Você está na página 1de 282

Organização

Andrea Cachel Apoio


Cláudia Cristina Ferreira Universidade Estadual de
Londrina – UEL
Revisão
Andrea Cachel (Eixos 11 e 13) Reitoria
Cláudia Cristina Ferreira (Eixos Marta Regina Gimenez Favaro
12 e 14)
Vice-Reitoria
Projeto Gráfico Airton José Petris
Lunielle de Brito Santos Bueno
Matheus Becari Dias Direção do Centro de Letras e
Ciências Humanas
Diagramação e Normatização Viviane Bagio Furtoso
Lunielle de Brito Santos Bueno
Vice Direção do Centro de Letras
Capa e Ciências Humanas
Matheus Becari Dias Ana Heloisa Molina

Arte Coordenação do XIII SEPECH


Matheus Becari Dias, a partir da Cláudia Cristina Ferreira
obra Crystal Gradation, de Paul
Klee
Catalogação na publicação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da
Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Conexões humanas v. 3: [livro eletrônico] reflexões do XIII SEPECH


C747 UEL \ Andrea Cachel, Cláudia Cristina Ferreira organizadoras.
-- Londrina: UEL, 2022.
1 livro digital : il.

ISBN 978-65-00-53208-1
Vários autores.
Trabalhos apresentados no XIII Seminário de Ensino,
Pesquisa e Extensão em Ciências Humanas (SEPECH),
realizado na Universidade Estadual de Londrina, nos dias 27 a
30 de setembro de 2022.
Disponível em:
https://sites.google.com/uel.br/xiii-sepech/e-book?authuser=0
Inclui bibliografia.

1. Ciências Humanas - Seminários. 2. Pesquisa -


Seminários. I. Cachel, Andrea. II. Ferreira, Cláudia Cristina.
III. Seminário de Ensino, Pesquisa e Extensão em Ciências
Humanas (SEPECH). IV. Título.

CDU 3

Elaborada pela Bibliotecária Eliane M. S. Jovanovich – CRB 9/1250


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .......................................................................................... 08

Eixo 11 - Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

HETERONORMATIVIDADE NA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO: O


OLHAR DAS ESTUDANTES ........................................................................ 12
Caroline Remedi
Claudia Neves da Silva

AS MASCULINIDADES EM MOTTA COQUEIRO OU A PENA DE


MORTE ........................................................................................................... 26
Giordana Di Paula Ferro

AGENDA DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES NO


BRASIL: UM ESTUDO DE CASO NO GOVERNO BOLSONARO........... 33
João Fernando de Lima Parra

RACISMO E DISCURSO: A INTERDISCURSIVIDADE EM PICHAÇÕES


NOS BANHEIROS DE UNIVERSIDADES PÚBLICAS ............................ 45
Mayara Cristina Aparecido Santos
Rosemeri Passos Baltazar Machado

ENTRE FLORES E ESPINHOS: A ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE


TRAVESTIS E TRANSEXUAIS E A “ESQUERDA PUNITIVA” ............... 58
Vinicius Henrique dos Santos
Eixo 12 - Pandemia e Ciências Humanas e Letras

DRAMA SOCIAL E O CONTEXTO DA PANDEMIA DE COVID-19 NO


BRASIL ............................................................................................................ 72
Gabrielle Maria Iank Paulo

PERCEPÇÕES DE PROFESSORES DA REDE ESTADUAL DE ENSINO


DO PARANÁ DA CIDADE DE CAMBÉ ACERCA DO MODELO DE SALA
DE AULA VIRTUAL EM MEIO A PANDEMIA DO COVID-19 ................ 84
Julio Cezar Galdini
Simone Tereza de Oliveira Ortega

Eixo 13 - Educação docente e desenvolvimento


profissional

UMA PROPOSTA DE TEORIA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES


PARA O CONTEXTO DE UMA ESCOLA INDÍGENA KAINGANG COM
BASE NO MODELO TRADICIONAL DE ENSINO-APRENDIZAGEM
DOS KAINGANG ........................................................................................... 96
Damaris Kanĩnsãnh Felisbino
Marcelo Silveira

PROGRAMA “PROFESSOR FORMADOR” E SEUS EFEITOS NO


ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA DURANTE A PANDEMIA DE
COVID-19 ....................................................................................................... 112
Franciela Silva Zamariam

DESAFIOS DO PLANEJAMENTO NO CAMPO DA GESTÃO ESCOLAR


......................................................................................................................... 120
Gabriela Costa e Silva
Soraia Kfouri Salerno.
ESCUTAR O LEITOR: LEITURA E SUBJETIVIDADE EM
DEPOIMENTOS DE LICENCIANDOS E PROFESSORES DE LÍNGUA
MATERNA ..................................................................................................... 132
Sheila Oliveira Lima

Eixo 14 - Linguagem e significação

A CONSTRUÇÃO DAS TIRAS CÔMICAS DE :


AS PRINCIPAIS ESTRATÉGIAS ................................................................. 144
Alisson Rodrigo Bertan Cominato

A DENÚNCIA SOCIAL NAS TIRAS CÔMICAS DE 154


Amanda Carolina Pereira de Jesus

A MISCIGENAÇÃO BRASILEIRA MANIFESTADA NA REGIÃO


CENTRO-OESTE POR MEIO DOS DADOS DO ALIB ........................... 165
Ana Heloisa Valente
Vanderci de Andrade Aguilera

CONSTITUIÇÃO DA LINGUÍSTICA COMO CIÊNCIA NO CAMPO DAS


HUMANIDADES .......................................................................................... 175
Ana Paula da Silva
Frederico Manhães Slonski

BREVE PANORAMA DAS RELAÇÕES ENTRE LINGUÍSTICA E


PSICOLOGIA ................................................................................................. 182
André Morin Carneiro
Guilherme José Franzon Schürmann
Maria José Guerra de Figueiredo Garcia

FLEXÃO DE GÊNERO EM PORTUGUÊS:


A QUESTÃO DO NEUTRO ........................................................................ 191
André Morin Carneiro
Guilherme José Franzon Schürmann
Maria José Guerra

BICHO, LAGARTA, GONGO, TAPURU: DENOMINAÇÕES PARA


BICHO-DA-FRUTA NO FALAR NORDESTINO...................................... 203
Flávia Pereira Serra
UM BREVE OLHAR SOBRE “A FLOR E A NÁUSEA” E “ ESCADA” DE
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE .................................................... 216
Giovanna Freitas

VERBOS COPULATIVOS EM KAINGANG: UM ESTUDO NA T.I.


APUCARANINHA ......................................................................................... 225
Jéssica Brandet Alves

O GIGANTE NA CAPA: O ENQUADRAMENTO DA NOTÍCIA SOBRE


AS JORNADAS DE JUNHO, NA REVISTA SEMANAL “VEJA” (2013) ... 237
Larissa Morais Vanzela

CONTROLE DOS CORPOS:


O CORPO DA MULHER EM DISCURSO. ................................................ 252
Manuela Serpeloni
Julia Franzon
Rosemeri Passos Baltazar Machado

AS BALIZAS DA COSMOLOGIA KAINGANG E O FUNCIONAMENTO


DA GRAMÁTICA: CONCORDÂNCIAS VÁRIAS........................................ 265
Marcelo Silveira
Juliana Machado de Oliveira
Lucenilda Maria Rodrigues
Conexões Humanas:
Reflexões do XIII SEPECH UEL

Volume III
Apresentação
O XIII Seminário de Ensino, Pesquisa e Extensão em Ciências Humanas
(SEPECH) foi realizado na Universidade Estadual de Londrina, nos dias 27 a 30 de
setembro de 2021, tendo suas atividades sido desenvolvidas integralmente de modo
remoto, em virtude da Pandemia de COVID-19, que ainda assolava o país e o mundo.
Mostrou o empenho de todas as áreas envolvidas na manutenção das reflexões sobre
ensino, pesquisa e extensão, mesmo em um cenário que exigiu adaptações, criatividade
e resiliência. E consolidou nossa ênfase na esperança e nossa aposta na vida,
materializadas no movimento de transmissão, entre sujeitos e gerações, do
conhecimento e das práticas educacionais promovidos no espaço da UEL.
Durante o Evento, 15 Eixos Temáticos recepcionaram uma miríade de novas
ideias, de investigações em fase de consolidação, de pensamentos dispostos a encontrar
interlocutores. Tais Eixos reuniram os trabalhos acerca dos temas relacionados à
História, Filosofia, às Ciências Sociais e Letras, potencializando também as suas
interfaces e sua vocação interdisciplinar. Congregaram apresentações de estudantes de
graduação e pós-graduação, professores e professoras da educação básica, do ensino
superior e de escolas de idiomas, além de egressos da UEL. E ofereceram as bases para
os textos que compõem este livro, como forma de enfatizar a necessidade de que a
sociedade se aproprie do conhecimento produzido nas Universidades Públicas e de
que ele envolva sempre um processo democrático de compartilhamento de saberes.
Neste Terceiro Volume estão concentradas as contribuições decorrentes das
exposições, discussões e revisões temáticas oriundas dos Eixos 11 a 14. Nesse
contexto, vale destacarmos que as questões étnico-raciais, de gênero e sexualidade
ocupa hoje importante espaço no debate público brasileiro, adquirindo destaque na
produção de pesquisas e outras formas de conhecimento. O reconhecimento das
diferenças sociais na composição populacional do país tem mobilizado reivindicações
de movimentos sociais, mudanças legislativas e a implementação de políticas que visam
superar as desigualdades sociais concomitantes a tais questões. No entanto, esse
processo de democratização tem encontrado tergiversações conceituais e oposição
política por parte de alguns setores. Dado esse contexto, o Eixo 11, “Gênero,
sexualidade e relações étnico-raciais”, coordenado pelas professoras Martha
Ramírez-Gálvez e Silvana Mariano, ambas do Departamento de Ciências Sociais da
UEL, propôs-se a refletir, discutir e debater tais questões, a partir de trabalhos
finalizados ou em andamento nas ciências humanas, de estudantes de graduação e de
pós-graduação e docentes da educação básica ou superior, com relação com os
marcadores sociais indicados E/ou sua interseccionalidade. Os textos que compõem
este livro e são provenientes desse Eixo materializam todo esse corpo de pressupostos
e de debates e devem ser entendidos pelo(a) leitor(a) como oportunidades de reflexão
ativa acerca desses assuntos.

-8-
Coordenado por Bruno Lira (SOC - UEL) e Charles Feldhaus (FIL - UEL), o
Eixo “Pandemia e Ciências Humanas e Letras”, Eixo 12, teve por objetivo
recepcionar as pesquisas que abordaram e refletiram a partir do contexto pandêmico
vivenciado desde o início dos anos de 2020, algumas delas publicadas aqui para
publicização e fomento de importantes questionamentos. O avanço da COVID-19
sobre a vida social afetou profundamente os significados à vida coletiva e individual
dos seres humanos, ampliando o abismo entre os poucos privilegiados e as massas
oprimidas dentro do sistema capitalista. Assim, o referido Eixo visou, a partir de uma
perspectiva que envolve diversas áreas das Ciências Humanas e Letras, fomentar
discussões sobre os impactos sociais derivados diretamente e indiretamente da
pandemia assim como aspectos conceituais da reflexão sobre desastres em geral,
criando a possibilidade de um debate bastante frutífero entre diversas áreas do
pensamento humano como a economia, a cultura, as letras, a filosofia moral, a filosofia
política, a ciência política, a administração pública, a história, a filosofia, a biologia e a
sociologia da saúde e da doença entre outras. Ademais, o espaço não se propôs apenas
a servir como uma ferramenta de diagnóstico dos problemas decorrentes do evento de
desastre que vivenciamos, mas também construir alternativas de enfrentamento da
situação.
Do Eixo 13 é proveniente uma série de análises também inspiradoras. Elas
partem do pressuposto de que a formação do docente e dos demais profissionais
inscritos nas áreas de Letras e Ciências Humanas tem sido ponto de importantes
discussões. O Eixo “Educação docente e desenvolvimento profissional”
destacou, em suas atividades, que, no campo da educação, as licenciaturas têm
reorientado seus currículos, buscando a constituição de um profissional mais
preparado para corresponder às demandas da contemporaneidade. Ademais, que, nos
demais campos, associados ou não ao ensino, também são as exigências do mundo
contemporâneo que abrem novas formas de atuação. Enfatizou, além disso, que, num
contexto de ressignificações e inovações das práticas profissionais dentro das
Humanidades, a formação inicial e a formação continuada são temas que merecem
atenção nos debates da área. Coordenado pelas professoras e pesquisadora Sheila
Oliveira Lima (LET - UEL), Patrícia Cardoso Batista (PPGEL - UEL) e Franciela Silva
Zamariam (PPGEL - UEL), ele abrigou propostas de trabalhos que abordaram a
formação docente, tanto nas licenciaturas quanto nas pós-graduações, e abriu espaço
para discussões a respeito de outras atividades profissionais, cujas formações se
alicerçam nos cursos de Letras e Ciências Humanas. De todo esse campo fértil de
debates resultaram as contribuições que este Livro materializa e publiciza.
Por fim, é importante ressaltarmos que o Eixo “Linguagem e significação”
recebeu trabalhos relacionados às práticas sociais para propor um conjunto de
reflexões e análises que contribuíssem para pensar o modo como nos constituímos
sujeitos que fazem parte dos processos de utilização da linguagem nas diversas áreas
de estudo, alguns dos quais marcam presença neste terceiro volume do livro do
Conexões Humanas: Reflexões do XIII SEPECH UEL. Coordenado pelas

