou seja, quando ela, conhecendo a si própria suprime-se,
sendo que, a partir desse momento, o homem passa de individuo para
sujeito do conhecimento], somente conhecemos as suas manifestações.
(...) Para Schopenhauer, o mundo só possui existência na medida em
que é representado pelo sujeito, que reconhece nele seu objeto.
Assim, cada sujeito constitui um a espécie de microcosmo. Já a
vontade é o motor, e o combustível indispensável para a existência da vida.
Portanto, eis os dois lados da moeda, eis os dois aspectos
constituintes do mundo para Schopenhauer, a vontade e a
representação (NETO, 2000, p.14, grifo nosso).

Eis o lapso da lógica cartesiana do pensamento schopenhauriano: se não


podemos ver as vontades, podemos ver as manifestações. Se o mundo tal como

55
Texto original: ―A más de esto, los verdaderos sofismas con que Leibniz pretende demostrar que
este mundo es el mejor de los mundos posibles, pueden ser contrastados con la prueba seria y leal
de que el mundo es el peor posible de los mundos. Entendemos por posible, no todo aquello con que
la fantasia puede soñar, sino lo que puede existir y subsistir realmente. Pero este mundo está
construído de tal manera, que sólo puede existir con gran trabajo, y si estuviera un poco peor
organizado, no podría mantenerse. Por lo tanto, un mundo peor, como no podría subsisitr, no es
possible; luego éste es el peor de lós mundos posibles. mundos posibles‖.
56
O poeta é mesmo a pimenta do planeta: ―o grande poeta e um leitor privilegiado do mundo, e um
decodificador, um desvelador de sua essência‖ (NETO, 2000, p. 93).
57

está é uma merda, é por consequência das manifestações humanas. Se as


consequências são uma merda, as manifestações são uma merda advinda de gente
de merda. Schopenhauer parece incutir no seu pensamento um certo ódio à
humanidade por ela assim ser de forma generalizada, na sua concepção. É
exatamente por isso que Peirce o insere nos pessimistas da secundidade, os
pessimistas misantrópicos, conforme observaremos no decorrer deste trabalho. Para
Schopenhauer não há esperança. Ou melhor, tal qual Antoine, de Martin Page 57, há:
a ignorância. Para Schopenhauer a lógica é de fácil entendimento: se a vontade é o
que conduz à manifestação, é a vontade que nos faz sofrer; portanto, se a vontade é
o que nos faz sofrer, que não haja vontade! Um mundo sem vontades é um mundo
sem sofrimentos. Lógica. É neste momento que Schopenhauer se torna curioso: ―o
filosofo recomenda o ascetismo, a anulação da vontade, a busca pelo nada‖ (NETO,
2000, p.19). Porém, para ele, se Deus não existe e alguém dedica a vinda inteira a
ele, logo, a vida dessa alguém é dedicada a nada. Logo, se cultuar o nada é a saída
para não se desejar algo que não seja nada (neste caso, a salvação ou vida eterna),
estão certos os cristãos por se livrarem, de alguma forma, dos sofrimentos humanos
ao buscar algo que não existe. Observe: ―Entre o espírito do paganismo greco-
romano e o cristão [,] se situa propriamente a oposição entre a afirmação e a
negação do querer-viver, segundo que em última instância, o cristianismo no fundo
está correto‖ (SCHOPENHAUER apud NETO, 2000, p.19)58. Não à toa Wanda
Bannour em artigo sobre a obra de Schopenhauer denominou-o de ―religioso ateu‖.
Esse rótulo possui consistência, na medida em que o filósofo alemão procura, com
sua obra, a negação da vida terrena, tal qual apregoam os religiosos, contudo, sem
acreditar num Deus e em uma vida após a morte (2000, p.19).

Schopenhauer, pela constatação do caráter efêmero e quimérico da


felicidade e do predomínio da dor, opera uma inversão de valores em sua
filosofia. Assim, a felicidade, o prazer, a alegria, que, para ele, são apenas
uma ausência de carência momentânea, recebem uma conotação negativa,
pois são um embuste, algo ilusório. Já a dor recebe uma conotação positiva,
pois é a regra, ela mostra-nos como verdadeiramente é o mundo na sua
essência; puro sofrimento (NETO, 2000, p.35).

57
―Sempre parecera a Antoine contabilizar sua idade como os cães. Quando tinha sete anos, ele se
sentia gasto como um homem de quarenta e nove anos; aos onze, tinha desilusões de um velho de
setenta e sete anos. Hoje, aos vinte e cinco, na expectativa de uma vida mais tranqüila (sic),
Antoine tomou a decisão de cobrir o cérebro com o manto da estupidez‖ (2005, p.7, grifo nosso).
58
É neste momento que o ateísmo de Schopenhauer se diferencia do ateísmo de Nietzsche ou Marx.
58

A inversão de valores parece uma tônica do pensamento pessimista


schopenhauriano. Este mesmo pensamento encara o conhecimento como um fardo,
uma tortura, tendo em vista que quanto mais se conhece, mais é possível se ver
impotente perante os malefícios da humanidade. O pensamento de que o
conhecimento pode gerar responsabilidades é corroborado pelo revolucionário
Ernesto Che Guevara, quando este diz que ―o conhecimento nos torna
responsáveis‖ (apud SINDIAGUA, 2011).
Em suma:

Em Schopenhauer a dor e o sofrimento imperam no mundo porque derivam


da vontade, que e, para ele, a essência do mundo, a verdadeira coisa em si.
Só que essa vontade cega, irracional, insaciável, portanto, sem um a
finalidade em si (dai o absurdo do mundo, que e, desse modo, destituído de
finalidade), engendra todas as desgraças e infortúnios espalhados pelo
mundo. Escravo de seu querer e, por isso mesmo, um ser que não e livre, o
homem e a mais miserável de todas as criaturas. Esse querer produzido por
uma vontade insaciável esta, por conseguinte, muito mais fadado a não ser
satisfeito do que satisfeito, dai resultando que o sofrimento nos acomete
muito mais vezes do que o bem-estar. E quando satisfazemos um desejo, a
―felicidade‖, o bem-estar resultante e passageiro, pois, para o filosofo
alemão, logo o contentamento cede lugar ao tédio e buscamos satisfazer
novos desejos. E o mais terrificante e que a mesma vontade, diz nos
Schopenhauer, passa de pai para filho e disso decorre que o seu domínio
no mundo e perpétuo (NETO, 2000, p.98).

3.2 ALGO SOBRE O ―UM ARGUMENTO NEGLIGENCIADO PARA A


REALIDADE DE DEUS‖

O Um Argumento Negligenciado para a Realidade de Deus redigido por


Peirce em 1908 para um matemático de quem era amigo é uma obra extremamente
densa, estando entre as mais complexas obras desse autor (RODRIGUES, C., 2003,
p. 87). Para Peirce: ―Um ‗Argumento‘ é qualquer processo de pensamento
razoavelmente tendente a produzir uma crença definida. Uma ‗Argumentação‘ é um
Argumento procedente de premissas precisamente formuladas‖ (2003, p.100). O
Argumento Negligenciado é fundamental para compreendermos a importância da
influência do teísmo de Peirce na sua obra. Muito do texto não será apresentado
neste trabalho, tendo em vista que isso tiraria completamente o foco do nosso
59

raciocínio. Porém, é neste texto que encontramos alguns elementos extremamente


importantes para a formulação deste trabalho. Exploraremos o essencial.
1) Peirce crê que o homem é parte do universo e isso é fundamental para
que ele conduza, ou mesmo adivinhe as exposições deste universo 59. O homem de
Peirce é membro do universo, não algo além dele. E como membro, integrante de
todo o cosmos, o homem participa da expansão universal como qualquer outro
elemento da natureza: ―Infiro, em primeiro lugar, que o homem adivinha algo dos
princípios secretos do universo porque sua mente se desenvolveu como uma parte
do universo e sob a influência dos mesmos princípios secretos‖ (PEIRCE apud
RODRIGUES, C., 2003, p. 88). Valendo-se disso, Cassiano Rodrigues interpreta
que:

Esta é a razão porque o homem descobre alguma verdade acerca do


universo; assim como os outros animais têm instintos, também o homem
desenvolveu uma capacidade de adivinhar, mas de maneira a poder
predizer o que ainda não aconteceu por meio da formulação de hipóteses
(2003, p.88, grifo do autor).

2) Para Peirce, o universo não difere do resto da estrutura do seu


pensamento, já visto neste trabalho60. O universo se divide em três: ―Dos três
Universos de Experiência familiares a todos nós (...)‖ (PEIRCE apud RODRIGUES
C., 2003, p.88), os universos da primeiridade, secundidade e terceiridade. Peirce diz
que:

59
―Nessa teoria do conhecimento, conjugam-se espontaneidade da razão e inteligibilidade da
natureza – ao homem é possível descobrir algo da natureza porque é dela parte integrante e pode,
por causa disso, entrar em comunhão com ela: há um cosmomorfismo, e não um antropomorfismo‖
(RODRIGUES, C., 2003, p.91).
60
―É fato admirável que assistamos, acompanhando o crescimento do âmbito fenomênico, à uma
correspondente complexificação das leis, da ordem a partir do caos. O crescimento e a
complexificação, dessa maneira, não são fortuitos, mas exibem uma ordenação das existências
individuais sob generalidades que mostram a liberdade e a criatividade operantes na natureza.
Acaso, existência e lei, portanto, tendem a crescer conjuntamente: ‗Especialmente neles todos [nos
três Universos], encontramos um tipo de ocorrência, aquela do crescimento, ela mesma consistindo
nas homogeneidades de partes pequenas. Isso é evidente no crescimento de movimento em
deslocamento e no crescimento de força em movimento. No crescimento também encontramos que
os três Universos conspiram [...]‘ (...) Os três Universos de Experiência descritos por Peirce recobrem,
dessa maneira, o domínio de suas três categorias; primeiridade, secundidade e terceiridade
descrevem os modos de ser, respectivamente, do primeiro, do segundo e do terceiro Universo‖
(RODRIGUES, C., 2003, p.90).
60

61
(...) o primeiro compreende meras Idéias (sic), aqueles nadas aéreos aos
quais a mente do poeta, do puro matemático ou outro qualquer poderia dar
62
habitação local e um nome dentro dessa mente. Sua própria nadidade
airosa, o fato de seu Ser consistir na mera capacidade de ser pensado, não
em serem pensadas Atualmente por alguém, preserva a sua Realidade
(Idem, p.88).

Ou seja, o primeiro universo se insere no que fora exposto no item 2.2.3.1


deste trabalho. A nadidade é inerente à presentidade quando nela observamos o
caos, o belíssimo caos que abarca em si uma infinidade de possibilidades, ideias,
ações. Cassiano Rodrigues dirá sobre esse primeiro universo que:

Este primeiro Universo de Experiência descrito acima é o da pura


possibilidade, um Universo onde nada está determinado e onde reina a
liberdade absoluta (isto também não está determinado, é uma Realidade ser
assim, não uma necessidade). Este é o Universo do acaso absoluto,
63
onde nada ainda veio a ser, do qual tudo ainda pode surgir . Sabemos,
contudo, que não vivemos nesse Universo; o nosso mundo é determinado,
possui limitações, já veio a ser de uma determinada maneira, nada é
completamente livre – coisas existem, fatos ocorrem (2003, p.88, grifo
nosso).

No segundo universo, assim como exposto no item 2.2.3.2 deste trabalho


apresenta a factualidade. As ideias viram coisas e as coisas se encontram com a
realidade das outras coisas. Daí discorre o atrito das novas coisas com as velhas
coisas. Observe: ―O segundo Universo é aquele da Atualidade Bruta de coisas e
fatos. Confio que seu Ser consiste em reações contra forças Brutas, não obstante
objeções temíveis até que sejam minuciosa e suficientemente examinados [idem]‖
(PEIRCE apud RODRIGUES, C., 2003, p. 88, grifo do autor). Cassiano Rodrigues,
na sua análise ―O Encantamento da Musa‖ interpreta:

Neste universo, todas as coisas estão em oposição, postas umas contra as


outras – tudo é imediatidade, tudo é existente aqui e agora, efetivamente.
(...) Encontramos, nesta noção de realidade efetiva, um conceito de ser

61
Em Um Argumento Negligenciado para a Realidade de Deus, Peirce define o uso de algumas
palavras com a letra maiúscula, apresentando assim, sentidos diferentes para as mesmas: ―Algumas
palavras deverão aqui dentro ser escritas em maiúscula quando usadas, não segundo o vernáculo,
mas como termos definidos. Assim, uma ‗idéia‘ (sic) é a substância de um pensamento ou fantasia
unitários atuais; mas ‗Idéia‘ (sic), - mais próxima das idéias (sic) de Platão [idea], - denota tudo cujo
Ser consista em sua mera capacidade de ser completamente representado, sem considerar a
faculdade ou a impotência de qualquer pessoa para representa-la‖ (PEIRCE, 2003, p.98).
62
Neologismo peirceano, deriva de ―nada‖.
63
Cabe aí a nadidade.
61

reduzido ao caráter presente da coisa, a um tempo do agora, em sentido


aristotélico: este é o Universo da existência, daquilo que existe de fato, isto
é, Atualmente, que tem um caráter reativo; como diz Peirce, ―o que quer
que exista, ex-siste, isto é, realmente age sobre outros existentes,
assim obtém uma auto-identidade, e é definitivamente individual‖
(RODRIGUES, C., 2003, p.88-89, grifo do autor).

É apenas no terceiro universo que adentramos no mundo do real 64, assim


como explicamos no item 2.2.3.3, é nesse universo que encontramos a percepção, a
interpretação, e é consequentemente o momento em que as coisas deixam de ser
coisas para serem coisas com propriedades.

O terceiro Universo compreende tudo cujo Ser consista no poder ativo


para estabelecer conexões entre diferentes objetos, especialmente
entre objetos em Universos diferentes. Assim é tudo o que é
essencialmente um Signo, – não o mero corpo do Signo, que não é
essencialmente assim, mas, por assim dizer, a Alma do Signo, que tem seu
ser em seu poder de servir como intermediário entre seu Objeto e uma
Mente. Assim, também, é uma consciência viva, e assim a vida, o poder
de crescimento de uma planta. Assim é uma instituição viva, – um periódico
diário, uma grande fortuna, um ―movimento‖ social (PEIRCE apud
RODRIGUES, C., 2003, p.89).

É neste universo que reside uma diferenciação relevante de conceitos que


parecem iguais a priori: realidade e existência. O texto de Peirce se chama ―Um
Argumento Negligenciado para a REALIDADE de Deus‖ e há um sentido nisso,
observe:

A permanência do Real é uma característica determinante. Não se deve


confundir os conceitos. Peirce distingue Realidade de existência, da
seguinte maneira: a existência é individual, reage a outra
individualidade, é particular, está sob a categoria da Atualidade Bruta.
A Realidade, por outro lado, é dotada de generalidade, ela não se
esgota na individualidade particular, na presentidade absoluta. É
característico dos Seres Reais do terceiro Universo não existir
isoladamente, mas estar em relação com outros Seres, indicar algo
diferente, fora, relacionando-se com esse outro. Deve haver algo na
Realidade que escape à determinação, pois observamos o crescimento da
diversidade na natureza. Se o Real fosse definível pelo campo
existencial dos fenômenos que o compõe, não haveria explicação para,
por exemplo, a diversificação e a formação das espécies (RODRIGUES,
C., 2003, p. 89).

64
―‗Real‘ é uma palavra inventada no século XIII para significar ter Propriedades, isto é, ter
características suficientes para identificar seu sujeito, e possuí-las, quando forem ou não a ele
atribuídas, de qualquer modo, por qualquer homem singular ou por qualquer grupo de homens‖
(PEIRCE apud RODRIGUES C., 2003, p.89).
62

Olha, sou obrigado a supracitar esse argumento: ―Se o Real fosse definível
pelo campo existencial dos fenômenos que o compõe, não haveria explicação para,
por exemplo, a diversificação e a formação das espécies‖ (Idem). Consegues
observar a beleza dessa percepção? Sinceramente, adoraria ver Schopenhauer e
Peirce discutindo numa mesa de bar. Isso, claro, se Schopenhauer estivesse apto a
se divertir um pouco (Seria o álcool um caminho para a busca pelo nada, a busca
pelo fim da vontade pregado por Schopenhauer? Se sim, por que Schopenhauer
preferiu escrever à ficar bêbado? Seria ele um masoquista, um hipócrita, ou estaria
ele aprisionado ao conhecimento que já o torturava?).
Vale salientar que para Peirce o caos não se finda no terceiro universo. Pelo
contrário, para Peirce, a natureza é irregular:

Aquelas observações que são geralmente aduzidas em favor da causação


mecânica simplesmente provam haver um elemento de regularidade na
natureza, e não têm qualquer sustentação sobre a questão de se tal
regularidade é exata e universal ou não. Ora, com relação a esta exatidão,
toda observação está diretamente oposta a ela; e o máximo que pode
ser dito é que um bom tanto desta observação pode ser explicado.
Tente verificar qualquer lei da natureza, e encontrarás que, quanto
mais precisas as tuas observações, mais certas estarão em mostrar
desvios irregulares da lei. Estamos acostumados a prescrever tais
desvios, e não o digo erroneamente, a erros de observação; mesmo assim,
comumente não podemos dar conta de tais erros de qualquer maneira
antecedentemente provável. Vai atrás de suas causas longe o bastante e
serás forçado a admitir que elas são sempre devidas à determinação
arbitrária, ou [,isto é, ao] acaso (PEIRCE apud RODRIGUES, C., 2003,
p.90).

