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Universidade Federal de Goiás

Faculdade de História
Programa de Graduação em História

Breno Teles Pereira

Celso e a Doutrina Verdadeira: o conflito filosófico entre as concepções


pagãs e cristãs no Império Romano do séc. II–III d.C.

Goiânia
2016
BRENO TELES PEREIRA

CELSO E A DOUTRINA VERDADEIRA: O CONFLITO FILOSÓFICO


ENTRE AS CONCEPÇÕES PAGÃS E CRISTÃS NO IMPÉRIO
ROMANO DO SÉC. II–III D.C.

Monografia apresentada ao Programa de


Graduação em História da Universidade
Federal de Goiás, como requisito para obtenção
do título de Bacharel em História.
Orientação: Profa. Dra. Ana Teresa Marques
Gonçalves.

Goiânia
2016
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar à UFG, que até o presente momento é uma universidade pública e
me permitiu realizar esse trabalho de conclusão de curso que é de suma importância para minha
vida acadêmica. Descendo a hierarquia de instituições, agradeço à Faculdade de História por
ainda manter uma monografia como trabalho para se tornar um bacharel em história; creio que
se para muitos é um sofrimento e uma obrigação, para mim foi um enorme prazer.
Agora, sobre os indivíduos, penso que sem a paciência de minha orientadora, Profa.
Dra. Ana Teresa Marques Gonçalves, eu não teria achado um objeto que realmente tenho
vontade de pesquisar. Passei por várias fontes, como ela bem sabe, mas, essa experimentação
só foi possível devido a ela ter me mostrado que eu pude escolher, pois, ninguém é obrigado a
levar algo em frente só por se sentir submetido ao compromisso. Certa vez me disse que já não
via mais sentido em emprestar seus livros, já que os alunos atualmente conseguem tudo na
internet; não sabes, professora, o valor sentimental que há em receber um objeto de
conhecimento em mãos, o alívio e determinação que a confiança impulsiona. Creio que você é
ainda uma das poucas que entrega seus queridos livros nas mãos de pesquisadores mirins, e isso
faz toda a diferença – para quem leva a sério o que se propõe a fazer, claro –; que ainda
compreende o que é orientar e, por isso, refletiu para mim um exemplo ao qual serei, até a
morte, grato.
Reconheço que de enorme peso – pessoal e profissional – é a presença da Nathália
Queiroz Mariano Cruz. Creio que se para os cristãos a distinção é a.C. e d.C., para mim seja
a.N e d.N. Com ela despertei o gosto pela literatura, pelos origamis, pelas pequenas coisas;
finalmente parei de me esforçar para encaixar em algum lugar e me compreendi. É atualmente
a pessoa mais querida para mim e, apesar da minha forma instável, tentarei mantê-la assim.
Admiro, portanto, que uma pessoa tão justa e correta possa ter me influenciado tanto em dois
anos, e, mesmo que inconscientemente, tenha contribuído significativamente para esse trabalho.
Como para Sidarta que, depois de tantos anos de tolice, só após conhecer Vasudeva encontrou
uma ideia sensata ao finalmente seguir seu coração, decidi por ouvir o clamor do meu ao realizar
que ela, que conhece a si mesma, o fazia.
Ao meu melhor amigo Guilherme Sorbo Fernandes que, até o início desse ano, só
conhecia por meio da internet. Tantos anos se passaram até o acontecimento fatídico que me
fez ter certeza que é possível se ter uma amizade verdadeira, mesmo que a distância coloque
barreiras. Apesar de ter me afastado e até desaparecido, ele ali permaneceu e não desistiu de
mim. Uma amizade que espero levar pela vida toda, com uma pessoa que tenho tanto em comum
e que me é de muita estima. Que Era anormal essa a nossa que nos deparamos com semelhanças
com estranhos em um mundo virtual, não? Mais estranho ainda é que nessa rede cibernética,
onde cada um pode praticamente construir a personalidade que quiser e nunca ser
desmascarado, duas pessoas decidam ser quem realmente são, e resolvam assim prosseguir até
a realidade.
Àqueles que vão arguir esse trabalho, Profa. Dra. Luciane Munhoz de Omena e Profa.
Dra. Dulce Oliveira Amarante dos Santos, duas excelentes professoras e pesquisadoras que
contribuíram com a minha formação acadêmica e que tenho a honra de poder convidá-las para
ler essa monografia. Agradeço também ao Prof. Dr. Ulisses do Valle por ministrar a disciplina
de Monografia e pela recomendação ao primeiro capítulo desse trabalho, que foi de grande
ajuda.
Aos professores que encontrei durante a graduação e que foram fundamentais para
minha formação, os quais não citarei nomes para não gerar uma lista tão longa. Aos livros
literários que, sinceramente, formaram basicamente minha capacidade de raciocinar, ligar
argumentos e tentar escrever bem. A todos os autores acadêmicos que já estão mortos e aos que
ainda vivem, agradeço por me dar o suporte para compor esse trabalho. A Orígenes que, por
mais que quisesse refutar a obra de seu oponente e deixa-la esquecida, não contou com o
imprevisto de que pudessem retirar de sua própria obra o que Celso redigiu – que ironia!
À Mariana Carrijo por ser boa ao nível da ingenuidade; ao Marcelo Miguel por, apesar
de demasiado chato, ser disposto a ajudar; a todos os outros orientandos que pude ver a
arguição, perceber as nuances entre suas falhas e acertos, para, assim, tentar evitar o máximo
possível de erros nessa pesquisa.
O acesso às fontes que seriam de quase impossível obtenção física e que foram
substanciais para minha pesquisa agradeço ao Internet Archive, uma organização sem fins
lucrativos que disponibiliza para todos os pesquisadores do mundo materiais antiquíssimos
digitalizados; ao invés de basear um trabalho apenas em historiógrafos que citam passagens
dessas fontes, pude ter um contato de primeira mão com os documentos. E isso fez toda a
diferença.
Finalmente, fato obviamente decisivo para a minha vida e tudo que aqui está escrito, à
minha mãe, por ter me criado e me parido.

p.s.: assim como a inscrição em Atenas observada pelo apóstolo Paulo, que dizia “Ao deus
desconhecido”, deixo aqui uma inscrição àqueles que não agradeci: “Às pessoas esquecidas!”.
RESUMO
Aos fins do séc. XIX, primeiramente a Europa e, em seguida, as Américas, se
interessaram novamente pelos padres apostólicos. Esses homens, que têm seu esquecimento
iniciado a partir do séc. IV d.C. devido ao Concílio de Nicéia, que foi o primeiro a deliberar
ecumenicamente os nortes da cristandade, são retomados na contemporaneidade para mostrar
ao Ocidente suas raízes influenciadas pelo cristianismo, provenientes do Império Romano. A
religião que conseguiu um maior nível de uniformidade aos fins da Antiguidade e no período
do Medievo – sem deixar, entretanto, de ter cismas e desacordos esporádicos –, nem sempre foi
assim; os primeiros séculos pré-nicenos são marcados por inúmeras seitas cristãs que
futuramente são tachadas como heréticas, dissidentes, deturpadoras da verdade. O cristianismo
propagado pelos primeiros apóstolos segue por vários caminhos, cada qual crendo ser a
orientação à verdade absoluta; homens iletrados que eram os apóstolos – com exceção de Paulo
–, propagando uma nova doutrina, chamam a atenção daqueles que eram alfabetizados e que,
consequentemente, são lembrados como os patrísticos que interpretam os evangelhos, lançando
as bases da cristologia e do que o cristianismo viria a ser. Nesse contexto inicial, Celso, um
provável cidadão romano que se opõe a esses cristãos, tendo também vivido essa efervescência
das primeiras ideias cristãs, presentes em sua obra Discurso Verdadeiro Contra os Cristãos,
apresenta essas circunstâncias em que um movimento que era divergente de suas origens
judaicas, que clamava a ancestralidade de todo o conhecimento greco-romano, que se
pronunciava como o detentor da doutrina verdadeira, não fazia nada mais que reivindicar como
originais aquelas características que perpassavam várias civilizações. Intentamos perceber
nesse trabalho os períodos iniciais desse cristianismo primitivo, abarcando os três primeiros
séculos, com enfoque na segunda metade do séc. II d.C. até a primeira do séc. III d.C., quando
Celso supostamente compõe seu discurso. A partir do mesmo, observamos que o manuscrito
não era um apelo à extirpação desse movimento cristão, mas, uma tentativa de mostrar ao
mesmo os prejuízos que ele acarretava à estabilidade do Império Romano, já que os cristãos se
negavam a participar dos cultos comuns e das atividades públicas. Nosso destaque, portanto, se
faz presente nos meios educacionais desse Império, que pensamos serem um dos sustentáculos
da cultura greco-romana. Almejamos, isto posto, compreender o Discurso Verdadeiro Contra
os Cristãos como um documento que pretendeu combater as crescentes doutrinas e filosofias
cristãs dos dois primeiros séculos, nos quais Celso foi o primeiro autor a redigir um discurso
sistematizado contra o que ele julga ser um grupo religioso instável e contraditório.

Palavras-chave: Celso, Império Romano, Doutrina Verdadeira, Cristianismo Primitivo.


ABSTRACT
At the endings of the 19th century, the apostolic fathers got renewed interest, firstly in
Europe and, then, in the Americas. These men that had been forgotten since the 4th century due
to the Council of Nicaea, the first to deliberate ecumenically the north of Christendom, are
retrieved at contemporaneity to show the West its roots influenced by Christianity, descendant
of the Roman Empire. The religion that obtained a higher level of uniformity at the endings of
Antiquity and on the Medieval period – without, however, having schisms and sporadic
disagreements –, was not always like this; the first ante-nicene centuries feature a countless
number of Christian sects that were considered on the hereafter as heretics, dissidents, distorters
of truth. The Christianity disseminated by the first apostles follows many ways, each one
believing to be the guidance to absolute truth; illiterate men that were the apostles – except Paul
–, propagating a new doctrine, drew the attention of those who were literates and that, hence,
are the ones remembered as the patristics that interpret the gospels, laying the foundations of
Christology and what would become of Christianity. In that initial context, Celsus, probably a
citizen of the Roman Empire who opposes these Christians, having lived this effervescence of
the first Christian ideas, displayed in his work True Discourse Against the Christians, brings
forward those circumstances on which a movement that was divergent from its Jewish origins,
that claimed the ancestry of all Greco-Roman knowledge, that pronounced itself as the holder
of the true doctrine, was not doing nothing more than reclaiming as original those
characteristics that pervaded several civilizations. Our purpose is to perceive in this work these
initial periods of this Early Christianity, covering the first three centuries, focusing in the second
half of the 2nd century B.C. until the first of the 3rd century B.C., when Celsus supposedly
composes his discourse. Based on it, we observed that his manuscript was not a plea for the
extirpation of this Christian movement, but an attempt to show them the prejudices that they
brought about for the stability of the Roman Empire, since these Christians denied to take part
of the common cults and public activities. Our highlight, accordingly, is present on the
educational means of this Empire, which we think to be one of the maintainers of the Greco-
Roman culture. We crave for, that said, understanding the True Discourse Against the
Christians as a document that intended to engage those growing Christian doctrines and
philosophies of the first two centuries, in which Celsus was the leading author to bring forth a
systemized discourse against what he deemed to be an instable and contradictory religious
group.
Keywords: Celsus, Roman Empire, True Doctrine, Early Christianity.
“...quando você iça de um lado a cabeça de Locke, vai-se
para esse lado; mas então erga a cabeça de Kant do outro
lado, e você volta à posição anterior; mas num estado
deplorável. Desse modo, certas mentes estão sempre
tentando retomar o prumo. Ó, insensatos! Jogai ao mar
todas essas cabeças retumbantes e navegareis direto e reto.”
HERMAN MELVILLE. Moby Dick.
SUMÁRIO
I - INTRODUÇÃO................................................................................................................... 9
CAPÍTULO I – Discurso Verdadeiro Contra os Cristãos (II–III d.C.)................................ 18
1.1. Sobre a interpretação do Discurso Verdadeiro.............................................................. 19
1.1.1. Intentio auctoris, intentio operis e intentio lectoris....................................................... 22
1.2. Reconstrução da vida e obra de Celso........................................................................... 27
1.2.1. A Controvérsia Origenista............................................................................................ 31
1.3. Divergências acerca da datação: 178 d.C. ou 200 d.C.?
..................................................................................................................................... 36
1.4. Divisão da obra na atualidade...................................................................................... 41

CAPÍTULO II – Perseguições e Martírios............................................................................ 45


2.1. O contexto sob perspectiva das perseguições contra os cristãos................................... 46
2.1.1. Os mártires e a crescente polêmica cristã...................................................................... 56
2.2. Sistematização do debate: Celso como o primeiro dos polemistas
anticristãos.................................................................................................................... 61

CAPÍTULO III – A apropriação cristã e a ameaça à Doutrina Verdadeira em Celso


.................................................................................................................................................. 65
3.1. A necessidade de um discurso anticristão: dissensões e aproximações acerca de algumas
noções fundamentais..................................................................................................... 66
3.1.1. As apropriações cristãs da Doutrina Verdadeira: a fundamentação do debate de Celso
na perspectiva filosófica................................................................................................ 87
3.2. O choque doutrinário e as mudanças na educação do Império Romano...................... 89

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................... 100


REFERÊNCIAS................................................................................................................... 103
A – Fontes............................................................................................................................... 103
B – Obras de Referência......................................................................................................... 106
C – Obras Gerais.................................................................................................................... 106

ANEXOS.............................................................................................................................. 111
Anexo I................................................................................................................................... 111
Anexo II.................................................................................................................................. 112
9

INTRODUÇÃO1

A res publica romana se expande até abarcar uma área e um sistema institucional que,
de tão vasto, denominamos como Império. Roma e seus domínios transfiguram-se, dessa forma,
em um espaço que absorve, reformula e passa a possuir diversos tipos de manifestações
culturais, mesclados aos de suas tradições. Como expressa Henri-Irénée Marrou (1973, p. 448,
449), o papel histórico de Roma não foi criar uma nova civilização; ao contrário,
responsabilizou-se por implantar e radicar solidamente no mundo mediterrâneo o que
caracterizamos como civilização helenística, pela qual ela mesma fora conquistada. Para o
historiador, a criação original não é o único título com que uma civilização se glorifica. Sua
grandeza histórica, a importância do seu papel na humanidade mede-se não apenas pelos seus
valores intrínsecos, mas inclusive por sua extensão e por sua radicação no tempo e no espaço.
Com Jesus Cristo, durante sua vida e após a construção da crença em torno de si e de
sua morte, o cristianismo aparece, em um primeiro momento, como a seita judaica que acreditou
no messias que a profecia assegurava. Um movimento pequeno, dissidente, encaixa-se como
mais uma doutrina em meio às inúmeras que pululavam pela antiguidade. Concentrando-se na
Palestina e, logo, disseminando-se devido às empreitadas dos apóstolos e de seus seguidores, o
cristianismo ganha espaço no Império Romano; contudo, nada de novo havia em seus mitos de
criação ou nos feitos milagrosos de Jesus, seu fundador. Ao tempo em que nascia o cristianismo,
como escreve Paul Veyne (2011, p. 20), corriam, havia um bom milênio, no mundo pagão,
várias doutrinas e lendas sobre o além ou sobre a imortalidade da alma; os que habitavam aquele
Império se impressionavam com as mesmas. O além era, à época, um problema que se vivia
constantemente e que, em consequência, provocou conversões; Paraíso ou Inferno, o
cristianismo respondeu à questão: "De onde viemos? Para onde vamos?". A morte, fator
aterrador que basicamente faz surgir várias das manifestações religiosas do homem, poderia ser
colocada como apenas um passo para um post mortem no cristianismo: a eternidade nos espera
a todos, ao lado do deus cristão nos céus, ou, com o diabo, no Inferno.
Passam-se décadas e aquela seita dissidente que inicialmente chamava a atenção de
cidadãos comuns e não-cidadãos, espalha-se também entre filósofos, Imperadores e eruditos.

1
Optamos, para melhor compreensão e fluidez da nossa monografia, adicionar notas que 1) exponham certos fatos
que não se encaixem no texto em si e, também, 2) notas biográficas sobre autores da antiguidade, as quais os
números correspondentes estarão unidos próximos aos nomes próprio dos mesmos. O segundo tipo de nota é
meramente explicativo e dispensa teor crítico, relegando ao leitor a preferência de lê-las ou não.
10

As fusões acontecem, a partir desse ponto, devido à tentativa de construção de sua filosofia;
buscar os elementos necessários para isso nas outras doutrinas não era algo improvável: a cada
autor que reflete sobre o cristianismo de forma positiva – ou negativa –, algo ali poderia ser
agregado. Combinando princípios platônicos e estoicos, os patrísticos, provenientes de diversas
partes do Império, versados em grego e latim e conhecedores das escolas filosóficas,
dissertavam e construíam o arcabouço teórico sobre aquele movimento missionário que crescia
exponencialmente. Sobre seu deus, é como escreve Jan Assmann (2010, p. 16): perante esse
Deus Uno, todas as pessoas são iguais. Longe de erigir barreiras entre as pessoas, esse
monoteísmo derruba-as. Continuando sua exposição, o autor ressalta que, religiões a partir
desse ponto, com o cristianismo, transformam-se de um sistema que antes era inextricavelmente
inscrito nos meios institucional, linguístico e cultural, que são condições de uma sociedade,
para um sistema autônomo que emancipa-se de todos esses fatores, transcendendo cada uma
das fronteiras políticas e étnicas, e transplantando-se a outras culturas (ASSMANN, 2010, p.
2).
Como esses seguidores de Cristo, que em seu início eram tidos como traidores de suas
raízes judaicas, conseguem lentamente adquirir seu espaço e, no IV séc. d.C., tornam sua
religião como lícita, ganham espaço dentre as manifestações pagãs e, após isso, sobressaem-se
ante todas as outras práticas religiosas? Acreditamos que, partícipe dos aspectos que
contribuíram para isso, a educação doutrinária é um ponto de suma importância; ponto que deve
ser citado é que compreendemos essa educação cristã do primeiro momento como algo que
abarcava a fé, no sentido de crer sem grandes questionamentos – claro que, como demonstramos
no decorrer do trabalho, os patrísticos possuíam sim, uma fé, porém, não tão livre de reflexões
e dúvidas quanto à dos seguidores menos/não letrados –; contidos nessa fé, percebemos a noção
da parúsia, o fim da história da humanidade com a segunda vinda de Cristo; o martírio como
forma de emular a morte de Cristo, ápice da glória cristã; e a propagação dos evangelhos, que
disseminam os ensinamentos de Jesus. Tais particularidades não passaram desapercebidas e,
alvo de nossa análise, o Discurso Verdadeiro Contra os Cristãos de Celso abarca esses detalhes
de um curioso movimento que procurava por consolidar sua doutrina em um II século que já o
notava como superstitio, termo pejorativo que incitava levantes de teor popular que causaram
perseguições e textos de repúdio aos mesmos.
Optamos, isto posto, por dividir essa monografia em três capítulos expositivos que
seguem, primeiramente, uma apresentação da obra; em seguida, a contextualização da mesma,
revelando o meio e as manifestações culturais que a mesma foi produzida e, ao fim, a análise
do Discurso Verdadeiro de Celso.
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O primeiro capítulo trata de inicialmente entender como a interpretação do Discurso


Verdadeiro Contra os Cristãos, uma obra que se perdeu, mas, foi objetada por Orígenes – a
pedido de um bispo –, um patrístico do III séc. d.C. que tenta contestá-la utilizando-se do
método de transcrever partes da mesma literalmente em seu Contra Celso, construindo em
seguida sua crítica, pode ser lida independentemente das inúmeras complicações de um
manuscrito que só sobrevive por meio da pena de outro autor; esse tópico recorre, portanto, a
uma discussão centrada primordialmente em Umberto Eco (2005) que trata das intenções do
autor, do leitor e da obra.
Conseguinte, desenvolvemos a opinião de Orígenes sobre quem foi Celso e, em
consequência dela, várias outras de autores contemporâneos à nossa época; intentamos obter
assim um panorama geral para constatar as confluências e discrepâncias dessas ideias, para que,
em seguida, haja a possibilidade de um posicionamento crítico. Em seguida, exploramos a
tradição acadêmica que propõe a datação da obra de Celso como 178 d.C., ou próximo disso;
demonstramos, por outro lado, outra hipótese, de Jeffrey W. Hargis (1999), que atesta como as
assertivas de Orígenes e algumas referências de Celso em seu Discurso Verdadeiro podem
ajudar-nos a elencar uma segunda possibilidade: que a obra foi escrita em circa 200 d.C. Além
de expormos tal proposta, adicionamos a ela as reflexões de Andrzej Wypustek (1997), que
coloca o Governo de Septímio Severo como um momento de grande perseguição à algumas
seitas cristãs, embasando-se também nas acusações de proselitismo e feitiçaria. Afinal,
comparamos algumas traduções do Discurso Verdadeiro para justificar ao leitor o livre poder
de escolha entre as mesmas.
No segundo capítulo, analisamos diversas fontes que apontam perseguições aos cristãos;
junto às mesmas, proporcionamos um debate com ideias de autores que procuram por perceber
tais perseguições em um âmbito diferente da figura maléfica dos romanos que não
compreendiam os cristãos. Em seguida, adentramos a especificidade dos martírios, forma de
morte procurada e instigada pelos cristãos como maneira de chegar aos céus antes do
apocalipse. Findamos o capítulo com como as duas causas anteriores, das perseguições e dos
martírios, puderam suscitar discursos de oposição aos cristãos, como o de Celso.
Em conclusão da exposição de nossos argumentos, analisamos o Discurso Verdadeiro
em nosso terceiro capítulo. Como primeiro intuito, verificamos as principais acusações de Celso
contra os cristãos, como a falta de originalidade de noções básicas de sua doutrina em
construção; pretendemos, assim, exibir que Celso não se embasava em menções generalizadas
de imoralidade, fator utilizado previamente para denegrir o cristianismo. A partir disso,
expomos dissensões e aproximações entre as duas concepções. Em uma partição do primeiro
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tópico, exploramos consequentemente os principais pontos de desacordo: o Demiurgo e o logos.


Após as exposições sobre algumas noções fundamentais elencadas por Celso contra os cristãos,
demostramos o que é a doutrina verdadeira para o autor, em oposição ao clamor dos cristãos
de possuírem a verdade. Finalmente, investigamos as questões educacionais baseando-as em
uma análise da forma de educação propagada pelo Império Romano, que sofre influências
helenísticas, e, em conjunto a isso, adentramos a especificidade do cristianismo e seu crescente
papel entre essas doutrinas e filosofias.
Após a exposição da divisão dos capítulos, indicamos ao leitor a nossa disponibilidade
das duas fontes principais: o Contra Celso e o Discurso Verdadeiro Contra os Cristãos.
Das mais antigas às mais recentes, possuímos as seguintes versões do Contra Celso:
ORIGEN. Against Celsus. Tradução de James Bellamy. London: B. Mills, 1660 (inclui apenas
os dois primeiros volumes); ORIGÉNE. Traité D’Origéne Contre Celse. Tradução de Ellie
Bouhéreau. Amsterdam: Henry Desbordes, 1700; ORIGENES. Origenes Werke. Tradução de
Paul Koetschau. Leipzig: J. C. Hinrischs’sche, 1899 (essa obra trata de outras de Orígenes e
dos primeiros quatro volumes do Contra Celso); ORIGEN. Contra Celsum. Tradução de Henry
Chadwick. Cambridge: University Press, 2003 (a tradução de Henry Chadwick para o inglês é
a mais utilizada nos dias atuais; foi feita em 1953, primeiramente, e revisada em 1965);
ORIGENES. Contra Celso. Tradução de Orlando dos Reis. São Paulo: Paulus, 2004. Focamos
nossa leitura, principalmente, nas traduções de Henry Chadwick e Orlando dos Reis: de
Chadwick por ser mais atual e dispor de uma melhor organização textual, além do autor embasar
sua tradução em outras, buscando atingir uma compreensão mais aproximada possível do
original em grego. De Orlando dos Reis por ser proveniente de um tradutor especialista, e, por
encontrar-se redigida na nossa língua materna, facilitando assim nossa exposição.
Sobre a obra de Celso, temos conhecimento de seis traduções do Discurso Verdadeiro,
apesar de acesso a três dessas, que são: CELSE. Logos Alèthès. Tradução de Louis Rougier.
Paris: Jean-Jacques Pauvert, 1965 (francês); CELSUS. On the True Doctrine: A Discourse
Against the Christians. Tradução de Joseph Hoffmann. Oxford: University Press, 1987 (inglês);
CELSO. El Discurso Verdadero Contra los Cristianos. Madrid: Alianza, 2009 (espanhol). As
três restantes são: KELSOS. Die Wahre lehre. Tradução de Albert Wifstrand. Lund: C.W.K
Greelups, 1942 (sueco); CELSO. Contra os Cristãos. Tradução de José Henrique Botelho
Junior. Lisboa: Estampa, 1971 (português); KELSOS. Die Wahre Lehre. Tradução de Horace
E. Lona. Freiburg: Herder, 2005 (alemão). Optamos por trabalhar com a versão de Joseph
Hoffmann, decisão essa que justificamos em um tópico do primeiro capítulo; a obtenção do
exemplar em português tornou-se impossibilitada para a confecção deste trabalho, uma vez que
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a edição está esgotada e sem exemplares seminovos à disposição para compra; o livro, dessa
maneira, não esteve ao alcance de ser obtido e estudado no momento de elaboração dessa
monografia.
Para facilitar a leitura e reduzir pausas necessárias à consulta dos termos, preferimos,
para poupar o desenrolar do nosso texto com explicações intrusivas de conceitos e afins, que
desviam o foco da argumentação, defini-los com antecedência nessa Introdução; avisamos,
entretanto, que dispomos aqui apenas os principais, que mais permeiam o texto e são
fundamentais para sua compreensão.
Determinamos o conceito de greco-romano como Marrou (1973, p. 375) evidenciou, ou
seja, que não há de um lado uma civilização helenística e outra latina, mas, uma Roma que
assimilou e providenciou retoques à cultura ali absorvida. Como escreve Horácio (Epístolas, II,
1, 156), poeta e satírico romano, “A Hélade conquistada conquistou por sua vez seu selvagem
vencedor e trouxe a civilização ao rude Lácio...”. Não compreendemos um teor de superioridade
e inferioridade entre as duas culturas, como Horácio; entretanto, apenas expomos que o âmbito
educacional helênico é presente culturalmente e é reapropriado pelos romanos. Como conclui
Marrou (1973, p. 376), a original contribuição da sensibilidade, do caráter e das tradições de
Roma aparece apenas sob a forma de retoques de detalhe e de tendências que favorecem ou
reprimem aspectos da pedagogia grega. Denotamos, dessa maneira, que o âmbito do termo
greco-romano utilizado nesse trabalho abarca principalmente as questões educacionais do
Império Romano.
Partindo aos conceitos que estão relacionados às religiões e religiosidades, iniciamos
pelo de monoteísmo. De acordo com Giovanni Filoramo (2005, p. 39–40), o termo vem do
grego monos, “único”, e théos, “deus”; é como outros termos com sufixo “-ismo” que
possuímos atualmente. É um conceito classificatório e descritivo que designa as tradições
religiosas que praticam culto a uma única divindade e defendem a unicidade com exclusão de
qualquer outro deus, como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Historicamente, o
monoteísmo pressupõe um politeísmo que tenha sido renegado e combatido em nome de uma
divindade que consolida-se como superior às outras divindades e, posteriormente, única.
Seguidamente, percebemos o conceito de monolatria como aparentemente relacionado ao
monoteísmo, porém, presume que, ao invés de solidificar uma divindade apenas como única, é
o ato de idolatrar apenas uma divindade em meio a um politeísmo, desse modo, não negando a
existência das outras, apenas a devoção.
Outro termo que é utilizado vastamente por acadêmicos da atualidade para conceituar a
pluralidade de divindades de uma determinada religião é o conceito de politeísmo. Segundo
14

Paolo Scarpi (2004, p. 12–15) ele aparece documentado na França do séc. XVI d.C., sendo
utilizado no sentido teológico para se opor ao conceito de monoteísmo. Originário do vocábulo
grego, mescla polýs, “muitos”, e théos, “deus”. No âmbito histórico-religioso, o termo designa
um tipo de religião, classificando e descrevendo um modelo que abarque várias divindades. As
divindades do politeísmo aparecem organizadas num sistema unitário, o pantheon, panteão, que
é superior ao mundo humano. Parte, geralmente, de um estado de desordem do mundo para
uma ordem cósmica, ação dos deuses que progressivamente influenciam o mundo. O politeísmo
é, dessa forma, um modo de pensar o mundo de maneira sistemática por intermédio dos deuses.
Um conceito utilizado nesse trabalho, que abarca os acima descritos, é o de religio; pela
ótica de Adone Agnolin (2013, p. 225), o termo latim religio, em si, expressava inicialmente
apenas a ideia e a qualidade de “ser precisos e escrupulosos com relação às práticas de culto”,
definindo também os que sabiam realizar a escolha ritual adequada. Após a apropriação cristã
de religio, temos um outro termo problemático, pois, pejorativo: paganismo. Pensar o
paganismo é, na nossa proposta, apenas aqueles que não eram adeptos do cristianismo, no
sentido de não acreditarem em Jesus Cristo. Incluímos, portanto, cidadãos e não-cidadãos do
Império Romano que tanto se firmavam no mos maiorum, ou seja, os costumes ancestrais, ou
eram adeptos de qualquer outro culto religioso que não o cristão.
Em consequência à apropriação do termo religio e da posterior definição da ortodoxia
da Igreja, temos o conceito de catolicismo, que aparece pela primeira vez em Inácio de
Antioquia, autor cristão do século II d.C., que utiliza-o para definir a ampla igreja instituída por
Jesus Cristo. O termo é ressignificado ao longo dos séculos para indicar a fé correta, ou seja, a
ortodoxia (FILORAMO, 2005, p. 98). Para explicarmos esses grupos cristãos dos três primeiros
séculos que incluem a ortodoxia e a heterodoxia, mesclando-se entre gnósticos, católicos, dentre
outros, mas, possuindo um ponto em comum, isto é, a crença em Jesus Cristo, optamos
conseguinte pelo termo seita, já que o mesmo remete a ideia de grupos que professam certas
noções religiosas divergentes das anteriores, que eram tradicionais ou dominantes. A referência
como seitas cristãs, dessa maneira, permeia este trabalho.
Findada essa primeira etapa de conceitos religiosos, adentramos os filosóficos.
Expomos, primeiramente, o termo platonismo. Baseado no pensamento de Platão (ca. 428 – ca.
348 a.C.), sintetizada principalmente em suas obras República e Timeu – esta última se constitui
de um diálogo entre Timeu, Sócrates e Crítias –, o conceito de platonismo pode ser marcado
pelos seguintes aspectos: a) a doutrina das ideias, segundo a qual são objetos do conhecimento
científico entidades ou valores que tem um status diferente do das coisas naturais,
caracterizando-se pela unidade e pela imutabilidade; b) a doutrina da superioridade da sabedoria
15

sobre o saber, ou seja, do objetivo político da filosofia, cuja meta final é a realização da justiça
nas relações humanas e, dessa maneira, em cada homem; c) a doutrina da dialética como
procedimento científico por excelência, como método por meio do qual a investigação conjunta
consegue, em primeiro lugar, reconhecer uma única ideia, para depois dividi-la em suas
articulações específicas (ABBAGNANO, 2007, p. 765).
Caracterizamos, em sequência, um desdobramento do platonismo. Como uma forma
diferente de interpretação da filosofia de Platão, denominado médio platonismo, ou, platonismo
eclético, surge após a morte de Antíoco de Ascalão (ca. 130 – ca. 68 a.C.), filósofo categorizado
como eclético. “Médio”, de forma pejorativa, classifica uma parte de transição entre o
platonismo e o neoplatonismo. As características principais são: a) identificação do princípio
da transcendência com o Ser; b) o Demiurgo, criador do Cosmos, possui dois intelectos: um
paradigmático (que contempla as coisas inteligíveis) e o criador (que produz o Cosmos
sensível); c) doutrina dos três princípios do Timeu evidenciadas: o demiurgo, o paradigma, a
matéria. De acordo com Harold Tarrant, em relação ao logos, o médio platonismo se define
principalmente por intermédio de Plutarco (ca. 46 – 120 d.C.)2 e Fílon de Alexandria (20 a.C.
– ca. 50 d.C.)3, que buscam conciliar a filosofia com um sistema religioso maior. O platonismo
se concentra, dessa forma, em uma exegese do corpus platônico, sem utilizar-se de
comparações; intenta, de outra maneira, interpretar Platão, para dessa forma consolidar uma
teoria do logos que, até o momento, possuía muitas outras teorias não-platônicas (TARRANT,
2011, p. 200, 202).
Como último dos desenvolvimentos do platonismo, consideramos o neoplatonismo
como a escola filosófica fundada em Alexandria por Amônio Sacas (ca. 175 – 240 d.C.)4, a
qual possui como representantes de destaque Plotino (ca. 205 – ca. 270 d.C.)5 e Jâmblico de

2
Biógrafo e filósofo moral, proveniente da Queronéia. Acreditava nos deuses antigos e na colaboração entre Roma
e a Hélade. Foi um escritor prolífico, produzindo cerca de 200 livros, sendo que a maioria dos mesmos são de teor
biográfico. Foi platônico e possuiu afinidades com o aristotelismo. Ver: HAZEL, John. Who’s who in the Greek
World. London & New York: Routledge, 2002. p. 196–197.
3
Principal representante do judaísmo helenista, influenciou grandiosamente a prática de exegese, teologia e futuros
patrísticos como Clemente de Alexandria, Orígenes e Ambrósio. Foi educado de forma profunda em filosofia
grega, sendo responsável por um encontro de duas culturas, reconhecível em seus trabalhos; sua obra é sobretudo
de teor exegético, em análise de várias partes da Torah. Fílon é rotulado como um dos filósofos ecléticos da
Antiguidade Ver: CROUZEL, H. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 576–577.
4
A partir das fontes, Amônio foi em princípio um cristão que renegou sua fé para estudar a filosofia grega. Ensinou
em Alexandria por vários anos, tentando conciliar o pensamento de Platão ao de Aristóteles, adequando-se a uma
orientação filosófica de estilo eclético. Ver: LILLA, S. Amônio Saccas. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op.
Cit., p. 87–88.
5
Nascido entre 204–205 d.C., com cerca de 28 anos procura por vários mestres de filosofia em Alexandria,
encontrando, ao fim, Amônio Sacas. Após a morte de Amônio em 240 d.C., participa de uma expedição do
Imperador Gordiano III contra a Pérsia. O Imperador falece e, em consequência disso, Plotino abriga-se em
Antioquia e, posteriormente, vai para Roma, lá estabelecendo suas atividades didáticas e inicia dessa forma a
16

Cálcis (ca. 245 – ca. 325 d.C.)6. Essa vertente filosófica classifica-se como uma escolástica, ou
seja, é centrada na defesa de verdades religiosas que foram reveladas ao homem em tempos
passados, podendo serem descobertas no íntimo da consciência. Possui como fundamentos: a)
a revelação da verdade, de natureza religiosa, manifesta-se por meio das instituições religiosas
existentes e na reflexão do homem sobre si próprio; b) a transcendência divina possui caráter
absoluto: Deus está além de tudo, o sumo Bem; c) teoria da emanação, ou seja, que as coisas
existentes são provenientes de Deus e perdem seu teor de perfeição à medida que se afastam
d’Ele; d) torna-se possível retornar a Deus por intermédio da interiorização do homem, até o
êxtase, que é a união com Deus (ABBAGNANO, 2007, p. 710–711).
Partícipe desse cenário de escolas filosóficas, definimos também aquela fundada por
Zenão de Cítio (ca. 333 – ca. 263 a.C.)7, denominada estoicismo. Os ensinamentos de Zenão
resumem-se em: a) divisão da filosofia em três partes: lógica, física e ética; b) concepção da
lógica como dialética, ou seja, como ciência de raciocínios hipotéticos cuja premissa expressa
um estado de fato, imediatamente percebido; c) conceito de uma Razão divina que rege o mundo
e todas as coisas no mundo, segundo uma ordem necessária e perfeita; d) doutrina segundo a
qual, assim como o animal é guiado infalivelmente pelo instinto, o homem é guiado
infalivelmente pela razão, e a razão lhe fornece normas infalíveis de ação que constituem o
direito natural; e) condenação das emoções e exaltação da apatia como ideal do sábio; f)
cosmopolitismo, significando que o homem não é cidadão de uma pátria, mas do mundo
(ABBAGNANO, 2007, p. 375).
Similarmente importante, há a escola epicurista. Suas diretrizes são traçadas por Epicuro
de Samos (ca. 341 – ca. 270 a.C.)8, do qual deriva o nome de epicurismo. É marcado pelos

escrita de vários tratados. Falece por volta de 269–270 d.C. É o nome mais conhecido do Neoplatonismo. Ver:
LILLA, S. Plotino. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 1172.
6
Proveniente de uma família nobre em Cálcis, estudou junto a Porfírio, um dos grandes filósofos neoplatônicos.
Estabeleceu posteriormente uma escola de filosofia na Síria. É recordado por estudiosos por ser um sublime
metafísico e, por outro lado, por ter introduzido inúmeras formas de superstição em seus textos. Após sua morte
em 325 d.C., Jâmblico relega à posteridade vários textos, sendo que alguns se mantiveram em sua forma completa.
Ver: AFONASIN, Eugene; DILLON, John; FINAMORE, John F. (ed). Iamblichus and the Foundations of Late
Platonism. Leiden: Brill, 2012. p. 1–3.
7
Foi influenciado pelas vertentes filosóficas cínica e pelos ensinamentos de Sócrates, tendo desenvolvido, apenas
em 300 a.C., seu próprio sistema de filosofia. É conhecido apenas por citações de doxógrafos – autores que
possuem referências biográficas sobre filósofos antigos –, sendo que nada além de fragmentos sobrevivem de sua
obra. Ensinou que apenas a virtude era um bem, apesar de que buscar saúde e prosperidade não eram práticas
condenáveis; entretanto, a virtude se faz como propósito maior de vida. Ver: HAZEL, John. Op. Cit., p. 259–260.
8
Em sua infância, Epicuro foi pupilo de um certo filósofo platônico chamado Pânfilo. Após ir a Atenas, por volta
de 323 a.C., aprende a teoria de Demócrito sobre o atomismo. Em 300 a.C. compra uma casa em Atenas, financiado
por conhecidos e, ali, estabelece sua escola, debatendo a influência dos deuses astrais de Platão, entre outros
assuntos. Epicuro intentava mostrar aos interessados em sua filosofia, que é possível viver uma vida de felicidade
imperturbável, desde que se entenda a maneira a qual o Universo funciona. Ver: HAZEL, John. Op. Cit., p. 94–
95.
17

seguintes atributos: a) sensacionismo, princípio que preconiza as sensações para se chegar à


verdade e ao bem; b) atomismo, que explica a transformação e a formação das coisas por meio
da união e separação dos átomos, e o nascimento das sensações provenientes da ação dos
estratos de átomos das coisas sobre os átomos da alma; c) semiateísmo, que, de acordo com
Epicuro, os deuses existem, porém, não interferem em nada na formação e nem no governo do
mundo (ABBAGNANO, 2007, p. 337).
Alicerçado a todas as definições de escolas filosóficas apresentadas aqui, temos o
conceito de ecletismo. Para a Antiguidade, ecletismo é um conceito vastamente utilizado com
intuito de denominar, em um primeiro momento, a apropriação de elementos de várias escolas
filosóficas, sem necessariamente participar de uma. Fílon de Alexandria, por exemplo, fica no
intermédio entre ser categorizado como médio platonista ou simplesmente eclético, pois,
trabalha uma interpretação exegética das Escrituras9 utilizando-se de filosofia grega para
decodificar os ensinamentos de Moisés. Para Myrto Hatzimichali (2011, p. 17, 24), em seu livro
Potamo de Alexandria e a emergência do Ecletismo na Filosofia Helênica Tardia, há uma
diferença muito importante entre os autores que utilizam-se do termo na Antiguidade: Potamo
(séc. I a.C.), por exemplo, procurava fundar uma escola eclética; por outro lado, Galeno (ca.
129 – ca. 217 d.C.)10 e Horácio (ca. 65 – ca. 8 a.C.) pensavam ecletismo como liberdade de
pensamento e escolha, no âmbito filosófico, sem necessariamente se filiar a uma seita filosófica.
O autor ressalta, ainda, que o período de Potamo é caracterizado mais por uma retomada de
renomados nomes da filosofia do que uma tentativa de formar novas direções filosóficas.
Encerramos essa exposição inteirando o leitor que a consulta a todas as traduções do
Discurso Verdadeiro Contra os Cristãos que estão em nossa posse foi feita. Informamos ao
leitor, além disso, que todas as traduções livres nesse trabalho são de nossa autoria.