-9-
professoras Isabel Cristina Cordeiro (LET - UEL) e Lolyane Cristina Guerreiro de
Oliveira (LET - UEL) e pelo professor Marcelo Silveira (LET - UEL), o Eixo 14
recepcionou trabalhos de pesquisadores que marcam o seu lugar teórico no vasto
campo das Ciências da Linguagem, com diferentes possibilidades de ler as práticas
enunciativas sociais e históricas. Abordou temas cujas questões envolvem o
texto/discurso, o acontecimento do dizer, o espaço de construção de sentidos, a
argumentação, os sujeitos em movimento no funcionamento da linguagem, as questões
identitárias na relação com discursos dominantes, a constituição das línguas e dos
saberes sobre elas, o funcionamento da linguagem na relação com as práticas sociais e
históricas de enunciação, o dialogismo, o interdiscurso, entre outros. Enfim, temas
essenciais não apenas para as Ciências da Linguagem, mas para áreas com as quais os
estudos da linguagem estabelecem diálogos, em particular a História, a Política, a
Antropologia e a Filosofia, a partir de múltiplos olhares sobre as relações de poder, o
bilinguismo, o ensino de língua materna e estrangeira, os conflitos de ordem social,
étnico-racial, religiosa, cultural.
Esse trabalho dedicado das coordenadoras e coordenadores dos Eixos, além
do empenho de toda a sua equipe de monitoria e dos aprimoramentos provenientes
da interação entre pesquisadoras e pesquisadores e do diálogo com os ouvintes do
Evento, consolidado neste Livro, nos mostra a força do SEPECH-UEL. Nosso desejo
é que ele continue sendo sede de inspirações constantes para análises acerca da
indissociabilidade entre a pesquisa/ensino/extensão. Que ele possa sempre propiciar
o desenvolvimento dos alunos e alunas, nas diversas searas que compõem a área de
Ciências Humanas e Letras, permitindo que os assuntos debatidos no âmbito da UEL
exerçam impacto na sociedade. Esperamos que os seus frutos – dentre os quais este
Volume do Conexões Humanas: Reflexões do XIII SEPECH UEL – perpetuem-
se através das inspirações e aprimoramentos que possam ser gerados naqueles que se
abrirem para as reflexões propostas aqui.

- 10 -
- 11 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

HETERONORMATIVIDADE NA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO:


O OLHAR DAS ESTUDANTES

Caroline Remedi1
Claudia Neves da Silva(orientadora)2

Resumo: O interesse pelo tema saúde ligado à política de educação se deu a partir de
vivências pessoais durante o processo de formação em escolas públicas de Londrina,
levando-nos ao seguinte questionamento: “Como a heteronormatividade na Política
de Educação interfere na saúde dos estudantes?” O objetivo se deu na perspectiva de
verificar se há abordagem de conteúdos, por parte dos professores, que contemplem
a diversidade sexual e afetiva fora das relações heterossexuais. O aporte teórico da
pesquisa utilizou-se de alguns capítulos dos livros História da Sexualidade e Vigiar e
Punir do Filósofo e Psicólogo Michael Foucault. Também foi realizada uma revisão de
literatura sobre heteronormatividade, gênero e sobre questões LGBT+, bem como os
documentos oficiais da educação. A amostra da pesquisa foi constituída por 53 jovens
estudantes entre 15 e 27 anos, ativos ou já graduados, do ensino médio de Londrina,
que aceitaram responder ao questionário enviado via Google Docs. Verificamos que o
ensino médio de Londrina possui expressões de heteronormatividade em sua
condução que acarretam prejuízos e/ou lacunas à saúde afetiva e sexual dos estudantes
de ambos os gêneros, e a importância da quebra do paradigma heteronormativo na
educação, possibilitando desenvolver e garantir o respeito à diversidade.

Palavras-chave: Heteronormatividade. Política de Educação. Gênero. LGBTQIA+

Introdução

De acordo com as Diretrizes Curriculares de Gênero e Diversidade Sexual da


Secretaria de Estado da Educação do Paraná, heteronormatividade é um

termo utilizado para expressar que existe uma norma social que está relacionada ao
comportamento heterossexual como padrão. Dessa forma, a idéia de que apenas o
padrão de conduta heterossexual é válido socialmente, colocando em desvantagem
os sujeitos que possuem uma orientação sexual diferente da heterossexual
.(PARANÁ, 2010, p.8)

1Discente do 4º ano do curso de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina (UEL).


E-mail: caroline.remedi@uel.br
2Doutora em História. Docente do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-

Graduação em Serviço Social e Política Social/UEL. E-mail: claudianevess@uel.br

- 12 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

Tal definição instigou o desenvolvimento da pesquisa em questão, com a


finalidade de verificar o que está previsto sobre diversidade sexual e afetiva nas escolas
públicas estaduais de Londrina e como a heteronormatividade, na política de educação,
afeta a saúde do(a) jovem estudante das escolas públicas do município.
O interesse pelo tema saúde ligado à política de educação se deu a partir de
vivências pessoais durante o processo de formação em escolas públicas de Londrina.
A pouca ou ausente abordagem sobre diversidade dificultou posteriormente a busca
por métodos preventivos de ISTs entre relações homoafetivas, da mesma forma
atrasou o processo de aceitação e entendimento da minha sexualidade. Questões que
afetam diretamente a saúde física e psicológica dos sujeitos.
Para este trabalho, foram elencadas as palavras chaves a seguir que poderiam
ser correlacionadas ao tema da pesquisa: "Orientação sexual, homoafetividade,
homossexualidade, homofobia, heteronormatividade, diversidade, lesbofobia, gênero,
patriarcado e lesbianidade", com a finalidade de pesquisá-las nos principais
documentos oficiais da educação. São estes: Constituição Federal (Capítulo sobre
educação), Constituição do Estado do Paraná, Lei de Diretrizes e Bases da educação
(LDB) e sites da Secretaria da Educação do Paraná e Núcleo Regional da Educação de
Londrina.
A pergunta motivadora para esta pesquisa foi “Como a heteronormatividade
na Política de Educação interfere na saúde dos estudantes?”.
O objetivo geral se deu na perspectiva de verificar se os professores abordam
temáticas que contemplem a diversidade sexual e afetiva fora das relações
heterossexuais, a partir do ponto de vista dos estudantes. Por conseguinte, os objetivos
específicos foram: buscar possíveis expressões de heteronormatividade no ensino
médio público do município de Londrina, e, estudar como a saúde afetiva e sexual das
estudantes lésbicas e bissexuais, da rede pública de Londrina é afetada pela
heteronormatividade.
Para a metodologia, o aporte teórico da pesquisa utilizou-se de alguns capítulos
do livro História da Sexualidade, assim como da publicação de Vigiar e Punir, do
Filósofo e Psicólogo Michel Foucault. Também foi realizada uma revisão de literatura
sobre heteronormatividade, gênero e sobre questões LGBT+, bem como os
documentos oficiais da educação.
O universo da pesquisa foi constituído por jovens estudantes ativos ou já
graduados no ensino médio estadual de Londrina, entre 15 e 27 anos. A amostra foi
delimitada por 53 alunos (as) usuários desta política que responderam ao questionário-
entrevista.
Para fins de pesquisa, atualmente, de acordo com o site da Secretaria de
Educação do Paraná, há um total de 68 escolas estaduais no município de Londrina,
contendo um total de 46.979 matrículas.
Utilizaremos como instrumento da coleta de dados a entrevista. Para nos
aproximarmos dos sujeitos que farão parte de nossa pesquisa, utilizaremos a técnica
bola de neve.

- 13 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

A partir da construção de um instrumento de pesquisa por meio de perguntas


esquematizadas para a entrevista, a técnica bola de neve será construída de forma que
o atual entrevistado, indicará um novo sujeito para responder a pesquisa e este, por sua
vez, também indicará um novo sujeito; assim sucessivamente até que seja atingida a
amostra desejada na pesquisa, ou até que as respostas comecem a se repetir, o que é
considerado como “ponto de saturação”.

Educação enquanto categoria analítica

Comumente, quando se fala em educação, a primeira associação pertinente ao


termo é a escola, enquanto instituição responsável pelo ensino-aprendizagem.
Contudo, para esta discussão, faz-se necessário entender que a educação, em si, é
objetivada por diferentes indivíduos e instituições, por meio de discursos e de seus
significantes aos sujeitos envolvidos no processo.
A Educação envolve diferentes saberes relativos aos atores sociais envolvidos
e esses refletem vivências de uma infraestrutura, bem como de uma superestrutura.
Conforme Demo (2018)

“Ler a realidade” implicaria saber confrontar-se com ela, mas parece claro que a
escola não sabe fazer isso. Ao contrário, ela reproduz a realidade, como sempre
constou da tradicional sociologia da educação de pendor althusseriano
(BOURDIEU & PASSERON, 1975), na qual escola é vista como aparelho
ideológico do Estado, a serviço dos donos dos meios de produção. (DEMO, 2018,
p.52).

A exemplo do exposto acima, dentro do processo educativo em escolas, temos


que o arsenal teórico metodológico do professor, expressarão um ensino mais crítico
ou mais conservador sobre temas cuja moralidade tem maior expressão, incidindo
diretamente no fator inclusão de indivíduos ao abordar, ou não, temas sobre
diversidade.
O processo de ensino está inserido em uma estrutura que Foucault nomeará
de saber-poder, e este se efetiva ao passo em que instituições ou indivíduos já
detentores do poder avaliam a veracidade e valor do conteúdo que outros sujeitos
pretendem como verdadeiros, de forma que destaca Freire:

“Educação, além de um processo gnosiológico, é, também, um ato político uma vez


que a diretividade está vinculada à prática educativa, pois “[...] não há prática
educativa que não se direcione para um certo objetivo, que não envolva um certo
sonho[...]” (FREIRE, 1994, p. 163).

Assim, conforme Bicalho e Acetta (2014), quando o assunto é educação dentro


da instituição escolar, essa se efetiva partindo de uma estrutura de saber-poder vertical,

- 14 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

do professor (detentor do poder) para o aluno. Dentro da mesma lógica já exposta,


por mais que a pedagogia também se pretenda neutra, quando a temática envolve o
conteúdo sexualidade e diversidade, o professor carrega consigo um arsenal de ideias
e pré-conceitos que ora tendem à ampliação e inclusão dos sujeitos envolvidos e ora,
oposto disso e mais comum, tendem a uma segregação/exclusão social, a partir da
limitação do ensino a uma visão heteronormativa das relações afetivas e sexuais.
Em consonância, Bicalho e Acetta (2014, p.05) ressaltam que:

A escola é um lugar propício para que ocorra essa segregação, pois segundo Foucault
(1996) o sistema educativo é uma maneira política de se manter e se apropriar dos
discursos, assim como dos saberes e poderes decorrentes desse, mantendo assim um
tipo de subjetividade dominante pautada no binarismo de gênero e suas
correspondentes expectativas, assim como a heterossexualidade. Para o autor
(FOUCAULT, 1996), o sistema educativo se dá através da qualificação e fixação dos
papéis daqueles sujeitos que lá falam.(BICALHO;ACETTA, 2014, p.5)

Bicalho e Acetta (2014) informam que a partir desse contexto de valores


partilhados coletivamente, Foucault dirá que há a intenção de adaptar os indivíduos às
normas, tornando-os dóceis e úteis ao funcionamento da sociedade. Para tal, as
instituições o farão a partir de ações de coerção partindo de um poder vigiante e
punitivo que, no caso da sexualidade, punirá LGBTs que fogem às expectativas
heterossexuais, uma vez que a maior “utilidade” que um corpo pode ter nesse quesito,
é seu dispositivo de reprodução; assim cria-se a expectativa da heterossexualidade para
que, por meio da reprodução, haja também a manutenção da moral e regras ligadas à
superestrutura dominante.

[...] o dispositivo da sexualidade configura-se como uma estratégia potente e perversa


não de repressão, mas de gerenciamento e controle da produção dos corpos,
subjetividades e populações. “Potente porque o poder avança cada vez mais fundo
sobre os modos de existência; perverso porque produz formas de experimentação e
vivência da sexualidade como ilegítimas [...] para a manutenção das relações de
poder”.

A escola enquanto categoria analitica

A Escola se caracteriza como uma instituição que, assim como outras, é


responsável pela produção e reprodução de normas, padrões de conduta e valores.
Deste modo, de acordo com Frigotto (2001), expressa-se como uma significativa
reprodutora do status quo desta sociabilidade.
Apesar de garantida pela Constituição Federal de 1988, em seu capítulo sobre
educação, a igualdade de acesso e permanência na escola, a liberdade de aprender,
ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, bem como a garantia do pluralismo de

- 15 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

ideias, o que se nota cotidianamente é a recusa às singularidades expressas pelos


sujeitos envolvidos no processo formativo.
Santos (2018), em sua dissertação de mestrado aborda diversidade sexual em
escolas, e traz algumas referências apontando que:

O cotidiano das escolas é constituído pelo heterossexismo [...] heteronormatividade


e LGBTfobia. Tudo isso ocorre para manter os sujeitos dentro do padrão sexual e
de gênero, quem atravessa a fronteira do padrão, logo é classificado como anormal,
assim a “escola pune e persegue aqueles e aquelas que escapam ao controle, marca-
os como estranhos, “anormais”, indesejáveis” (SANTOS, 2018, p. 75).