E com isso, o caos é a lei:

A variedade infinita do mundo não pode ter sido criada pela lei, pela
ordem, isto é o que aprendemos por observação. Contemplar a
imbricação dos três Universos nos leva a entender as leis que descobrimos
como o resultado de um processo ainda em curso. A hipótese para explicar
o que vemos deve, então, inverter os termos: a lei, a regularidade, a
uniformidade e a continuidade do terceiro Universo tiveram origem na
variação, na completa desordem, na falta de lei ou de qualquer outro
tipo de organização, na liberdade irrestrita, do acaso no primeiro
Universo: ―Quando olhamos para a multiplicidade da natureza estamos
olhando direto para a face de uma espontaneidade viva‖ [6.553]
(RODRIGUES, C., 2003, p.91).

3) A ―Experiência‖, para Peirce, é indelével, mais do que isso até, ela é o à


posteriori. Assim como Schopenhauer, Peirce vê a experiência como uma questão
irrefutável para as formulações humanas: ―Uma ‗Experiência‘ é um efeito consciente
63

brutalmente produzido que contribui para um hábito autocontrolado, por deliberação,


e assim tão satisfatório, de modo a não ser destrutível por nenhum exercício positivo
de vigor interno‖ (PEIRCE apud RODRIGUES, C., 2003, p.91). E sobre isso,
Cassiano Rodrigues discorre muito felizmente:

Nenhum exercício de ceticismo interno pode alterar um hábito já


consolidado pela Experiência; no plano da conduta, os hábitos, signos
inscritos pelo mundo dos fatos Brutos na mente, não são removíveis por
meio de mera especulação teórica. É preciso haver uma outra Experiência
que mude a minha crença para que o hábito também seja mudado. Por
exemplo, não vou deixar de acreditar que o Sol ―nasce‖ a cada manhã se o
Sol não parar de ―nascer‖ de facto. A tendência a criar hábitos de ação,
própria da mente, é a lei que governa o crescimento da complexidade, é o
que explica o surgimento da ordem a partir do caos: regras gerais de
conduta surgem, em meio ao caos, de um plano eidético originário. Assim,
há generalização, no plano mental, por um lado, e, por outro, tendência para
criar hábitos de ação, regras gerais de conduta, formas determinadas de
existência, no plano material (RODRIGUES, C., 2003, p. 91).

O clássico ―só acredito vendo‖ de (São) Tomé é uma realidade. Aliás, nisso
se situa o nosso próximo item:
4) Ao contrário da cosmologia schopenhauriana, onde as manifestações são
a tônica, na cosmologia peirceana as ideias são reais:

Na cosmologia peirciana, a inteligibilidade se combina com o acaso, isto é,


a possibilidade de representar emparelha com a possibilidade de devir.
Existe no universo um princípio de espontaneidade, o que torna nossa
experiência fluida e constantemente diversa. Conjuntamente, há um
princípio evolutivo de continuidade que, causa da regularidade,garante a
experiência inteligível. A realidade está aberta à compreensão, nada há de
incognoscível, pois a mente é contínua com o restante do cosmos. Assim
como os processos naturais no terceiro Universo, as ideias (sic), como
possibilidades, são Reais, compartilham com o cosmo o mesmo traço de
liberdade e generalidade – nós estamos em pensamento, pensamentos não
estão em nós (RODRIGUES, C., 2003, p.92).

Talvez não se perceba de imediato, mas essa definição traz para o universo
da terceiridade de Peirce uma proporção absurda, colossal e consigo, um infinito de
possibilidades.
5) O ―Um Argumento Negligenciado para a Realidade de Deus‖, não
apresenta Deus necessariamente como um ser:

No estado de Devaneio, a hipótese da Realidade (lembre-se: não da


existência) de Deus será adotada com uma atração irresistível, por causa
da atração estética imediata da própria idéia. Esta Idéia do divino não
64

implica, necessariamente, a crença em uma transcendência absoluta. A


crença na realidade de Deus é uma crença na realidade da própria evolução
do Universo, na diferenciação e complexificação constantes dos processos
naturais, na permanência da espontaneidade, no constante desvelamento
de uma dimensão que engloba os três Universos de Experiência em si e,
conseqüentemente, na própria dissipação do Ens Necessarium na
temporalidade (RODRIGUES, C., 2003, p.94, grifo do autor).

Com os itens expostos, podemos prosseguir sem perdas para o desaguar


deste trabalho.

3.2.1 A pequena síntese da divisão fenomenológica do pessimismo


por Peirce no ―Um Argumento Negligenciado‖ e alguns pessimistas

Neste trabalho já vimos que a fenomenologia, ou doutrina das categorias, é


uma básica do pensamento peirceano e que esta:

(...) tem por função desenredar a emaranhada meada daquilo que,


em qualquer sentido, aparece, ou seja, fazer a análise de todas as
experiências é a primeira tarefa a que a filosofia tem de se submeter.
Ela é a mais difícil de suas tarefas, exigindo poderes de
pensamento[s] muito peculiares, a habilidade de agarrar nuvens,
vastas e intangíveis, organizá-las em disposição ordenada, recolocá-
las em processo (PEIRCE apud SANTAELLA, sd. p.7).

Logo, na metodologia de Peirce, quando queremos conhecer, a primeira


coisa a ser feita é classificar. Por isso que dentro do edifício do pensamento
filosófico peirceano, já visto neste trabalho, a fenomenologia ocupa o topo, a
primeira posição. Essa é certamente uma maneira eficaz que Peirce utiliza para
reduzir a complexidade de um todo, se tomarmos como referência, por exemplo, a
teoria luhmaniana dos sistemas.
Dentro do Argumento Negligenciado, Peirce discorre sobre a sua posição
com relação aos otimistas e pessimistas. Vê isso como algo relevante, tece críticas
interessantes àqueles que possuem uma cosmovisão desse tipo:

Não admito que os pessimistas sejam, ao mesmo tempo,


completamente sãos e, além disso, também sejam normalmente
dotados com vigor intelectual; e as minhas razões para pensar assim são
duas. A primeira é que a diferença entre uma mente pessimista e uma
otimista é de importância tão decisiva [controlling importance] com
relação a toda atividade intelectual, e especialmente para a conduta da
vida, que está fora de questão admitir que ambos são normais, e a
grande maioria da humanidade é naturalmente otimista. Ora, a maioria
65

de toda raça pouco se desvia da norma dessa raça (PEIRCE, 2003, p.118,
grifo nosso).

Pela lógica de Peirce, é complicado pensar que os pessimistas são


intelectualmente sãos ou que possuem dotação intelectual normal. Isso parece soar
pejorativo, mas não necessariamente o é. A conduta das pessoas dotadas do
pensamento pessimista é oposta a do resto do mundo isso as transforma em fatos
isolados dentro de um padrão. Se o padrão determina a normalidade, Peirce é muito
coerente na sua argumentação. Assim sendo, ele, para fundamentar a sua posição,
fenomenologicamente categoriza os pessimistas em três distintos tipos65:

1) ―O primeiro tipo é frequentemente (...) encontrado em naturezas raras e


nobres, de grande força de intelecto original, cujas próprias vidas são histórias
terríveis de tormento devido a alguma doença física‖ (2003, p. 118). Ou seja, para
Peirce, o pessimista da primeiridade seria necessariamente alguém que já teve
em si as efervescências da vida bela, mas que por algum motivo drástico, a perdeu.
Este homem teria tanto desgosto por si próprio que o mundo todo, na sua
cosmovisão, se tornaria desgostoso. Ora, não vale a pena comemorar as bem-
aventuranças da vida se elas são voláteis a ponto de se extirparem defronte a
primeira doença, o primeiro acidente, a primeira fortuna negativa. Peirce discorre
sobre isso e cita o italiano Leopardi66 como exemplo:

Leopardi é um exemplo famoso. Podemos somente acreditar, contra os


protestos enérgicos desses pessimistas, que, se tais homens tivessem uma
saúde ordinária, a vida teria usado para eles a mesma cor que para o resto
de nós. Entrementes, encontram-se muito poucos pessimistas desse tipo
para afetar a presente questão (2003, p.118).

65
―Para apresentar minha outra razão, sou obrigado a reconhecer três tipos de pessimistas‖
(PEIRCE, 2003, p.118).
66
―Giacomo Leopardi (1798-1837), poeta, humanista e filósofo italiano, considerado um dos maiores
nomes do romantismo e da literatura do século XIX e também o maior poeta italiano depois de Dante
Alighieri. Sua produção poética encontra-se reunida sob o nome de I Canti; outras obras suas são as
Operette Morali (1827-1834) e Zibaldone di Pensieri (pensamentos e um imenso diário, escritos a
partir de 1817, publicados com este título entre 1898 e 1900). De saúde sempre muito débil (sofria de
asma, miopia avançada e provavelmente tinha escoliose), ele mesmo ironizava sua própria aparência
franzina. Seu estilo mescla rara excelência formal com extraordinária linguagem, ritmo e riqueza de
imagens. Sua obra apresenta um dilema entre a poesia e a dor, a grandeza e a infelicidade, o gênio e
a brutalidade física entre o homem e a natureza‖ (RODRIGUES, C. apud PEIRCE, 2003, p.118).
66

Mas podemos apresentar como exemplo, o paraibano Augusto dos Anjos,


tuberculoso, que na sua obra apresentou uma cosmovisão altamente pessimista,
carregada de dor e tristeza, como podemos perceber na fala de João Ribeiro
―Parece-nos, pois, que a doença basta para explicar a excentricidade do poeta‖
(apud NETO, 2000, p.95), ou na de Medeiros e Albuquerque: ―Ele foi um
tuberculoso. Essa moléstia o minou durante muitos anos e acabou por dar-lhe a sua
obsessão‖ (apud NETO, 2000, p.95). Vejamos, pois, um poema emblemático de
Augusto dos Anjos, que talvez seja a síntese das motivações e do pensamento
pessimista ao qual se refere Peirce na primeiridade:

O homem por sobre quem caiu a praga


Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois nada há que traga


Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

Sabe que sofre, mas o que não sabe


É que essa magoa infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo inerme;


E quando esse homem se transforma em verme
É essa magoa que o acompanha ainda!
67
(DOS ANJOS apud NETO, 2000, p.99)

É a transformação em verme que torna o mundo verme. A presentidade do


pessimista da primeiridade é nojenta para aquele que a vive, ele é o péssimo e o
resto do mundo nada mais é do que uma consequência do seu estado nosferatu.
Sobre o entusiasmo com o qual os pessimistas dessa casta difamam o mundo,
Peirce ironiza: ―Podemos somente acreditar, contra os protestos enérgicos desses
pessimistas, que, se tais homens tivessem uma saúde ordinária, a vida teria usado
para eles a mesma cor que para o resto de nós‖ (2003, p.119).

2) Os pessimistas misantrópicos são aqueles que, por algum motivo,


detestam o próximo. ―Misantrópico‖ deriva de ―misantropia‖, que segundo o
dicionário Priberam da Língua Portuguesa, significa, dentre outros, ―tédio ao gênero

67
Citada em versos por respeito à obra e ao autor que já se tratorou o suficiente em vida.
67

humano‖ e ―aversão à convivência social‖. Isso, definitivamente, diz muito sobre a


nomenclatura escolhida por Peirce. Para descrever os pessimistas da secundidade,
Peirce praticamente se restringe a citar nomes, num indicativo de que a leitura
destes seria suficiente para entender do que se trata:

O segundo tipo é o misantrópico, o tipo que se faz ouvir. É suficiente trazer


68
à mente a conduta dos famosos pessimistas dessa espécie, Diógenes , o
Cínico, Schopenhauer [suprimi a nota entendendo que este autor já foi
69
apresentado de maneira satisfatória], Carlyle , e o parentesco deles com o
70
Timão de Atenas de Shakespeare [este dispensa apresentações], para
reconhecê-los como mentes enfermas (PEIRCE, 2003, p.119, grifo
nosso).

Parece ser claro que Peirce não curte muito as ideias de Schopenhauer e
companhia. Ao contrário da ironia dedicada aos pessimistas da primeiridade, visto
que tudo seria lindo se estes também fossem lindos, para com os da secundidade,
que vê um mundo feio porque todos são feios, ele é ácido e direto: ―mentes
enfermas‖ é o termo utilizado. Ou seja, para Peirce, esses moleques da
secundidade pessimista são doentes. Doentes mentais. Não possuem credibilidade

68
―Diógenes de Sinopa (c. 404 – c. 320 a.C.), filósofo grego, talvez o mais notável dos cínicos, grupo
de filósofos socráticos que tirou da ironia socrática todos os limites, ampliando-a ao sarcasmo e ao
escândalo provocador, colocando forte ênfase no exercício da autarcia, com talvez o maior desprezo
já testemunhado na história da filosofia pelas convenções sociais. Diógenes perseguiu esse ideal
cínico vivendo uma vida ‗natural‘, independente das luxúrias desnecessárias da civilização. Seguidor
de Antístenes, Diógenes acreditava ser a virtude melhor revelada na prática do que na teoria; fez de
sua vida um permanente protesto contra o que considerava uma sociedade corrupta. Consta que
vivia em uma grande cuba, em vez de em uma casa; e que ainda, certa feita, foi a Atenas com
uma lanterna à mão, em plena luz do dia, dizendo procurar um homem honesto, embora nem
mesmo assim encontrasse algum‖ (RODRIGUES, C. apud PEIRCE, 2003, p.119, grifo nosso).
69
―Thomas Carlyle (1795-1881), historiador e ensaísta escocês, um dos grandes escritores
conservadores do século XIX, autor de The French Revolution [A Revolução Francesa] (1837), em
três volumes, e de The History of Friedrich II of Prussia, called Frederick The Great [A História de
Friedrich II da Prússia, chamado Frederick O Grande], em seis volumes. Em seu On Heroes, Hero-
Worship, and the Heroic in History [De Heróis, do Culto aos Heróis e do Heróico na História] (1841),
apresentou uma teoria da importância suprema dos indivíduos no curso da história, discutindo a vida,
dentre outras personagens, de Dante, Lutero e Napoleão Bonaparte. Tanto seu caráter pessoal
quanto seu pensamento pouco se prestam a resumos. Defensor da coragem, da tolerância e da
resistência, crítico e desafeto de Darwin, teísta heterodoxo e apaixonado [isto é curioso, só
demonstra que a crença em Deus não inibe a cosmovisão pessimista do universo], crítico radical da
democracia, seus escritos refletem sua personalidade controversa‖ (RODRIGUES, C. apud PEIRCE,
2003, p.119, grifo nosso).
70
―Uma das últimas tragédias de W. Shakespeare, The Life of Timon of Athens [A Vida de Timão de
Atenas] (publicada em 1623), em cinco atos, inspirada em Timão de Flio (c. 320(?) – 230(?) a.C.),
poeta e filósofo cético grego, aluno de Stilpo de Megara e herdeiro intelectual de Pirro de Élis. A
primeira parte da peça apresenta um Timão misantropo, lisonjeado e parasitado na prosperidade,
mas abandonado quando empobrece. Na segunda parte, Timão encontra ouro e volta a atrair o
interesse dos que o abandonaram antes‖ (RODRIGUES, C. apud PEIRCE, 2003, p.119).
68

alguma. Ou pior: ―citam as Sagradas Escrituras valendo-se de Asmodeu e Satanás‖


(QUADROS apud SUPER INTERESSANTE, 2010).
Com relação a diferença fundamental entre os pessimistas da primeiridade e
os da secundidade, podemos nos valer de Henrique Duarte Neto no que tece uma
comparação entre Arthur Schopenhauer e Augusto dos Anjos:

Para os dois autores, seria infinitamente melhor a inexistência do mundo e


por extensão de qualquer tipo de vida, em especial a humana.
Schopenhauer diz-nos isso desse modo: ―De fato, a convicção de que o
mundo, e portanto também o homem, e algo que propriamente não deveria
ser, é adequada a nos prover de tolerância uns em relação aos outros‖
sendo, que cada homem deveria saudar o outro como ―companheiro de
infortúnio‖, soei malorum, compagnon de misères, my fellow-suffer.” Já
71
Augusto dos Anjos, no já citado soneto Homo infimus , diz-nos que o
―Homem, carne sem luz, criatura cega/ Realidade geográfica infeliz‖ só
possui um direito no mundo, que é ―o de chorar‖ (2000, p.100, grifo
nosso).

