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Santo André – SP
2020
Charlie Drews Tomaz dos Santos
Santo André - SP
2020
"O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001”.
AGRADECIMENTOS
The goal of this study is to analyze statements and discourses of science and biology teachers
of basic education about sex, gender, and sexuality, interconnected components of the matrix
of heteronormative intelligibility, according to misguided studies. To this end, we set up a focus
group with those teachers, in which we held a workshop on queer pedagogy with previous and
subsequent questionnaires, besides small dynamics and activities. Based on these results, we
focus on the speeches and productions of the participants to analyze them by the Foucaultian
speech analysis methodology combined with a destabilizing perspective of misplaced studies
in the foreground, as well as transfeminism and decolonial studies. From that, we come across
discursive utterances that point to an ambiguous understanding of what sex, gender, and
sexuality are, where essentialist and biologizing conceptions are predominant, but share space
with more cultural understandings about sex and gender. This is also revealed between a
compound of ambiguous understandings profiled, sometimes to cis-heteronormative discourse,
sometimes to second-wave feminism, with few flashes of occasion to a closer understanding of
trans-viability. It was also possible to check that the dualism between knowledge and ignorance
still prevails strongly and also a conception of humanist education that seeks for “inclusion” of
abject and monstrous bodies, disregarding that, often, the difference does not necessarily want
to be included.
Figura 7: Desenho da participante Melanie, retratando casal formado por uma pessoa de
estereótipo de gênero masculino ao lado de um(a) parceiro(a) de expressão de
gênero indefinida. .................................................................................................. 97
SUMÁRIO
Do It – Spice Girls
11
Acredito, assim como Nóvoa (2009), que a profissão docente é muita ligada à
autobiografia do professor, mas não só. Considero que podemos estender a reflexão de Nóvoa
para o pesquisador (ou cientista), que também é alguém que observa o mundo através do seu
corpo, carregado de sua história, de suas marcas, de seu pertencimento.
Há uma visão científica positivista ainda presente que enxerga o cientista como neutro.
Porém, algumas autoras como Haraway (1995) têm abordado a dimensão do saber localizado,
de que o saber é produzido a partir de um corpo, com todos os seus significados sociais,
culturais, biológicos e políticos, conforme já mencionado. A objetividade científica só seria
possível a partir desse segundo modelo de visão, em que há “epistemologias de alocação,
posicionamento e situação nas quais parcialidade e universalidade são a condição de ser ouvido
nas propostas e fazer conhecimento racional.” (ibid, p. 30). Portanto, eu só posso entender a
minha profissionalidade docente e desenvolver a minha pesquisa se considerar toda essa
dimensão do meu saber localizado em um corpo que tem a sua história. Considerar que o meu
saber profissional enquanto docente está ligado a minha pessoalidade.
Dito isto, posso começar apontando duas percepções que se apresentaram em minha
vida desde muito cedo, quando ainda criança: a vontade de ser professor e a sensação de ser um
menino diferente.
Desde a pré-escola (educação infantil) sempre fui um dos alunos preferidos das
professoras (sim, todas elas mulheres, ao menos nas primeiras etapas da educação básica):
estudioso, caprichoso, educado e disciplinado, literalmente o arquétipo foucaultiano do corpo
dócil engendrado pela maquinaria escolar (FOUCAULT, 1997). Brincar de escolinha,
principalmente no papel de professor, sempre foi uma das diversões infantis prediletas, a ponto
de obrigar meu próprio pai – uma pessoa praticamente semialfabetizada – a assistir minhas
aulinhas. Enfim, era eu, sem dúvida, o “bom escolar” atento ao sinal escolar descrito por
Foucault (ibid, p. 140).
masculinidade da nossa sociedade encoraja valores tais como força, violência e a agressividade.
Como aponta Louro (2000), se constrói no espaço escolar uma “pedagogia da masculinidade”.
Neste sentido, conforme referência que Louro (2018, p. 20) faz de Corrigan (1991):
Eu, porém, ainda no que era à época o fundamental I (hoje anos iniciais do fundamental),
já percebia algo que poderia ser mais mal visto do que a não disposição para esportes ou a pouca
agressividade ou malandragem: a atração sexual que tinha por outros meninos. Ser vítima de
homofobia foi uma constante no espaço escolar, pois como diz Junqueira (2009, p. 51), “a
homofobia faz parte de nossas rotinas diárias. Ela é consentida e ensinada nas escolas”. Não
demorou, pois, para que desde colegas de classe até membros da própria família começassem
a perceber toda essa “monstruosidade”, e eu passasse a ser uma criança marcada socialmente
como “viadinho”. É comum que os teóricos transviados/queer usem a metáfora do “monstro”
para descrever todos aqueles que “moram nos portões da diferença”, mas que são necessários
para a constituição das identidades socialmente desejáveis:
Minha “saída” oficial do “armário” se deu aos dezesseis anos de idade. Foi uma saída
parcial, pois conforme apontado por Sedgwick (2007, p. 22), “até entre as pessoas mais
assumidamente gays há pouquíssimas que não estejam no armário com alguém que seja pessoal,
econômica ou institucionalmente importante a elas”. Diria que para todos os “monstros”, e
especialmente para aqueles que são os dissidentes do regime heteronormativo, o “armário” é
uma presença constante, através da qual nos movemos no mundo.
1
Miskolci (2012) se refere a “terrorismo cultural” como a forma de imposição social e cultural dos
padrões de gênero, que pode ser feito desde as formas mais sutis até àquelas que envolvem a
violência explícita.
14
fronteira. Sou ao mesmo tempo um corpo marginal e um representante deste mesmo poder
disciplinar, pois por mais que eu procure não ser a caricatura do professor autoritário, como do
clássico vídeo Another brink in the wall2, eu necessito trabalhar alguma dose necessária de
disciplina nas aulas, exercendo um poder disciplinador. Em muitos momentos da minha vida
professoral, como estratégias de sobrevivência, tive que ficar, sair, retornar, sair de novo do
armário, vivendo na pele toda a epistemologia do armário de Sedgwick (2007).
Nesse sentido, desenvolver uma pesquisa acadêmica que aborde tais temas é uma forma
de trabalhar melhor com todos os “armários” que socialmente carregamos, e, quem sabe, torná-
los um pouco menos pesados. Conforme apontado por Tavares (2018), as “vozes dissonantes
de gênero e de sexualidade no espaço escolar, insistem em produzir rachaduras nessa matriz
cisheteronormativa”. (p. 36). Talvez o que nos caiba é reforçar essas rachaduras.
2
THE WALL . Produção de Alan Parker. Reino Unido: Metro Goldwyn Mayer, 1982. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?time_continue=14&v=PEQEgpyrQ3Q&feature=emb_logo. Acesso em: 30
nov. 2019.
3
Tasmin Spargo (2017) explica que heteronormatividade é um sistema que compreende a heterossexualidade
como norma. Parte do movimento transgênero também já cunhou o termo cisnormatividade para se referir ao
sistema que coloca a “cisgeneridade” como centro da norma, conforme apontado por Colling (2018).
15
tendência que Ribeiro (2008) e Miranda (2011) apontam.Toda essa normatividade não era à
toa, pois, traçando uma genealogia do ensino de ciências e de biologia na educação básica
brasileira, Lorenço & Mendonça (2018) apontam que, a partir do golpe militar de 1964, houve
a introdução de um tecnicismo didático nestas disciplinas escolares, o que, de certa forma,
permaneceu parcialmente mesmo após a redemocratização. Neste sentido, apontam que “a
biologia, se apenas responsável por questões tecnicistas, não constrói concepções de
sexualidade em perspectiva ampla”. (p. 19).
Laqueur (1996) já nos coloca há muito a existência de evidências que mostram que o
dimorfismo sexual – tão consagrado pelas aulas que assisti – foi uma invenção do século XVIII,
sendo que o que havia antes era a ideia do one-sex model. Segundo o autor, “as mulheres eram
essencialmente homens nos quais uma falta de calor vital - de perfeição - havia resultado na
retenção, interna, de estruturas que nos machos eram visíveis”. (LAQUEUR, 1990, p. 04). De
16
toda forma, esse tipo de discussão sobre a historicidade do sexo não foi sequer ventilada ao
longo da minha educação básica.
Trabalhar, por exemplo, sobre o preconceito que pessoas soropositivas enfrentam não
era pauta de aula, mesmo os PCN sugerindo que tal tema seja pautado (BRASIL, 1999). Pairava
no ar a inculcação de que pessoas portadoras de infecções sexualmente transmissíveis eram
“culpadas” por seus atos sexuais e não seriam merecedoras da nossa atenção.
Silva (2015), porém, nos chama a atenção para não cairmos no erro fácil de
simplesmente acusar a educação em sexualidade (quando) ministrada nas escolas como sendo
“biologizante”, entendendo essa característica como simplesmente oposta a uma abordagem
mais social/cultural. Afirma ela que “é possível defender que o texto da biologia, a produção
biológica, é também cultural”, e que “o texto sobre sexualidade produzido pela Biologia seria
um texto cultural, marcado pela invenção desse campo da ciência.” (p. 04). Posto isso, nosso
trabalho parte do entendimento de que as abordagens mais tradicionais de educação em
4
Hoje se usa preferencialmente a expressão IST: infecção sexualmente transmissível. Ver:
http://www.saude.gov.br/saude-de-a-z/infeccoes-sexualmente-transmissiveis-ist Acesso em: 17 jun. 2019.
17
sexualidade tem sim um forte viés biologizante, mas sem desconsiderar que o próprio discurso
biológico – e também o biologizante – são produtos culturais. E justamente por serem produtos
culturais, apropriar-se destes discursos é fundamental para que possamos romper com eles.
Há, em alguma medida, o entendimento de que a educação sexual seja função prioritária
das aulas e dos docentes da área de ciências e biologia (COELHO, 2013, p. 79), estando tal
concepção presente nos currículos, como o do Estado de São Paulo, conforme analisado por
Miranda (2011), ao observar as matrizes curriculares das disciplinas do Ensino Fundamental II
(hoje anos finais do fundamental) e Ensino Médio e concluir haver uma forte predominância
dos temas de sexualidade nos currículos de Biologia e Ciências, em detrimento das demais
disciplinas escolares. (MIRANDA, 2011, p. 5). No mais, César (2009, p. 49) aponta para o fato
de o currículo escolar, independentemente da disciplina em questão, ser inserido em uma matriz
masculina e heterossexual.
e de gênero para além da pura biologia, fizeram com que o Governador João Dória (PSDB)
optasse por recolhê-las5 ao apostar em uma política claramente conservadora, mas que
respondia a um avanço considerável na produção de materiais didáticos mais alinhados a outras
perspectivas de educação em sexualidade para além da tradicional.
Ainda sobre isso, é importante perceber a disputa em torno da temática, pois, de acordo
com Lourenço & Mendonça (2018, p. 20), a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), que
pretende substituir os PCN, traz o tema da sexualidade dentro da disciplina específica de
Ciências, rompendo assim com a transversalidade proposta. No mais, ainda de acordo com os
mesmos autores, a BNCC reproduz ainda uma visão de sexualidade muito atrelada ao biológico
e ao reprodutivo.
A educação sexual não se finda na educação básica, se estende inclusive para a formação
superior. Nesta etapa da minha formação, ela se deu não tanto relacionada aos estudos
universitários em si, mas principalmente tendo por base a militância estudantil LGBT6 com a
qual me envolvi na Universidade de São Paulo, instituição da minha primeira graduação. Foi aí
que entrei em contato pela primeira vez com a discussão sobre as diferenças sobre os conceitos
de sexo, gênero e sexualidade, assistindo a uma apresentação que tratava sobre o tema na
semana dos calouros de 2004.
5
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/09/03/doria-manda-recolher-livros-de-ciencia-que-fala-sobre-
diversidade-sexual-nao-aceitamos-apologia-a-ideologia-de-genero.ghtml Acesso em 21 de set. 2019.
6
Optamos pela sigla LGBT por ser a que mais se aproxima à sigla que de fato utilizamos na época (meados da
década de 2000), que ainda era GLBT. Tal mudança se deu como forma de dar maior visibilidade para as lésbicas.
Hoje, siglas como LGBTI ou LGBTQI+ são mais utilizadas, por serem mais inclusivas.
19
congressos estudantis, sempre esteve presente a noção identitária e de orgulho da mesma, que
enxergávamos como sendo uma expressão da nossa natureza interior, bem ainda nos moldes do
entendimento do modelo étnico de movimento gay e lésbico apontado por Spargo (2017) e
García (2005). De repente, então, chega de relance a ideia queer, chacoalhando nossas certezas
identitárias. Mais além, até mesmo a ideia de que há um sexo feminino e um sexo masculino
poderia ser questionada, pois também se trata de uma formação histórico-social, tal qual a
própria noção de identidade sexual, conforme já apontado por Laqueur (1996). Resumindo,
praticamente todas as identidades seriam configurações histórico-sociais, não refletindo
nenhuma natureza anterior pré-discursiva.
Claro que nessa introdução optamos por simplificar alguns pressupostos das ideias
transviadas/queer, e como já dito, teremos oportunidade de nos aprofundarmos mais
adequadamente em suas reflexões ao longo da pesquisa. Porém um entendimento prévio se faz
necessário: O queer não é sinônimo de gay ou LGBT, justamente por trazer a reflexão sobre o
pós-identitário:
7
Colling (2018) argumenta que o movimento LGBT brasileiro sofreu determinados impactos dos estudos queer,
resultando em uma tensão entre a apropriação de determinadas reflexões da teoria queer e a persistência em
valorizar políticas identitárias e a reproduzir até mesmo certo essencialismo biologizante como fator de explicação
para a origem destas mesmas identidades.
20
Não nos parece, contudo, que almejar uma política pós-identitária signifique
necessariamente uma política “anti-identitária”. A questão seria mais profunda que isso, seria
se abrir para as possibilidades políticas advindas da problematização da própria categoria de
sujeito, entendendo que a “produção capitalística desse sujeito é sempre limite, tangencial”
(XAVIER, 2019, p. 161). Carvalho (2014), neste sentido, também aponta:
[...] não considero que a teoria queer negue as articulações políticas a partir
das identidades historicamente constituídas, mas se apresenta como um dos
campos de estudo que permite que extrapolemos fronteiras enrigessidas,
incluindo aquelas estabelecidas para o reconhecimento dos sujeitos políticos
dos movimentos sociais. (p. 75).
Todavia, não estávamos, a época, tão abertos para entendermos que, conforme apontado
por Salih (2012, p. 23), problematizar o sujeito pode significar reconstruções que transformem
as próprias estruturas do poder.
Hoje não estou mais inserido diretamente na militância LGBT e tenho me dedicado nos
últimos anos à docência na educação básica, enfrentando as dores e as delícias da profissão.
Particularmente, ao lecionar História, sempre busco trabalhar questões de gênero com meus
alunos. Os próprios programas e materiais didáticos da disciplina trazem de alguma forma a
temática: o papel das mulheres em diferentes tempos e espaços, os conceitos de masculinidades
ao longo do tempo, a revolução sexual da década de 1960, etc. Tais conteúdos podem ou não
ser ampliados para uma discussão mais geral sobre gênero e sexualidade, mas fato é que sujeitos
não heteronormativos continuam inviabilizados até mesmo nos conteúdos e materiais da
disciplina que leciono. Eventualmente até eu mesmo me pego negligenciando determinadas
temáticas, pressionado pelos prazos curriculares.
Resumidamente, poderia então dizer que meu interesse pelo queer/estudos transviados
nasceu do fato de ter me percebido, desde cedo, uma criança diferente, e ter sofrido certa
violência por conta disso. Nesse sentido, Lourenço (2017) aponta que o próprio entendimento
do que seja queer perpassa a dimensão particular, que lhe permite adquirir, a partir disso, sua
dimensão política:
O queer aparece, portanto, como uma possibilidade para que o “monstro” que sou possa
existir e resistir, pois só através da implosão das normas e da exaltação das diferenças é que tal
possibilidade pode vir a acontecer. No mais, conforme aponta Jesus (2014), há dois tipos de
teoria: as que ferem os corações de seus defensores e aquelas que são “confortáveis”. No seu
entendimento, o transfeminismo – e aqui também aponto o queer, tendo ciência de que há
semelhanças e diferenças entre os dois campos teóricos8 – seriam teorias do primeiro tipo, pois
“não se conhece suas premissas e consequências sem que elas passem o dedo no glacê do bolo
de aniversário das nossas certezas.” (JESUS, 2014, p. 05). E posso afirmar que me debruçar
sobre esse campo teórico mexeu com muitas questões pessoais (se é que há pessoa!). O jeito,
então, é se jogar de vez no bolo e se lambuzar com a bagunça.
Como a escola poderia se tornar um lócus de produção da diferença quando é nela que
as crianças tornam-se corpos normatizados? Observar e identificar, pois, os entendimentos de
professores da área de Ciências e de Biologia acerca do tripé sexo, gênero e sexualidade,
utilizando como ferramenta de interpretação a análise do discurso associada aos entendimentos
desestabilizadores da literatura transviada/queer, é, conforme já dito, o objetivo principal da
nossa pesquisa. E a partir deste objetivo principal, podemos também inferir sobre a
possibilidade de transenviadescer/queerizar a educação em sexualidade, seja ela ministrada no
ensino de ciências e de biologia ou não.
8
Ver Jesus (2014) e Vergueiro (2015).