9
Fílon utiliza-se do termo “Escrituras”; nos referimos aqui, portanto, a livros que comportem o Antigo Testamento,
ou a Torah.
10
Médico e filósofo nascido em Pérgamo, viajou por um tempo antes de se estabelecer em Roma. Foi ensinado
por mestres platônicos. É um dos médicos mais conhecidos da Antiguidade, posteriormente debatido amplamente
na Idade Média. Foi médico dos Imperadores Marco Aurélio e Cômodo. Ver: HAMMAN, A. Galeno. In: DI
BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 595.
18

CAPÍTULO I

Discurso Verdadeiro Contra os Cristãos (II–III d.C.)


“...se a Sorte deixar de existir, a vontade perde o significado
e a História passa a ser nada mais do que simples ferrugem
na enorme corrente de causa e efeito, que só vislumbramos
de vez em quando.”
MISHIMA, Yukio. Neve de Primavera.
Para dissertarmos sobre a obra de Celso, primeiramente devemos conhecer os volumes
que, em seu todo, são denominados Contra Celso11 (ca. 248 d.C.), um dos conjuntos de livros
de Orígenes.
Exploramos, então, as possibilidades de quem pode ter sido Celso; atestamos, de
antemão, que oficialmente o autor não possui referências sobre sua vida em nenhum outro
escrito posterior ou contemporâneo à época, com exceção de breves comentários de Orígenes;
podemos, contudo, demonstrar os possíveis fatores que ainda causam divergências ao se tratar
da filosofia de Celso: se o mesmo era epicurista ou platônico, se era egípcio, etc. Torna-se
necessário expor a retomada e tentativa de reconstrução do texto no século XIX e XX.
Analisamos a vida e obra de Orígenes para a compreensão do texto; entretanto, em
questão de pormenores, adentramos principalmente algumas especificidades sobre o Contra
Celso e, também, sobre a controvérsia origenista que ocorre nos dois séculos seguintes, que
trazem um foco maior para nossa proposta, podendo, dessa forma, elucidar algumas
complicações. Devemos entender tais fatores para que, assim, possamos saber os riscos e as
alterações que as obras de Orígenes possam ter sofrido. Tudo que nos restou do Discurso
Verdadeiro (Aléthés Logos, em grego) de Celso só sobreviveu devido às citações de Orígenes.
Nos oito livros que compõem o Contra Celso, Orígenes transcreve literalmente grande parte do
Discurso Verdadeiro; sabemos disso, pois, o autor utiliza em sua linguagem de escrita frases
como “Vejamos como Celso, que se vangloria de saber tudo, acusa caluniosamente os judeus,
quando diz...” (Livro I, 26); ou “Em seguida, depois de tantas injúrias contra nós, querendo
mostrar que ele poderia formular outras, mas as silencia, assim se expressa...” (Livro III, 78);
e, finalmente, a que melhor corrobora nossa tese, “...para refutar da melhor forma os argumentos
plausíveis, citarei, portanto, os argumento de Celso que seguem depois daqueles a que já

11
Primeiramente escrita em grego antigo, seu nome original é Pròs tòn epigegramménon tôu Kelsou alethê lógon;
a tradução para o latim recebe o nome de Contra Celsum.
19

respondi e lançarei minhas refutações.” (Livro V, 1). Acompanhando tais frases, Orígenes
coloca os dizeres de Celso e, após, tenta analisa-los e refutá-los.
É mister tratar de uma proposta recente (1999) exposta por Jeffrey W. Hargis, em seu
livro Against the Christians: The Rise of Early Anti-Christian Polemic, que coloca a
possibilidade da obra de Celso ter sido escrita por volta de 200 d.C. O autor elenca hipóteses,
baseando-se em bibliografia e partes do Discurso Verdadeiro para comprovar que há outra data
além da comumente aceita de 178 d.C. Dessarte, estabelecer um diálogo entre as referências
que expõem a datação mais utilizada e a nova proposta de Hargis é necessário para,
consequentemente, encontrar um denominador comum e estabelecer nosso recorte temporal.
Finalmente, tratar a divisão da obra atualmente representa também um fato que deve ser
levado em consideração, pois, as modificações dos tópicos da obra são evidentes, devido às
traduções variadas que possuímos.

1.1. Sobre a interpretação do Discurso Verdadeiro

O leitor, ao deparar-se com as diversas introduções das traduções do Discurso


Verdadeiro, possivelmente não deixará de se perguntar: 1) quem é Orígenes e por qual provável
motivo esse escritor tentou refutar o manuscrito de Celso? 2) Como posso interpretar um
trabalho que, previamente, é apresentado por meio da redação de outro escritor? 3) É possível
confiar, mesmo que o autor diga-o, que as citações são literais e fiéis ao texto original? 4) Não
possuindo autoria verificada, data precisa, local, ou sequer uma pequena referência descritiva
em outras fontes, o que podemos concluir sobre essa obra e seu autor?
É imprescindível que o interessado em compreender o Discurso Verdadeiro deva levar
em conta as diversas intepretações possíveis que o mesmo acarreta. Saber que nenhuma delas
será estritamente precisa – não significando, entretanto, que não seja uma hipótese plausível –
tornará possível a nossa contribuição. Iniciemos, portanto, pela pergunta 1.
Orígenes (ca. 185 – ca. 253 d.C.), nascido em Alexandria, foi um dos mais proeminentes
patrísticos. Proveniente de família cristã, escreveu inúmeras obras, dentre alguns exemplos a
Héxapla, uma bíblia em forma de colunas, e o Sobre os princípios, uma tentativa de ordenar a
doutrina cristã, ainda influenciada amplamente pelo médio platonismo. Primeiramente um
catequizador, percebe que tal método se fazia insuficiente para responder às dificuldades e
objeções que convertidos – principalmente intelectuais – levantavam contra a religião. Funda,
consequentemente, um Didaskaleion em Alexandria, uma espécie de centro de ensino que
20

esboçava o que serviria de modelo para a Universidade na Idade Média. Oferecendo um ensino
completo no Didaskaleion, aprofunda na mesma época seus conhecimentos filosóficos. Torna-
se, com o passar dos anos, a personalidade mais conhecida da Igreja em seu tempo. É dele que
recebemos o legado da ciência bíblica (MORAIS in ORÍGENES, 2004, p. 9–17).
Após essa breve apresentação eis, em seguida, os motivos dados por Orígenes para
escrita do seu Contra Celso, penejado poucos anos antes de sua morte:
Mas tu, piedoso Ambrósio, quiseste, não sei por quê, que aos falsos
testemunhos de Celso contra os cristãos em seu tratado e às acusações contra
a fé das igrejas em seu livro eu opusesse uma defesa (ORÍGENES, Contra
Celso, Prefácio, 1).
Orígenes prossegue, logo após, com exposições que justificam o motivo pelo qual Jesus
e o cristianismo não precisam desse tipo de defesa que está prestes a escrever; diz, até, que tal
defesa pode enfraquecer a própria que os fatos apresentam (Contra Celso, Prefácio, 3), ou seja,
o silêncio que Jesus Cristo exibiu perante Pôncio Pilatos ao ser acusado por vários falsos
testemunhos (Mateus 27, 11–14), narrado pelos evangelhos apostólicos.
Posteriormente, criticando aqueles que, tendo algum progresso em conhecimentos
filosóficos, possam reconhecer “...nesta obra um verdadeiro discurso, como Celso a intitulou...”
(ORÍGENES, Contra Celso, Prefácio, 4), encerra suas intenções ao dizer que:
[...]este livro de modo algum foi escrito para fiéis crentes, mas para os que não
têm qualquer experiência da fé em Cristo, como também para os que, nas
palavras do Apóstolo12, são fracos na fé; pois diz ele: “Acolhei o fraco na fé
com bondade” (ORÍGENES, Contra Celso, Prefácio, 6).
Suas palavras no prefácio são claras e dispensam uma explicação. Por outro lado,
possuímos a opinião de Henry Chadwick, em sua tradução do Contra Celso ao inglês. Sendo
uma das maiores autoridades em História da Igreja Primitiva, tendo escrito outras obras13 sobre
Orígenes, comenta, na Introdução, a possível intenção do autor: com a presença de diversas
vertentes filosóficas e doutrinas no Império Romano, demonstrar que os cristãos possuíam uma
inteligência respeitável e que partilhavam de uma doutrina congruente; que não eram violentos
nem que concordavam com as acusações estapafúrdias direcionadas à eles; que não eram
minoria e antipatrióticos. Continuando a exposição, propõe que as disputas permeavam,
principalmente, o âmbito filosófico entre o estoicismo e o platonismo, sendo o estoicismo
utilizado por Orígenes para embasar teorias cristãs, em destaque a da doutrina da providência
divina, que se refere à ação de Deus sobre todos os eventos nas vidas das pessoas, tanto os

12
Trata-se do Apóstolo Paulo. A citação é de Romanos 14, 1.
13
Que são trabalhos específicos sobre, ou, que incluem Orígenes, ver: CHADWICK, Henry. Early Christian
Thought and The Classical Tradition: Studies in Justin, Clement, and Origen. Oxford: University Press, 1966;
CHADWICK, Henry. The Early Church. Londres: Penguin, 1967.
21

passados quanto os futuros (CHADWICK in ORIGEN, 2003, p. IX–XIII). Dessa forma, ficaria
notório o que um manuscrito como o de Celso, sustentado principalmente em uma filosofia
platônica, significava perante uma religião que procurava por espaço de voz e legitimidade;
consequentemente, a defesa de Orígenes poderia se fazer plausível para desconstruir uma
doutrina oposta.
Em relação à datação do Contra Celso, há a discussão entre vários acadêmicos, como
aponta Chadwick (2003, p. XIV–XV), por volta das datas de 246 d.C. a 248 d.C. O consenso
entre os estudiosos14 apresentados pelo autor é de que, no ano de 248 d.C., Roma comemorava
seu milionésimo aniversário, algo que relembrava aos cidadãos a grandiosidade da capital e sua
prosperidade, fruto da boa vontade dos deuses. Inúmeras celebrações tomaram conta do
Império, seguidas de sacrifícios aos deuses. De acordo com Orígenes, constata-se que nesse
período
[...] é provável que acabe a segurança em prol da vida de que gozam os
cristãos, quando novamente os que caluniam de todos os meios nossa doutrina
pensarem que a revolta, levada ao ponto em que se encontra, tem sua causa no
grande número dos crentes e no fato de que eles não são perseguidos pelos
governadores como outrora. (ORÍGENES, Contra Celso, III, 15)
Tal atestação pressupõe que os cristãos passavam por um período de calmaria; todavia,
estavam prestes a presenciar algum tipo de perseguição. Se considerarmos a datação da escrita
como correta, o autor estava preciso e, em menos de uma década, a perseguição oficial do
Imperador Décio (201 – 251 d.C.)15 contra os cristãos se iniciaria, acarretando,
coincidentemente, com a prisão e tortura de Orígenes, que morre anos depois devido aos seus
ferimentos.
À vista disso, uma das hipóteses é que o manuscrito serve de alicerce em tempos que se
tornariam conturbados, perturbação essa que poderia abalar a fé desse “grande número dos
crentes”, além de também auxiliar a propagação da doutrina cristã; um notável estudioso como
Orígenes se prostraria como adequado a responder a Celso, que abandonou as acusações
generalizantes de nível popular – acusações essas que não eram específicas, valendo-se dos
topoi de que cristãos praticavam cultos sangrentos, canibalismo, ateísmo, etc. – para atacar no

14
Karl Johannes Neumann e Adolf von Harnack. Ver: NEUMANN, K. J. Der Römische Staat und Die Allgemeine
Kirche bis auf Diocletian. Leipzig: Von Veit & Comp., 1890. p. 273; HARNACK, Adolf von. Geschichte der
Altchristlichen Litteratur bis Eusebius. Leipzig: J. C. Heinrichs’sche, 1904. Livro II, p. 34.
15
Trajano Décio foi confirmado Imperador aos fins de 249 d.C. Encarou diversos problemas durante seu período
de Império, iniciando tentativas de reunificar o Império Romano. Uma das formas de fazê-lo foi reafirmar a religião
romana, revigorando as práticas cultuais e rituais e, também, restaurando os templos. Devido a isso, marginalizou
e proibiu cultos que pareciam ser perigosos à unidade do Império, incluindo, dessa forma, o cristianismo; focou,
portanto, as autoridades da Igreja. Faleceu em 251 d.C., em uma batalha contra os godos. Ver: SOUTHERN, Pat.
The Roman Empire from Severus to Constantine. London & New York: Routledge, 2001. p. 74–75.
22

cerne da doutrina, certamente provocando grande dano à religião cristã. Percebemos que
cristãos que anteriormente escreviam apologias, após consolidarem grande número de adeptos
e de cativarem outras camadas da sociedade, começam a construir respostas com teor de
“Contra”; nos séculos que se seguem, nota-se que, por exemplo, as duas obras além da de Celso
que são escritas contra os cristãos, de Porfírio16 no III séc. d.C. e do Imperador Juliano17 no IV
séc. d.C.18, são respondidas por vários patrísticos e eclesiásticos da Igreja, como Eusébio
Pânfilo19 e Cirilo de Alexandria20. Uma Igreja que, em seu início, sofreu ataques de diversos
teores, se expande e se consolida para, posteriormente, conquistar espaço intelectual e
consolidar sua doutrina.

1.1.1. Intentio auctoris, intentio operis e intentio lectoris

Faz-se necessário um subtópico para responder as outras perguntas levantadas, pois, as


mesmas destoam da primeira. Adentrando a segunda e a terceira questão conjuntamente,
devemos tratar de analisar uma obra que, dado sua condição, pressupõe-se maculada por um
outro leitor e comentador: Orígenes.

16
Porfírio (ca. 232 – ca. 305 d.C.) foi um dos maiores representantes do neoplatonismo. Profundo conhecedor do
cristianismo e judaísmo, profere o que é julgado o mais forte ataque contra o cristianismo na antiguidade: quinze
livros que suscitaram respostas (ver nota 9) de eclesiásticos reconhecidos, é destruída por ordem dos Imperadores
Teodósio II (401 – 450 d.C.) e Valentiniano III (419 – 455 d.C.). Ver: BEATRICE, P. F. Porfírio. In: DI
BERARDINO, Angelo (org). Op. Cit., p. 1179–1180.
17
Mais conhecido como Juliano o Apóstata (331 – 363 d.C.), foi primeiramente educado lendo sobre o cristianismo
e o judaísmo, pelo bispo Eusébio de Nicomédia (? – ca. 342/343 d.C.). Posteriormente, enviado em prisão
domiciliar para Atenas pelo Imperador Constâncio II (317 – 361 d.C.), recebe grandes influências de filósofos
clássicos, tendendo, assim, a um retorno ao paganismo. Justifica-se, portanto, seu nome de “Apóstata” por ter
abandonado o cristianismo tendendo ao paganismo. Tenta restaurar a religião helênica, passando de uma fase de
tolerância para uma de perseguição contra os cristãos. Falece adentrando território inimigo, em 363 d.C. Ver:
SANFILIPPO, M. L. Angrisani. Juliano o Apóstata. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 791–792.
18
De Porfírio há o Contra os Cristãos, que recebe respostas de Macário Magnes e Eusébio Pânfilo; infelizmente,
essa obra, como a de Celso, sobrevive em partes apenas nos escritos dos autores citados. De Juliano, Contra os
Galileus, há a resposta de Cirilo, bispo de Alexandria, que também traz a obra de Juliano em fragmentos.
19
Nascido na Palestina, Eusébio Pânfilo (ca. 265 – ca. 339 d.C.) foi defensor das teses de Ario (arianismo), sendo
posteriormente excomungado pelo sínodo de Antioquia (325 d.C.) por haver recusado a aderir às fórmulas contra
o arianismo. Entretanto, ainda no mesmo ano, é readmitido pelo Concílio de Nicéia, prostrando-se contra Ario,
colocando-se ao lado do Imperador Constantino. É autor de uma das obras mais importantes para a História da
Igreja, a História Eclesiástica, composta por 10 livros, que abarcam os acontecimentos desde a constituição da
Igreja até a vitória de Constantino sobre Licínio, em 324 d.C. Ver: CURTI, C. Eusébio de Cesaréia. In: DI
BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 536–540.
20
Cirilo de Alexandria (ca. 370 – 444 d.C.) foi um proeminente eclesiástico. Dedica parte de sua vida a combater
o arianismo, escrevendo obras intituladas Tesouro sobre a santa e consubstancial Trindade e A santa e
consubstancial Trindade. Posteriormente, refuta de forma pormenorizada o Contra os galileus de Juliano,
demonstrando assim a vitalidade que o paganismo ainda possuía na época. Ver: SIMONETTI, M. Cirilo de
Alexandria. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 296–297.
23

É certo que o caso não é costumeiro. Não possuímos a fonte propriamente dita, nada
pode provar que a mesma não se passa de uma farsa inventada por Orígenes para legitimar-se
e, ademais, não sabemos da intenção de Orígenes ao afirmar que está citando-a literalmente –
se é que realmente o faz. Com tais incertezas em mãos, é necessário recorrer a uma discussão
sobre interpretação e intenção.
Umberto Eco, em conferências e seminários que deram origem ao livro Interpretação e
Superinterpretação (2005), traz à tona discussões pertinentes ao se trabalhar com um texto:
como identificar a intenção do autor ao escrever um texto? Após escrito, qual a intenção que o
texto por si só reflete? Qual o valor de interpretação que o leitor confere à obra lida?
Uma obra literária receberá diversas intepretações, independentemente de sua clareza e
informações que permeiem-na. No caso do Discurso Verdadeiro, temos trabalhos21 que
exploram como a obra é uma resposta ao incomodo causado pelos cristãos em relação à tradição
romana; que exploram mais o contexto das perseguições incluindo Celso em uma categoria de
conservadores romanos, que utilizou-se de retórica e que deturpou a própria perspectiva22 – que
alegam ser epicurista – para atacar o cristianismo. Várias interpretações são válidas, porém,
como atesta Eco (2005, p. 28), colocar a interpretação como ilimitada não significa que ela não
possua objeto e que se mantenha por conta própria. Levantar a ideia de que um texto
potencialmente não tem fim não significa que todas as interpretações que o mesmo acarrete
terão um fim correto. Se fosse ilimitado, nos prenderíamos em um ciclo de interpretações
indefinidas que procuram sempre um segredo em um texto, acarretando, por conseguinte,
definições por associação que tenderiam ao infinito, encontrando mistérios dentro de mistérios.
O que podemos fazer, assim sendo, para facilitar a interpretação dessa obra tão carente
de indicações que nos ajudem? Primeiramente, devemos explorar o autor dessa obra, que não
se trata de um autor empírico – pelo fato de o mesmo já não viver e não poder expressar opiniões
próprias sobre sua obra –; resta-nos, isto posto, recorrer à intentio auctoris que seja viável.
Intentio auctoris (intenção do autor) é aquilo que o autor pensou ou intentou ao escrever
a sua obra. Como no Contra Celso, que expõe em seu prefácio a provável intentio auctoris, o
Discurso Verdadeiro possui-a aos fins de sua introdução. Na passagem, lemos que:
Suas expressões favoritas são “Não faça perguntas, apenas acredite!” e: “Sua
fé te salvará!” “A sabedoria desse mundo”, dizem eles, “é mal; ser simples é
ser bom.” Se apenas eles aceitassem responder minha pergunta – a qual eu não
questiono como aquele que está tentando entender suas crenças (tendo tão
pouco para se entender!). Mas eles se recusam a responder, e de fato
desencorajam fazer perguntas de qualquer tipo. Por essa razão eu me

21
Que são expostos e debatidos nos próximos tópicos.
22
Discutimos tal assunto nos tópicos seguinte deste capítulo.
24

comprometi a compor um tratado para a sua edificação, de modo que eles


possam ver por si mesmos o verdadeiro caráter das doutrinas que eles
escolheram adotar e as verdadeiras fontes de suas opiniões (CELSO, Discurso
Verdadeiro, I, 55-66).
Isso conclui, consequentemente, que todas as interpretações produzidas por leitores
possivelmente resultarão dessa intentio auctoris original de Celso; entretanto, não possuindo
autor empírico, podemos analisar a intentio operis (intenção da obra) no contexto em que foi
escrita, ou seja, a expansão do cristianismo e suas influências no Império Romano. Analisar a
obra por si só, no nosso caso, tanto nos dará uma intentio operis possível, quanto nos ajudará a
traçar características do pensamento de Celso ao escrevê-la.
A princípio, expondo o intuito de Orígenes para elaborar seu Contra Celso, o leitor, se
perguntando sobre as citações literais do trabalho de Celso, fica em posição de dúvida sobre a
admissibilidade da afirmativa de Orígenes. De fato, é impossível, até o presente, confirmar tal
atestação. Não há – de acordo com levantamento de fontes e bibliografias por estudiosos, ou de
nossa parte ao fazer o mesmo – quaisquer outras fontes, sejam contemporâneos a Celso ou
posteriores, que citem sequer uma passagem do mesmo. Encontramos uma única exceção, em
Sobre Homens Ilustres, obra de Jerônimo (ca. 347 – ca. 420 d.C.)23 que descreve pequenas
biografias sobre homens que ele considerou como ilustres – referência essa não citada ou
indicada por nenhum outro estudioso ou pesquisador que analisamos –, que diz:
Deixem Celso, Porfírio e Juliano aprenderem, fanáticos como são contra
Cristo, deixem que seus seguidores, eles que pensam que a Igreja não possuiu
filósofos ou oradores ou homens intelectuais, conhecer quantos e quais tipos
de homens fundaram, construíram e adornaram-na, e cessem de acusar nossa
fé de tal simplicidade rústica, reconhecendo antes a sua própria ignorância
(JERÔNIMO, Sobre Homens Ilustres, Introdução).
Infelizmente, dos textos que nos chegaram ou que foram encontrados até a atualidade,
esta é a única referência atestável de Celso; sabemos que se trata do mesmo Celso devido ao
fato de ele estar incluso junto de Porfírio e Juliano, outros nomes de destaque nas obras escritas
contra o cristianismo. A referência sequer está entre os 135 homens ilustres que Jerônimo
descreve, estando contida, ao contrário, na pequena introdução que precede o trabalho,
revelando a intenção de Jerônimo exposta na citação acima.
Dessa forma, sem termos poder de comparação, resta-nos ou abandonar o estudo dessa
fonte, pois, a mesma possui informações sobre si muito instáveis, ou prosseguir. Enquanto o
Discurso Verdadeiro original não for encontrado – ou alguma referência mais detalhada sobre

23
Nos referimos aqui à figura mais conhecida como São Jerônimo, proveniente de Estridão, tradutor da Bíblia
para o latim (Vulgata). Jerônimo possui grande importância para a compreensão da controvérsia origenista;
partilhou sua vida com figuras reconhecidas do catolicismo, como Agostinho de Hipona (ca. 354–430 d.C.) e
Atanásio de Alexandria (ca. 296–373 d.C.). Ver: REBENICH, Stefan. Jerome. London: Routledge, 2002.
25

o mesmo –, permanece a proposta de se confiar nas assertivas de Orígenes; de fato, se


pensarmos sobre o assunto, este último não possuiria um grande motivo para criar um
documento que pudesse refutar; uma religião que precisava se legitimar necessitaria, visando
obter maior prestígio no campo doutrinário, contrapor um documento real, do início ao fim,
demonstrando assim a superioridade pretendida por meio de uma resposta sistematizada. O
esquema de citações literais da obra de Celso conviria, portanto, a convencer o pagão e o que
possui uma fé abalável, por meio da exposição ordenada do mesmo.
Acerca da quarta – e última – pergunta, deve-se atestar que os esclarecimentos que
serão apresentados no próximo tópico deste capítulo, apesar de objetivarem uma aproximação
de quem foi Celso, cedem espaço de importância quanto ao texto em si. Conforme Umberto
Eco (2005, p. 77), devemos respeitar o texto, não o autor enquanto pessoa. Contudo, parece
rude eliminar o autor como um alguém irrelevante para a interpretação de um texto. É devido a
isso que a exposição sobre Celso se torna necessária; exposição essa que, em certa medida,
deverá apelar à uma superinterpretação. Segundo Jonathan Culler (2005, p. 131, 135), a
superinterpretação é uma interpretação extrema; resultante do seu teor de risco, muitas delas
podem ter tão parco impacto quanto uma interpretação moderada, por serem pouco
convincentes, redundantes, aborrecidas ou irrelevantes. Porém, sendo extremas, terão maior
possibilidade de esclarecer implicações ou ligações que não foram ainda notadas, sobre as quais
a reflexão pareceu demasiado arriscada. Por conseguinte, tais suposições, apesar de saírem do
campo “seguro” de uma interpretação, podem gerar resultados interessantes. O autor conclui,
assim, que a prática de se fazer as perguntas que aparentam não ser necessárias à “comunicação
normal” podem trazer à tona outras formas sobre o funcionamento de um texto.
Após a futura exposição da persona de Celso no momento da escrita, os prováveis
motivos da obra começarão a aparecer, reflexo de nossa própria análise do texto, que criará um
possível personagem que reflete de volta na obra escrita, tornando a interpretação mais razoável
e plausível – uma atitude, em palavras mais simples, de ler a obra, rastrear as ferramentas que
Celso utiliza para compor seu discurso, e, em seguida, reler a obra. Porém, essa diretriz não
significa levantar dados biográficos que permitam um entendimento mais favorável do
Discurso Verdadeiro; saber quem foi Celso durante sua vida toda, para a análise de seu texto,
é irrelevante para nossa proposta; contudo, a intentio auctoris que o texto transparece, que será
aquela que marca o momento da escrita, nos interessa. Intenta, portanto, de outra forma,
perceber o pensamento do escritor que é evidenciado, principalmente sua filosofia e doutrina
que aparecem no período em que o texto foi confeccionado – e, nesse caso, tanto as de Celso
26

quanto as do contexto –, cruciais para a compreensão das prováveis fontes e métodos aos quais
Celso acessou para compor seu discurso.
Mas, outra dúvida emerge: por que de se analisar a doutrina – que é um reflexo da
filosofia do autor –, dentre tantas outras opções? Em relação às escolas filosóficas em vigência
no Império Romano – ex: platônica, estoica, epicurista, etc. –, cada uma elencava princípios
diferentes relacionados ao método de se perceber a vida, os deuses, o Cosmos, e, também, a
ética. O porquê, por consequência, como diz Michel Foucault (2014, p. 41), é que a doutrina
liga seus indivíduos a certos tipos de enunciado e proíbe-os, por conseguinte, dos outros. A
doutrina efetiva uma dupla sujeição: daqueles sujeitos que falam aos discursos e dos discursos
a um grupo dos indivíduos que falam. Cria-se, portanto, um meio de se aproximar, por
intermédio do discurso, os falantes do mesmo modelo de enunciado; criando um sentimento de
pertença, seja de classe, de raça, de interesses, dentre outros fatores, faz com que,
consequentemente, a distinção perante outros grupos surja.
Isto posto, a intentio operis poderá ser visualizada com perspectivas que permitirão ao
leitor comum se tornar um outro tipo de leitor. Intentio essa que, de acordo com o conceito de
Umberto Eco (1994, p. 59), nos demonstrará um “Leitor Modelo”, que possui uma intentio
lectoris – intenção do leitor – provavelmente mais aproximada do que a de outros leitores, pelo
mesmo ser o “alvo perfeito” desse tipo de discurso escrito por Celso e por estar restrito a
produzir certas interpretações plausíveis dentro da estrutura do texto. Já que a intenção da obra
é basicamente a de produzir um Leitor Modelo que possa conjecturar sobre o texto, tal Leitor
Modelo se encarregará de produzir um “Autor Modelo” – autor ideal que o texto reflete –, que
não é um autor empírico e que, no fim, coincide com a intentio operis. O Discurso Verdadeiro,
produzido no Império Romano, certamente pretendeu atingir um tipo de Leitor Modelo que não
é o de um acadêmico do séc. XXI; entretanto, nosso distanciamento torna possível figurar o que
a intentio operis, no momento em que foi confeccionada, pode elucidar sobre seu autor e seu
público alvo. Além de nos tornarmos um provável Leitor Modelo diferenciado – devido a não
estarmos no contexto e termos uma intenção deliberada de fazer uma análise crítica –, podemos
suscitar hipóteses sobre os Leitores Modelo da época e seu autor. O autor descreve que
concluirmos sobre o que uma fonte fala é uma aposta interpretativa. Todavia, se encaixarmos
essa fonte em um contexto específico, podemos tornar essa aposta como mais aproximada do
que alguma incerteza total (ECO, 2005, p.74).
Dentro de todas as argumentações levantadas, não devemos nos esquecer que, de acordo
com o pragmatista Richard Rorty (2005, p. 115), a coerência de um texto não está ali antes de
ele ser escrito. Tal coerência não é nada mais do que o fato de alguém ter encontrado o texto
27

em questão, ter analisado um conjunto de sinais, o modo de escrita desses sinais e algumas
outras coisas as quais esse alguém está interessado em falar. O texto, portanto, só possui
coerência e só nos diz o que procuramos quando usado. Assim sendo, entre as três intentio que
discutimos e mencionamos, o uso do texto nos leva a afirmar, de acordo com Umberto Eco
(2005, p. 93, 96), que refletindo sobre as intenções inacessíveis do autor e as intenções
discutíveis dos leitores, possuímos aquela intenção transparente do texto, pois, o texto está ali,
dado, o que invalida uma interpretação insustentável. Independente de todas as hipóteses e
conjecturas que analisamos, o texto trará – com o devido cuidado, dependendo de uma
metodologia específica, com as perguntas admissíveis e obedecendo a seu contexto de escrita
– possíveis respostas, dentre várias justificáveis – já que, claro, é bastante improvável se
alcançar a universalidade de um sentido –, que espelhem a perspectiva de um Celso que, em
um momento de sua vida, por determinado motivo em um certo local e ano, escreveu um
discurso contra os cristãos.