Tendo em vista o exposto, Santos (2018) afirma que a instituição escolar e as


relações lá formadas, se constituem como base para a construção da personalidade dos
alunos, incluindo a esfera de identidade sexual, afetiva e de gênero. Portanto,
adentrando a lógica heteronormativa e tendo ações como deixar de ensinar, comentar
e/ou discutir saúde sexual e afetiva dos homossexuais, acarretará prejuízos à saúde
sexual, afetiva e psicológica dos jovens LGBTs.

Heteronormatividade enquanto categoria analítica

De acordo com as Diretrizes Curriculares de Gênero e Diversidade Sexual da


Secretaria de Estado da Educação do Paraná, heteronormatividade é um

[...] termo utilizado para expressar que existe uma norma social que está relacionada
ao comportamento heterossexual como padrão. Dessa forma, a idéia de que apenas
o padrão de conduta heterossexual é válido socialmente, colocando em desvantagem
os sujeitos que possuem uma orientação sexual diferente da heterossexual
(PARANÁ, 2010, p.8).

A ascensão da sexualidade falada se dá entre os monastérios e claustros das


Igrejas cristãs, onde pessoas vistas com “condutas irregulares” ou “desajustadas” com
relação às suas paixões aos seus afetos eram colocadas na tentativa de regrar e corrigir
tais comportamentos ‘libidinosos’.

[...] Os discursos sobre a sexualidade foram se multiplicando nas Igrejas e conventos


desde o início do cristianismo. A hierarquia eclesiástica desenvolveu instrumentos
que exigiram a confissão do sexo, convertendo-o em práticas discursivas. Era preciso
falar constantemente das experiências e desejos sexuais. (DANTAS, 2010, p.714)

A Igreja detinha o monopólio do tratamento dos assuntos ligados à sexualidade


e, consequentemente, controle e poder sobre estas práticas. O tratamento dado ao que
se considerasse condenável, era de punição. Dentre as práticas mais visadas de controle
pela Igreja, destacam-se as “perversões e desvios sexuais [...] das crianças, das mulheres

- 16 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

e dos homossexuais, considerada pecado pela pastoral cristã [...]” (DANTAS, 2010,
p.716).
Não obstante, surge entre o séc. XVIII e XIX o interesse de pesquisadores em
desenvolver um saber sobre a sexualidade que envolve o corpo. De acordo com
Foucault (1976), em seu livro História da Sexualidade I, tal interesse surge a partir da
vontade das famílias burguesas em vigiar as práticas sexuais de seus filhos.
Deste modo, em vez de manter o cunho privado das práticas sexuais, o cenário
muda:

De acordo com Foucault (1999b), em vez de mantê-la (prática sexual) restrita à


esfera privada, a família decidiu expô-la. Como não sabia o que fazer com
manifestações sexuais tão assustadoras, ela solicitou o auxílio de profissionais,
transferindo aos especialistas a responsabilidade de tratar da sexualidade do casal,
da mulher, das crianças e dos homossexuais. (DANTAS, 2010, p.715, grifos
próprios).

A partir dessa circunstância, ainda que com influências da moralidade ligada às


igrejas, fez-se necessário ao campo médico a categorização e diferenciação dos corpos
heterossexuais dos homossexuais, assim, consequentemente, estes são categorizados a
partir da dualidade e binariedade: Heterossexual X Homossexual, Moral X Imoral,
Saudável X Patológico (DANTAS, 2010).
Para todos os efeitos, Accetta e Bicalho (2014) ressaltam também a
preocupação e interesse com a homossexualidade que despontou entre os séculos
XVIII e XIX levando os profissionais “classificaram-na, através da ciência médica,
como patologia. [...] Produz-se, assim, o heterossexual – e suas variações – bem como
o homossexual.” (ACETTA; BICALHO, 2014, p.8).
O poder que Foucault passa a analisar é aquele exercido no campo das micro-
relações sociais, que articuladas, se encontram na macroestrutura. O poder é algo
abstrato, o autor diz no livro Microfísica do Poder que não se sabe bem ao certo
sempre quem detém o poder, mas que é claro e visível quem não o possui, dentro de
uma dada relação. Sendo assim, o que o autor propõe é uma análise das práticas e
expressões do poder e sua relação com o saber dentro de uma área, notando que
quanto maior for o domínio do saber de um indivíduo e maior sua capacidade de
articulação, mais poder esse deterá.
Isso exposto, Danner (2010, p. 8), sintetiza ideia principal de Michel Foucault
que embasa a presente pesquisa:

Temos que admitir que o poder produz saber [...] que poder e saber estão
diretamente implicados; que não há relação de poder sem a constituição correlata de
um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo
relações de poder [...].

- 17 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

Sendo assim, saber e poder estando diretamente implicados, buscou-se nesta


pesquisa averiguar as formas como o saber é estruturado e repassado na política de
educação no Ensino Médio Público de Londrina, as manifestações de reprodução do
status quo vigente, bem como sua reprodução ou crítica impacta a saúde física, afetiva e
sexual dos estudantes da rede pública.

Percurso metodológico

Inicialmente pensamos em construir uma revisão bibliográfica, documental e


de literatura a respeito de sexualidade e temáticas afins para posteriormente realizar
entrevistas presenciais com estudantes em curso do Ensino Médio da cidade de
Londrina. Com o advento da Crise Sanitária de COVID-19 em Março de 2020 e a
decretação da pandemia, optamos por realizar a coleta de dados via online.
Tendo em vista a nova metodologia adotada, construímos um instrumento de
pesquisa contendo dezoito questões, sendo quinze objetivas e três abertas. O objetivo
do instrumento foi conhecer, a partir de uma breve aproximação, a realidade das
discentes que cursam ou cursaram o ensino médio no Município de Londrina e região.
O público-alvo foram jovens com idades entre 15 e 27 anos. Esta escolha se
deu considerando a categoria juventude que, de acordo com o IBGE (1999) vai dos 15
aos 24 anos. Porém abrimos a possibilidade de pessoas até 27 anos relatarem sua
experiência no ensino médio, entendendo que as memórias e vivências escolares
também podem ser expressas e entendidas em um momento à posteriori, o que contribui
qualitativamente para o presente estudo.
O questionário foi disponibilizado via Google Docs, entre os dias 20/03/2021
e 10/04/2021. A Publicação do link para participação foi feita por meio de dois grupos
do Facebook: um voltado à comunidade LGBT+ e outro um grupo de apoio de
mulheres da região, bem como por rede de contatos pessoais no Whatsapp.
Cada participante manifestou sua opinião relativa ao seu percurso no ensino
médio, de forma totalmente voluntária, podendo recusar-se a participar, ou mesmo
desistir a qualquer momento, sem que isto acarretasse qualquer ônus ou prejuízo à
pessoa.
Entre os dias 20/03/2021 e 23/03/2021 quarenta e dois voluntários
responderam ao questionário. Entre os dias 24/03/2021 e 10/04/2021 mais 11
voluntários responderam ao questionário, totalizando 53 participantes.
O questionário online foi encerrado após esta data e passamos à análise quanti-
qualitativa das respostas.

- 18 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

Análise de dados da pesquisa

Sabendo que a composição etária dos participantes variou entre 15 e 27 anos,


tivemos a grande maioria composta por jovens de 20 a 23 anos com 47,2% do total de
entrevistados, seguido por 18,9% participantes entre 24 e 26 anos.
Cursaram parcial ou integralmente o Ensino Médio na cidade de Londrina
71,69% dos entrevistados. Temos ainda que dos 53 participantes, 49,1% frequentaram
integralmente o sistema público de ensino, 34% ensino privado e 13,2%, seu ensino
médio, parcialmente em escola pública.
Levando em consideração que a presente pesquisa tem em seus objetivos
verificar como a heteronormatividade presente na política de educação afeta a saúde
afetiva e sexual de estudantes lésbicas e bissexuais, faz-se relevante ressaltar que
compõe o quadro de entrevistados totais 60,2% autodeclarados homo ou bissexuais.
E, neste sentido, que 49% do total de entrevistados são mulheres lésbicas ou
bissexuais – 42% das mulheres são lésbicas e 58% bissexuais.
O questionário aplicado mostra que 47,2% dos entrevistados receberam
educação sexual e afetiva em apenas um dos anos escolares e que isto ocorreu de
forma superficial, sucinta e com pouca discussão sobre saúde e prevenções de
IST em 67,9% dos casos, ademais, 26,4% dos participantes relataram não terem
recebido nenhum tipo de educação sexual e afetiva no Ensino Médio, mesmo que
se tratasse de assuntos relativos à biologia básica como “fases de desenvolvimento
hormonal e genital, discussões sobre Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs),
métodos contraceptivos, etc.”.
Nesta pesquisa também se confirmou o afirmado por Santos (2018) quando
expressa que o pouco ou ausente contato com figuras representativas da diversidade
LGBT em materiais didáticos e outras mídias pedagógicas, auxilia na manutenção da
visão cis-heteronormativa sobre desenvolvimento da sexualidade e afetividade, no
quadro estudantil e profissional do espaço escolar.

As temáticas relativas às homossexualidades, bissexualidades e transgeneridades são


invisíveis no currículo, no livro didático e até mesmo nas discussões sobre direitos
humanos na escola [...] (SANTOS, 2018, p.76).

Dos participantes da pesquisa, 56,6% dizem que apesar de terem recebido


algum nível de educação sexual não recebeu educação sobre “diversidade sexual,
afetiva e/ou de gênero (Ex: discussões sobre a existência da orientação sexual
lésbica/gay, como prevenir ISTs nas relações homoafetivas, diversidade
Transsexual, etc.)”. Para esta mesma pergunta ratifica-se os 26,4% de entrevistados
que não receberam nenhum tipo de educação sexual e afetiva.
A minoria afirma ter recebido discussões inclusivas sobre diversidade, sendo
destes, 15,1% afirmam que foi “Superficialmente abordado (Passagem de forma rápida
pelo assunto, sem discussão sobre prevenção de ISTs em relações homoafetivas)

- 19 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

e apenas um participante (1,9%) afirma ter recebido educação sexual e afetiva


amplamente abordado “De forma respeitosa, didática e pedagógica. Tendo a
perspectiva de direito e cidadania”.
Ao discutirmos o peso das micro-relações de poder nos discursos a partir de
Foucault (1996), o presente estudo indica que os discursos educativos interferem
diretamente sobre os impactos na qualidade de vida, formativa, bem como na saúde
sexual e afetiva de estudantes. Nesse sentido, 100% dos entrevistados afirmam ser
essencial discussões e ensino sobre diversidade de orientações sexuais nas escolas. Os
entrevistados tinham as opções “Desnecessário”, “facultativo” e “essencial” para
opinar. Os 100% que afirmaram a essencialidade da abordagem de diversidade de
orientação sexual nas escolas, concordaram com a justificativa, presente na alternativa,
de que “Deve-se abordar sexualidade/afetividade, violações sexuais, prevenção de
ISTs e contracepções dentro de relações HETERO E HOMOSSEXUAIS. Pois
permite ao estudante expandir a própria compreensão de sexualidade e afetividade,
identificar violências sexuais, além de elucidar/explicar prevenções de doenças
relacionadas a práticas sexuais, independente da natureza da relação (hetero ou
homo).”
No mesmo segmento de raciocínio, a pergunta seguinte foi sobre o impacto na
política de educação caso houvesse maior abordagem de Diversidade Sexual e de
gênero nas escolas. As opções disponíveis eram “melhor”, “indiferente” ou “pior” a
partir da introdução das temáticas. 98,1% responderam “Melhor”, com a justificativa
de que haveria “saltos qualitativos na aprendizagem, saúde e desenvolvimento dos
estudantes, sejam eles LGBT+ ou héteros.” e apenas um entrevistado (1,9%)
considerou ser “indiferente” não impactando “significativamente a aprendizagem,
saúde e desenvolvimento dos estudantes, sejam eles LGBT+ ou héteros.”.
Exploramos a opinião dos participantes sobre o que eles consideravam ser
hipóteses para a deficiência/ausência de abordagem de diversidade sexual-afetiva nas
escolas por parte dos profissionais. Foram consideradas três hipóteses para tais
omissões:

1- Falta de Formação: Os professores e pedagogos não se sentem


preparados ou com instruções/formações suficientes para abordar as
temáticas.
2- Preconceito: Os professores e pedagogos NÃO POSSUEM
formação adequada, isso gera PRECONCEITO E REFORÇA ESTIGMAS
que os fazem deixar de abordar tais assuntos.
3- Moral: Os professores e pedagogos quando POSSUEM
formação adequada, suas crenças PESSOAIS (juízos de valor), prejudicam a
ÉTICA de sua atuação PROFISSIONAL
.
À vista disso, a questão era aberta a possibilidade de assinalar mais de uma
alternativa. Das respostas obtivemos que 33 participantes acreditam ser por falta de