22
2 TRANSENVIADESCENDO A ACADEMIA
Em 2017, uma grande polêmica tomou de assalto o Brasil: grupos de direita acusavam
a exposição “Queer museum” 9
de expor obras que supostamente “erotizavam” crianças e
promoviam a zoofilia. Mas afinal de contas, o que é esse tal de queer que tanto vem chamando
a atenção de diferentes segmentos da sociedade? Laerte (2013) tentou esboçar através de sua
arte algum entendimento sobre o que seria o queer, ao ser convidada pelo caderno “Ilustrada”,
do jornal “Folha de S. Paulo”, para fazer uma resenha em desenho da obra Judith Butler e a
teoria queer, de Sara Salih.
9
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/11/politica/1505164425_555164.html. Acesso em: 02 fev. 2019.
25
Nota-se que Laerte reconhece, em seu desenho, não dominar todos os complexos
conceitos abordados na obra a que se refere. Todavia, algumas explicações contidas nos
quadrinhos nos dão pistas importantes sobre o queer, principalmente ao público mais geral, não
tão familiarizado com as discussões levantadas pelo livro em questão, o que se aplica ao próprio
pesquisador, que possuía uma ideia extremamente vaga sobre o queer, tendo, então, um contato
um pouco mais aprofundado com o tema a partir da obra de Laerte.
De antemão, ao falarmos em “teoria queer”, temos que ter bem claro que não estamos
no referindo a uma teoria definida, pois tentar definir o que não pretende ser definido já seria
em si uma contradição. Colling (2018) inclusive aponta preferir a expressão “estudos” a
“teoria”, entendendo que “esta última dá a ideia de que existe uma teoria fechada em torno de
determinados temas, o que não acontece com o queer” (p. 516). Louro (2018, p. 98) também
concorda, ao colocar que “num sentido bem tradicional, talvez a palavra “teoria” não seja
apropriada, mas a expressão se consagrou”. Cremos, todavia, que um bom começo seja
considerar o significado da própria palavra. Queer é uma palavra de origem inglesa, sem
tradução literal para o português, cujo significado seria algo próximo a excêntrico, estranho
(LOURO, 2018). Sua raiz etimológica, segundo Salih (2012, p. 19) seria o latim torquere, que
significa “torcer”, nos trazendo um sentido muito interessante, pois de torquere se deriva o
10
A associação entre os corpos abjetos estudados pela teoria queer com a figura do “monstro” é aprofundada na
obra “Pedagogia dos monstros”, organizada por Tomaz Tadeu da Silva e lançada pela Editora Autêntica, em 2000.
26
particípio tortus, origem da palavra “torto” 11em português. Vemos aí, de fato, que queer é por
excelência o torto, aquele/aquela/aquilo que se recusa a seguir o caminho “reto” ditado pelos
padrões normativos. Pelúcio (2014) inclusive opta por chamar o queer de teoria torcida.
Durante muito tempo a palavra em questão foi utilizada como xingamento destinado
principalmente àqueles que não se encaixavam nas regras da heteronormatividade. Numa
concepção ampliada, ainda tomando queer enquanto adjetivo ou substantivo, também incluiria
todos aqueles que não se encaixam nos perfis da norma, independentemente da orientação
sexual ou da identidade de gênero, pois, conforme Silva (2000), seriam todos aqueles que são
vistos como monstros12. Portanto, neste entendimento, queer não é sinônimo, necessariamente,
de homossexual. Os “hetero-queers” (MISKOLCI, 2012) existem, pois seriam pessoas com
orientação sexual direcionada para pessoas do sexo oposto, mas que não se encaixariam nas
normas estabelecidas socialmente. Queer, portanto, não seria um simples “termo guarda-chuva”
para as múltiplas identidades sexuais divergentes – inclusive heterossexuais – mas sim a
proposta de uma postura contestatória da heteronormatividade, conforme apontado por Louro
(2018):
Queer passou a ser, então, mais do que o qualificativo genérico para gays,
lésbicas, bissexuais, travestis, transgêneros de todas as colorações. A
expressão ganhou força política e teórica e passou a designar um jeito
transgressivo de estar no mundo e de pensar o mundo. Mais do que uma nova
posição de sujeito, queer sugere um movimento, uma disposição. (p. 84).
Cabe observar, contudo, que embora a palavra queer tenha sido usada originalmente na
ambiguidade entre ser morfologicamente um substantivo e um adjetivo (SPARGO, 2017, p.
13), seria possível entender o termo enquanto verbo (SOUZA, 2017), sendo o queer, nesta
concepção, mais uma ação e/ou uma analítica. Podemos, portanto, “pensar queer”, “analisar
queer”, “refletir queer”. Dito isso, fica claro que o queer tem o potencial para analisar todas as
identidades, inclusive as ditas “normais”. Aliás, mais justo ainda seria pensarmos
preferencialmente sobre essas identidades “normais”. Colling (2018), afirma ser característico
do queer “a rejeição a qualquer ideia de normalização e a problematização das categorias que
estão em zona de conforto, como a heterossexualidade”. (p. 517). Lembremos que é
extremamente comum as pessoas pensarem e discutirem sobre as “origens” ou “causas” da
homossexualidade e da transexualidade, mas raramente as mesmas questões são lançadas para
11
https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/Torto. Acesso em: 03 mar. 2019.
12
Segundo Cohen (2000, p. 27), o “monstro existe apenas para ser lido: o monstrum é etimologicamente, “aquele
que revela”, “aquele que adverte”.
27
Consideramos que a tradução em “teoria cu” e “teoria transviada” são pertinentes, assim
como possíveis outras traduções livres para o português que podemos colar ao termo original
em inglês. Mantivemos a expressão queer mais destacada no início desta pesquisa (embora
eventualmente acompanhada do termo “transviado” e derivados), sendo que, a partir deste
ponto, objetivando coerência com um posicionamento decolonial, adotaremos majoritariamente
a expressão teoria transviada ou estudos transviados, conforme apontado por Bento (2014),
sendo que o termo queer poderá aparecer, mas de forma secundarizada.
13
Ver: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1705201107.htm. Acesso em: 02 mar. 2019.
14
Miskolci (2012) aponta que foram feministas mulheres e homens os responsáveis pela criação da teoria queer,
sendo ela, portanto, uma “vertente do feminismo”.
28
em uma disputa jurídica. Isso nos mostra que, apesar de queer não ser hoje um termo
unicamente ligado às questões de dissidência sexual e de gênero, na origem, seu uso era voltado
a esses dissidentes.
Em alguma medida, homossexuais também podem quebrar essas regras de gênero, mas
nem sempre isso acontece. Os gays podem sim ser heteronormativos, performando uma
masculinidade – ou feminilidade, no caso das lésbicas – dentro dos padrões esperados pelo
status quo, conforme apontado por Miskolci (2012):
García (2005) também aponta que, de meados dos anos 1970 até parte da década de
1980, o movimento gay foi se aproximando do chamado “modelo étnico”, buscando uma
integração e a conquista de direitos sociais na sociedade capitalista e heterossexual. Não havia
mais a intenção, em muitos grupos de militância, de uma transformação radical da sociedade,
com a eliminação do capitalismo e a busca por uma sexualidade original polimorfa e/ou
bissexual, segundo o autor. A bandeira agora era lutar pela inclusão dos gays na sociedade
(LOURO, 2018, p. 29), lutando pela ampliação dos direitos civis e reforçando a questão
identitária. De toda forma algo unia tanto o modelo liberalista quanto o modelo étnico, segundo
García (2005), que apontou para o fato de ambos serem essencialistas, com a diferença do
primeiro ser um “essencialismo universalista” e o segundo um “essencialismo da
particularidade”. (ibid, p. 43). Ainda segundo o mesmo autor, o movimento lésbico havia, neste
tempo, se separado do movimento gay e buscado um ideal separatista, criando comunidades
homossexuais femininas isoladas, o que também é confirmado por Louro (2018).
Salih (2012) indica que é nesse contexto que emerge o queer como uma resposta a toda
a reação conservadora impulsionada pela aids, procurando “investigar as formulações da
“normalidade sexual” para revelar o que, sobretudo aquelas identidades que se apresentam
ostensivamente como héteros, legítimas, singulares e estáveis, têm de queer por debaixo de sua
aparente “normalidade”. ”(p. 20).
15
Sigla de “AIDS Coalition to Unleash Power”. (SPARGO, 2017).
30
Era, portanto, uma reação contra a abjeção reforçada que a aids causava, não só, mas
principalmente aos homossexuais masculinos. Não havia mais tanta esperança de inserção, tal
como existia no “modelo étnico”. Já o Queer Nation e o Pink Panthers faziam campanhas de
conscientização, intervenções em bares e manifestações artísticas (ibid, p. 31). Neste aspecto,
retomamos Colling (2013) que, ao dissertar sobre as políticas da diferença (que podemos
associar à perspectiva transviada), aponta que estas “priorizam as estratégias políticas através
do campo da cultura, em especial através de produtos culturais, pois os/as ativistas entendem
que os preconceitos nascem da cultura” (p. 409), ao passo que o ativismo LGBT mais
tradicional, alinhado ainda a um paradigma do “modelo étnico”, daria mais ênfase às ações de
conquistas nos marcos legais, tais como as bandeiras pela legalização do casamento
homoafetivo e pela criminalização da homofobia. Tais pautas são relevantes, mas em um
contexto de auge da epidemia de aids e de fortalecimento da abjeção aos corpos divergentes, os
grupos ativistas transviados/queer preferiram ampliar as possibilidades de intervenção social e
cultural para além da luta legalista.
16
Todavia, o próprio Colling (2018) reconhece que os estudos queer influenciaram, em alguma medida, o
movimento LGBT brasileiro, inclusive trazendo a pauta da problematização da heterossexualidade como regime
político.
31
Ter, pois, em mente que Lauretis pretendia “queerizar” a teoria ao invés de formular
uma teoria, é imprescindível para entendermos que o queer não é um conjunto teórico coeso.
Souza e Carrieri (2010), inclusive, optam por falar em analítica queer no lugar de teoria queer.
Portanto, apesar da terminologia “teoria queer” ser facilmente encontrada em parte dos estudos
acadêmicos que abordam a temática, fato é que a expressão pode enganar, pois “a teoria queer
não é uma teoria somente porque ela não tem um corpo sólido, unificado e consistente, mas
exatamente porque, para ser efetiva em seu propósito, precisa resistir às forças que a querem
estabilizar e normalizar.” (SOUZA, 2017, p. 311).
Colling (2018) aponta, todavia, que a reflexão sobre o queer (transviado) pode ser
considerada anterior ao próprio uso da palavra no Brasil. Para tal, argumenta que o transviado,
apesar de não ser uma “teoria” definida, conforme já comentamos, apresenta algumas
32
Por fim, não podemos deixar de apontar que no Brasil a “teoria” transviada apareceu
primeiro na academia, e não nos movimentos sociais e políticos, como foi originalmente nos
EUA (PELÚCIO, 2016). Entretanto, aos poucos, o transviado tem influenciado parcialmente o
próprio movimento LGBT brasileiro (COLLING, 2018), mesmo que tal influência não seja
absoluta e viva a tensão com os aspectos essencialistas e identitários ainda presentes nestes
movimentos. Sobre as influências, podemos perceber, segundo o autor, a introdução do conceito
de heteronormatividade, um maior entendimento das pautas e lutas transgêneras e a
problematização da heterossexualidade.
No que diz respeito às formulações mais teóricas dos estudos da área, enquanto “teoria”,
análise ou campo de estudos, é comum apontar que a “teoria” transviada teria surgido nos EUA,
resultante de uma “aliança (às vezes incômoda) de teorias feministas, pós-estruturalistas e
psicanalíticas que vinha se fazendo sobre a categoria do sujeito”. (SALIH, 2012, p. 19).
Conforme vimos anteriormente, muito do que viria a ser a produção teórica-acadêmica sobre o
assunto bebeu do ativismo queer/transviado dos anos 1990, buscando, contudo, bases teóricas
em autores que vieram antes do surgimento destes mesmos ativismos.
17
Temporalidade sugerida pelo próprio Colling (2013).
33
Ora, o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja
concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos
de dominação não sejam atribuídos a uma ‘apropriação’, mas a disposições, a
manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos; que se desvende nele antes
uma rede de relações sempre tensas, sempre em atividade, que um privilégio
que se pudesse deter. [...] Esse poder, por outro lado, não se aplica pura e
simplesmente como uma obrigação ou uma proibição, aos que “não têm”; ele
os investe, passa por eles e através deles; apoia-se neles, do mesmo modo que
eles, em sua luta contra esse poder, apoiam-se, por sua vez, nos pontos em que
eles os alcança. (FOUCAULT, 1987, p.26).
Dito de outro modo, o poder não é algo que está concentrado nas mãos de um conjunto
limitado de pessoas e/ou instituições, mas sim um “poder pulverizado, presente em todas as
relações e em todos os lugares”. (FISCHER, 2012, p. 56). A resistência nasce das próprias
relações de poder. “A compreensão da resistência como intrínseca e não externa às relações de
poder, uma resistência entranhada no tecido social, no cotidiano, no banal, combina com o
queer”. (LOURO, 2018, p. 86). Também um dos mais importantes referenciais teóricos
foucaultianos para os estudos transviado foi a compreensão da sexualidade como dispositivo
discursivo, sendo que “os estudos queer assumem o caráter discursivo da sexualidade”. (ibid,
p. 86). Conjugando, pois, as compreensões de poder produtivo e de sexualidade como
dispositivo, passamos a entendê-la – a sexualidade – como um fenômeno entranhado nas
relações de poder, o que fez com que Foucault negasse a chamada “hipótese repressiva” em
prol da constatação da proliferação de discursos produtivos sobre o sexo, principalmente a partir
do século XIX (SPARGO, 2017, p. 15). Especificamente sobre a homossexualidade, Foucault
a enxerga como uma construção discursiva da medicina da época, que se diferencia da sodomia
de épocas anteriores:
servir de data natalícia – menos como um tipo de relações sexuais do que como
uma certa qualidade da sensibilidade sexual, uma certa maneira de interverter,
em si mesmo, o masculino e o feminino. A homossexualidade apareceu como
uma das figuras da sexualidade quando foi transferida, da prática da sodomia,
para uma espécie de androgenia interior, um hermafroditismo da alma. O
sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie.
(FOUCAULT, 2003, p. 43-44).
Aqui, é interessante notar que uma conclusão possível da tese de Foucault é que a
heterossexualidade é tão produzida discursivamente quanto a homossexualidade. Destacamos
Katz (1996) como um autor que se aprofunda nesta questão, afirmando que a
heterossexualidade foi um produto da sociedade burguesa do século XIX, necessitada de uma
definição identitária que fizesse contraponto às perversões descritas pela medicina de então,
tais como a homossexualidade. “A invenção da heterossexualidade nomeava publicamente,
normalizava cientificamente e justificava eticamente a prática da classe média de prazer de sexo
diferente”. (KATZ, 1996, p. 134). A influência foucaultiana é dada ao se constatar a produção
discursiva de todas as sexualidades, inclusive da heterossexualidade.
Percebemos, portanto, que embora Foucault não possa ser considerado uma espécie de
“pai” da “teoria” transviada, é inegável a contribuição de suas reflexões para os estudos da
abjeção. E nem seria justo atribuir essa importância única a um autor específico, pois, se
Foucault foi importante, não foi o único. Podemos destacar a contribuição inegável de autores
como Gayle Rubin, Monique Wittig, Judith Butler e Paul B. Preciado para o desenvolvimento
do pensamento queer (transviado) (POMBO, 2017).
Ao firmar que “a heterossexualidade é uma tecnologia social e não uma origem natural
fundadora” (PRECIADO, 2017, p. 30), temos mais um vestígio da clara influência de Wittig
no posterior desenvolvimento teórico do transviado. Toda essa confluência teórica leva, ao
contrário do “modelo étnico” que busca mostrar que a homossexualidade é tão “natural” quanto
a heterossexualidade, o transviado ousa propor o contrário: assumir a não-naturalidade de
nenhuma sexualidade, principalmente da heterossexualidade. Colling (2018) reforça que a
crítica à heterossexualidade como categoria “natural” é prática comum da analítica transviada.
Butler (2017) é outra autora importante para os estudos transviados de acordo com
Pombo (2017). Destacamos aqui suas seguintes reflexões: a problematização de uma categoria
identitária fechada para a ação política, o conceito de performatividade do gênero, a denúncia
à matriz de inteligibilidade entre sexo, gênero e desejo e por fim o conceito de
heterossexualidade melancólica.
sujeito em crise, sendo ela entendida ao modo foucaultiano como produto das relações de poder,
entender “a mulher” como “o sujeito” do feminismo seria desconsiderar todo o debate que vinha
até então se estabelecendo sobre a categoria sujeito. “A crítica feminista deve compreender
como a categoria das “mulheres”, o sujeito do feminismo, é produzida e reprimida pelas
mesmas estruturas de poder por intermédio das quais busca a emancipação”. (BUTLER, 2017,
p. 20). Daí podemos encontrar uma diferença fundamental com Wittig, que ao pretender uma
sociedade lésbica, ainda se prende ao sujeito identitário (no caso, a lésbica) como fundamento
da ação política. Toda a crítica ao sujeito fomentará a política pós-identitária “ao alertar para
o fato de que uma política de identidade pode se tornar cúmplice do sistema contra o qual ela
pretende se insurgir”. (LOURO, 2008, p. 43).
18
Pedro (2006) argumenta que o feminismo de segunda onda é aquele focado na luta por direitos sexuais e inserção
da mulher no mercado de trabalho, além dos debates sobre questões de gênero. Difere da primeira onda do
feminismo, focada na luta pelo sufrágio universal. É possível considerarmos o feminismo pós-estruturalista, o pós-
feminismo e o queer como elementos da terceira onda do feminismo.