1.2. Reconstrução da vida e obra de Celso

Comecemos nossa exposição a partir dos dizeres de Orígenes em Contra Celso, para
traçarmos o possível da biografia de Celso:
Por isso devo lamentar que alguém possa acreditar em Cristo com uma fé
capaz de ser abalada por Celso, que sequer vive a vida comum entre os
homens, mas morreu há muito tempo [...] (ORÍGENES, Contra Celso,
Prefácio, 4, grifo nosso).
Um fato a ser lembrado é que a obra foi solicitada a Orígenes por Ambrósio24, patrístico
contemporâneo do mesmo, que se interessava por sua perspectiva e por seus escritos já de
grande proporção25 na época. Provavelmente, o conhecimento de quem foi Celso foi repassado
brevemente por Ambrósio, deixando assim Orígenes à mercê de obras de contextos passados
para reconstruir parte da vida de Celso. A primeira ideia exposta acima é a morte que ocorreu
há tempos; tal frase é uma das hipóteses que levará estudiosos de Orígenes e Celso a

24
Ambrósio de Alexandria (ca. 212 – ca. 250 d.C.) foi conhecido de Orígenes, primeiramente membro da seita
valentiniana, posteriormente reconduzido à ortodoxia por meio de Orígenes. É devido a pedidos dele que Orígenes
compôs o Contra Celso. Orígenes dedica a ele a Exortação ao Martírio, pois, Ambrósio foi perseguido sob Império
de Maximino o Trácio (235 d.C.). Segundo Jerônimo, Ambrósio morre antes de Orígenes, porém, sua data de
nascimento é especulada. Ver: CROUZEL, Henri. Ambrósio. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 83.
25
Eusébio Pânfilo elenca 2 mil livros de Orígenes, baseando-se em Jerônimo. Já o próprio Jerônimo coloca apenas
800 livros. Não podemos nos esquecer, claro, que livros para eles não significa o mesmo que para nós. Atualmente,
o termo se pareceria mais com capítulos. Ver: ORÍGENES. Contra Celso. Tradução de Orlando dos Reis. São
Paulo: Paulus, 2004. p. 17.
28

especularem sobre a data de sua obra. Aprofundando sua pesquisa, Orígenes levanta alguns
pensamentos; é o que notamos, em sequência, na seguinte explanação:
Reconhecemos aqui o epicureu de seus outros escritos; aqui, como sua
acusação contra o cristianismo há de parecer mais plausível não professando
as teses de Epicuro [...] Sabia bem que, declarando–se epicureu, não teria
crédito nenhum em sua acusação contra aqueles que de algum modo admitem
uma providência e imaginam um deus acima do universo. Mas ouvi dizer que
existiram dois Celsos epicureus, um no Império de Nero, e este, no Império
de Adriano e mais tarde. (ORÍGENES, Contra Celso, I, 8, grifo nosso)
A primeira hipótese apresentada aqui por Orígenes demonstra que sua leitura
progressiva do Discurso Verdadeiro lhe dá uma noção de quem seria Celso. Tendo definido
previamente que o autor seria epicureu, procura referência a “Celsos epicuristas” em épocas
anteriores. Encontrando as duas possibilidades, dá continuidade às suas refutações. Como
vemos, sua ideia será colocada em dúvida posteriormente no livro:
Vamos então discutir um pouco estes pontos, e provar que ele dissimula sua
opinião epicuréia, ou talvez se diga que ele a abandonou por melhores
doutrinas, ou mesmo, se poderia dizer, que ele é homônimo de Celso
epicureu. (ORÍGENES, Contra Celso, IV, 54, grifo nosso)
É interessante perceber que com “melhores doutrinas” o autor possivelmente se refere
à platônica; corroboramos essa alegação também com descrição de Orígenes no mesmo tópico,
que escreve: “Na passagem de Celso que citei, que é uma paráfrase do Timeu26, encontramos
certas expressões...” (ORÍGENES, IV, 54).
Deduz-se mediante Orígenes, portanto, que: Celso está morto há muito tempo; é
epicurista; possivelmente do Império de Adriano e adiante; provavelmente platônico. Assim,
define-se superficialmente por intermédio de Orígenes e de nossa análise do Contra Celso as
possibilidades de quem poderia ser Celso. Iniciemos as outras propostas, começando pelo
século XIX.
Charles Bruhl (1844), em uma tese brevíssima, provavelmente o primeiro trabalho
específico sobre Celso, se baseia apenas na polêmica anticristã e tenta reconstruir o
conhecimento sobre cristianismo do polemista.27 O livro de Bruhl, como descrito pelo título de
um dos capítulos, tratará primariamente de um resumo da polêmica de Celso (1844, p. 4). Após
isso, adentra o conhecimento de Celso sobre o cristianismo, demonstrando algumas possíveis
referências indiretas do autor sobre o Novo Testamento (1844, p. 17). Posteriormente, analisa
o provável motivo de Celso a escrever seu Discurso Verdadeiro e suas características (1844, p.
20, 24) – Bruhl julga que Celso escreveu-o para defender a religião de seus compatriotas – e,

26
Obra de Platão (séc. IV a.C.), a qual delineamos um diálogo apropriado no terceiro capítulo.
27
São 36 páginas no total; a abordagem a Celso ainda era totalmente baseada na leitura direta da obra de Orígenes.
Ver: BRUHL, Charles. La Polémique de Celse Contre le Christianisme. Strasbourg: Frédéric-Charles Heitz, 1844.
29

ao fim, conclui seu trabalho dizendo que, por mais que a polêmica possa ser apreciada, não é
possível compará-la à grandeza invencível do cristianismo na resposta de Orígenes (1844, p.
28). O autor, portanto, foca primariamente na obra em si, e não delonga nas possibilidades de
quem foi Celso.
Cerca de 30 anos depois, Elisée Pelagaud (1878) escreve o trabalho subsequente ao de
Bruhl – com referências no texto à ele; Pelagaud (1878, p. XVII–XVIII) não ousa especular
sobre as origens do autor, pois, sabe que são escassas de referência – e, devemos levar em
consideração a falta de bibliografia sobre o tema em sua época. Aparentemente, como citado
no livro, a reconstrução do Discurso Verdadeiro já estava em andamento, sendo feitas as
primeiras28 tentativas pelo teólogo Karl Theodor Keim (1873) e, posteriormente, por Paul
Koetschau (1899). Tal empreitada influenciou futuras traduções e análises sobre Celso no
século XX e XXI.
Theodor Keim, em seu livro A Verdadeira Palavra de Celso29, é o fator principal de
influência da maioria das diretrizes acadêmicas sobre o Discurso Verdadeiro no séc. XX; o
autor defende veementemente que as afirmativas de Orígenes estavam corretas e que Celso
deveria ser identificado com o amigo epicurista de Galeno e Luciano de Samósata (ca. 125 –
ca. 185 d.C.)30, e que, de acordo com Luciano (Alexandre, o Falso Profeta, 1) “estudou o
assunto de magia e mágicos suficientemente, apresentando amplo material que colocaria juízo
em quem quer que o lesse”31. Apesar do texto não refletir tal afirmativa de Keim, o qual coloca
Celso como um platônico eclético, que não era ao mesmo tempo um “epicurista completo”
(CHADWICK in ORIGEN, 2003, p. XXV), Keim (1873, p. 278) afirma que é quase cego o
estudioso que não percebe o amigo de Luciano no Celso do Discurso Verdadeiro.
Adentrando o século XX, há a retomada da recomposição do texto por Otto Glöckner
(1924) e Robert Bader (1940), em grego. Os tradutores possuem preferência por, em paralelo

28
Na realidade, antes de Keim possuíamos um trabalho mais amplo, de 1830, que possui excertos dos três
anticristãos que mais tiveram repercussão: Celso, Porfírio e o Imperador Juliano. Não julgamos como a primeira
tentativa, pois, não se trata de um trabalho sistemático de reconstrução de toda a obra de Celso, e sim de pequenas
partes dela. Ver: CELSUS; POPHYRY; JULIAN. Arguments of Celsus, Porphyry, and the Emperor Julian,
Against the Christians; also extracts from Diodorus Siculus, Josephus, and Tacitus, relating to the Jews. Tradução
de Nathaniel Lardner. Oxford: Thomas Rodd, 1830.
29
Título em alemão Celsus’ Wahres Wort.
30
Escritor e filósofo grego, nascido em Samósata, cidade da Síria setentrional. Transforma-se em um dos melhores
retóricos, conferencistas e romancistas da Antiguidade. Possui cerca de oitenta obras atribuídas ao seu nome,
dentre elas O asno e Morte de Peregrino. Viajou pela Ásia Menor, Roma, Antioquia, Atenas e, finalmente, para o
Egito, onde faleceu. Ver: SINISCALCO, P. Luciano de Samósata. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit.,
p. 861.
31
Duas fontes indicam esse Celso: Galeno (ca. 129 – ca. 215 d.C.) e Luciano. Galeno menciona ter enviado uma
carta a um “Celso o Epicureu” e Luciano inicia seu livro “Alexandre, o Falso Profeta” dizendo que dedica-o a um
“Celso”. Encontra-se a referência direta no trabalho de Luciano, em: LUCIAN. In Eight Volumes: Lucian vol. IV.
Tradução de A. M. Harmon. Harvard: Loeb, 1925.
30

com as tentativas de reconstrução, utilizar das diversas traduções do Contra Celso, justificando
que se tornou amplamente aceita a ideia das omissões e abreviações de Orígenes em relação ao
Discurso Verdadeiro. Na introdução dessas traduções do Discurso Verdadeiro e do Contra
Celso, os autores se dedicam a exibir suas teorias sobre quem foi Celso.
Henry Chadwick (in ORIGEN, 2003, p. XXIV–XXVI) refuta as especulações sobre
epicurismo de Keim e coloca sua opinião – baseando-se no respeito aparente de Celso por
Platão, por meio de partes da fonte – de que ele seria somente um platônico eclético; utiliza, em
seguida, das referências de Keim a “duas dúzias de Celsos” nos três primeiros séculos para
demonstrar, dessa maneira, que uma aproximação da real identidade de Celso se torna
impossível. Posteriormente, conclui que Celso possui afinidades claras com o médio platonismo
e que é inconcebível que seja um epicurista, afirmando que não podemos saber, na verdade,
nada sobre o oponente de Orígenes se não o que o texto nos remete.
Joseph Hoffmann (in CELSUS, 1987, p. 30–31), em um tópico denominado “A
Identidade de Celso”, faz comparativos com um dos “Celsos” citados por Orígenes; em
específico, o Celso do tempo do Imperador Adriano, que seria o mesmo escritor de vários
tratados contra a magia. Em relação ao epicurismo, Hoffmann (in CELSUS, 1987, p. 31) cita
outro autor, Robert Wilken, que exprime que “tachar Celso como epicurista é fazer a tarefa de
criticá-lo como mais fácil”. Entretanto, apesar da referência, tende a concordar em sua
conclusão que a possibilidade de Celso ter sido o conhecido de Luciano não perde forças,
podendo ele ter mudado seu viés filosófico para médio platonismo quando próximo de compor
seu Discurso Verdadeiro (HOFFMANN in CELSUS, 1987, p. 32–33).
Serafín Bodelón (in CELSO, 2009, p. 18, 28–29), na tradução mais recente, descreve
que o Celso do Discurso Verdadeiro é o mesmo para o qual Luciano direciona seu trabalho;
Bodelón articula que, para exercícios de retórica e combates ideológicos, o autor poderia
recorrer a quaisquer ferramentas ao alcance: assim, Celso escolheria o médio-platonismo, pois,
o mesmo era o viés filosófico mais utilizado pelos alvos de seu Discurso Verdadeiro, os
cristãos.
A visão mais breve é de dicionário, escrita por Adalbert Hamman (2002, p. 278), que
apresenta que ele seria um filósofo platônico eclético, de provável origem egípcia, que passou
um tempo em Roma, se informando assim dos movimentos de ideias de sua época e que
escreveu sua obra sob Império de Marco Aurélio32 (de 161 a 180 d.C.).

32
Primeiramente conhecido como Marco Ânio Vero, nascido em 121 d.C., filho de um pai rico que morreu jovem,
foi adotado pelo seu avô e educado em sua vida por excelentes tutores até que, aos 16 anos, é novamente adotado
por seu tio Aurélio Antonino, que era filho do Imperador Adriano, também por adoção. Aurélio Antonino, que se
torna Imperador, passando a ser reconhecido como Antonino Pio, transmite seu nome a Marco Ânio, que em 161
31

Expostas as diversas opiniões, percebe-se que as tendências mantêm-se ainda em


conflito, entre um Celso platônico eclético e um epicurista: pelo lado platônico eclético, os
autores recorrem ao fato de aparentar ser a opção que corresponde melhor à própria
personalidade de Celso que o Discurso Verdadeiro reflete e se adequar às indicações e
posteriores dúvidas de Orígenes em seu Contra Celso; pelo epicurista, por outro lado, têm-se
atestações que fontes próximas oferecem, propiciando maior autenticidade, porém, sem se
encaixar realmente no que o texto nos passa. O único consenso seria o provável local de vida
do autor: Alexandria. Essa atestação se produz por Celso ter conhecimento amplo das várias
escolas filosóficas – algo verificável em seu trabalho.

1.2.1. A Controvérsia Origenista

Muitas figuras – que se autodenominavam cristãs e outras que denominamos como


pagãs –, após Platão, abriram diversos caminhos de interpretação do platonismo, que
atualmente classificamos como médio platonismo e neoplatonismo. As principais divergências
entre tais escolas – e os que incluímos nas mesmas –, são as explicações para se aproximarem
da concepção já difundida do Demiurgo do Timeu (PLATÃO, Timeu-Crítias, 69C). As
exposições acerca do plano inteligível e do seu reflexo imperfeito, o plano material; as
diferenciações entre o Demiurgo “que cria” e o que “coloca em ordem”; as concepções sobre o
tempo, dentre outros, são alguns exemplos possíveis de elencar que eram debatidos (O’BRIEN,
2015, p. 24, 31). Tratando-se de uma obra que se constitui na forma de diálogo, referenciamos,
a seguir, uma passagem de Timeu de Lócrida (séc. V a.C.) que explicita de forma melhor uma
das concepções primordiais do platonismo, sobre o plano sensível e o suprassensível:
Deveio (mundo e criação), pois é visível e tangível e tem corpo, assumindo
todas as propriedades do que é sensível; e o que é sensível, que pode ser
compreendido por uma opinião fundamentada na percepção dos sentidos,
devém e é deveniente, como já foi dito (PLATÃO, Timeu-Crítias, 28B, 10-
14; 28C, 1).
A diferenciação entre os planos, característica do platonismo, será alvo de debate por
séculos entre as várias escolas filosóficas, dentre todas as outras concepções trazidas à tona por
Platão. Outra passagem de Timeu, por exemplo, diz que “...de acordo com um discurso

d.C. após a morte de Antonino Pio, assume o Império e passa a ser reconhecido como Imperador Marco Aurélio.
Governou em um período que passava por uma intensa época de pressões bárbaras. Em 168 d.C., segue para o
Danúbio para juntar-se às suas legiões, onde escreve sua famosa obra Meditações, que transmite suas crenças
estoicas. Faleceu em campo de uma doença infecciosa, em 180 d.C. Ver: MARCUS AURELIUS. Meditations.
Tradução de Martin Hammond. London: Penguin Classics, 2006. p. 3.
32

verossímil, é necessário dizer que este mundo, que é, na verdade, um ser dotado de alma e de
intelecto, foi gerado pela providência do deus” (PLATÃO, Timeu-Crítias, 30B, 8–9;30C, 1-3);
tal teoria, de que o Demiurgo “cria a criação” e depois a abandona, torna-se também alvo de
debate a posteriori. O Timeu, portanto, é uma das obras-chave para compreensão do
pensamento platônico e das futuras interpretações que o mesmo recebe.
Os princípios,33 de Orígenes, constitui nossa melhor referência ao pensamento e viés
filosófico do autor. A obra é escrita em torno de 229 d.C., com intuito de asseverar que,
contrário às críticas, os cristãos não eram ignorantes supersticiosos. O título de Peri archôn
remete a tratados que definem as ideias de interpretação de uma tradição filosófica, focadas nos
princípios do ser. Ao contrário do que Clemente de Alexandria (ca. 140-150 – ca. 215-231
d.C.)34 tentou, colocando a tradição cultural greco-romana como um preparatório para a base
filosófica cristã, Orígenes intentava definir os traços próprios dessa filosofia. Assim sendo, os
motivos da polêmica origenista têm seu início.
Na obra, encontramos alguns dados que, séculos adiante, foram motivo de debate e
julgamentos para a definição da ortodoxia da Igreja Católica. Orígenes, no decorrer do Peri
archôn, expõe que os apóstolos possuíam dois tipos de intenção ao escrever as Escrituras:
primeiramente, disseminar a religião cristã por meio do sentido literal, o qual permitiria que a
doutrina fosse de acesso a todos os crentes; em segundo lugar, o acesso às informações ocultas
– as quais podiam ser apreendidas mediante até do tipo de escrita –, apenas captáveis pela forma
alegórica de interpretação, seria reservada aos cristãos “dignos de receber a sabedoria”.35
Por meio de alegorias36, Orígenes prossegue suas opiniões acerca de um Deus
incorpóreo e inalcançável a qualquer criatura. A aproximação à palavra divina só se daria por
intermédio do dom do Espírito Santo. O autor coloca, em seguida, um Cristo preexistente, que
possui natureza divina, mas, que não é parte de Deus, já que a substância de Deus não pode ser
dividida; consequentemente, Orígenes tende a subordinar o Filho como imagem da bondade de
Deus, mas não a bondade em si. Daqui surge a primeira abordagem sistemática cristã: o Filho
junto ao Espírito Santo é o único a conhecer Deus (MORESCHINI & NORELLI, 2005, p. 167).

33
Peri archôn, no original em grego.
34
Tito Flávio Clemente é reconhecido por suas obras de cunho pedagógico, com estilo baseado em grandes
predecessores greco-romanos como Aristóteles, Epicuro, alguns estoicos e Cícero. O gênero de sua obra obedece
ao estilo “protréptico”. Seus escritos que nos chegaram são o Pedagogo e o Protréptico. Uma terceira parte, os
Estrômatas, se perdeu. Clemente expõe que Platão seria um dos que vislumbraram a verdade sobre Deus. Ver:
OSBORN, Eric. Clement of Alexandria. Cambridge: University Press, 2005. p. 1–3.
35
O tópico denominado “Les Intentions d’Origène”, parte da Introdução dos tradutores, resume as intenções do
documento. Ver: ORIGÈNE. Traite des Principes: Tome I. Tradução de Henri Crouzel e Manlio Simonetti. Paris:
Du Cerf, 1978. p. 46–52.
36
Que também é vastamente utilizada no Contra Celso como método de contra argumentação.
33

Continuando a exposição, Orígenes (Os Princípios, I, 1, 1) coloca que a criação sempre


existiu, e que o homem fazia parte da mesma por meio das ideias de Deus. O homem, usufruindo
do livre-arbítrio, decai para sua condição terrena, mas, ainda dispõe da possibilidade de retorno
à sua condição anterior. Posteriormente, dissertando contra os gnósticos e marcionitas (Os
Princípios, II, 4), coloca em pauta a questão da ressurreição. É contrário à crença dos gnósticos,
que negavam a ressurreição dos corpos e, conseguinte, discorda do retorno de um corpo idêntico
ao presente (Os Princípios, II, 10, 1).
Os dados acima apresentados confluem, no IV e V século, na controvérsia origenista37.
A Igreja, então, se coloca em uma época de tensão acerca dos escritos de Orígenes; chegamos
ao ponto pretendido nos aproximando aqui de duas personagens que se tornaram marcantes
nessa polêmica: Jerônimo de Estridão e Rufino (ca. 345 – ca. 411 d.C.)38.
Aos fins do IV século, o arianismo já se encontrava amplamente debatido e rotulado
como heresia; conseguinte, Epifânio de Salamina (ca. 310 – ca. 403 d.C.)39, um dos mais
famosos presbíteros no combate ao arianismo e ao origenismo, tenta trazer à causa
antiorigenista Jerônimo e Rufino; Jerônimo é logo convencido por Epifânio. Por outro lado,
Rufino não adere à causa por possuir maior afinidade com Orígenes, devido a ser o responsável
por traduzir ao latim a Apologia de Orígenes, de Pânfilo (ca. 240 – ca. 310 d.C.)40, e pela
tradução do Peri archôn, também ao latim.
A tentativa de defesa dos escritos de Orígenes pode ser atestada mediante o As
Falsificações feitas sobre a obra de Orígenes41. Nesse brevíssimo escrito de Rufino (As
Falsificações, 7), temos a intercessão em que o autor transcreve uma carta de Orígenes: ele
demonstra como foi vitimado devido às falsificações de um “autor de heresias”, o qual captou
um discurso seu, alterou-o nas partes que queria e “andou com ele por aí como se fosse escrito
por mim”. Rufino (As Falsificações, 8, 11–23), após a exibição da carta, comenta que, para

37
Rowan Williams dedica um tópico de seu livro “Arius: Heresy and Tradition” com intento de demonstrar as
conexões entre o arianismo e os escritos de Orígenes. Ver: WILLIAMS, Rowan. Arius: Heresy and Tradition.
Michigan: Eerdmans, 2002. p. 131–148.
38
Rufino foi um tradutor, responsável por traduzir obras de Orígenes ao latim, dentre outras. O único escrito seu
que nos restou foi o As Falsificações feitas sobre a obra de Orígenes. Ver: RUFINUS. On the Falsification of the
Books of Origen. Tradução de Thomas P. Scheck. Washington: The Catholic University of America Press, 2010.
p. 8–10.
39
Epifânio foi o grande “compilador de heresias” de autores anteriores; ele se torna, portanto, um dos principais
nomes no combate ao arianismo, origenismo, e outras doutrinas catalogadas como hereges. É responsável pelas
obras Ancorado (374 d.C.) e Panarion (377 d.C.), que apresentam cerca de 80 heresias e como discerni-las da
ortodoxia. Ver: MORESCHINI, Claudio; NORELLI, Enrico. Op. Cit., p. 283–285.
40
Pânfilo foi um proeminente autor da Igreja. Infelizmente, as referências que temos a ele só nos chegaram por
intermédio das descrições de Eusébio Pânfilo em seu livro Mártires da Palestina. A datação da Apologia de
Orígenes é incerta, sendo a única obra que nos restou de Pânfilo. Ver: PAMPHILUS. Apology for Origen.
Tradução de Thomas P. Scheck. Washington: The Catholic University of America Press, 2010. p. 3–5.
41
De adulteratione librorum Origenis, no original em latim.
34

quaisquer homens anteriores que foram reconhecidos como Católicos, se algo descrito em seus
trabalhos for controverso ou herético, que sejam atribuídas tais blasfêmias a escritores hereges
que deliberadamente adulteraram tais textos, com propósitos duvidosos. A contradição se
instaura quando, afirmando as modificações dos hereges, Rufino inicia as adaptações dos textos
origenistas à ortodoxia da época, com intuito de salvá-los da controvérsia (MORESCHINI &
NORELLI, 2005, p. 466). Acusar os dizeres de Orígenes de terem sido alterados para legitimar
assim a sua restauração ao estado original, porém, não obtém sucesso, devido à tradução literal
de Jerônimo do Peri archôn, na mesma época, com intenção de expor os erros do trabalho
(MORESCHINI & NORELLI, 2005, p. 166).
Não possuímos referência ao tradutor do Contra Celso ao latim. Levantamos a hipótese,
contudo, de que a primeira versão possa ter sido traduzida por Rufino, ou algum outro
simpatizante das teorias origenistas. Sabemos por meio de Jerônimo que a transferência de
papiro para pergaminho da biblioteca de Orígenes é de um condiscípulo de Gregório de
Nazianzo (ca. 326 – ca. 390 d.C.)42, o Bispo Euzóio de Cesaréia43(ARNS, 2007, p. 27). Porém,
apesar de termos ciência das modificações do texto causados pelos copistas (ARNS, 2007, p.
172), a reorganização das doutrinas expostas pelo escritor, de forma a excluir as contradições,
parece ser obra de um simpatizante: Rufino (As Falsificações, 14) afirma, no decorrer de seu
livro, que não havia mal algum em colocar de forma correta o que esses autores reconhecidos
como Católicos haviam tentado dizer; então, se um autor quer defender um ponto e não
conseguiu esclarecê-lo precisamente, não haveria mal em ajuda-lo a colocar sua explicação no
caminho correto. Reitera, em seguida, que, além de Orígenes, outros antigos escritores católicos
são relegados à heresia, mas, que são plagiados em discursos nas Igrejas.
Unido a tais informações, temos as propostas debatidas no nosso tópico 1.2, sobre o
possível epicurismo de Celso. Sabe-se que a denominação de epicurista era utilizada com o
propósito de julgar o alvo como ateu; vimos as confusões de Orígenes, no decorrer do Contra
Celso, acerca da escola filosófica de Celso, ao ponto que as atestações de Orígenes caem em
contradição consigo mesmas porquanto as citações literais do Discurso Verdadeiro, por outro
lado, demonstram clara afinidade ao platonismo. Levantando tais pontos, ousamos dizer que
Rufino – ou outro adepto das teorias origenistas –, pode ter alterado o texto ao traduzi-lo para

42
Gregório foi Arcebispo de Constantinopla e é conhecido como o mais bem–sucedido retórico dentre os
patrísticos. É reconhecido por debater a questão da Trindade na época do arianismo. Ver: DALEY, Brian E.
Gregory of Nazianzus. Oxford: Routledge, 2006. p. 3–26.
43
Nada sabemos sobre seu nascimento e morte. Foi bispo de Cesaréia, por volta de 370 d.C., exilado
posteriormente por sua afinidade ao arianismo. De acordo com Jerônimo, ele se esforçou por reordenar e restaurar
a biblioteca de Orígenes. Ver: SIMONETTI, Manlio. Euzóio de Cesaréia. In: DI BERARDINO, Angelo (org.).
Op. Cit., p. 546.
35

o latim, que se torna a versão utilizada posteriormente. É observável que, se nos escritos
originais de Orígenes o debate se acercasse apenas das atestações de Celso contra a sacralidade
de Jesus, a falta de originalidade dos mitos, entre outros aspectos, a refutação de Orígenes não
teria tanta repercussão; a necessidade de um debate potencializado pelas alegorias, que partisse
também contra a doutrina verdadeira se tornaria mais efetivo. Isso se tornou possível com as
atestações criadas com intuito de comprovar o ateísmo de Celso em contraste ao teísmo de
Orígenes, que possuía fortes laços com o platonismo, como demonstramos por intermédio da
análise do Peri archôn.
Portanto, além de refutar as atestações de Celso, se mostraria que a doutrina apresentada
no Peri archôn era superior, correta e, apesar de Orígenes já ter sido combatido no IV e V
séculos d.C., a Philocalia44 e o Contra Celso não precisariam ser catalogados como heréticos
pelo Segundo Concílio de Constantinopla em 533 d.C., por exemplo, que condena os
ensinamentos de Orígenes e outros.45 A associação de Celso ao epicurismo no trabalho de
Orígenes deslegitimaria o pagão e manteria assim salvos os escritos heréticos de Orígenes que
citamos, os únicos que restaram do patrístico.
As traduções e reconstruções do Contra Celso são compilações de partes da
Philocalia46 e de um manuscrito em latim do Contra Celso, do Vaticano, datado do século
XIII47. As traduções utilizadas recentemente possuem referências majoritárias a esses
manuscritos e considerações necessárias sobre as traduções que expusemos na nota 22. A
possível cópia de Jerônimo do Peri archôn pode ter tido a repercussão necessária para sustentar
a causa do antiorigenismo na época da controvérsia, porém, esse texto se perdeu.
Faz sentido, consequentemente, sustentar que a elaboração do “Celso epicurista”, que é
fruto de análises mais recentes, pode ser uma confusão da parte acadêmica que sustenta tal

44
A Philocalia de Orígenes é composta provavelmente por Gregório de Nazianzo e Basílio de Cesaréia (ca. 329–
379 d.C.), entre os anos de 350 e 360 d.C. Ao lado do Contra Celsum, é o único escrito que nos restou que possui
excertos originais de inúmeras obras de Orígenes, incluindo tomos do próprio Contra Celsum e do Peri archôn. É
utilizada para reconstruir as traduções que detemos atualmente; as últimas edições que dispomos são de J. Armitage
Robinson (1893) e George Lewis (1911). A de Armitage possui notas introdutórias sobre a compilação. Ver:
GREGORY; BASIL. The Philocalia of Origen. Tradução de Joseph Armitage Robinson. Cambridge: University
Press, 1893; GREGORY; BASIL. The Philocalia of Origen. Tradução de George Lewis. Edinburgh: T. & T. Clark,
1911.
45
Vale lembrar que foi um Concílio Ecumênico, ou seja, de cunho universal. É um dos sete grandes concílios da
antiguidade. Ver: MUNIER, Charles. Concílio. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 319–320.
46
As versões da Philocalia utilizadas para as traduções são do século X e XI. Ver: CHADWICK in ORIGEN, Op.
Cit., p. XXX.
47
Tanto em J. Armitage quanto em Chadwick – que disserta sobre as traduções anteriores do Contra Celso – é
corroborada a tradução direta desse manuscrito, junto a partes da Philocalia. Ver: CHADWICK in ORIGEN, Op.
Cit., XXIX; GREGORY; BASIL. The Philocalia of Origen. Tradução de Joseph Armitage Robinson. Cambridge:
University Press, 1893, p. VII.
36

teoria, que se apoia unicamente nas referências da personagem de Celso à Luciano de Samósata
e Galeno.
As falsificações do manuscrito, a tentativa de evitar o banimento sistemático da obra de
Orígenes, a justificativa de Rufino (As Falsificações, 14, 5-7) ao dizer “...que teimosia de
espírito é essa que se recusa a utilizar a mesma desculpa quando o caso é o mesmo?”, criam
justificativas que, unidas ao que demonstramos acima, correspondem à possibilidade das
mudanças no Contra Celso que, até os dias atuais, causam fissuras entre os acadêmicos que
tentam definir a escola filosófica de Celso. E, como ressalta Paulo Evaristo Arns (2007, p. 173),
se Rufino tentou modificar o texto para salvar Orígenes, tem-se que classifica-lo entre os
próprios falsários que ele condena.
Outra opinião, de explanação mais simples, seria a de que Orígenes, enquanto
confeccionava suas respostas no Contra Celso, foi fazendo-as de acordo com seu fôlego de
escrita: como atesta Arns (2007, p. 84), a edição de uma obra nem sempre era feita de uma só
vez; à medida que se terminavam as partes, as mesmas iam sendo publicadas. Essa divisão em
livros (no caso de Orígenes, oito) pode respeitar apenas ao ritmo de sua escrita. A necessidade
de se cumprir uma solicitação de Ambrósio em uma obra que certamente teria repercussão,
pois, tentava desconstruir um discurso anticristão, sustentaria essa segunda hipótese: na medida
em que Orígenes lia a obra e publicava os livros do Contra Celso, foi alterando sua opinião
sobre Celso ser epicurista ou não, algo que é atestado por, primeiramente, afirmar com
veemência que Celso é epicurista e, posteriormente, colocar em dúvida suas suposições.
Com o exposto, definimos aqui as teorias apresentadas acima, de que a controvérsia
origenista pode ter sido peça-chave na alteração do Contra Celso que, consequentemente, seria
capaz de modificar toda a percepção atual do texto e causando, dessa forma, futuras
divergências acerca do “Celso epicurista” e o “Celso platônico eclético”; ou, que a publicação
parcial do trabalho afetaria gradativamente a perspectiva de Orígenes. Concluímos, dessa
forma, que a plausibilidade maior se encontra com o platônico eclético, devido à afinidade de
Celso ao platonismo, mas, sem se restringir somente a tal viés filosófico.

1.3. Divergências acerca da datação: 178 d.C. ou 200 d.C.?

Assim como nas introduções críticas das diversas bibliografias e traduções que
abordamos no tópico anterior, além da tentativa de definir “quem era Celso” há também as
especulações sobre a datação do seu Discurso Verdadeiro. Expomos aqui o que a linha mais
37

tradicional tem a dizer sobre o referido para, em seguida, colocar em questão a proposta de
Jeffrey Hargis (1999).
O debate se dá, primariamente, entre três passagens do Discurso Verdadeiro:
a) Afirmativa de Orígenes de que Celso “sequer vive a vida comum entre os homens, mas
morreu há muito tempo” (Contra Celso, prefácio, IV), sendo que Orígenes escreve em
248 d.C.;
b) A referência de Celso (Discurso Verdadeiro, VIII, 69) de que haviam perseguições
ativas contra os cristãos na época em que escrevia;
c) E, a que causa mais controvérsias, a passagem “os que hoje reinam sobre nós” (CELSO,
Discurso Verdadeiro, VIII, 71);

A referência de Orígenes à data de escrita é breve, como já exposto em a. Notamos que,


apesar de não especificar uma data, Charles Bruhl (1844, p. 22) delineia a possibilidade da obra
ter sido escrita sob Império de Marco Aurélio. Elisée Pelagaud (1878, p. XV) afirma que o
trabalho de Celso é pouco posterior ao de Justino Mártir (ca. 100 – ca. 165 d.C)48. Keim (1873)
ousa estabelecer uma data precisa, a de 178 d.C. – que por sinal é a data expressa no subtítulo
de seu livro –, apesar de especular também entre 176 d.C. a 180 d.C.
As afirmativas do séc. XIX são aperfeiçoadas por Henry Chadwick (in ORIGEN, 2003,
p. XXVI–XXVIII), no séc. XX, que coloca-as em debate. Esse autor expõe que pelos escritos
de Celso podemos inferir um apelo aos cristãos, para que os mesmos ofereçam suporte ao
Imperador Marco Aurélio e lutem nas guerras contra os Partos, Quados e Marcomanos49 por
volta dos anos 70 do II séc. d.C. Em seguida, coloca os argumentos de Eusébio Pânfilo em sua
História Eclesiástica, que disserta sobre alguns dos mártires do II século e, após isso, demonstra
a probabilidade da escrita da obra entre 177 d.C. e 180 d.C. Joseph Hoffmann (in
CELSUS,1987, p. 32–33), dispondo de argumentos próximos ao de Chadwick, altera um pouco
a perspectiva ao sustentar que Celso seria o epicurista descrito por Luciano de Samósata e,
assim sendo, sua obra foi escrita por volta do último quarto do II séc. d.C., aproximando a data
a 177 d.C., devido às perseguições50 aos cristãos em Lyons e Viena. Serafín Bodelón (in
CELSO, 2009, p. 18–22), na tradução do Discurso Verdadeiro mais recente, em espanhol,
disserta vastamente para aproximar a identidade de Celso ao epicurista, e assegura que “Luciano

48
Justino Mártir viveu no período do Imperador Antonino Pio e de Marco Aurélio. As obras as quais nos referimos
aqui são suas Apologias, datadas entre 150 a 160 d.C. Para mais informações sobre vida e obra de Justino, ver:
MORESCHINI, Claudio; NORELLI, Enrico. Manual de Literatura Cristã Antiga Grega e Latina. Aparecida-SP:
Santuário, 2005. p. 109–113.
49
Quados e Marcomanos eram tribos germânicas, habitantes do sul do rio Danúbio.
50
Tratamos desse assunto no próximo capítulo.
38

foi amigo de Celso, e ambos compartilharam sua oposição ao cristianismo...”. Bodelón, a partir
de tal fato, não assume uma data certa, afirmando apenas que a obra foi penejada no II séc. d.C.
A datação do dicionário, descrita por Adalbert Hamman (2002, p. 278), refere-se à obra como
escrita em 178 d.C.
O fator comum entre a exposição de todos os autores acima é Theodor Keim (1873), no
que concerne tanto à sua data de 178 d.C., quanto a de 176 d.C. a 180 d.C, variando um pouco,
mas, sujeitas à década de 70 do II séc. d.C.
Jeffrey Hargis, em seu livro51 que abarca os três mais conhecidos anticristãos da
antiguidade – Celso, Porfírio e Imperador Juliano – dedica-se, além de um estudo do Discurso
Verdadeiro de Celso, a levantar argumentos pertinentes acerca da datação da obra. Utilizando-
se das três principais referências que definimos acima em a, b e c, faz releituras das mesmas
com a justificativa de que sua nova proposta faz jus à questão de não apenas ser uma minúcia
acadêmica, mas, de demonstrar que ao colocarmos uma escrita em um determinado contexto,
isso implica essencialmente em sua interpretação, posição que também defendemos aqui para
definirmos nosso recorte temporal.
O autor, focando primeiramente no ponto a, inicia seus argumentos com a proposta de
que, com Orígenes dizendo que Celso “morreu há muito tempo”, a probabilidade de que ele
estivesse morto há 70 anos ou há 50 anos é aberta a interpretações, demonstrando que isso se
torna muito subjetivo e pode levar a um grande desacordo. Em seguida, ao abordar o ponto b,
evidencia que os acadêmicos concordam no fato de se referir aos martírios de Lyons, Viena e
norte da África. O ponto c, que se mostra mais sólido, é o que melhor legitima a datação, pois,
se refere a os, ou seja, mais de um governante; assim, se infere que o período é o da corregência
do Imperador Marco Aurélio e seu filho Cômodo, entre 177–180 d.C. (HARGIS, 1999, p. 21).
Concernente a c, Jeffrey faz uma reanálise de toda a seguinte passagem:
Na verdade, eis ainda algumas de tuas afirmações intoleráveis: se os que
agora reinam sobre nós, convencidos por ti, são feitos prisioneiros,
convencerás também os que reinam depois deles, e a seguir a outros, se estes
forem presos. E isso indefinidamente, até que, convencidos já todos os reis
por ti e feitos prisioneiros, um chefe avisado, prevendo o que aconteceria, vos
suprima a todos inteiramente antes que o tenhais destruído (CELSO, Discurso
Verdadeiro, X, 372–380, grifo nosso).
A referência de Celso à pluralidade de governantes, se interpretada literalmente, leva-
nos a pensar que o autor inferia que futuras corregências aconteceriam; anterior a Marco Aurélio
e Cômodo, em 177 d.C., tal acontecimento se mostrou raro. Analisando a passagem, Hargis (,

51
HARGIS, Jeffrey W. Against the Christians: The Rise of Early Anti-Christian Polemic. New York: Peter Lang,
1999.
39

1999, p. 22) demonstra que o advérbio vuv, significando “agora”, é utilizado pelos estudiosos
para excluir as generalizações de futuros governantes; entretanto, deve ser observado que os
argumentos de Celso envolvem situações hipotéticas de futuros governantes, contrastando com
os que governam “agora”. A palavra vuv, então, não necessita de ser levada em conta para
referir-se ao tempo de escrita do Discurso Verdadeiro, já que está sendo usada em uma
argumentação hipotética. Assim, a alusão à pluralidade de governantes não necessariamente se
refere a uma corregência na época da escrita.
Em relação a b, as perseguições aos cristãos durante o Governo (193–211 d.C.) de
Septímio Severo (145–211 d.C.)52 são tão plausíveis quanto as de 177–180 d.C. No período de
193–211 d.C., temos duas importantes obras de protesto de Tertuliano53: a Apologia e Martírios
de Perpetua e Felícia. Se abre então mais de uma possibilidade à “era” de perseguições a qual
Celso se refere (HARGIS, 1999, p. 22).
As justificativas acima sustentam parcialmente a hipótese de Hargis; entretanto, o autor
nos apresenta outras pistas: Celso era informado sobre o Cristianismo. Não no sentido comum
dos topoi, compartilhado nos anos 70 do II séc. d.C. para sustentar as repreensões aos cristãos
e os mártires, mas, com a visão de um crítico de uma geração posterior que se informara melhor
sobre o assunto. Celso, portanto, parte do ponto da crítica à filosofia cristã.
Em paralelo à exposição acima, Hargis (1999, p. 23) coloca a seguinte pergunta: por
que os apologistas cristãos não responderam imediatamente ao Discurso Verdadeiro, relegando
a resposta a Orígenes, em 248 d.C., 70 anos depois? Possuíamos, na virada do II para o III séc.
d.C., dois apologistas de destaque, como Tertuliano e Clemente de Alexandria. Além disso,
outra problemática é o possível decreto54 de Septímio Severo, em 201–202 d.C. que proíbe a
conversão ao Cristianismo ou ao Judaísmo.