Se analisarmos com carinho, poderemos perceber a sutileza da diferença


entre o pensamento de ambos. Schopenhauer fala de ―prover de tolerância uns em
relação aos outros‖, dos homens que por uma questão de sobrevivência são
obrigados a tolerar os demais homens. Augusto dos Anjos fala do indivíduo que
sofre, que chora, que é infeliz. Pouco importa a tolerância dos outros com os outros,
o único direito que temos é o ―de chorar‖.

3) Os pessimistas filantrópicos (e é neste tipo que consiste a principal


cerne deste trabalho) são poupados das críticas. Peirce parece vê-los como vítimas.
Como consequências da percepção de um mundo hostil, mas de forma
completamente diferente de Schopenhauer, Leopardi ou Augusto dos Anjos. Os
pessimistas da terceiridade são pessimistas em nome da compaixão. Vejamos o que
diz Peirce sobre eles:

O terceiro tipo é o filantrópico, pessoas cujas vívidas simpatias,


facilmente excitáveis, tornam-se elevadas à cólera com o que
consideram como as injustiças estúpidas da vida. Sendo facilmente
interessados em tudo, sem estarem sobrecarregados com pensamento

71
―Homem, carne sem luz, criatura cega,/Realidade geográfica infeliz,/O Universo calado te renega/
E a tu a própria boca te maldiz!/O nôumeno e o fenômeno, o alfa e o omega/ Amarguram-te.
Hebdômadas hostis/ Passam... Teu coração se desagrega,/ Sangram-te os olhos, e, entretanto, ris!/
Fruto injustificável dentre os frutos./ Montão de estercorária argila preta,/ Excrescência de terra
singular,/ Deixa a tu a alegria aos seres brutos,/ Porque, na superfície do planeta‖ (DOS ANJOS apud
NETO, 2000, p.27.
69

exato de qualquer espécie, são matérias-primas excelentes para litérateurs:


testemunha Voltaire. Indivíduo algum remotamente próximo do calibre
de um Leibniz será encontrado entre eles (PEIRCE, 2003, p.119).

Peirce descreve, portanto que os pessimistas filantrópicos são pessoas que


são guiadas pela sua simpatia. Segundo o dicionário Michaelis, simpatia é, dentre
outros: ―Tendência natural de uma pessoa para com outra, (...) Sentimento que faz
que uma pessoa se contriste com os sofrimentos e infortúnios de outrem e
exulte com as suas prosperidades e venturas‖ (Sd., grifo nosso). Filantrópico
deriva de filantropia. Filantropia é: ―sf (gr philanthropía) 1 Amor à
humanidade. 2 Caridade. Antôn: misantropia, antropofobia‖ (Idem, grifo do autor).
Uma estranha observação: o antônimo de filantrópico, portanto é misantrópico.
Logo, podemos observar a paradoxalidade deste pessimista: enquanto na
primeiridade há o ódio por si mesmo e na secundidade há o ódio pela vida e pela
espécie humana, na terceiridade há o excesso de amor transformado em cólera.
Os pessimistas filantrópicos são aqueles que, assim como Schopenhauer
percebem os desmandos e o rumo trágico da humanidade, mas ao contrário deste,
não odeiam a vida por isso, pelo contrário, inconformam-se por amá-la em demasia.
Tentam consertá-la e muitas vezes, ao acessar o conhecimento, percebem a sua
impotência diante das tragédias humanidade; se deprimem ao ver um mundo que
poderia ser extraordinário escorrer por entre os dedos daqueles que transformam o
potencialmente belo numa trilha inevitável rumo à barbárie. Assim sendo, corroem
de esperança.
Vejamos Voltaire, apontado como Peirce como ―testemunha‖:

Segundo os estudiosos de Voltaire, o seu grande propósito era


conquistar ascensão social por intermédio da literatura. Como destaca
Lepape ao mesmo tempo em que a atividade literária é valorizada em
virtude dos estímulos reais, as possibilidades de aceitação dos escritores
ainda estavam determinadas pela hierarquia social. Nesse sentido, no
século XVIII, não se poderia designar autor como uma profissão, pois o
controle das obras e permissão para divulgação das mesmas estava sob a
autoridade real. Deste modo, os autores não conseguiam sobreviver de
suas atividades literárias (LEAL; OLIVEIRA. 2007, p.45, grifo nosso).

Observa-se em Voltaire, imediatamente, duas características básicas no


pessimista filantrópico: a utopia ―o seu grande propósito era conquistar ascensão
social por intermédio da literatura‖ e o amor pela utopia, transcendental às
dificuldades ―os autores não conseguiam sobreviver de suas atividades literárias‖.
70

Voltaire acreditava que a tolerância era a chave para a superação dos


devaneios desconstrutivos da humanidade. A tolerância só se é alcançada por meio
da educação:

É possível a partir desta preocupação de Voltaire destacar que a educação


tem o papel de ajudar os homens a superarem a visão ingênua e mítica da
natureza e da realidade. Com isso, aparece um conceito muito importante
para Voltaire: a tolerância. Constata que a mesma só será possível a
homens esclarecidos (LEAL; OLIVEIRA. 2007, p.47).

No entanto, Voltaire aponta, especialmente através da literatura (talvez por


isso Peirce assim aponte), para uma inquietação resultante da infelicidade muitas
vezes advinda a partir do conhecimento: ―Passa-se a vida a esperar e morre-se.
Adeus, o senhor me esclareceu, mas tenho o coração partido [diz ele]. [Ao que
responde o geômetra:] É muitas vezes o fruto da ciência. (...) Desconfie, toda a vida,
dos testamentos e dos sistemas‖ (VOLTAIRE, 1995, p. 376; 380). Não
diferentemente de Schopenhauer, Austregesilo, Augusto dos Anjos e Antoine de
Martin Page, Voltaire vê com angústia uma qualidade inerente ao ser humano:
pensar.

Que é que deve um cão a outro cão, e um cavalo a outro cavalo? Nada.
Nenhum animal depende de seu semelhante; mas por que o homem
recebeu da Divindade um raio de luz que se chama razão, qual é o fruto
disso? É ser escravo em quase toda a terra (VOLTAIRE, 1973, apud
LEAL; OLIVEIRA. 2007, p. 49, grifo nosso).

Em qualquer caso pessimista, pensar parece a tônica da angústia. Para


essas pessoas abstrair gera uma inquietação que quando percebida como
impossível de ser sanada, conduz à tragédia e/ou sacrifício. Para Augusto dos Anjos
e Leopardi, viver é uma tragédia; para Schopenhauer, manter-se vivo diante da
tragédia, é um sacrifício; para Voltaire e os pessimistas filantrópicos, o sacrifício é
necessário para que a esperança da reversão da tragédia se mantenha acesa.

[...] Qualquer um que busque a verdade se arrisca a ser perseguido,


devemos permanecer ociosos nas trevas? Ou acender uma tocha na qual a
inveja e a calúnia acenderão as suas? Quanto a mim, creio que a verdade
não deve esconder-se destes monstros, muito menos abster-se de
alimento com medo de se envenenar (VOLTAIRE, 2001, apud LEAL;
OLIVEIRA. 2007, p. 50, grifo nosso).
71

Mais ainda, Voltaire não pretendia convencer teoricamente àqueles que


combatia em nome do que acreditava. Sua militância se dava a favor daqueles que
considerava injustiçados, ainda que o resultado prático dessa militância viesse após
a sua morte:

A militância de Voltaire em favor da tolerância parece um truísmo, dado o


conhecimento do caráter sistemático de sua luta contra o fanatismo religioso
e a reabilitação dos condenados que essa mesma luta logrou. Mas é
forçoso reconhecer que, em seu combate contra o fanatismo, Voltaire
parece mais interessado pelos efeitos produzidos no nível prático do
combate, e notadamente pelo sucesso obtido em favor dos
defendidos, muitas vezes póstumo, infelizmente, que pela
preocupação de convencer teoricamente seus adversários (CHARLES,
2012, p.30, grifo nosso).

Mas quem, ou o que Voltaire defendia? Eis a síntese retirada do texto do


canadense Sébastien Charles:

Com efeito, Voltaire não se contentou em retomar as problemáticas de seus


predecessores, ele reconsiderou-as profundamente a partir de sua própria
filosofia, com o intuito de integrá-las em um plano mais amplo no qual
adquirem uma nova dimensão. Esta dimensão é a do teísmo metafísico
indissociável de uma concepção nova da política, separada de toda
sujeição teológica e preocupada tanto com a liberdade de pensamento
e de expressão de cada um quanto com os limites a serem impostos às
ações inspiradas por esta liberdade, certamente indispensável, mas
não total (2012, p.43, grifo nosso).

Foi a construção deste pensamento diferenciado que levou Voltaire a ser


respeitado e aclamado por todo o mundo. Ele era, como já fora dito, sobretudo, um
crítico do sistema estabelecido:

A despeito da disparidade de interpretações projetadas a posteriori sobre


sua pessoa, Voltaire ainda é unanimemente tido como uma das maiores
consciências críticas do Iluminismo francês. Contra Bossuet e Leibniz, o
philosophe desconfiou da possibilidade de se atribuir um sentido
providencial ou metafísico ao mundo, contra Rousseau, desconfiou
possibilidade de se depositar plena confiança na natureza humana; contra o
dogma cristão tradicional, desconfiou da autoridade da Bíblia e da
possibilidade de, através dela, alcançar uma cronologia precisa da história
humana (FERREIRA, 2013, p.2-3).

Muito característico e paradoxal no pensamento de Voltaire era o


pensamento acerca do homem. Em momento algum ele dizia que o homem era
naturalmente bom e fundamentalmente por isso, discordava de Rousseau, mas
72

acreditava que o homem poderia se tornar tolerante ―O que é a tolerância? É o


apanágio da humanidade. Somos todos cheios de fraquezas e de erros; perdoemo-
nos reciprocamente as nossas tolices, tal é a primeira lei da natureza‖ (VOLTAIRE,
1973, apud LEAL; OLIVEIRA. 2007, p.52) essa tolerância se daria por meio do
conhecimento e da razão. Já o controle das atitudes mais sombrias da natureza
humana, se daria por meio da consciência, ainda que esta fosse advinda da religião,
já que para ele: ―Tal é a fraqueza do gênero humano e tal é sua perversidade que,
para ele, certamente é preferível ser subjugado por todas as superstições possíveis,
contanto que não sejam mortíferas, do que viver sem religião‖ (VOLTAIRE, 1968,
apud CHARLES, 2012).
No entanto, Voltaire não era um crítico da religião como fé, mas como
dogma, estrutura de poder. Ele dizia:

Depois de nossa santa religião, sem dúvida a única boa, qual seria a menos
má? Não seria a mais simples? Não seria a que ensinasse muita moral e
poucos dogmas? A que se empenhasse em tornar os homens justos sem
torná-los absurdos? A que não ordenasse a crença em coisas impossíveis,
contraditórias, injuriosas para a Divindade e perniciosas para o gênero
humano e não se atrevesse a ameaçar com penas eternas qualquer um que
tenha um juízo normal? Não seria a que não sustentasse a sua crença com
carrascos e não inundasse a terra com sangue por causa de sofismas
ininteligíveis? (...) A que unicamente ensinasse a adoração de um só Deus,
a justiça, a tolerância e a humanidade? (VOLTAIRE, 1968, apud CHARLES,
2012, grifo nosso).

Observe que a crítica maior está no sarcasmo que alfineta o


fundamentalismo no início do trecho citado: ―Depois de nossa santa religião, sem
dúvida a única boa‖, prossegue ―qual seria a menos má?‖. Ou seja, a nossa é má.
Mas porque é má? Voltaire explica com uma alegoria:

Entrai na Bolsa de Londres, lugar mais respeitável do que muitas cortes; ali
veem-se reunidos os deputados de todas as nações para a utilidade dos
homens. Lá, o judeu, o maometano e o cristão tratam um ao outro
como se fossem da mesma religião, e não dão o nome de infiéis senão
àqueles que chegam à bancarrota; lá, o presbiteriano fiase no anabatista,
e o anglicano recebe a promessa do quacre. Ao saírem destas pacíficas e
livres assembleias, uns vão à sinagoga, outros vão beber; este vai batizar-
se num grande cuba em nome do Pai, pelo Filho e ao Espírito Santo; aquele
manda cortar o prepúcio do filho e resmungar sobre a criança palavras
hebraicas que esta não entende; aqueles outros vão às suas igrejas esperar
a inspiração de Deus com seus chapéus na cabeça, e todos estão
contentes (VOLTAIRE apud FERREIRA, 2013, p.13, grifo nosso).
73

A religião, portanto, torna-se má quando torna-se intolerante e dogmática.


Quando os dogmas, leis criadas pelos homens, são travestidas de leis divinas.
Voltaire expõe na sua literatura um mundo falho e caricato, onde as certezas são
verdadeiros baluartes do desastre:

72
Cândido , apesar de todo o seu conhecimento da metafísica de Pangloss,
vê duas moças perseguidas por dois macacos e, naturalmente, mata os
perseguidores, só para descobrir que eles eram os amantes das
perseguidas e tudo não fazia parte de um grotesco jogo amoroso.
Micromegas, vindo de um planeta muito maior do que a Terra, acha-a
pequena, mal formada, ―de dar pena‖. Está feita a crítica: o mundo, quando
destituído de seu arcabouço místico e abstrato, é puramente caricato, falho
e simplório. Tudo o que um olhar ―lógico‖ e ―racional‖ pode perceber é a
feiura vulgar ou a trivialidade de todas as coisas. É nesse sentido que a
secura poética se torna um elemento essencial da crítica: o esvaziamento
de significado tradicional só pode se dar através de um esvaziamento da
eloquência tradicional. Voltaire foge da intimidade barroca e dos exageros
do espírito, pois estão ambos associados a uma forma fantasiosa de ver o
mundo, onde as coisas parecem carregadas de subtextos inexistentes
(FERREIRA, 2013, p. 17).

Com tudo isso, Voltaire sofre. Não se cala, ou melhor, não consegue se
calar e daí advém o seu sofrimento:

Por sua maneira deliberada de tocar desafinado, Voltaire escapa dos


perigos do exagero sentimental e às falhas da eloquência. A malignidade do
mundo aparece de maneira tanto mais nítida, mais obstinada – em um clima
de secura que não deixa lugar ao enternecimento nem ao consolo. Em
Cândido, nada do que é atroz é inventado: Voltaire apresenta um
documentário, um pouco simplificado e estilizado, mas que constitui a
antologia das atrocidades que as gazetas levavam ao conhecimento de todo
europeu atento. Talvez encontremos em Cândido, no modo da ficção, o
primeiro exemplo de uma atitude que hoje se tornou comum no Ocidente,
em razão direta do desenvolvimento dos meios de informação: a percepção
de todas as chagas da humanidade, por uma espécie de sensibilidade
dolorosa que estende sua rede nervosa à superfície inteira do globo.
Voltaire estremece com os sofrimentos da terra: conhece ou crê
conhecer todos os autores de injustiça, todas as bandeiras que
encobrem a extorsão; ele os enumera, os confronta e os opõe. Pois ele
é inteligente demais para denunciar apenas os erros de um único
partido: vê os mesmos crimes serem cometidos pelos príncipes rivais,
pelas Igrejas antagonistas, pelos povos ―civilizados‖ e pelos
―selvagens‖ (STAROBINSKI apud FERREIRA, 2012, p. 17-18, grifo
nosso).

A tolerância parte do pressuposto antifundamentalista de que podemos


errar, de que podermos cometer gafes e deslizes e a convicção jamais nos impedirá
72
Cândido é um dos personagens mais interpretados de Voltaire. Alguns autores consideram este
personagem uma alegoria autobiográfica de Voltaire (FERREIRA, 2013).
74

disso. Por isso a importância da tolerância: se o juízo pertence a Deus não cabe ao
homem julgar ao outro ao bel prazer. Talvez inspirado por Voltaire, ou pelas ideias
de Voltaire, um dos maiores hits da música brasileira denuncie:

Eu vejo um horizonte trêmulo/ Eu tenho os olhos úmidos/ Eu posso estar


completamente enganado/ Posso estar correndo pro lado errado/ Mas
a dúvida é o preço da pureza/ E é inútil ter certeza/ Eu vejo as placas
dizendo "Não corra"/ "Não morra", "Não fume"/ Eu vejo as placas cortando o
73
horizonte/ Elas parecem facas de dois gumes (GESSINGER, 1987).