37
(ibid, 2017, p. 25). Aqui não se trata apenas de afirmar que determinados comportamentos
culturais são incentivados em homens e em mulheres, e que esses mesmos comportamentos de
gênero são inscritos sobre um sexo biológico pré-discursivo e a-histórico. Mas sim de constatar
o quanto de produção sociocultural-discursiva está embutido na própria ideia do binarismo
sexual entre homem e mulher, que desconsidera, inclusive, a existência biológica de corpos
intersexuais, como a própria medicina reconhece (mesmo que com vieses biopolíticos, diga-se
de passagem), como apontado por Spinola-Castro (2004).
Tal ideia - o binarismo de sexo ser um constructo discursivo e histórico - pode parecer,
inicialmente, contra-intuitiva, mas Butler não foi a única autora a se debruçar sobre essa
questão. Exemplificando historicamente, Laqueur (1996) indica que a noção de diferença entre
os sexos (estrutura binária) no ocidente só surgiu e se consolidou entre os séculos XVIII e XIX,
antes prevalecendo o que o autor denomina de “one-sex model”. A mulher era vista como
representante inferior de um único sexo, como um tipo de homem invertido. Isso converge para
a proposição de Butler, ao colocar em xeque a naturalização do sexo. Se adentrarmos, inclusive,
o terreno da discussão biológica, que não é necessariamente transviado, mas que ajuda a
exemplificar nuances do debate, veremos alguns limites do binarismo sexual ocidental Neste
sentido, a bióloga Fausto-Sterling (1993) argumenta que o modelo sexual binário não dá conta
da pluralidade de possibilidades de configuração sexual do ponto de vista da própria biologia,
sendo possível falarmos biologicamente na existência de, no mínimo, cinco sexos.
Teria o sexo uma história? Possuiria cada sexo uma história ou histórias
diferentes? Haveria uma história de como se estabeleceu a dualidade do sexo,
uma genealogia capaz de expor as opções binárias como uma construção
variável? [...] Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio
construto chamado “sexo” seja tão culturalmente construído quanto o gênero.
(BUTLER, 2017, p. 27).
sexual tem sim uma história, e que, portanto, o gênero “também é o meio discursivo/cultural
pelo qual” a natureza sexuada” ou “um sexo natural” é produzido e estabelecido como “pré-
discursivo”” (ibid, p. 27). Dito de outro modo, o gênero cumpre sua função de mascarar a não-
naturalidade do sexo binário. Aliás, Spargo (2017) aponta para o fato de Butler ter sido
influenciada por Foucault na construção destas formulações, pois “Butler observa que, no final
da introdução de História da sexualidade, Foucault argumenta que o “sexo” em si é uma
categoria fictícia”. (ibid, p. 42). E retomando seu pensamento sobre performatividade, essa
categoria fictícia que é o sexo necessitaria constantemente da reiteração dos atos performativos:
A análise butleriana constrói a ideia de uma matriz de inteligibilidade entre sexo, gênero
e sexualidade, alicerce da sociedade hetero-cisnormativa. “A consequência é a produção de
linhas casuais de ligação entre sexo biológico, a identidade de gênero e a expressão do desejo
sexual. Assim o sexo exige um gênero [...] e um desejo heterossexual” (POMBO, 2017, p. 392),
ou, conforme afirma Louro (2018, p. 74), “a concepção binária do sexo [...] impõe, portanto,
limites à concepção de gênero e torna a heterossexualidade o destino inexorável, a forma
compulsória de sexualidade”. Exemplificando, espera-se que todos os corpos possuam pênis ou
vaginas bem definidos (não se cogita a intersexualidade, ou caso ela aconteça, deve ser
cirurgicamente binarizada, conforme veremos nas análises de Preciado (2017), e que os corpos
que possuam pênis, por exemplo, reproduzam performaticamente o gênero masculino (cuja
reiteração constante dos atos criará a ilusão da performance ser “a natureza”), e que estes
corpos, por sua vezes, manifestem desejo exclusivo por corpos com vulva, que performem a
feminilidade. Se há sujeitos que quebram, em algum momento, a matriz de inteligibilidade, eles
se tornam, assim, sujeitos ininteligíveis (abjetos, monstros). O cruel de todo esse mecanismo é
que a própria matriz de inteligibilidade necessita do abjeto ininteligível como forma de
confirmação de si mesma:
Por fim, Butler trouxe o conceito de “heterossexualidade melancólica”, sobre o qual não
nos aprofundaremos em detalhe, mas cuja importância não nos permite deixá-lo de lado sem ao
menos alguma consideração, já que, segundo Salih (2012, p. 75) há forte influência de Freud
no pensamento de Judith Butler. A teoria psicanalítica freudiana coloca em debate a questão do
tabu do incesto relacionado ao complexo de Édipo, ao que Rubin, conforme já vimos,
acrescenta a questão do tabu da homossexualidade como anterior ao próprio tabu do incesto.
E qual a importância deste conceito para o transviado? Para responder a esta questão,
lembremos de que o transviado procura muito mais problematizar a naturalidade da
heterossexualidade – e também da cisgeneridade – do que o contrário, que seria procurar
explicações que justificassem a naturalidade das sexualidades e identidades de gênero não
hegemônicas. Analisando algumas influências dos estudos transviados sobre o movimento
LGBT brasileiro, Colling (2018) afirma que “essa influência colaborou para colocar no debate
a desestabilização da heterossexualidade como algo inato e natural”. (p. 520). Portanto, é
inegável que traçar uma genealogia da heterossexualidade como uma incorporação
melancólica, retira a heterossexualidade de sua “zona de conforto”.
40
Contudo, apesar da contribuição inegável de Butler, suas ideias não estão livres de
críticas advindas de outros autores do mesmo campo. É o caso de Preciado (2017, p. 92-93), ao
apontar que o conceito butleriano de performatividade de gênero tem seus méritos, mas também
limitações, principalmente ao enfatizar o caráter discursivo do gênero, o tornando algo muito
abstrato, quase que ocultando a corporeidade-materialidade dos corpos abjetos.
Nesse sentido, Preciado (2017) aponta que o exemplo da drag queen, tão utilizado por
Butler (2017) em suas análises, não daria conta de todas as complexidades de todos os outros
dissidentes da matriz de inteligibilidade de gênero, como é o caso dos corpos transexuais e
intersexuais:
Com isso, Preciado está apontando para o fato de que transexuais tomam hormônios e
se submetem a variadas cirurgias de modificação corporal, que pessoas intersexuais possuem
corpos que possuem especificidades biológicas/anatômicas (não só as do nascimento, mas
também as produzidas por intervenções cirúrgicas de “correção”) que não podem ser resumidas
ao conceito de uma performance discursivamente produzida. Longe de ensaiar um “retorno” a
concepções biologizantes e/ou essencialistas, o que Preciado faz é radicalizar ainda mais o
transviado, trazendo com mais ênfase as teorias ciborgues de Haraway (2000). Não só
transgêneros e intersexuais possuem corpos ciborgues, mas todos nós, pois, conforme apontado
por Haraway (2000), não há corpo que já não tenha sido tecnologicamente modificado, seja por
uma prótese, seja pelo simples uso de um automóvel, telefone ou óculos. Tadeu (2000), aponta
para esse processo de “ciborguização” dos corpos, de todos os corpos:
Nos anos 1990, uma nova geração emanada dos próprios movimentos
identitários começou a redefinir a luta e os limites do sujeito político
“feminista” e “homossexual”. [...] A crítica radical do sujeito unitário do
feminismo, colonial, branco, proveniente da classe média alta e
dessexualizado foi posta em marcha. Se as multidões queer são pós-feministas
não é porque desejam ou podem atuar sem o feminismo. Pelo contrário, elas
são o resultado de um confronto reflexivo do feminismo com as diferenças
que o feminismo apagou em proveito de um sujeito político “mulher”
hegemônico e heterocêntrico. (PRECIADO, 2011, p. 17).
19
Butler (2017, p. 21) inclusive coloca que o feminismo tradicional que tem “a mulher” como sujeito, reproduz
práticas colonialistas ao se pretender universal e “se apropriar de culturas não ocidentais”.
42
Aliás, Preciado (2017) coloca que boa parte dessas práticas contrassexuais teriam como
centro o ânus visto que, para o autor, este órgão não está demarcado como um “órgão sexual”
por excelência (como supostamente seriam o pênis e a vagina). “Pelo ânus, o sistema tradicional
de representação sexo/gênero vai à merda”. (ibid, p. 32). Uma das práticas, inclusive, que
Preciado sugere é baseada na performance “o ânus solar” de Ron Athey 20, sugerindo a
introdução de dildos amarrados em sapatos de salto agulha, a serem introduzidos no próprio
ânus, como fez o artista21 em questão.
O monstro é entendido como “a diferença feita carne” (COHEN, 2000, p. 32), pois
cumpre a função didática de ser a diferença que serve como confirmação da regra. Dito de outra
forma, o “não-monstro” depende do monstro, pois sem o mesmo não existiria:
20
Ver: https://www.youtube.com/watch?v=vKHxWI0JD38. Acesso em: 30 mai. 2019.
21
Desta forma, as multidões queer fariam parte considerável de suas ações voltadas para práticas culturais (o que
inclui as próprias práticas sexuais, conforme proposto por Preciado e realizado por Ron Athey). Ao contrário do
movimento LGBT mais tradicional, as multidões queer, alinhadas às políticas da diferença, “priorizam as
estratégias políticas através do campo da cultura [...], pois os/as ativistas entendem que os preconceitos nascem na
cultura”. (COLLING, 2013, p. 409).
43
dimensão teratológica se faz presente no próprio pesquisador, afinal essa viada que vos fala é
uma monstra, e aqui arriscamos ver aquilo que o monstro vem mo(n)strar. Monstremos!
E para dar o “ponta-pé” inicial, nada melhor do que darmos voz a pesquisadoras trans
brasileiras para falarem sobre estes referenciais teóricos. Vergueiro (2015) confirma que há um
entrelaçamento genealógico explícito entre o transfeminismo, o transviado e os estudos
decoloniais, justificando, assim, o nosso apontamento do transfeminismo e dos estudos
decoloniais enquanto referenciais complementares. Um exemplo está quando a autora em
questão analisa a problemática da binariedade de gênero através de um entendimento pós-
colonial:
22
Jesus (2014) aponta, inclusive, para o fato de o transfeminismo ser um dos feminismos de terceira onda (p.
254), assim como o transviado.
44
O que Jesus (2014) está nos trazendo é a referência ao transfeminismo não só como
meramente um feminismo de pessoas transexuais, mas como uma forma de feminismo que
questiona outras vertentes feministas anteriores, até mesmo de segunda onda, que insistiram na
tese de gênero e sexo seriam diferentes. Aqui, fica evidente o ponto de aproximação com o
transviado, pois, conforme já vimos, Butler (2017) já questionava desde o começo da década
de 1990 a distinção tradicional entre sexo e gênero, entendendo que o sexo é um construto tão
artificial quanto o gênero, e que, portanto, não se diferenciariam.
Os artigos encontrados sobre queer (transviado) nas plataformas Scielo e Capes revelam
uma diversidade de áreas que têm se debruçado sobre a questão. A área de Ciências Biológicas,
todavia, não está entre as áreas que têm publicações de artigos no Brasil24, entretanto nos chama
a atenção que educação ambiental, alinhada a uma perspectiva ecofeminista e ecológica
transviada, tenha se destacado em nossa busca, através das contribuições de Gough et al. (2011),
Gabriel (2011) e Russel et al. (2011), sendo todos publicados na mesma edição da Revista de
Estudos Feministas. A ecologia é uma das áreas de conhecimento das Ciências Biológicas, e
mesmo não havendo artigos sobre ecologia transviada na sua própria área, o tema aparece
majoritariamente em escritos da área de Educação.
Ainda nos autores citados, Gabriel (2011) produz a introdução à edição já citada da
Revista de Estudos Feministas, nos convidando para um entendimento inicial sobre qual seria
a relação entre ecofeminismo e ecologia transviada através de uma breve apresentação dos
artigos da edição. Sobre a ecologia transviada, ele a considera “uma análise social, política e
cultural que interroga as relações entre a organização social da sexualidade e a ecologia, uma
23
No caso, optamos pela busca através do termo queer ao invés de transviado pelo fato de o primeiro já ser mais
consolidado na pesquisa acadêmica brasileira (mesmo sendo um estrangeirismo), e que, portanto, nos permitiu a
consulta a resultados mais abrangentes.
24
Aqui consideramos publicados em revistas brasileiras, independente de serem artigos escritos por autores
nacionais ou estrangeiros.
47
Não podemos deixar de discutir essa relevância dada à pesquisa em educação ambiental
ems uma perspectiva transviada sob a luz de Haraway (1995) e seus “saberes localizados”, pois
a pouca presença (ou até mesmo ausência) das áreas de Ciências Biológicas e Ciências Exatas
e da Terra na pesquisa sobre transviado reflete ainda uma concepção muito presente nestas
áreas, do pesquisador enquanto agente e da natureza enquanto superfície passiva à espera de ser
explorada, deixando escapar que “os códigos do mundo não jazem inertes, apenas à espera de
serem lidos” (HARAWAY, 1995, p. 37). Gabriel (2011) inclusive cita as contribuições de
Haraway ao alegar que as vivências não heteronormativas podem contribuir para outros olhares
sobre a natureza e a educação ambiental, ou seja, que outros saberes localizados só têm a
enriquecer os estudos sobre a temática.
48
Não há, portanto, como deixar de notar dois pontos. O primeiro seria a relevância dada
aos artigos sobre educação ambiental e ecofeminismo transviado, denotando a existência de um
interesse por uma alternativa epistemológica ao que Haraway (1995) considera uma visão
científica marcada pelo “olho que tudo vê”, onde o saber nunca é localizado, ainda muito
presente nas epistemologias das “ciências duras”. O segundo seria o encontro entre
ecofeminismo e os estudos transviados, que tem se dado, de forma relevante, através dos
estudos sobre educação ambiental. Fica entrevisto ser muito provável, portanto, que professores
de Ciências e de Biologia tenham pouco ou nenhum contato com as discussões e
problematizações de uma pedagogia queer ao longo de sua formação inicial, e havendo algum
contato, ele pode ter se dado através do tópico sobre educação ambiental.
De antemão, como apontado por Paraíso (2012), “as teorias pós-críticas não possuem
um método recomendado para realizarmos nossas investigações.” (p. 25-26). Portanto, ao
tratarmos de metodologia, temos que ter ciência de que se nosso referencial teórico é o
transviado, estando este associado às teorias pós-críticas, não podemos considerar que
trabalharemos como algum tipo de método estanque e fechado, pois tal procedimento seria, sem
dúvida, totalmente não-transviado.
Dito isto, reconhecemos também que, mesmo não se tratando de uma metodologia
completamente fechada, algum formato metodológico mínimo é necessário para se estruturar
uma pesquisa no âmbito da academia. Sem engessamentos, podemos então dizer que nossa
pesquisa é, essencialmente, uma pesquisa qualitativa.
25
O convite enviado a todas as participantes foi o seguinte: “Me chamo Charlie e sou mestrando do programa de
Ensino e História das Ciências e da Matemática. Eu e meus orientadores (a Prof. Dra. Meiri A. G. de C. Miranda
e o Prof. Dr. Allan Moreira Xavier) estamos convidando participantes para uma entrevista de grupo focal (que é
uma entrevista coletiva, com várias participantes) para coleta de dados de pesquisa em andamento. O tema é
relacionado à gênero, sexo e sexualidade, sendo que a entrevista não será filmada, apenas gravada em áudio. Além
do mais, é garantido o anonimato das participantes.”
26
No caso, os personagens reais seriam Thomas Beatie e Brendan Teena. Os personagens fictícios seriam Bree
Osbourn, do filme Transamérica e Agrado, do filme Tudo sobre minha mãe.
52
1-) DINÂMICA 1:
27
THE PREGNANT Man. . Produção de Elizabeth Mcdonald. Reino Unido/EUA: September Films, 2008.
Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=NrKrYZmaZbU . Acesso em: 22 fev. 2019. Legendado. Port.
53
c) Comunicamos, após sua exibição - e sem nenhuma discussão até o momento - que
as participantes poderiam reelaborar, caso quisessem, os seus desenhos e frases no
verso do cartão, em no máximo 10 minutos.
César (2012) sugere que apresentar a possibilidade de homens gestantes por meio de
recurso audiovisual, pode tensionar as fronteiras daquilo que se pode pensar sobre corpos, sexos
e gêneros, provocando uma sensibilização no público escolar para com a possibilidade de um
homem engravidar e não ser menos masculino pela gestação em si. Almejamos verificar se
houve - ou não - e em que medida, eventuais transformações na esfera do discurso e a produção
de uma sensibilização sobre o tema.
2-) DINÂMICA 2:
a) As participantes tiveram que fazer o mesmo (desenho e/ou frase, só que agora em uma
segunda ficha-cartão), retratando um homem transgênero ao lado da pessoa com a qual
ele se envolve afetivamente e sexualmente.
Após as duas dinâmicas, a oficina se completou com uma breve exposição teórica sobre
conceitos dos estudos transviados, previamente preparada, sendo que essa exposição ocorreu
28
http://www.ladobi.com.br/2013/11/gay-namorar-transhomens. Acesso em: 19 mar. 2019.
54
como complemento aos professores, e não como a parte da mesma. Como não houve quase
intervenções das participantes nesta parte, optamos por não incluí-la na análise. Todavia, o
questionário posterior, aplicado após as dinâmicas e a exposição teórica, foi sim utilizado como
material de análise.
3.3 As participantes
perguntada sua posição política, afirmou ser de esquerda. Diz não seguir religião
alguma e tem 58 anos de idade.