52
Septímio Severo foi Imperador romano, primeiro da dinastia dos Severos. Participou da guerra civil (193 d.C.)
que envolveu cinco imperadores (Pertinax, Dídio Juliano, Pescênio Níger, Clódio Albino e Septímio Severo),
saindo-se vitorioso e corregendo junto a Albino, que morre em 197 d.C. Ver: BIRLEY, Anthony R. Septimius
Severus: The African Emperor. London & New York: Routledge, 2002.
53
Tertuliano (ca. 160–220 d.C.) foi um cristão da seita gnóstica Montanista. Escreveu inúmeras obras, dentre elas
a Apologia (ca. 197 d.C.), com intuito de demonstrar indignação acerca das perseguições aos cristãos. É de
Tertuliano que possuímos o primeiro uso escrito do termo religio como referente à vera religio, ou seja, a
“verdadeira religião”, o cristianismo. Ver: DUNN, Geoffrey D. Tertullian. London & New York: Routledge, 2005.
p. 1–8.
54
Entre dois artigos correlacionados, há a divisão – entre as autoridades no assunto – de que: 1) T. D. Barnes
expressa que as fontes analisadas para responder tais perguntas (Eusébio Pânfilo e Sulpício Severo) falsificaram
acontecimentos – ou foram alteradas posteriormente – para legitimar ações anticristãs de Imperadores passados
(Septímio Severo, no caso desse debate), demonstrando assim as repressões dos ditos pagãos contra os cristãos; 2)
W. H. C. Frend, por outro lado, ressalta que o período sob Governo de Septímio Severo experimenta várias
perseguições aos cristãos, as quais só cessam quando o Imperador parte em expedição para reconquistar o que
seria, no tempo presente, as Terras Baixas na Escócia. Vale lembrar que as obras de Eusébio e Sulpício (História
Eclesiástica e História Sacra, respectivamente) são feitas contemporâneo a ou posterior ao Édito de Milão, em
313 d.C, que torna a religião cristã como legal ante o Império Romano. Para maior aprofundamento da discussão,
40

Ambas as propostas são consistentes e possuem suas falhas. O autor demonstra que
sugerir uma data precisa é uma ação esguia; a autenticidade das informações se fragiliza, pois,
Tertuliano em sua Apologia, em 197 d.C., procurava ainda por defender os cristãos das
acusações de imoralidade. Em vista disso, as repreensões de Celso contra os cristãos podem ser
datadas tanto nos anos 70 do II séc. d.C. quanto o proposto por Jeffrey, 200 d.C., “mais 10 ou
menos 10 anos” (HARGIS, 1999, p. 23–24).
Além das argumentações de Hargis, acrescentamos o debate acerca das acusações contra
magia, na virada do II para o III séc. d.C. Andrzej Wypustek (1997, p. 280), em seu artigo
nomeado “Magia, Montanismo, Perpétua, e a Perseguição dos Severos”55, levanta o debate
acerca do qual montanistas seriam tachados como praticantes de magia. O ato de profetizar
aflições vindouras se torna uma afronta aos olhos de governantes do período dos Severos, pois,
interferiam no âmbito político. Montanistas compilaram vários escritos com esse teor profético,
rotulados como escrita mágica, algo combatido no período de Septímio Severo. De acordo com
pagãos, como apresenta o autor, o nome de Cristo era utilizado em fórmulas mágicas, com
intuito de praticar exorcismos, curas, adivinhações e criar proteções mágicas. Em conjunto a
isso, os mártires montanistas eram vistos como pessoas que retinham força sobre-humana; todos
esses fatores implicam em uma visão de que os cristãos montanistas eram praticantes de
feitiçaria (WYPUSTEK, 1997, p. 282–283).
Com uma releitura do provável decreto de Septímio Severo contra as práticas de
proselitismo cristãs e judaicas, Wypustek (1997, p. 285) propõe que, ao invés da proibição da
conversão de pagãos às religiões citadas, a chave para a compreensão desse decreto é percebê-
lo como um ato de supressão da prática de magia e profecia, que se tornam, consequentemente,
formas de superstição que acrescentam seguidores; ademais, diferenciar acusações entre judeus
e cristãos até meados do III séc. d.C. não se torna uma afirmativa plausível, sendo a maioria
destas perseguições ocasionadas principalmente por práticas de magia.
Em adição à essa reflexão, compreendemos que parte da obra de Celso dedica-se a
combater Jesus Cristo, acusando-o como mago e charlatão:
Os Cristãos dizem poder adquirir alguma forma de poder ao pronunciar nomes
de demônios, ou ao dizer certos encantamentos, sempre incorporando o nome
de Jesus e uma curta história sobre ele na fórmula. Até essa prática é dada
como velha: o próprio Jesus era visto fazendo milagres utilizando-se de magia

ver o segundo capítulo desta monografia, tópico 2.1. Ver: BARNES, T. D. Legislation Against the Christians. The
Journal of Roman Studies, Oxford, vol. 58, parts 1 and 2, p. 32–50, 1968; FREND, W. H. C. Open Questions
Concerning the Christians and the Roman Empire in the Age of the Severi. Journal of Theological Studies, Oxford,
vol. XXV, part 2, p. 333–351 October 1974.
55
WYPUSTEK, Andrzej. Magic, Montanism, Perpetua, and the Severan Persecution. Vigiliae Christianae,
Leiden, v. 51, n. 3, p. 276–297, 1997.
41

e encantamentos. Ele sabia que outros segui-lo-iam nessas práticas, contudo


ele pareceu expulsar de sua sociedade aqueles que o fizeram. Talvez essa seja
a origem da hipocrisia pela qual os Cristãos são tão bem conhecidos: estava
ele certo de afastá-los por copiá-lo? Sendo ele mesmo culpado de feitiçaria ele
não possuía razão para acusar outros, nem eles poderiam ser vistos como
homens ruins por seguir seu líder (CELSO, Discurso Verdadeiro, I, 53–54).
Por meio dessa citação, um exemplo dentre muitos outros presentes na obra, observa-se
a tentativa de Celso de deslegitimar os cristãos, nomeando suas práticas como hipócritas,
vindouras de um feiticeiro. Se tomarmos a hipótese de Andrzej Wypustek como crível,
podemos reforçar a proposta de Jeffrey Hargis, recomendando que o Discurso Verdadeiro foi
escrito nessa época com o intuito de validar as acusações contra essas seitas cristãs e judaicas.
O manuscrito possui uma forma panfletária, algo que se encaixa em um teor propagandístico.
Como expõe Ana Teresa Marques Gonçalves (2001, p. 34–35), as divulgações das ações dos
príncipes compõem uma das partes daquilo a que chamamos propaganda; as mesmas fazem
parte de um expediente que gera um consenso mínimo, que garante ao Imperador condições de
governabilidade. Esse tipo de obra se encaixaria, dessa forma, em uma promoção que tanto
alicerça a ação de Septímio Severo ao visitar o Egito 56, quanto sustenta a responsabilidade de
que a prática de feitiçaria e magia estava sendo praticada por judeus e cristãos.
Demarcamos, nesse caso, que o recorte temporal definido por Hargis torna-se mais
consistente por fundamentar uma resposta mais apropriada aos escritos de grandes apologistas
como Justino Mártir, Clemente de Alexandria e Tertuliano, que vinham intensificando o debate
em defesa do Cristianismo, além do combate acerca da magia e feitiçaria no período severiano;
a contestação de Celso partiria da desconstrução da filosofia cristã e de suas práticas ocultas,
pois, o uso dos topoi não se mostravam mais suficientes. Intenta, dessa forma, deslegitimá-la
por meio não de acusações generalizadas, mas, de uma exposição sistemática.

1.4. Divisão da obra na atualidade

A divisão da obra, na atualidade, possui disparidades entre os modelos de reconstrução


do Discurso Verdadeiro e suas traduções. Louis Rougier (1965) e Serafín Bodelón baseiam sua

56
Atestado por Dion Cássio em sua História Romana, Septímio Severo visita o Egito, adentra os santuários e
remove dos mesmos praticamente todos os livros de conhecimento oculto. Ver: História Romana, Livro LXXVI,
13, 2.
42

tradução na seguinte forma57 que divide o trabalho em prolegòmenon/praefatio58 junto a quatro


“livros”, importada de Robert Bader e Benjamin Aubé59. Os tópicos expõem os títulos criados
para os livros do Discurso Verdadeiro em francês e espanhol, respectivamente:

I. Préface e Prefacio;
II. Première Partie: Objections contre les Chrétiens au point de vue du Judaïsme, et traits
généraux de la secte et de la propagande Chrétiennes e Libro Primero: Crítica del
Cristianismo desde el punto de vista del Judaísmo;
III. Deuxième Partie: Objections contre l’apparition de Dieu ou d’un personnage divin
dans le Monde, et polémique contre les légendes puériles et les prétentions orgueilleuses
des Juifs e Libro Segundo: Crítica de la apologética de los Judíos y de los Cristianos;
IV. Troisième Partie: Objections contre la secte Chrétienne, ses divisions, ses
enseignements secrets, ses pratiques, sa doctrine morale, théologique, cosmogonique et
eschatologique e Libro Tercero: Crítica de los Libros Santos;
V. Quatrième Partie: Conclusion: Essai de conciliation et appel á l’esprit de confraternité
religieuse et patriotique de tous les Chrétiens de bonne volonté e Libro Cuarto: Conflicto
del Cristianismo con el Imperio: tentativa de conciliación.

A diferença da organização textual se produz – entre Bodelón e Rougier – nos sub–


tópicos utilizados por Bodelón, que, em Libro Primero, por exemplo, possui um subtópico
denominado 1. Celso pone em escena a um judio que habla com Jesús diretamente y contesta
a su origen divino e, além disso, enumera seus parágrafos. Por toda a tradução tal fato se torna
recorrente. Uma divisão claramente criada por Bodelón, algo que não encontramos tanto no
Contra Celso, nas reconstruções ou em outras traduções. Essa autonomia se produz, como
descreve Joseph Hoffmann (in CELSUS, 1987, p. 44–45), pelo fato de que não houve nenhuma
tentativa de se recompor o Discurso Verdadeiro em sua ordem original; este fato, de certa

57
Apesar dos títulos de cada livro serem diferentes, se assemelham no conteúdo e na intenção. O interesse da
exposição é em demonstra-los de forma literal, como foram escritos. Disponibilizamos aqui nossa tradução do
francês e espanhol, na devida ordem: I – Prefácio e Prefácio; II – Primeira Parte: Objeções contra os Cristãos do
ponto de vista do Judaísmo, e características gerais da seita e da propaganda Cristã e Livro Primeiro: Crítica do
Cristianismo do ponto de vista do Judaísmo; III – Segunda Parte: Objeções contra a aparição de Deus ou de um
personagem divino no Mundo, e controvérsia contra as lendas infantis e as pretensões orgulhosas dos Judeus e
Livro Segundo: Crítica da apologética dos Judeus e dos Cristãos; IV – Terceira Parte: Objeções contra a seita
Cristã, suas divisões, seus ensinamentos secretos, suas pratiques, sua doutrina moral, teologia, cosmogonia e
escatologia e Livro Terceiro: Crítica dos Livros Sagrados; V – Quarta parte: Conclusão: Tentativa de reconciliação
e apelo ao espírito fraternal religioso e patriótico de todos os Cristãos de boa vontade e Livro Quarto: Conflito do
Cristianismo com o Império: tentativa de reconciliação.
58
Termos grego e latim, respectivamente, para designar introdução e/ou prefácio.
59
O livro trata de uma abordagem mais ampla, mas não somente de Celso. Ver: AUBÉ, Benjamin. Histoire des
Persécutions de L’Église: La Polémique Païenne a la Fin du II Siécle. Paris: Didier et Cie., 1878.
43

maneira, nos impede de explicar a divisão da fonte da forma que Celso pensou, pois, Orígenes
não nos dá pistas das divisões de tópicos e capítulos do Discurso Verdadeiro. Ademais, é
vastamente aceito pelos acadêmicos estudiosos60 do assunto que Orígenes omite e abrevia61
passagens de Celso. Apesar de tais condições, Hoffmann especula que o que possuímos do
manuscrito seria em torno de 70%.
Em contraste aos dois autores acima debatidos, Hoffmann, alicerçado em sua própria
justificativa, divide o Discurso Verdadeiro em dez tópicos:62

I. Introduction;
II. The Unoriginality of the Christian Faith;
III. Address to the Jews;
IV. Christian Doctrine compared to that of the Greeks;
V. Critique of Christian Teaching;
VI. On Jews and Christians;
VII. Critique of Christian Doctrine;
VIII. The Christian Doctrine of God
IX. The Christian Doctrine of Resurrection;
X. Christian Iconoclasm.

Apesar das variadas divisões, o Discurso Verdadeiro se mantém na mesma ordem,


consensualmente, porém, respeitando as partições de capítulos de cada tradutor, podendo assim
possuir maior quantidade de texto em um tópico em contraste aos outros. O uso de cada
tradução para um trabalho acadêmico, como é o nosso caso, fica portanto de livre escolha do
escritor.
Tratadas as problemáticas e divergências sobre a obra, convém, dessa maneira, adentrar
sua possível localização geográfica e temporal. Aprofundar um contexto que, de acordo com a
ótica cristã, é marcado por perseguições violentas e injustas, confluirá em possibilidades de

60
Hoffmann cita J. K. Neumann e J. Quaen. Não encontramos outras referências a Quaen. Ver: CELSUS. On the
True Doctrine: A Discourse Against the Christians. Tradução de Joseph Hoffmann. Oxford: University Press,
1987, p. 45.
61
Em II, 32, no Contra Celso, lemos: “Já disse que Jesus não pode ser nem arrogante nem charlatão. Por isso não
creio ser necessário voltar a este ponto para evitar responder às repetições desnecessárias de Celso com minhas
próprias repetições.” (Grifo nosso). Outrossim, vemos tais afirmações em II, 79; III, 64; VI, 17; VI, 22; VI, 26;
VI, 50; VI, 74; VII, 27 e VII, 32. Ver: ORÍGENES. Contra Celso.
62
Em português: I – Introdução; II – A Falta de Originalidade da Fé Cristã; III – Endereçado aos Judeus; IV –
Doutrina Cristã Comparada Àquela dos Gregos; V – Crítica do Ensinamento Cristão; VI – Sobre os Judeus e
Cristãos; VII – Crítica da Doutrina Cristã; VIII – A Doutrina Cristã de Deus; IX – A Doutrina Cristã da
Ressurreição; X – Iconoclastia Cristã.
44

respostas à seguinte pergunta: o que o contexto reflete sobre a relação desse cristianismo
primitivo com o Império Romano?
45

CAPÍTULO II

Perseguições e Martírios
“Aqui você tem toda uma cultura cega e boba de que um
herói popular do passado tinha tudo já planejado e está
cuidando de cada pecinha de suas vidas impublicáveis.”

ASIMOV, Isaac. Fundação e Império.


Apesar das discussões63 acerca das perseguições aos cristãos terem sido legitimadas
pelos Imperadores – ou não –, em meados do séc. II d.C. até meados do III séc. d.C. o número
de ataques contra as seitas cristãs ganha notoriedade que não pode ser ignorada, sendo
majoritariamente de iniciativa de turbas enfurecidas perante as expressões religiosas desses
grupos que se denominavam cristãos. Nesse período temos mártires marcantes na História da
Igreja, como Policarpo64 e os mártires scillitanos, dentre outros. Vale constatar que, como
aponta Pheme Perkins (2010, p.230), ao tratarmos desses martírios, devemos levar em conta
que os mesmos podiam ser encontrados entre os adeptos tanto dos católicos quanto dos grupos
cismáticos; estar disposto a morrer pela fé não era em si uma marca distintiva da igreja
verdadeira.
Em sua argumentação, Robin Lane Fox (2006, p. 778) nos apresenta que, até o ano de
257 d.C., os locais de encontro dos cristãos não eram atacados. Anterior a essa data, as
perseguições eram feitas contra indivíduos que se declaravam cristãos; porém, a parte legal
desses acontecimentos ainda encontra-se aberta a discussões. Antes de 257 d.C., temos três
referências que são as que possuem maior respaldo e que recebem maior consideração de
historiadores: os novos éditos na Ásia, nos anos de 70 do II séc. d.C.; um decreto senatorial nos
anos 80, do mesmo século; e, no III séc. d.C., uma ordem duvidosa do Imperador Maximino
Trácio, feita em 230 d.C., para perseguir os líderes da Igreja. À vista disso, delimitamos aqui
uma análise que abarque principalmente os dois primeiros casos acima, pois, o terceiro escapa
ao nosso recorte espaço-temporal; incluímos, entretanto, também o debate acerca das
perseguições no período de Septímio Severo. Faz-se necessário, ademais, demonstrar passagens
de alguns patrísticos sobre o séc. I e a primeira metade do séc. II d.C.

63
Ver nota 54.
64
Bispo de Esmirna, morreu martirizado em 167 d.C. De acordo com Eusébio, neste ano houve uma perseguição
em Esmirna que resultou em sua morte, na fogueira, em 23 de fevereiro. Ver: NAUTIN, P. Policarpo. DI
BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 1176.
46

Ao tratarmos de cristãos, entendemos o conglomerado de igrejas, seitas e grupos, assim


como ideias e concepções, que formam um conjunto que se refere ao homem que costuma ser
referenciado como fundador dessa religião: Jesus de Nazaré (FILORAMO, 2005, p. 61).
Incluímos, então, os gnósticos, pois, a ortodoxia ainda encontrava-se distante de sua formação
e torna-se difícil classificar se os Pais da Igreja do II séc. d.C., por exemplo, eram católicos ou
possuíam afinidades com o gnosticismo, já que os mesmos expressavam ideias inclinadas à
futura ortodoxia, ou à heresia.

2.1. O contexto sob perspectiva das perseguições contra os cristãos

O culto de Cristo é uma sociedade secreta a qual seus membros amontoam-se


em cantos por medo de serem trazidos a julgamento e punição. Sua
persistência é a persistência de um grupo ameaçado por um perigo comum, e
perigo é o incentivo mais poderoso ao sentimento fraternal do que qualquer
juramento (CELSO, Discurso Verdadeiro, I, 1–6).
De acordo com Celso, a ilicitude do cristianismo se faz evidente devido ao sigilo desse
grupo. As consequências disso se agravam no séc. II d.C., quando parte dos cidadãos romanos
tomam as rédeas em atitudes contra os cristãos.
Como aponta Jeffrey Hargis (1999, p. 12), os cristãos eram vistos como uma ameaça
séria ao bem público. Provavelmente em consequência dos discursos de Marco Cornélio
Frontão (ca. 100 – ca. 160 d.C.)65, os anos 50 até fins do 70 do séc. II d.C. presenciaram um
alto número de ações locais contra cristãos, as quais podem ser categorizadas como
perseguições bem difundidas. Durante esse período Policarpo morre em Esmirna; Sagario em
Laodiceia; Carpo e Papila em Pérgamo. Em 180 d.C., cristãos foram executados em Madaura
e Scilla, na África do Norte. Em boa parte do Império, os mesmos estavam sendo linchados e
acossados. Deve-se levar em conta, porém, que até meados do III séc. d.C. não se encontram
ordens imperiais – que sejam comprovadas – para combater a crença cristã em si; os motivos
que levam a essas mortes eram legitimados de outra forma, acabando por serem guiados
primeiramente pelo nível popular para, posteriormente, caírem em poder do Governo local.

65
Nascido em Cirta (Constantina, atualmente), por volta de 100 d.C., Marco Cornélio Frontão foi Cônsul sob
Império de Antonino Pio, tendo posteriormente a possibilidade de governar a província da Ásia, mas, negando o
cargo devido a uma condição debilitada de saúde. Segue sua vida com foco em advocacia e literatura. Torna-se
reconhecido por valorizar a eloquência. Faleceu aos fins da década de 60, no II séc. d.C. Ver: MARCUS
CORNELIUS FRONTO. Correspondences. Tradução de C. R. Haines. London & New York: William
Heinemann; G. P. Putnam’s sons, 1919. p. XXIII–XLII.
47

Dessa forma, aparentemente as províncias possuíam autoridade suficiente para tratar de tais
descontentamentos de seus cidadãos.
O debate que permeia tais perseguições se alicerça principalmente em duas
justificativas: a perspectiva legal das perseguições e o combate à prática de feitiçaria, que inclui
a profetização e a prática de magia. A primeira manifestação de uma possível legislação contra
os cristãos aparece em Tertuliano, nomeada institutum Neronianum (TERTULIANO, Ad
nationes, I, VII, 9), que, de acordo com o autor, aconteceu no período do Governo do Imperador
Nero, por volta do desastre do grande incêndio que acometeu Roma, em 64 d.C. (SUETÔNIO,
Vida dos Doze Césares, Nero, 38). Infelizmente, o institutum não pode ter sua veracidade
atestada, já que apresenta-se somente em Tertuliano e não possui aparições em outras fontes.
Nessa época, torna-se mais possível captar tais perseguições como conflitos de hostilidade
judaica, as quais tendiam a levar a perturbações públicas (STE. CROIX, 2006, p. 107).
Posteriormente, Plínio o Jovem, Cônsul e Governador da Bitínia, em suas cartas
enviadas ao Imperador Trajano por volta de 111 d.C., demonstra uma das perspectivas em voga
no início do II séc. d.C.:
Eu nunca atendi a audiências que concernem aos Cristãos, por isso desconheço
o que é costumeiro de ser punido ou investigado, e em qual extensão. Possuo
mais do que um pouco de dúvida se deve haver uma distinção entre idades, e
em qual extensão os jovens devem ser tratados não diferentemente dos mais
velhos; se o perdão deve ser concedido pelo arrependimento; se a pessoa que
foi Cristã em algum sentido não deva se beneficiar tendo renunciado; se é o
nome de Cristão, por si só desprendido dos crimes, ou os crimes que unem-se
ao nome que deveriam ser punidos (PLÍNIO O JOVEM, Cartas, X, 96, 1–2).
É perceptível que, passados mais de um século desde o nascimento de Jesus Cristo, os
cristãos ainda não eram plenamente reconhecidos, principalmente pelo fato de serem
constantemente confundidos com alguma seita judaica dissidente. Fica clara a dúvida de Plínio
em tomar as ações cabíveis, apesar de que, como descreve em sua carta, solicitava àqueles que
se declaravam cristãos para admitir se o eram; se admitissem, perguntava uma segunda vez;
fazendo-o novamente, ordenava que fossem executados; mas, tratando-se de um cidadão
romano, enviava-o de volta a Roma (PLÍNIO O JOVEM, Cartas, X, 96, 3–4).
Possivelmente no mesmo ano, Trajano responde-o:
Cristãos não devem ser perseguidos. Se trazidos perante a ti e considerados
culpados, eles devem ser punidos, mas de forma que a pessoa que negue ser
um Cristão demonstrando-o através de sua ação, isto é, adorando nossos
deuses, possa obter perdão por arrependimento, mesmo que seus antecedentes
sejam suspeitos. Documentos publicados anonimamente não devem ter parte
em nenhuma acusação, pois eles dão o pior exemplo, e são estranhos à nossa
época (PLÍNIO O JOVEM, Cartas, X, 97, 2).
48

Nota-se, portanto, que a ordem de Trajano desqualifica uma perseguição legal, seja por
parte do poderio das províncias, seja por iniciativa do Império. Isso não indica, entretanto, que
os Governadores deixassem de agir quando a causa fosse trazida perante os mesmos. A questão,
portanto, como nos indica Plínio (Cartas, X, 96, 7–8) ao dizer “...com suas instruções eu havia
proscrito a existência de irmandades secretas”, é demonstrar que, como apontado por Celso
após tanto tempo, o segredo e a falta de visibilidade desses cultos são uma prática inaceitável
dentro dos ritos romanos.
A partir de Eusébio Pânfilo, no IV livro da sua História Eclesiástica, podemos retirar a
primeira referência duvidosa de éditos circulando nos anos 70 do séc. II d.C.; ele cita um
possível manuscrito de Melitão de Sardis66, intitulado Sobre a Pessach67, que diz:
Por aquilo que nunca aconteceu antes, a raça dos religiosos é agora perseguida
e expulsa por toda a Ásia por decretos estranhos. Pois informantes
desavergonhados e amantes da propriedade de outras pessoas tiram vantagem
dos decretos e abertamente saqueiam-nos, espoliando aqueles que não fizeram
mal algum de noite e de dia. [...] Se isso é feito sob seu comando68, deixe que
passe como bem feito, pois um rei justo jamais faria planos injustos, e nós
suportamos de bom grado uma morte tão honrosa. Porém trazemos a você
apenas um pedido, que você mesmo examine os autores de tais contendas, e
julgue justamente se eles são dignos de morte e punição ou de salvação e
imunidade. Mas, se esse conselho e novo decreto, que sequer é adequado a
inimigos bárbaros, não for seu, nós imploramos mais ainda que não nos
negligencie em meio a pilhagens desregradas pela multidão (EUSÉBIO
PÂNFILO, História Eclesiástica, IV, 26, grifo nosso).
A referência demonstra que há possibilidade de um decreto, por mais que suspeito.
Provavelmente, a indicação de Melitão de que os religiosos estão sendo agora perseguidos,
refere-se a alguma provável iniciativa difusa, que escalonava começando no nível popular
seguido de uma tomada de rédeas pelo Governador de província. Possivelmente, Melitão se
refere ao acontecimento em 177 d.C., na cidade de Lyons em que, como descreve Timothy
Venning (2011, p. 551), um aglomerado hostil de civis persuade a autoridade local a perseguir
e prender aqueles que se denominavam cristãos, acusando-os de canibalismo e incesto. Estes
são levados perante o Governador que, primeiramente, contata o Imperador Marco Aurélio para
tomar as devidas providencias. Eles são sentenciados à morte, com a distinção entre os cidadãos
romanos, que são decapitados, e os outros, que são jogados às bestas no anfiteatro.

66
Escritor do séc. II d.C. foi um teólogo renomado, porém, grande parte de suas obras foi perdida. Eusébio descreve
algumas dessas obras: Sobre a Pessach, Sobre a Vida Cristã e os Profetas, Sobre a Igreja, etc. É referenciado por
São Polícrates de Éfeso (ca. 125 – ca. 196 d.C.) em uma carta ao papa Vítor. Ver: HAMMAN, Adalbert. Melitão
de Sardes. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 923.
67
Páscoa Judaica.
68
Refere-se ao Imperador Marco Aurélio.
49

Sob Governo do Imperador Cômodo (de 180 a 192 d.C.), a História Eclesiástica porta
a nossa segunda referência que merece destaque: o possível decreto senatorial nos anos 80 do
séc. II d.C. Tratando de um caso específico que acometeu Apolônio o Apologista69, Eusébio
nos descreve a situação:
[...] no reinado de Cômodo, nossa sorte havia se tornado mais branda, pois a
paz pela graça de Deus veio sobre as Igrejas ao longo de todo o mundo.
Quando, igualmente, a palavra da salvação estava guiando cada alma de cada
raça da humanidade em direção à adoração devota do Deus do universo, de
modo que agora muitos daqueles notáveis por sua riqueza e família, com todos
seus familiares e seus relativos, tornavam-se em direção à própria salvação.
Agora isso, claro, era insuportável para o demônio que odeia Deus e que é
invejoso por natureza, e assim ele novamente despojou–se para a batalha,
inventando vários esquemas contra nós. Na cidade de Roma ele trouxe
Apolônio, um homem celebrado naquele tempo entre os fiéis por sua educação
e filosofia, ao tribunal, instigando um de seus servos, adequado a esse
propósito, para acusar o homem. [...] Mas o mártir, muito amado por Deus,
quando o juiz seriamente suplicou e implorou a ele que fizesse uma defesa de
si mesmo perante o Senado, apresentou perante todos uma defesa da fé muito
eloquente pela qual ele estava sendo martirizado, e ele foi sentenciado a morte
por decapitação, como se por decreto do Senado... (EUSÉBIO PÂNFILO,
História Eclesiástica, V, 21, grifo nosso).
Torna-se pernicioso, portanto, generalizar o relato como algo que englobe todos os
cristãos. Mais ainda, por se tratar de um acontecimento em Roma, a capital.
Um viés plausível, que se torna passível de ser abordado, é o defendido por Geoffrey
Ernest de Sainte Croix (2006); em análise em seu capítulo intitulado “Porque eram os cristãos
primitivos perseguidos?”70, o autor levanta três etapas, tratando-se do âmbito jurídico, que são
as mais recorrentes e de maior nexo:
a) Qual era a natureza das acusações oficiais?
b) Perante quem, e de acordo com qual forma de processo legal (se é que havia algum) os
cristãos eram julgados?
c) Qual era o fundamento legal para as acusações?

Em a, o autor expõe que, de 112 d.C. (talvez anteriormente, a partir de 64 d.C.), a


acusação era simplesmente o fato de “ser cristão” (STE. CROIX, 2006, p. 110). Eles eram
punidos pelo nome cristão, o nomen Christianum. Como observamos em Plínio o Jovem,

69
É apontado como senador romano, na História Eclesiástica e no Martirológio Romano. Foi denunciado como
cristão por um de seus escravos, sendo posteriormente decapitado. Sua morte possui controvérsias de data, sendo
calculada por volta de 18 de abril, sem especificação de ano. Ver: EUSEBIUS PAMPHILI. Ecclesiastical History:
Books 1–5. Washington: Catholic University of America, 1953. V, 21; THE ROMAN MARTIROLOGY.
Publicado sob ordem do Papa Gregório XIII. Revisado pelo Papa Urbano VIII e Papa Clemente X. Tradução do
latim para o inglês do Arcebispo de Baltimore. Baltimore: John Murphy Company, 1916. p. 109.
70
STE. CROIX, G. E. M. de. Christian Persecution, Martyrdom, & Orthodoxy. Oxford: University Press, 2006.
p. 105–152.
50

denúncias desse tipo são normais e, para redimir-se das mesmas, basta renunciar a Cristo. Outra
acusação bem presente seria a falta de culto ao Imperador por parte dos cristãos; de Sainte Croix
(2006, p. 112) afirma que sim, tais atribuições eram presentes; porém, por outro lado, o pedido
de sacrifício aos deuses era mais legitimador – e sequer era requisitado que necessariamente
deveriam ser feitos especificamente aos deuses romanos. Corrobora tais afirmações Tertuliano
em cerca de 197 d.C., quando expressa:
Vocês dizem que somos ateus, e que não seremos a custo de um sacrifício para
a vida dos Imperadores; e se a primeira afirmação é verdadeira, a
consequência é justa, pois se nós não oferecermos aos deuses para nós
mesmos, é improvável que façamo-lo por outros. É por conta disso, portanto,
que somos condenados como culpados de sacrilégio e traição; isso eu tomo
como o artigo principal, e pode ser visto como a soma das acusações contra
nós... (TERTULIANO, Apologia, X, 1–7, grifo nosso).
Percebe-se que as punições seguem uma ordem lógica: primeiramente, o acusado era
levado perante julgamento pelo nomen Christianum; em seguida, o ato que comprovaria se o
mesmo era um cristão seria a sua recusa a prestar sacrifícios para os deuses, ou, um culto ao
Imperador. Vê-se, portanto, que acusar um cristão pelo seu nome – se o mesmo apresentasse
uma fé inabalável – acarretaria posteriormente uma condenação assegurada. Como expõe Robin
Lane Fox (2006, p. 782), o mero fato de se querer a propriedade – ou um trabalho – que fosse
de um cristão era suficiente para que tipos de acusações aleatórias surgissem.
Adentrando os pontos b e c, a forma de processo legal se evidencia em um modelo vago,
intitulado cognitio extra ordinem; vago, pois, recaía em um processo que abarcava diversos
tipos de atos considerados criminosos – crimes do “homem comum”, diferentes daqueles dos
homens que possuíam mais propriedades –, como furtos, entre outros. Sob sua iurisdictio –
jurisdição –, o Governador de província possuía o poder de cognitio – examinar, inquirir,
investigar –, algo que se relacionava ao seu exercício do imperium – autoridade, comando,
Governo. Dessa maneira, fazia-se desnecessário que o processo judicial percorresse
primeiramente a província para ser finalmente determinado na capital, Roma; o Governador
possuía autoridade suficiente para resolvê-lo sob seu território, devido ao seu poder de coercitio
– direito de punir (STE. CROIX, 2006, p. 114–115).
A defesa de Geoffrey de Sainte Croix (2005, p. 115), após exposição da forma
processual, é a de que perceber os procedimentos contra os cristãos como “medidas policiais”
é errôneo, pois os julgamentos em questão não eram processos que se resumiam em pura
coercitio, sendo na realidade processos legais apropriados, que envolviam o exercício da
iurisdictio em seu sentido completo. A forma se dava não por um método inquisitivo, mas
acusativo; o acusador praticamente conduzia o processo ante o tribunal, uma vez que deveria
51

submeter uma denúncia formal para que o governador tomasse frente perante a alegação, com
o delator correndo o risco também de ser punido por calúnia, caso estivesse incorreto. Além do
mais, como percebemos em exposições anteriores neste tópico, os governadores não
procuravam por acusar cristãos aleatoriamente ou sequer enviavam autoridades à caça dos
mesmos; pelo contrário, quando trazidos perante julgamento, tentavam persuadi-los de negar o
nomen Christianum. Como aponta Lane Fox (2006, p. 775), os governadores, dentro de seus
próprios limites, tentavam se comprometer a dar uma chance aos cristãos. Se um cristão se
recusava a comer carne sacrificial, não poderia, ao menos, acender um incenso em honra aos
deuses? Ou, por outro lado, sacrificar para o Imperador, que era tratado como uma divindade
irascível?
Exemplificamos o atestado na Segunda Apologia por Justino Mártir, direcionada ao
Imperador Antonino Pio, que data de 150 a 160 d.C., quando narra a história de uma mulher
convertida ao cristianismo, que tenta em seguida convencer seu marido da fé em Cristo e,
percebendo que o mesmo não aceitaria o proposto, pede o divórcio; seu marido a acusa de ser
cristã e ela solicita ao Imperador que primeiramente concedesse tempo para organizar o assunto
pendente do divórcio para depois arquitetar sua defesa, sendo assim atendida por ele em seu
pedido; após a separação, não podendo ser mais atingida, o ex-marido direciona suas acusações
ao professor que ensinou-a na doutrina Cristã, Ptolomeu:
E seu antigo marido, uma vez que não estava mais apto a processá-la, dirigiu
seus assaltos contra um homem, Ptolomeu, o qual Úrbico71 puniu, e que havia
sido professor dela nas doutrinas Cristãs. E ele o fez da seguinte maneira.
Persuadiu um centurião [...] a levar Ptolomeu e interroga-lo nesse único ponto:
se ele era um Cristão? E Ptolomeu, sendo um amante da verdade, e não de
uma traiçoeira ou falsa disposição, quando confessou-se Cristão, foi sujeito
pelo centurião, e por um bom tempo punido na prisão. E, por último, quando
o homem foi até Úrbico, foi perguntado uma questão apenas: se ele era um
Cristão? E novamente, sendo consciente de seu dever, e da nobreza do mesmo
através do ensinamento de Cristo, confessou seu discipulado na virtude divina
(JUSTINO MÁRTIR, Segunda Apologia, II, 22–32, grifo nosso).
Ptolomeu é, consequentemente, condenado à morte. De Sainte Croix (2006, p. 123)
responde, enfim, à própria pergunta “Qual era o fundamento legal das acusações contra os
Cristãos?”, dizendo que sob o processo de cognitio nenhum fundamento era necessário além de
um promotor, uma acusação de cristianismo e um Governador disposto a punir aquela acusação.
Percebemos, portanto, que o nomen Christianum por si só abarcava diversos fatores: não prestar
culto aos deuses tradicionais, não oferecer sacrifícios aos Imperadores, não respeitar o mos

71
Governador da Britânia romana entre 139 a 142 d.C.
52

maiorum. Negar o nome de Cristo significava negar tais elementos e, assim sendo, livrar-se da
acusação.
Após o exposto adentramos, nesta ocasião, o debate apontado brevemente na nota 54
deste trabalho, contrapondo dois autores: Timothy David Barnes e William Hugh Clifford
Frend.
Barnes (1968), em um artigo intitulado “Legislação contra os Cristãos”72, relata certos
desafetos de Imperadores dos séculos passados ao cristianismo, anteriores à época de produção
da História Eclesiástica, de Eusébio Pânfilo, e da História Sacra, de Sulpício Severo (ca. 363
– ca. 425 d.C.)73. Sua hipótese é de que as atestações produzidas por esses dois autores são
extremamente duvidosas e carecem de confirmações em outras fontes; assim sendo, julga-as
como falsas ou intencionalmente modificadas para legitimar as perseguições dos pagãos contra
os cristãos nos séculos passados. Algumas dessas atestações já foram expostas em nosso
trabalho, por intermédio de Eusébio Pânfilo; apontamos, contudo, para teor de complemento,
uma de Sulpício Severo:
Então, após um intervalo, Domiciano, o filho de Vespasiano, perseguiu os
Cristãos. Nessa data, ele baniu João o Apóstolo e Evangelista à ilha de Patmos.
[...] E sem grande intervalo lá em seguida ocorreu a terceira perseguição sob
Trajano. Mas ele, quando após tortura e trasfego encontrou nada nos Cristãos
digno de morte ou punição, proibiu qualquer crueldade a ser imposta contra
eles (SULPÍCIO SEVERO, História Sacra II, XXXI, 1–7).
De acordo com o autor, as constatações de Sulpício claramente não possuem
conhecimento de nenhuma lei ou édito específicos contra os cristãos. A qualidade de suas
inferências e de sua visão histórica podem ser presenciadas meramente por deduzir que o
cristianismo era ilegal. Como expomos em Plínio o Jovem, nada demonstra que “tortura e
trasfego” ocorreu, apenas a confirmação por parte do Imperador Trajano de que os mesmos não
deveriam ser perseguidos e poderiam ser liberados caso negassem o nome de Cristo. Em
seguida, tratando-se da passagem que citamos de Melitão, demonstrada por Eusébio, afirma
que Melitão constata que Domiciano perseguiu os cristãos, porém, não apresenta mais detalhes
sobre os decretos (BARNES, 1968, p. 35).
Estreitando o debate para nosso recorte – ou seja, o período de Governo de Septímio
Severo –, a conclusão do autor sobre tais éditos se mostra presente: há uma dificuldade em