- 20 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

formação, 45, também acreditam ser por preconceito, bem como 32 assinalam pauta
moral como hipótese.
Dos 53 voluntários, 92,5% afirmaram desconhecer os cadernos sobre
diversidade sexual nas escolas e gênero, disponíveis para qualificação dos profissionais,
de forma online e gratuita e que direcionam atuação.
Na última parte do questionário o participante foi convidado a responder sobre
seu próprio percurso no ensino médio e como o modo com o qual a política de
educação foi desenvolvida e aplicada impactou em sua vida.
Quatro alternativas foram disponibilizadas para retratar a Educação em
sexualidade recebida pelo participante:
1- “Considero que minha educação em sexualidade FOI
SATISFATÓRIA abordando AMPLAMENTE saúde hétero e LGBT+.”
(7,5%).
2- “Considero que minha educação em sexualidade FOI
SATISFATÓRIA, mesmo que abordando exclusivamente saúde
heterossexual.” (13,2%).
3- “Considero que minha educação em sexualidade FOI
INSUFICIENTE mesmo abordando ambos os temas: saúde hetero e
LGBT+” (17%)
4- “Considero que minha educação em sexualidade FOI
INSUFICIENTE ao abordar exclusivamente saúde heterossexual.” (62,3%)
Neste espectro pode-se observar que a grande maioria (79,3%) dos
entrevistados consideram que seu trajeto formativo foi transpassado por lacunas de
discussões e conhecimentos sobre saúde sexual e afetiva. E que a outra parcela que
considera seu trajeto como satisfatório se divide entre aqueles que acessaram
amplamente discussão sobre diversidade e saúde sexual (7,5%) e aqueles que acessaram
conteúdos exclusivamente cis-heteronormativos nas discussões de saúde sexual e
afetiva (13,2%).
Sobre os impactos dos conteúdos estudados na escola, obteve-se da pesquisa
que:
● 7,5% consideram que “IMPACTARAM
NEGATIVAMENTE. A não abordagem de Diversidade Sexual e Afetiva,
além das lacunas teóricas, me trouxe alguma IST, intercorrência ou/e prejuízos
que poderiam ter sido evitados/identificados facilmente a partir do
conhecimento sobre sexualidade-afetividade.”.
● 7,5% acreditam que os conteúdos “IMPACTARAM
POSITIVAMENTE minha vida, saúde e desenvolvimento sexual-afetivo.”.
● 84,9% entendem que “PODERIAM TER SIDO MELHOR
DESENVOLVIDOS. A não abordagem de Diversidade Sexual e Afetiva
deixaram LACUNAS no meu aprendizado, mas aprendi e me preveni
sozinha(o).”.

- 21 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

Estreitando os dados desta última questão para os impactos da educação na


saúde afetiva e sexuais das mulheres lésbicas e bissexuais, 100% das participantes
consideraram que seu processo formativo “poderia ter sido melhor desenvolvido” e
que aprenderam a se preveniram por sozinhas ou que esse foi “impactado
negativamente” trazendo prejuízos em sua saúde e desenvolvimento afetivo-sexual.
Neste sentido verifica-se como positiva a hipótese inicial de que a
heteronormatividade na política de educação, afeta negativamente a saúde afetiva e
sexual de mulheres lésbicas e bissexuais no decorrer de seu processo formativo,
incluindo intercorrências de saúde e/ou prejuízos que poderiam ter sido evitados
facilmente a partir do conhecimento e debate sobre sexualidade-afetividade em sala de
aula, de maneira pedagógica e didática.

Considerações Finais

A partir dos dados coletados nos questionários e considerando toda a formação


pedagógica e educativa, os materiais e diretrizes disponibilizados pelos órgãos e
categoriais profissionais de educação do Estado e município, e a análise das respostas
do instrumento de pesquisa, foi possível entender que com a primeira aproximação
feita por este estudo, os conteúdos sobre diversidade sexual e afetiva fora das relações
heterossexuais não são ministrados e/ou são insuficientemente abordados.
Neste sentido, tendo em vista que há a disponibilização de materiais e
orientações para a discussão dos mencionados assuntos por parte dos profissionais da
educação como subsídios para conteúdos formativos essenciais, entende-se que a
omissão na temática por parte das escolas advém da síntese de contradições e
tensionamentos políticos deste modo de produção. Tais sínteses convergem à
manutenção do status quo que reproduz opressões de classe, raça, etnia e sexo, tal qual
opressões heteronormativas sobre a comunidade LGBT+.
A partir do presente estudo e pesquisa, também foi possível concluir que, de
fato, o Ensino Médio de Londrina possui expressões de heteronormatividade em sua
condução que acarretam prejuízos e/ou lacunas à saúde afetiva e sexual dos estudantes
de ambos os gêneros. Porém, identificamos um impacto significativo no recorte de
gênero por parte das estudantes lésbicas e bissexuais que responderam o questionário.
Lacunas que trouxeram intercorrências na saúde física dessas mulheres.
A exemplo de tais intercorrências pode-se mencionar: insegurança sexual com
relação aos métodos de proteção de IST’s, assim como eventuais problemas de saúde
sexual que poderiam ter sido evitados por meio de conhecimento prévio sobre o
assunto, discutido em aulas. Além do supracitado, ainda foi possível analisar que as
expressões de heteronormatividade presentes no ensino médio das escolas de
Londrina impactam negativamente na saúde afetiva, pois, tendo desconhecimento ou
pouca abordagem sobre saúde corporal e mental dentro das múltiplas manifestações
afetivas, as jovens passam por uma repressão das suas vivências, que carregam estigmas

- 22 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

de culpa ao sentirem atração ou desejos afetivos fora das relações hetero e dores
subjetivas durante a construção de sua personalidade.
Por fim, pelo presente estudo, ressaltamos a importância do tensionamento em
direção à quebra do paradigma heteronormativo na educação, permitindo, de forma
ampla e democrática, desenvolver nos/nas jovens cidadãos/ãs a noção de respeito e
liberdade ligados à coletividade. Assim, abrir-se-á o ensejo a um desenvolvimento de
consciência corpórea, física, sexual e mental, permeado por limites saudáveis,
reduzindo riscos à sua saúde física, de violências, bem como redução de sofrimentos
psíquicos dos jovens.

Referências

ACCETTA, M. F. F.; BICALHO, P. P. G. Discursos de violência em oficinas de


gênero e sexualidade em escolas do Rio de Janeiro: a emergência de
criminalizações na contemporaneidade In: Diversidades: diálogos (im)pertinentes
entre educação, literatura e sexualidade.1 ed.Curitiba : CRV, 2014, p. 23-37.
Referências adicionais : Brasil/Português. ISBN: 9788544401989

BIGLIARDI, Rossane Vinhas; CRUZ, Ricardo Gauterio. A educação na sociedade


de classes: uma leitura crítica do processo de avaliação educacional. Didática
Sistêmica, Rio Grande, v. 6, p. 23-32, 6 jul. 2007. Semestral. Disponível em:
<https://periodicos.furg.br/redsis/article/view/1238.> Acesso em: 25 maio 2020.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.


Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

CASSAL, L. C. B. & BICALHO, P. P. G. (2011). “Não importa ser ou não ser,


importa parecer”: Pistas sobre violência homofóbica e educação. Em A. Bortolini
(Org.). Diversidade Sexual e de Gênero na Escola: Educação, Cultura, Violência e
Ética (pp. 78-93). Rio de Janeiro: Pró Reitoria de Extensão/UFRJ.

DANNER, Fernando. O sentido da Biopolítica em Michel Foucault. Estudos


Filosóficos, São João Del-rei-mg, v. 4, p. 143-157, 2010.

DANTAS, Bruna Suruagy do Amaral. Sexualidade, cristianismo e poder. 2010.


Disponível em: <http://www.revispsi.uerj.br/v10n3/artigos/pdf/v10n3a05.pdf.>
Acesso em: 19 maio 2020.

DEMO, Pedro. Atividades de aprendizagem: sair da mania do ensino para


comprometer-se com a aprendizagem do estudante. Secretaria de Estado de

- 23 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

Educação CFOR: Coordenadoria de Formação Continuada, Campo Grande- MS,


p. 1-184, 2018.

DUTRA, Emília Haline et al. PROJETO PAPO SÉRIO: ABORDAGENS


SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE NA ESCOLA. In: ENCONTRO
NACIONAL SOBRE O ENSINO DE SOCIOLOGIA NA EDUCAÇÃO
BÁSICA, 4., 2015, Florianópolis. Anais [...] . Florianópolis: Encontro Nacional
Sobre O Ensino de Sociologia na Educação Básica, 2015. p. 1-17.

ECCO, Idanir; NOGARO, Arnaldo. A EDUCAÇÃO EM PAULO FREIRE


COMO PROCESSO DE HUMANIZAÇÃO. In: FORMAÇÃO DE
PROFESSORES, COMPLEXIDADE E TRABALHO DOCENTE, 12., 2015,
Curitiba. Artigo. Curitiba: Xii Congresso Nacional da Educação, 2015. p. 3524-3535.

FREITAS, Isabel Carmen Fonseca et al. PESQUISA QUALITATIVA EM SAÚDE:


UM OLHAR INOVADOR SOBRE A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO
CIENTÍFICO. Revista Baiana de Saúde Pública, Bahia, v. 35, n. 4, p. 1001-1012,
dez. 2011.

FRIGOTTO, Gaudencio. Educação e Trabalho: bases para debater a Educação


Profissional Emancipadora. Perspectiva, Florianópolis, v. 9, n. 1, p. 71-87, jan-jun.
2001.

IBGE. População jovem no Brasil | 1999. Instituto Brasileiro de Geografia e


Estatística. 1999. Disponível em:
<https://www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/genero/9292-populacao-
jovem-no-brasil.html?=&t=o-que-e>.Acesso em: 30 junho 2021.

LONDRINA. Câmara Municipal. Projeto de Lei nº 000262017. Londrina, PR de


2016. Pl 000262017. Londrina, . Disponível em:
https://www.cml.pr.gov.br/cml/site/projetodetalhe.xhtml?codigo=PL000262017.
Acesso em: 27 maio 2020.

PARANÁ. DIRETRIZES CURRICULARES DE GÊNERO E


DIVERSIDADE SEXUAL DA SECRETARIA DE ESTADO DA
EDUCAÇÃO DO PARANÁ. In: PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação.

SANTOS, Émerson Silva. (DES)RESPEITO À DIVERSIDADE SEXUAL E À


IDENTIDADE DE GÊNERO EM ESCOLAS DE CARUARU – PE:: a
questão da lgbtfobia e os enfrentamentos e/ou silenciamentos da gestão escolar.

- 24 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

2018. 193 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Pós Graduação em Educação


Contemporânea, Universidade Federal de Pernambuco, Caruaru, 2018

STF DECLARA INCONSTITUCIONAL LEI MUNICIPAL DE


IDEOLOGIA DE GÊNERO. Londrina, 25 abril 2020. Disponível em:
https://www.folhadelondrina.com.br/geral/por-unanimidade-stf-declara-
inconstitucional-lei-municipal-de-ideologia-de-genero-2988532e.html. Acesso em: 25
maio 2020.

SUPREMO VETA PROJETO DE ESCOLA SEM PARTIDO E


IDEOLOGIA DE GêNERO. Paraná, 25 abr. 2020. Disponível em:
https://www.bemparana.com.br/noticia/supremo-veta-projeto-de-escola-sem-
partido-e-ideologia-de-genero#.Xs9Wm2hKjIU. Acesso em: 25 maio 2020.

- 25 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

AS MASCULINIDADES EM MOTTA COQUEIRO OU A PENA


DE MORTE

Giordana Di Paula Ferro1

Resumo: O romance Motta Coqueiro ou A Pena de Morte foi escrito pelo escritor,
farmacêutico, jornalista e ativista político José do Patrocínio, sendo publicado em
folhetim no ano de 1877. Uma das características instigantes próprias do enredo é o
fato de perpassar a ficção e a realidade, pois é baseado em fatos reais, em específico, a
última pena de morte aplicada no Brasil, em 1852. Outro aspecto da obra, que será de
fato aprofundado no presente trabalho, é o conjunto de personagens masculinos com
peculiaridades comportamentais que movimentam a trama. Vemos através de obras da
Literatura Brasileira, como Motta Coqueiro ou A Pena de Morte, um campo fértil para o
desenvolvimento dos estudos de gênero e sexualidade, sendo as masculinidades um
foco relevante para esses estudos, como mais uma forma de refletir e/ou repensar
sobre o sistema hegemônico, graças às representações contidas nas obras literárias.

Palavras-chave: José do Patrocínio. Masculinidades. Literatura brasileira.

O romance Motta Coqueiro ou a pena de morte, foi baseado em fatos reais,


em específico ao caso conhecido como “a fera de Macabu”, que consiste no assassinato
brutal de Francisco Benedito e sua família, sendo ele agregado da fazenda de Motta
Coqueiro, que foi o principal suspeito de ser o mandate do crime. Sendo o fazendeiro
condenado, o caso ganhou repercussão, e com o tempo, foi ganhando visibilidade
quase que folclórica pertencente da região. Além de ser a última pena de morte aplicada
em solo brasileiro, no ano de 1957.
José do Patrocínio foi um abolicionista da época e publicou o romance baseado
na última pena de morte aplicada em solo brasileiro, em forma de folhetim no ano de
1877. Temos em nossas mãos um romance rico em material de estudo para as ciências
humanas, contribuindo para a história, por fazer referência a fatos reais, assim também
contribui para a literatura e estudos de gênero, por apresentar alguns tipos interessantes
de masculinidades. No artigo “Motta Coqueiro ou a pena de morte: Uma trama entre
a memória social e a literatura”, vemos um exemplo de sua contribuição, onde o autor
do artigo citado, Marcos Teixeira de Souza, explora a relação social entre os
personagens, além de tratar da “memória” social.