Para a análise das falas e produções obtidos por meio de nossas oficinas, optamos pela
análise do discurso foucaultiana. A análise do discurso (doravante, AD) não pode ser entendida
como uma mera técnica a ser aplicada sobre os textos aos quais se debruça. Todavia, uma
definição precisa sobre, afinal, o que é a AD não é algo a ser facilmente obtido, conforme
apontado por Conceição (2001):
56
Mussalin (2012) coloca que as bases iniciais teóricas que permitiram o surgimento da
AD foram o encontro da linguística com o marxismo e a psicanálise lacaniana. A autora aponta
que a AD seria a área periférica fora do núcleo duro da linguística, onde está em diálogo com
outras ciências, tais como a história, a filosofia, a sociologia e a psicologia, pois a linguagem,
aqui, faz sentido a partir de sujeitos sociais em relação uns com os outros e posicionados em
determinados contextos sociais e históricos (Ibid, p. 123).
Que relações podem ser estabelecidas com outras enunciações, com outros
discursos divulgados em outros tempos e lugares? Que urgência histórica essa
invenção veio responder? Que urgência histórica essa invenção veio
responder? Que continuidades e descontinuidades podemos traçar? Quem está
nesse discurso autorizado a falar ou a prescrever? Que relações de poder e de
saber movem esse discurso? (Ibid, p. 39).
Não pretendemos aqui estabelecer um roteiro metodológico com base nas possíveis
questões apontadas por Paraíso (2012), mas reconhecemos que, mesmo com variáveis, nos
57
Para tal empreitada, olhamos os produtos da oficina com as lentes teóricas dos estudos
transviados, em primeiro plano, e dos estudos transfeministas e decoloniais, em segundo plano.
Procuramos também realizar o duplo movimento de analisar individualmente cada participante
da pesquisa e colocá-los para dialogar, tendo, como exemplo, as concepção da participante
Melanie associada ao “feminismo da deusa”, que foi muito singular, e romantização da
maternidade, que foi presente na produção de todas as participantes, logo havendo, portanto,
uma fala quase que coletiva, em movimento dialógico. Analisamos tanto esses discursos mais
individuais quanto os mais coletivos através de vários autores, alguns tendo visível destaque,
como Butler e Preciado, mas perpassando por vários outros, inclusive muitos deles brasileiros
e/ou transgêneros, procurando assim uma maior diversidade no nosso referencial teórico.
Quanto à análise, cabe relembrar, conforme já apontado pela metodologia, que optamos
por ler os dados através da AD foucaultiana, na qual há o entendimento de que os conceitos,
ideias ou enunciados não são mera criação individual, mas refletem o próprio discurso
(FISCHER, 2001, p. 200). Conforme afirma o próprio Foucault:
Não propomos, em absoluto, que os conceitos apresentados por Geri, Emma, Victoria,
Melanie e Elton sejam concebidos enquanto mera “repetição” de algo externo, mas não
podemos desconsiderar que, em alguma medida, elas refletem discursos que estão no tecido
social para além das sujeitas participantes desta pesquisa.
Não podemos esquecer, portanto, o histórico da educação sexual, pois, se hoje é possível
defender uma versão mais progressista da mesma, esta nasce como biopolítica de controle dos
corpos:
Neste sentido, há a necessidade, como Figueiró (2017) aponta, de se trabalhar por uma
educação em sexualidade que se debruce também sobre aspectos outros, para além dos
estritamente biológicos:
Nesse sentido, a maioria das nossas participantes, com exceção de Elton, afirmam
trabalhar com educação sexual em suas aulas quando perguntados sobre o tema em seus
questionários prévios. Todavia, é possível verificar nas próprias colocações das participantes,
que a educação em sexualidade com que trabalham é ainda fortemente tradicionalista e focada
no que César (2009) denomina de uma “epistemologia” da saúde, onde o “binômio
risco/segurança vem produzindo uma educação sexual definida por uma ideia específica sobre
o “bem viver”.” (p. 44). Afirmam as participantes sobre seu trabalho com educação em
sexualidade:
Sim, com os alunos dos 8° anos, desde a parte dos sistemas reprodutores
até DST’s e gravidez na adolescência. (Geri, fala durante questionário
prévio).
Não é o objetivo central desta pesquisa investigar a fundo a maneira pela qual
professores de ciências e de biologia trabalham com educação em sexualidade em sala de aula,
62
todavia consideramos que termos uma pergunta específica sobre o assunto no questionário
prévio contribuiria com dados sobre a própria maneira como estes educadores entendem os três
elementos (sexo, gênero e sexualidade) da matriz de inteligibilidade heterossexual.
Sendo assim, é possível verificar que a maioria das participantes trabalha com a
educação em sexualidade considerando prioritariamente o caráter biológico/anatômico, com
exceção de Melanie que, para além das questões anatômicas, procura trazer outros aspectos
mais sociais e culturais para suas aulas, sendo esta uma necessidade apontada por César (2009),
para quem é vital trazer a perspectiva das ciências humanas para a educação em sexualidade,
principalmente ao tratar-se de questões de gênero:
Com isto em vista, Preciado (2017) nos demonstra que o sexo insiste em ser uma
tecnologia social, cultural e histórica que insiste em se apresentar como um fenômeno
exclusivamente natural, como a base natural de todos os corpos. Tal concepção não leva em
63
conta o que ainda Preciado (2017) denominou de “uma das maiores rupturas epistemológicas
do século XX”, que seria a designação do “corpo feminino como produto da história política, e
não simplesmente da história natural” (p. 151), realizada pelo feminismo. De certo, podemos
estender tal entendimento ao corpo masculino e a todos os corpos de gêneros divergentes. Todo
corpo é entendido então como tecnologia, e não puramente natureza, inclusive o corpo
cisgênero, que, de acordo com Vergueiro (2015), ainda insiste em ser lido como “natural”,
dentro de uma compreensão ocidental e colonialista de gênero.
Exceção parcial foi a descrição de Emma, que afirmou entender o sexo a partir da
concepção biológica, mas adicionando à sua compreensão o que chamou de “construção
social”. Quanto ao gênero, conforme vimos, quase todos as participantes partem da ideia de
64
ser algo relacionado à forma que a pessoa se identifica, sendo que Elton até mesmo o associa
com a “psique”. Sexo então é entendido majoritariamente pelas participantes como um
fenômeno biológico-cromossômico, ao passo que o gênero já é interpretado como uma prática
social e um determinante psicológico de identidade sobre o sexo biológico.
Fica claro que a concepção dominante sobre sexo/gênero dialoga com o feminismo de
segunda onda, no qual a distinção entre sexo e gênero “atende à tese de que, por mais que o
sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído.” (BUTLER,
2017, p. 25). Nesse mesmo sentido, Louro (2018) aponta tratar-se de uma “lógica que supõe o
sexo como um “dado” anterior à cultura e lhe atribui um caráter imutável, a-histórico e binário.”
(p. 15). Historicizar o sexo, o entendendo como um fenômeno produzido pela história, e não
como algo anterior a mesma, pode parecer, em um primeiro momento, contra-intuitivo. Porém
não podemos deixar de apontar, contudo, que há literatura indo neste sentido, sendo Laqueur
(1996) bastante citado por seu estudo que aponta para o fato de que o dimorfismo sexual foi
inventado entre os séculos XVII e XIX (LOURO, 2018; CÉSAR, 2012), substituindo o
entendimento de haver apenas um sexo, do qual os corpos sexuados seriam derivações deste,
conforme já apontado ao longo deste trabalho. Vergueiro (2015) atenta, inclusive, que este
dimorfismo sexual é uma fantasia colonial advinda de uma cosmogonia cisnormativa, que “vem
exterminando diversidades corporais e de identidades e perspectivas de gênero por séculos.” (p.
40).
Quanto à questão do sistema sexo/gênero, Butler (2017), com base em Rubin (1993) se
contrapõe ao entendimento da segunda onda do feminismo, trazendo a instigante ideia de que
o sexo é tão produzido quanto o gênero, ao afirmar que “não existe distinção sexo/gênero em
linhas convencionais; o gênero é embutido no sexo, e o sexo mostra ter sido gênero desde o
princípio.” (p. 197). O transfeminismo também denuncia, conforme apontado por Jesus (2014)
a “falha do feminismo de base essencialista, comumente biológica, em reconhecer o gênero
como uma categoria distinta da de sexo.” (p. 243). Preciado (2017), por sua vez, amplia a
denúncia da tecnologia do sexo:
O sexo, como órgão e prática, não é nem um lugar biológico preciso nem uma
pulsão natural. O sexo é uma tecnologia de dominação heterossocial que reduz
o corpo a zonas erógenas em função de uma distribuição assimétrica de poder
entre os gêneros [...]. O sistema heterossexual é um dispositivo social de
produção de feminilidade e masculinidade que opera por divisão e
fragmentação do corpo: recorta órgãos e gera zonas de alta intensidade
sensitiva e motriz (visual, tátil, olfativa...) que depois identifica como centros
naturais e anatômicos da diferença sexual. (p. 25).
65
Portanto, a própria atribuição de um órgão como sexual - ou não - é uma prática social
e cultural, e não uma mera constatação de algo “dado” pela natureza ou relacionado à frequência
do uso dos mesmos nas diversas práticas sexuais. Nesse sentido, o discurso cisnormativo,
reproduzido por Melanie, não consegue cogitar a ideia de um “pinto feminino” ou de uma
“buceta masculina”. Se desconsidera também o quanto que essa binariedade de gênero está
associado à heterossexualidade enquanto regime político, pois conforme apontado por Butler
(2017, p. 196), “não há razão para dividir os corpos humanos em sexos masculino e feminino,
exceto que uma tal divisão é adequada às necessidades econômicas da heterossexualidade”.
Essa mesma binariedade pode também ser entendida enquanto uma “normatividade
sociocultural eurocêntrica” (VERGUEIRO, 2015, p. 64) associada à cisgeneridade29:
E além – mas também ligado – deste aspecto colonialista, essa binariedade que enxerga
o sexo/gênero em “preto ou branco” (ou seria “azul ou rosa”?) também se associa à própria
dinâmica do capitalismo, conforme apontado pelo transfeminismo chicano de Triana (2014).
Não é possível falar de uma perspectiva transviada/transfeminista sem a crítica ao sistema
capitalista, pois o próprio transviado surge enquanto movimento social no contexto do
surgimento da AIDS nos EUA da era Reagan, de implementação de uma das formas mais
escancaradas do capitalismo, que é o neoliberalismo. O capitalismo neoliberal, portanto, visa
uma política reprodutiva que depende da binariedade do sexo e do gênero:
29
Sobre o conceito de cisgeneridade, Vergueiro (2015) explica sendo a identidade de gênero daquelas pessoas
cuja “experiência interna e individual do gênero” corresponda ao “sexo atribuído no nascimento” a elas. (p. 44).
66
Voltando, todavia, às falas das nossas participantes, não podemos deixar de citar que
em seu questionário posterior, Melanie afirmou ter parcialmente alterado sua compreensão
sobre o sexo:
Nota-se que Melanie passou a considerar que a binariedade sexual, tão demarcada em
sua fala no questionário prévio, possa ser, na realidade, “culturalmente construído”,
demonstrando assim que a oficina surtiu alguma sensibilização na sua compreensão sobre a
matriz de inteligibilidade. Consideramos que o discurso cisnormativo e binarista deu passagem
para a reprodução de enunciados mais próximos do discurso transviado, ao dizer que a
binariedade não é um dado natural.
Embora o transviado não seja essencialista e nem construtivista (BUTLER, 2018), fica
claro que a intenção de Melanie foi problematizar o discurso cisnormativo, reproduzindo o seu
entendimento sobre os enunciados do discurso transviado.
Elton apenas acrescentou “intersexual” à sua compreensão sobre o que é o sexo, visto
que na sua conceituação prévia tal termo não aparecia, sendo somente “macho” e “fêmea”.
Julgamos aqui que tal mudança possa ter sido ocasionada pelo fato de termos, em parte da nossa
explicação teórica sobre o transviado, abordado a existência pessoas intersexuais, e o debatido
sobre o prisma das reflexões de Preciado (2017) e Fausto-Sterling (1993) sobre o tema da
intersexualidade. Ao contrário de Elton, que ao menos acrescentou uma pequena modificação,
Geri afirmou que “não mudou a compreensão”, ao passo que Emma continuou sustentando que
“a definição corre pela expressão dos genes presentes nos cromossomos sexuais”, apenas
acrescentando “e me esqueci de citar o intersexo”.
Aqui cabe salientar, tanto pelo dito por Elton quanto por Emma, que uma possível
sensibilização introdutória ao transviado para professores da área de ciências e biologia seria
abordar o tema da intersexualidade, pois embora não tenhamos obtido uma quebra total – quiçá
revolucionária – do paradigma binário de sexo/gênero, foi possível perceber, no questionário
posterior ao vídeo da dinâmica 1 e à exposição teórica, que houve algum efeito sobre os
enunciados, mesmo que superficialmente.
Sua visão não é exatamente transviada ou transfeminista, mas, sem dúvida, pode ser
uma ponte a ligar o entendimento de docentes de ciências e de biologia a uma perspectiva
transviada ou transfeminista de sexo, gênero e sexualidade. Algo que faz problematizar e
questionar, ampliando a compreensão de sexo biológico ao utilizar conceitos da própria
biologia, estando, portanto, mais próximo do entendimento de professores desta área.
Em uma das partes da oficina, as participantes tiveram que preencher a frente de uma
ficha-cartão, na qual poderiam expressar o seu conceito sobre o que é “gravidez” através de um
desenho, de uma frase ou de ambos. Alguns resultados são mostrados a seguir.
Figura 2: Desenho e frase de Elton sobre o conceito “gravidez” na ficha-cartão distribuída na primeira
parte da oficina.
Fonte: pesquisador.
[...] logo que a gente pensa em gravidez, logo vem a imagem da mulher,
a gente não pensa na possibilidade de um homem estar grávido, né, e
quando a gente pensa na questão do gênero, a gente relaciona o gênero
feminino, a mulher como a genitora de tudo.” (Elton, 2019, durante fala
no grupo focal).
Fonte: pesquisador.
71
Fonte: pesquisador.
Eu gostei, acho que o que ele traz, ele começa, como o colega falou, ele
vem trazendo a história de vida do Thomas, né? (Melanie, durante fala
no grupo focal).
E aí, chega, não começa com o rótulo o homem grávido, ele vai trazer,
embora a mídia tenha feito isso, inclusive trabalham essa questão, eu
72
até coloquei aqui, acho que é muito legal que ele mostra uma família
como ela deveria ser…(Melanie, durante fala no grupo focal).
Os enunciados de Melanie e de Geri, portanto, são referentes que podem ser associados,
ao menos em parte, ao discurso heteronormativo, que valoriza a família de Thomas justamente
por aquilo que ela reproduz do ideal heterossexual de família nuclear padrão, de “família
normal”, conforme apontado por Geri, ou seja, dentro das normas. Essa “normalidade”, em
alguma medida, até “cobriria” a monstruosidade da gestação de um corpo transexual. Essa
supervalorização da família desconsidera toda a teorização sobre a entidade familiar enquanto
instrumento indispensável de fabricação de corpos destinados à reprodução da maquinaria
capitalista, conforme já mencionado por Preciado (2017).
ao grau de instrução escolar dos pais, comparando o caso de uma menina lésbica que é aceita
pela família, ao de outra família, que não aceita os sinais de transexualidade do filho:
Tal fala, além de ser um enunciado associado ao campo discursivo da educação, revela
também o discurso da valorização da família, entendida como uma espécie de instituição
nuclear essencial para o bem-estar da criança e do adolescente. Victoria aponta para o caso de
uma estudante que se revelou lésbica ainda no sexto ano, colocando que:
A família trabalha muito bem nisso, desde pequena ela já, ela já
demonstrava que ela ia ser, e a família começou a trabalhar muito a
respeito disso”. (Victoria, durante fala no grupo focal).
Geri afirma que, para além da escolarização, a família da aluna em questão é “bem
estruturada”. Tal concepção também aparece após a exibição do documentário sobre o homem
grávido, quando Melanie afirma que ele (o documentário) “mostra uma família como deveria
ser”, ao passo que Geri concorda, ao completar com “uma família normal, né?”. Melanie, então,
desenvolve melhor sua argumentação, colocando que:
Eles decidiram com planejamento familiar [...] isso deveria ser uma
família, né, independente se está dentro do padrão que a igreja30 coloca,
como é de fato os valores que unem as pessoas e tal. (Melanie, durante
fala no grupo focal).
De modo geral se sobressai uma valorização da ideia de família, sendo que a gestação
transexual de Thomas parece adquirir credibilidade e respeito pelo fato dela se dar em um
contexto familiar (um homem – mesmo que transexual - casado monogamicamente com uma
mulher, com apoio de duas enteadas, e que de fato planejou sua gestação) que reproduz, ao
menos em partes, o ideal de família nuclear tradicional.
Preciado (2017) não concordaria com essa visão romantizada de família, ao afirmar que
“a prática da sexualidade em casais está condicionada pelas finalidades reprodutivas e
30
Melanie se declarou como católica “não muito praticante” em seu questionário prévio. Essa sua fala transparece
preocupação com o posicionamento da igreja, muito embora aparente discordar do mesmo.
74
econômicas do sistema heterocentrado. (p. 41). Em outro texto, Preciado (2013) relata, em tom
autobiográfico, que cresceu em uma família nuclear tradicional, e que nem de longe isso o
blindou do sofrimento. Pelo contrário, a própria estrutura familiar funcionava como mecanismo
de repressão de sua dissidência da matriz sexo, gênero e sexualidade. Talvez justamente por
isso que em seu Manifesto Contrassexual surja a reivindicação de que “a sociedade
contrassexual demanda a abolição da família nuclear como célula de produção, de reprodução
e de consumo” (PRECIADO, 2017, p. 41).