O sofrimento; o sacrifício em nome daquilo que acredita ser a salvação para


a humanidade; a pregação da tolerância e do acimamento do amor sobre qualquer
coisa; o próprio amor para com o próximo. Estas características não são estranhas
para a grande maioria das pessoas do ocidente mundial, elas remetem a um homem
cuja história é controversa, mas admirável, a ponto de fazê-lo ser cultuado por
muitos como o filho de Deus e muitas vezes como o próprio Deus. Seu nascimento
data aproximadamente dois mil anos e interfere diretamente na cultura e na vida de
bilhões de seres humanos. Sua história é a de alguém que nasceu e trouxe um
conhecimento contestador, social, político e religioso muito avançado para a época
em que viveu. Crente de que o único caminho para salvar os homens, a quem tanto
amava que tinha como irmãos, era se submeter à suprema tortura física e
psicológica, assim o fez. Recebeu a pior das torturas. Foi açoitado, humilhado,
despido, cuspido, chicoteado e exposto diante da mãe, da família, dos amigos. Ter
ressuscitado, ou não, ter nascido a partir de uma concepção divina, ou não, são
detalhes pifeis diante do exemplo da sua vida e não são a tônica deste trabalho.
Este homem se chamou Jesus e tudo indica que, sim, este pode ter sido o maior
pessimista da história da humanidade.

73
Infinita Higway, dos Engenheiros do Hawaií.
75

E mais do que isto


É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca.

(Liberdade, de Fernando Pessoa).


76

4 JESUS, UM PESSIMISTA FILANTRÓPICO

Para entendermos Jesus e com isso traçarmos as relações e as


características de um pessimista filantrópico, como classifica Peirce, primeiro
precisamos clarificar sobre qual Jesus estamos falando. E isso é bem relevante. Há
dois Jesus claros, se tomarmos a sua figura como objeto de estudo. 1) O Jesus da
fé, ao qual as pessoas concebem por meio de textos apologéticos, sem distinções
entre apologias e acontecimentos históricos, que muitas vezes é acimado como
figura majestosa, nobre e superior, títulos que se opõe ao 2) Jesus histórico. Que é o
Jesus avaliado sob a perspectiva histórica. Aqui, suas ações e falas valem mais do
que as apologias e os espantalhos criados no decorrer de dois milênios para instituir
uma figura distorcida, muitas vezes, conforme as necessidades de homens que, no
uso da sua figura divina, utilizavam desses status, muitas vezes, para justificar a
sujeição do povo àquele que tivesse o status de superioridade, independente do
nível de coerção ao qual essa superioridade estivesse vinculada. Ora, se para a
divindade, a sujeição ao superior é algo natural, para a humanidade, assim também
deveria ser. Nosso objeto de estudos é o Jesus Histórico, tendo em vista que é
nesse Jesus que reside a pedra fundamental, inclusive, para a instituição do Jesus
da Fé. Além do mais, as diversas colocações acerca do Jesus da Fé poderiam
―modificá-lo‖ ainda mais, distorcendo uma série de argumentos e et cetera‘s
convenientes aos que creem, mas inconvenientes aos que estudam, ainda que um
não necessariamente anule o outro, obviamente. Sendo assim, dedicarei um curto
espaço para que explanemos sobre as diferenças entre ambos.

4.1 O JESUS DA FÉ

Leonardo Boff é professor emérito, o maior título acadêmico existente.


Redigiu mais de 70 livros e é conhecido por ter sido frei da Ordem Franciscana da
Igreja Católica Apostólica Romana, um dos principais defensores da Teologia da
Libertação e por ter pedido afastamento da Igreja após uma série de problemas com
a ala conservadora da mesma, na época, capitaneada pelo Cardeal Joseph
77

Ratzinger, posteriormente, Papa Bento XVI. Apesar do afastamento, Boff continuou


exercendo o cristianismo de forma muito próxima à Igreja Católica Romana, porém
de forma independente (como acredita que deve ser) e não mais com o Sacramento
da Ordem, mas como Leigo Cristão. Dentre as suas diversas atestações, ele diz
que:

Foi o Espírito que levou as comunidades a descobrirem que por debaixo


daquele homem fraco, gente do povo trabalhador, Profeta ambulante,
na verdade, escondia-se o Filho encarnado do Pai. Até hoje continua
essa descoberta feita por cada geração. Apenas lamentamos que não se
respeite a forma como o Filho do Pai se revelou na história, no
anonimato e na humildade. Começaram a enaltecê-lo de firma
exacerbada, a ponto de não se reconhecer mais o Jesus de Nazaré. O
Cristo da fé engoliu o Jesus da história (BOFF, 2013, p.64, grifo nosso).

Observe que da maneira como Boff fala, os cristãos mais conservadores


poderiam taxá-lo de herege, blasfemo, ou algo do tipo: ―Os legalistas, os moralistas,
os autoritários, tão presentes nos meios cristãos conservadores e em certos grupos
da sociedade e das instituições civis e religiosas, devem confrontar-se com esta
dimensão misericordiosa de Jesus‖ (BOFF, 2013, p.97). Se referir a Jesus como
―homem fraco, gente do povo trabalhador, profeta ambulante‖ significa um
rompimento total com o Jesus que muitas vezes é apresentado sentado num trono
nas imagens e desenhos da Igreja Católica, ou mesmo nas falas de pastores
protestantes. Observe:

Provavelmente o Jesus histórico não se reconheceria em nada daquilo


que fizeram dele após sua vida, morte e ressurreição. De humilde
artesão, camponês, Profeta ambulante, Servo Sofredor, sentir-se-ia
estranho face a todos os títulos que lhe agregaram, vindos
especialmente do campo que mais criticou e condenou: o poder.
Ficaria escandalizado e condenaria veementemente, quem sabe com o
chicote em mãos, a pompa e a magnificência palaciana dos que se
apresentam como seus representantes diretos e que burocraticamente e
sem amor presidem a comunidade cristã. Não seria sobre tais
excrescências que se construiria sua Igreja, mas sobre sua fidelidade até o
74
fim ao Deus-Abba , sobre o seu sonho do Reino de Deus cujos primeiros
destinatários são os pobres e oprimidos, sobre alguns sinais impactantes

74
―Jesus chamou sempre a seu Deus de Abba, que é uma palavra tirada do vocabulário infantil, um
diminutivo da intimidade. Significa ‗meu querido Paizinho‘. Esta expressão ocorre 170 vezes na boca
de Jesus. O Segundo Testamento conserva esta expressão, Abba, no dialeto de Jesus, o aramaico.
(...) Evoquemos a autoridade de um dos maiores estudiosos da expressão Abba, o alemão Joaquim
Jeremias. Ele resume seu significado inédito assim: ‗Jesus dirige-se a Deus como uma criancinha a
seu pai, com a mesma simplicidade íntima, o mesmo abandono confiante‘ (BOFF, 2013, p.106-107).
78

que fez sempre em favor da vida, especialmente dos mais sofredores, e


principalmente sobre sua ressurreição (BOFF, 2013, p.65-66, grifo nosso).

Toda essa exaltação se dá num processo chamado de cristologia. ―Ela é um


esforço intelectual de aprofundar o significado da gesta de Jesus, com o risco de
esquecer sua origem humilde e cair no processo comum da época, de magnificação
das figuras consideradas heroicas‖ (BOFF, 2013, p.66). No sentido da cristologia,
seria natural transformar Jesus no novo Héracles, Teseu, ou Ajax, como fora
tradicional na cultura greco-romana. Conforme a tendência, não se ocorreu algo
muito distinto disso:

A cristologia seguiu mais ou menos o seguinte percurso: começou


atribuindo a Jesus os títulos mais comezinhos e humanos como
Mestre, Profeta, justo, bom, Sant. Chegaram aos mais sublimes e
divinos como Filho do Homem, Messias-Cristo, Filho de Deus, Senhor,
novo Adão, Salvador do mundo, Cabeça do cosmos e até Deus mesmo
lá pelo final do século I com o Evangelista João. Num curto espaço de
50 anos após sua execução, os pensadores cristãos fizeram com que
quase todos os títulos de glória e honra, divinos e humanos que
existiam na cultura judaica, helenística e imperial, fossem tributados a
Jesus. A partir deste processo de exaltação se releu toda sua história e se
criou uma aura sobrenatural e divina até de seu humilde nascimento,
acontecido muito provavelmente em Nazaré e não em Belém. Esta
estratégia de magnificação, em contradição com as origens anônimas do
Profeta e Servo Sofredor, foi levada avante de forma sistemática pelos que
detinham poder nas comunidades. Corriam cadernos com seus ditos, outros
com relatos de milagres, estoutros com suas parábolas e um escrito mais
longo narrando a paixão, a crucificação e a ressurreição. Todo este vasto
material ganhou forma literária nos quatro livros evangélicos de
Marcos, Mateus, Lucas e João. Seu gênero não é historiográfico, que
dizer, não pretendem escrever uma biografia, mas dar testemunhos e
fazer proselitismo, no bom sentido da palavra, com a intenção de
difundir a vida, a obra e a mensagem de Jesus e de conquistar
adeptos. Para este efeito se costuraram e amalgamaram todos os
elementos elencados acima, mas dentro de um quadro de espantosa e
profunda reflexão teológica. Disso resultaram os quatro livros,
chamados de evangelhos, literatura altamente interessada em
proclamar e exaltar Jesus de Nazaré, cada um enfatizando uma
perspectiva diferente que correspondia à ideia dominante nas comunidades
em que maduraram (BOFF, 2013, p.67-68, grifo nosso).

Então observamos que todo o processo de cristologia teve e continua tendo


a sua função, porém, gera distorções para aqueles que não o compreendem. Talvez
por isso, teólogos dos mais conservadores aos mais liberais, vide Oscar Quevedo e
79

Leonardo Boff, propõem uma vista ―diferenciada‖ da bíblia. Padre Oscar Quevedo75
chega a ser enfático:

Nós temos que estudar a Bíblia. Ela foi escrita há séculos, com o
vocabulário e a mentalidade de sua época, muito exagerado e metafórico e
pega até lendas como instrumento de linguagem para dar doutrina
sobrenatural, inobservável. E não se mete em Ciência. Ler a Bíblia ao pé-
da-letra é falta de respeito. Há que estudá-la para ver o que significava
na ordem religiosa. Não na ordem científica, porque ela não se mete
em Ciência, e usa a cultura ou a incultura das épocas em que foi
descrita. Não é que a Bíblia induza a erros. Ela estava esclarecendo,
explicando, com aquela mentalidade. E agora, com a mentalidade ocidental,
com o vocabulário do século 21, não se pode dizer: ‗ah, mas está na Bíblia‘.
Ora, isso é falta de respeito à Bíblia (QUEVEDO apud TURATI, 2008).

Partindo de um princípio que classifico como cosmo-astrológico, Huberto


Rohden ainda descreve sobre as parábolas, especificamente:

Toda parábola consta de dois elementos: o símbolo material e o


simbolizado espiritual. O símbolo material, tirado da natureza ou da
sociedade humana, é compreensível a todos; mas a compreensão do
simbolizado espiritual depende do estado de evolução de cada um. (...) Por
outro lado, porém, não é possível dar uma explicação definitiva e
universalmente válida das parábolas; a sua relatividade admite inúmeras
interpretações, proporcionais ao estado de evolução espiritual de cada
ouvinte ou leitor (ROHDEN, 2013, p.18).

Se mesmo os teólogos mais conservadores veem a Bíblia como um


instrumento apologético que não deve ser interpretado ao pé da letra, por que e
como se deu essa visão distorcida de Jesus e a expansão da cristologia pelo
mundo? Pois bem:

[A Igreja Católica Romana] Ao invés de apresentar o Jesus real, histórico,


preferiu um Jesus definido em termos filosóficos e teológicos dos concílios

75
―OSCAR GONZÁLEZ-QUEVEDO é padre jesuíta, doutor em Teologia, fundador e diretor do CLAP
— Centro Latino-Americano de Parapsicologia, em São Paulo (SP). Licenciou-se em Humanidades
Clássicas, Filosofia e Psicologia. É reconhecido internacionalmente por sua contribuição aos estudos
da Parapsicologia. Autor de 15 livros na área e de inúmeros artigos publicados em revistas científicas,
obras reeditadas e publicadas em várias línguas. Entre suas obras, sete livros sobre milagres e os
títulos Antes que os demônios voltem e A face oculta da mente, considerados por ele as suas
melhores obras‖ (TURATI, 2008, grifo do autor). Vale salientar que Padre Quevedo, como é
conhecido, é interpretado por muitos como um católico fundamentalista. Muito disso se dá por conta
da sua visão exclusivista da Igreja Católica como única e verdadeira igreja no mundo. Quando
questionado sobre se os milagres podem ser comprovados cientificamente, ele responde: ―Se
comprova. A base dele é a parte histórica, a fenomenologia, os testemunhos e em que ambientes. E
em que ambientes? Só em ambientes católicos!‖ (apud TURATI, 2008). Porém, vale a observação:
assim como Leonardo Boff, Padre Quevedo é, sobretudo, um estudioso.
80

76
de Niceia (325), de Constantinopla (381), de Éfeso (431) e de Calcedônia
(451) como aparece no atual credo. Nele é professado como ―Deus de
Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, engendrado, não
criado, da mesma natureza que o Pai‖. E logo se diz que ―se fez homem e
por nossa salvação foi crucificado sob Pôncio Pilatos, padeceu e foi
sepultado‖. Nada se diz de sua vida, mensagem, obra e porque o mataram.
No fundo apenas se diz que ―nasceu e morreu‖ (BOFF, 2013, p.169).

Essa referência adotada pela Igreja Católica teve relações e consequências


históricas. Na realidade, a visão de um Jesus mais divino e o certo ―esquecimento‖
da mensagem da Trindade Divina, foram convenientes para a argumentação,
adaptação e fidelização de um tamanho incalculável de devotos:

O esquecimento da visão trinitária ocasionou uma concentração exacerbada


da figura do Filho encarnado em Jesus Cristo. (...) Ele é visto como o
único Salvador universal, um líder libertador, solitário, ornado com
todos os símbolos de poder, sempre exaltado como Senhor e
Cristocrator, dentro o cetro numa das mãos, o mundo na outra e uma
coroa de ouro e jóias na cabeça, coisa que o Jesus histórico,
possivelmente, jamais teria visto com os próprios olhos e rejeitaria,
indignado, ser ornado com semelhante parafernália. (...) A exacerbação
da figura do Cristo, cabeça invisível da Igreja visível, reforça as figuras
autoritárias e as instituições fundadas no poder centralizador. Este tipo de
cristologia reducionista criou seu oposto compensatório que é a cristologia
juvenil, elaborada em função dos jovens. Aí Jesus aparece como um
formoso e entusiasta líder e um herói vigoroso, como que saído de alguma
academia de ginástica, a ser seguido e exaltado. (...) Ou então,
romanticamente, emerge um Jesus da pastoral familiar, apresentado no
meio de Maria e José ou como o doce Jesus de Nazaré, abençoando
crianças, ou como o Bom Pastor, cercado de ovelhas em pastos
verdejantes ou tristemente olhando para a cidade de Jerusalém que o
rejeitou. Uma religião só do Filho se encapsula sobre si mesma como
se nada mais existisse para além dela mesma (...) e está a um passo do
77
exclusivismo e do fundamentalismo com referência à revelação e à
salvação (BOFF, 2013, p.171-173).