Nos capítulos intermediários de sua obra, sem perder a necessidade de encadeamento


com o primeiro e o último capítulo, Patrocínio constrói ou tem um espaço no qual
discorreria sobre a estrutura rural vigente à época, os papéis sociais e raciais presentes
nesta estrutura social, o dilema da escravidão, o amor submisso ao dilema de classe

1 Mestranda em Letras pela Universidade Estadual de Londrina – UEL.

- 26 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

social e de raça. Há neste espaço intermediário do romance, um comprometimento


de Patrocínio em descrever a sociedade rural, seu povo, as peculiaridades da estrutura
social, pondo à margem, ou seja, nos capítulos primeiro e último, o drama de Motta
Coqueiro. (SOUZA, 2018, p. 22)

Souza (2018) reforça o caráter expositivo da obra de Patrocínio, ao apontar


elementos sociais e suas questões presentes e latentes no enredo, como a relação e o
trato com os escravos.
Segundo Antonio Candido, em Literatura e Sociedade, o “elemento social” é parte
da composição artística da obra, sem se ater em apenas “documentar” características
de determinada época e seus costumes, e sim converter-se em uma peça que compõe
a “construção artística”.

[...]levamos em conta o elemento social, não exteriormente, como referência que


permite identificar, na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma
sociedade determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo
historicamente; mas como fator da própria construção artística, estudado no nível
explicativo e não ilustrativo. (CANDIDO, 2000, p. 8)

Por apresentar uma trama rica em personagens masculinos, é possível verificar


como o sistema hegemônico influencia aqueles personagens e que peso suas ações têm
nas veredas em que a trama segue. Motta Coqueiro é um personagem descrito como
um homem honrado. Sua figura chega a beirar uma descrição romântica do homem de
caráter, incapaz de atrocidades, mas se tratando de um romance Realista, há momentos
em que a estética romântica dá lugar à agressividade contra os subalternos, quando o
“bom” fazendeiro agride um jovem empregado e, em uma passagem anterior, castiga
Balbina – escrava respeitada pelos demais -a expulsando da casa grande. Essa última
ação de Motta Coqueiro – contra a figura de Balbina – fez com que ganhasse uma
poderosa inimiga, que espera a oportunidade para se vingar de seu senhor, anunciando
frequentemente a aproximação do grande em que sua vingança será consumada, e
tramando contra a vida de Motta Coqueiro por meio da influência que exerce nos
demais personagens.
Sendo o foco do artigo uma breve exposição dos personagens masculinos, suas
peculiaridades e como as suas ações têm grande relevância na trama, vamos ao
chamado “triunvirato”, assim chamado pelo narrador heterodiegético onisciente:

Eram eles Manuel João, um mulatinho de vinte e poucos anos, bem apessoado e
falante, - um pernóstico, segundo o Viana da venda; o Sebastião Pereira, robusto rapaz
que morava perto das terras de Coqueiro, e muito conhecido pela perícia em tocar
viola e cantar o desafio; e o Viana da venda já meio maduro - como dizia o André
inspetor, e creio mesmo que ligado por laços matrimoniais. Cada um desses três
indivíduos suspirava muito em segredo por uma das morenas do Chico Benedito - por
pena das pobres raparigas.” (PATROCÍNIO, 1877, p. 25-26)

- 27 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

O ''triunvirato" apresentado pelo narrador é o conjunto de masculinidades que


– em concórdia – nutrem ideias equivocadas a respeito da relação de Motta Coqueiro
com as filhas do agregado. Os integrantes do trio fazem discursos onde se comparam
ao seu suposto rival, atribuindo a ele vantagem pelo seu poder aquisitivo em
detrimento de sua situação financeira, assim como o exemplo de Viana: “[...] Eu sou
pobre e ele é capitão, é rico, é magnata.” (PATROCÍNIO, 1877, p. 30)
Dentre os elementos do grupo, o mais “cego” pelos padrões do sistema
hegemônico seria Manuel João, feitor da fazenda, mulato, interessado em Mariquinhas,
mas “envenenado” – assim como Sebastião e Viana – ao acreditar que a sua amada
tinha um envolvimento amoroso com o fazendeiro,

Acreditava mesmo que seria uma loucura, ele, pobre feitor de roça, e demais disso
homem de cor, ir afrontar os escrúpulos da família, quando Mariquinhas era tão bonita
que fácil lhe era escolher um marido entre os robustos moços trabalhadores dos
arredores. (PATROCÍNIO, 1877, p. 32)

A insegurança de Manuel João é alimentada principalmente pela sua condição


de “pobre feitor da roça” e “homem de cor”; esses atributos fazem com que o
personagem qualifique um possível enlace com Mariquinhas como uma “loucura”. No
entanto, a trama mostra que a moça simpatiza com o rapaz, mostrando corresponder
aos sentimentos do jovem feitor, porém, João Manuel, subjugado pela efígie do sistema
hegemônico, não acreditando que ser merecedor do afeto de Mariquinhas, antes
suspeita de sua atitude, e justifica a amizade da moça como uma forma de “reparar”
um ato imprudente, cometido justamente pelo fazendeiro Motta Coqueiro.

Contrastado pela suspeita, o feitor via no lhano entregar-se de Mariquinhas, não uma
prova da bondade daquele coração ingênuo, mas a cilada indecorosa da mulher
decaída, que planeja a reabilitação na profusão dos afagos. Os preconceitos haviam-
no por várias vezes esmagado, porque pertencia à raça mista, à raça a que traçam raias
ao coração e aos afetos. Mariquinhas devia partilhar a opinião geral e, portanto, a sua
aquiescência ao amor, que lhe votara, devia ter um móvel ou muito generoso ou
miseravelmente baixo. A primeira ponta do dilema não feria a imaginação tresvairada
de Manuel João; malferia-o, porém, a segunda. - É bonita demais para um homem de
cor, dizia ele, e ficava a cismar. (PATROCÍNIO, 1877, p. 46)

A violência é latente na obra, como um elemento validador de que há uma falha


nas relações entre os personagens. Tomamos a definição da palavra “violência” muito
bem articulada pela psicanalista Malvina Muszkat, em seu livro O Homem Subjugado
(2018).

A palavra violência origina-se do latim vis e deriva do sentido de “força” e “vigor”.


Também se relaciona com outra palavra latina, violare, que significa “profanar” ,
“infringir”. Força é sinônimo de energia, mas a violência é uma força destemperada,

- 28 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

uma ação impaciente que profana algo ou alguém porque está baseada na ira.
(MUSZKAT, 2018, p. 82)

Se enumerasse todos os lances da obra em que a violência se faz presente, não


haveria espaço no presente artigo para tal empreitada. A violência paira no enredo
como uma sobra, armando gatilhos e impulsionando cada cena e ação. José do
Patrocínio mostrou ao leitor com exímia maestria imagens de violência densa, partidas
de personagens/vítimas de uma hierarquia, um sistema falho o qual produz ações
anômalas, sintomas de uma sociedade débil.

O homem na sociedade patriarcal é construído para ser como um deus: centralizador,


conscientemente poderoso e previamente definido. E é aí que a violência se configura
como ferramenta de controle de sua estabilidade, usada para esconder sentimentos de
mágoa, tristeza, depressão e medo capazes de provocar sintomas de angústia e
aniquilamento. (MUSZKAT, 2018, p. 80)

O trecho acima mostra que a sociedade exige que o homem seja um indivíduo
infalível para encaixar-se na forma exemplar do homem padrão. Muszkat afirma que o
ato de violência praticado pelo homem “se configura como ferramenta de controle e
de sua estabilidade”, sendo assim, a violência é visível nas atitudes dos personagens
ambientados em 1888, assim como na atualidade, logo reforça-se a ideia da importância
dos estudos literários, juntamente com os estudos das masculinidades para verificar e
compreender a sociedade.

[...] voltou então para junto de Mariquinhas e, travando-lhe do punho, disse-lhe com
um acento que a fez tremer: - Uma palavra mais, e eu que te estimo como um doido,
arranco-te a língua como um malvado. Olha que já há noites que eu penso nisto;
enforquem-me depois, mas eu hei de chamar-te minha hoje, já... Uma palavra mais e...
esta casa tem armas e no meu pulso há força. - Para que há de ser mau pra mim;
murmurou Mariquinhas, que esperava abrandá-lo pela humildade. Foi porém um
novo incitamento. De chofre Manuel João apertou sobre os lábios de Mariquinhas a
sua mão vigorosa, enquanto com o braço, que lhe passara à cinta e um esforço brutal,
fazia vergar-lhe o corpo delicado. O candeeiro, talvez pela agitação do ar durante a
luta, deixou de iluminar a sala. (PATROCÍNIO, 1877, p. 95)

A cena de violência contra Mariquinhas é uma alegoria ao resultado de um


sistema falho e opressor, sendo a violência masculina o ápice dessa opressão, o foco
da violência – que era o marginalizado e desfavorecido Manuel João – passa engendrar
outra vítima: a sua estimada e querida Mariquinhas. A violência parece ser para Manuel
João o mais próximo que pode chegar ao seu interesse amoroso, sendo antes um
sentimento puro de bem-querer, agora uma motriz violenta e destrutiva.
Passa-se o tempo e Francisco Benedito – induzido por Sebastião – afronta com
emboscadas ao fazendeiro Motta Coqueiro. Esse, por sua vez, pede que seu agregado

- 29 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

se mude com a sua família, para evitar novos embates, sendo ele um homem íntegro e
pacífico, segundo o narrador.
A família do agregado Francisco Benedito é atacada por um personagem que
aos poucos foi sendo introduzido na narrativa, com breves aparições. O agregado foi
imobilizado pelo personagem misterioso e testemunhou a morte de seus familiares
com crueldade. O personagem é denominado “monstro” pelo narrador pela forma
atroz e fria que procedia dentro da casa do agregado e sua família, os torturando com
o medo e o pavor da desesperança de estarem perdidos nas mãos de um homem
vingativo e sem misericórdia. A causa da vingança não é revelada, e Francisco Benedito
foi imobilizado pela “fera”, podendo apenas “soltar gemidos abafados”.
Uma por uma das filhas pequenas do agregado foram mortas com frieza e
descritas pelo narrador de uma forma impactante até mesmo para os leitores mais frios
e contidos.

A menina de onze anos foi então arrastada pelo monstro, que assentando-se num
mocho obrigou-a a sentar-se nos seus joelhos. A lubricidade veio então misturar-se à
ferocidade. - É realmente bonita, e, pelas dores que tenho sofrido, juro-te, amigo
Francisco, o meu coração está a pedir-me que eu não mate-a. Houve um instante de
silêncio, durante o qual o pudor da menina, quase desfalecida, foi posto a tratos pelo
facínora. - An! seu capitão! que mal lhe fizeram as crianças, tenha dó delas. Este grito
de desespero, proferido por Antonica, deteve em meio uma cena de iniqüidade
indizível. O malvado ergueu-se de súbito e arrastando após si a presa, acocorou-se
junto de Francisco Benedito. - Ouviu o que disse a sua filha, amigo Francisco? Ela
pensa que é o capitão quem se desforra neste momento; e todos, quando encontrarem
esta casa contendo os pedaços da tua raça, hão de pensar também que foi o capitão o
autor desta vingança. E eu viverei tranquilamente; nem ao menos podes levar a
esperança de que eu sofra um pouco, uma hora somente! Quanto é bom ter-se como
tu, amigo Francisco, inimigos a cada canto! Os que são mais ofendidos podem castigar
sem temor. Há quem sofra por eles. A faca do assassino sumiu-se na região torácica
da indefesa menina, e duas vezes mais cravou se-lhe no seio. Quando a vítima não
dava mais sinais de vida, o monstro passou pelos beiços a lâmina ensangüentada e
disse demoradamente: - Oh! como é tão doce e cheiroso o sangue dos teus. Devias
amar muito a tua mulher, amigo Francisco, para que tivesses filhas tão bonitas. Faltam-
me ainda duas e é preciso que eu dê conta da tarefa antes que o dia clareie.
(PATROCÍNIO,1877, p.204)

Além de conseguir se vingar de seu desafeto, o personagem conseguiu sair


inocente do seu crime ao saber que a culpa recairia em Motta Coqueiro. Após o crime,
prontamente o fazendeiro é acusado, e não conseguindo provar sua inocência é levado
– juntamente com alguns de seus escravos – à forca. Anos depois O verdadeiro
assassino, em seu leito de morte confessa o que fez com Francisco Benedito e sua
família, além de deixar um inocente pagar pelo seu erro, mas essa confissão não altera
a história e se perde nas últimas páginas do romance.