Na mesma direção, Trujillo (2015) coloca que os dissidentes das normas sexuais e de
gênero só se transmutam em identidades discerníveis (ou inteligíveis, em termo butlerianos)
“quando se ajustam a certos modos de sujeição relacionados com construções sociais chaves
como a família e a nação.” (p. 1536, tradução nossa). Portanto, os corpos e vidas de Thomas e
Nancy só fazem sentido a partir do momento que, em alguma medida, reproduzem os padrões
heteronormativos da sociedade. Triana (2014) vai além, ao apontar a relação do quanto estas
identidades desejáveis estão a serviço da biopolítica do capitalismo:
Cabe notar que, embora César (2012) aposte que a história do homem grávido possa
servir de intervenção pedagógica queer (transviada) capaz de “tensionar as fronteiras daquilo
que se pode pensar sobre corpos, sexos e gêneros, para além do sistema normativo sexo-corpo-
gênero” (p. 357), o que percebemos foi que a nossa própria intervenção a partir do documentário
sobre Thomas Beatie pode até ter causado uma maior sensibilização para com as questões
transexuais/transgêneras, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, reafirma os ideais
normativos de família nuclear e reprodutora. Se referindo às “bixas”, mas também ao grupo
LGBT como um todo, Vidarte (2019) considera que “aqueles que pensam que as bixas casadas
estão inventando novas formas de convivência são uns trouxas, elas reproduzem o sistema e
ponto”. (p. 131). Portanto, ao colocarmos em prática uma das intervenções sugeridas por César,
percebemos que ela permite algum avanço no debate, mas também possuindo suas limitações.
Figura 5: Desenho e frase de Melanie sobre o conceito “gravidez” na ficha-cartão distribuída na primeira parte
da oficina
75
Fonte: pesquisador.
Outro ponto ainda a ser destacado é o desenho de Melanie sobre o conceito de gravidez,
no qual escreve que a gestação seria “momento de redescoberta e de força feminina” (grifo
nosso). Mesmo após as dinâmicas e exibição do documentário, ela reafirmou no verso da sua
ficha-cartão sua fala inicial:
[...] mantenho meu desenho e frase, pois acredito que gerar vida vem da
força feminina e da Terra, independente do gênero (todos temos fem. e
masc.[sic]). (Melanie, fala do verso de uma de suas ficha-cartão, grifo
nosso).
Embora não tão enfáticos como Melanie, outras participantes continuaram lendo
Thomas como alguém que, apesar de homem, possui “um corpo (sistema genital) de mulher”
(Emma) e cuja “identidade original” seria “feminina” (Geri).
Sua ideia de que a gestação representa uma “força feminina”, sendo esta associada
metaforicamente à “Terra” vai de encontro à denúncia feita por Wittig (2019) de que a
reprodução, tal como é posta na sociedade, é uma política de gênero que visa o controle dos
corpos lidos como “femininos”, onde “ser mulher” é necessariamente estar presa à uma lógica
reprodutiva a serviço do capital, longe de qualquer romantização:
76
[...] em vez de ver o ato de parir como uma produção forçada, nós o vemos
como um processo “natural” “biológico”, esquecendo que em nossas
sociedades os nascimentos são planejados (demograficamente), esquecendo
que nós mesmas somos programadas para produzir filhos, embora esta seja a
única atividade social, “fora a guerra”, que representa um enorme risco de
morte. Assim, enquanto fomos “incapazes de abandonar por vontade ou
impulso um compromisso vitalício e secular de ver a gravidez como o ato
criativo feminino”, ganhar controle sobre a produção de filhos irá significar
muito mais do que mero controle dos meios materiais dessa produção: as
mulheres terão que se abstrair da definição “mulher” que lhes é imposta. (p.
85-86).
Já Butler (2017) enxerga nesta associação da Terra com o feminino a chamada dialética
existencial da misoginia, na qual “a razão e a mente são associados com a masculinidade e a
ação, ao passo que corpo e natureza são considerados como a facticidade muda do feminino”
(p. 75). Preciado (2017, p. 152) também aponta para a existência da mesma associação entre
mulher e natureza, mas, ao contrário de Butler, que apresenta tais alegorias como fruto da
misoginia, Preciado (2017) argumenta que há um feminismo anti-tecnológico, que adota uma
perspectiva de demonização da tecnologia e de associação desta com o domínio patriarcal.
Melanie é uma mulher, que politicamente se identifica como de esquerda e que em muitos
momentos apresenta concepções sobre sexualidade e identidades de gênero que poderiam até
ser lidas como “avançadas”. Todavia, reproduz associações alegóricas sobre a gestação e a
maternidade que poderíamos associar a esse feminismo anti-tecnologia apontado por Preciado,
não sendo, no caso, somente a reprodução da dialética existencial da misoginia descrita por
Butler.
31
Kunzru (2000) explica com maestria a contraposição de Haraway ao chamado feminismo da deusa: “Ela é
famosa por ter uma vez afirmado: “prefiro ser uma ciborgue a ser uma deusa”, desafiando a tradicional concepção
feminista de que a ciência e a tecnologia são pragas patriarcais a assolar a superfície da natureza. Como uma
ciborgue, Haraway é um produto da ciência e da tecnologia; ela não vê muito sentido no assim chamado
“feminismo da deusa”, que prega que as mulheres poderão encontrar a liberdade apenas na medida em que se
desprenderem do mundo moderno e descobrirem sua suposta conexão espiritual com a Mãe Terra”. (p. 22).
77
Quanto aos outras participantes, embora não tão enfáticos como Melanie, continuaram
elas lendo Thomas Beatie como alguém que, apesar de homem, possui um corpo e uma genitália
femininos. Tal entendimento está no verso de suas primeiras ficha-cartão:
Mesmo com tantas opções (de gênero) que as pessoas podem ter hoje
em dia, a gestação ainda está relacionada ao aparelho reprodutor. O
rapaz foi muito corajoso em assumir uma gravidez após ter feito uma
opção que alterou toda sua identidade original (feminina). (Geri,
durante fala na sua ficha-cartão).
Essas falas são significativas da força que tem o discurso cisnormativo em nossa
sociedade, pois Emma se refere a Thomas Beatie como homem utilizando aspas, deixando claro
que, para ela, Thomas não é, de fato, um homem. Já Geri, apesar de um primeiro momento de
sua fala reconhecer a hombridade de Beatie, revela ainda compreender que sua identidade
original seria “feminina”, que se revela em seu “aparelho reprodutor”, também lido como
feminino por ambas participantes. Associar uma suposta “força feminina” à gestão e entender
a condição de mulheridade como atrelada, necessariamente, ao útero, são elementos da cis-
heteronormatividade que atingem igualmente pessoas trans e pessoas cis, conforme apontado
na leitura transfeminista de Jesus (2014), ao discorrer sobre a história de Mayer (2013), uma
mulher cis que, ao realizar uma histerectomia, sente como a sociedade a considera menos
mulher por isso. Diz Jesus (2014):
Ainda na fala de Geri, entender uma identidade como “original” vai de encontro ao
entendimento de que toda e qualquer identidade de gênero é um efeito performativo, conforme
já demonstrado por Butler (2017) ao se debruçar sobre o exemplo da drag queen, entendendo
que a graça da mesma está em mostrar que a imitação feita não é de um original, mas sim uma
paródia da própria ideia de um original. Neste sentido, nem Thomas, nem Geri e nem a drag de
Butler são possuidores de gêneros originais, pois eles não existiriam.
78
A nossa oficina foi realizada para professores da educação básica e foi feita por um
pesquisador que, por sua vez, também é docente do mesmo nível de ensino. Invariavelmente a
pedagogização aparece, tanto por parte das participantes quanto do próprio pesquisador, que,
ao longo de suas falas, procura ser didático, e embora não influenciasse diretamente as respostas
das participantes, os orientava de forma pormenorizada, tal qual um professor orienta seus
alunos nas lições propostas.
Pegando-se isoladamente essa fala, a impressão que fica é que se trabalhou todas essas
temáticas em uma semana específica. No mais, fica em aberta também a questão sobre o porquê
de se trabalhar diferenças sexuais e de gênero justamente na semana da consciência negra, haja
vista que, embora seja possível um debate de interseccionalidades, o que transparece é que
precisavam “encaixar” a temática LGBT/da diferença sexual em qualquer espaço, e que o
melhor encontrado foi a semana da consciência negra.
Percebe-se também que Elton tem alguma familiaridade com expressões tais como
“transexualidade” e “cisgeneridade”, revelando alguma familiaridade com conceitos
encontrados comumente no discurso transviado e atualmente nas militâncias LGBT
32
Bakke aponta que o conceito de “pedagogia do evento” deriva de uma palestra de Ana Lúcia Lopes na abertura
da mostra “Eu tenho um sonho, de King a Obama: a saga negra no norte”, realizada em 06/10/2010. (Bakke, 2011).
79
(COLLING, 2018). A opção de sua escola, contudo, foi realizar aquilo que podemos chamar
de “pedagogia do evento”, pois se escolhe uma determinada data ou evento para se trabalhar
com algum tema, que, via de regra, não está na estrutura curricular. Fato é que introduzir
determinados temas no currículo não necessariamente “instaura a diferença no currículo”
(CÉSAR, 2012, p. 359), sendo que muitas vezes “sem que a norma curricular seja sequer
questionada” (idem).
Chamamos a atenção para o fato de que a transgeneridade continua a ser entendida como
“mudança de sexo”, ignorando, de acordo com Preciado (2017) que:
Portanto, desta perspectiva, não se trataria de “mudança de sexo”, pois esta própria
expressão revela o entendimento de que há um “sexo original” que foi mudado. Conforme
afirma Louro (2018), “não há corpo que não seja, desde sempre, dito e feito na cultura”. (p. 75).
33
Portaria nº 261 de 31 de Julho de 2017 (CONSUNI).
80
De toda forma, a surpresa de Emma, mesmo expressando ainda uma concepção cisnormativa
sobre o sexo, foi no sentido mais positivo, ao considerar a mudança um avanço.
Ainda sobre os banheiros, Emma questiona, durante o grupo focal, se PUC-SP também
não havia adotado política semelhante ao banheiro neutro executado pela escola de Elton, ao
que Geri observa ser semelhante também ao que viu nos banheiros da UFABC ao vir participar
da nossa oficina, nisso, intervém o próprio pesquisador, alertando para diferenças, haja vista
que na PUC-SP adotou-se um banheiro neutro34, ao passo que na UFABC, conforme já
mencionado, foi garantido o uso do banheiro para pessoas não-cisgêneras, de acordo com sua
própria identificação.
Outro ponto importante que merece ser citado foi a histericização da mulher, que
aparece em alguns momentos nos dados. Elton conta o caso de dois adolescentes transexuais
de sua escola (um menino e uma menina, ambos irmãos), cuja mãe era julgada como “louca”
pela diretora da unidade de ensino, ao mesmo tempo em que esta afirmava que isso “não era
problema da escola”.
Todavia, não foram apresentados maiores detalhes, apenas nos chamou a atenção o fato
de a acusação se repetir em dois casos, demonstrando um entendimento de que as mães de
corpos “monstruosos” e “pervertidos” só podem sofrer de loucura, histeria, o que deixa
implícita a associação da suposta histeria das mães com a “perversão” sexual e de gênero de
34
https://g1.globo.com/educacao/noticia/universidade-catolica-instala-banheiro-unissex-para-atender-
diversidade.ghtml Acesso em 01 dez. 2019.
81
seus filhos. Esses corpos abjetos não poderiam ser resultados da criação de mulheres
“saudáveis”, e que, portanto, só podem ser “loucas”, conforme as falas denunciavam.
Os estudos transviados apontam para o fato de existir aquilo que Butler (2017) chama
de matriz de inteligibilidade e Louro (2018) de premissa sexo-gênero-sexualidade, pela qual o
sexo indica determinado gênero, que por sua vez induz à sexualidade. Tal conceituação é
fundamental nos estudos transviados para compreendermos o funcionamento da
hetero/cisnormatividade, que passa uma ideia de naturalidade para fenômenos que têm sua
arqueologia muito mais associada às relações culturais e históricas do que propriamente a
reflexos da natureza. Não se trata, pois, de afirmar, que não há substrato material, mas sim de
reconhecer que não podemos resumir o sexo, o gênero e a sexualidade às questões biológicas,
conforme apontado por Silva (2015) ao discorrer sobre a sexualidade:
Perguntados no questionário prévio sobre o que leva uma pessoa a ter determinada
sexualidade (heterossexual, homossexual, etc.) e a possuir uma determinada identidade de
gênero35, as participantes colocaram respostas muito próprias. Geri e Victoria afirmaram tratar-
se de um fenômeno fisiológico:
Emma se pauta também pela visão de que a sexualidade e a identidade de gênero podem
ser “escolhas”, dialogando assim com o entendimento de Geri sobre “escolhas”. No mais,
também apresenta um entendimento de que a pessoa transgênera está em desacordo com o seu
gênero, explicitando mais uma vez sua compreensão de que há um gênero original:
Tanto pode ser uma escolha como não. Ser uma escolha implica em
aceitação daquilo que a pessoa sente ou se identifica que pode ser
diferente do gênero biológico que possui. Quando não pode ser pelas
dificuldades impostas pela sociedade com as quais sofre ao lidar. Ser
transgênero é identificar-se com o gênero oposto ao seu. (Emma,
resposta ao questionário prévio, grifo nosso).
Nessas três falas (Geri, Victoria e Emma) fica evidente que a própria argumentação
apresenta um paradoxo, pois as participantes reforçam a visão biologizante e determinista de
que a identidade de gênero e a sexualidade advêm de fenômenos fisiológicos e hormonais, ao
mesmo tempo em que admitem que há margem para “escolhas”. Ora, se nosso desejo e nossa
identidade são ditados pelos genes e hormônios, qual seria nossa mobilidade para escolhas?
Emma então intui o próprio paradoxo ao afirmar que “pode ou não tratar-se de uma escolha”.
35
Cabe aqui observar que, ao perguntarmos sobre a visão das participantes sobre o que leva uma pessoa a ter
alguma identidade de gênero e uma determinada sexualidade, não foi perguntado especificamente o que leva ser
“homossexual” ou “transexual”. Caso a pergunta fosse direcionada somente neste sentido, estaríamos
reproduzindo uma questão heteronormativa, pois de acordo com Vidarte (2019), “só a eles interessa saber por que
nasceram esses cogumelos no jardim deles”. (p. 56) e “o mistério de como surgem as bixas é uma das armas mais
brutais que temos contra eles. Nós surgimos e pronto”. (p. 57).
83
Ainda sobre a ênfase dada na fisiologia, Silva (2015) também pesquisou falas de professores
dos anos iniciais e finais do ensino fundamental, ao que eles revelaram terem mais facilidade
em abordar as ditas “questões fisiológicas” do sexo, do gênero e da sexualidade. Tal destaque
na fisiologia mostra “a incorporação do discurso “ortopédico” da sexualidade, elaborado pelo
discurso biomédico e instituído pela Escola, pela educação sexual que circula em diversos
espaços.” (p. 11).
Conforme já vimos no item anterior, o sexo também é lido pelas participantes como um
fenômeno biológico, ao passo que o gênero parece ser um fenômeno que se dá na fronteira do
biológico com o social. E justamente na fronteira, pois ao caracterizarem o gênero em si,
escolhem uma abordagem mais social/cultural/histórica do que biológica, ao passo que ao se
referir à identidade de gênero, o biológico volta a ser mais enfatizado, demonstrando que as
próprias concepções das participantes não são isentas de contradições.
84
Exemplo disso está expresso no entendimento de Emma ao afirmar que o gênero seria
“condição estabelecida pela definição do sexo biológico, que, no entanto, pode não
corresponder a opção da pessoa, ou seja, ser diferente”, aqui novamente também aparecendo a
ideia de “escolha” através do termo “opção”. Essa compreensão de sexo e gênero não como
sinônimos, sendo o sexo um fenômeno mais biológico e o gênero mais social/cultural, é,
segundo Lanz (2014) a concepção apresentada pelo chamado feminismo de “segunda onda”:
Ainda segundo a autora, tal entendimento seria mudado pelo feminismo de “terceira
onda”, para o qual “tanto gênero quanto sexo são meros “‘discursos normativos’”. (Idem, p.
43). Esse feminismo de “terceira onda”, de alguma forma, costuma ser associado ao “feminismo
pós-estruturalista” e consequentemente aos estudos transviados, principalmente em Butler
(2017), para quem “não existe a distinção sexo/gênero em linhas convencionais; o gênero é
embutido no sexo, e o sexo mostra ter sido gênero desde o princípio”. (p. 197).
36
Ao dialogar com Wittig, Butler (2017) aponta que “ “masculino” e “feminino”, “macho” e “fêmea” existem
unicamente no âmbito da matriz heterossexual”. (p. 192).