72
BARNES, T. D. Legislation Against the Christians. The Journal of Roman Studies, Oxford, vol. 58, parts 1 and
2, p. 32–50, 1968.
73
Sulpício Severo foi advogado em Bordéus (cidade situada atualmente no sul da França), posteriormente
convertendo-se ao ascetismo martiniano – que deriva da prática de São Martinho de Tours. Foi responsável por
redigir biografias sobre São Martinho, além de ser o autor da Crônica, ou História Sacra, que conta a história
sagrada desde a criação do mundo até seu tempo. Ver: FONTAINE, J. Sulpício Severo. In: DI BERARDINO,
Angelo (org.). Op. Cit., p. 1317–1318.
53

aceitar o provável decreto de Septímio como histórico. Se cristãos e judeus estão em posições
semelhantes e converter-se a essas religiões é ilegal, então simplesmente ser cristão de
nascimento não é ilegal e o cristianismo por si só não é crime. Porém, não se encontram
atestações em nenhum escritor cristão de que essa posição legal dos mesmos existe (BARNES,
1968, p. 41). Como vimos nas diversas fontes demonstradas, as condenações continuaram
exclusivamente por eles serem cristãos. Prosseguindo sua exposição, Barnes (1968, p. 48)
demonstra que após a restrição imposta por Trajano, o cristianismo ainda era um crime
categorizado de forma especial: enquanto todos os outros criminosos, quando condenados, eram
punidos pelo que eles fizeram no passado, os cristãos eram penalizados pelo que eram no
presente, e, apesar disso, até o último momento poderiam ser perdoados, desde que
apostatassem.
Sob outra perspectiva, William Frend (1974), em artigo nomeado como “Questões
Pendentes Relacionadas aos Cristãos e ao Império Romano na Era dos Severos”74, traz à tona
algumas explanações sobre as perseguições sob Governo de Septímio Severo e como foram
percebidas por alguns escritores cristãos de épocas subsequentes e contemporâneas ao Governo.
O autor reporta que, para um pagão – o autor cita o médico Galeno – recordando eventos da era
dos Severos não havia nada incongruente em associar judeus e cristãos como membros de uma
fé semelhante, evocando, dessa forma, atitudes similares da parte dos Imperadores – e
Governadores – acerca do que era passível de punição a essas seitas, independentemente de um
ser religio licita – judaísmo era lícito – e a outra não (FREND, 1974, p. 335).
Tertuliano, em seu escrito denominado Contra Escapula, manuscrito este que é
direcionado a um Procônsul, diz:
Pois não é a sua comissão simplesmente condenar aqueles que confessam sua
culpa, e entregar à tortura aqueles que negam? Você vê, portanto, como vocês
trespassam a si mesmos contra suas instruções de espremer do confessor uma
negação. É, na verdade, reconhecendo a nossa inocência que vocês recusam a
condenar-nos de uma vez assim que confessamos (TERTULIANO, Contra
Escápula, IV, 3–6).
Em análise dessa passagem, Frend (1974, p. 336) demonstra que tais favores em relação
aos cristãos parecem desenvolver-se sob Severo aos fins de seu Governo, quando o mesmo
estava longe de Roma, ocupado com suas tentativas de reconquistar as terras baixas da Escócia.
Antes disso, cristãos eram sujeitos a sérios ataques por multidões e Governadores de província.
Seguindo sua explanação, o autor indica que os ataques no período Severiano eram
direcionados principalmente contra as autoridades pertencentes ao que ele denomina como

74
FREND, W. H. C. Open Questions Concerning the Christians and the Roman Empire in the Age of the Severi.
Journal of Theological Studies, Oxford, vol. XXV, part 2, p. 333–351 October 1974.
54

“movimento Cristão”; vários catecúmenos são martirizados nesse momento. A situação se


diferencia, portanto, por colocar seus alvos primários como os líderes cristãos. Contudo, as
perseguições no período de Septímio Severo, se não se confirmam como antes pelos
historiadores de gerações passadas como uma certeza – Theodor Mommsen, J. K. Neumann e
Henri Gregoire são alguns dos nomes citados pelo autor –, podem ainda ser lembradas como
uma questão pendente, e de fato, se compreendidas como uma resposta à pressão de várias
partes do Império, uma probabilidade (FREND, 1974, p. 338, 349). Frend (1965, p. 258)
observa, além do mais, que torna-se interessante observar como muitas dessas denúncias de
cristãos entre 150 a 200 d.C. foram feitas por um membro da própria família do convertido, por
sentirem a coesão da vida familiar ameaçada.
Sem sujeitar-nos completamente à essa discussão sobre haver uma legislação contra os
cristãos ou não, qual ponto comum é encontrado nessa exposição? Percebemos que,
independente de tal, cristãos foram denunciados por diversos motivos. L. F. Janssen (1979) em
seu texto denominado “‘Superstitio’ e a Perseguição aos Cristãos”75 nos traz a conexão
desejada: a superstitio – superstição.
Em sua exposição, o autor percebe que muito esforço foi aplicado no que concerne à
parte legal da discussão, tendo como ponto de partida o institutum Neronianum. Envereda-se,
contudo, em outra direção: o lado religioso, especificamente a manifestação das cerimônias
religiosas. A exatidão das cerimônias era observada atenciosamente e, qualquer forma de
superstitio que se manifestasse em público e atraísse um número considerável de seguidores
era considerada como uma séria ofensa aos deuses romanos e, consequentemente, um ataque
direto ao Império (JANSSEN, 1979, p. 131, 136).
Superstitio era, nas palavras do mesmo, como uma “doença infecciosa”, que espalhava-
se mais e mais; por meio de sua própria forma contagiosa, tornou-se um verdadeiro risco à
humanidade. Esse tipo de teor trouxe, como exemplo, a descrição de Plínio o Jovem (Cartas,
X, 96, 9), em que o cristianismo é visto como um perigoso contagio – infecção, influente –, que
espalhou-se por todas as vilas e distritos rurais de sua província, trazendo consigo a deserção
infeliz dos templos e dos ritos sagrados (JANSSEN, 1979, p. 138).
Continuando sua argumentação, Janssen (1979, p. 150, 153) demonstra que a religio
possuía papel principal na parte oficial da magistratura romana, enquanto que a superstitio
deveria ser combatida como um inimigo do Império. Superstitio significava, em relação à cives
– cidadania –, sujeitar o ato de bem comum em prol do indivíduo. Assim sendo, os cristãos em

75
JANSSEN, L. F. ‘Superstitio’ and the Persecution of the Christians. Vigiliae Christianae, Leiden, v. 33, n. 2, p.
131–159, jun. 1979.
55

sua ligação com o Império não possuíam vinculação real; a vida e alma de um cristão não
pertenciam ao Imperador, mas a Cristo. Eles eram, verdadeiramente, cristãos, não romanos. Ao
negar os cultos e sacrifícios aos deuses romanos, repudiando sua existência, os cristãos
recusavam o cerne da cidadania romana; ao professar Cristo como seu guia, eles renunciam a
participação no Império e, conseguinte, tornam-se inimigos da res publica – república. A crença
cristã era, certamente, uma superstitio autêntica: prometia felicidade eterna e a participação em
um Reino dos Céus aos seus seguidores, se eles decidissem seguir Jesus; os governadores
terrenos pereceriam perante o fogo e espada, e apenas aqueles que colocassem sua fé em Cristo
sobreviveriam, tornando-se superstes – sobreviventes. No fim dos tempos, Jesus retornaria à
Terra para fundar seu eterno reino de paz.
Suetônio, em seu manuscrito Vida dos Doze Césares, em um tópico que descreve o
Governo de Nero, possui uma passagem que ratifica o que Janssen intenta demonstrar:
Sob seu Governo, várias práticas foram reprovadas e sujeitas a restrições e
muitas novas leis foram sancionadas. [...] Punições foram impostas contra os
Cristãos – seguidores de uma nova e perigosa superstição (SUETÔNIO, Vida
dos Doze Césares, Nero, 16, 2, grifo nosso).
Em latim, “perigosa superstição” consta como malefica superstitio. O que ligava a
superstitio aos cristãos eram as acusações de prática de magia – como já demonstramos na
discussão da obra de Wypustek no tópico 1.3 –; tais atos foram desde um longo passado
reprovados e punidos como ofensas ao Império, principalmente quando a prática de profetizar
a morte era direcionada à família imperial e ao Imperador (JANSSEN, 1979, p. 157).76
Concordamos, portanto, com o ponto comum da superstitio que permeia os trabalhos
apresentados. Como conclui-se pelo argumento de Sainte Croix (2006, p. 133), não eram as
crenças positivas e as práticas dos cristãos que trouxeram alvoroço e hostilidade romana, mas,
sobretudo, os elementos negativos em sua religião: sua total recusa de cultuar os deuses além
do deles. Crê-se, logo, que os principais motivos do Governo, na totalidade temporal que abarca
as perseguições, era principalmente religioso, de acordo com o conceito ancestral de religio;
religião, para os romanos, estava especialmente relacionada à ius divinum – lei divina –, que
orientava as leis estatais em relação a assuntos sagrados, os quais preservavam a pax deorum –

76
Dion Cássio (História Romana, LII, 36, 2) relata, por exemplo, o que Mecenas diz ao Imperador Otávio Augusto:
“Profetizar, para se ter certeza, é uma arte necessária, e você deveria de qualquer forma indicar alguns homens
para serem adivinhos e áugures, para os quais aqueles que querem consulta-los em qualquer assunto recorrerão;
mas de forma alguma devem haver praticantes da magia. Pois tais homens, dizendo a verdade às vezes, mas
geralmente mentiras, frequentemente encorajam muitos a tentarem revoluções.”
56

paz dos deuses – que garantiriam as cerimônias apropriadas. Seus grandes valores vêm,
portanto, da força da tradição (STE. CROIX, 2006, p. 138, 141).

2.1.1. Os mártires e a crescente polêmica cristã

Tertuliano, em sua Apologia (XLII, 2–4), demonstra que os cristãos não se


diferenciavam por serem um grupo separatista, ou revolucionário; sequer vestiam roupas e
utilizavam mobílias diferentes. Viviam como os outros, participando das mesmas necessidades.
Discorrendo-se do nível arqueológico, por exemplo, Barbara Borg (2013), em seu livro “Crise
e Ambição: Tumbas e costumes funerários na Roma do Terceiro Século d.C.”77, dissertando
sobre tumbas subterrâneas no Império Romano dos primeiros séculos em tópico denominado
“Tumbas subterrâneas”78 – focando principalmente no III d.C. –, explicita que diferenciar as
crenças por intermédio do que era representado nas tumbas torna-se improvável. Após vasta
análise e vários exemplos, conclui que, em um mesmo espaço judeus, cristãos e pagãos eram
enterrados, sem distinções aparentes dentre os sarcófagos. Ao contrário do que se pensa sobre
esse constante conflito entre cristãos e outros, tanto em vida quanto no post mortem, a
necessidade prática geralmente delimitava a resposta final. Como exposto no tópico passado, a
tentativa de persuadir o réu a negar sua fé e, assim, não ser sentenciado, era algo recorrente.
Entretanto, ao falarmos de martírios e suas repercussões, tal proposta parece destoar-se por um
motivo simples: o ato voluntário.
Em Cartago, a 17 de julho de 180 d.C., cristãos provenientes de Scilla, uma cidade do
norte da África, são trazidos a julgamento perante o Procônsul Saturnino, durante o consulado
de Presêncio e Claudiano. O relato é retirado da Paixão dos Mártires Scillitanos:
[...] foram postos no pretório Esperato, Narzálo, Citino, Donata, Segunda e
Véstia. Saturnino, o Proconsul, disse: Vocês podem conseguir a indulgência
de nosso senhor o Imperador, se retornarem a uma mente sã. Esperato diz:
Nós nunca fizemos mal, nós não cedemos ao errado, nós nunca dissemos mal,
mas quando maltratados nós agradecemos; porque nós damos atenção ao
nosso Imperador. Saturnino, o Proconsul, disse: Nós também somos
religiosos, e nossa religião é simples, e nós juramos pelo gênio do Imperador,
e rezamos por seu bem-estar, como vocês também deveriam fazer [...] Citino
diz: Não tememos a nenhum outro, salvo apenas nosso Senhor Deus, que está
nos céus. Saturnino o Proconsul disse: Vocês persistem em serem Cristãos?
Esperato disse: Eu sou um Cristão. E, com ele, todos concordaram. Saturnino
o Proconsul leu em voz alta o decreto da tabuinha: [...] tendo confessado que
eles vivem de acordo com a seita Cristã, mesmo após terem sido oferecidos

77
BORG, Barbara. Crisis & Ambition: Tombs and burial customs in Third-Century CE Rome. New York: Oxford
University Press, 2013.
78
BORG, Barbara. Underground tombs. In: Op. Cit., p. 59–122.
57

oportunidade de retornar ao costume dos Romanos tendo obstinadamente


persistido, é determinado que sejam sujeitos à espada. E assim todos eles
foram coroados com o martírio; e eles reinam com o Pai, Filho e Espírito
Santo, para sempre79 [...] (PAIXÃO DOS MÁRTIRES SCILLITANOS, 2–10;
21; 25–26; 33–36; 43–44, grifo nosso).
A propagação e as conversões ao cristianismo são feitas em uma era de perseguição. Os
letrados, autoridades na Igreja, diziam que no céu as recompensas para se morrer virgem eram
sessenta vezes maiores que a morte de um cristão comum; entretanto, com maior grandiosidade,
o mártir possuía recompensa cem vezes maior, suprema a todas. A morte dos cristãos era
idealizada em seu ápice pelo mártir, uma forma de “segundo batismo” que obliterava todos os
pecados prévios e assegurava um lugar imediato no céu (FOX, 2006, p. 771). Como constata
Geoffrey de Sainte Croix (2006, p. 129), eventos que podem ter criado um espaço de
antagonismo entre pagãos e cristãos são mais aparentes do que tendemos a supor: são eles os
tais “martírios voluntários”. Mártires não necessitavam esperar pelos atrasos da parúsia –
segunda vinda de Jesus Cristo –, os intervalos que marcavam o aprendizado da doutrina e suas
pequenas correções; eles eram rapidamente direcionados a Cristo e se tornavam “companheiros
do Senhor” (FOX, 2006, p. 802).
Possuímos, portanto, martírios que se alastravam e, certamente, fomentavam a
perseguição aos cristãos. Ao invés de seguir com generalizações, verifica-se que, se por um
lado tal prática parecia ser encorajada, por outro era reprovada. Presente também nas seitas
ortodoxas, esta prática era desestimulada por parte dos chefes da Igreja, negando aos seguidores
inclusive o direito de serem lembrados como tais. Mesmo assim, os relatos transparecem um
vasto número de voluntários e, apesar das reprovações feitas pelos bispos, recebiam grande
honra como mártires e eram vistos pela massa de fiéis com amplo respeito (SAINTE CROIX,
2006, p. 130).
Ser referido ao sacrifício de Jesus Cristo, acima de tudo, torna-se o principal motivo.
Vemos, por exemplo, o martírio de Policarpo, em cerca de 155 d.C., um dos mais reconhecidos
e famosos da História da Igreja, que demonstra similaridade à Paixão de Cristo; Policarpo, após
ser denunciado por seu servo e, posteriormente, capturado, recusa negar seu cristianismo e é
trazido à cidade, ao anfiteatro. Recebe ameaças do Procônsul de ser jogado às bestas e de ser
queimado. Resistindo a ambas, acaba por ser condenado ao fogo:
[...] E enquanto a chama ardia em grande fúria, nós, que pudemos presenciar
isto, contemplamos um grande milagre, e preservamo-lo para podermos
reporta-lo a outros o que aconteceu. Pois o fogo, modelando-se em forma de

79
Observa-se que a oração final desse excerto foi adicionada em tempos futuros ao do momento em que os mártires
acontecem; referir-se ao “Pai, Filho e Espírito Santo” torna-se comum apenas após o combate ao arianismo sobre
a consubstancialidade divina, ratificado no Concílio de Nicéia em 325 d.C.
58

arco, como a vela de uma nau quando preenchida pelo vento, envolveu como
um círculo o corpo do mártir. E ele apareceu não como carne que é queimada,
mas como pão que é assado, ou como ouro e prata brilhando em uma fornalha.
[...] No decorrer, quando aqueles homens perversos perceberam que seu corpo
não poderia ser consumido pelo fogo, comandaram a um executor que se
aproximasse e perfurasse-o com uma adaga. E ao fazê-lo, do ferimento saiu
uma pomba, e uma grande quantidade de sangue, extinguindo o fogo; e todas
as pessoas presentes imaginaram que deveria haver uma diferença entre os
descrentes e os eleitos [...] (MARTÍRIO DE POLICARPO, XV, 2–7; XVI, 1–
5, grifo nosso).
Em análise detalhada sobre o martírio de Policarpo, Leonard L. Thompson (2002), em
seu artigo intitulado “O Martírio de Policarpo: Morte nos Jogos Romanos”80, traz luz às relações
entre o martírio deste cristão e sua exposição pública. Com a seguinte pergunta, encerra sua
introdução: em resumo, apesar dos encontros de cristãos e romanos na arena se apresentarem
como um enfrentamento, tal arranjo não contribuiu para a formação da autocompreensão do
Cristão? (THOMPSON, 2002, p. 28).
Espalhando por diversas áreas o modelo arquitetônico romano, assegurar a forma de
entretenimento que se via em Roma, como no Anfiteatro Flaviano, torna-se uma prática que
leva a todos os cidadãos e pessoas sujeitas ao Império os famosos jogos sangrentos – lutas
gladiatórias, batalhas contra bestas, exibição de execuções, dentre outros. Os jogos, de acordo
com Thompson (2002, p. 31), eram poderosos rituais sociais para promulgar e manter valores
e instituições fundamentais ao Império Romano.
O crime dos cristãos, de acordo com os relatos que apresentamos, se encaixa com o grito
de fúria da multidão no Martírio de Policarpo: eles eram tidos como ateístas, pois, recusavam-
se a oferecer sacrifícios aos deuses (THOMPSON, 2002, p. 35). Ou, como exclama a própria
multidão contra Policarpo: “Esse é o professor da Ásia, o pai dos Cristãos, o destruidor dos
nossos Deuses, que ensina muitos a não oferecer culto nem sacrifício.” (MARTÍRIO DE
POLICARPO, XII, 2).
Pela perspectiva da Igreja, era importante que os martírios fossem vistos não como
respostas a atos criminosos, mas apenas como rituais de passagem. Diversos mártires e suas
mortes, com o passar dos anos, compõem os martirológios que são utilizados para doutrinar e
exemplificar a forma de comportamento de um mártir. Como expõe Thompson (2002, p. 41),
tais documentos serviam para demonstrar como se responder às perguntas, quais gestos fazer,
quais expressões faciais devem ser utilizadas, e como, principalmente, asseverar o sofrimento
como normativo, e não anormal. Por consequência, percebemos que isso geraria certamente

80
THOMPSON, Leonard L. The Martyrdom of Polycarp: Death in the Roman Games. The Journal of Religion,
v. 82, n. 1, p. 27–52, jan. 2002.
59

empatia de parte dos que presenciavam o ato; constatar a nobreza e valentia de um mártir
poderia, assim, inverter a intenção de criar um exemplo ao exibir a morte de um criminoso.
Torna-se ambíguo o sentido de um lado vitorioso: tanto o Império demonstraria o que acontece
com aqueles que desafiam o mos maiorum, quanto os que observam-no se sentiriam instigados
a partilhar dos eleitos da Igreja.
Como exemplo de tais consequências, possuímos a análise da catacumba dedicada ao
mártir Novaciano (ca. 200 – ca. 258 d.C.), na qual cria-se primeiramente o sarcófago central
do mártir, e segue-se posteriormente a construção de 1000 loculi – compartimentos de formato
simples para enterro, cavados nas paredes das catacumbas – para comportar outros cristãos que
gostariam de ali serem enterrados. Com diversos outros exemplos – Cripta dos Papas, Hipogeu
de Calepódio, dentre outros –, Barbara Borg (2013, p. 76–77) mostra que os mártires possuíam
um poder de agregação e atração enormes, tornando-se exemplos a serem seguidos em vida e
criando também um espaço que atraía inúmeros cristãos para perto de si em sua morte, pela
santidade do solo em que eram enterrados. Notamos, isto posto, que esses homens passam a
simbolizar uma sacralidade que perpetuavam com o modelo máximo da disposição imediata de
morrer pelo nome de Deus; transformam-se, consequentemente, numa das primeiras formas81
do cristianismo de atrair fiéis.
Imaginemos, portanto, o que um Governador que tomasse o caso de um cristão com
intenções de morrer deveria enfrentar: a sua irracionalidade82 – ao estar determinado a morrer
–, a incompetência burocrática daqueles que iniciaram a denúncia, a falta de testemunhas e
informações, e, como exposto acima, o risco de que o espetáculo se tornasse atrativo de forma
negativa à plateia. No caso específico de Policarpo, um homem de 86 anos83, que negou – apesar
de ter tido chances – a redenção proposta pelo Governador, deixa a autoridade sem outra
alternativa além de condená-lo à arena. Policarpo torna-se, então, a imagem da disputa de poder
daquela sociedade. A lei e a ordem não seriam restauradas enquanto ele não respondesse por
seu crime, reproduzindo, ao mesmo tempo, terror e penitência ante a plateia. Por essa razão, o
mesmo não poderia ser morto imediatamente; deveria, antes, ser submetido a ritos expiatórios
por meio dos quais faria reparações e compensações por suas transgressões. Tais ritos, dessa

81
Apesar disso, o martírio era uma prática comum já dentre os hebreus, antes da vinda de Jesus Cristo.
82
Termo de Thompson. Op. Cit., p. 40.
83
Policarpo, de acordo com o relato, viveu 86 anos como cristão em Esmirna. Por quais motivos o mesmo não foi
martirizado antes? Porque, subitamente, um levante furioso perseguiu-o e fez com que o descrito acontecesse?
Thompson expõe que, apesar de diversas análises, o único documento sobre seu martírio é este e, dessa forma,
sabermos qual o real motivo torna-se impossibilitado. Ver: THOMPSON, Op. Cit., p. 34.
60

forma, só terminariam quando apresentados ao público as marcas de tortura e morte que


consolidassem o julgamento justo do Império Romano (THOMPSON, 2002, p. 40).
Temos, em vista disso, duas realidades ao expor a morte de um mártir: a primeira sendo
a luta do mesmo contra as bestas, ou a execução pública, ou ser consumido pelo fogo; a segunda,
de teor mais suprassensível, a disputa religiosa que era revelada nos próprios ferimentos daquele
mártir, que a identidade inscrita nos mesmos aparentava. Leões, coerção e resistência
promulgavam simultaneamente os mitos romanos e cristãos e seus ritos de identidade social e
realidade cósmica (THOMPSON, 2002, p. 49).
Possuímos, dessarte, um fato interessante: o Governador de província, ao ordenar a
execução pública de Policarpo, em Esmirna, faz transparente o que é o cristianismo e, ao mesmo
tempo, expõe-no negativamente como uma superstição anti-romana, perante o povo da cidade.
Os cristãos, por outro lado, precisariam ver um de seus líderes morrendo em forma de
espetáculo, o que resultaria nos mesmos enfatizando a perseguição no Império – descrita em
Tertuliano, Justino Mártir, Clemente de Alexandria, Eusébio Pânfilo, dentre muitos outros –
como maior do que ela realmente era. Em seguida, apesar de ser um resultado aparentemente
imprevisível, tais execuções públicas tornam-se uma oportunidade de cristãos testemunharem
sua própria fé (THOMPSON, 2002, p. 49). O cristianismo, de acordo com o Imperador Marco
Aurélio (Meditações, XI, 3), torna-se conhecido por ser uma superstição irracional que busca a
morte por “pura revolta”. Dessa maneira, a própria reencenação da história de Jesus Cristo
possuía a parte do martírio destacada, consequentemente relegando a segundo plano o seu papel
social como um mestre sábio e pregador da paz (THOMPSON, 2002, p. 50).
Em suma, Policarpo foi executado em um tempo e lugar que celebrava valores romanos
e a glória do Império Romano (THOMPSON, 2002, p. 34). Como constata Judith Perkins
(1995, p. 12), a representação dos cristãos nas narrativas primitivas indica-os como uma
comunidade de sofredores e perseguidos, que não apenas funcionou para consolidar uma ideia
real do que acontecia, mas, permitiu também uma definição própria que culminaria no
crescimento do cristianismo até sua institucionalização.
A partir dos exemplos expostos, percebemos que o principal fator que interligava tais
atos e interpretações do mesmo era a doutrina. Dependente de um pensamento filosófico, o que
denominamos como doutrina cristã, nesse momento, ainda procurava por suas bases e relações
com as formas de visibilidade e transmissibilidade que facilitariam sua propagação como
religião. Diante disso, a independência de diversas seitas se fazia por intermédio da escrita de
evangelhos que futuramente se tornam canônicos, e outros como apócrifos – consequentemente,
heréticos. Esses escritos transmitem o essencial para se saber o que se deve fazer para ser/tornar-
61

se um cristão pleno; além disso, possuímos os apelos por meio de apologias que intentam
defender a fé em Cristo. Como exposto, morrer pelo nome de Cristo era, em primeiro lugar,
uma questão de orgulho religioso e voluntariedade. Esses novos cultos, como propõe Paulo
Gabriel Hilu da Rocha Pinto (1997, p. 364), penetraram o mundo romano e marcaram a cena
religiosa do séc. II e III d.C. por garantirem uma identidade coletiva a seus fiéis, que poderia
ser reencenada em qualquer espaço, que dava respostas às inquietações sobre a ordem cósmica
e natural e, principalmente, sanava as dúvidas sobre o além, pois, seus deuses, ao contrário dos
deuses romanos tradicionais, possuíam poderes sobre todo o universo. Notamos, portanto, que
isso certamente atrairia olhares de todas as partes, tanto de simpatizantes quanto de curiosos;
curiosos, estes, que poderiam ser leigos, ou, no caso de Celso, filósofos que se interessaram
pela forma como o cristianismo se manifestava e, principalmente, por como ele se instaurava
como doutrina na mente de seus fiéis.

2.2. Sistematização do debate: Celso como o primeiro dos polemistas


anticristãos

Mediante nossa análise, explicitamos que a maior parte das acusações contra os cristãos,
em um primeiro momento, veio de nível popular, baseando-se principalmente em rumores e
comportamentos estranhos dessas seitas. Imoralidade, como denota Jeffrey Hargis (1999, p.
15), é o ponto que demarca as objeções sociais ao cristianismo; a opinião pública sobre os
cristãos, certamente, era pouco informada. Uma reflexão filosófica, em vista disso, só surge
com Celso na virada do séc. II para o III d.C., após uma breve pausa nas perseguições contra as
seitas.
A resposta de Celso é fruto de um sintoma ligado ao progresso dos seus oponentes;
quando o cristianismo era apenas um grupo que tentava romper-se do judaísmo, não havia
necessidade de uma oposição filosófica. Entretanto, no tempo em que Celso redige seu
manifesto, é por consequência da crescente sofisticação intelectual e das manifestações
missionárias desse culto. Além disso, mais preocupante ainda, era a tentativa de clamar direitos
pela ancestralidade da cultura e filosofia pagã, ao dizerem que tais características eram
provenientes de Moisés e seus ensinamentos. Esses processos, dessa forma, salientam de início
uma apropriação cultural para, posteriormente, a partir de Constantino, a reivindicação do
próprio Império Romano (HARGIS, 1999, p. 15–16).
62

Primeiramente, o cristianismo difundiu-se em meio judeu e, sucessivamente, passa a


abarcar também o meio pagão. Como demonstra Simon C. Mimouni (2009, p. 20), a maioria
desses não judeus era simpatizante do judaísmo, e eram relativamente numerosos no Império
Romano. O movimento cristão, dessa forma, perpassa por algumas dificuldades com a entrada
desses pagãos, devido às suas diferentes tendências. Os conflitos iniciam-se, internamente,
entre cristãos que entendem que apenas a crença no Messias é suficiente para a salvação; outros,
estimam que a crença e a observância da Lei e no Messias eram necessárias (MIMOUNI, 2009,
p. 21). Essas comunidades, em um primeiro momento, fazem parte do judaísmo, independente
da presença de cristãos de origem grega; Mimouni (2009, p. 21) articula que falar de
cristianismo, como religião constituída e aceita, posterior à segunda metade do séc. II d.C., é
difícil. O cristianismo, por conseguinte, está ou no judaísmo, ou fora do judaísmo, mas,
mantendo-se ligado a ele, de qualquer maneira.
Por meio disso, temos uma progressiva marginalização das comunidades cristãs de
origem judaica, em benefício das de origem pagã; estas últimas, portanto, é que constituirão
sucessivamente a Grande Igreja (MIMOUNI, 2009, p. 22).
O que implica, dessa maneira, a aderência, por exemplo, de gregos à nova seita? Junto
a eles, uma carga de mitos e filosofia ancestrais os acompanhava; com aquele movimento
messiânico, o qual precisava de mais do que boa vontade e evangelização para se propagar, o
gnosticismo, de forma geral, traz propostas que disseminam ideias paralelas àquelas do que
futuramente seria a Igreja Católica. O cristianismo, então, experimentava múltiplas correntes
de pensamento que, devido à descoberta da Biblioteca de Nag Hammadi 84 em meados do séc.
XIX, tornou-se mais evidente para estudiosos contemporâneos, por meio dos diversos textos
que foram encontrados. As várias formas que Jesus é retratado pelos evangelhos apócrifos de
alguns apóstolos e de Maria Madalena, aparecem para clarificar um lado obscurecido pela
construção da ortodoxia da Igreja. Podemos observar nos textos que datam do séc. II d.C. em
diante, que o uso de diversas correntes filosóficas recorria entre as várias seitas que futuramente
seriam postuladas como heréticas.85 A Igreja Católica, portanto, passou por um processo de

84
Coleção de textos de cunho gnóstico descobertos na região do Alto Egito, perto da cidade de Nag Hammadi, em
1945. Escritos em copta e grego, vários evangelhos não-canônicos compõem essa Biblioteca, como o Evangelho
de Tomé, por exemplo. Podem ser encontrados nesses textos a influência primária do gnosticismo e do platonismo;
junto a esses textos foi constatado, também, uma seção da República de Platão, em grego.
85
Na Introdução à Biblioteca de Nag Hammadi, James M. Robinson discute alguns fatores, como: há um debate
entre os historiadores que estudam o gnosticismo, buscando entender se esse movimento caracteriza-se como algo
interno ao cristianismo, ou, se possui uma ancestralidade anterior; elenca, também, a possibilidade de que os
manuscritos de Nag Hammadi terem sido ali escondidos, em jarros, devido à chegada na região de forças romanas
que haviam aderido à ortodoxia da Igreja Católica, após sua institucionalização. Ver: ROBINSON, James M. (org.)
A Biblioteca de Nag Hammadi. São Paulo: Madras, 2014. p. 16–38.
63

formação que teve a opção de escolher a doutrina mais adequada ao seu método arrebatador;
percebemos isso com a formação da Bíblia canônica e da exclusão de diversos outros textos.
A entrada de novas correntes filosóficas serve, de certa forma, para atrair intelectuais e
eruditos interessados; como notamos em Orígenes, por exemplo, a explicação sem
questionamentos, puramente por meio da fé, não se encaixava àqueles que possuíam uma
necessidade de explicação racional. É devido a isso, consequentemente, que um autor como
Orígenes coloca em dúvida questões como a ressurreição da carne tal como se encontra após a
morte. Debates desse tipo assinalaram o pensamento dos patrísticos e, consequentemente,
caíram em intensas querelas no momento em que a Igreja torna-se religio licita, em
Constantino, quando precisou definir suas diretrizes. Devemos notar, entretanto, que por mais
que tais concepções possam ter sido relegadas à heresia e ao esquecimento, foram fundamentais
para o processo de elaboração que influenciariam grandes nomes do IV e V séc. d.C., como
Jerônimo de Estridão e Agostinho de Hipona, sendo o primeiro responsável pela vulgata –
tradução para o latim da Bíblia – e o segundo pela Cidade de Deus, que particularizam o
pensamento posterior, finalmente fundamentando um traço maior de originalidade para a
filosofia cristã.
Temos como exemplo, além de Orígenes, Clemente de Alexandria. Henny Fiskå Hägg
(2010, p. 179), argumenta que Clemente escreve com um extenso conhecimento literário, tanto
pagão quanto cristão. Ele é o patrístico que mais frequentemente cita autores não-cristãos;
poetas gregos, dramaturgos, filósofos e historiadores são utilizados por ele. Ilustra seus
pensamentos recorrendo a Homero, Platão, Heráclito, dentre outros; não há filósofo grego tão
bem visto para ele quanto Platão, e isso percebe-se por meio das várias citações diretas de seu
trabalho. É a partir da visão de Clemente que filosofia grega e lei judaica prostram-se como
duas convenções paralelas, que preparam os gregos e os judeus, respectivamente, para a
recepção da mais perfeita mensagem cristã, a filosofia verdadeira. Clemente, em seu Stromata
– Miscelâneas –, escreve capítulos que se tornarão extremamente polêmicos com o passar dos
anos, servindo também de base para a resposta do cristianismo frente a seus opositores; um
breve excerto apresenta que:
E tendo provado que a declaração do pensamento Helênico é iluminada
completamente pela verdade, outorgado a nós pelas Escrituras, tomando-o de
acordo com o sentido, provamos, para não dizer algo desagradável, que o
roubo da verdade passou a eles. (CLEMENTE DE ALEXANDRIA,
Stromata, VI, 2, 5–8, grifo nosso)
Com uma exposição detalhada, Clemente tenta provar que os gregos plagiaram-se a si
mesmos e, também, tomaram seus pensamentos que eram tidos como originais das Sagradas
64

Escrituras dos hebreus. É notório que tais afirmações seriam fortemente rechaçadas pelas
diversas escolas filosóficas que clamavam, cada uma, suas próprias ideias.
É à vista de todo o exposto que uma cogitação surge: Jesus Cristo veio como profeta e,
ao ressuscitar, promete um retorno breve para separar os eleitos dos não-eleitos. Seus apóstolos,
consequentemente, deveriam espalhar a palavra de Deus e conseguir fiéis a qualquer custo. A
intensa expectativa daqueles que decidem aderir à sua doutrina se intensifica; porém, nada
acontece. Os diversos grupos, portanto, interpretam o retorno de Jesus cada uma à sua maneira,
algumas propagando ainda o apocalipse iminente e, outras, denotando que, enquanto
aguardavam, deveriam refinar seus meios de pensar suas raízes judaicas, a vida de Jesus, o meio
em que viviam e o que poderiam tirar de proveito do mesmo. Com o platonismo, o estoicismo,
o epicurismo, dentre outras correntes, afinidades e aversões se mostram para formar as
doutrinas cristãs; assim, cada viés filosófico fornece um traço que será adequado. Esse
crescimento intelectual, portanto, marca uma forma de resposta que, de acordo com Jeffrey
Hargis (1999, p. 20), aparece com Celso, que era um “polemista informado”, e que não se
alicerçava em argumentos escandalosos e histórias sem fundamentos.
Findada essa exposição sobre o contexto, temos, conseguinte, o discurso de Celso que,
em contraste aos patrísticos, procura elencar fatos para provar que os cristãos estão errados,
além de razões para retorná-los ao caminho que acredita ser correto. Seu tratado constrói-se,
isto posto, como uma tentativa de reverter esse cenário que aparentava ser caótico, devido à
falta de comprometimento desses cristãos com os costumes e observâncias religiosas do
Império Romano.
65

CAPÍTULO III

A apropriação cristã e a ameaça à Doutrina Verdadeira em


Celso
“Há muita diferença entre levarmos simplesmente o mundo
em nós mesmos e conhece-lo. [...] Não creio que se possam
considerar homens todos esses bípedes que caminham pelas
ruas, simplesmente porque andam eretos ou levem nove
meses para vir à luz. [...] muitos deles não passam de peixes
ou de ovelhas, vermes ou sanguessugas, formigas ou
vespas. Todos eles revelam possibilidades de chegar a ser
homens, mas só quando vislumbram e aprendem a leva-las
em parte à sua consciência é que se pode dizer que possuem
uma...”

HESSE, Herman. Demian.