- 30 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

Conclusão

Os estudos das masculinidades ajudam a repensar o sistema hegemônico,


apontando a opressão sofrida pelos próprios homens que não correspondem ao
padrão. No caso, o jovem feitor desacreditava de uma possibilidade de se aproximar
de Mariquinhas, justamente por sua cor, e falta de posses, julgando-se indigno do afeto
de sua amada. Isso o narrador deixa em exposto em várias passagens do romance,
induzindo o leitor a pensar no que poderia corromper os bons sentimentos de Manuel
João ao ponto de ele violentar Mariquinhas.
Temas como violência do homem contra a mulher e/ ou do homem contra o
homem, podem ser visualizadas na obra em questão, por trazer um número
considerável de personagens masculinos com suas “motivações” e trajetórias próprias
bem definidas e exploradas no enredo; vemos mais na conclusão a figura de Herculano,
o verdadeiro autor do crime contra o agregado e sua família. Esse surge na história e
dizima Francisco Benedito e sua família justificando estar se vingando de uma desonra
sofrida pelo patriarca no passado.
Os preconceitos carregados pelos personagens masculinos são latentes na obra,
sendo mais visíveis na figura do feitor Manuel João. No romance temos personagens
pobres que se sentem intimidados pelo fazendeiro rico e honrado, sendo assim, essa
equação culmina no “estopim” que dá movimento ao enredo.
Dito isso, os estudos sobre as masculinidades em obras literárias brasileiras são
relevantes pelo motivo de instigar o leitor a perceber os tipos masculinos retratados
nas obras, e assim, verificar a forte influência do sistema hegemônico no enredo. Mais
uma vez a obra Motta Coqueiro ou A Pena de Morte mostra uma narrativa rica capaz de
impulsionar uma gama de estudos, dentre eles, os estudos sobre as masculinidades na
literatura, justamente por apresentar uma diversidade de personagens masculinos, cada
um agindo de acordo com as suas intenções, influências e crenças no sistema
hegemônico.

Referências

CANASSA, Lucélia. Os estudos das masculinidades e os estudos literários no


Brasil: um breve panorama e alguns possíveis caminhos. Revell, Mato Grosso
do Sul, v. 3, n. 19, p. 12-36, ago. 2018.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: T. A. Queiroz Editor


Ltda. 2000.

MUSZKAT, Malvina. O Homem Subjugado. São Paulo: Summus Editorial. 2018.

- 31 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

PATROCÍNIO, José do. Motta Coqueiro ou a Pena de Morte. Rio de Janeiro:


Domínio Público, 1877. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bi000167.pdf. Acesso em: 27
set. 2021.

SANTOS, Lucinéia Alves dos. Motta Coqueiro, a fera de Macabu: literatura e


imprensa na obra de José do Patrocínio. 2009. 136 f. Dissertação (Mestrado) - Curso
de Programa de Pós-Graduação: Programa de Pós-Graduação em Teoria e História
Literária, Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2011. Disponível em:
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270264/1/Santos_LucineiaAlv
esdos_M.pdf. Acesso em: 27 out. 2021.

SIMON, Luiz Carlos Santos. Fundamentos para pesquisas sobre


masculinidades e literatura no Brasil. Estação Literária, Londrina, v. 16, n. 2016,
p. 8-28, jun. 2016. Disponível em: http://www.uel.br/pos/letras/EL/vagao/EL16-
Art1.pdf. Acesso em: 27 set. 2021.

SOUZA, Marcos Teixeira de. Motta Coqueiro ou a pena de morte. Jangada,


Viçosa - MG, v. 4, n. 2014, p. 18-37, dez. 2018. Disponível em:
https://www.revistajangada.ufv.br/Jangada/article/view/41. Acesso em: 26 set.
2021.

- 32 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

AGENDA DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES


NO BRASIL: UM ESTUDO DE CASO NO GOVERNO
BOLSONARO

João Fernando de Lima Parra1

Resumo: O texto analisa o governo Bolsonaro em relação às suas políticas públicas


para as mulheres. A partir de um estudo de caso, este artigo busca compreender e
debater como as racionalidades neoliberal, conservadora e religiosa, que marcam a
gestão Bolsonaro, estão presentes na campanha publicitária “Tudo tem seu tempo:
adolescência primeiro, gravidez depois”. O objetivo é demonstrar que esta ação é um
reflexo de como o governo é hábil em incutir questões morais e religiosas em decisões
de políticas públicas que deveriam ter um caráter técnico. Finaliza fazendo uma
reflexão sobre como as questões debatidas têm consequência direta para as mulheres.

Palavras-chave: Neoliberalismo; Políticas Públicas; Governo Bolsonaro.

Introdução

Vivemos em um contexto em que há um amplo debate sobre os avanços


relacionados a políticas públicas que beneficiam diretamente as mulheres. Vemos que
o tema está na mídia de uma maneira, que até arrisco afirmar - quase que inédita - no
sentido de que o tema vem gerando debates acalorados e nunca foram tão divulgados.
Claro que isso não veio como uma dádiva divina, mas sim, pelo trabalho de coletivos
organizados vinculados a movimentos feministas. O resultado chega a ser palpável,
como nos recentes escândalos de assédio sexual, que foram responsáveis por derrubar
importantes figuras públicas.
O relatório da ONU mulheres 2015-2016 - o progresso das mulheres no
mundo - corrobora esta direção e afirma que foram inúmeros os avanços em relação à
equidade de gênero. O texto faz uma análise a partir da conferência de Beijing de 1995,
traçando um amplo leque de resultados que justificam estas afirmações: indo desde um
número maior de mulheres escolarizadas, que trabalham de forma remunerada, até, as
que são escolhidas para desempenhar funções de liderança em empresas. Outro fator
extremamente importante ressaltado foi a questão da violência contra a mulher, que
agora forma parte da agenda pública e que antes era relegada à condição de assunto
doméstico (ONU, 2015).
Mesmo diante de tantos avanços, todos nós sabemos que ainda há muito por
fazer. Ainda hoje, em pleno século XXI, há um rol de sessenta países que ainda não

1Estudante do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de


Londrina – UEL.

- 33 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

têm em suas constituições menções de igualdade de gênero (ONU 2015), sendo este o
requisito mais básico de qualquer Estado moderno. Nem estamos falando sobre os
regimes abertamente discriminatórios, como é o caso de países como Arábia Saudita,
Irã, Bangladesh, entre outros. Um ponto ressaltado no relatório é que, quando
analisamos as questões relacionadas ao direito da família, vemos que os dados são ainda
mais desiguais, e, em alguns casos, mais restritivos. Nestes exemplos, o Estado é
destacado como um ator fundamental para a alteração destas condições e a religião,
quando atrelada ao Estado, tende a ser um componente que dificulta os avanços
(ONU, 2015).
Neste contexto, avaliando especificamente o caso brasileiro, que elegeu em
2018 um presidente com traços que lembram de maneira clara os casos mundiais que
representam uma invisibilidade - para usar aqui um eufemismo - da agenda das
mulheres e da igualdade de gênero (Trump, Orbán, Andrzej Duda, Erdoğan). Nestes
três anos de mandato, é possível avaliar a posição do governo em relação às políticas
para a mulheres que foram implementadas até agora e o que se pode se esperar do
próximo ano, lembrando que, de um presidente que foi mundialmente conhecido por
sua misoginia , não é possível esperar um horizonte alvissareiro.
O governo Bolsonaro pode ser qualificado como neoliberal na economia e
conservador em relação aos costumes. O objetivo deste artigo é comprovar através de
um estudo de caso como estas duas racionalidades que não são, de acordo com as suas
bases ideológicas, compatíveis (BROWN, 2006), acabam se unindo em “matrimônio”
no governo Bolsonaro sob a "bênção" de um verniz religioso.
O estudo de caso selecionado é a campanha publicitária com o objetivo de
conscientizar as mulheres sobre a gravidez precoce, empreendida pelo ministério da
saúde, em ação conjunta com o ministério da mulher, família e direitos humanos, que
coloca a questão da abstinência sexual como um método contraceptivo. A ação em si
denota um claro viés religioso em uma campanha, que deveria, de acordo com os
próprios manuais da ONU e dos ministérios da saúde, focar em ações de educação
sexual e métodos contraceptivos efetivos.
Para elucidar as questões relacionadas à campanha e políticas públicas
relacionadas à gravidez precoce, dividi este artigo em duas partes, na primeira parte
quero pormenorizar questões relacionadas ao governo Bolsonaro e temas relacionados
a igualdade de gênero, direitos sexuais e reprodutivos e as metas da agenda 2030 que
são basilares para os governo signatários, como é o caso do Brasil. Na segunda parte
entramos especificamente no estudo de caso no qual farei alusões à campanha e às
diretrizes neoliberais.

- 34 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

1.Bolsonaro e a questão da mulher e da igualdade de gênero

O título deste apartado soa quase como um oxímoro para qualquer observador
atento à cena brasileira. O próprio deputado Jair Bolsonaro fora sempre famoso pelas
frases misóginas, não seria diferente como presidente. Em uma breve análise sobre o
seu plano de governo, vemos que há apenas uma menção à palavra mulher e ainda está
no capítulo da segurança pública (PLANO, 2018), em relação a penas mais severas
para estupro e possibilidade das mulheres se defenderem. Nenhuma política pública
específica para as mulheres foi mencionada neste documento.
Ao tomar posse, em sua reforma ministerial, o presidente alterou o nome do
ministério das mulheres, da igualdade racial e dos direitos humanos, para ministério da
família da mulher e dos direitos humanos. Importante frisar a colocação da palavra
“família”. pois isso irá remeter a um aspecto conservador e religioso como veremos a
continuação.
Como ministra ele escolheu uma pastora conservadora com uma entrada muito
forte nas igrejas evangélicas, Damares Regina Alves, e que pelas suas falas polêmicas
logo foi alçada à segunda ministra mais bem avaliada de seu governo (O GLOBO,
2019), perdendo apenas para o midiático Sergio Moro. A ministra, sempre que tem
oportunidade, faz menção à questão da família como um norte de suas ações e,
principalmente para as políticas públicas: “Ainda tem gente que não entende o objetivo
do nosso ministério. A gente vem para trazer a família para o centro de todas as
políticas públicas, fortalecendo vínculos” .
Entre as ações destacadas em prol da mulher, o próprio site da Casa Civil
destaca que o governo Bolsonaro já sancionou quatorze novas leis para ampliação da
proteção da mulher. Entre as leis aprovadas, está a instituição da semana nacional de
prevenção à gravidez na adolescência, que está em sintonia com a meta 3.7 da agenda
2030 (BIDEGAIN PONTE, 2017) e reforça a questão de que o Brasil tem números
altos em relação a este tema e ações efetivas devem ser tomadas.
E é justamente na prevenção da gravidez na adolescência que vemos uma ação
da ministra Damares, que simboliza muito bem as dificuldades mencionadas no
relatório da ONU em se ampliar os direitos das mulheres quando questões religiosas
influenciam as políticas públicas.
Isso fica bastante claro com a tentativa em 2018 da Ministra fazer uma
campanha de prevenção à gravidez precoce, com o mote da abstinência sexual, no
melhor estilo das campanhas feitas por igrejas no Brasil e em outros países do mundo,
sendo a mais notória “eu resolvi esperar” . A campanha atribui um claro componente
conservador e religioso para um problema que, segundo relatórios de especialistas
(ONU, 2013), demandam, além de conscientização, educação sexual e conhecimento
do próprio corpo, métodos contraceptivos efetivos e não uma abstinência sexual que
se confunde com crença de um restrito grupo da população.
Para analisarmos esta iniciativa do Ministério da mulher, da família e dos
direitos humanos, é preciso antes fazer um breve apartado sobre metodologias de

- 35 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

análise de políticas públicas e como é tratada no Brasil a questão de direitos


reprodutivos e direitos sexuais (em que a gravidez precoce de insere). Depois
finalizaremos esta primeira parte com a situação do Brasil em relação às metas
colocadas pela Agenda 2030.

1.1 Políticas públicas

Antes de entrarmos na campanha publicitária que introduziu um novo


componente em políticas públicas de prevenção da gravidez precoce, é importante
fazer um apartado sobre a definição de política pública e as diferentes metodologias
para sua análise, tomando como base para estas definições o artigo da Celina Souza
(2006), políticas públicas uma revisão de literatura, que traça um importante apanhado
dos diferentes tipos de definições e formas de análise.
A definição mais conhecida, e quem sabe a mais notória, é a de Lasweel (1936),
que define políticas públicas como decisões e análises que implicam responder às
seguintes questões: quem ganha o que? Por quê? Que diferença faz. Pode-se intuir
dessa definição, e a autora o faz muito bem, que política pública é um campo do
conhecimento que busca, ao mesmo tempo, colocar o governo em ação e ou analisar
esta ação e, quando necessário, propor mudanças no rumo do curso de ações (SOUZA,
2006).
Em relação às metodologias destacadas no artigo, será abordado o “ciclo de
políticas públicas”, pois este dá uma ênfase especial na criação da agenda, que por sua
vez é determinante para a inclusão ou não da política na pauta. Esta abordagem
enfatiza e pergunta porque alguns problemas sociais entram em pauta enquanto outros
são ignorados.
A política pública que será analisada é importante, pois foi motivada por uma
agenda que veio a reboque do governo eleito em 2018, que colocou uma noção
conservadora de regulação da moral e dos costumes, com um claro viés religioso. Esta
visão, como veremos, tem um impacto efetivo na questão sexual da mulher e no
aspecto reprodutivo do corpo feminino.
Se tomarmos como base uma definição da biopolítica de Foucault e
adaptarmos para a questão do corpo feminino como faz o autor Deutscher (2008) em
seu artigo The Inversion of Exceptionality: Foucault, Agamben, and ‘Reproductive
Rights, podemos entender que o corpo feminino está imbuído de significados
reprodutivos não no sentido natural do termo, mas sim relacionado a uma questão de
posse por parte do homem. Mesmo a questão reprodutiva sendo uma faceta inerente
ao corpo feminino, sabemos que muitas mulheres, principalmente no Brasil, não têm
plenos poderes sobre o próprio corpo.
Isso fica claro e patente em questões relacionadas ao aborto. Um exemplo de
como isso está colocado no debate é o Estatuto do Nascituro, que, ao invés de abrir
possibilidades para ampliar os direitos da mulher em relação à interrupção voluntaria,

- 36 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

aumenta os aspectos punitivos e fecha ainda mais o leque das possibilidades legais e
previstas na constituição, onde o aborto é legal (NIELSSON, 2020).
Não é o objetivo deste artigo tratar a questão do aborto em si, mas ele é
importante de ser mencionado, pois elucida aspectos do controle do próprio corpo. O
caso da gravidez na adolescência inclui um certo paradigma em relação a esse tema que
é caro aos conservadores e principalmente sob matizes religiosos e, no entanto, está
presente na legislação e em relatórios internacionais como destaque importante, tanto
no controle do próprio corpo pela mulher, como em iniciativas para estimular a
educação sexual.