76
Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso,/ Criador do Céu e da Terra,/ De todas as coisas visíveis
e invisíveis./ Creio em um só Senhor, Jesus Cristo,/ Filho Unigênito de Deus,/ nascido do Pai antes
de todos os séculos:/ Deus de Deus, luz da luz,/ Deus verdadeiro de Deus verdadeiro;/ gerado, não
criado, consubstancial ao Pai./ Por Ele todas as coisas foram feitas./ E por nós, homens, e para
nossa salvação/ desceu dos Céus./ E encarnou pelo Espírito Santo,/ no seio da Virgem Maria./ e se
fez homem./ Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos;/ padeceu e foi sepultado./
Ressuscitou ao terceiro dia,/ conforme as Escrituras;/ e subiu aos Céus,/ onde está sentado à direita
do Pai./ De novo há-de vir em sua glória/ para julgar os vivos e os mortos;/ e o seu Reino não terá
fim./ Creio no Espírito Santo,/ Senhor que dá a vida,/ e procede do Pai e do Filho;/ e com o Pai e o
Filho/ é adorado e glorificado:/ Ele que falou pelos Profetas./ Creio na Igreja,/ Una,Santa,Católica e
Apostólica./ Professo um só batismo para a remissão dos pecados./ E espero a ressurreição dos
mortos/ e vida do mundo que há-de vir./ Amém.
77
―Paulo Freire nos ensinou a distinguir radicalismo (processo de ir à raiz das questões) de
sectarismo, que se define como a inflação de um setor da realidade, ou de um aspecto da
compreensão, em detrimento do todo‖ (BOFF, 2009, p. 8).
81

Essa fórmula, em muito reverbera até hoje. Ainda que fora das imagens, as
interpretações fundamentalistas acerca da Bíblia possuem influência contundente no
mundo contemporâneo:

O fundamentalismo protestante ganhou sua forma clássica a partir do


trabalho de teólogos e pregadores que atuavam dentro da Universidade de
Princeton. Estes tomavam as palavras da Bíblia ao pé da letra (para a fé
protestante o fundamento de tudo é a Bíblia). Cada palavra, cada sílaba e
cada vírgula, dizem os fundamentalistas, é inspirada por Deus. Como Deus
não pode errar, então tudo na Bíblia é verdadeiro e sem qualquer erro.
Como Deus é imutável, sua Palavra e suas sentenças também o são.
Valem para sempre. (...) Deste rigorismo deriva o caráter militante e
missionário de todo fundamentalista. Para ele, os demais caminhos
espirituais estão no erro, e daí decorrer a sua intolerância. Na moral, o
fundamentalista é especialmente inflexível, particularmente no que concerne
à sexualidade e à família. É contra os homossexuais, o movimento feminista
e todos os processos libertários em geral. Na economia é monetarista e
conservador e, na política, sempre exalta a ordem, a disciplina e a
segurança a qualquer custo (BOFF, 2009, p.11-13).

Mas qual, afinal, função real de se modificar cristicamente o Jesus Histórico


e de certa maneira desfiliar Jesus da sua origem trinitária78 e mesmo subversiva,
como veremos a seguir? Poder.

O Pai não existe sem o Filho. (...) O Pai é Pai não primeiramente por ser
criador, mas por ser eternamente, antes da criação, o Pai do Filho. Se não
houvesse o Filho não haveria o Pai. Portanto, é o Filho que tira o Pai de seu
Mistério insondável e no-lo dá a conhecer: ―ninguém conhece o Pai senão o
Filho‖ (Mt 11,27; Lc 10,22). Essa foi a grande obra de Jesus que, ao sentir-
se Filho, descobre Deus não apenas como criador do céu e da terra, mas
como Pai do Filho e Pai de extrema bondade e intimidade: Abba. (...) A
afirmação da paternidade fontal que origina a filiação de todos no Filho nos
faz descobrir a irmandade universal e a comunhão entre todos. Se
abandonarmos esta filiação trinitária e a igualdade de todos os filhos e
filhas, cairemos fatalmente na figura do Pai patriarcal, criador de
todos, mas ficando só e único, concepção que foi historicamente
manipulada para fundamentar o autoritarismo, o paternalismo e o
machismo que tanto mal causaram e ainda causam à humanidade
(BOFF, 2013, p.74-75, grifo nosso).

Vemos, portanto, duas questões muito relevantes acerca da figura de Jesus:


1) O Pai, Deus Pai, só tem sentido de existir como Pai se junto dele houver um filho.
O Pai sem filho é meramente um criador, como eu, cantor e compositor, sou pai da
minha música e Bebeto, tetracampeão mundial, pai da inesquecível comemoração
―balança-nenem‖. Então este elo é muito interessante. Porque o criador manda na

78
Observe que a referência trinitária está altamente presente no pensamento de Peirce. É nela que
se situa primordialmente os seus conceitos de primeiridade, secundidade e terceiridade.
82

sua criação. Criação não tem vontade. Se Da Vinci quisesse pôr sobrancelhas na
Mona Lisa, ela assim o teria; se eu quisesse mais uma ―rima na canção‖ de ―O
Alfabeto Mágico de Denalle‖, ela assim o teria. Mas um pai não manda de fato no
seu filho; ele, no máximo conduz e orienta. O filho não pertence ao pai, mas está
vinculado. Para que esse vínculo que, é verdade, não finda, continue sendo exaltado
e cultivado por ambos, é necessária uma ação recíproca de partida e contrapartida,
pois a partir daí, há duas questões básicas em jogo: liberdade e afeição. Ambos são
impossivelmente desvinculados da natureza humana. 2) Se Jesus for apresentado
como uma básica para a existência do Pai como pai e não como criador, então
estaremos entendendo oficialmente que há uma dependência de Deus para com
Jesus. Consolidar a interpretação desta dependência de um para com o outro (pois
o filho só é filho porque há o pai), seria derrubar fundamentalmente qualquer tese
absolutista, centralista e antidemocrática existente no período pós-cristão, ao
menos, para os cristãos. Isso seria de um prejuízo enorme para aqueles que
historicamente detiveram o poder, alicerçados por, dentre outros, a [suposta]
vontade e o exemplo divino.
A relação trinitária entre ―Jesus – Deus Pai – Espírito Santo‖ também será
explorada rapidamente neste trabalho. É importante salientar que a compreensão da
metafísica do cristianismo é, foi e continuará sendo durante muito tempo,
extremamente importante para os rumos da sociedade, vide idade média e
contemporaneamente, o próprio fundamentalismo estadunidense:

[Para muitos estadunidenses e demais aderentes da imposição cultural


deste país] O ataque terrorista [de 11 de setembro] não era contra os
Estados Unidos, mas sim contra a humanidade, na suposição de que eles
79
fossem a própria humanidade. O projeto inicial de guerra se chamava
Justiça Infinita, termo que usurpava a dimensão do Divino. Depois, com
menor arrogância, mas na linguagem da utopia, chamou-se de Liberdade
Duradoura. Bush terminava suas intervenções com ―Deus salve a
América‖. Que Deus reduzido é este que somente salva a América?
(BOFF, 2009, p.40-41, grifo nosso).

Vale expor que, devido às distorções do cristianismo, o ocidente se tornou


um grande antro de fundamentalismo velado de pluralidade e democracia. Muitos de

79
―Guerra Contra o Terror‖ iniciada por Jorge W. Bush após os acontecimentos de 11 de setembro
nos EUA.
83

nós, mesmos os habitantes de países nem sempre protagonistas dos rumos sócio-
político-econômicos mundiais, reproduzimos com preocupante frequência que:

O Ocidente acredita ser portador da melhor cultura do mundo e por isso


pensa que ela deva ser imposta a todos. Está convicto também de ter a
melhor religião, a única revelada e verdadeira, o cristianismo, de deter a
melhor forma de governo, que é a democracia (sic), e a única forma de
conhecimento da realidade, a tecnociência (BOFF, 2009, p.44).

Essa percepção feia e danosa à convivência pacífica do mundo, decorrente,


dentre outros, da expansão do pensamento crístico acerca de Jesus Cristo,
impregnado de referências de submissão e sujeição é oposta ao que será posto a
seguir.

4.2 A METAFÍSICA DE JESUS ATRELADA AO JESUS HISTÓRICO E À


COSMOVISÃO DA SEMIÓTICA PEIRCEANA

A metafísica de Jesus Cristo está diretamente relacionada com o seu modo


de agir. Independente da crença individual de quem lê, o Jesus Histórico realmente
acreditava ser o filho do Pai-Abba. Isso abriu uma nova perspectiva para a visão de
Deus: polêmica, contestada e perseguida com afinco, sobretudo, por aqueles que se
viam ameaçados por esse novo modo de ver o mundo. A relação de
interdependência (oposta à visão crística) entre Jesus e os outros elementos da
Trindade Divina, Pai e Espírito-Santo, é tal qual a interdependência descrita por
Peirce da seguinte maneira:

Um Signo, ou Representamen é um Primeiro que se põe numa relação


triádica genuína tal para com um Segundo, chamado seu Objeto, de modo a
ser capaz de determinar um Terceiro, chamado seu Interpretante, que se
coloque em relação ao Objeto na mesma relação triádica em que ele próprio
está, com relação a este mesmo Objeto. A relação triádica é genuína, isto é
seus três elementos estão por ela relacionados de maneira tal que não
consiste em qualquer complexo de relações diádicas (PEIRCE apud
FERRAZ, 2009, p.192, grifo do autor).

Podemos, a partir de agora, portanto, inserir neste trabalho uma série de


relações relevantes entre a semiótica de Peirce e a metafísica Cristã, para
posteriormente desaguarmos no Jesus Histórico correlacionando o seu
comportamento ao de um pessimista filantrópico, assim como descreve Peirce.
84

Para explanar uma das visões de interligação entre a semiótica e a Trindade


Cristã, tomarei como exemplo as percepções de Eduardo Dutra Aydos.
Primeiramente apresentado como tese para o Curso de Doutorado em Ciência
Política da UFRGS, unanimemente aprovado com nota máxima, este se transformou
num livro que será tomado como referência neste trecho do trabalho.

Tomemos, como ponto de partida a fórmula consagrada por João


Evangelista, ao anunciar a EXISTÊNCIA DO CRISTO: ―No Princípio era o
Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. [EVANGELHO
SEGUNDO JOÃO, Cap.1, V.1]. Essa fórmula é ternária, velando três
estados do Verbo - o FILHO DE DEUS, junto ao PAI: sua Realidade
coeterna, sua Co-Existência junto a Deus e sua Própria Divindade. É
assim, então, que, na Tradição hebraico-cristã, Deus Pai - Uno e Absoluto -
desde o princípio dos tempos É, também, o Seu próprio o Verbo. E o Verbo
está com Deus - porque o Verbo é o Proferimento de um Signo, cuja
EXPRESSÃO TRIÁDICA, é também, coeterna de Deus. É dessa linha de
raciocínio que a TRADIÇÃO cristã deriva o seu dogma fundamental,
concluindo que, o Verbo é o Signo, e que o Signo é a TRINDADE de Deus
- o mistério de Três Pessoas em um só Deus (AYDOS, 2000, p. 292, grifos
do autor).

Aydos apresenta uma percepção sígnica da Trindade Cristã, onde apresenta


Deus Pai como primeiridade, Espírito Santo como secundidade e Jesus Cristo como
terceiridade. Vejamos:

Figura 4 – A Trindade Sígnica e Cristã (AYDOS, 2000, p.292).


Figura 2 – A Trindade Sígnica e Cristã ( 1

De acordo com Aydos, ainda:

O Signo, aqui [na figura 2], é visualizado como uma Totalidade Una de
sentido, que estaria Todo jogado na expressão da Sua própria Tríade, a
qual por sua vez se realiza como PRIMEIRIDADE, SECUNDIDADE e
TERCEIRIDADE. Essa caracterização da TRINDADE sígnica é, no entanto,
enquanto mera enunciação dos atributos da Divindade, uma formulação
abstrata, que a Deus mesmo não realizaria o Próprio sentido de Ser. Eis
85

que a concepção do signo, de per si (sic) [Peirce], é vazia de sentido, se


não refere uma base para o entendimento concreto, substantivo, que se
expressa epistemologicamente nas categorias do fazer e do agir
comunicativos. Assim, também, o mistério de DEUS TRINO, seria um
vazio de sentido, se não Lhe referisse o entendimento concreto,
substantivo, do Seu FAZER e AGIR comunicativos, estabelecendo-se,
assim, o diálogo do Verbo consigo mesmo; isso que, no entanto, implica,
também e paralelamente, a Expressão do Verbo para fora de Si mesmo
(Idem, grifo do autor).

Observamos que o autor Aydos procura complementar a sua linha de


raciocínio alegando que ―a concepção do signo de [Peirce], é vazia de sentido, se
não se refere uma base para o entendimento concreto, substantivo‖, ainda que
Aydos, espero, esteja se referindo ao exposto pelo pelas próprias citações de Peirce
neste trabalho, é de fácil compreensão que o mesmo queira um gancho para
desaguar na sua visão de que há ainda duas relações a serem vistas,
semioticamente falando, quando no tocante do assunto Jesus Cristo. Na sua
percepção, há dois vieses de exposição de Deus. O do Fazer Comunicativo e o do
Agir Comunicativo. Assim sendo:

(...) Pode-se compreender agora que, apesar de convergir na intenção do


seu Próprio AGIR comunicativo, o FAZER de Deus lhe é obliquo - tem vida
autônoma e paralela - trabalha com categorias que são distintas à sua
Própria Potência de Agir - e portanto de Ser. O FAZER de Deus trabalha,
então com realidades que podem ser-Lhe extrínsecas, embora coexistentes
e coeternas no Espaço da Sua Intervenção. No modelo paradigmático, a
engrenagem do FAZER ganha existência própria e se articula,
dialéticamente (sic), com a dinâmica do AGIR, não lhe correspondendo,
portanto, como um simples espelho, não o reproduzindo, portanto, como a
simples MANIFESTAÇÃO do sentido do AGIR para Si mesmo; os dois lados
da moeda do AGIR e do FAZER comunicativos, representam os dois lados
da Morada do Pai, onde se estende a Sua Onipresença, mas como
ALTERIDADES de Si Mesmo (Ibidem, p. 293, grifo do autor).

Tendo expressado a sua concepção que concerne nada mais do que uma
relação entre a cosmogênese e antropogênese, exprimidas na criação do mundo e
posteriormente do mundo, Aydos apresenta o que para ele é uma visão completa da
tríade sígnica aplicada ao Deus do cristianismo.
86
Figura 5 – As Tríades da Cosmogênese e da Antropogênese Aplicadas ao Deus do Cristianismo
(AYDOS, 2000, p.292).

Para a visão de Aydos, há basicamente uma visão cosmológica que cria


relações ecumênicas (?) entre o que para ele é a diferença de Deus no agir e no
fazer. Para ele, o Pai pode ser visto na sua ação como aquele que na alegoria
bíblica foi o primeiro homem: Adão, já que é nele que tudo começa; o Espírito Santo
seria o próprio cosmos, alegoricamente chamado de Eva, que empiricamente está
provado que pensa, basta observarmos a existência da vida e os próprios padrões
de evolução desta; e Jesus Cristo, o messias, seria antes de messias, o filho de
Deus encarnado. São dois frames que podem e servem para discorrer a visão
cosmológica e metafísica deste autor rumo a um caminho que até me atrai, mas não
apetece a este trabalho. O que é importante e cabe aqui discorrer é que é correto
observarmos, portanto, que em contraponto aos que já foi exposto com relação às
distorções do Jesus da fé que:

A humildade religiosa está em perfeito acordo com as pressuposições de


uma sociedade democrática. Uma religião profunda deve reconhecer a
diferença entre a majestade divina e a condição de criatura do homem;
entre o caráter não condicionado de todo empreendimento humano. De
acordo com a fé cristã, o orgulho, que procura esconder o caráter
condicionado e finito de todo empenho humano, é a própria quintessência
do pecado. A fé religiosa deve, portanto, ser uma fonte constante de
humildade, pois deve encorajar os homens a moderar seu orgulho natural e
atingir uma consciência satisfatória da relatividade até mesmo da afirmação
da sua verdade máxima. Deve ensinar-lhes que a sua religião tem mais
probabilidades de ser verdadeira se reconhecer o elemento de êrro (sic) e
pecado, de limitação e contingência que aparece mesmo na afirmação da
mais sublime verdade (NIEBUHR, 1965, apud AYDOS, 2000, p. 276).
87

Observe que o exposto a cima possui relações pertinentes com o que fora
dito com o pensamento de Voltaire no decorrer deste trabalho. Porém há algo que
se torna ainda de grande importância, as relações entre os três seres que
constituem a Trindade:

(...) há ainda um outro tipo de reducionismo, este ainda mais profundo, que
atingiu a substância da novidade trazida por Jesus. Assim, a experiência
originária do cristianismo de experimentar Deus como Trindade de Pessoas,
sempre em pericórese, comunhão de vida e de amor mútuos, não logrou
impôr-se (sic) historicamente. Esta intuição fundamental e original face às
demais religiões foi logo capturada por polêmicas derivadas do paradigma
grego de pensamento. Este se caracteriza, com raras exceções, por uma
visão substancialista, identitária e não processual da vida e da história
pouco adequada a pensar a Trindade como jogo de relações entre as Três
divinas Pessoas (BOFF, 2013, p. 170, grifo do autor).