Com inúmeras apologias e clamores sobre qual(is) deus(es) havia(m) criado o Cosmos,
quem possuía a verdade, qual a filosofia mais antiga, o cristianismo se destaca para, de seita
dissidente, receber maior atenção do que breves passagens em diversos manuscritos. A partir
de Celso, um exemplo mais claro de apropriação se faz evidente; o autor demonstra, por meio
de seu discurso, que não há nada de novo sobre o messias daquela religião, ou as ideias
perpetradas pela mesma; sequer sua mitologia possui originalidade. Porque, então, pessoas
aderiam veementemente àquela seita e, inclusive, morriam por suas ideias?
Um dos pontos centrais que escalonam o debate de Celso é a criação e seu criador, dentre
noções fundamentais que são consequências desses dois itens; sendo assim, recorremos, de
forma comparativa, à uma das fontes de paráfrase utilizadas pelo autor para fundamentar seu
debate: o Timeu de Platão. Celso, como demonstramos, foi um platônico eclético; expomos,
assim, a predominância do platonismo em sua ideia, sem deixar, entretanto, de utilizar-se de
outras filosofias para reforçar seu intento, sendo basicamente o estoicismo, a qual também é
trazida à tona. Em conjunto à essa comparação, contrapomos visões díspares contemporâneas
à de Celso, de outros patrísticos. Faz-se necessário, ademais, afunilarmos o debate desse tópico
para o que concerne o Demiurgo, pois, o mesmo é, para os platônicos, a divindade criadora e
central à ordem do Cosmos; dessa maneira, perceber como o Deus cristão possui semelhanças
e distinções em relação a ele é crucial, já que o ponto máximo das discussões permeia
66

aquele/aquilo que emana de si para os humanos o que os faz distintos de outras criaturas: o
logos86.
Além de prestar-se a encontrar uma diretriz individual, com o intuito de manter-se em
um sentido crido como correto e reto, alguns filósofos acabavam, também, por serem pontos de
emanação de doutrinas que poderiam tanto transmitir ideias que perpassavam-se para os
cidadãos – e não-cidadãos –, com consequência de manter o bem e a ordem de sua relativa
sociedade, ou, de depreender-se de todo plano material e de quaisquer instituições e vieses
criados pelo homem. A pluralidade de diretrizes foi presente desde a antiguidade grega, tanto
quanto a partir do período em que tais escolas adentram a res publica romana. Entretanto, cada
qual pregava a sua palavra verdadeira, o que acreditava-se ser o cerne da existência e o
propósito do humano racional. Vemos, portanto, por intermédio de Celso, as ditas apoderações
de partes que formariam algo que viria a ser tanto religião quanto filosofia: o cristianismo.
Conseguinte, notamos que, além das afirmações de conservadorismo levantado por outros
estudiosos, um outro fator se faz mais evidente. No campo prático, isso implicaria o risco para
o ensino; a educação romana, que seria uma imitação dos ancestrais (MARROU, 1973, p. 368),
passaria por profundas mudanças que remodelariam a forma de aprendizado e, como resultado,
da própria percepção da cultura e das bases sociais que regiam o Império Romano.

3.1. A necessidade de um discurso anticristão: dissensões e aproximações


acerca de algumas noções fundamentais

De fato, é absurdo que o trabalho de um artesão (geralmente o pior tipo de


pessoa!) deva ser considerado um deus. O sábio Heráclito87 diz que “aqueles
que idolatram imagens como deuses são tão tolos quanto os homens que
conversam com as paredes.” (CELSO, Discurso Verdadeiro, I, 17-21).
Um dos traços mais marcantes do cristianismo primitivo era sua repulsa à idolatria de
imagens. Tal prática, como observamos na passagem de Celso, era também abominada por
parte dos filósofos, pois era irracional. Porém, diferentemente dos cristãos, os filósofos,

86
Compreendemos aqui logos no sentido filosófico, tanto como razão de um indivíduo, quanto como a ligação
que mantém o Cosmos ordenado e perfeito.
87
Heráclito (ca. 540 – ca. 480 a.C.) foi um filósofo grego que reagiu contra a visão estabelecida de que a realidade
do mundo é uma entidade única e permanente, com mudanças apenas superficiais. Pelo contrário, acreditava que
o mundo está em um processo constante de modificação, um estado eterno de fluxo e conflito de opostos, ideia
expressa por meio da conhecida frase “ninguém nunca pisa no mesmo rio duas vezes” e “tudo se move e nada
permanece”. Foi contrário a alguns elementos da “religião popular” grega, como o culto a Dionísio, já que o mesmo
emanava excesso e devassidão. Ver: HAZEL, John. Who’s who in the Greek World. London & New York:
Routledge, 2002. p. 114.
67

independentemente do que acreditassem – e escrevessem –, sabiam que realizar um culto,


quando solicitado, não seria problema algum; e isso era o que importava (STE. CROIX, 2006,
p. 137).
Os embates propostos por Celso, como percebemos, intercalam dois pontos que se
opõem: o que é racional e possui uma diretriz conforme um Cosmos ordenado, e o que não é,
como um Caos desordenado. O Demiurgo, de acordo com o discurso de Timeu, garante ao
humano a faculdade de expor corretamente uma ideia – até, de fato, de dissertar sobre os deuses
e a criação –, que é o saber (PLATÃO, Timeu-Crítias, 106B, 11–14). De acordo com Rodolfo
Lopes (in PLATÃO, 2011, p. 42), o ponto crucial para o Homem é a necessidade do mesmo
aproximar-se o máximo possível da divindade, que é o arquétipo que o filósofo platônico tanto
discorre sobre e deve aspirar. O Demiurgo, que cria o mundo como um ser dotado de razão, dá
também origem aos deuses, responsáveis por nos prover, de acordo com Timeu, a alma que nos
domina, incutindo a cada um de nós um daimon88, que habita no alto de nosso corpo e é
encarregado de nos elevar até o nosso congênere no céu (PLATÃO, Timeu-Crítias, 90A, 4–9).
Um dos aspectos que marcam o platonismo, portanto, é a razão; há o que é contra a razão e o
que é a favor da mesma. Celso (Discurso Verdadeiro, VIII, 49–53), em seu texto, diz que
“Como os estoicos, com os quais temos muito em comum, nós dizemos que “Deus” é um
espírito, e como os Gregos mantemos que esse espírito [...] permeia todas as coisas e contém
todas as coisas dentro de si mesmo”. O estoicismo ressalta a virtus – virtude – como o ápice do
uso da razão, para saber utilizar-se dos julgamentos sobre as coisas, sempre almejando um juízo
correto; o sábio, para os estoicos, é aquele que utiliza-se da reta razão, é virtuoso e não possui
apego às paixões, que são contrárias à razão. Tanto o platonismo quanto o estoicismo percebem
a filosofia como uma forma de ascensão e desprendimento das coisas mundanas, um ato de
religar-se ao Demiurgo.
Como primeira noção básica a ser analisada a partir do pressuposto do que é racional e
irracional, vejamos o que Celso diz, a seguir, por exemplo, sobre a ressurreição dos corpos:
Ele pode, como disse Heráclito, ser capaz de prover vida eterna para uma
alma; mas o mesmo filósofo nota que “corpos deveriam ser dispostos como
esterco, pois esterco eles são.” Quanto ao corpo – tão cheio de corrupção e
outras formas de sujeiras – Deus não pôde (e não iria) fazê-lo eterno, já que
isso é contrário à razão. Pois ele mesmo é o Logos – a razão por trás de tudo
que existe, e ele não é hábil a fazer qualquer coisa que viole ou contradiga seu
próprio caráter (CELSO, Discurso Verdadeiro, VI, 47–55, grifo nosso).

88
No sentido grego do termo, são divindades que espelham sentimentos, relacionados àquele ou aquilo que está
interligado. O daimon, ligado ao homem, influencia-o a viver como “bom” ou “mau”.
68

Como nota Michael Bland Simmons (2002, p. 857–858), Celso acreditava sim em vida
após a morte, porém, de maneira a demonstrar a imortalidade da alma – a qual poderia ser
purificada mediante a filosofia, que libertava-a das corrupções corpóreas –, que após seu
aprimoramento, poderia ver-se livre do corpo para escapar dos ciclos de ressurreição a fim de,
assim, tornar-se novamente una com o Demiurgo, após a morte. O platonismo, portanto, ensina
uma salvação final a partir e por intermédio desse corpo, mas nunca, como os cristãos
acreditavam, do corpo. A ressurreição do corpo é, portanto, filosoficamente impossível.
Percebemos, portanto, que o Deus cristão que ressuscita Jesus é, de acordo com Celso,
contraditório e viola sua própria natureza. Celso (Discurso Verdadeiro, VII, 328–332) expõe
que os cristãos de seu tempo acreditavam piamente que Jesus era a própria encarnação do logos
de seu Deus, e que tal visão era tão ridícula quanto suas recordações de como o homem veio a
existir. Que deus escolheria uma mudança como essa, de adentrar a carne mortal? Não é parte
da essência da mortalidade a mudança, e da imortalidade a permanência sem alteração? Assim,
é improvável que Deus desceu para a Terra, pois, se o fizesse, violaria uma alteração em sua
própria natureza (CELSO, Discurso Verdadeiro, V, 60–66). Ele escreve ainda que:
...é impossível que Jesus levantou-se corpóreo dos mortos, pois seria
impossível a Deus ter recebido de volta seu espírito uma vez que fosse
corrompido ao entrar em contato com carne humana. [...] Pois é plenamente
inviável que um corpo contendo a essência da própria divindade se pareceria
com o de todo mundo. Mas eles de fato dizem isso? Não. Eles afirmam que o
corpo de Jesus era como o do homem mais próximo, ou era pequeno, feio, e
repugnante (CELSO, Discurso Verdadeiro, VIII, 61–65; 85–89).
Em uma explanação específica denominada “A Ressurreição do Corpo”89, Robert M.
Grant (1948, p. 120) demonstra que a escolha ora pende para a visão da ressurreição da carne,
ora para o viés helenístico do retorno em uma forma espiritual. Continuando sua exposição,
Grant (1948, p. 122) afirma que qualquer fé que baseie-se em escatologia requer a crença em
um triunfo futuro, e para um mestre – Jesus – do séc. I d.C. que habitou a Palestina, tal triunfo
logicamente estaria associado a confiar em uma ressurreição, já que herdava essa tendência dos
judeus, que acreditavam em um retorno de homens com um corpo semelhante ao angelical.
Nesse assunto, a título de exemplo, o apóstolo Paulo enuncia que:
...A carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus, nem a corrupção
herdar a incorruptibilidade. Eis que vos dou a conhecer um mistério: nem
todos morremos, mas todos seremos transformados, num instante, num abrir
e fechar de olhos, ao som da trombeta final; sim, a trombeta tocará, e os mortos
ressurgirão incorruptíveis, e nós seremos transformados. Com efeito, é
necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade e que este

89
GRANT, Robert M. The Resurrection of the Body. The Journal of Religion, Chicago, v. 28, n.2, p. 120–130,
april 1948.
69

ser mortal revista a imortalidade (BÍBLIA DE JERUSALÉM, Primeira


Epístola aos Coríntios, 15, 50–53).
Deus, dessa maneira, trará a ressurreição de um corpo diferente daquele que morreu
(GRANT, 1948, p. 123). Como Paulo mostra, será um corpo espiritual, ao contrário daquele
corpo natural. Essa ressurreição, portanto, deve ser do corpo, mas, não necessariamente
daqueles que foram deixados para trás. A partir do pensamento de Paulo e, também, de Jesus,
não saímos das fronteiras do judaísmo. O exemplo mais importante para o apóstolo foi o próprio
caso de Jesus e, particularmente esse evento marca a intervenção divina que muda a decisão de
um juiz humano – Pôncio Pilatos –, fazendo assim evidente a característica da fé cristã que
diferiria dos seus antepassados judaicos (GRANT, 1948, p. 124). Paulo descreve uma antítese
entre espírito e corpo de tal forma que exclui-se a possibilidade de ressurreição da carne;
“corpo” e “carne” são opostos e, para ele, corpo não significa algo material, mas, o princípio
orgânico que faz um humano ser individual, que persiste todas as mudanças em substância a
partir da qual ele realiza-se a si mesmo, como material ou não-material (GRANT, 1948, p. 124).
Grant (1948, p. 123) analisa ainda os evangelhos de João, Marcos, Mateus, Lucas, dentre
outros, percebendo que as concepções levadas à frente a partir da segunda metade do I séc. d.C.
até o II séc. d.C. são interpretações errôneas dos patrísticos. Aos fins do II séc. d.C. a regra de
fé da Igreja era excluir tais visões de ressurreição espiritual da catequese, já que os fiéis mais
simples eram acostumados a pensar em termos mais materiais, fazendo triunfante à vista disso
a ressurreição da carne, em oposição àquela visão influenciada pela filosofia clássica (GRANT,
1948, p. 128). Já na virada do I séc. d.C. para o II séc. d.C. observamos que Inácio de Antioquia
(ca. 35 – ? d.C.)90 sinalizava essa concepção:
Pois eu sei que após Sua ressurreição igualmente Ele ainda possuía carne, e
eu acredito que Ele ainda possui. Quando, por exemplo, Ele veio àqueles que
estavam com Pedro, Ele disse a eles, “Lancem mão, encostem em mim, e
vejam que Eu não sou um espírito incorpóreo.” E imediatamente eles tocaram-
No, e acreditaram, sendo convencidos mutuamente por Sua carne e espírito
(INÁCIO DE ANTIOQUIA, Epístola aos Esmirniotas, III, 1–4).
Como escreve Grant (1948, p. 127), a fonte a qual Inácio retira essa passagem de Jesus
é desconhecida, e sua interpretação dos significados da ressurreição declinam daquele dos
apóstolos. A visão espiritualista dos manuscritos faz-se mais presente e floresce em locais como
Alexandria, por exemplo, e em Antioquia e Cesaréia, o contrário (GRANT, 1948, p. 128, 129).

90
Por volta de 110–130 o bispo Inácio de Antioquia foi preso e conduzido a Roma, onde aguardava sofrer o
martírio. Ali recebe a visita dos bispos de Éfeso, de Trales e de Magnésia, aos quais entregou cartas para suas
respectivas Igrejas, que continham diretrizes e ideias do mesmo para a fé cristã. Inácio pregava que a união da fé
deveria ter seu primeiro ponto a partir do bispado e do clero. É dele que herdamos a hierarquia de bispos, padres
e diáconos. Ver: NAUTIN, P. Inácio de Antioquia. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 710–711.
70

Na visão de Orígenes, por exemplo, o corpo presente não é nada mais que uma “capa de pele”.
Essa ideia é majoritariamente baseada na concepção platônica que vê o corpo como uma
“tumba” para alma (GRANT, 1948, p. 129). Além de Inácio, um provável contemporâneo de
Celso, Ireneu de Lyons (ca. 130 – ca. 202 d.C.)91, escreve a quase um século de distância de
Inácio a seguinte passagem:
Mas vãos de todas as formas são aqueles que desprezam toda a distribuição
de Deus, e desaprovam a ressurreição da carne, e tratam com desprezo a sua
regeneração, sustentando que não é capaz de incorruptibilidade. Mas se isso
realmente não obtém salvação, então nem o Senhor nos redimiu com Seu
sangue, nem o cálice da Eucaristia é a comunhão de Seu sangue, nem o pão
que repartimos a comunhão de Seu corpo (IRENEU DE LYONS, Contra as
Heresias, V, 2, 2, 1–4).
Ressalta Grant (1948, p. 128) sobre tal excerto que, para Ireneu, nós somos membros do
corpo ressurreto de Jesus; e já que somos carne e sangue, o corpo que nos compõe também o é;
tal ideia frutifica-se ao interpretar-se literalmente a concepção paulina da igreja como o corpo
de Cristo.
Assente no exposto, observamos que Celso certamente teve o acesso às estórias de Jesus
por meio de escritos de patrísticos, ou por um “conhecimento comum”. Gary T. Burke (1986,
p. 243, 245) corrobora a ideia em seu artigo “Celso e o Antigo Testamento”92, ao declarar que
todas as referências transliteradas de Celso são provenientes do Antigo Testamento, entretanto,
não totalizando suas menções somente a esse livro. Realça ainda que Celso expõe O Dilúvio,
A Torre de Babel, a Destruição de Sodoma e Gomorra, mostrando assim que o autor leu o
Gênesis e elencou esses fatos em sua devida ordem (BURKE, 1986, p. 241–242). Inferimos,
isto posto, que Celso possuía um exemplar do Antigo Testamento, mas, que retirou suas outras
referências literárias por intermédio de pesquisa própria fora do Novo Testamento. Isso
justifica, desse modo, o fato de o mesmo ter confundido a noção da ressurreição por dispor de
um provável contato com textos como os de Inácio e Ireneu.
Outro ponto a ser estudado é a importância do Demiurgo e do logos para Celso.
Consoante com Carl Sean O’Brien (2015, p. 16), determinamos os pontos principais dos quais
as teorias sobre o Demiurgo, de acordo com o Timeu, derivam:
I) a relação do Demiurgo com o Primeiro Princípio – a emanação;
II) a causalidade real do Demiurgo e sua interação com a matéria;

91
Ireneu de Lyons foi um bispo grego e escritor cristão. Chegou a conhecer Policarpo de Esmirna e, também,
sobreviveu aos martírios de Lyons, em 177 d.C., sendo responsável por levar a Carta dos Mártires de Lyons ao
bispo de Roma, Eleutério. É conhecido por, já nessa época, combater o que chamava de hereges, os gnósticos.
Ver: ORBE, A. Ireneu. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 716–720.
92
BURKE, Gary T. Celsus and the Old Testament. Vetus Testamentum, Netherlands, 36 (2): 241–245, april, 1986.
71

III) a condição ontológica das Formas;


IV) a questão da origem do mal;
V) outros fatores que limitam a influência do Demiurgo.
Tal temática perpassa boa parte da obra de Celso e dos textos gnósticos; suas noções
sobre o Demiurgo são utilizadas para contradizer tanto a noção de deus dos católicos, quanto a
de Demiurgo dos gnósticos. Sobre esse assunto, Celso peneja que:
Ele não é a mente, inteligência, ou conhecimento; mas ele faz a mente pensar,
e é consequentemente a causa da existência da inteligência, da possibilidade
do conhecimento; ele faz existir as coisas inteligíveis – da verdade ela mesma,
do ser ele mesmo – uma vez que ele transcende todas as coisas e é inteligível
apenas a um certo poder que não pode ele próprio ser descrito (CELSO,
Discurso Verdadeiro, IX, 210–216).
Observa-se que, para Celso, o Demiurgo é aquele dissemelhante do humano, que a ele
dá a faculdade de pensar e raciocinar o mundo ao seu redor, que nele incute o logos. Entretanto,
diferentemente de um deus cristão que possui forma humana, que ordena com a voz e que molda
as coisas com as mãos, o Demiurgo não possui forma, nem cor; sequer possui a capacidade de
se mover (CELSO, Discurso Verdadeiro, VIII, 4–6; 11–12).
Em oposição às conhecidas interferências das divindades do Olimpo no curso dos
acontecimentos da humanidade, o Demiurgo se resguarda em uma posição superior; após criar
a sua obra, o mundo, que é um “ser dotado de alma e intelecto” (PLATÃO, Timeu–Crítias, 30C,
1–2), retira-se e não mais interfere. Ele é, portanto, um agente divino que se afasta, mas, deixa
outras divindades responsáveis por conduzir as coisas mortais, ou seja, tudo que sofre as
intempéries do tempo no mundo (LOPES in PLATÃO, 2011, p. 38). Conforme Celso (Discurso
Verdadeiro, VII, 307–309), o Demiurgo particiona o mundo e, a cada parte, designa um dos
arcontes: “Sobre cada esfera há um ser encarregado com a tarefa de governança e digno de
possuir poder, pelo menos o poder atribuído a ele para executar sua tarefa.” (CELSO, Discurso
Verdadeiro, X, 10–13).
Esse Demiurgo assemelha-se, em termos humanos, a um arquiteto; todavia, não trabalha
com materiais como o ferro para um ferreiro, ou o tecido para um alfaiate. Molda, antes disso,
o estado pré-demiúrgico, ou seja, o Caos. Obedece a princípios matemáticos, seguindo a
geometria como diretriz para seus desígnios. Ele, logo, impõe ao material pré-cósmico o que a
ele faltava: a ordem. Timeu (PLATÃO, Timeu-Crítias, 28C, 4) chama-o de “criador e pai do
mundo”, mas, como Rodolfo Lopes (in PLATÃO, 2011, p. 42) disserta, devemos entender que
o Demiurgo é pai como educador, e não como princípio de geração. Ele torna-se, dessa maneira,
um exemplo a ser seguido, um arquétipo a ser aspirado.
72

A partir dessa exposição e do exibido por Jeffrey W. Hargis, (1999, p. 57) além da
análise do Discurso Verdadeiro, percebemos que Celso se encaixava em uma forma de
monoteísmo; viés este que, diferentemente da crença em apenas um deus, era o que podemos
denominar como “monoteísmo inclusivo”, que reconhece o papel central do Demiurgo, mas,
vê também a indispensabilidade dos arcontes.
A contraposição de Celso, isto posto, permeia as assertivas de cristãos sobre uma
natureza muito humana de seu deus; como ele exprime:
Mal, necessidade, e tristeza são irrelevantes onde Deus se concerne: ele não é
afetado pela injúria, aflição, e necessidade. Assim não pode ser irracional
cultuar vários deuses; e o homem que o faz naturalmente adorará alguns
deuses que derivam daquele Deus maior, e será amado por isso. Um homem
que honra o que pertence a Deus não ofende Deus, já que tudo pertence a ele
(CELSO, Discurso Verdadeiro, X, 35–41).
Escapar do poder de governar dos vários arcontes é impossível, segundo o autor. Sobre
a natureza do monoteísmo cristão ortodoxo, como Jan Assmann (2010, p. 38) apresenta, essa
forma de pensar tem, primariamente, um sentido político: um não pode servir dois mestres. Os
cristãos, ao renegarem a participação em festas públicas, pensavam estar a adorar e reconhecer
a apenas seu deus; entretanto, de acordo com a lógica de Celso (Discurso Verdadeiro, X, 105–
108), o fato de que “...apesar deles evitarem sacrifícios eles não obstante respiram, comem,
bebem água e vinho, e deste modo não evitam os deuses encarregados de administrar cada uma
dessas atividades”. Dessa maneira, evitar os outros deuses é impraticável, a não ser que a pessoa
em questão decida por não viver de forma alguma; ou, como sugere Celso (Discurso
Verdadeiro, X, 109–113; 117–124), ela pode viver agradecendo aos deuses que controlam os
assuntos terrestres, para assim garantir o favorecimento dos mesmos. Para ele, a ideia é
semelhante no que tange aos Governadores terrenos: respeitar os exercícios de cargo dos
mesmos é garantir sua benevolência. A problemática de concentrar tudo que concerne os
assuntos terrenos em apenas um deus é que o mesmo não pode ser conjurado e só se revela no
período e da maneira que convier. Além do que, tal deus não precisa de um representante
terreno, seja um arconte ou um Imperador, para representa-lo como administrador ou legislador.
Esse é o significado do banimento cristão do reconhecimento e idolatria de outras divindades e
do Imperador (ASSMANN, 2010, p. 69). Como escreve Ireneu de Lyons:
É adequado, dessa forma, que eu deva começar com a primeira e mais
importante direção, isso é, Deus o Criador, que fez o céu e a terra, e todas as
coisas que aí estão [...], e para demonstrar que não há nada acima D’ele ou
após Ele; nem que, influenciado por ninguém, mas de Sua própria vontade,
Ele criou todas as coisas, já que Ele é o único Deus, o único Senhor, o único
Criador, o único Pai, sozinho contendo todas as coisas, Ele mesmo
73

comandando todas as coisas à existência (IRENEU DE LYONS, Contra as


Heresias, II, 1, 1, 1, grifo nosso).
Pela exposição de Ireneu, faz-se razoável para ele que não há necessidade de outros
princípios, plenitudes, poderes, já que esse deus em sua imensidão contém tudo, e não é contido
por nada (Contra as Heresias, II, 1, 2, 1). A justificativa de Celso, logo, pode ser utilizada em
dois sentidos: se por um lado há necessidade de adorar e cultuar os arcontes, uma vez que eles
fazem parte do deus maior, Ireneu por meio do mesmo argumento mostra que é desnecessário
cultuá-los, já que o deus maior a tudo e a todos envolve. Segundo Rudolf Otto (2005, p. 59,
82), esse elemento divino é a realidade mais poderosa, elevada, querida, mais bela, o ápice do
que o humano pode conceber; pode ser também o superlativo de tudo que é concebível. Deus
é, em si mesmo, uma essência à parte. Ainda de acordo com o autor, o Deus do Novo
Testamento é mais venerável do que o do Antigo; a distância que o separa da criatura é
praticamente absoluta; o sentimento de não-valor que esse humano que partilha do profano
experimenta é, perante ele, reforçada. Observamos que esse ser divino cristão está em um
patamar de grandiosidade incalculável ante a inferioridade da humildade que o cristão deve
buscar; o mais surpreendente se faz, como diz Otto (2005, p. 115), quando esse ser misterioso,
terrível, inacessível, o maior representante do numinoso93 como tremendum, que habita os céus,
possua uma vontade de ter contato direto com seus fiéis, e é a partir dessas discrepâncias que
resulta a harmonia do sentimento cristão. Essa humildade para o humano cristão é proveniente
de Jesus, por meio de todo o sofrimento que o mesmo endurou para cumprir sua profecia.
Refletindo sobre esse acontecimento, Celso opõe que:
É mera impiedade, portanto, sugerir que as ações que foram feitas contra Jesus
foram feitas a Deus. Certas coisas são simplesmente como uma questão de
lógica a Deus, nomeadamente aquelas coisas que violam a consistência de sua
natureza: Deus não pode fazer menos do que convém a Deus fazer, o que é a
natureza de Deus fazer. Mesmo que os profetas tenham previsto tais coisas
sobre o Filho de Deus, seria necessário dizer, de acordo com o axioma citado
por mim, que os profetas estavam errados, em vez de acreditar que Deus
sofreu e morreu (CELSO, Discurso Verdadeiro, IX, 86–95).
A contradição, continuando sua explicação, se dá não no presente humilde daqueles
cristãos primitivos. Ela acontece devido ao fato dos mesmos procurarem raízes no deus dos
judeus, que prometeu aos mesmos um território com fartura, dominação soberana na Terra e
prosperidade em todos os sentidos; assim, o paradoxo com o cristão que pregava a humildade,

93
De forma qualitativa, o conceito de numinoso, consoante com Rudolf Otto (2005, p. 49), é o misterioso; por um
lado, é um sentimento repulsivo, aterrorizante, a manifestação divina que incute o ser mortal em seu lugar finito
no cosmos. Por outro, é algo que exerce uma atração particular, que cativa, fascina e forma-se com esse elemento
repulsivo do tremendum – a manifestação tremenda, grandiosa, que provoca terror – e coloca em entendimento
esses contrastes.
74

que acreditava que “É mais fácil um camelo passar pelo fundo da agulha do que um rico entrar
no Reino de Deus!” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, Evangelho segundo São Marcos, 10, 25), era
basear-se em um deus do Antigo Testamento que, contrariando-se a si mesmo e aos
mandamentos que passou a Moisés, “enviou seu mensageiro para dar notícia de que ele havia
suspendido o que ele previamente endossou.” (CELSO, Discurso Verdadeiro, IX, 109–113;
118–122).
Ainda em sua crítica sobre os deuses cristãos, Celso também analisa o deus dos
gnósticos:
Alguns Cristãos [isto é, os Gnósticos] mantém que é o deus dos Judeus o anjo
amaldiçoado, e que é esse deus que envia trovões, que criou o mundo e foi
idolatrado por Moisés, que descreve suas ações em sua própria história da
criação do mundo. Bom, tal deus bem merece ser amaldiçoado se ele é o deus
que amaldiçoou a serpente por dar ao homem o conhecimento do bem e do
mal! (CELSO, Discurso Verdadeiro, VII, 165–172).
Se faz evidente como o Demiurgo platônico e o deus gnóstico possuem semelhanças;
entretanto, para Celso – como demonstramos anteriormente – ele não possui as capacidades do
platônico. Na explanação de Sean Martin (2006, p. 33) sobre esse deus gnóstico, ele ressalta
que, dentre os mesmos, havia a existência do deus incompetente e arrogante, decaído – sendo
esse o Demiurgo –, e o verdadeiro Deus, que existe acima de tudo e perpassa o alcance da
própria descrição de si mesmo. O Demiurgo gnóstico é bastante associado com o Deus do
Antigo Testamento, mas não é usualmente visto como mal. Sua maior falha é sua arrogância;
ele acredita que não há outros deuses além dele. Antes do espaço e do tempo existirem, o
verdadeiro Deus habitava um lugar conhecido como Pleroma, que significa plenitude, unido a
um princípio divino feminino, denominado Ennoia, ou referido também como Pensamento. O
verdadeiro Deus não cria, mas, emana, ou seja, as coisas vêm a ser a partir dele. Em outras
palavras, diferentemente do Deus do Antigo Testamento que diz “Que haja luz”, a luz
simplesmente emana desse Deus verdadeiro; não é, dessa forma, uma ação deliberada de criar.
Uma série dessas emanações do verdadeiro Deus resultou nas outras figuras divinas.
Ainda em sua exposição, Martin (2006, p. 34) descreve que cada emanação possui, de
certa forma, uma inferioridade em relação à precedente. Sophia, a Sabedoria de Deus, é a última
dessas emanações divinas, e foi a partir de seu desejo de conhecer o verdadeiro Deus que uma
emanação saiu da mesma, sem a participação de seu consorte masculino – todas essas
divindades possuíam seus parceiros –, resultando num caos negro que deveria tornar-se matéria,
mas nesse ponto era apenas uma espécie de escuridão sem limites. Sophia, estando perturbada
pela escuridão, decidiu criar um ser para comandar tal lugar, e deu origem ao que os gnósticos
nomeiam como “deus infantil”, ou Demiurgo. Tal divindade, ignorante de sua própria mãe, não
75

ouve-a quando a mesma tenta explicar a ele que há poderes maiores que ele e, assim sendo,
inicia a criação do céu e da Terra a partir da matéria que ali estava, a qual é chefiada por ele.
Após isso, esse Demiurgo gnóstico designa outros arcontes para os sete céus que ele cria. Acima
de todos esses céus está o de Sophia e, o mais distante de todos, é o do verdadeiro Deus.
Percebemos a teoria dos céus em Celso (Discurso Verdadeiro, VII, 127–131), que escreve que
“...os Cristãos oram que após sua labuta e luta aqui embaixo eles adentrarão o reino dos céus, e
concordam com os sistemas antigos em que existem sete céus e que o caminho para a alma é
através dos planetas.”
É perceptível que um filósofo platônico, ao ver a apropriação dos gnósticos da doutrina
do Demiurgo compreendida por ele, com alguns retoques que colocam-no como defeituoso,
condena-os. A repreensão parte do ponto que os mesmos interpretaram incorretamente os
ensinamentos de Platão. Dentre as várias seitas gnósticas temos diversas interpretações; sobre
a seita valentiniana, que origina-se com Valentino (ca. 100 – ca. 165 d.C.) 94, por exemplo,
acreditavam em um deus pré-existente, que reside no Pleroma, imperturbável e invisível. Sua
emanação dos arcontes é composta de quinze pares de masculinos-femininos, dentre eles o
Logos, “a Palavra”, e sua consorte, Zoë, “vida”. Os arcontes, sedentos por conhecer o seu
criador são guiados por Sophia e tal busca faz surgir a “ignorância”, que só assim faz a
emanação do Demiurgo possível e, consequentemente, o mundo material vem a existir. Há
muitas semelhanças ao mito geral que expomos acima com Sean Martin; é importante
tornarmo-nos ao ponto em que o valentinianismo reflete a ideia de Platão de Mundo das Ideias,
que considera que tudo que há no mundo é apenas uma reflexão medíocre do Mundo Ideal
acima dele; o sistema de Valentino coloca o mundo material como obscurecido, uma versão
ruim do Pleroma. A dualidade entre esse Mundo Ideal e o Mundo Falho, é referida como
hebdomas, que significa “sete”, como uma referência aos sete céus do mundo material. Em
algum ponto dessa criação, Sophia é partida em dois, e sua parte superior fica presa no Pleroma,
enquanto a outra parte fica no mundo material. Essa parte inferior de Sophia que é corrompida,
responsável por produzir o Demiurgo, deve esperar pelo “Cristo” e o “Espírito Santo” que são
enviados pelo verdadeiro Deus para resgatá-la (MARTIN, 2006, p. 49–50).
A humanidade, para os valentinianos, foi feita pelo Demiurgo. Nela se distinguem três
tipos de pessoas: os somáticos, que são pessoas resolutas na matéria e só se importam com

94
Em dado momento de sua vida, após ter sido candidato a bispo e perder o posto para outro, renunciou à ortodoxia
e fundou uma escola, donde difundiu sua doutrina. Pouco sabemos sobre ele, restando apenas relatos de Clemente
de Alexandria e Tertuliano. Há escritos da biblioteca de Nag Hammadi que possuem semelhanças com o que
Valentino pregava, porém, não pode-se dar como certo que foram escritos por ele. Ver: GIANOTTO, C. Valentino
Gnóstico. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 1399–1400.
76

problemas da carne; os psíquicos, não tão inclinados aos prazeres da carne, mas, que tendem ao
ato de pensar, sentir e participar de religiões exotéricas; e, por fim, os pneumáticos, pessoas
espiritualmente conscientes, que estão acima dos dogmas impostos e das divisões, sendo assim
hábeis a receber a gnosis, o conhecimento absoluto. A última classe, isto posto, é a que possui
capacidade de ouvir e entender as palavras de Jesus Cristo, libertando-se após isso (MARTIN,
2006, p. 50–51).
De forma generalizante sobre os gnósticos Celso relata que:
Alguns dos cristãos, como os seguidores de outros mistérios, carregam suas
teorias ao ponto do absurdo, amontoando os dizeres de oráculos em cima de
outros dizeres, tudo intencionando à confusão. E assim ouvimos sobre círculos
em cima de círculos e emanações fluindo de emanações, igrejas terrenas e
igrejas da circuncisão; nós testemunhamos os Judeus fluindo de um poder
representado como uma virgem – Prunicus (Sophia) – e outra alma vivente
que foi morta para que o céu pudesse ter vida. [...] Eles também retratam
diagramas em uma passagem estreita através das esferas, e portões que abrem
de acordo com a sua vontade (CELSO, Discurso Verdadeiro, VII, 190–198;
201–203).
Para Celso (Discurso Verdadeiro, VII, 173–185), todos esses gnósticos são
contraditórios, assim como os católicos o são. Os cristãos, independentemente de distinção de
seitas, são hipócritas a partir do momento em que eles idolatram esse deus, quando ele na
verdade prometeu apenas aos judeus tudo. O que os cristãos chamam de sabedoria é tolice, seu
método de interpretar por meio de alegorias é dúbio e os gnósticos, que despejam abusos em
cima do deus criador, quando são confrontados pelos judeus dizem que cultuam o mesmo deus
que eles. Prosseguindo, Celso (Discurso Verdadeiro, V, 117–121) critica a base da mitologia
cristã, ou seja, a parte advinda dos hebreus sobre como o mundo veio a ser. Inicia perguntando
quem são os judeus, os quais julga como escravos que fugiram do Egito e que nunca possuíram
relevância, pois, nada de suas aventuras foi narrada pelos gregos. Portanto, também sem nunca
terem ouvido as poesias de Hesíodo e outros homens inspirados, inventaram um mito fantástico
sobre um homem formado por Deus, e de uma mulher que foi constituída a partir do lado direito
deste homem, e que Deus enviou-lhes ordens, e uma serpente veio e provou-se superior aos
anseios de Deus. Conclui que essas lendas os judeus contam às mulheres velhas, como se para
“...revelar o fato de que seu Deus é débil desde o começo [...], inapto a controlar até as primeiras
criaturas feitas por ele” (Discurso Verdadeiro, V, 134–143). O ponto central da crítica ao deus
cristão, a partir de Celso, retém-se principalmente, como observamos, na impotência do mesmo
que era tido como detentor de ilimitados poderes; relega-se, deste modo, a demostrar que, ao
contrário, era um deus que ao mesmo tempo que era vingativo e penitente, marcava suas ações
pela petulância e ambição por poder (Discurso Verdadeiro, V, 20–22; 84–85).
77

Semelhante ponto elencado por Celso é a dualidade entre bem e mal, advinda do
Demiurgo; os cristãos católicos relegavam o mal a Lúcifer – como força oposta a Deus, porém,
não em termos de igualdade –, ou, no caso dos gnósticos, a um deus inferior que criou algo
imperfeito. Como relata Sean Martin (2006, p. 32, 38), a crença gnóstica era a de que o mundo
era imperfeito, mas que tais imperfeições não deveriam desviar-nos da presença do bem, tanto
dentro de nós quanto no mundo em si. O fato de existir bondade no mundo garantia a
possibilidade de salvação. O mal, ao invés de ser o trabalho de Lúcifer, era tido como algo que
geralmente originava-se da ignorância. Marcião (ca. 85 – ca. 160 d.C.)95, líder da seita
marcionita, por exemplo, ensinava que existiam dois deuses, sendo o “criador incompetente”
aquele Deus da Lei – hebreu –, e o verdadeiro Deus o que envia Jesus para purificar o mundo,
o Bom Deus (MARTIN, 2006, p. 46). A outra seita por nós exemplificada – valentiniana –,
expunha que atingir a gnosis não apenas liberta o indivíduo, como contribui para a restauração
do mundo material e do seu estado de bondade inicial; tal salvação, portanto, unia o bem do
indivíduo à redenção do todo (MARTIN, 2006, p. 51). Celso, sobre tal, discorre que:
[...] alguém que não possui aprendizado em filosofia estará desavisado sobre
a origem do mal; mas é bom o bastante que as massas aprendam que os males
não são causados por Deus; ao invés, que são parte da natureza da matéria e
da humanidade; que o período da vida mortal é o mesmo do começo ao fim, e
que porque as coisas acontecem em ciclos, o que está acontecendo agora –
isto é, o mal – aconteceu antes e acontecerá novamente (CELSO, Discurso
Verdadeiro, V, 203–210, grifo nosso).
A defesa de Celso (Discurso Verdadeiro, V, 211–220) continua para provar que, nesses
ciclos, o curso naturalmente levará a um processo de mudança que se inclinará para o bem do
todo. Portanto, é irracional que Deus precise retornar para a Terra com intuito de recriá-la, já
que a quantidade de mal e bem que há são as mesmas desde a criação. Deus, dessa forma, não
precisa de “infligir correção ao mundo como se ele fosse um trabalhador inexperiente incapaz
de construir algo corretamente pela primeira vez” (CELSO, Discurso Verdadeiro, V, 216–219),
ou purificar o mundo mediante dilúvios e conflagrações. Percebemos, dessa maneira, que há
tanto uma similaridade e oposição com o deus gnóstico, quanto puramente divergência em
relação ao deus ortodoxo: atingir a gnosis assemelhar-se-ia à reta razão atingida por um filósofo
platônico ou à virtus de um estoico que depreenderam-se da materialidade da carne, voltando a
fazer parte do Demiurgo; contudo, a criação do Demiurgo é perfeita, em oposição ao deus