1.2 Direitos sexuais e direitos reprodutivos

Importante salientar que há uma diferença latente entre direitos sexuais e


reprodutivos. Esta diferenciação foi sendo transformada ao longo do tempo, saindo
de uma questão meramente demográfica para se consolidar como um direito das
mulheres.
A cartilha “Direitos sexuais e direitos reprodutivos uma prioridade do
governo”, desenvolvida pela Secretaria de Atenção à Saúde - Departamento de Ações
Programáticas Estratégicas do Ministério da Saúde no ano de 2005 - além de ter
diretrizes importantes para podermos fazer um contraste com as políticas atuais
vigentes, faz em sua introdução um interessante recorrido de como estes direitos foram
sendo definidos no Brasil e no mundo.
Um importante marco para essa distinção pode ser estabelecido na conferência
internacional da ONU no Cairo em 1994, que conferiu um papel primordial à saúde e
aos direitos da mulher, ultrapassando os objetivos puramente demográficos nos quais
estavam colocados anteriormente.
Na famosa conferência de Beijing em 1995, se reafirma estes compromissos e
os colocam como direitos humanos fundamentais, colocando a questão com “os
direitos sexuais foram definidos de maneira mais autônoma em relação aos direitos
reprodutivos” (MINISTÉRIO DA SAÚDE 2005, p.7).
Ao nos concentramos especificamente no cenário nacional, vemos que antes
mesmo das resoluções da ONU, o Brasil já estava em linha com estas orientações e no
ano de 1984 elaborou o PAISM (Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher),
que só foi possível pela colaboração direta de representantes de grupos feministas,
gestores estaduais e pesquisadores de universidades (OSIS, 1998), em um período
histórico de caminho para a redemocratização e pujança de movimentos sociais.
A partir dos anos 2000, vemos no país uma ação expressiva de ampliação de
oferta de métodos anticoncepcionais que estão em linha com diretrizes da OMS e
foram mantidas durante todos os governos subsequentes até que houve uma inflexão
no governo Bolsonaro. Neste governo, como veremos na segunda parte do artigo
houve uma junção do aspecto neoliberal de retirada do Estado como ator fundamental

- 37 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

da transformação social, muito bem elucidado por um dos motes de campanha “mais
Brasil e menos Brasília”. e o aspecto religioso, também central em sua campanha e
presente no slogan “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”. Esta direção fica
clara quando elucidamos a posição do governo em relação às metas da agenda 2030,
do qual o Brasil é um signatário e deveria seguir à risca as diretrizes.

1.3 Brasil e agenda 2030

A Agenda 2030 é um documento que busca traçar diretrizes para os países em


busca de um crescimento sustentável e tem como objetivo final a erradicação da
pobreza extrema e outras formas de discriminações.
Importante para o nosso artigo e para o entendimento da percepção do
governo Bolsonaro em relação a este tema, pois este documento firmado em 2015 traz
algumas metas específicas para a questão da igualdade de gênero e especificamente 5.6
(Assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos,
como acordado em conformidade com o Programa de Ação da Conferência
Internacional sobre População e Desenvolvimento e com a Plataforma de Ação de
Pequim e os documentos resultantes de suas conferências de revisão). Como vimos
nas linhas até aqui descritas, considera-se que o Brasil está cada vez mais longe de
alcançar esta meta específica, entre outras.
Os motivos estão fortemente elencados ao caráter conservador e moralista do
governo, que impede muito que estratégias básicas e fundamentais, como a educação
sexual e o direito da mulher de conhecer o próprio corpo, sejam debatidas em escolas
sem isso se tornar um escândalo de fake News relacionando a iniciativa à pedofilia,
ideologia de gênero, incentivo à homossexualidade, entre outros chavões. Tendo o
próprio presidente colocado em sua conta do twitter uma mensagem que corrobora
estas afirmações: “dentre as “metas” da agenda 2030, estão a nefasta ideologia de
gênero e o aborto, sob o disfarce de “direitos sexuais e reprodutivos” (BOLSONARO,
2019)
Como foi visto, questões religiosas e conversadoras sobrepostas às práticas
educacionais e relacionadas à saúde podem contribuir para um agravamento de
problemas relacionados à saúde da mulher, violência sexual e principalmente da
gravidez precoce.
O governo, através da secretaria especial de articulação social, busca se colocar
em linha com “a iniciativa Metas ODS, que tem por objetivo a continuidade do
processo de nacionalização das metas para os 17 ODS e a identificação das ações e
programas do Governo Federal que contribuem para o seu alcance.” Ao mesmo
tempo, e de maneira contraditória, o presidente veta a adoção dos Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável (ODS) como diretriz do Plano Plurianual (PPA) 2020–
2023, utilizando como justificativa uma resolução da própria ONU 5.5 dizendo que
cada país tem autonomia sobre a forma de implementação da Agenda em seu território,

- 38 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

não havendo obrigatoriedade de vinculação da Agenda ao instrumento de


planejamento orçamentário.
O veto trouxe indignação à sociedade civil e fez com que o grupo de trabalho
GT agenda 2030, composto por mais de 30 entidades da sociedade civil, fizesse um
pedido formal ao congresso para derrubar este veto presidencial e observando, ainda,
como salienta textualmente em seu comunicado, que: “veto presidencial, portanto, é
grave, pois indica que o governo federal não tem interesse em manter, e muito menos
ampliar, políticas sociais e ambientais sustentáveis” .

2. Estudo de caso: campanha publicitária “Tudo tem seu tempo: adolescência


primeiro, gravidez depois”

Quando analisamos as políticas públicas em governos que têm traços


claramente masculinos, brancos, heteronormativos e neoliberais, podemos entender o
chamado “mandato da masculinidade” (SERGADO 2016 apud NIELSSON, 2020)
como uma forma de controlar o corpo da mulher e estabelecer para ele papeis
definidos. A campanha publicitária que utilizaremos como estudo de caso ilustra bem
um contexto de um governo neoliberal e conservador e a sua intersecção com a
questão religiosa.
Em janeiro de 2020, a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos,
Damares Alves, propõe o lançamento da nova campanha publicitária em parceria com
o Ministério da Saúde, com o intuito de levar a jovens mensagens sobre a prevenção
da gravidez precoce e de doenças sexualmente transmissíveis. O que chamou a atenção
não foi a campanha em si, mas sim, o tom que a Ministra resolveu dar à mesma,
tratando a abstinência sexual como uma possível “ferramenta” contraceptiva.
É possível notar o componente religioso na campanha relacionado à virtude
cristã da castidade. O que não está evidente para um observador menos atento é como
esta política pública se associa ao neoliberalismo. E é justamente nesse vínculo que
explicarei a intersecção entre as racionalidades neoliberal/conservadora e como estas
acabam por levar a uma despolitização do problema de saúde pública que é a gravidez
precoce.
Primeiro cabe fazer uma ressalva a respeito da doutrina neoliberal, que pode
ser analisada de duas maneiras, a primeira com um prisma mais economicista que tem
foco principal em instituições e políticas relacionadas à causa e efeito de diretrizes
econômicas. Esta corrente de análise está muito bem representada por David Harvey
em muitos dos seus livros (1992; 2005; 2014). A segunda, e que será utilizada neste
artigo, é a visão foucaltiana que foi muito bem sintetizada por Pierre Dardot e Christian
Laval (2016) em seu livro nova razão do mundo, e a Wendy Brown (2019) em Nas
ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente.
Nesta abordagem, o foco está muito mais em princípios que orientam e
relacionam o estado, sujeitos e a subjetividade, e revelam como essa ideologia molda

- 39 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

as percepções desta “nova razão” neoliberal que tem o poder de fazer com que os
indivíduos, mais do que nunca, pensem a si próprios como um reflexo do mercado,
ou seja, pensem a si próprios como uma empresa (DARDOT, LAVAL, 2016;
BROWN 2019).
A publicidade, ao incluir um componente moral junto a uma política pública,
carrega consigo um componente neoliberal relacionado à escolha individual, que isenta
o Estado de sua responsabilidade, transferindo a culpa de uma eventual gravidez à
própria mulher, acabando por despolitizar um problema social. A racionalidade
neoliberal, derivada dos preceitos neoclássicos, se molda a partir da ideia de que os
indivíduos devem ser autossuficientes e donos do próprio destino (PRADO, 2014).
Desse modo, cada indivíduo é livre para fazer as próprias escolhas, em relação às quais,
ao final, é o único culpado pelos resultados.
Vemos então a ideia implícita na publicidade de um Estado que busca se eximir
de suas responsabilidades diretas. Quando na realidade, de acordo com os relatórios
internacionais (ONU, 2015; ONU, 2013), ele deve se posicionar justamente na posição
contrária, como um ator primordial com foco, principalmente na questão da
informação associada à educação sexual que “são um dilema na saúde pública, de
fundamental diálogo e de políticas públicas eficazes” (ROSANELI, COSTA, SUTILE,
2020, p.2). O aspecto educacional deveria ser um norte fundamental para a tomada de
decisões, no entanto, não parece ser o foco do Ministério.
O foco na educação e conscientização vai além do simples aspecto pedagógico,
ele vem junto de um componente de empoderamento, no sentido de que a mulher
tendo mais controle e conhecimento sobre o próprio corpo pode ser mais livre,
independente e, por que não, sexualmente ativa. Este seria um dos motivos de uma
certa aversão dos conversadores em relação ao debate sobre a sexualidade da mulher,
que vem desde a época vitoriana tendo sua própria sexualidade reprimida e, pior ainda,
tratada como um aspecto pejorativo estigmatizante.
Vale salientar que existe uma associação direta entre gravidez não planejada em
adolescentes e a questão da baixa escolaridade (PRIETSCH, 2011) e o Brasil é um dos
países com maior média de gravidez precoce, com uma taxa de 68,4 adolescentes
grávidas para cada mil meninas de 15 a 19 anos (RIBEIRO, 2018). Esse número é bem
maior que a média mundial de 46 (MONTENEGRO, 2019). A falta de conhecimento
é um fator chave que impacta nesses números e é nesse vértice que há de se incluir
políticas públicas eficazes e, é claro, associada a métodos contraceptivos comprovados.
O alvo da Ministra não foi somente o Estado, como responsável pelas políticas
públicas, mas também a própria ideia de sociedade, pois o social é “o local em que
somos mais do que indivíduos ou famílias, mais do que produtores, consumidores ou
investidores econômicos e mais do que meros membros da nação” (BROWN, 2019,
p.39).

- 40 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

Considerações finais

Questões relacionadas a sexo e gênero vem sendo utilizadas como armas


eleitorais e políticas. Essa é uma realidade que não afeta somente o Brasil, há exemplos
destas temáticas sendo utilizadas em outros países como Colômbia, Costa Rica, Peru
e Paraguai.
A questão religiosa e as questões morais, devido a sua amplitude e capacidade
de mobilização, vêm sendo utilizadas também por atores tidos como laicos e
neoliberais, como é o caso do MBL e o movimento escola sem partido (BIROLI,
2019). Os dois movimentos, mesmo sem uma matriz religiosa, estão alinhados em
pautas contra educação sexual, chamada preconceituosamente de sexualização de
crianças, e contra a famosa e notória, porém, pouco especificada, ideologia de gênero.
É tão manifesta essa associação entre o conservadorismo e pautas morais que
na eleição de 2018 ficou famosa a frase dita pelo então neófito candidato João
Amoedo: “sou liberal na econômica e conversador nos costumes”, a frase que pelo
ponto de vista do liberalismo econômico não faz sentido algum. Esta questão é chave
para entendermos a adesão a uma campanha publicitária que tenta, além de despolitizar
um aspecto que é dever do Estado, ao mesmo tempo inserir um verniz religioso da
abstinência sexual.
Vimos que problemas sociais, pelo prisma do de análise do ciclo de políticas
públicas, são somente chamadas à atenção quando são capazes de se impor na agenda
política. Os números do Brasil mostram que a gravidez precoce é um problema de
saúde pública. A Ministra Damares Alves foi hábil em mobilizar o aspecto religioso,
como forma de atrair a atenção do seu público conservador. E ainda conseguiu
enquadrar, possivelmente sem a intenção deliberada, um aspecto basilar do
neoliberalismo, que é a noção de indivíduo responsável por suas próprias ações.
Vejamos bem, uma mulher, sem ter tido uma educação sexual que a possibilite
conhecer o próprio corpo e métodos contraceptivos, é colocada na condição de
escolher se vai ou não realizar uma relação sexual, caso a gravidez ocorra, ela vem por
sua conta e risco, eximindo o Estado de sua responsabilidade.
A própria noção de mulheres jovens tem sido utilizada de forma muito eficaz
pelas políticas neoliberais no sentido de as colocar como mulheres empoderadas e
capazes de maximizar novas oportunidades, seja no mercado de trabalho, ou seja, pelo
consumo (SCHALFE, 2016). A questão do controle da reprodução entra também
nessa equação, contanto que todas as mulheres tenham acessos a métodos
contraceptivos e de como utilizá-los, mas o matiz conservador do governo impede
políticas públicas efetivas na direção da educação sexual.
Entre muitos paradoxos entre o “casamento” entre o neoliberalismo e o
conservadorismo, vemos que a pretensa liberdade do indivíduo de tomar as suas
próprias decisões se vê induzida por um ator que não é o mercado e sua, tão
publicitada, mão invisível. Se pudéssemos colocar a citação do recém falecido Diego

- 41 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

Armando Maradona, parece que há nessa equação neoliberal e conservadora a “mano


de dios”.