Ou seja, a mensagem maior da Trindade simplesmente não foi assim


difundida no decorrer da história do cristianismo. Seria complicado para os
pensadores daquele tempo compreender que a Trindade estabelecia, acima de tudo,
uma relação de compreensão e cumplicidade entre os seus três integrantes; esta
compreensão estaria sobre tudo muito mais vinculada à uma percepção ecumênica
do mundo e das compreensões de Deus expostas no mundo, do que propriamente à
ideia fundamentalista de que uma ideia, religião, doutrina, ou o que quer que seja
pode ser mais verdadeiro ou melhor do que os outros. O Cristianismo nasce
heterogêneo e é na Santíssima Trindade que encontramos o melhor exemplo disso.
A relação, aceitação e afinidade entre Pai, Filho e Espírito-Santo são tão intensas e
colossais que fazem deles uma única coisa. Mas veja bem, se Pai, Filho e Espírito-
Santo fossem a mesma coisa, eles não seriam três. É na aceitação suprema das
diferenças e peculiaridades que eles se encontram e formam este ser uno.

A maioria dos pensadores cristãos, incapaz de captar a singularidade do


modo cristão de dizer Deus, fez com que o discurso pastoral das igrejas se
mantivesse no clássico monoteísmo pré-trinitário, comum ao judaísmo e às
religiões do mundo. A Santíssima Trindade ficou sendo o símbolo do
Mistério dos Mistérios e, por isso, tido como inacessível à razão humana e
objeto de pura fé (BOFF, 2013, p. 170).

Também por isso e levando em conta que

A prática para com Deus não passa pelo ritual oficial, mas pelo amor, pela
misericórdia, pelo sentido de justiça e de entrega confiante. Àquele que
88

cuida de cada fio de cabelo da cabeça (Lc 21,18). Acolhe a todos


indistintamente, pois é essa a atitude misericordiosa do Pai, assumida por
Jesus que disse: ―Se alguém vem a mim, eu não o mandarei embora‖ (Jo
6,37) (BOFF, 2013, p. 98).

Continuaremos esta leitura, finalmente discorrendo sobre o Jesus Histórico,


assim como traçando paralelos entre este, a sua forma de agir conforme a sua
cosmovisão de Filho de Deus e as características atribuídas a um pessimista
Filantrópico, como descreve Peirce em Um Argumento Negligenciado para a
Realidade de Deus.

4.3 O JESUS HISTÓRICO E O PESSIMISMO FILANTRÓPICO

Encaremos Jesus como um homem. Um cara legal, educado, gentil, idealista


(e por ser idealista), subversivo. Provavelmente brincou de alguma coisa análoga à
ximbra, esconde-esconde e pega-pega quando pequeno, quiçá, de polícia e ladrão.
Em termos técnicos:

Como os demais seres humanos, Jesus é animal, da classe dos mamíferos,


da ordem dos primatas, da família dos hominidas, do gênero homo, da
espécie sapiens e demens. Seu corpo é uma máquina de quatrocentos
bilhões de células, controlada e procriada por um sistema genético, que se
constituiu no curso de uma evolução natural longa, de 3,8 bilhões de anos,
data do surgimento da vida; o cérebro com o qual pensou com mais de 50
bilhões de neurônios que fazem cem trilhões de conexões; a boca com a
qual falou, a mão com a qual tocou, são órgãos biológicos, marcados por
um sofisticadíssimo processo evolutivo até chegarem a formá-lo. (...) Por
fim, Jesus é filho de Míriam, adotado por seu esposo José, ambos
representantes da cultura judaica de seu tempo. Pensou e agiu com os
recursos que a sua cultura lhe oferecia. Mesmo o fato de ser a encarnação
do Filho do Pai não anula esta sua condição histórica. Ao contrário, vem
reforçá-la porque o próprio Concílio de Calcedônia (451), que transformou
em doutrina oficial essa convicção, sustenta que Jesus foi em tudo
verdadeiramente homem, como qualquer outro homem, sem nunca ter
rompido sua relação com o Pai (BOFF, 2013, p. 84-85).

Esse moleque possuía ideias revolucionárias na cabeça, na época não


poderia se filiar ao PT ou outro partido de esquerda, nem seria essa a sua intensão,
caso houvesse possibilidade. Talvez por isso tenha gerado tanta controvérsia,
mesmo entre os seus seguidores, até hoje. Ele não queria poder, fosse através de
guerras ou de política. Só queria espalhar o que pensava ser o melhor para as
pessoas. Talvez por isso, afirme Voltaire: ―Portanto, se o cristianismo só se formou
pela liberdade de pensamento, por que contradição, por que injustiça desejaria
89

aniquilar essa liberdade sobre a qual está fundado?― (VOLTAIRE, 1973, apud LEAL;
OLIVEIRA. 2007, p. 52). Jesus era um sujeito humilde, simples e idealista. Sua
ascendência divina, ou quaisquer et cetera místico são, caso sejam, detalhes.
Relevantes, mas detalhes. Vejamos:

Ele se encarna neste homem de Nazaré, vila tão insignificante que sequer é
nomeada no primeiro testamento. Ele vai se formando como qualquer
criança, jovem e homem feito. Passa pelas crises que cada fase
implica, enfrenta-as, e com isso amadurece e plasma sua identidade de
homem. Seu nome, Jesus, não consta em nenhuma crônica da época.
É um desconhecido. Aprende a profissão do pai, um artesão, um factotum
que arruma telhados, levanta paredes, constrói mobiliário doméstico como
mesas, cadeiras e rodas, e simultaneamente trabalha como camponês para
garantir comida à família, como era hábito de todos os artesãos (BOFF,
2013, p.46, grifo nosso).

Mas afinal, qual seria tão gigantesca subversão desse jovem? Quais seriam
as questões levantadas por Jesus, tão graves, a ponto de reverberar por milênios e
conduzi-lo a uma das piores punições já criadas pela perversidade da mente
humana? Se você for ateu, ou simplesmente não enxergar Jesus como um ser
divino, considere que ele foi pioneiro em dizer para muita gente, que as pessoas
precisavam ser legais umas com as outras (ADAMS, 2010). Se for um cristão mais
ortodoxo, considere que ele era/é filho de Deus e que disse que todos nós éramos
irmãos e precisávamos nos perdoar e não julgar o próximo. Se você for um cristão
não-tão-ortodoxo-assim, considere que a questão de Jesus gira em torno do
seguinte:

Seguramente é a primeira vez que em nossa galáxia, em nosso sistema


solar e em nossa Terra alguém tem consciência de ser Filho de Deus-Abba.
(...) Ao sentir-se Filho de Deus-Abba, criou a possibilidade de cada ser
humano, homem e mulher, sentir-se também filho e filha de Deus, pois
todos carregamos a mesma natureza humana que Ele carregou (BOFF,
2013, p.47).

No final das contas, como falei a cima por meio de Hermes Trismegisto, é
tudo a mesma coisa. A essência, neste trabalho (e acredito que não apenas neste
trabalho) é mais importante do que o formato. E por mais que não pareça, essa
observação é relevante. Então, divino ou não, consideremos Jesus da perspectiva
de homem idealista. Jesus era um homem que tinha um ideal, um sonho. Esse
sonho dizia respeito, não a ele, mas ao conjunto da humanidade. Jesus era um
homem do coletivo.
90

Seu propósito é anunciar um sonho: o do Reino de Deus. É a revolução


absoluta que transforma todas as coisas e as alinha ao desígnio do Mistério.
O que é doente fica curado; o que está perdido é encontrado; o que pecou
contra Deus experimenta a misericórdia divina (BOFF, 2013, p.47-48).

Mas o que conduz Jesus à busca pelo Reino de Deus? Independente de ser
o ―Reino de Deus‖ uma alegoria, uma licença poética, ou um próprio Reino
demarcado em cima das nuvens, ou num plano metafísico, Jesus buscava uma
condição de liberdade e felicidade para os seres humanos. ―Contra o império de
César, Jesus propõe o Reino de Deus. Era um ato político subversivo e perigoso.
Contra a religião da lei e da cobrança, Jesus postula a religião do amor e da
misericórdia‖ (BOFF, 2013, p.91). Essa condição advinha daquilo que esta pesquisa
vem demonstrando ser o calo de todo o pessimista: o conhecimento. Jesus, por
algum meio, metafísico ou não, chegou à conclusão de que o mundo só seria feliz se
o amor fosse cultivado, se as pessoas se amassem mais e se julgassem menos.
Decidiu reverberar isso. Coitado. A utopia dele era muito maior do que a de Voltaire,
colossalmente maior. Tanto percebeu o tamanho da utopia, que quando viu no seu
doloroso sacrifício a única alternativa para salvar os outros, assim o fez.
Metafisicamente pode ter dado certo. Era essa a sua esperança.
Convenhamos, por que isso era subversivo? Por mais que hoje pareça ser
óbvio que se as pessoas se amassem de verdade, sem nem se conhecer, o mundo
seria um lugar realmente supimpa; pras pessoas daquele tempo isso não era tão
claro. Isso se dava principalmente pela relação de autoridade que existia,
especialmente a partir da figura divina pré-cristã, como já citei nas páginas
anteriores. Não era importante amar, era importante ser obediente. No seu papel de
criatura, em gratidão por ter sido criado, você também deve ser servo. Cabe ao
servo obedecer, ser ingrato é feio. Há muito servo grato que não gosta de ingratos.
O criador pune ingratos.
Compreende a polêmica? Do nada surge um sujeito dizendo ―não sou
criatura, sou filho!‖, ―não cabe a mim obedecer, cabe a mim amar aos meus irmãos!‖.
Imagine o que essas criaturas-servas-cegamente-obedientes pensaram quando
viram esse sujeito? ―É, no mínimo, uma má influência‖. Mas... e quando essa
influência toma proporções que fogem ao controle? Das duas uma: ou reza, ou
neutraliza a má influência. Bom, se rezaram, tudo indica que rezaram para o Pai da
má influência e isso obviamente não adiantou. Restou neutralizá-la.
91

Jesus sabia disso. Sabia que seria neutralizado de alguma maneira. Como
não se calaria, a maneira certamente seria a morte. Ele sabia que era perigoso
pensar o que pensava e falar o que falava. Mas além de ter o amor aflito por uma
humanidade que caminhava para o desastre, Jesus era um apocalíptico. Ele
realmente acreditava que o mundo estava próximo do fim e toda a sua fala emanava
urgência:

Em termos de visão de mundo, Jesus foi um apocalíptico. Esta visão


apocalíptica era típica de muitos de seu tempo. (...) Os apocalípticos como
Jesus faziam a seguinte leitura do mundo: este mundo chegou a tal
ponto de degradação que está próximo de seu fim; mas Deus resolveu
intervir de forma libertadora, liquidando todas as maldades e
inaugurando o Reino de Deus, de justiça, de amor e de paz perpétua.
(...) Imaginemos o seguinte cenário, ocorrido inúmeras vezes na história da
Terra: astrônomos de várias partes do mundo detectam claramente um
potente meteoro rasante que se dirige, velozmente, em direção à Terra,
Apophis 2036, que pode também ser qualquer outro. Seu tamanho é de tal
proporção que poderá devastar perigosamente a biosfera e pôr em risco o
futuro da humanidade. (...) Diante de tal situação de urgência, praticamente,
não há nada a fazer, senão esperar e se preparar para a catástrofe coletiva.
(...) Podemos imaginar muitas reações possíveis dos seres humanos face a
essa realidade terminal. Há os que se desesperam e, com medo de morrer,
se matam. Há os gozadores, como no tempo de Noé, que dirão: ―comamos,
bebamos porque amanhã morreremos‖ (cf. 1Cor 15,32). Há os descrentes
que continuam como se nada fosse acontecer, dizendo que tudo isso não
passa de uma piada que a comunidade científica lançou para a
humanidade, fazendo projetos para o futuro, jogando nas bolsas de valores,
investindo em grandes empreendimentos, negociando e acumulando
riqueza. Há os pregadores de conversão e penitência como João Batista,
pois junto com a morte coletiva vem o juízo severo de Deus que punirá os
maus e premiará os bons. E há, por fim, aqueles que, como Jesus,
tomaram a sério a iminência do fim, mas lhe conferem uma
interpretação altamente alviçareira: esse meteoro rasante fará com que
―o tempo da espera tenha expirado, o Reino está chegando, mudemos
de vida e creiamos nessa boa notícia‖ (cf. Mc 1,15). Portanto, o fim é
inevitável mas não precisa ser desastroso; apesar da desolação da
tribulação, apresenta-se a ocasião propícia para Deus, enfim, destruir o
império da maldade e inaugurar o novo céu e a nova terra, o seu Reino
definitivo (BOFF, 2013, p.83-87, grifo nosso).

Entretanto, reconhecer Jesus como um apocalíptico somente nos ajuda a


compreender o seu pensamento. Diante de um fim eminente, seria necessária a
adoção de uma maneira de se refletir, agir e influenciar as pessoas, se assim se
visse necessário. Jesus optou por dar o exemplo. Ao contrário de outros profetas e
místicos daquele tempo, Jesus optou por um caminho oposto ao do alerta e do
desespero:
92

Ele [Jesus] proclamou: ―O tempo da espera expirou. O Reino de Deus está


chegando. Mudem de vida. Creiam nesta boa notícia‖ (Mc 1,15). Nisso Ele
se diferencia de João Batista, do qual possivelmente tenha sido discípulo,
ainda com uma passagem provável pelas cavernas dos essênios em
Qumran, junto ao Mar Morto, ascetas rigorosos com alta moralidade e
valores ligados ao amor e ao perdão. João, este anunciava o juízo iminente
e a conversão necessária. Jesus, ao contrário, sentia que por aí não ia o
seu caminho; por isso proclama a alegria do Reino que já está a caminho e
que vai se realizar na medida da adesão e da conversão dos ouvintes
(BOFF, 2013, p.89-90, grifo nosso).

Sendo exemplo vivo do ideal de um mundo onde o poder não faz sentido,
pois está prestes a acabar, e a única salvação para os homens é cultivar o amor ao
próximo, Jesus decide o seu caminho. Negando toda e qualquer forma de poder, ao
pregar isso, ameaça aos que mamam nas tetas da sujeição alicerçada por meio do
respaldo divino. A mensagem do exemplo vivo de Jesus é a de que:

O Reino de Deus não pode ser parcializado com fosse parte de uma
realidade maior. Ele não pode ser reduzido às três formas de poder,
apresentadas como tentações a que foi submetido Jesus (...), o
poder profético que transforma pedras em pão, o poder sacerdotal
que pretende mudar o mundo a partir do templo e de uma reforma
moral ou o poder político que domina povos e territórios e submete a
todos a uma mesma ordem. Jesus rejeita estas três formas de poder
como tentação diabólica. O caminho escolhido é o do líder servidor,
do profeta perseguido e do servo sofredor, anunciado pelo Profeta
Isaías (...) (BOFF, 2013, p.93-94, grifo do autor).

E é a partir dessa escolha, onde Jesus nega o posto de líder que sujeita,
mas acata a difícil tarefa de ser o líder sujeitado, que encontramos a lógica que vai
perseguir toda a sua trajetória de vida, os seus ensinamentos e transparecerá a sua
angústia. É nesta opção de doar-se às pessoas como um servo, que Jesus inicia a
sua angústia; não à toa ―servo sofredor‖, ele sofre por ver na sua vontade uma
utopia. Ainda assim, decide ser exemplo, custe o que custar.
Como já vimos na página 68 deste trabalho, os pessimistas filantrópicos são
aqueles que, assim como Schopenhauer percebem os desmandos e o rumo trágico
da humanidade, mas ao contrário deste, não odeiam a vida por isso. Pelo contrário,
inconformam-se, justamente por amá-la em demasia. E é nesse amor que consiste
os seus ensinamentos, para Jesus, amar ao próximo é ser livre.

A plena libertação se realiza na prática do amor incondicional como


princípio organizador das relações entre as pessoas. O amor não divide,
une. O próprio amor a Deus passa pelo amor ao próximo (Mt 23,27-40).
93

Para Jesus, próximo é aquele de que meu me aproximo. E devo


aproximar-me de todos, mas principalmente daqueles que ninguém
gosta de se aproximar, como os marginalizados, os pobres, os doentes
e os mal-afamados. Para Ele, amar o próximo é amar particularmente a
estes. (...) Mas para Jesus o amor precisa se revestir de uma qualidade que
o torna característico. O amor tem que ser misericordioso. Só quem se
imbui de misericórdia pode entender e viver o apelo de Jesus ―Amai os
inimigos, falei bem aos que vos odeiam, falai bem dos que vos
maldizem e orai por quem vos calunia‖ (Lc 6,27-28). Viver essa
dimensão do amor é ser livre. A ofensa a humilhação e a violência
recebidas nos mantém presos na amargura e, não raro, com espírito de
vingança. (BOFF, 2013, p.96-97).