85
namorar/se envolver/ se relacionar com pessoas de qualquer gênero. Melanie coloca que o
transgênero pode “se relacionar com pessoas de qualquer gênero [...]. Pode ser um (a) transexual
hetero, bi ou homossexual”. “Uma pessoa trans pode ser hétero ou gay (homossexual)”, relatou
Elton, em conformidade com Victoria, que afirmou que tal relacionamento pode se dar com
qualquer gênero. A exceção foi Geri, ao afirmar que a/o transexual se relaciona com indivíduos
“do mesmo gênero biológico, pois se identifica com o sexo oposto do seu. No entanto, tenho
dúvida se ocorre sempre assim”. Nessa sua fala, fica mais evidente que a pessoa transexual, ao
romper com a matriz de inteligibilidade do regime heterossexual (a princípio, por seu gênero
estar em “desacordo” com o sexo, segundo a biopolítica dessa mesma premissa), tumultua a
compreensão, sendo uma espécie de gênero “ininteligível” conforme apontado por Butler
(2017):
Nota-se também, na fala de Geri, a expressão “gênero biológico”, remetendo a uma ideia
de que não é só o sexo um fenômeno biológico, mas também o gênero. Ao contrário de Butler,
para quem o sexo e o gênero são o mesmo fenômeno, ambos sem determinações essencialistas,
para Geri parece que sexo e gênero são uma coisa só, aqui entendida como derivada de uma
espécie de essência biologizante. Logo, sua fala de que uma pessoa transexual namora alguém
“do mesmo gênero biológico” é provavelmente uma reprodução da ideia de que o gênero da/o
transexual é o mesmo de um possível parceiro heterossexual, sendo presumido que tal relação
nem fosse vista como heterossexual dentro da visão de Geri. Entender a relação de uma travesti
ou de uma transexual com um homem como sendo uma relação homossexual não é um
entendimento exclusivo de Geri, pois, segundo Colling (2018), até o fim do século XX era
comum essa visão da travestilidade como uma derivação da homossexualidade masculina,
inclusive por parte das próprias travestis.
Todavia, quando, em parte mais adiantada da oficina, foi solicitado para que as
participantes desenhassem em fichas-cartão especificamente um homem transgênero ao lado da
pessoa com quem pode namorar, o resultado foi mais conservador do que o do questionário
prévio, no qual a maioria – como vimos – colocou que uma pessoa transexual/transgênera pode
se envolver com pessoas de qualquer sexo/gênero. Aqui, a diferença é que além de ser solicitado
um desenho, e não só uma resposta escrita, a pergunta foi mais específica, por delimitar a figura
86
do homem transgênero, o que, em certo sentido, pode ter levado a respostas menos abertas, pois
em quase todas as fichas-cartão, o que foi desenhado foi um casal heterossexual, no qual o
homem transgênero era acompanhado de uma parceira de gênero feminino. As exceções foram
Elton e Melanie.
Figura 6: Desenho de Elton, representando as possibilidades de um homem transgênero poder namorar tanto
um homem quanto uma mulher.
Fonte: pesquisador.
Elton optou por um desenho que mostrasse que um homem transgênero pode se envolver
tanto com mulheres quanto com outros homens. Já Melanie fez um desenho ambíguo, pois
retratou uma figura com estereótipo de gênero masculino de mãos dadas com outra figura
notadamente sem estereótipo de gênero, podendo ser lida com um homem, como uma mulher
ou, quiçá, até mesmo alguém com identidade não-binária ou andrógina. O que deixa seu
desenho mais instigante é que embora saibamos que um dos membros do casal é um homem
transexual, não é possível afirmar qual dele é, visto que, em um primeiro momento até
poderíamos julgar que o homem transexual seja a personagem com barba, mas nada nos garante
que não seja o contrário.
87
Figura 7: Desenho da participante Melanie, retratando casal formado por uma pessoa de estereótipo de
gênero masculino ao lado de um(a) parceiro(a) de expressão de gênero indefinida.
Fonte: pesquisador.
Outro aspecto que nos chamou a atenção foram falas das participantes que revelam um
entendimento de que as identidades sexuais e de gênero divergentes (homossexuais e
transexuais, principalmente) seriam “novidades”, que estão chegando agora às escolas e que
deixam professores e equipe gestora sem muita noção de como agir. Geri coloca:
Eu que ainda é muito pela… ...eu acho que o mundo não está preparado
para esse tipo, né, de, de situação, imagina a criança, ela vai crescer, ela
ser inserida na sociedade, ela vai para a escola, daí a primeira coisa lá
89
quando começam a falar da família, pra ela vai, vai ser uma, um
complicador. Então acho que a gente tem que trabalhar mais isso, tem
que estar preparado, né, para as coisas que virão (Geri, durante fala no
grupo focal).
Geri ainda comenta que os professores de sua escola estão preparados para lidarem com
as diferenças devido ao fato de terem que se preparar por causa da necessidade de trabalhar a
“novidade” para com os alunos:
[...] “ não é que não estamos preparados, nós tivemos que nos preparar
porque tá pipocando muitos casos que nós precisamos saber pra que a
gente possa trabalhar com isso na cabecinha dos alunos”, igual tem um
aluno que chega lá escola, sexto ano, né, que já sabe, “eu não, eu sou
homossexual” e cabô [sic], entendeu? (Geri, durante fala no grupo
focal).
E continua:
Então a gente precisa estar adaptada com as, com o novo cenário que
nós estamos encontrando (Geri, durante fala no grupo focal).
De modo geral, Geri coloca que a diferença sexual e de gênero é uma espécie de
“novidade”, para a qual a sociedade não está “preparada”. Todavia, os professores de sua escola
estariam na contramão, preparados quase que por obrigação, pelo fato de surgirem cada vez
mais “novos casos” de alunos divergentes da matriz de inteligibilidade.
Portanto, a “novidade” não é tão novidade. A novidade, aqui, também não é benéfica,
pois, retomando a fala de Geri, há a necessidade de se “trabalhar isso na cabecinha dos alunos”.
Percebe-se aqui, além da já citada “pedagogização”, a ideia de que os divergentes da matriz de
inteligibilidade são os “monstros” (SILVA, 2000), que causam confusão, pois:
[...] eles são híbridos que perturbam, híbridos cujos corpos externamente
incoerentes resistem a tentativas para incluí-los em qualquer estruturação
sistemática. E, assim, o monstro é perigoso, uma forma – suspensa entre
formas – que ameaça explodir toda e qualquer distinção. (COHEN, 2000, p.
30).
...Eu lembro o ano passado, logo nos primeiros dias de aula ele ia assim,
pegava a camiseta e dava um nó, ele passava uns brilhinhos, né?
(Victoria, durante fala no grupo focal)
Jesus (2014) coloca que quando “anunciamos a existência de pessoas trans, muitas são
as reações, muito poucas amistosas. E fora da zona muda dos espaços politicamente corretos,
os preconceitos afloram visualmente e verbalmente.” (p. 10). Os apontamentos de ambos
autores (Vidarte e Jesus) se revela na fala de Victoria:
Aqui, percebemos claramente a aluna sofrendo o que Louro (2018, p. 16) chama de
“pedagogias corretivas” e Junqueira (2012) de “pedagogia do armário”, que incide
principalmente sobre os corpos trans, que, conforme Trujillo (2015, p. 1532) aponta, revelam a
violência do próprio binarismo de gênero, e que, justamente por isso, são mais vitimizados.
Esses corpos-monstros, ao serem vitimados pela violência transfóbica e cisnormativa, servem
também – paradoxalmente – para a delimitação da normalidade:
Não podemos deixar de pontuar que Geri e Victoria apontam o caso de uma aluna
transgênera de fato, mas que só teria assumido sua nova identidade feminina após terminar os
estudos na educação básica, quando ainda era conhecida como Lucas. Sobre isso, afirma Dinis:
Fernando, segunda elas, foi obrigado a dar “uma maneirada” em sua viadagem, seus
trejeitos femininos indicadores de uma possível transexualidade/travestilidade futura. Por sua
vez, Lucas só assumiu a identidade transgênera após se formar na escola. Em ambos os casos
temos educandos que não abandonaram a escola, mas que tiveram que criar estratégias de
resistência/sobrevivência para que pudessem continuar seus estudos, mesmo que essas
estratégias envolvessem a ocultação parcial ou completa de suas respectivas monstruosidades.
Até que ponto a ausência de ou a baixa escolarização podem ser responsabilizadas pelos
preconceitos sociais? Louro (2018) argumenta que o próprio currículo escolar não dá conta da
multiplicidade sexual e de gênero porque “aquele/a que a admite pode ser tomado/a como
particularmente implicado/a na multiplicidade.” (p. 62). Duas informações importantes
93
aparecem aqui, sendo a primeira a de que não saber é não se implicar 37 e a de que, justamente
por isso, o currículo escolar não apresenta essa multiplicidade, pois, falar sobre “viados” e
“sapatões” torna, logo, você “viado” e “sapatão”. Com isso em mente, explicar a homofobia
como resultante da baixa escolaridade é um discurso que idealiza ainda o espaço escolar como
emancipador e libertador, revelando concepções curriculares da teoria crítica.
Voltando à marcação do pai do menino gay como uma pessoa ignorante de baixa
escolarização, outra possível causa de não aceitação, segundo as participantes, seria o fato de
supostamente as mulheres lésbicas sofrerem menos preconceito de que os homens gays:
Além disso também, é, além de ser machista, eles pensam assim, tipo,
ah o fetiche de duas mulheres, tem toda essa questão também, por isso
que a lésbica, normalmente, é mais aceita na sociedade que o gay.
(Elton, durante fala no grupo focal).
Tal suposição costuma ser rechaçada pelos estudos lésbicos (que não são
necessariamente transviados, mas com os quais podemos dialogar), que apontam para o fato de
a lésbica poder sofrer mais violência simbólica do que o homossexual masculino:
37
o que me recorda as lembranças de infância, quando questões minhas sobre casais gays que via na TV eram
censuradas sob o argumento de que “era melhor não saber.”
94
Rich (2010) também é uma autora lésbica que se contrapõe à ideia de que as lésbicas
sofreriam menos preconceito do que os homens gays. Argumenta ela que uma lésbica sofre
mais pressão no trabalho, pois enquanto o homossexual masculino apenas precisa esconder sua
orientação sexual, a lésbica precisa não só escondê-la, como também desempenhar um papel
feminino heterossexual de subordinação ao poderio masculino. Neste sentido, afirma não se
surpreender que “as lésbicas sejam vistas como uma população mais escondida do que a dos
homossexuais masculinos.” (Ibid, p. 41).
Curiosamente, Melanie percebe esta invisibilidade das relações lésbicas, ao apontar que
a relação homossexual masculina é um “tapa na cara mais forte”, sugerindo que por conta disso
os homossexuais masculinos sejam mais vitimizados pelo preconceito do que as mulheres
lésbicas. Sua fala também remonta a ideia de que uma sexualidade, para ser viabilizada
socialmente, deve estar associada às ideias de amor e de constituição familiar, pois caso assim
não seja, estaria essa sexualidade fadada ao papel de mero fetiche. E, conforme já
demonstramos, a família nuclear - já elogiada por Melanie no caso de Thomas Beatie - seria a
forma de legitimação que contrariaria a fetichização do corpo lésbico, ao mesmo tempo em que
a incluiria no sistema (VIDARTE, 2019). Fetiche ou heteronormatização seria aqui a
encruzilhada exposta.
95
5 (DES)CONSIDERAÇÕES
Porém, não podemos deixar de apontar que dentro dos parâmetros da pesquisa
acadêmica, podemos avançar para um olhar mais apurado sobre nuances importantes desse
sistema cis-heteronormativo, e, aqui no caso, se há sua presença, e em que medida, no ensino
de ciências e de biologia que se dá na educação básica.
Todavia, conforme já dito, nossas participantes demonstraram uma filiação dupla sobre
essas duas perspectivas, não havendo nenhuma sinalização em suas falas iniciais que
demonstrasse qualquer entendimento mais próximo da compreensão pós-estruturalista e/ou
transviada sobre o sexo, o gênero e a sexualidade. O sexo era visto como natureza biológica,
ligado à anatomia e aos aparelhos reprodutores, ao passo que o gênero - mesmo que em alguns
momentos também associado a fatores biológicos - era predominantemente ligado à sociedade
e à cultura. Mesmo em suas falas durante o fim da oficina, ou no questionário posterior, não
revelaram que os professores tenham rompido significativamente com os pressupostos da
matriz de inteligibilidade heterossexual e do feminismo de segunda onda.
Não temos aqui a ilusão de considerar que isso representa uma quebra do paradigma cis-
heteronormativo presente na sociedade, havendo, inclusive, o risco do que poderíamos chamar
de “biologização” das identidades intersexuais, sendo elas encaixadas enquanto uma categoria
a mais do que muitos militantes chamam sagazmente de “CIStema”. Todavia, questionar o
binário de sexo/gênero com base na intersexualidade - tão discutida pela literatura transviada -
se mostrou a ponte pela qual é possível fazer a aproximação inicial de docentes da área de
ciências e de biologia para com os entendimentos pós-estruturalistas do transviado. Dito de
outra forma, e utilizando de uma expressão popular, “dá mais samba” discutir Preciado do que
Butler com professores da área. E neste sentido, consideramos pertinente que pesquisas futuras
se debrucem sobre o tema da intersexualidade nas aulas, materiais didáticos e nas próprias
concepções de professores de ciências e de biologia, como forma não só de observar estes
aspectos, como também de inferir sobre possibilidades da própria intersexualidade poder
funcionar como ponte de aproximação entre estas disciplinas escolares e um entendimento mais
transviado e transfeminista sobre os corpos e as vidas.
transviado das aulas de ciências e de biologia da educação básica. Por ora, vimos que não foi –
ainda – possível dar o queer no ensino de ciências, e possíveis estudos futuros talvez
demonstrem caminhos para que – finalmente! – o queer seja transviadamente dado.
99
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APÊNDICES
107
APÊNDICE A
HQ de Bill Roundy
108
109
110
111
112
113
APÊNDICE B
Áudio a
((silêncio)) [00:00] a [01:07]
F1: nesse terceiro, os cursos que fez são só os voltados pra este fim ou pode ser outro?
P1: qualquer curso, especialização, mestrado, doutorado...
((silêncio)) [01:18] a [01:35]
F1: acho um curso muito grande… mestrado… aqui... Ensino vírgula história...
P1: mas agora mudou, agora é, é ensino história só, depois filosofia...
F1: mestrado em...
P1: ...ensino em história das ciências e da matemática.
((silêncio)) [01:52] a [03:50]
F1: ((inaudível))
P1: tem, a gente vai pegar o nome de vocês, RG...
((silêncio)) [04:00] a [04:20]
F2: ((inaudível)) eu apoio uma professora de ciências...
F1: é.
F5: ((inaudível)) …eu não sou professora, eu apoio ela.
P1: você está trabalhando, não é? Isso que importa.
F5: ((inaudível))
F1: ...espaço pequeno aqui.
P1: ah tá, qualquer coisa pode escrever na outra folha no final... ...fazer uma continuação…
((silêncio)) [04:55] a [06:15]
F5: ((inaudível))
F1: vou por aqui do lado “professor de educação”.
F5: ((inaudível))
114
Áudio b
((silêncio)) [00:00] a [11:57]
F5: ((inaudível))
P1: Obrigado.
F1: de nada.
P1: bem pessoal, a gente vai...
F1: ((inaudível)) por favor?
P1: oi?
F1: depois você me passa o ((inaudível))?
P1: ah, sim, pode ser.
P1: pessoal, então a gente vai começar agora a, mais uma parte da nossa oficina, tá? Eu vou
distribuir pra vocês... ...algumas fichas. Vocês podem perceber que em cada uma das fichas tem
115
uma parte da frente e do verso, tá? E aí, tanto faz, qual a parte da frente e qual é o verso, aí,
vocês decidem, tá? É::: a primeira tarefinha simples que eu vou passar pra vocês... ...é que nessa
ficha cartão... ...vocês deverão desenhar::: uma... ...pessoa... ...grávida.
F2: ((risos))
P1: é aquilo que eu falei, não precisa ser nenhum grande artista, né? Não precisa ser nenhum
Leonardo da Vinci?
F2: ((inaudível))
P1: mas tentem, tentem fazer aí aquilo que vocês, na medida que vocês conseguirem, tá bom?
F2: ai, meu deus.
((silêncio)) [13:08] a [13:18]
F2: deixa eu ver, o seu está quase igual ao meu...
F3: ((risos))
F1: gente, eu só conheço grávida.
F3: ((inaudível))
F2: eu acho que ele ((inaudível)) ele já arrumou mais, trouxe tudo, você viu?
P1: ((riso))
F5: ((inaudível))
F2: meu deus.
P1: eu falei, gente, não precisa ser nenhuma obra de arte, não é? ((riso))
F2: essa brincadeira, eu não gostei de desenhar.
F4: desenhar já não é fácil.
F2: ele vai rir do meu desenho, tá? Vão falar “nossa, é uma criança de 5 anos” mais ou menos.
((riso))
P1: caso vocês queiram, pessoal, é opcional, vocês também podem colocar alguma palavra,
também podem escrever alguma frase, que vocês acham que possa estar associada à gravidez.
F5: ((inaudível)) ((riso))
((silêncio)) [14:24] a [15:07]
F5: ((inaudível))
P1: ah, pessoal, um detalhe, só preencham o nome de vocês na ficha, pode ser num espacinho
pequenininho, tá? Não precisa ser grande.
F1: só o primeiro nome?
P1: pode ser só o primeiro nome.
((silêncio)) [15:19] a [17:12]
F1: terminei
F1: ele está pintando.
((risos))
F2: Miga, nota 10.
116
Áudio c
((documentário)) [00:00] a [09:55]
P1: aí a gente só vai colocar a segunda partezinha, tá bom, pessoal?
117
Áudio d
((silêncio)) [00:00] a [00:04]
P1: bem, pessoal, então a gente vai agora continuar na ficha cartão de vocês, vocês vão poder
virar o verso da ficha, e ai agora vocês terão a opção de produzir um outro desenho, caso
queiram, alguma frase, alguma coisa relacionada ao vídeo, que chamou a atenção de vocês.
Pode ser uma frase, uma palavra, um desenho, é, conforme vocês quiserem, tá? Algo
relacionado ao conceito de uma pessoa grávida, e o que chamou a atenção de vocês em relação
ao documentário. Se vocês colocariam um novo desenho, se vocês mudariam, se vocês
gostaram, se não gostaram... ...é pra vocês se expressarem.