95
Teólogo herético do séc. II d.C., originário de Sinope. Fez parte da comunidade cristã de Roma e, em 144 d.C.,
foi excluído da comunidade, à qual ajudava com doações. A comunidade restitui-o de suas doações e, com elas,
funda em seguida a própria Igreja, que rapidamente se expandiu até por volta de 190 d.C., constituindo assim um
verdadeiro perigo à Igreja Católica. Ver: ALAND, B. Marcião – Marcionismo. In: DI BERARDINO, Angelo
(org.). Op. Cit., p. 881-882.
78

criador inexperiente dos gnósticos. Do lado católico, o crescimento do mal é ressaltado como
algo que está a sobrepor a presença do bem, sendo que a responsabilidade desse aumento
provém de um ser que espelha a parte maligna da dualidade – porém, não de forma equivalente
–, Satanás; percebemos o embate com o Demiurgo na abertura da Primeira Epístola de João:
[...] Deus é Luz e nele não há treva alguma [...] se caminhamos na luz como
ele está na luz, estamos em comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus,
seu Filho, nos purifica de todo pecado (BIBLIA DE JERUSALÉM, Primeira
Epístola de São João, 1, 5–7, grifo nosso).
Ainda no que concerne ao mal, conforme Celso, tais ideias são teorias limitadas pela
perspectiva de uma pessoa:
Mesmo que algo pareça mal para você está longe de ser claro se realmente o
é; uma pessoa com sua perspectiva limitada sobre toda a condição da criação
está despreparada para saber se o que é bom para você é bom para outro nesse
universo, e vice versa. Quando um homem estava irado com os Judeus e matou
todos eles [...] eles foram completamente aniquilados; mas (dizem eles)
quando o Deus supremo estava furioso e colérico ele enviou seu filho com
ameaças – e sofreu todas as formas de afrontas (CELSO, Discurso
Verdadeiro, V, 222–231).
O deus cristão católico não possui participação no mal e percebe o mesmo como algo
que necessita de um intermediário – Cristo – para purificá-lo. Toda essa multiplicidade de
fatores, de acordo com Matthew Craig Steenberg (2010, p. 242), elenca algumas perguntas:
pode haver pluralidade na unidade? Deus criou? Deus mudou? Ou, ainda, a profissão de fé dos
cristãos demandou uma mudança inaceitável nos conceitos de verdade e divindade? Essas
questões, de acordo com o autor, começam a serem enfatizadas a partir do séc. II d.C., em
direção a uma teologia que era reclamada pela criação de vários grupos – gnósticos – que
pareciam perverter a ideia, de uma maneira ou de outra. A insistência cristã na natureza criativa
de Deus significava enfrentar o que essa posição impunha: articular uma razão que concatenasse
a existência do mal – e consequentemente, do sofrimento. O lado gnóstico aparentava-se mais
simples, pois, o mal era relegado ao criador-defeituoso. No meio de tal efervescência de ideias,
uma associação surge no séc. II–III d.C., que clarificava a concepção católica entre
criador/criação cristã: o trabalho criativo de Deus, exemplificado em sua cura e restauração da
criatura humana por meio do Filho – Jesus –, revela a verdadeira natureza da primeira criação
do Cosmos e une o deus criador com o deus restaurador, representado por Cristo. É essa
experiência cristã que marca uma possibilidade para o Pai por meio do Filho, aperfeiçoado no
Espírito, permitindo assim uma discussão própria para a criação, além da natureza trinitária de
Deus (STEENBERG, 2010, p. 247).
Iniciando outra das noções fundamentais, isto é, sobre a trindade e a cruz, percebemos
que Ireneu de Lyons possui como evidência em seus escritos tais características dispostas sobre
79

Deus, expostas anteriormente por Steenberg. Quando a criação é deturpada por meio do pecado,
Deus trabalha uma recriação, procurando restaurar o que decaiu para uma nova vida e perfeição.
A reencarnação, portanto, e a restauração feitas pelo Cristo encarnado, são as chaves para
compreender Deus como Criador (STEENBERG, 2010, p. 247–248). Verificamos o atestado
em partes de seu manuscrito, denominado Contra as Heresias (ca. 180 d.C.):
A regra da verdade que nós possuímos, é, que existe um Deus Onipotente, que
fez todas as coisas por Sua Palavra, e moldou e formou, daquilo que não
possuía existência, todas as coisas que existem [...] O Espírito, portanto,
descendendo sob a dispensação predestinada, e o Filho de Deus, o Unigênito,
que é também a Palavra do Pai, vindo na plenitude do tempo, tendo-se
encarnado em homem pelo bem do homem, e cumprindo todas as condições
da natureza humana, nosso Senhor Jesus Cristo sendo um e o mesmo, como
Ele Mesmo o Senhor atesta, como os apóstolos reconhecem, e como os
profetas anunciam [...] (IRENEU DE LYONS, Contra as Heresias, I, 22, 1;
III, 17, 4).
Jeffrey D. Bingham (2010, p. 148) faz uma leitura interessante sobre o exposto: esse
Deus manifesta-se pela trindade. O Pai possui duas mãos, o Filho e o Espírito, e toda atividade
de cunho divino é advinda do próprio Pai por meio do Filho e do Espírito. Com essa conjectura,
Ireneu inicia um posicionamento da fé da Igreja Católica contra os seus oponentes, os gnósticos.
O Pai dos gnósticos, como Ireneu o vê, precisa de forças espirituais adicionais, anjos e outros
deuses, para auxiliá-lo na realização da sua vontade, já que ele é fraco, necessitado, e
fragmentado em seu próprio ser. Dessa forma, em contraposição, o Deus que Ireneu relata não
precisa de nada pois ele é autossuficiente, sendo Deus, Pai, e Senhor de tudo, e indivisível em
unidade com o Filho e o Espírito. Atestamos em Ireneu algo que seria utilizado para combater
a controvérsia arianista no IV séc. d.C. Entretanto, Ireneu é um dentre muitos que escreviam
nesse séc. II d.C.; percebemos dentre eles diversas perspectivas, sendo difícil impor uma visão
única do que é esse deus cristão, como ele se compõe, se é partícipe do mal e, também, como
toda a sua criação veio a ser.
Conforme Mark J. Edwards (2010, p. 45), os platônicos compartilhavam desse conceito
de logos de tal forma a reconhecer nele o deus Hermes, embaixador de Zeus, e o próprio Platão
visualizou a alma na imagem de uma cruz, em seu Timeu; temos, assim, a noção trinitária
também em Platão. Em debate à exposição acima sobre a ideia de Ireneu acerca da trindade,
contrapomos uma passagem de Celso, em que o mesmo fala sobre as noções de Platão:
E sobre sua crença em uma trindade de deuses; não é essa doutrina central
deles uma grosseira interpretação errada de certas coisas que Platão diz em
suas cartas? “Todas as coisas”, escreve o filósofo, “estão centradas no Rei de
Tudo; e o Tudo é por causa dele, e ele é a causa de tudo que é bom. As coisas
secundárias estão centradas no Segundo, e as terciárias estão centradas no
Terceiro.” [...] É devido a esses Cristãos terem completamente
incompreendido as palavras de Platão que eles ostentam Deus como acima
80

dos céus e colocam-no mais alto que os céus em que os Judeus acreditam. Mas
nenhum poeta terreno, e com verdade nenhum Cristão, descreveu ou entoou
as regiões do céu como convém a eles: ser último, Platão chama-o “sem cor,
sem forma, intocável, e visível apenas à mente que guia a alma em sua jornada
pelo verdadeiro conhecimento que habita essa esfera.” (CELSO, Discurso
Verdadeiro, VII, 108–114; 118–126).
Além de Ireneu, temos também Justino Mártir que ressalta a mesma ideia, no mesmo
século. Como escreve Justino (Primeira Apologia, LX), Platão interpretou mal o que Moisés
escreveu sobre a ida dos israelitas ao Egito que, quando os mesmos estavam na selva,
encontraram bestas e cobras venenosas, e que, na iminência do perigo, Moisés pegou um pedaço
de bronze e moldou-o no formato de uma cruz, colocando a figura dentro de um santo
tabernáculo – um santuário portátil carregado pelos hebreus, que portava a arca da aliança e
outros objetos sagrados –, dizendo para aqueles próximos de si: “Se olharem para essa figura,
e acreditarem, vocês serão salvos.” e, assim, as serpentes morreram e aquele povo escapou da
morte. Platão então entenderia tal passagem não como a cruz em si, mas como um formato
entrecruzado, de onde vem que o poder próximo do Demiurgo foi colocado em formato de cruz
pelo universo; e é assim, similarmente, que a alma se põe no corpo. Nossa discussão sobre as
afirmações de Clemente de Alexandria que os gregos plagiaram-se a si mesmos é objeto,
antecipadamente, de Justino Mártir, que não pensava em termos de um judaísmo e um
helenismo divididos, mas que possuíam um lugar comum a partir da revelação original de
Moisés. O judaísmo e o helenismo desenrolam-se em direções distintas, tendo o judaísmo
declinado em um legalismo e na superstição, e o helenismo em um espaço de competição entre
diversos cultos e filosofias; mas o cristianismo adentra esse contexto para restaurar a revelação
original, renovada e aperfeiçoada por meio de Cristo, oferecendo assim aos judeus e gregos um
ensinamento puro e único (PRICE, 1988, p. 18). Há, portanto, Justino e Ireneu que valorizam a
noção de trindade e da simbolização da mesma em uma cruz. Sobre o simbolismo da cruz, Celso
relata que:
Eu suspeito que se ele (Jesus) tivesse sido jogado de um penhasco ou
empurrado em uma cova ou estrangulado – ou fosse ao contrário de um
carpinteiro um sapateiro, pedreiro, ou ferreiro, nós encontraríamos eles
contando fábulas de um penhasco da vida nos céus, ou uma cova da
ressurreição, ou uma corda da imortalidade, ou uma pedra sagrada, ou a
fundição do amor, ou a pele de couro sagrada (CELSO, Discurso Verdadeiro,
VII, 207–213).
Considerando a assertiva de Celso, verificamos que sobre o mito de Jesus, sua profissão
de carpinteiro e sua morte em uma cruz podem ser substituídas por quaisquer outras histórias
similares, desde que mudemos pequenas partes da fábula. Dificultada é a posição da Igreja,
nesse período dos primeiros três séculos, que vê-se em uma posição em que precisa lutar em
81

uma batalha de duas frentes: contra aqueles que diziam serem parte de sua religião, mas, eram
julgados como deturpadores da sua verdade e contra os ditos pagãos, que julgavam-na como
uma crença mal posicionada com seus princípios, exalando irracionalidade e sem bases para
sustentar a ideia de um deus único. Verificamos que Celso (Discurso Verdadeiro, VI, 186–
202), ciente dessa instabilidade da crença cristã, trata de se aproveitar de tal situação para
fundamentar uma teoria sobre a verdade: como podem eles pregarem a verdade única, se não
conseguem entrar em acordo entre si? Elenca, portanto, que enquanto uns dizem que seu deus
é o mesmo dos judeus, outros dizem que é um outro deus superior ao criador e oposto à ele.
Citando algumas seitas – simonianos, provenientes de Simão; Helenianos de Helena; seita de
Marcelina; seita dos harpocratianos, que traçam suas raízes desde o tempo de Salomão; e os
marcionitas, que seguem Marcião –, demonstra que “todos eles andam em uma névoa” (VI,
203), ou seja, distantes da verdadeira razão.
Em relação ao debate sobre o tempo – outra noção fundamental –, no sentido
cronosófico96, como demonstramos anteriormente em Celso (Discurso Verdadeiro, V, 203–
210), sua concepção de tempo é cíclica; essa compreensão pode ser alicerçada em outra
passagem de sua obra:
Eles postulam, por exemplo, que seu messias retornará como um conquistador
nas nuvens, e que ele ateará fogo sobre a Terra em sua batalha com os
príncipes do ar, e que o mundo inteiro, com a exceção dos cristãos crentes,
será consumido pelo fogo. Uma ideia interessante – e dificilmente original. A
ideia veio dos gregos e de outros – a saber, que após ciclos de anos e devido
às conjunções fortuitas de certas estrelas existem conflagrações e enchentes,
e que após a última enchente, no tempo de Deucalião, o ciclo demanda uma
conflagração em conformidade à sucessão alternante do universo. Isso é
responsável pela opinião tola de alguns cristãos de que Deus descerá e ateará
fogo sobre a Terra (CELSO, Discurso Verdadeiro, V, 39–52).
Confirma-se a ancestralidade da ideia, levantada por Celso, por meio de Platão, em
Timeu:
...muitas foram as destruições que a humanidade sofreu e muitas mais haverá;
as maiores pelo fogo e pela água, mas também outras menores por outras
causas incontáveis. [...] a verdade é que os corpos que no céu giram à volta da
Terra sofrem uma variação e, de muito em muito tempo, sobrevém a
destruição na Terra por causa do excesso de fogo. Nessa altura, aqueles que
vivem nas montanhas e em locais elevados e secos morrem em maior número
[...] sempre que os deuses provocam um dilúvio para purificar a Terra com
água, são os boieiros e os pastores que ficam a salvo nas montanhas, enquanto
que os que entre vós vivem nas cidades são arrastados para o mar pelos rios.
(PLATÃO, Timeu–Crítias, 22C, 1–4; 22D, 1–6, 9–13).

96
Pensamos aqui cronosofia de acordo com Pomian, significando o ato de fazer do tempo objeto de discurso. Ver:
POMIAN, Krzysztof. Tempo/Temporalidade. In: ENCICLOPÉDIA EINAUDI: vol. 29. Tradução de Maria
Bragança. Lisboa: Casa da Moeda, 1993. p. 107.
82

O dilúvio de Deucalião é exposto na segunda parte do diálogo dessa obra de Platão, na


fala de Crítias (PLATÃO, Timeu-Crítias, 112A, 2–3, como o quarto dilúvio, uma calamidade
enviada por Zeus quando o mesmo decidiu destruir a raça humana, restando apenas Deucalião
e Pirra, sua esposa, por meio de uma arca que haviam construído de antemão, depois que Zeus
avisa-os do que iria fazer. Notamos, da mesma maneira, que um ponto comum na noção do
dilúvio se ressalta: por mais que, para Celso, a interpretação dos cristãos é errônea por pensarem
que o próprio deus descerá e causará caos no mundo, ambos concordam – e, inclusive, Platão
– que os dilúvios possuem sua função de purificação pela água que, conforme Mircea Eliade
(1996, p. 152), servem para desintegrar e eliminar as formas, “lavar os pecados”,
transformando-se em uma atribuição periódica de regeneração. Tanto nessas grandes
inundações quanto no simples ato de batismo de uma pessoa, isso pode ser percebido como
uma tentativa de sacralização.
Ainda nessa exposição sobre o tempo, nota-se que a percepção do mundo como algo
eterno também se faz evidente. A noção das conflagrações é utilizada, também, pelos estoicos
(SIMMONS, 2002, p. 846). Em oposição a esses ciclos, Adone Agnolin (2008, p. 32) exprime
que, para o cristianismo, toda a história anterior ao seu advento é interpretada como uma
preparação providencial da encarnação do Cristo, para trazer a salvação; conseguinte, toda a
história da humanidade se relega à fé universal em Jesus Cristo. Dessa forma, o cristianismo se
encaixa em uma noção linear de tempo e, também, se faz como uma religião que só é possível
de realizar-se na história. O cristianismo inova, dessa maneira, a experiência e o conceito de
tempo litúrgico ao afirmar a historicidade da pessoa do Cristo (ELIADE, 2010, p. 66). Além
disso, o cristianismo, teoricamente, propõe-se a findar a história mediante o apocalipse. Em
oposição a isso, temos o mundus romano que, consoante com Eliade (2010, p. 39, 46), era a
imagem do Cosmos no próprio hábitat humano. O simbolismo do Centro do Mundo 97, é, na
maior parte dos casos, uma forma de entender esse comportamento religioso em relação ao
“espaço em que se vive”. A necessidade de se viver nesse Centro, até na própria residência –
no nosso caso, do cidadão romano –, demonstra que o homem religioso busca por essa
existência em um mundo total e organizado, dentro de um Cosmos (ELIADE, 2010, p. 43). A
cidade de Roma situava-se no meio do orbis terrarum, e sua instalação naquele território
simbolizava a fundação de um mundo em sintonia com o Cosmos. Agnolin (2013, p. 99)
ressalta, além disso, que a ideia de Cosmos e res publica coincidiam com perfeição: não há

97
De acordo com Eliade (1996, p. 72), em sua obra Imagens e Símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-
religioso, um “Centro” representa um ponto ideal, que não pertence a um espaço geométrico, profano, mas, a um
espaço sagrado, no qual pode-se realizar a comunicação com o Céu ou o Inferno; em outras palavras, o Centro é
aquele lugar paradoxal que representa a ruptura dos níveis, o ponto em que o mundo sensível pode ser ultrapassado.
83

diferença entre ambos. A verdadeira dissemelhança era entre o romano e seu oposto, o não
romano, e tal disparidade produzia-se internamente e externamente às muralhas. A verdadeira
diferença se produz esse cósmico e o caótico. Notamos, portanto, o que significava uma religião
que pregava o fim da ordem e da existência da res publica, ilustrada em uma oposição entre o
mos maiorum que valorizava os tempos ancestrais e a tradição, e o cristianismo, com a projeção
no futuro e no Caos iminente. Os ciclos que se propagam na linearidade – noção romana – se
opõem, dessa maneira, às concepções de começo, meio e fim cristãs.
É necessário perceber, por isso, que o fator mais utilizado pelos cristãos para discursar
sobre o tempo era a profecia: como aponta Reinhart Koselleck (2006, p. 316), a profecia é algo
que pode sempre ser renovada. O erro manifestado pela mesma, por meio da não realização,
passa a ser uma prova de que a profecia – no caso, apocalíptica – haverá de ocorrer da próxima
vez em que um fim iminente for proposto. Essa estrutura repetitiva da expectativa apocalíptica
garante que quaisquer experiências contrárias ao previsto possam ser imunizadas, pois, atestam
de maneira retrospectiva àquilo que primeiramente afirmavam. Tratam, isto posto, de
expectativas que não podem ser desfeitas por nenhuma experiência que oponham-nas,
porquanto se estendem para além do mundo terreno e fogem do poder de intervenção humana.
Ressaltamos que essa é, dessarte, uma das principais características que fez o cristianismo
manter – e aumentar com o decorrer dos séculos – seu número de fiéis; a observância da fé em
um deus único que era milagroso, a promessa do maior dos prêmios ao fim dos tempos – estar
ao lado de Deus em um paraíso de felicidade eterna – e a certeza de justiça que faria jus a todo
o sofrimento que os cristãos passaram garantiria que, independentemente da densidade e da
intensidade das perseguições, das adjetivações de superstitio, dos martírios e das humilhações
públicas, o cristão que não pecasse ou, ao menos, se arrependesse, poderia relegar a segundo
plano todos os reveses terrenos que o acometessem. O deus vingativo que Celso aponta é,
consequentemente, o mesmo deus dos judeus para aqueles cristãos católicos; a diferença se
produz, entretanto, na escala de sua vingança que, se antes era um acúmulo de um povo só,
passará a ser uma vingança universal contra todas as manifestações da injustiça dos pagãos ante
aqueles que se chamavam cristãos, que decidiram seguir seu filho, Jesus Cristo. Como retrata
Max Weber (2009, p. 337), em nenhuma religiosidade existe um deus universal com a sede de
vingança de Jeová; o valor histórico da descrição de todos os fatos antecedentes à atualidade
cristã, que baseiam-se em uma religiosidade da retribuição divina, ainda mantém as práticas,
tanto dos judeus quanto daquelas novas seitas cristãs, de uma esperança da retribuição.
Outro tópico relacionado às noções fundamentais que, aparentemente, é o que mais leva
a leituras sobre o conservadorismo de Celso – que estão contidas em trabalhos citados por nós
84

no primeiro capítulo desta monografia –, são seus dizeres sobre as diferenças de se pensar o
ritual. Em uma passagem do autor, lemos:
...deste modo não há nada de errado se cada pátria observa suas próprias
formas de culto, e na verdade nós entendemos que a diferença entre as nações
é bastante considerável, embora (naturalmente) cada uma pense sua maneira
de fazer as coisas de longe a melhor. A saber: os Egípcios que vivem em
Meroé cultuam apenas Zeus e Dionísio. Os Árabes cultuam apenas Urânia e
Dionísio. Os Egípcios todos cultuam Osíris e Isis; o povo de Saís, Atenas [...]
e assim como o resto de nós de acordo com nossas respectivas leis (CELSO,
Discurso Verdadeiro, VI, 91–100).
Como escreve Paul Hartog (2010, p. 57), o Discurso Verdadeiro revela que Celso era
um conservador tradicional que acreditava que “religião” era inextricavelmente ligada aos
costumes de um povo, e que por trás de todos esses costumes pairava uma doutrina anciã que
existia desde o começo, a doutrina verdadeira. Celso (Discurso Verdadeiro, II, 58–62) aponta
em outra parte de sua obra que excluir os outros nomes do deus maior demonstra a ignorância
cristã. Não importa, logo, se usa-se nomes gregos, ou indianos, ou os utilizados anteriormente
pelos egípcios. Com a sua concepção de uma única doutrina verdadeira, Celso demonstra que
aquele que dá origem a ela, o Demiurgo, é único e manifestou-se para todos os povos que o
chamam de diversos nomes; os cristãos, assim sendo, são tolos em relegarem os outros nomes
a demônios ou a segundo plano. Fazendo isso, eles mesmos cometem um erro contra seu deus,
por não compreenderem-no nas diversas culturas que se manifestam no plano terreno. É como
salienta Jan Assmann (2010, p. 34): o real significado dessa ideia cristã primitiva não era a de
haver apenas um deus e nenhum outro; ao contrário, que ao lado desse deus verdadeiro, há
apenas falsos deuses, os quais tornam-se estritamente proibidos de serem adorados. São duas
coisas diferentes entender, assim, que afirmar a existência de um só deus grandioso pode ser
compatível com aceitar outros deuses, e até adorá-los, desde que a relação entre deus e deuses
seja compreendida como uma de subordinação, e não exclusão; exclusão, deste modo,
transforma-se no ponto decisivo. Para um filósofo como Celso, compreender o Demiurgo como
deus súpero não eliminava o papel dos seus subordinados. Retornando às suas assertivas,
percebemos que ele compreende que nada previne os cristãos de participarem de festivais
públicos, para demonstrarem sua devoção às relações sociais e sinalizarem sua fidelidade ao
Império. Se, como os mesmos dizem, os ídolos não são nada, então não há motivo que os impeça
de atenderem aos festivais públicos. Por outro lado, se esses ídolos realmente existem, mesmo
que como demônios, eles devem pertencer ao deus cristão, pois, ele criou tudo que existe; sendo
assim, apesar de ocuparem essa posição demonizada e inferior, o dever de um cristão é
85

“...acreditar neles, sacrificar a eles, e rezar a eles pelo bem comum do povo.” (Discurso
Verdadeiro, X, 82–93).
Essa discussão sobre ritos influencia outra, interligada a essa: sobre os costumes. Celso,
nesse assunto, evidencia que:
...não há nada de errado com um povo antiquíssimo como os Judeus manterem
suas leis; a culpa está mais com aqueles que abandonaram suas próprias
tradições a fim de professar aquela dos Judeus – aqueles que agem como se
tivessem obtido uma revelação profunda que autoriza-os a virar as costas para
seus amigos e conterrâneos sob pretexto de que encontraram um nível maior
de piedade e ouviram que sua doutrina dos céus não é original por meio deles,
mas (apenas como exemplo), foi mantida há muito pelos Persas (CELSO,
Discurso Verdadeiro, VI, 128–136).
A quebra de tradições, por conseguinte, não é algo relegado somente aos cristãos: afeta
todos aqueles que rompem seus laços. Fundamental para a manutenção do costume é a repetição
do rito, que procura sempre ser igual a si mesmo, transformando-se numa perspectiva de
realidade que seja imutável; associa-se, desse modo, ao mito, que é contado de pessoa para
pessoa – ou no caso das religiões do livro como o judaísmo, cristianismo e islamismo, se
mantém escritos para que qualquer um que compreenda a língua possa ler, mas não
necessariamente, entender –, sendo responsável por fixar e consolidar uma realidade
pretendida, geralmente de um tempo passado (AGNOLIN, 2013, p. 147). O rito e o mito
encenam o sagrado que, de acordo com Eliade (2010, p. 31–32), é o real por excelência, sendo
simultaneamente poder, fonte de vida, eficiência e fecundidade. O homem religioso possui,
portanto, desejo de viver “no sagrado”, equivalendo a um desejo de estar em uma realidade
objetiva, de não se deixar ser paralisado pela relatividade sem fim de experiências puramente
subjetivas, profanas; busca, logo, viver em um mundo real e eficiente, não em uma ilusão. Para
os romanos, e aparentemente para a maioria dos filósofos que destoavam-se da forma de se
pensar e racionalizar o Cosmos, a miscigenação de latinos, sabinos, etruscos, dentre outros, não
permitiu um tipo de homogeneidade religiosa; apesar da língua comum tornar-se o latim – nos
referimos aqui ao período antes da res publica tomar proporções imperiais, quando então as
línguas grega e latina passam a competir entre si –, a religião era romana e ser um cidadão
romano estabelece a condição para praticá-la. Essa religiosidade, consequentemente, era a
marca da identidade (SCARPI, 2004, p. 139–140).
Assim, dentre todos esses elementos, a ancestralidade de uma tradição e suas práticas
ritualísticas amplia o respeito aos seus costumes e, no Império Romano, mantém-na tolerável e
admissível. Mais do que isso, como indica Jan Assmann (2010, p. 105), essas culturas rituais,
ou cultos religiosos, tipicamente operam na assunção que o universo sofreria, ou até se findaria,
86

se os ritos cessassem de serem observados na maneira prescrita. Rituais sempre serviram para
manter essa ordem do Cosmos, constantemente ameaçada de colapso. A prática de pax deorum
evidencia-se nesse caso, pois ratificava as contratualidades do Império ante os povos vizinhos
e subordinados, em questões relacionadas ao comércio, cultura, política, dentre outros. A
religião funcionava como um intermédio de comunicação, não de eliminação e exclusão. O
princípio da “tradutibilidade”98 de nomes divinos ajudava a superar o etnocentrismo primitivo
dessas religiões, para estabelecer relações entre culturas, e manter as mesmas transparentes
entre si (ASSMANN, 2010, p. 19). Verificamos que a dissidência do cristianismo transfigura-
se em perigosa por duas razões: romper com sua tradição milenar, o judaísmo, e criticar um
sistema que, aparentemente, era um dos pilares que sustentavam o Império Romano. Assmann
(2010, p. 29–30) além disso salienta que essa concepção de idolatria desmantela-se com esse
exclusivismo monoteísta, que não mais contenta-se em idolatrar a Deus apenas, mas, começa a
progressivamente negar que os deuses de antes sequer existem.
A partir de Tertuliano, aos fins do séc. II d.C., o termo religião enquanto ligado ao
cristianismo aparece, sendo utilizado em sua Apologia com objetivo de individuar, definir e
afirmar a identidade da vera religio, ou seja, o cristianismo, transformando assim o sentido
desse termo que possuía outro significado na tradição latina (AGNOLIN, 2013, p. 225).
Observamo-lo, por exemplo, na seguinte passagem de sua obra:
E desde que essas coisas assim são, como demonstramos, é evidente que
nenhuma outra esperança de vida prostra-se perante o homem, exceto que,
colocando de lado vaidades e lamentáveis erros, ele deve conhecer a Deus, e
servir a Deus; a não ser que ele renuncie a sua vida temporária, e treine-se
pelos princípios da retidão para o cultivo da verdadeira religião
(TERTULIANO, Apologia, IV, XXVIII, 1–2, grifo nosso).
O conceito de religião é, à vista disso, uma invenção cultural cristã, metamorfoseando-
se em uma ferramenta utilizada pelos missionários e evangelizadores para propagar suas
categorias religiosas (AGNOLIN, 2013, p. 159). Como descreve George van Kooten (2010, p.
9), isso é o que cada vez mais causou um problema para o cristianismo, pois ele ativamente
engajou-se em criticar costumes religiosos centrais, tanto judeus quanto pagãos. Quanto mais o
cristianismo distinguiu-se do judaísmo, mais ficou vulnerável como uma nova associação que
não respeitava as tradições religiosas existentes. O valor competitivo desse cristianismo
primitivo ante as outras religiões foram seu monoteísmo radical, seus ritos sem sacrifícios, seu
universalismo e concomitantemente um criticismo de religiões localizadas, que se produz pelo

98
Traduzimos assim o termo em inglês de Jan Assmann (2010, p. 19), “translatability”.
87

desenvolvimento da religião étnica que propicia seu nascimento, o judaísmo (KOOTEN, 2010,
p. 24). Como ressalta Celso:
Viremos nossa atenção ao invés aos renegados do Judaísmo, os Cristãos,
aqueles conduzidos pela feitiçaria de Moisés e seduzidos por seu deus, Jesus.
[...] Tal é a extensão de seu mal e de sua ignorância. Cristãos, é desnecessário
dizer, detestam uns aos outros completamente; eles difamam-se entre si
constantemente com as formas mais vis de abuso, e não conseguem chegar a
qualquer tipo de acordo em seus ensinamentos. Cada seita rotula seus
adeptos, enche suas cabeças de bobagens enganosas, e faz perfeitos
porquinhos daqueles que ganha para sua causa (CELSO, Discurso
Verdadeiro, VI, 159–161; 203–209, grifo nosso).
Para Celso, em vista dessa passagem e de todo o exposto anteriormente, o cristianismo
carecia de constância e consenso entre os seguidores de Cristo. Não pode haver, portanto, a
segurança da ordem que a tradição mantinha, já que cada seita decidia-se por seguir um caminho
diferente e pregar uma verdade discrepante. Consequentemente, não há, para o autor, algo que
os cristãos pudessem chamar de uma vera religio.

3.1.1. As apropriações cristãs da Doutrina Verdadeira: a fundamentação do


debate de Celso na perspectiva filosófica

Apesar do tópico anterior tratar de aproximações e dissensões, consequentemente


demonstrando algumas apropriações, a noção máxima de apropriação a partir de Celso vem da
doutrina verdadeira. Como lemos em um excerto de seu manuscrito:
Qualquer um sabe que há tal coisa como uma doutrina verdadeira. Isso
deveria ser óbvio a qualquer um que comprometa-se a escrever sobre tais
coisas. Tudo que é, tudo que existe, possui três coisas que tornam o
conhecimento de si possível. O conhecimento do algo em si é geralmente
considerado como um quarto atributo. O quinto atributo é o que é conhecível
e verdadeiro. Colocando na linguagem de Platão: o primeiro é o nome; o
segundo, a palavra; o terceiro, a imagem; o quarto, conhecimento (CELSO,
Discurso Verdadeiro, VII, 25–33, grifo nosso).
A diferença entre Platão e os escritores cristãos, de acordo com Celso, é que ele não
proclamou tais conhecimentos como originários de si, nem que ele desceu dos céus para trazer
essa nova doutrina. Se uma teoria ou mito é similar àquelas pertencentes a outras religiões e
filosofias, como pode a mesma erigir-se como a única válida? Contrário ao que afirmavam os
cristãos sobre seu exclusivismo, o cristianismo não era mais do que outra religião (HARGIS,
1999, p. 42). Celso (Discurso Verdadeiro, VIII, 35–46), novamente citando Platão, relata que
o mesmo ensina que o Bem, que contrapõe-se ao Mal, não nos é alcançável em um primeiro
momento, pois encontra-se obscurecido; quando o mesmo sai da escuridão e passa a habitar a
88

luz, nossa percepção desse Bem ainda é dificultada pela própria fraca capacidade de contemplá-
lo. Porém, para os cristãos, esse Bem, que é parte de Deus, torna-se atingível a partir do
momento em que Deus lança o seu espírito em um corpo humano (Jesus), para que todos os
humanos, independente de terem algum nível de conhecimento filosófico ou não, possam ouvir
e aprender o que ele tem a ensinar. Essa ideia, como observamos, contraria toda a exposição de
Celso de que apenas aqueles que esforçam-se a alcançar um alto nível de sabedoria são dados
ao privilégio de superar a condição material. Tal verdade, que cada cultura e sociedade
compreendem de uma forma, mas, que é a mesma, como Celso coloca previamente, é
corrompida pelos cristãos:
Alguns poucos proclamam saber mais do que os Judeus. Que assim seja:
assumamos que mesmo que eles não possuam autoridade alguma por sua
doutrina seu ensinamento suporte ser averiguado – e deixe-nos examiná-lo.
Falemos sobre sua sistemática corrupção da verdade, sua equivocada
compreensão de princípios filosóficos relativamente simples – os quais é claro
eles estragam completamente (CELSO, Discurso Verdadeiro, VI, 214–220,
grifo nosso).
É importante demarcar que, por mais que Celso utilize majoritariamente de citações de
Platão para fundamentar seu discurso, ele reconhece que a ideia não é apenas platônica; em
exemplo, dissertando sobre a prática de cura por intermédio da invocação de demônios no Egito,
Celso (Discurso Verdadeiro, X, 280–303) descreve alguns nomes desses demônios, que
totalizam trinta e seis. Os egípcios, relata, reconhecem que cada parte do corpo corresponde a
um demônio; se necessário utilizar-se de práticas de cura para uma parte específica, o demônio
dessa parte precisa ser invocado. Diferentemente, os cristãos, por exemplo, utilizam apenas o
nome de Jesus para todas as práticas; o autor proclama que não está fazendo um juízo pejorativo
da invocação demoníaca em seu todo, mas, que meramente está expondo que similarmente aos
egípcios que invocam trinta e seis nomes diferentes, os cristãos escolhem por memorizar apenas
um. Sua exposição sobre esse assunto termina, dessa maneira, com um aviso de que “É preciso
ter cuidado ao acreditar em tais coisas para que não se torne absorto na cura, e caia nas
superstições associadas às práticas mágicas, e assim desviando-se das coisas maiores, os objetos
apropriados da reflexão” (CELSO, Discurso Verdadeiro, X, 299–303).
Independentemente que sejam adorações a demônios que necessitam de oferendas de
sangue, é correto reconhece-los formalmente quando a razão assim determina. Deve-se
compreender, de acordo com Celso (Discurso Verdadeiro, X, 309–322), que demônios podem
sim serem satisfeitos com símbolos de agradecimento, mas, que o que deve realmente ocupar a
mente das pessoas, dia e noite, é o Bem: em público ou privadamente, em cada palavra e ato e
no silêncio da reflexão, o ser humano deve dirigir-se para a contemplação do Bem. Enquanto o
89

Demiurgo for o sujeito que está em evidencia no ato de pensar, as pequenas devoções que são
feitas em relação aos poderes desse mundo – ou seja, os demônios, os Príncipes e os
Governantes – não tornam-se atos horríveis.
Contrário à toda essa doutrina verdadeira que Celso narrava, que unia civilizações por
meio de uma manutenção de costumes milenares, da observância pública dos ritos, o
cristianismo oferece uma outra doutrina verdadeira: em conformidade com Max Weber (2009,
p. 394), verifica-se que esse cristianismo primitivo, em geral, não parte de interesses político-
sociais, nem, muito menos, de instintos de uma parte pobre da sociedade. Ao contrário, vem de
uma eliminação total desses interesses, que faz surgir a força da “religião de amor” cristã, que,
em um primeiro momento, é apolítica; isso faz crescer todas as doutrinas que, independente de
virem do lado católico ou gnóstico, prezavam pela salvação do humano, seja por intermédio de
congregações representadas por um bispo – católica – ou pela salvação individual pela gnosis
– gnóstica. Weber (2009, p. 417) além disso demonstra que, pelo lado católico, há um traço
anti-intelectualista99, que começa a condenar a sabedoria helênica, bem como a rabínica – que
é judia –, e esse torna-se o único atributo altamente específico da doutrina, que, nos aspectos
remanescentes, não era nenhuma novidade para “todo mundo e todos os fracos”.