Então, para Jesus, há uma ética: amor e misericórdia ilimitados. Não são as prédicas
que salvam, mas as práticas. Esta é a chave e também segunda característica de
um pessimista filantrópico. Lembremos que há duas básicas: 1) Simpatia; 2)
Filantropia. Além da terceira, comum a todos os pessimistas, o fatalismo. É
impossível ser pessimista e não ser fatalista. Fatalismo, segundo o Dicionário
Priberam da língua portuguesa, deriva de Fatalidade. Fatalidade é: 1. Força que
predispõe os acontecimentos. 2. Destino inevitável. 3. Qualidade de fatal. Ou seja,
é a percepção e convicção de que algo definitivamente não irá se resolver ou
caminha fatalmente para o abismo, que nasce o pensamento pessimista. No entanto
as reações, assim como no exemplo apocalíptico que foi dado a cima, são distintas:
na primeiridade, se definha; na secundidade, se suporta; na terceiridade se
sacrifica, como se o sacrifício fosse assim, o último suspiro de esperança para
resolver os problemas da humanidade.
Jesus, conforme o apresentado até agora, atende duas das três
características básicas dos pessimistas filantrópicos. No entanto, tentarei me
aprofundar um pouco mais nesta questão:

1) Simpatia: para ser simpático é necessário ser sensível ao outro, como


aponta a página 50 deste trabalho. É sabido que a simpatia, ou melhor, a
sensibilidade de Jesus para com o universo e os seus semelhantes foi impar e serve
de inspiração até os dias de hoje para cristãos e não cristãos. Boff discorre um
pouco sobre isso, fazendo referência ao episódio da sua história relatado como
―Sermão da Montanha‖:

(...) no Sermão da Montanha. Aí Jesus faz uma clara opção pelas vítimas e
por aqueles que não contam na ordem vigente. Declara bem-aventurados,
quer dizer, portadores das bênçãos divinas, os pobres, primeiros herdeiros
94

do Reino, os que choram, os mansos, os famintos e sedentos de justiça, os


compassivos, os puros de coração, os pacíficos, os perseguidos por causa
da justiça, os que padecem de insultos e perseguições pela causa do Reino
e suportam mentiras e todo tipo de mal (Mt 5,3-12). Porém a ética de Jesus
alcança até as intenções mais íntimas e escondidas das pessoas: não só o
que mata, mas também aquele que irrita o irmão se faz condenável (Mt
5,22); basta desejar a mulher do outro para cometer adultério em sem
coração (Mt 5,28). Enfaticamente afirma: ―não resistais aos maus; se
alguém te esbofetear na face direita, dá-lhe também a esquerda; se alguém
brigar contigo para te tirar a roupa, deixa-lhe também o manto‖ (Mt 5,39-40).
Foram tais ideais de Jesus que fizeram Toureau, Tolstoi, Gandhi e Dom
Helder Câmara proporem o caminho da não violência ativa para enfrentar a
força do negativo (BOFF, 2013, p.130-131).

Mais ainda, no episódio relatado no evangelho de João, quando Jesus


ressuscita Lázaro80, ali percebe-se a simpatia de Jesus. Ainda que, como já
afirmado, os evangelhos tenham função apologéticas, este caráter da figura de
Jesus também é enaltecido. Vejamos o comentário do pastor presbiteriano sobre
essa passagem:

(...) a narrativa desses poucos versículos é simplesmente maravilhosa. Ela


demonstra o caráter simpático de Jesus (...) simpatia é a capacidade de
compartir as alegrias e as tristezas de outrem. Quando o Senhor Jesus
encarnou, como qualquer ser humano, ele já nasceu com esse sentimento
pelos seus semelhantes. Porém, sem a corrupção do pecado, Jesus
realmente se interessava pelas pessoas, identificava-se com as pessoas, e
era realmente solidário com as pessoas. (...) Nestes versículos que lemos,
nós constatamos como Jesus, o Deus Filho encarnado, aquele que é
poderoso para salvar, como homem, é capaz de demonstrar compaixão
pelos homens aos quais ele se fez semelhante. E ter compaixão não é ter
pena, como às vezes nós pensamos. Ter compaixão é sentir o que o
outro está sentido. A narrativa destes versículos nos apresenta este
caráter simpático de Jesus, o Salvador, aquele que, embora sendo um
com o Pai e criador de todas as coisas, neste episódio participou da tristeza
de Marta e Maria, derramando lágrimas humanas juntamente com elas
(RODRIGUES, J., 2014, grifo nosso).

Entendo que não há filantropia sem simpatia81. Ora, se a filantropia é ―amor à


humanidade‖, ―caridade‖, a simpatia é obrigatoriamente um fundamento inicial para a
sua existência. Talvez, mais do que um catalisador para a filantropia, a simpatia

80
―31 Vendo, pois, os judeus, que estavam com ela em casa e a consolavam, que Maria
apressadamente se levantara e saíra, seguiram-na, dizendo: Vai ao sepulcro para chorar ali. 32
Tendo, pois, Maria chegado aonde Jesus estava, e vendo-o, lançou-se aos seus pés, dizendo-lhe:
Senhor, se tu estivesses aqui, meu irmão não teria morrido. 33 Jesus pois, quando a viu chorar, e
também chorando os judeus que com ela vinham, moveu-se muito em espírito, e perturbou-se. 34 E
disse: Onde o pusestes? Disseram-lhe: Senhor, vem, e vê. 35 Jesus chorou. 36 Disseram, pois, os
judeus: Vede como o amava‖ (João 11:31-36).
81
Observe, falo de filantropia, não de marketing social.
95

seja, sim, decodificada pela filantropia. Em ambos os casos, uma está


necessariamente vinculada à outra.

2) Filantropia: bom, Peirce não chama o pessimista de filantrópico ao léo,


esse pessimista é assim classificado pela sua peculiaridade de amor. Este amor
catalisará uma causa e esta será a substância impar da existência do seu idealista.
No caso de Jesus, o amor é a sua causa e todo o discurso e todas as ações dele
giram em torno disso:

O essencial e o novo introduzido por Jesus é o amor incondicional. O amor


ao próximo e o amor a Deus se identificam e o sentido de toda a Tradição
bíblica é culminar nesta unidade (Mt 22,37-40). A proposta radical soa:
―amar como eu vos tenho amado‖, que é um amor até o extremo (Jo 13,34).
Ninguém é excluído do amor, nem os inimigos, pois Deus ama a todos, até
os ―ingratos e maus‖ (Lc 6,35). (...) A ―lei‖ de Cristo, se é que se pode usar
esta palavra ―lei‖, ou, melhor, a lógica do Reino se cristaliza no amor. Esse
amor é mais que um sentimento e uma paixão. É uma decisão da liberdade,
é um propósito de vida no sentido de abrir-se sempre ao outro, deixá-lo ser,
ouvi-lo, acolhê-lo e, se cair, estender-lhe a mão. Esse amor se testa em sua
verdade se amarmos na nossa relação de acolhida destes condenados na
Terra que Jesus pensa quando pede que amemos uns aos outros ou ao
próximo (BOFF, 2013, p.129).

Para Jesus, ―se tivermos dado alimento ao faminto, água ao sedento, roupa
ao desnudo. Nesta solidariedade mínima se joga o destino de todos, feliz ou infeliz
(Mt 25,31-40)‖ (Idem, p. 117). Tomemos como exemplo, para aqueles que seguem o
exemplo de Jesus, a interpretação presbiteriana dessa questão:

A prática do amor cristão tem de ser uma característica distintiva do cristão,


do discípulo do Senhor Jesus Cristo. Como parte do amor Cristão, o amor e
o perdão, por uma questão de obediência e de fidelidade ao Senhor, tão-
somente evidenciam a nossa gratidão para com Deus; evidenciam o nosso
entendimento do perdão que ele nos concedeu e concede toda vez que
pecamos, mediante a morte do Senhor Jesus por causa dos nossos
pecados (Mt 18:21-35; Jo. 13:35; Ef 4:32) (RODRIGUES, J., 2011).

Então seria isso? O amor e pronto? Pois bem, na Bíblia encontramos alguns
textos ditos jesuânicos. Jesuânico é o texto que surge diretamente da boca de
Jesus. Dentre estes textos há dezenas de parábolas, muitas retrabalhadas conforme
a necessidade apologética de cada autor (BOFF, 2013), porém, há um texto
específico que funciona como síntese do pensamento de Jesus:
96

Quando os discípulos pedem a Jesus: ―Senhor, ensina-nos a rezar‖


(cf. Lc 11,1), não estão pedindo um método de oração, coisa que todo
judeu conhece. Essa pergunta representa um torneio linguístico,
conhecido na época, para dizer: ―Jesus dá-nos um resumo da tua
mensagem?‖ ―Qual é o logotipo da tua proposta?‖ Sabemos que os
vários grupos religiosos do tempo se distinguiam por pequenas fórmulas de
oração que se distinguiam por pequenas fórmulas de oração que resumiam
suas respectivas doutrinas e lhes conferiam identidade e coesão interna.
Com Jesus ocorre o mesmo fenômeno. O Pai-Nosso revela a experiência
originária de Jesus e entrega-nos a sua ipsissima intentio, quer dizer,
sua intenção mais verdadeira. Trata-se de um texto jesuânico, quer dizer,
que veio diretamente da boca do Jesus histórico (Idem, 103, grifo nosso).

Na oração do Pai Nosso não encontramos praticamente nada do que é


cultivado pela maioria dos cristãos na contemporaneidade. O Pai Nosso possui duas
versões escritas, que serão expostas na tabela a baixo, sendo a menor, de Lucas,
apesar de ambas possuírem o mesmo conteúdo, a mais próxima do texto real82. Na
realidade o que importa é o conteúdo. Ambas, no telefone sem fio do tempo, tiveram
as suas formas modificadas, mas o conteúdo continuou o mesmo:

Tabela 3 – O Pai Nosso (BOFF, 2013, p.106).


Mateus Lucas
Pai nosso que estás nos Pai, santificado seja teu
céus, teu nome seja nome,
santificado;

Venha a nós o teu venha o teu Reino.


Reino, seja feita a tua
vontade, assim na terra
como no céu.

O pão nosso de cada dia Dá-nos cada dia o pão


dá-nos hoje, Necessário;

perdoa-nos nossas Perdoa-nos os pecados, pois


dívidas, assim como nós também nós perdoamos a
perdoamos aos nossos, todos os que nos têm
devedores, ofendido,

e não nos deixes cair em e não nos ponhas à prova.


tentação,

mas livra-nos do mal.

82
―Os estudiosos nos garantem que, quando uma fórmula mais curta se encontra integralmente
contida na mais longa, é a mais curta que deve ser considerada mais próxima da original. Portanto,
seria a de São Lucas‖ (BOFF, 2013, p.106)
97

Como podemos observar, a oração do Pai Nosso não fala de dogmas,


tradições, ressurreição, nada do tipo. Aliás há sim um detalhe, a oração pede o pão
NOSSO e não o pão MEU, ―a necessidade do pão é individual; sua satisfação, no
entanto, não pode ser individual, mas comunitária. Por isso Jesus não manda rezar:
o pão meu, mas o pão nosso‖ (Idem, p. 118), essa é a síntese da filantropia cristã.

Na oração do Pai-Nosso (...) se esconde a intenção originária de Jesus


antes de qualquer outra formulação. Ela nasceu da sua própria boca. Por
isso a chamamos de ipsissima vox Jesu, a própria voz de Jesus. (...) no Pai-
Nosso não encontramos nada daquilo que para a Igreja posterior é
importante: Jesus mesmo com Salvador, sua morte e ressurreição, a
[própria] Igreja, os sacramentos, a Eucaristia e os dogmas. Não se fala nada
disso. Para Jesus isso não é o importante. (...) Se perguntarem: o que quis
Jesus, devemos responder: Ele quis trazer o Reino de Deus, que
sentíssemos a Deus como íntimo, Pai e Mãe de bondade (Abba) e que
buscássemos o pão nosso. Tudo mais é comentário. (...) Nunca podemos
esquecer este mínimo do mínimo. Ele não pode ser substituído por
doutrinas, dogmas, ritos e tradições. Aí nos afastaríamos da intenção
originária de Jesus, mas a tradição cristã mais antiga pressentiu que face ao
Pai-nosso estávamos diante de algo que pertence ao segredo e ao Mistério
de Jesus. Por isso, essa oração pertencia à disciplina do arcano, quer dizer,
era ensinada apenas aos iniciados que já tinham sido batizados e
confirmados. Tertuliano (+225), o maior teólogo leigo do cristianismo, diz
enfaticamente: o Pai-Nosso é o breviarium totius evangelii: ―a súmula de
todo o Evangelho‖ (Ibidem, p.102 - 104).

No entanto, vemos algo curioso. A partir desta perspectiva, a ressurreição


não é o mais importante na figura de Jesus, mas o sacrifício e a lealdade. Na
realidade, a ressurreição de Jesus era pouco discutida no início do período primitivo
do cristianismo, sendo mais disseminado, em seguida, por razões apologéticas e
ainda assim, de forma adaptada, já que para algumas culturas, ressuscitar, pelo
menos num corpo humano como conhecemos, não seria animador, muito pelo
contrário:

Somente mais tarde, por razões apologéticas, face aos cristãos vindos da
cultura helenista, começou a se falar de ―ressurreição‖. Para a visão grega,
a volta ao corpo não é nenhum benefício; ao contrário, é antes um castigo,
pois o corpo representa o cárcere (sema) da alma dentro do corpo (soma),
cuja morte significaria a sua libertação. Voltar ao corpo pela ressurreição é
regredir e reentrar no cárcere. Para evitar este tipo de compreensão cultural
os cristãos começaram a usar a expressão ―ressurreição‖ com um sentido
novo, não simplesmente como a reanimação de um cadáver, como o de
Lázaro, mas como um novo tipo de corpo – ―corpo espiritual‖ (1Cor 15,44).
Um corpo real, mas que assume as dimensões do espírito, por isso
transfigurado, livre do aprisionamento do espaço e do tempo, um corpo
cósmico. Desta forma surge como ―o novíssimo Adão‖, expressão da nova
criação, nas palavras de São Paulo (cf. 1Cor 15,35) (Ibidem, 140-141).
98

Porém, independente da relevância da ressurreição de Jesus, esta só tem a


possibilidade de ocorrer por conta de uma outra circunstância: o sacrifício. O
sacrifício de Jesus a si mesmo, surge na culminância da terceira característica
inerente aos pessimistas: o fatalismo.

3) Fatalismo: qual foi o motivo do sacrifício de Jesus? Ele carregava


consigo uma mensagem, uma novidade e uma nova ética extremamente pautada
pela sua cosmovisão filantrópica do universo.

A novidade de Jesus é trazer a alviçareira notícia: o que salva não é a


lei, mas o amor, e este não conhece limites. (...) O ideal supremo da ética
de Jesus se anuncia assim: ―sede perfeitos como o Pai é perfeito‖ (5,48).
Duas são as características da perfeição do Pai sempre enfatizadas por
Jesus: um amor sem barreiras a todos e uma misericórdia ilimitada (Ibidem,
131-132).

Porém, em contrapartida à observação de que o mundo não corresponderia à ética


que trazia consigo, acreditava que com o seu sacrifício, a humanidade seria
perdoada dos seus pecados e caminharia em direção ao reino dos céus. Essa
proposta é altamente metafísica e a sua veracidade, eficácia, ou eficiência não é o
mérito deste trabalho. A questão é que o sacrifício de Jesus foi consciente e visto
como ele por necessário por um simples motivo: ele percebeu que a humanidade
não se salvaria sem o seu auxílio. Caso tivesse percebido o contrário, o seu
sacrifício não teria sentido de ser. É aí que reside o fatalismo de Jesus: assim como
os pessimistas da primeiridade e os misantrópicos, Jesus também acreditou que a
humanidade caminhava para um futuro pejorativamente caótico; defronte a esta
conjuntura, decidiu: ―se o meu sacrifício é a única maneira de perdoar a todos os
meus irmãos, assim o farei‖. Essa certeza é altamente pessimista.

Lentamente, mas com clareza, Jesus se dá conta de que o caminho do


83
sofrimento lhe foi reservado pelo Pai. Não será fácil aceitar essa via-
sacra dolorosa antecipada. Aí entra a fé de Jesus e ele se mostra um
homem de fé (Hb 12,2), que o leva a uma total entrega e a uma ilimitada
confiança. O grito no alto da cruz, de abandono e desespero (Mc 15,34), dá
conta da profundidade da solidão de Jesus. A esperança está ameaçada e
com ela a realidade do sonho e da libertação que lhe estava ligada.
Mas, enfim, sem mais nenhum suporte e totalmente esvaziado e libertado
de si mesmo, entrega-se ao Mistério sem nome. Penetra o reino das trevas

83
Referência à percepção de que a humanidade só será salva com o seu sacrifício.
99

interiores, terríveis e temíveis das quais falam os místicos. O amor a Deus e


à humanidade exige esta kenosis, esta libertação de si mesmo, de suas
convicções e de sua consciência de ser o inaugurador do Reino. É da
natureza do sonho sempre ressuscitar. Só morre o que é. O que ainda
não é não pode morrer. O que pode ser, o que é virtual e possível como o
sonho do Reino e de uma criação enfim libertada e levada à sua plenitude
não morre jamais (BOFF, 2013, p.101, grifo nosso).