((silêncio)) [00:51] a [07:01]
F1: ((inaudível))
P1: pode escrever aí mesmo, não tem problema. Se quiser mais uma.
F1: ((inaudível))
P1: então, gente, vamos conversar um pouquinho, né? Eu queria que você falassem para mim,
o quê que vocês acharam do vídeo, da reportagem, qual foi a impressão de vocês tiveram, o que
sensibilizou vocês, chamou atenção, o que chocou, qual, quais são as impressões de vocês?
H1: ah, a gente pensa de primeira, logo quando a gente pensar em gravidez, logo vem a imagem
da mulher, a gente não pensa na possibilidade de um homem estar grávido, né, e quando a gente
pensa na questão do gênero, a gente relaciona o gênero feminino, a mulher como na genitora
de tudo e hoje com essas possibilidades, não somente a mulher pode ficar grávida, o homem
também pode ficar grávido. Isso que me chamou a atenção foi, foi ter::: eu já, eu já tinha visto
esse documentário já, na Discovery, mas não tinha me atentado a isso quando você fala desenha
uma pessoa de... ...ah, grávida, ai você vai lá, faz uma bonequinha e você não pensa nas duas
possibilidades.
P1: mais alguém?
F3: há muitos anos atrás nós tivemos um filme com o Arnold Schwarzenegger, que ele era
grávido, mas a gente sabia aquilo era um absurdo na época porque a gente sabe que se você não
tiver um sistema reprodutor, né, feminino aquilo é impossível. É ficção. Até você ver o caso
real, né?
F2: acho que forma que foi abordado isso, traz muita estranheza. Eu acho que fica difícil das
pessoas entender realmente, quando você fala um homem grávido a pessoa já vem com três,
quatro, cinco pedras na mão. Eu acho que teria que ser abordado de outra forma, né?
F3: é o rótulo, né?
F2: exatamente, aí causa estranhezas.
F2: eu que ainda é muito pela... ...eu acho que o mundo não está preparado pra esse tipo, né, de,
de situação, imagina a criança, ela vai crescer, ela ser inserida na sociedade, ela vai pra uma
escola, daí a primeira coisa lá quando começam a falar da família, pra ela vai, vai ser uma, um
complicador. Então acho que a gente tem que trabalhar mais isso, tem que estar preparado, né,
para as coisas que virão.
P1: mais alguém queria comentar alguma coisa?
118
F1: mas antes eu queria assim, a gente poderia se apresentar, só pra eu saber, todos dão aula de
biologia aqui?
F2: eu acho que sim.
P1: ah, se vocês quiserem se apresentar, podem, claro.
F1: só pra saber, somos todos professores de biologia, né?
F2: sim.
F1: então tá bom. Olha, eu adorei... ...o vídeo... ...acho que a maneira que foi colocada, foi uma
forma que mostra a forma que acho que deveria ser, espontânea e aceita pela sociedade. Eu já
assisti outros vídeos ((inaudível)) tentei baixar porque no ano passado, a escola de ensino médio
que eu trabalho tem um trabalho de conclusão do ensino médio e tinha um grupo de alunos
muito interessados na questão, enfim eles acabaram em outro caminho. É, inclusive, a parte, se
a gente for pegar a parte biológica mesmo na hora de ensinar diferenciação sexual, masculino
e feminino, como item embrionário é uma coisa bem complexa para a terceira série eu também
acho e pra mim, né, explicar o complexo para uma sala com mais de quarenta mas a gente vai
discutir isso na época. Mas voltando ao vídeo, tem um vídeo, um documentário, não é vídeo é
documentário, que é extremamente importante para que a gente veja como é que o mundo lá
fora olha pra essa questão. Em alguns países do mundo, crianças há doze anos já vivencia, eles
mostram, há relatos dos depoimentos das crianças que vivenciando, porque tiveram a
oportunidade no núcleo familiar de ter apoio para expressar mesmo o conflito que é: ter um
corpo e não ter identificação social com o sexo do corpo dela. Mas é maravilhoso e maneira
que coloca também mostrar o sofrimento da pessoa o quanto é importante a gente ouvir as
pessoas nessa condição. Eu gostei bastante, aí assim, o homem grávido, esse filme eu não
conheço, mas assim, é muito legal, é romper estereótipo mesmo, eu gostei.
P1: gostaria de comentar alguma coisa?
F4: eu gostei, acho que o que ele traz, ele começa, como o colega falou, ele vem trazendo a
história de vida do Thomas, né?
P1: sim.
F4: e aí, chega, não começa com o rótulo o homem grávido, ele vai trazer, embora a mídia tenha
feito isso, inclusive trabalham essa questão, eu até coloquei aqui, acho que é muito legal que
ele mostra uma família como ela deveria ser...
F2: uma família normal, né?
F1: ...amorosa...
F2: carinhosa.
F4: ...eles decidiram com planejamento familiar eles fizeram (ver se o dinheiro) estava pesando
melhor, tipo, ele queria ter o parto natural, eles queriam amamentar com o leite... ...veio, assim,
uma preocupação com a criança com o querer, estamos nesse momento, sempre os dois muito
carinhosos como um pai e uma mãe deveriam ser, ser, assim, ao mesmo recebendo várias
críticas, da própria família dele, da mídia, tal. Então eu acho legal, inclusive, no tempo que eu
trabalhava com as crianças quanto a questão do estereótipo de gênero isso quanto, tipo, meu,
isso que deveria ser uma família, né, independente se está dentro do padrão que a igreja coloca,
como é de fato os valores que unem as pessoas e tal. E aí, com a história do Tomas, eu achei
isso bem, bem legal isso aí, e aí, enfim, então eu achei muito, muito bom o documentário, né,
pra descontruir, assim, aliás eu fiquei pensando também na inserção dela na escola. ((inaudível))
119
F2: é, eu acho que a sociedade não está preparada, igual na escola, nós já tivemos um caso de
ter uma família com duas mães.
F4: é isso que eu ia falar, nesse caso que acho que ela ainda vai sofrer menos estranheza do que
o casal homossexual, que é um casal igual ao heterossexual, né?
F2: é, e pra você trabalhar isso na cabeça dos alunos, pra aceitação até mesmo ela, que ela se
achar “nossa, mas eu não sou normal, eu tenho duas mães”.
P1: que idade tinha a aluna na época?
F2: ela estava no sexto ano, ela entrou no...
F3: eles eram irmãos, né, tinha um menino mais velho, a diferença de um ou dois anos?
F2: acho que por aí.
F3: é.
P1: e vocês pensaram de alguma forma como trabalhar isso na escola?
F2: sim, sim, tanto é que a Márcia foi na escola para falar com os professores... A Márcia falou
“nossa, eles estão preparados, né, pra palestra”. Eu falei, até os professores falaram “não é
questão que estamos preparados, nós tivemos que nos preparar porque tá pipocando muitos
casos que nós precisamos saber pra que a agente possa trabalhar isso na cabecinha dos alunos”,
igual tem um aluno que chega lá na escola, sexto ano, né, que já sabe, “eu não, eu sou
homossexual” e cabô, entendeu? Ei aí, como que vamos fazer? Como que nós vamos acolher,
como vamos trabalhar isso como os outros alunos pra que ele não sofra bullyng, entendeu?
P1: sim.
F2: então a gente precisa estar adaptada com as, com o novo cenário que nós estamos
encontrando.
P1: com certeza, então, e aí eu também pergunto pra vocês, né, em vista tudo que a gente viu,
de tudo que a gente discutiu aqui, qual você acha que deveria ser a resposta pra uma criança ou
até mesmo para adolescente, que chega numa sala de aula, numa aula de ciências de biologia e
chega ao seu professor e pergunta “ô, professor, professora, eu ouvi dizer que o homem pode
engravidar é verdade isso?” Que que vocês responderiam para esse aluno?
F1: olha, eu sou professora do sexto ano, essas perguntas elas aparecem mais do sétimo em
diante, né, não sei se vocês estão no ensino fundamental, eu trabalho no fundamental da
periferia de São Paulo...
F2: que lugar?
F1: ...bem complexa...
F1: que lugar?
F1: São Mateus
F2: qual é a escola?
F1: a escola, aquela que pegou fogo, (Inês Pereira Junior).
F2: ah, eu sei onde fica.
F1: então, ali na (Celuz), a::: luz, né, com a condição de vida muito precária, exclusão social
etc. ((inaudível)) mas geralmente é depois do sétimo ano, quando chega no oitavo ou no nono,
a coisa, dependendo de como ela conduzida ela chega a ser sofrimento, né? Então, mas a
pergunta é como que a gente responderia no caso...
120
P1: se um aluno chega e diz “professora, um homem pode engravidar?” O que que vocês, tendo
em vista tudo o que a gente está vendo aqui, é, responderia pra ele?
F1: de acordo com esse vídeo e com esse fato, né, engravida por causa da condição biológica
de um útero desenvolvido.
F2: exatamente.
F1: ...que aí, ela do sexo ((inaudível)) sistema reprodutor feminino, genital feminino.
F2: ah, eu acho que tem que recorrer a questão da lógica (do tratamento).
F3: exatamente, explicar mesmo.
F1: se chegasse pra mim, eu não conhecia esse vídeo, esse fato, eu ia dizer que ia pesquisar,
assim como aconteceu em várias situações, com alunos do ensino médio, que eu não sabia
responder o que eles perguntavam...
F2: olha que interessante, né? Os alunos dela começam a se despertar com sete anos, no sétimo
ano, os meus já chegam lá no sexto ano, já falando “eu sou”, eu acho muito, né?
F3: muitas vezes pedindo “quando que a gente vai ter aula sobre...
F2: sexualidade?”
F2: eles têm curiosidade.
((risos))
F1: eu vou dizer, como eu coordeno a UBA, olimpíada de astronomia, eu sempre começo o
ano com esse assunto, e agora o ano anterior, o quinto também, eles tem ((inaudível)), eu não
sei se por essa razão, mas é por conta realmente, eu acho que é da manifestação hormonal, que
vai acontecendo, ela aparece mais no interesse no sétimo e no oitavo.
F2: e o que a gente observa também no sexto ano, que quando, por exemplo, a menina que falou
“eu sou homossexual”, do sexto ano, que ela assumiu, a família trabalha muito bem nisso, desde
pequena ela já, ela já demonstrava que ela ia ser, e a família começou a trabalhar muito a
respeito disso.
F1: ((inaudível))
F5: a minha escola ficou ((inaudível))
F5: Gabriel Gonçalves?
F5: Gabriel Gonçalves, é.
F3: por outro lado, no caso do menino...
F2: já é diferente, né?
F3: ...e a gente nota isso na aceitação da família...
F2: da família.
F3... No caso da menina, a família dava um apoio legal e a menina super resolvida...
F2: Super.
F3: ... Sem problema nenhum, agora no caso do garoto, que, o pai, né, que não aceitava?
F2: isso, o pai não aceita.
F3: ...já é um sofrimento, é uma luta, é uma loucura.
121
P1: por que que vocês acham que isso acontece? Que tem uma maior aceitação no caso da
menina que do menino?
F2: eu acho que é estrutura familiar.
F2: eu acho que é o esclarecimento mesmo. Você está entendendo? Eu acho que é a
escolarização das, dos pais, eu, eu vou falar, porque a menina veio de uma família bem
estruturada, a mãe já, é outra realidade, o menino não, o pai estudou até sexto ano, então é uma
pessoa que veio, é, é, ele não sabe escrever ler, normalmente então acho que é ali mesmo, acho
que é a base pra a aceitação é difícil, ele é machista também.
H1: além disso também, é, além de ser machista, eles pensam assim, tipo, ah o fetiche de duas
mulheres, tem toda essa questão também, por isso que a lésbica, normalmente, é mais aceita na
sociedade que o gay.
F2: do que o homem, é verdade, isso que você falou é verdade, porque eu já, porque como na
nossa escola a gente tem muitos alunos, né, que já vem assim, a gente começou a olhar de outra
forma, nós pesquisamos mais, e as vezes quando a gente está em certas situações, a gente
percebe isso mesmo que você falou.
Áudio e
F2: ah, pra mim é normal duas mulheres, agora dois homens, é estranho. A gente ouve isso
mesmo.
F1: é bem assim.
P1: e, só para a gente finalizar essa parte da primeira parte da primeira ficha cartão, é, vocês já
tiveram algum aluno ou aluna transgênero e como que foi essa situação? Já vivenciaram?
H1: eu já, tenho dois ex-alunos, os dois são transgêneros e são irmãos.
P1: são transgêneros do masculino pro feminino ou...
H1: isso, masculino pro feminino e do feminino pro masculino. Os dois são irmãos, eu dei aula
pros dois. Pro Bernardo e pra Melissa, então, pra mãe aceitar, é:::, toda a transição, primeiro ela
tem que aceitar que a menina era lésbica e que o menino era gay, pra depois aceitar que a menina
que era lésbica, ela falou assim, “mãe, eu não sou lésbica, eu sou transexual”, então tem uma
nova aceitação. O menino gay, até então gay, ele estava, já estava com 20 anos, falou “mãe,
não sou menino, não queira que eu seja menino, sou uma menina e vou assumir identidade de
gênero a partir de agora”. Agora os dois ((inaudível)).
P1: no caso do, do menino trans ele se assumiu na época da escola ainda?
H1: ele se assumiu na época da escola, no nono ano.
P1: e como foi isso lá dentro da sua escola?
H1: então, na questão do Bernardo, ele sempre foi um garoto muito tímido, né, sempre foi na
dele, tal e nunca dava abertura para as pessoas chegarem perto dele, então pra ele, começou a
sofrer muito bullying, né, tipo, ah, falam assim “você é ((inaudível))” “ah, o machinho, quer
ser machinho.” “((inaudível))” tinha aqueles nomes bem pejorativos mesmo, até que parou de
estudar... ...por conta do bullying e voltou pra fazer EJA.
P1: e os professores da sua escola, como eles lidavam com isso?
H1: ah, então, professores machistas, direitistas, não querem saber da situação do outro.
F2: não tem empatia, né?
122
H1: é, uma antipatia muito grande, a diretora na época, também não queria saber de problemas
“bom, isso não é um problema da escola...
P1: ai...
H1: ...isso é um problema familiar, que a mãe era...”, ela falava “a mãe é uma louca.” Porque a
cidadã era ((inaudível)).
P1: mais alguém teve algum caso de algum aluno transgênero?
F2: não, nós temos lá um aluno, né, inclusive a gente, a gente conversa muito com ele e uma
das coisas que eu pergunto é assim, assim “como que você se sente, o que que você pensa?” A
princípio, ele não, não pensa ainda usar nome social, ele não pensa em fazer nenhum tipo de
cirurgia, entendeu?
P1: mas você...
F2: ...a princípio, quando ele entrou no sexto ano, agora ele está na oitava, né?
F3: ele está no oitavo.
F2: ...agora no oitavo ano eu percebo que isso já está, assim, ele já está chamando mais atenção,
então ele fala “olha, é, é, eu, eu, lembra da nossa conversa assim, assim, eu estou querendo
mais... ...acho que eu vou fazer...” Então assim, ele tá em transição ainda, na verdade, eu acho
que ele tá se conhecendo, ele tá entendendo o que está acontecendo com ele, pra depois ele vir
a escolher o que ele vai fazer ou não.
F3: inclusive ele, eu acho que ele tá sofrendo muito esse ano, ele começou o ano numa outra
escola, mas depois ele voltou porque ele foi agredido na escola pela forma dele se posicionar,
né?
F2: ele foi agredido covardemente.
F3... Eu lembro o ano passado, logo nos primeiros dias de aula, que ele ia assim, pegava a
camiseta e dava um nó, ele passava uns brilhinhos, né?
F2: ele passava máscara para os cílios.
F3: ...às vezes até gloss, tal. Aí, um dia, o Gabriel, que já é outra turma, um problema
completamente diferente, olhou bem pra ele e falou assim, “meu, por que que você vem pra
escola desse jeito, vestido assim, que que você está pensando?” Mas ele não ligou, pra ele,
entrou por aqui, saiu por ali, né? Ai esse ano ele mudou de escola, e mesmo ele tendo, dando
uma maneirada, né, durante o ano eu acho que ele deu uma maneirada da forma d’ele se expor
na escola, aí, ele mudou de escola e lá não aceitaram ele, não.
F2: ele ficou com medo, ele falou “olha eu achei que eu fosse apanhar, aí, eu falei ‘mãe, eu
preciso voltar pra minha antiga escola.’”
F5: aí ele voltou, né?
F2: oi?
F2: é, ele voltou.
F2: aí ele voltou. Faz uns dias que ele voltou lá. Porque assim, nós temos um diferencial muito
grande lá na escola, porque a gente tenta ter empatia...
P1: Sim, importante.
F2: eu falei assim... É fácil pegar e falar “olha aquilo e aquilo outro”, mas eu não me ponho no
lugar. Porque igual, igual as mães que... Igual a diretora falou “ela é uma louca”, mas a gente
também tem que conversar com a mãe, pra ver quais são as angústias dela. Porque uma das
123
coisas da angústia da mãe do Felipe tem relação a como eles vão aceitar, o que o filho dela vai
passar...
P1: segurança, né?