3.2. O choque doutrinário e as mudanças na educação do Império Romano

Marrou (1973, p. 103), ao dissertar sobre os mestres da tradição clássica, discorre que
após a geração dos grandes sofistas e de Sócrates, um período fecundo mas tumultuoso, sucede
outra época, aquela que marcaria e conduziria a educação antiga à sua maturidade e a uma
forma definitiva que perdurou por vários séculos, transmigrando entre diversas regiões e
culturas. Com Isócrates (ca. 436 – ca. 338 a.C.)100 e Platão, surge a ação de delinear, de maneira
definitiva e nítida, no pensamento próprio desses filósofos e na consciência antiga, os quadros
gerais da cultura grega; indiretamente surge, dessa forma, os próprios âmbitos que precisariam

99
Claro que, nesses primeiros dois séculos nos quais a Igreja Católica ainda não possuía autoridade alguma para
falar de um cristianismo verdadeiro, as ideias helenizadas, pensadas por cristãos intelectuais, ainda circulavam
abertamente, podendo os mesmos teorizarem sobre o Antigo Testamento e os vários evangelhos com a ajuda de
cânones gregos e romanos.
100
Escritor ateniense de discursos e panfletos. Aprendeu sobre tutela de vários nomes importantes, dentre eles o
sofista Górgias. Vivendo às custas de seu pai que era rico, mas, que vai à falência devido à guerra do Peloponeso,
passa a utilizar de sua retórica para iniciar uma carreira de comentador e escritor. Insatisfeito com essa fase de sua
vida, funda por volta de 390 a.C. uma escola de retórica em Atenas. Publica uma obra importante nessa época,
denominada Contra os Sofistas, destinada a combater os exercícios de aprendizado dos mesmos que só almejavam
o âmbito político. Contribuiu significantemente para a educação grega, ultrapassando as barreiras da retórica ao
alcançar um espaço prático para seus ensinamentos. Ver: HAZEL, John. Who’s who in the Greek World. London
& New York: Routledge, 2002. p. 135–137.
90

a educação helenística. Deve-se registrar também que, por mais que esses parâmetros
estivessem definidos, a educação clássica adotou duas formas antagônicas: uma de tipo
filosófico, e a outra de tipo oratório, das quais Platão e Isócrates foram os inauguradores,
respectivamente.
Nossa análise tendendo à parte platônica, que circunscreve boa parte do apelo de Celso,
faz com que o ideal de sabedoria prevaleça, mais do que o de eficiência prática. O aspecto moral
da educação, além da formação pessoal e da vida interior, eram características marcantes da
herança socrática que é divulgada por Platão; deixando pouco a pouco essa órbita do ideal
político, estes educadores fazem da cultura pessoal, dessa expansão do “Eu”, o fim de todo o
esforço humano: a partir deles penetramos a ética da Paidéia, que buscava proporcionar um
cidadão completo em todos os campos do corpo e da alma, traço esse marcante da civilização
helenística (MARROU, 1973, p. 105).
Conforme Marrou (1973, p. 119), tais ensinamentos de Platão, observa-se, criticavam
tenazmente a expressão poética das divindades e dos heróis, pois, os mesmos passavam ideias
errôneas e deturpadas dos mitos. Contrariando a Verdade, que cinge o pensamento de Platão,
essas poesias desviavam o espírito de seu fim, ou seja, a conquista da ciência racional. Opondo
filosofia à poesia, Platão coloca em pauta um embate: deve a educação permanecer artística e
poética ou deve tornar-se científica? Tal problema não seria resolvido, dividindo-se a partir
desse momento reivindicações contrastantes das “letras” às “ciências”. Platão, dessa maneira,
vê o ensino como o meio para formar um homem ideal, mesmo que o grupo dos mesmos fosse
pequeno, um destaque em meio a uma sociedade corrompida. A aspiração do sábio é passar a
vida a ocupar-se de si mesmo. O pensamento platônico, de início, desejava restaurar a ética da
cidade antiga, mas, acaba por transcender a esse ideal e embasar aquilo que seria,
posteriormente, a cultura pessoal do filósofo clássico (MARROU, 1973, p. 129).
Essa cultura helênica, com o tempo, influenciou os – e foi influenciada por –
macedônicos, quando os mesmos conquistaram os gregos, e, posteriormente, os romanos, que
fizeram o mesmo. Sendo de nosso interesse o Império Romano, após a mescla dessas culturas,
percebe-se que em um primeiro momento a oposição entre gregos e romanos baseia-se, antes
de tudo, no contraste entre dois estágios de desenvolvimento: o que se chama naturalmente de
virtus romana não é senão aquela moral dos antepassados, à qual permaneciam fiéis os romanos
da República, discrepando-se do desenvolvimento já avançado das ciências e artes gregas, pela
ética personalista da Paidéia (MARROU, 1973, p. 357); se dá a comparação então entre: do
lado grego Homero, como base para educação e, do romano, a imitação dos ancestres
(MARROU, 1973, p. 368). Essas discrepâncias vão se esvaindo com o passar dos séculos até
91

que, como denota Marrou (1973, p. 377), há uma insistência por parte de historiadores, e com
certa razão, de que houveram profundas transformações nesta “invasão” do helenismo em
Roma, influenciando os domínios da cultura do espírito e, consequentemente, da educação.
Devemos ressaltar, entretanto, que o Império Romano não obteve unificação linguística
correspondente a esse duplo movimento de consolidação política e cultural até cerca do IV séc.
d.C., consistindo assim um espaço bifurcado de influências (MARROU, 1973, p. 396).
Desde o período de Fílon de Alexandria até a virada do séc. II para o III d.C., os filósofos
no Império passavam por experiências de tentar diversas doutrinas simultaneamente, desde que
alguma delas predominasse no pensamento do mesmo; o ecletismo possibilita, por exemplo, a
Celso ser platônico e ao mesmo tempo tirar proveito de poesias de Homero e Hesíodo para
exemplificar suas exposições, como percebemos em boa parte de sua obra101, algo que séculos
antes seria inaceitável de acordo com os preceitos de Platão; entretanto, independentemente
desse cenário que parece passar uma imagem de desprendimento que uma certa tendência
oferecia, a noção da doutrina verdadeira que permeava as civilizações e as ideias unia
circunstâncias que aparentavam serem diferentes. Como ressalta Celso:
Muitas das nações do mundo mantêm doutrinas similares àquela dos Cristãos.
Isso leva alguns pensadores a concluir que há uma fonte original para as várias
opiniões que parecem ser a “verdadeira” doutrina [religiosa]. [...] por trás
dessas ideias, [...] há uma doutrina anciã que existe desde o começo – uma
doutrina, assim é dito, mantida pelos homens mais sábios de todas as nações
e cidades (CELSO, Discurso Verdadeiro, II, 1–5; 12–15).
Podemos considerar a partir de Celso que independentemente de qual civilização possua
certas doutrinas e seus costumes, todas dispõem de semelhanças que invariavelmente confluirão
para um ponto comum, a doutrina verdadeira; ela é a responsável por manter as equivalências
entre os mitos, deuses que são análogos sob nomes diferentes, ritos, ideias e doutrinas que
possuem similaridades inegáveis. Oposto a isso, segundo Marrou (1973, p. 482), eram os
primeiros cristãos, desejosos de romperem com esse mundo pagão que para eles aparentava
possuir inúmeros erros, consequentemente criando para si uma forma de escola de inspiração
religiosa, distinta e rival desse modelo clássico que iniciara na Hélade; porém, mais notável
ainda, foi o fato dos mesmos reclamarem a posse daquele conhecimento nesse primeiro
momento, ao invés de condená-lo. Constatamos, isto posto, que além dos cristãos primitivos
desaprovarem aquela cultura pagã, afirmavam que as ideias desses pagãos eram provenientes
de um antepassado judaico-cristão; e tal foi o efeito disso que, como evidencia Celso (Discurso

101
Celso (Discurso Verdadeiro, IX, 130–132), por exemplo, cita Homero: “Como Homero diz, “Os deuses o
levarão aos campos Elísios nos confins da Terra, e lá a vida será fácil.”
92

Verdadeiro, I, 35–36), “Mais e mais os mitos colocados por esses Cristãos são mais conhecidos
do que as doutrinas dos filósofos.”
Sobre a relevância e difusão desses cristãos que aparentemente angariavam cada vez
mais adeptos, Keith Hopkins (1998, p. 185) em artigo intitulado “Número Cristão e Suas
Implicações”102 defende uma tese central que, para ele, proporcionalmente haviam poucos
cristãos no Império Romano, ao menos até o fim do séc. II d.C. Como dispõe o autor, uma ideia,
por mais que radical, é a de que o cristianismo em cerca de um século após a morte de Jesus foi
propriedade intelectual de alguns poucos seguidores letrados dispersados pela bacia do
Mediterrâneo. Outra hipótese é a de dois momentos marcantes para o crescimento dessa
religião: primeiramente, durante o séc. III d.C., devido às perseguições que abarcaram boa parte
do Império, e no séc. IV d.C., após a conversão do Imperador Constantino e da aliança da Igreja
com o Império, e dessa forma prosseguindo sucessivamente com outros Imperadores. O
pequeno tamanho dessa Igreja primitiva e a escala de proporção que a mesma adota para seu
crescimento, subsequentemente, resultou em implicações importantíssimas para a organização
dessa religião.
Como exemplos já adentrados nesse trabalho, Hopkins (1998, p. 189–190) supõe que,
ao invés da interpretação que leva a pensar que Plínio em suas cartas no início do séc. II d.C.
falava de vários cristãos sendo julgados em número de centenas, é mais provável que se
tratassem de dezenas. E mesmo que fossem centenas, se tratava de uma situação atípica.
Templos pagãos ainda floresciam e mantinham sua popularidade nos dois séculos seguintes;
Hopkins crê portanto que Plínio descreve os números de forma incerta, ou, que o caso é
anormal.
Contrário aos levantamentos feitos por escritores anteriores que seguem um método
indutivo pelas fontes, como Adolf von Harnack (1906)103, o método de Hopkins é especulativo
e segue uma noção de probabilidade. Por exemplo, o autor diz que por volta de 100 d.C., estima-
se que o número de cristãos espalhados pelo Império era de sete mil. Em torno de 200 d.C.,
respectivamente, esse número altera-se para duzentos mil fiéis, aproximadamente; se
pensarmos em termos proporcionais, mesmo com esse crescimento, isso representa uma fração
diminuta da população total do Império Romano, que chegava a cerca de sessenta milhões de
habitantes. Claro que, ante essa aparente insignificância, um objetor poderia formular que tais
números por si só não retratam necessariamente a importância da religião; entretanto, o número

102
HOPKINS, Keith. Christian Number and Its Implications. Journal of Early Christian Studies, Baltimore, v. 6,
n. 2, p. 185–226, 1998.
103
Em: HARNACK, Adolf von. Mission und Ausbreitung des Christentums in den ersten drei Jahrhunderten.
Leipzig: J. C. Hinrichs’sche, 1906.
93

de membros em um movimento religioso é sim a mensura de sua notabilidade, já que isso


articula-se de forma intrínseca à noção de aderência por meio da pregação (HOPKINS, 1998,
p. 195).
O crescimento exponencial que se dá no cristianismo, logo, reflete uma alta de sete mil
para duzentos mil entre o séc. I e II d.C. e, de forma espantosa, a cerca de seis milhões de
cristãos aos fins do séc. III d.C. (HOPKINS, 1998, p. 198). Considerando essas aproximações
delineadas por Hopkins, que extravasam as indicações de cristãos apenas em cidades citadas
nas fontes, não há razão para crer que por causa das escassas referências que as fontes nos
passam, deva ser assim escasso o grau de difusão do movimento cristão. Também, esses grupos
cristãos encontravam-se, geralmente, em casas particulares; pode-se conjecturar, assim sendo,
que em cidades maiores essas comunidades se disseminavam em diversas casas, onde
praticavam a fé com regularidade, mas, que não necessariamente se sentiam unidos com as
outras congregações da região (HOPKINS, 1998, p. 200).
Esses lugares que acolhiam cristãos para as cerimônias, geralmente, deveriam contar
com pouquíssimas pessoas que sabiam ler e, sem risco de exagerar, Hopkins (1998, p. 212)
presume que para uma proporção de vinte homens que estavam presentes nessas comunidades
– que abarcavam também mulheres e crianças –, dois deles conseguiam, na melhor das
hipóteses, ler; mais raro ainda eram os casos em que haviam homens realmente letrados que
poderiam ser categorizados como pessoas altamente alfabetizadas. O desenvolvimento do cargo
de leitor nessa Igreja primitiva fortalece essa hipótese, devido à necessidade de alguém que
pudesse ler em voz alta para aquela comunidade iletrada (HOPKINS, 1998, p. 211).
Constatamos, a partir disso, que essa autoridade particularizada desse cargo de leitor, que
poderia ser incorporada por um diácono, um padre, um bispo, ou até um alguém que
simplesmente se propusesse a ser o leitor, proporcionou o desenvolvimento do método
alegórico, tão utilizado para interpretar e tão difundido, que acaba sendo também observado por
Celso:
Seus livros são cheios de estórias sobre as traições de mães, Deus aparecendo
na Terra em vários disfarces, irmão assassinando irmão, homens
alegadamente justos tendo relações sexuais com diversas mulheres que não
suas esposas [...] Não é de se admirar que os sensatos entre os cristãos,
envergonhados como deveriam estar por tais estórias, procuram refugiarem-
se nas alegorias! – já que elas são, nada obstante, fábulas muito estúpidas
(CELSO, Discurso Verdadeiro, V, 161–165; 167–180).
Sem necessariamente entrar na questão de um escapismo da realidade por intermédio
da alegoria afirmado por Celso, a maior adversidade que o método alegórico abarca é,
certamente, a vastidão das interpretações. Agostinho de Hipona (Livro I, 3), em sua obra De
94

Haeresibus ad Quodvultdeum, cria uma lista com oitenta e oito seitas cristãs diferentes
presentes nos primeiros séculos, ou seja, um vastíssimo número de grupos, cada um
imaginando-se como aquele que pregava o necessário para ser um “verdadeiro cristão”. Como
evidencia Hopkins (1998, p. 217), o cristianismo primitivo era dogmático e hierárquico:
dogmático, no sentido que os líderes de cada grupo reivindicavam que suas interpretações da
fé cristã era a única e verdadeira; hierárquico na noção em que tais líderes alegavam
legitimidade para a autoridade de sua interpretação a partir de sua função de padre ou bispo;
bispos esses que, praticamente, possuíam alto nível de controle sobre os assuntos que
concerniam suas comunidades. Observamos a atestação em Inácio de Antioquia, que ao enviar
uma epístola a Policarpo de Esmirna no início do séc. II d.C., escreve que:
Se ele começar a se gabar, ele é desfeito; e se ele considera-se maior que o
bispo, ele arruína-se. [...] Dê atenção ao bispo, para que Deus também dê
atenção a você. Minha alma seja daqueles que são obedientes ao bispo, aos
presbíteros, e aos diáconos, e que minha porção esteja com eles em Deus!
(INÁCIO DE ANTIOQUIA, Epístola a Policarpo, V, 4–5; VI, 1–2).
Possuir alfabetização, no mundo antigo, significava ter perante si o poder da
interpretação textual. De acordo com os levantamentos de estimativa que Hopkins produz
(1998, p. 208–209), podemos calcular uma aproximação do número de letrados. Hopkins
considera, por exemplo, que o Império possuía 1% de homens adultos nos cargos de Senadores,
Governantes, Magistrados, dentre outros; ou seja, funções públicas e/ou atreladas a quaisquer
atividades que necessitavam de amplo uso da leitura e da escrita. Além desses, haviam também
aqueles que compunham uma espécie de “sub-elite”104, uma camada um pouco confusa de se
estimar a proporção; mas, o autor arrisca dizer que constituíam mais 2% dessa população total,
sendo que metade deles dispunha de uma fluência literária sofisticada. Unindo essas duas
metades especulativas, Hopkins conclui que, dentre as sessenta milhões de pessoas em território
imperial, aproximadamente quatrocentos mil – com predominância majoritária de homens –
portavam certa sofisticação literária.
Além de tais condições, o que aglomerava mais ainda iliteratos era uma característica
inicial desse cristianismo, ou seja, serem contra excessos de riqueza, poder, luxúria e, ao invés
disso, por exemplo, optarem pela humildade por meio de ofícios artesanais. A presença de uma
pessoa que pudesse ler os evangelhos era, de fato, uma exigência que o cristianismo, por ser
uma das religiões do livro, acaba por criar; dificilmente esse leitor seria advindo de uma camada
pobre dessa sociedade, tornando-se a exceção e o detentor da interpretação. Sobre o exposto
Celso denota que:

104
Termo de Keith Hopkins (1998, p. 209).
95

Até os Cristãos mais inteligentes pregam esses absurdos. Suas injunções são
assim: “Não deixem ninguém educado, ninguém sábio, ninguém sensível
chegar perto. Pois essas habilidades são tidas por nós como males. Mas para
qualquer um ignorante, qualquer pessoa estúpida, qualquer um não educado,
qualquer pessoa infantil, deixe que ele venha audaciosamente.” [...] Além
disso, vemos que esses Cristãos mostram suas malandragens no mercado e
vão ali implorando. Eles não ousariam entrar em uma conversação com
homens inteligentes, ou expressar suas crenças sofisticadas na presença dos
sábios. Em contrapartida, onde houver uma multidão de adolescentes, ou um
bando de escravos, ou uma companhia de tolos, lá estarão também os
professores Cristãos – exibindo sua amável nova filosofia (CELSO, Discurso
Verdadeiro, IV, 126–131; 136–143, grifo nosso).
Esse tipo de deboche da parte de Celso complementa-se, por exemplo, com essa
circunscrição de abarcar pobres, artesãos, mulheres, crianças, e outros, todos em um mesmo
espaço. Tais inícios de religiões que são marcadas por um profeta que aparenta ser livre de
preconceitos, como Jesus, Buda e Pitágoras, acarreta o que Weber (2009, p. 333), tendo como
exemplo, demonstra como uma grande suscetibilidade de mulheres para todo tipo de profecia
religiosa não exclusivamente orientada por ideias militares ou políticas. Entretanto, dificilmente
isto se conserva além daquela primeira etapa dessas religiões, enquanto esses carismas baseados
na inspiração sagrada ainda são apreciados como elevações religiosas específicas. Conseguinte
a esse primeiro movimento, a cotidianização e regulamentação dessas relações congregacionais
destoam-se desses fenômenos inspiracionais, considerados contrários à ordem e mórbidos nas
mulheres. O cristianismo desse primeiro momento acolhia a todos; porém, posteriormente,
constrói-se novamente uma centralização do poder de voz nas mãos de homens, retirando
aquele breve espaço de fala de mulheres como Marcelina, líder da seita que leva seu nome, que
citamos anteriormente por intermédio de Celso. Como peneja no Discurso Verdadeiro (IV,
131–135), o fato dos cristãos admitirem que essas pessoas são dignas de seu Deus mostra que
eles são apenas capazes de convencer os desonrosos, escravos, mulheres e crianças; isto é, todos
aqueles que não possuíam chances de salvação pelas outras doutrinas.
Devemos ressaltar que essa polarização que se produz entre as escolas pagãs e os
ensinamentos cristãos acirravam-se em um traço que observamos em Celso, percebendo que
sua análise criticava essa religião que mais se preocupava com a mediação entre homem e Deus
focando-se no post mortem, do que uma intervenção de propósito cultural e obtenção da reta
razão em vida, com a relação entre homem e Demiurgo. Para Marrou (1973, p. 486), o
cristianismo no mediterrâneo estava em concordância com a escola pagã; ele argumenta que,
de início, esse cristianismo não almeja uma adaptação da vida terrestre. Se toda doutrina
profunda sobre o homem e sua vida pretende, naturalmente, explicitar progressivamente as
consequências práticas implícitas em seus princípios e causar assim uma consequência direta
96

na civilização em questão, esse processo só aparece após séculos de desenvolvimento de suas


bases fundamentais. As primeiras gerações cristãs, por exemplo, edificaram os alicerces
cruciais para a civilização cristã do porvir: concentraram-se em dividir a parte dogmática, a
moral, a disciplina por meio dos cânones e a liturgia. Ainda assim, mesmo que uma religião
seja um tipo de movimento que busque ambições totalitárias, não pode escapar das influências
profundas, conscientes ou não, do meio civilizacional no qual se desenvolve; com o termo de
“osmose cultural”, Marrou (1973, p. 486) realça que o meio de uma civilização é como um
“fluido nutriente que banha os homens e as instituições, mesmo sem seu conhecimento, mesmo
à sua revelia”.
Se considerarmos Celso como tendo sido realmente um habitante de Alexandria, ou
qualquer outra cidade com capacidade de concentração de várias doutrinas, filosofias e escolas,
podemos conjecturar que o mesmo presenciou todos esses conflitos, e foi partícipe deles. Como
articula Hopkins (1998, p. 202), nas grandes cidades de Roma, Alexandria, Antioquia e
Cartago, que destacavam-se por terem populações acima de cem mil habitantes, as comunidades
cristãs eram substanciais; a presença de casas privadas e até espaços que assemelhavam-se a
Igrejas provavelmente possuíam milhares de membros, o bastante para criar a necessidade de
uma hierarquia de profissionais e clérigos, com um programa visível de suporte aos pobres.
Celso (Discurso Verdadeiro, IX, 19–24), por exemplo, que confessa conhecer as regiões da
Fenícia e Palestina muito bem, diz possuir um conhecimento em primeira mão das pessoas que
lá habitam e dos tipos de profecia que ali circulam. Conclama, ainda, que a prática de profetizar
era feita por vários que ali perambulavam; tais pessoas mostravam-se inspiradas, exprimindo
que “Eu sou Deus”, “Sou o Filho de Deus”, ou “Sou o Espírito Santo”, e completavam suas
afirmações dizendo que o mundo estava perto de seu fim (CELSO, Discurso Verdadeiro, IX,
25–49). Ressalta, adiante, que tais dizeres só atingem os tolos e os feiticeiros, pois, o homem
sábio não se dá ao trabalho de sequer descobrir o que aquilo significa. Perfaz seu argumento
afirmando que:
De fato, conversei com numerosos desses profetas após ouvi-los, e questionei-
os cautelosamente. A partir de um interrogatório meticuloso (após ganhar sua
confiança) eles admitiram para mim que não passavam de fraudes, e que eles
planejaram suas palavras para se adequar à audiência e deliberadamente
fizeram-nas obscuras (CELSO, Discurso Verdadeiro, IX, 50–55).
Se ele possui veracidade ao afirmar tais palavras ou não, independentemente, faz-se
manifesta sua tentativa de deslegitimar todas as práticas de profecia das regiões que viajou;
desvalorizando-os, coloca em evidência, ao mesmo tempo, dizeres de Jesus Cristo, denegrindo
97

assim o homem que para os cristãos era modelo de sabedoria e, inclusive, exemplo de como
morrer valorosamente.
As alegações são confusas, já que se faz perceptível uma recusa inicial das doutrinas
que ali permaneciam, para, depois, tirar proveito delas. Tão profunda foi essa imersão que, a
partir do séc. II d.C., como Marrou (1973, p. 497) apresenta, homens como Justino Mártir e
Taciano (ca. 120 – ca. 180 d.C.)105, que mostravam-se ornados com o título de filósofos,
chegando a vestir também os mesmos trajes. Observemos, primeiramente, por exemplo, uma
passagem que atesta o que Marrou descreve, em Justino Mártir:
Enquanto eu ia em uma manhã nas passagens do Xystus106, um certo homem,
com outros acompanhando-o, tendo me abordado, disse, “Olá, ó filósofo!”
[...] E eu no que lhe diz respeito me dirigi a ele, dizendo, “O que há de
importante?” E ele respondeu, “Fui instruído”, diz ele “Por Corinto e
Socrático em Argos, que eu não deveria desprezar ou tratar com indiferença
aqueles que arranjam-se nessa vestimenta mas mostrar a eles toda a
bondade... (JUSTINO MÁRTIR, Diálogo com Trifão, I, 1, 1–7, grifo nosso).
Similarmente temos Taciano (Aos Gregos, XXXII, 4–5; 20–21), que peneja que “Não
apenas os ricos dentre nós buscam nossa filosofia, mas os pobres desfrutam de instrução gratuita
[...] Para aqueles que queiram aprender nossa filosofia, não os testamos pelas aparências...”.
Marrou (1973, p. 498) expõe ainda que esses cristãos eram tão filósofos que receberam
hostilidade, de certa maneira profissional, de filósofos rivais pagãos. Tal tipo de aparência
produzida por esses homens, que implicava um certo tipo de ensino, perdurou até o séc. III d.C.:
chegaram a ter estátuas107 produzidas para representa-los, como a de Hipólito de Roma (ca. 170
– ca. 236 d.C.)108, que mostra-o como um filósofo ensinando, sentado em um trono.
Essa instabilidade dos cristianismos primitivos, que cremos ser parecida em quaisquer
outros movimentos religiosos que surgem em grandes civilizações, foi marcante para as atitudes
cambiantes e paradoxais de muitos dos patrísticos e de fiéis: ora criticando veementemente as
doutrinas anteriores, ora aderindo à elas e se comportando como os mesmos filósofos que
escarniavam, tais características foram constatadas por Celso e, consequentemente, utilizadas

105
Escritor cristão catalogado entre os Apologistas. Primeiramente pagão, após viajar por vários lugares,
encontrou–se com os escritos cristãos e se converteu. Conviveu com Justino Mártir, de quem se considerou e foi
considerado discípulo. Após a morte de Justino, passa a fazer parte de uma seita, denominada encratista, cujos
membros possuíam tradição ascética, que proibia casamentos e aconselhavam a abstinência de carne. Ver:
BOLGIANI, F. Taciano. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 1321–1322.
106
Termo arquitetônico grego que denota um pórtico coberto de um ginásio.
107
Ver anexo I, p. 110.
108
Escritor que viveu a segunda metade do séc. II d.C. e a primeira do séc. III d.C. Foi bispo, de acordo com
Eusébio Pânfilo e Jerônimo de Estridão; escreveu várias obras, dentre elas Sobre a ressurreição, Syntagma contra
todas as heresias, Elenchos, dentre outras. Suas obras são essencialmente comentários a textos sacros e quase
sempre sobre o Antigo Testamento, interpretado por uma exegese tipológica, que o aplica a Cristo e à Igreja. Ver:
NAUTIN, P. Hipólito. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Op. Cit., p. 679–681.
98

para compor seu discurso; o autor notadamente aproveitou-se disso para exibir seus argumentos
e lançar a primeira tentativa sistematizada que possuímos de combater esse movimento
religioso. Estando presente provavelmente em Alexandria que, junto aos outros grandes centros
de escolas filosóficas, eram lugares que “irradiavam” movimentos que futuramente são
tachados como heréticos – como percebemos, a presença e influência dessas outras doutrinas
não poderia ser totalmente ignorada por esses patrísticos que, na maioria das vezes, cresciam
em escolas que ensinavam Platão, os estóicos, dentre outros –, Celso percebe a aparente
hipocrisia desse movimento que acabara de se instaurar e, logo, proferia-se como possuidor da
verdade única. O título de sua obra, Aléthés Logos, a “doutrina verdadeira”, faz jus à sua
exposição a qual, como demonstramos, tenta arquitetar um argumento que assevere que a
mesma doutrina a tudo permeia, e não é de autoria de um único homem, uma única civilização
ou uma única religião. Se esses cristãos acarretassem tal assertiva, poderiam continuar vivendo
pacificamente no Império Romano que, naquela época, englobava muitas dessas doutrinas.
Como Celso explana:
...aqueles que se mantêm próximos de seu pequeno deus estão dificilmente
seguros! Vocês são banidos da terra e do mar, amarrados e punidos por sua
devoção ao seu demônio Cristão e levados para serem crucificados. Onde está
então a vingança de seu Deus nos seus perseguidores? Proteção, de fato!
(CELSO, Discurso Verdadeiro, X, 141–146).
Não há, para ele, uma razão distinta dos cristãos para julgarem sua crença como
verdadeira e o que os outros acreditam como mitos (CELSO, Discurso Verdadeiro, X, 205–
207). Conforme Celso (Discurso Verdadeiro, X, 325–329), amar o Imperador e servir a Deus
são deveres complementares: se adora-se a Deus, a pessoa não será influenciada por aqueles
que comandam-na a blasfemar e dizer coisas sediciosas sobre as autoridades do Império. A
estabilidade de qualquer civilização, de acordo com ele, é o dever do homem bom que zela por
ela:
Isso é o que um homem bom faz: ele aceita um cargo público pela preservação
da lei e da religião, se for necessário a ele fazê-lo; ele não corre do dever
público. Ele não corrompe as leis nomeadas, na premissa de que se todos
assim fizessem, seria impossível para a lei funcionar (CELSO, Discurso
Verdadeiro, X, 391–396).
Assim, como era o propósito da maioria das doutrinas filosóficas, cada qual em sua
maneira, levar uma boa vida era o ápice de qualquer ideal pregado por elas. Conforme escreve
Cícero (VIII, 33–35) na res publica romana do séc. I a.C., em sua obra Do sumo bem e do sumo
mal, “...deve entender que só é bom o que é honesto, e que viver feliz e honestamente é o mesmo
que viver com virtude.”; similarmente, Sêneca (Cartas a Lucílio, 71, 2), que foi um filósofo
estoico no séc. I d.C., retrata que “Sempre que queiras saber qual a atitude a evitar ou a assumir,
99

regula-te pelo bem supremo, pelo objetivo de toda a tua vida.” Finalizando seu tratado, Celso
(Discurso Verdadeiro, X, 397–400) expressa que já basta de falar das doutrinas dos cristãos e
que “Resta a mim agora compor outro tratado, para o benefício daqueles dispostos e capazes de
acreditar no que eu aqui disse, e para ensiná-los como levar uma boa vida.”
100

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Introduzimos, nessa monografia, o aspecto que é o centro de convergência dos pontos


explorados por Celso para debater o cristianismo em sua obra. Verificamos a intenção de
Orígenes ao responde-la e, posteriormente, estreitamos o debate à nossa fonte, demonstrando
como, livre da real intenção de Celso, de quem praticamente nada sabemos, o texto por si só se
valida e impede interpretações absurdas.
Sobre o viés filosófico de Celso expomos o porquê da escolha que fizemos e, à vista
disso, concordamos com o lado que conjectura o autor como um filósofo platônico eclético.
Além de nos alicerçarmos nas opiniões prévias, acrescentamos a ela uma possibilidade posterior
de corrupção do Contra Celso por Rufino, que simpatizava com as ideias de Orígenes de forma
a tentar defender seus escritos da controvérsia origenista, evento que causou a perseguição aos
ensinamentos do mesmo; mostramos, assim, como Rufino pode ter editado partes do Contra
Celso que chegam à posteridade, com a finalidade de salvar alguns dos textos de Orígenes da
heresia, exibindo um provável epicurismo de Celso, corrente filosófica que acabava sendo
utilizada para denominar e consequentemente pejorar um indivíduo, para, assim, atestar que o
platonismo de Orígenes era superior ao epicurismo de Celso.
Acerca das perseguições, atestamos que os cristãos eram perseguidos por não aderirem
às exigências que mantinham o Império Romano estável: a participação nos ritos públicos e a
devoção ao Imperador e seus subordinados. Os mesmos são, por isso, acusados do nomen
Christianum, atribuição ligada intrinsecamente à superstitio, que trazia o caos para a
manutenção das instituições sociais. Compreendemos além disso que o mártir, mais que apenas
morrer em nome de seu deus, causava – conscientemente ou não – a aderência de mais adeptos
à fé cristã e à própria prática de martírio, que fortaleceu a propagação do cristianismo.
A crítica de Celso se constrói, sobretudo, no quesito educacional: a forma como os
cristãos primitivos pregavam era, para Celso, uma deturpação de vários ensinamentos
filosóficos antigos; mais do que isso, aqueles princípios que antes eram voltados para os que
buscavam enobrecer o espírito, alcançar a virtus e depreender-se da materialidade – atitudes
essas que basicamente eram obtidas por um treinamento da razão para aprender a dar
assentimentos e juízos corretos às impressões do mundo – são ressignificados por bispos,
patrísticos, dentre outros, para simplificar e reorganizar em uma nova teoria todas essas ideias
anteriores, tornando-as acessíveis até para aqueles que não possuíam tempo suficiente para o
ócio como o de um filósofo. Essa prática de apreensão da ideia por parte do letrado – um bispo,
101

por exemplo – e a reversão daquilo em uma forma de sermão para os fiéis da comunidade em
questão, facilitou o primeiro momento de propagação desse cristianismo, uma vez que trouxe
oportunidades tanto para intelectuais que procuravam por novidades doutrinárias, quanto para
aqueles que raramente – ou nunca – possuíam acesso a tais tipos de ensinamentos que voltavam-
se a algum propósito além do da sobrevivência.
Do séc. III d.C. em diante, o crescimento exponencial dos cristãos e a obtenção de poder
e espaço dos clérigos não puderam ser contidos nem pelas grandes perseguições no Império
Romano. Como nota Marrou (1973, p. 500–501), com a obtenção desse espaço a exegese e a
teologia tornam-se progressivamente as disciplinas características de uma nova cultura cristã;
não apenas os membros do clero, mas, também os fiéis mais simples anexam à sua atividade
profana um tipo de ação religiosa, que começa a preponderar. O cristianismo dos dois primeiros
séculos que procurava emular e apropriar-se dos traços pagãos de filosofia, a partir do momento
que se vê difuso entre um vasto número de adeptos, descarta a ideia de fundar um didaskaleion
como aquele de Orígenes em Alexandria e passa a relegar seus modos de educação à catequese
e à predicação. Homens como Jerônimo de Estridão, por exemplo, que viveram do séc. IV ao
V, tiveram aulas com grandes nomes cristãos da época de maneira particular, sem caráter
professoral; a realidade, no entanto, para a massa de fiéis, não era a mesma.
Podemos relegar como sendo a última tentativa de manter a educação tradicional greco-
romana a lei escolar do Imperador Juliano, datada de 362 d.C., de acordo com Marrou (1973,
p. 493). Tal lei interditava o ensino aos cristãos, dado que explicitava a necessidade de se
submeter a profissão pedagógica à autorização prévia das províncias e da sanção imperial, para
assegurar assim a competência e moralidade dos docentes. Marrou (1973, p. 493) relata que os
cristãos que explicam Homero e Hesíodo sem acreditar nos deuses que ali estão postos em cena,
são acusados de falta de honestidade, pois, lecionam algo que não acreditam. A opção para eles,
então, é apostatar ou deixar o ensino. Juliano almejava, assim, valorizar novamente a união que
marcava o paganismo com o classicismo, que resume-se no termo helenismo. Entretanto, essa
investida do Imperador é revogada em 364 d.C. e os mestres cristãos reassumem seus postos,
retornando à Igreja o crescente monopólio sobre a educação.
Consoante Weber (2009, p. 303, 315), a ética helênica e romana careceu de dois
aspectos: um sacerdócio independente organizado e o fenômeno histórico que cria, ainda que
nem sempre mas com certa normalidade, a centralização da ética sob aspecto da salvação
religiosa, ou seja, a profecia. Percebemos, assim, que o sacerdócio cristão baseou-se num
profeta, que é um sistematizador no sentido da homogeneização da relação do homem com o
mundo e, consequentemente, cria o papel para o sacerdote que é aquele que ordena esse
102

conteúdo da profecia no sentido de estrutura-la racionalmente, adaptando-a aos costumes


mentais e da vida de sua própria camada letrada e dos leigos que estão sob sua tutela. Essa
Igreja Católica que posteriormente se destaca ante as heréticas, demonstra que o valor religioso
último não é, portanto, um concreto dever ético, nem a qualificação ética da virtude – que se
alcança mediante a observância religiosa –, mas a obediência à instituição, que é tida como
benemérita e central para a salvação (WEBER, 2009, p. 377). Se por um lado, no séc. II para o
III d.C. Celso vislumbrou o início dessa crescente dimensão dos ensinamentos cristãos e refletiu
sobre o dever do sujeito com o Império Romano, sem esquecer que a sua salvação está apenas
dentro de si por intermédio da filosofia, por outro lado a Igreja tornou-se séculos depois o único
meio para a redenção. As doutrinas que antes ofereciam o conhecimento que leva ao resgate da
alma, basicamente acessíveis àqueles que possuíam alfabetização e ócio suficientes, foram
trocadas pela relação entre uma certa permanência da cultura do filósofo pessoal, representada
pelo cristão letrado que prática o ascetismo e é responsável por formular as diretrizes do
pensamento cristão – como Agostinho de Hipona, por exemplo –, contrastando-se com o fiel
simples que, da mesma forma que o intelectual cristão, pode também vir a ser salvo ao fim de
uma vida miserável, por meio da crença, da obediência ao clero, da fé na doutrina. Eis, portanto,
a revolução educacional cristã.
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ANEXOS
Anexo I:

Estátua de Hipólito de Roma

Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/9b/HippolytusStatue.JPG
Acesso em: 01/07/16 às 19:06.
112

Anexo II:

Mapa dos primeiros cristãos

Fonte:
http://www.ladocumentationfrancaise.fr/cartes/religions/c001028-les-premiers-chretiens-du-
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