E por mais subversiva que seja na sua concepção, o sacrifício de Jesus


respeita a autoridade. Jesus não queria sangue. Talvez por isso Hobbes pense
dessa maneira:

Para Hobbes, levado em conta aquilo que é necessário à salvação do ponto


de vista religioso, isto é, a fé, um cristão submetido a um soberano não
cristão deve reconhecer a soberania sob a qual ele vive e se submeter às
leis promulgadas ou, em caso extremo, se a defesa de sua religião tem
mais importância que sua vida, ele pode aceitar sofrer o martírio, mas
aceitando o castigo previsto para a violação das leis como faziam os
primeiros mártires cristãos sob o Império romano (CHARLES, 2012,
p.38, grifo nosso).

E assim Jesus, o primeiro martirizado, o fez. Não combateu Pilatos, ou


qualquer autoridade que o perseguiu, pelo contrário, repreendeu um apóstolo
quando este atacou um dos soldados que foram o prender.

Jesus não morreu na cama doente ou de velho. Foi executado na cruz.


Seu assassinato judicial é consequência de sua vida, de sua pregação,
de sua prática libertária e da consciência que havia desenvolvido a
respeito de sua vinculação com o Pai-Abba e de sua ligação com o
Reino, coisa que escandalizou sobremaneira as autoridades religiosas
e o colocou sob suspeita de subversão pelos representantes do
Império Romano. (...) Sua vida, desde o início (Mc 3,6), foi cercada de
conflitos provocados pela liberdade que tomava face às opressões que
a religião e as tradições impunham aos fiéis. Jesus percorre um
caminho de coragem: toma partido sempre que se trata de defender o
direito e a dignidade do outro, seja ele herege, pagão, estrangeiro, mal-
afamado, prostituta, pecador público, criança, doente e outros
socialmente marginalizados. Desmascarou a falsidade da religião
legalista e farisaica. Teve que enfrentar dois processos: um religioso e
outro político (BOFF, 2013, p. 133-134, grifo nosso).

Por fim, Jesus, por amar as a humanidade de forma ímpar, sucumbiu à cruz. Nunca
desejou esse tipo de coisa. Entre calar-se e pregar o que acreditava ser o melhor
caminho para aqueles a quem amava, encarou a sua possível pena como um mal
necessário diante de uma sociedade virtualmente condenada, um ato de amor e de
esperança pra salvar os seus irmãos. Um exemplo claro para que quem visse sua
figura e ouvisse sua história, tivesse inspiração para viver e acreditar nas boas
100

pessoas e num mundo melhor, justo e inofensivo a quem quer que seja. Não se
calou, assim como seu par de categoria pessimista, Voltaire, diante de nenhuma
ameaça e decidiu por proferir a sua palavra à todos aqueles que estivessem
dispostos a ouvi-la. ―No meio de lágrimas, angústias e gritos de desespero, manteve
até o fim a fidelidade a si, ao sonho, aos homens e às mulheres humilhados e
ofendidos e ao Pai‖ (BOFF, 2013, p. 188). Tudo isso em nome da compreensão e
sensibilidade que tinha com os seus próximos, do amor que eclodiu desta
sensibilidade formulando a sua visão e cosmovisão do universo e da angústia
consequente da percepção de que o mundo caminhava para o abismo. A filantropia
do seu pessimismo não permitiu o extirpar da esperança; vocacionado por esta,
decidiu: ―eu sou a esperança‖. No lusco-fusco do seu sofrimento, realizado pela
consciência, abraçou o coração de toda a humanidade. Pronto para servir, acatou a
sua missão e em seguida bradou como o Polegar Vermelho: ―Sigam-me os bons!‖84.

84
Ad-tempora.
101

Ninguém neste mundo de Deus está acima dos erros e das paixões
humanas.

(Dilma Rousseff, em entrevista ao El País).


102

5 CONCLUSÃO

O infortúnio da perda da loucura enlouquece. É isso que, agora compreendo,


diz Erasmo quando redige o Elogio da Loucura, diga-se de passagem, interpretando
a própria Loucura na primeira pessoa. Ele desafia: ―Que eles me digam então qual
instante da vida não é triste, tedioso, desagradável, insípido, insuportável, se não for
temperado pelo prazer, isto é, pela loucura‖ (2013, p.20). E aponta na dramaturgia
grega o fundamento que talvez reja a lógica das intempéries enfrentadas pelas
personalidades ao qual este trabalho recorreu para tornar nítida a explanação do
pessimismo através da perspectiva fenomenológica inserida na semiótica peirceana:
―A vida mais agradável é a que transcorre sem nenhuma espécie de sabedoria‖
(SÓFOCLES apud ERASMO, 2013, p.20). Afinal, diz ―A Loucura‖:

Ah! Se os homens renunciassem inteiramente à sabedoria e


passassem comigo o tempo inteiro de sua vida, eles ignorariam os
dissabores da triste velhice, e os encantos de uma juventude contínua
espalhariam a todo instante obre eles a alegria e a felicidade. Vede
esses homens magros, tristes e rabugentos que se dedicam ao estudo
da filosofia, ou a alguma outar coisa difícil e séria; (...) geralmente eles
se tornam velhos antes de terem sido jovens. Meus loucos, ao contrário,
sempre gordos, rechonchudos, trazem no rosto a imagem brilhante da
saúde e da fartura, como os porcos da Acarnânia. E, por certo, não
sentiriam nenhuma das fraquezas da velhice se não fossem sempre um
pouco afetados pelo contágio dos sábios. Mas o homem não foi feito para
ser perfeitamente feliz na terra (ERASMO, 2013, p.23, grifo nosso).

Ou seja, o pecado de Leopardi, Schopenhauer, Voltaire e Jesus, foi mesmo


o de renegar o conforto da sujeição. Refletir, ou abrir mão da Loucura, como expõe
Erasmo, os conduziu a uma série de percepções que eclodiram numa característica
comum: o fatalismo. Seria mais fácil se esses tivessem reflexões simplórias e
objetivas como as presentes no Código Bro, de Barney Stinson85 e Matt Kuhn.
Caso regras como o ―Um Bro86 sempre tem o direito de fazer coisas idiotas,
desde que seus Bros também estejam fazendo‖ (STINSON; KUHN. 2014, p.24)

85
Stinson é um personagem fictício. Porém, no livro em questão, ele aparece como autor. Ou seja,
neste caso, é o pseudônimo de um autor real.
86
―(...) um Bro é um companheiro em quem você pode confiar eternamente e que estará sempre
pronto a ajudá-lo‖ (STINSON; KUHN. 2014, p.13).
103

fossem as conclusões maiores do processo de abstração daqueles que renegaram


―A Loucura‖, como foi o caso dos nossos exemplos supracitados; sem dúvidas,
seria extremamente mais suave a visão da humanidade e da sociedade de acordo
com essas figuras. Porém, seria esta uma boa fortuna para a humanidade? Bem,
inicialmente, todos acreditariam em Bros. Por que falo isso? Porque apesar de ser
um conceito elaborado por um personagem humorístico, a existência de um Bro
parte do pressuposto da possibilidade da crença em alguém como humano. Com a
exceção dos pessimistas filantrópicos, que não são necessariamente fatalistas com
as pessoas, mas com o caminho da humanidade, os demais pessimistas
desacreditam esta hipótese, o que contrasta, por exemplo, com o que Jesus prega,
que em síntese diz ―sejamos todos Bros‖.
O que percebemos neste trabalho é que o pessimismo, apesar de
subjetivamente representar o péssimo que opõe o ótimo (otimismo), não é
necessariamente péssimo. O pré-conceito com o tema, tende a taxar o pessimista,
inexoravelmente, de ranzinza, quando na verdade, o pós-conceito, aponta este
pode, também, ser egrégio, não apenas pela compilação das suas reflexões acerca
das visões e cosmovisões de mundo, como vemos em Schopenhauer, mas também
pela atitude heroica de dedicar a sua vida àquilo que já está virtualmente
condenado, como vemos em Jesus e Voltaire, cada um do seu modo, o Jesus
Histórico, na prática, se torna um pessimista quanto percebe que, a partir da sua
cosmovisão as pessoas estarão condenadas de alguma maneira, dependendo
assim do seu sacrifício para que seja encontrada o que considera a salvação:

O Reino se constrói contra o império da opressão. Daí seu caráter conflitivo


do começo ao fim. Ao aumentar a resistência e o confronto, Jesus
lentamente se dá conta de que o Reino, apenas inaugurado por Ele, pode
fracassar. Isso o faz assumir com mais decisão o caminho do Servo
Sofredor e do Profeta Perseguido. Numa atitude de absoluta grandeza de
alma, Ele assume sobre si a recusa, os ―pecados‖ dos outros, para
atrair a misericórdia divina e para que ninguém fique excluído do
Reino. Já que não são alcançados pelo amor, o serão pelo perdão. Se
não forem alcançados pelo amor, o serão pela misericórdia e o
oferecimento do perdão (BOFF, 2013, p.100, grifo nosso).

Percebemos também a importância em diferenciar o Jesus Histórico do


Jesus da Fé, moldado através de um processo de cristificação a partir de uma série
de interpretações e versões apologéticas, que muitas vezes culminaram (e
culminam) na apologia demasiada de partes convenientes do todo da mensagem
104

transmitida pelo Jesus Histórico, conduzindo assim o culto cristão a um culto que
pode corroborar com atrocidades autoritárias, machistas, fundamentalistas, dentre
outras questões que não tornam errôneas as vistas de autores como Marx e
Nietzsche, por exemplo, acerca da influência do cristianismo no conjunto da
sociedade:

O sentimento religioso não é a fonte da arte política cristã? Não se funda no


sentimento religioso uma doutrina que possui o seu remédio na boa
disposição dos corações cristãos? Uma expressão sóbria do sentimento
religioso muito cheio de si, muito apaixonado aquele que procura o ―remédio
para os grandes males‖ na ―união dos corações cristãos‖, negando-o ao
―Estado e às autoridades‖. É um sentimento religioso muito apaixonado
aquele que – segundo admite o ―prussiano‖ – particulariza todo o mal
na falta de sentido cristão, remetendo as autoridades ao único meio
para reforçar esse sentido, à ―exortação‖. A disposição cristã é,
segundo o ―prussiano‖, o objetivo da ordem do gabinete. É claro que,
quando não é sóbrio, ele se considera o único bem. Lá onde descobre
males, ele os atribui à sua ausência, uma vez que, se é o único bem,
também é somente ele que pode produzir o bem (MARX, 2010, p.45-46,
grifo nosso).

Da mesma maneira, essa percepção de equívocos advindos da


interpretação do Jesus da Fé em detrimento do Jesus Histórico, também serviu de
nutriente para a redação de Voltaire:

Nada proíbe buscar reconduzir à razão os entusiastas e os fanáticos e


tentar demonstrar a eles a correção dos fundamentos da tolerância, o que
Voltaire faz em longas páginas ao denunciar o absurdo dos dogmas
que conduzem à intolerância, a contradição performativa dos cristãos
que perseguem em nome de um Deus ele próprio perseguido ou que
se valem de passagens da Escritura para justificar a intolerância, o
caráter contra produtivo do constrangimento em matéria de fé e das
perseguições no nível econômico e social, a impossibilidade real de atingir
um acordo nesses domínios que ultrapassam os limites da razão, a
desumanidade dos suplícios, a inversão dos valores que consiste em
punir mais severamente uma conduta irreligiosa do que uma conduta
imoral, o ridículo das controvérsias teológicas, tudo isso a fim de
conduzir os entusiastas não somente a tolerar as outras seitas cristãs mas
igualmente todas as opiniões contrárias às suas em nome de uma
fraternidade universal que o capítulo XXII do Tratado sobre a tolerância
[escrito por Voltaire] valoriza: ―Não é preciso uma grande arte, uma
eloquência muito rebuscada, para provar que os cristãos devem
tolerar-se uns aos outros. Vou mais longe: afirmo que é preciso
considerar todos os homens como nossos irmãos. O quê! O turco,
meu irmão? O chinês? O judeu? O siamês? Sim, certamente; porventu-
ra não somos todos filhos do mesmo Pai e criaturas do mesmo Deus?‖
(CHARLES, 2012, p. 36-37, grifo nosso).
105

No entanto, é notório que, talvez a compreensão da mensagem de tolerância


Jesus, como se pode observar, tenha conduzido Voltaire à profissão de fé cristã, no
fim da sua vida, como mostra a carta escrita pouco antes da sua morte:

Eu, o que escreve, declaro que havendo sofrido um vômito de sangue faz
quatro dias, na idade de oitenta e quatro anos e não havendo podido ir à
igreja, o pároco de São Suplício quis de bom grado me enviar a M. Gautier,
sacerdote. Eu me confessei com ele, se Deus me perdoava, morro na santa
religião católica em que nasci esperando a misericórdia divina que se
dignará a perdoar todas minhas faltas, e que se tenho escandalizado a
Igreja, peço perdão a Deus e a ela. Assinado: Voltaire, 2 de março de 1778
na casa do marquês de Villete, na presença do senhor abade Mignot, meu
sobrinho e do senhor marqués de Villevielle. Meu amigo (VOLTAIRE, 1778
apud AQUINO, 2009).

A importância deste estudo se dá para a comunicação a partir da missão


deixada por Peirce, quando atribui no seu edifício filosófico a fenomenologia como
precípua a qualquer estudo. A classificação dos signos é, portanto, de importância
fundamental para os estudiosos da semiótica e cabe aos pesquisadores avançar nas
perspectivas deste estudo (SANTAELLA, sd.). Ou seja: Peirce é, sobretudo, um
fenomenólogo (HAAPARANTA, 2002). É da fenomenologia que surge a precípua
para quaisquer estudos peirceanos, inclusive os que deságuam nas teorias da
comunicação. Ademais, a exposição de cunho filosófico é de extrema
compatibilidade com este pensamento já que: ―Uma teoria semiótica da
comunicação peirceana precisa compreender e incorporar as razões filosóficas que
fizeram Peirce caminhar no sentido de uma lógica da produção e compartilhamento
de informação‖ (ROMANINI. 2012. p.4).
Tendo cumprido com o seu papel no desenvolvimento do pensamento
peirceano, este trabalho de conclusão de curso não teve como objetivo polemizar ou
incomodar quem quer que seja. A escolha da figura de Jesus como parte do estudo
não possuiu qualquer caráter religioso, ou objetivo de tecer qualquer crítica a
qualquer tipo de fé. Deixo claro que respeito a multilateralidade e a pluralidade de
pensamentos, escolas, cosmovisões, etc.. Respeito, sobretudo a fé de quem quer
que seja. Mas clarifico que possuo sérias críticas ao positivismo, principalmente
quando inserido dentro das instituições acadêmicas, que ao contrário de vangloriar-
se por se portar como um poço de conservadorismo, deve se orgulhar quando busca
prática e sentimento progressista. É o positivismo quem contesta as ciências
humanas, sociais e sociais aplicadas, e que muitas vezes ridiculariza a pesquisa
106

acadêmica destes setores quando demonstrada a instabilidade dos seus resultados.


Isso não deve ser admitido. Curiosamente, é este mesmo pensamento que subjuga
os estudos inerentes às humanidades que fundamenta a vaidade e o sentimento
pejorativo de sabedoria que faz com que diversos membros da academia se jactem
de aparentemente saberem de algo, quando qualquer escola teórica séria
demonstra que além de tudo estar correto, mesmo suposto certo e suposto errado,
não sabemos de nada.
O próprio Peirce ao dizer que com o tempo necessário todos acreditaríamos
nas mesmas coisas87, conceitua a verdade absoluta para um caminho subjetivo e fiel
ao relativismo radical, que aponta que: enquanto não tivermos condições de viver o
tempo necessário, poderemos estar, sim, completamente enganados. Por mais que
essa questão doa para aqueles que igualam o nível intelectual à quantidade de
canudos colecionados, a realidade é que apenas a humildade servirá como
combustível inesgotável na busca pelos conhecimentos. Encerro este trabalho com
uma mensagem positiva e agradeço desde já a paciência dos que leram e me
auxiliaram incansavelmente nesta jornada.

87
Informação fornecida por Aloísio Nunes em aula na Universidade Federal de Alagoas; Instituto de
Ciências Humanas, Comunicação e Artes; curso de Comunicação Social; na matéria Teoria da
Comunicação II; primeiro semestre de 2012; ad-tempora.
107

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