F2: ... O sofrimento, entendeu? Nossa, ela teve um AVC. Ela é supernova, então ela tem muita
dificuldade de falar, e a gente começou a embutir isso na mãe, pra ela ter um olhar diferenciado,
porque assim, qual é o nosso medo lá na escola? Porque d’ele não ter uma aceitação, ele ter,
desenvolver um quadro de depressão, poderá fazer alguma coisa contra a própria vida dele,
porque ele tá com uma angústia muito grande. Então nós chamamos a mãe pra que ela levasse
ele a um psicólogo, pra dá todo esse suporte, aí, foi que nós descobrimos que o pai é totalmente
machista, é contra esse tipo de coisa, entendeu? Então assim, eu acho que as vezes a gente faz
um papel além, né, então as vezes ele fala “ah, eu conheci uma pessoa na internet” eu falo “mas
quem é? Quantos anos tem?” Porque você tem que ainda orientar esse tipo de coisa, pra que
você não seja abusado, né, de repente a pessoa é mais velha, vai ter um contato com você, a
forma não vai ser legal, então a gente tem um outro olhar, a gente tenta cuidar dele de todos os
anos pra que ele não sofra antes da época. Ai a mãe até que está aceitando melhor, eu falei
“você não vai deixar de ser a mãe dele, o amor que você sente por ele vai ser o mesmo, só que,
eu sei, concordo com a senhora que a preocupação vai ser imensa”...
P1: sim.
F2: não é verdade? Mas você queira ele perto de você para que você possa ajudar do que ele
longe. E aí, a gente está trabalhando, né, com essa mãe...
P1: entendi.
F2: ...a respeito disso, mas está aparecendo muito aluno...
P1: e no caso, ele já adota uma identificação feminina?
F2: não, ainda não, ele continua sendo Felipe.
F2: não mudou o nome social, né?
F3: nós tivemos o Carlos, lembra do Carlos?
F2: lembro.
F3: ele trocou sim, mas só depois que ele foi pro ensino médio, né, ((inaudível)) aí, nós vimos
no Facebook que ele tinha...
F2: se assumiu.
F3: ... Inclusive mudou de nome, tudo, tudo, tudo...
F2: deixou o cabelo crescer...
F3: está diferente.
P1: então está certo, gente, é, agora a gente vai continuar com as nossas fichinhas cartões
((riso)). Medo, né? E aqui pessoal, desta vez, vocês vão desenhar, nós vamos de novo pro
desenho, né, uma pessoa transgênera, pode ser um homem transgênero, pode ser um homem
transgênero no caso, ao lado da pessoa que ele namora. Vocês vão desenhar um casal, um
homem transgênero, ao lado da pessoa que ele namora. Coloque o nome de vocês também, por
favor.
((silêncio)) [08:01] a [10:25]
P1: pessoal, eu já vou aproveitar, e vou passar uma ficha pra vocês, que é da presença, só vou
orientar vocês por causa do espaço a fazerem o seguinte, ficou faltando uma informação aqui.
124
Comi bola. Aí, vocês podem colocar o nome completo de vocês, o RG que a gente precisa,
inclui o RG pra fazer a certificação de vocês. Embaixo do nome completo utilizem a linha que
vem logo abaixo para colocar o e-mail de vocês, embora eu tenha, mas só pra gente ter
registrado o e-mail de vocês também, tá bom?
((silêncio)) [10:57] a [11:15]
P1: aproveitar, pessoal, perguntar pra, se vocês gostariam de depois fazer um intervalinho de
15 minutos ou a gente ir direto e talvez sair um pouco mais cedo o que que vocês preferem?
F3: por mim tanto faz.
F2: é, pra mim também, e pra você, minha amiga?
F4: tudo bem.
F5: faz intervalo? Faz intervalo?
P1: intervalinho de 15 minutos depois? Então vamos terminar essa parte.
F1: o que a maioria decidir, pra mim tá bom.
F1: você fecha. ((riso))
F4: mesmo para ir ao banheiro, né, é bom!
P1: é, uns 15 minutinhos pra tomar uma água, ir ao banheiro, pegar um café lá embaixo.
F2: na próxima oficina não esquece de trazer as lancheiras, tá? ((riso))
((silêncio)) [11:59] a [12:18]
P1: então essa é a segunda dinâmica que a gente vai fazer, tá bom, pessoal, e depois quando a
gente voltar, então, do intervalo, aí, a gente vai pra parte teórica mesmo, mais expositiva.
((silêncio)) [12:27] a [12:34]
F1: então, pode ter uma outra condição, né... ...não cabe aqui no desenho agora.
((silêncio)) [12:43] a [12:47]
F1: então, mas como eu trabalho em Mauá, até o ano passado durante muitos anos, anos,
décadas, um vice- diretor, ele é homossexual, ((inaudível)) assume essa função, porque o
coordenador também, e são pessoas incríveis, maravilhosas e os alunos gostam muito deles, e
lá tem um número muito expressivo de alunos dos dois sexos, e lá predomina o sexo masculino
homossexual. Teve um caso só de, nós fomos avisados por esse coordenador que receberíamos
um aluno, uma aluna transgênero, só que ela acho que ela chegou a ir dois dias, eu nem cheguei
a vê-la porque ela só veio em duas aulas ((inaudível)) e não voltou mais.
P1: é uma escola de fundamental dois?
F1: esse é ensino médio.
P1: ensino médio.
F1: a noite é ensino médio, de manhã ((inaudível)) ...então foi assim, algo que... ...nossa,
lamentável, não é, porque de ter tempo nem de conhecer, ajudar...
F2: ficar perto, né?
P1: e você acredita que ela ficou dois dias e não aguentou devido alguma questão de
preconceito?
125
F1: eu acho que já vinha sofrendo, né, preconceito em outro lugar, tentou se ajustar em um, aí
também já chega com um, talvez temerosa, né, então realmente em casa ajuda mais, a sociedade
tem que mudar.
P1: é, pessoal, não sei se vocês sabem desses dados, né, mas aqui no Brasil, a expectativa de
vida de MULHERES transgênero é 35 anos de idade.
F5: nossa, jovens...
P1: tem pesquisas que mostram isso...
F5: mas essa, essa é...
F5: e homens trans?
P1: ai, de homens eu não sei te dizer, mas de mulheres é média de 35 anos de idade.
F4: ((inaudível)) mas eu achava que era de pessoas trans.
F1: oh, Geraldo...
P1: não, são mulheres trans.
F2: e deixa eu te falar o porquê, assim e o que falam, assim, qual, o que...
F3: ...impede...
F2: ...qual é o fator que... ...não deixa que...
F2: ...que limita essa idade?
P1: o que que vocês acreditam que seja? Vou devolver a pergunta. ((riso))
F2: eu acho que (suicídio).
F1: exatamente, é isso que eu acho.
P1: o que?
F5: suicídio
P1: ah, que mais, será que é só? Suicídio?
F1: eu acho que...
F2: e homicídio também.
F1: não é empoderamento também? ((inaudível)), claro a gente tem o exemplo atualmente da
Marielle, né? ((inaudível)) mas eu acho se a sociedade realmente interfere muito na pessoa
assumir, aceitação...
P1: tem dois dados muito interessantes sobre transfobia no Brasil, o primeiro é que o Brasil, em
termos quantitativos, é o país que mais mata travestis no mundo. O segundo dado, é o país que
mais acessa pornografia envolvendo travesti.
F5: a-ham.
P1: na internet.
F2: isso eu já sabia, é engraçado isso, né?
F3: falso moralismo.
P1: é e grande parte...
F2: exatamente, você falou tudo, é um falso moralismo, gente, que eu não aguento.
126
F4: é, eu acho que é uma coisa de fetichizar o que tem ódio também, né?
F2: é...
F4: essa coisa de quando ele coloca na questão lésbica, inclusive eu concordo, é um fato, tem
a, essa fetichilização com a lésbica, mas eu fiquei na dúvida, falou que é mais aceito por isso,
assim (muitas vezes) é inviabilizado, tipo, ah, as mulheres se pegam mesmo mas nem por isso,
elas são lésbicas, amam mulheres, querem construir família com mulheres. O homem já é mais,
incomoda um pouco, escancara mais, é um tapa na cara mais forte... ((inaudível)) de fetiche
((inaudível)) na leitura assim, e aí, quando fala da, desses dois lados da coisa, pra mim incomoda
um pouco essa ideia...
F5: é.
F4: ... A gente procura por fetiche, aí, na fantasia pode, mas não vai ser aceito à luz do dia, na
rua, não vão deixar, então...
P1: onde que vocês imaginam que a maior parte das mulheres trans vão trabalhar?
F4: telemarketing.
F5: prostituição.
P1: telemarketing...
F5: prostituição.
P1: prostituição, e em segundo telemarketing, e por que telemarketing?
F4: porque você não vê a pessoa, só fala com a voz.
P1: isso, exatamente.
F3: a minha irmã trabalhou durante muito tempo, inclusive ela trabalha nesse setor e há uns
anos atrás, ela trabalhava numa empresa e apareceu a primeira TRANS, que até então ou era
gay ou lésbica, mas com aquela imagem diferente, e... ...aí, diz que deu uma confusão muito
grande, porque a moça, no caso, né, ela queria usar o banheiro feminino, e as mulheres normais
se sentiram agredidas com aquela imagem, sabendo que era um homem, né, aquelas coisas
todas, né? “como que vai entrar e usar o mesmo banheiro que a gente?” E diz que foi uma
confusão muito grande... ...até que a moça acabou de... ...pedindo demissão...
P1: muito interessante isso que você comentou, e eu até devolvo pra vocês, se na escola de
vocês tem uma aluna , e ela tá reivindicando o uso do banheiro feminino, isso causa uma
polêmica na escola, como vocês, enquanto gestores, ou professores se posicionariam nesse
debate na escola?
F2: nossa, é complicado, eu já tive um professor que era trans e ele queira usar o banheiro
feminino, mas ele, chiquetoso, assim e nós tivemos um problema muito sério com o grupo de
professores. Porque as professoras não queriam dividir o mesmo banheiro que ele de jeito
algum. Nesse caso lá na escola onde eu estava, não é onde eu estou hoje, tinha um banheiro,
que era de funcionário, e ai nós conversamos com ela, se ela se sentiria a vontade de usar essa
banheiro junto com as funcionárias, né, ai, ela falou “olha, eu não me sinto, eu vou usá-lo, sem
problema ” então nesse caso ela usou o banheiro junto com a gente e porque as professoras não
queriam entendeu? Porque o banheiro dos funcionários tinha chuveiro, elas tomavam banho lá,
às vezes, quando acontecia alguma coisa, então ela usou lá, mas foi um, olha, foi muito
complicado porque ninguém queria aceitar que ele, não, que no caso é ela usasse o mesmo
banheiro.
P1: e, mas qual foi a sua posição nessa discussão?
127
F2: pra mim tranquilo, eu acho que como ((inaudível)) como lei social, como humano, na
verdade eu parto do princípio que é um ser humano e eu tenho que me pôr no lugar e tratar da
melhor forma possível, entendeu, comigo não teve problema. Eu usaria numa boa, eu falei isso
aos professores, inclusive a diretora também falou, mas foi difícil, foi difícil, e aí, ela falou não
sem problema, isso foi no começo.
Áudio f
F2: ...depois que você começa a conhecer a pessoa você traz pra perto, nem foi preciso, ela
acabou usando o nosso banheiro normal. Mas acho que foi o primeiro impacto a primeira
impressão... ...né?
P1: entendi
F2: ... Sei lá o que passou na cabeça do pessoal, o pessoal as vezes até fantasiava um pouco.
((risos))
F3: foi tranquilo, né?
F2: foi tranquilo.
P1: aqueles discursos, né, ai, o cara vai se vestir de mulher para abusar das mulheres no
banheiro, né?
F3: é mais um demônio do dia a dia que a gente enfrenta, né?
F2: exatamente.
H1: lá na escola a gente fez um trabalho em 2016, foi a questão de gênero então todos os
banheiros têm uma placa escrito é, “do jeito que você se identifica, use”, então os banheiros
não têm gênero na escola mais.
F2: legal, né?
F2: e como que está?
F1: a PUC não foi que mudou também, aqui em São Paulo?
P1: aqui também, é aqui tem ...
F2: aqui eu vi, aqui eu vi.
P1: ...vocês viram?
F2: mas como que escolhe?
F4: essa escola que mudou era escola de fundamental?
H1: não, é ensino médio.
F2: e como que foi essa transição do banheiro? Porque igual aqui na universidade, pelo que eu
percebi já veio com essa coisa diferencial, agora imagino num lugar onde já tinha sempre, né?
H1: o problema era o bullying.
F4: devia conversar com os homens... ((inaudível))
P1: não mas, só pra esclarecer uma dúvida, é que assim, o que foi feito aqui, o que foi feito na
PUC são coisas diferentes, né, porque aqui o banheiro ele continua dividido, o banheiro
masculino e banheiro feminino, só tem uma plaquinha dizendo que “esse banheiro masculino é
para uso de todos os homens, sejam homens sisgêneros ou homens transgêneros”. Lá na PUC,
128
vocês, podem levar, de repente é um material que vocês podem usar, né, em algum atividade
pedagógica, didática. Eu vou pedir pra vocês fazerem uma leitura e depois a gente continua.
((silêncio)) [05:01] a [05:23]
P1: ah, pessoal, só uma informação, tá, essa tirinha, ela contém alguns palavrões, tá, espero que
ninguém se choque com isso. ((riso))
F3: é muito diferente do que a gente escuta a cada dia?
F2: no dia a dia, né?
P1: eu acho que vocês já escutam na sala de aula, verbalmente, né?
F2: tem coisa que a gente até fala, “ah, pérai essa é nova, eu não conhecia”.
((silêncio)) [05:44] a [10:36]
P1: pessoal, então está todo mundo aí, já terminou, está terminando de ler, agora na mesma
ficha cartão que vocês receberam essa segunda, vocês vão colocar qual que foi a impressão de
vocês desse desenho, vão colocar alguma coisa que você talvez mudasse em relação ao primeiro
desenho, que você fez, semelhante ao que a gente fez a primeira na ficha, e você vai fazer o
verso, colocando ali uma contraposição, ou uma afirmação, que você fez no início, uma
problematização...
((silêncio)) [11:06] a [11:11]
P1: ...é livre, tá, gente, vocês colocam uma percepção de vocês.
F1: Charlie.
P1: Oi?
F1: você falou ((inaudível)) escrita?
P1: pode ser escrita, ou pode ser desenho, tanto faz, ou pode der uma mistura das duas coisas
também.
F1: ((inaudível))
P1: isso.
((silêncio)) [11:30] a [11:35]
P1: e na primeira, na frente, né, vocês colocaram o desenho de um homem trans ao lado da
pessoa com quem ele, com quem o homem trans namora e agora vocês vão dissertar, desenhar
de novo um pouquinho sobre isso no verso...
((silêncio)) [11:49] a [11:55]
P1: se expressar.
((silêncio)) [11:56] a [12:46]
P1: enquanto vocês estão finalizando, aí, pessoal, a gente já pode conversar um pouquinho, né,
mas e aí, qual que foi a impressão, que que chamou atenção, que que ser sensibilizou vocês
com essa tirinha... ...que que vocês acharam?
F1: ((inaudível)) realmente a busca, parece, de uma definição, essa história querendo entrar
num lugar, ou posição, né, diante da situação, e a questão dos relacionamentos, aqui o
relacionamento como transgênero, né, e é isso, alguém ((inaudível)).
P1: que desconforto ele narra, aí, o Bill Roundy?
130
F1: gostei de tratar da questão do sexo masculino, porque sempre falam de mulheres, né, do
transgênero, parece que isso aqui é bom, né?
P1: como que é? Não entendi.
F1: assim, normalmente os transgêneros, é mulher para o masculino, então, agora aqui no caso,
está tratando da questão de forma diferente, não somos mulheres...
P1: ah, sim...
F1: ((inaudível))
P1: sim, sim, com certeza.
F1: mulher hétero, né, transgênero...
P1: sim... ...mais alguma coisa, gente, algum comentário? Não, por enquanto? Gente, então
vamos fazer 15 minutinhos de intervalo, tá, eu vou pedir, gente, pra fazer 15 minutinhos ali
cravados, tá, até mesmo porque, para gente não... ...se atrasar tanto, tá, porque aí, vem a parte
mais teórica agora, tudo bem? Então, eu só vou recolher as fichas de vocês. Eu vou ficar aqui
na sala, tá, se vocês quiserem deixar algum material alguma coisa aqui, acho ((inaudível)) levar
pro, para a lanchonete. ((inaudível)) vai acompanhá-lo, aí, pode ir também, quem estiver
fazendo aí, pode fazer com calma, sem pressa, tá bom, gente, então, estamos aí no nosso
intervalinho.
Nome: __________________________________________________________
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132
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( ) Ensino Fundamental II
( )Ensino Médio
( ) Outro: ___________
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8. Rede:
( ) pública estadual
( ) pública municipal
( ) privada
( ) outra: ___________________
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( ) Direita
( ) Centro
( ) Esquerda
( ) Nenhum
( ) Outro:_______________________________________________________________
11. Trabalha com o tema sexualidade e educação sexual na escola? Se sim, de que forma?
133
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a) SEXO:
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b) GÊNERO:
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c) SEXUALIDADE:
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13. O que leva uma pessoa a ter uma determinada sexualidade (heterossexual, homossexual,
etc.) e a possuir uma determinada identidade de gênero (ser transgênero, por exemplo)?
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15. Qual foi a sua expectativa ao se inscrever para essa oficina? O que você espera dela?
134
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Nome: __________________________________________________________
1. Se você já trabalha com educação sexual, pretende mudar ou reformular algo na sua
abordagem? O que? E se você não trabalha, pretende começar um trabalho na área? De que
forma?
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2. Algo mudou na sua compreensão sobre os seguintes conceitos? Em caso afirmativo, aponte
a transformação na sua compreensão.
a) SEXO:
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b) GÊNERO:
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c) SEXUALIDADE:
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3. A oficina supriu sua expectativa? O que você mais gostou e lhe acrescentou? O que você
acha que poderia ter sido diferente, caso compreenda que não atingiu todas suas expectativas?
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