Referências

BOLSONARO, Jair M. “- Dentre as “metas” da agenda 2030, estão a nefasta


ideologia de gênero e o aborto, sob o disfarce de “direitos sexuais e reprodutivos””.
Postado em 31/12/2019. Twitter: @jairbolsonaro.

BIDEGAIN PONTE, Nicole. La Agenda 2030 y la Agenda Regional de Género:


sinergias para la igualdad en América Latina y el Caribe. 2017.

BIROLI, Flávia. O RECESSO DA DEMOCRACIA E AS DISPUTAS EM


TORNO DA AGENDA DE GÊNERO. Boletim Lua Nova. Edição online
[13/05/2019]. Disponível em: https://boletimluanova.org/2019/05/13/o-recesso-
da-democracia-e-as-disputas-em-torno-da-agenda-de-genero/. Acesso em: 16 de
dezembro 2020.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de


Ações Programáticas Estratégicas. Área Técnica de Saúde da Mulher. Direitos
Sexuais e Direitos Reprodutivos: uma prioridade do governo/Ministério da Saúde,
Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas –
Brasília: Ministério da Saúde, 2005.

BROWN, Wendy. American Nightmare: Neoliberalism, Neoconservatism, and De-


Democratization. Political theory, v.34, n.6, 2006, p.690-714.

BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política


antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a


sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

DEUTSCHER, Penelope. “The Inversion of Exceptionality: Foucault, Agamben,


and ‘Reproductive Rights.’” South Atlanti Quarterly, v. 107, n. 1, p. 55–70,
diciembre, 008.DEUTSCHER, Penelope. Foucault's Futures: A Critique of
Reproductive Reason, ColumbiaUniversity Press, 2017.

HARVEY, David. A condição pós-moderna. 17. Ed. São Paulo: Loyola, 1992.

_______, David. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2005.

- 42 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

_______, David. O Neoliberalismo: história e implicações. 5. ed. São Paulo: Edições


Loyola, 2014.

LASWELL, Laswell, H.D. Politics: Who Gets What, When, How. Cleveland,
Meridian Books. 1936/1958.

NIELSSON. Joice. Graciele. Corpo Reprodutivo e Biopolítica: a hystera homo sacer.


Rev. Direito e Práxis. Rio de Janeiro, Vol. 11, N. 02, 2020, p. 880-910.

MATTOS, Marcela. Réu por apologia ao estupro, Bolsonaro será interrogado em


abril. Revista Veja. Política. Edição online [27/02/2018]. Disponível em:
https://veja.abril.com.br/politica/reu-por-apologia-ao-estupro-bolsonaro-sera-
interrogado-em-abril/. Acesso em 15 de dezembro de 2020.

MONTENEGRO, ÉRICA. ONU alerta para alto índice de gravidez na adolescência


no Brasil. Metropoles edição online [10/04/2019]. Disponível em: ONU alerta para
alto índice de gravidez na adolescência no Brasil (metropoles.com). Acesso em: 16 de
dezembro de 2020.

O GLOBO. Moro é o ministro mais bem avaliado do governo Bolsonaro; Damares


fica em 2º. Rio de janeiro: Grupo Globo, [09/12/2019]. Diário. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/brasil/moro-o-ministro-mais-bem-avaliado-do-governo-
bolsonaro-damares-fica-em-2-1-24126171. Acesso em: 16 de dezembro de 2020.
OSIS, Maria José Martins Duarte. Paism: um marco na abordagem da saúde
reprodutiva no Brasil. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 14(Supl. 1):25-32, 1998.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Fundo de População das


Nações Unidas (UNFPA). O estado da população mundial 2013: a maternidade na
infância. Nova York, 2013. Disponível em:
http://www.unfpa.org/publications/state-world-population-2013. Acesso em: 16 de
dezembro 2020.

ONU MUJERES. (2015). El Progreso de las Mujeres en el Mundo 2015-2016:


Transformar las Economías para Realizar los Derechos. Nueva York, ONU Mujeres.

PLANO de governo de Jair Bolsonaro, “o caminho da prosperidade” (2018).


Disponível em: Projeto Fênix (flaviobolsonaro.com). Acesso em 15 de dezembro de
2020.

PRADO, Eutério F.S. O caráter monológico da racionalidade Neoclássica. Revista


USP, Est. Econ. São Paulo v.26, n. ESPECIAL, p. 7-34, 1996. Disponível em:

- 43 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

http://www.revistas.usp.br/ee/article/viewFile/116802/114351. Acesso em:


02/03/18.

PRIETSCH, S. O. M. et al. Gravidez não planejada no extremo Sul do Brasil:


prevalência e fatores associados. Caderno Saúde Pública, v .27, n. 10, p. 1906-1916,
2011.

ROSANELI, Caroline Filla. COSTA, Natalia Bertani. SUTILE, Viviane Maria.


Proteção à vida e à saúde da gravidez na adolescência sob o olhar da Bioética. Physis:
Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 30(1), e300114, 2020.

RIBEIRO, Bruna. Taxa de gravidez adolescente no Brasil preocupa organizações


internacionais. O ESTADO DE S. PAULO. Emais. São Paulo: Grupo estado,
[02/03/2018]. Diário. Disponível em: https://emais.estadao.com.br/blogs/bruna-
ribeiro/taxa-de-gravidez-adolescente-no-brasil-preocupa-organizacoes-
internacionais/. Acesso em: 30 de agosto de 2021.

SHARFF, Christina. Gender and neoliberalism: young women as ideal neoliberal


subjects. Neoliberalism in question. In: SPRINGER; BIRCH; MACLEAVY (org.).
The handbook of neoliberalism. New York: Routledge, 2016. p. 217-226.

SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, n. 16, p.


20-45, 2006.

- 44 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

RACISMO E DISCURSO: A INTERDISCURSIVIDADE EM


PICHAÇÕES NOS BANHEIROS DE UNIVERSIDADES
PÚBLICAS

Mayara Cristina Aparecido Santos1


Rosemeri Passos Baltazar Machado2

Resumo: O racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como
fundamento, se manifestando através de práticas conscientes ou inconscientes.
Semelhantemente, compreendemos que o racismo discursivo transcende a questão
moral e subjetiva do indivíduo, mas emerge das relações interdiscursivas, dependentes
das formações discursiva (FDs) e da formação ideológica (FI)), dependentes do
trabalho da Memória. Por intermédio dos estudos da Análise do Discurso francesa
(AD), o presente estudo observou os aspectos da heterogeneidade enunciativa do
discurso racista, para isto, o corpus de pesquisa foi composto por pichações presentes
em universidades públicas e encontradas em banheiros entre os anos de 2016 e 2018.
O período de intenso debate político que precedeu as eleições presidenciais e a
intensificação da polarização direita/esquerda deram vazão para discursos mais
extremistas. A metodologia de pesquisa consistiu no levantamento bibliográfico e no
método qualitativo-interpretativista para as análises. Identificou-se nos escritos
aspectos relacionados às ideologias políticas alusão a movimentos históricos de
extermínio, incitações sexistas e homofóbicas. As pichações em banheiros são vias de
acesso aos padrões de intimidade dos indivíduos. O discurso que tem por alvo os
grupos minoritários encontra espaço nesses ambientes, onde os sujeitos, através do
anonimato, se expressam livre do que é considerado “politicamente correto”.

Palavras-chave: Racismo; Discurso; Pichação.

Introdução

O povo brasileiro se constitui por uma grande mistura de raças, ou seja, é


formado por grandes grupos étnicos. Contudo, mesmo com essa diversidade, ainda há
discriminações raciais, principalmente no que se refere ao negro e ao indígena. Por
serem oriundos de uma realidade desvalorizada e explorada de escravidão sentem as
mais diversas manifestações de racismo que ainda imperam no agir e no pensar do
povo brasileiro. Logo, é indubitável que na sociedade brasileira vem se tornando cada
vez mais aparente a necessidade de se discutir sobre o tema racismo. Por exemplo,

1 Estudante do curso de Especialização em Língua Portuguesa da Universidade Estadual de


Londrina (UEL) – mayyara.cristina@uel.br.
2 Professora no curso de Letras da Universidade Estadual de Londrina (UEL) –

rosemeri@uel.br.

- 45 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

uma pesquisa realizada pelo site Poder Data3 em novembro de 2020 aponta que 81% da
população considera que o Brasil é um país racista, todavia, por outro lado, apenas
34% admitem que têm preconceito contra negros. Com isso, pode-se identificar que
discutir o racismo no Brasil ainda é considerado um tabu. E, devido ao caráter velado
do racismo no Brasil, a busca de uma manifestação racista mais evidente motivou a
escolha do corpus desta pesquisa: as pichações em banheiros. Local onde, protegidos
pelo sigilo do anonimato, os indivíduos sentem-se livres na expressão do seu dizer.
Além disso, vale ressaltar que o racismo não se constitui um problema meramente
ligado à moral do indivíduo, mas se estabelece de uma forma estrutural, dando sentido
à reprodução de violência e de desigualdades. Segundo o pesquisador Silvio Almeida,
autor do livro Racismo estrutural, “O racismo é parte da estrutura social e, por isso, não
necessita de intenção para se manifestar [...]” (ALMEIDA, 2019 p.52).
Por conseguinte, os discursos racistas não se concebem apenas em dizeres
isolados em determinados contextos, mas carregam uma ideologia que os estruturam.
Nessa ótica, a Análise do discurso (doravante AD) contempla entendimentos
fundamentais para compreender esses discursos que nos rodeiam e como eles se
constroem. Compreendemos que as palavras mudam de sentido de acordo com a
posição ideológica de quem as emprega e, portanto, não existe uma neutralidade, pois
por trás de qualquer palavra que se escolha há um posicionamento ideológico. Logo,
o presente estudo busca compreender o racismo enquanto um fenômeno linguístico-
discursivo, e, orientados por essa teoria, contém um método de abordagem qualitativo-
interpretativista, isto é, elabora-se um dispositivo analítico, levando sempre em conta
os objetivos propostos. Além disso, seguindo os princípios da AD, tendo o discurso
sua base na materialidade histórica, a natureza da pesquisa será bibliográfica, visto que
não há como se compreender os fatos do passado sem que haja um levantamento de
dados bibliográficos.
No que concerne ao ambiente universitário, essa forma de manifestação
subversiva da linguagem possibilita o acesso a pensamentos de notório preconceito,
contrastante aos padrões morais aceitáveis de nossa época. Por intermédio das
pichações, é exequível a constatação de dizeres que não poderiam ser observados em
outros espaços, sobretudo, no espaço dos debates acadêmicos. Sendo assim, as
análises foram feitas por meio desses escritos. Realizados em um recorte temporal
entre os anos de 2016 e 2018 e extraídas de reportagens de diferentes jornais
eletrônicos que apuraram estes manifestos em regiões do Brasil. É importante lembrar
que no ano de 2018 ocorreram eleições presidenciais e a intensificação da polarização
entre direita e esquerda contribuiu significativamente para o surgimento de discursos
mais extremistas. Assim, considerando que os discursos são as principais ferramentas
para se compreender os processos ideológicos que levam o indivíduo à construção do
seu dizer, acredita-se que as especificidades oriundas dos estudos discursivos podem

3 Pesquisa realizada pelo site Poder Data em novembro de 2020. Disponível no site:
https://www.poder360.com.br/poderdata/81-veem-racismo-no-brasil-mas-so-34-admitem-preconceito-
contra-negros/. Acesso em 22 de abril de 2021.

- 46 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

fornecer respostas a questionamentos originários dessas materialidades, organizados


na forma de perguntas orientadoras da pesquisa, tais como: quais as relações
interdiscursivas presentes nesses discursos? Quais aspectos históricos e sociais
participam da formação discursiva de tais dizeres?
Com o intuito de responder tais questionamentos, este estudo tem como
objetivo principal identificar os aspectos de heterogeneidade discursiva que são
presentes no discurso racista, bem como analisar alguns possíveis efeitos de sentido
que se originam desses dizeres. Para tanto, se fará necessário atingir alguns objetivos
específicos, entre eles: refletir sobre os conceitos do gênero pichação, sobretudo a
especificidade das pichações nos banheiros e explorar os conceitos de
interdiscursividade, formação discursiva e memória discursiva, conceitos pertinentes
para análises. Pretende-se, com esse estudo, compreender como o racismo discursivo
se estrutura, por intermédio da análise das relações interdiscursivas. Tendo em vista
que, apesar do avanço que as discussões e os estudos sobre as questões étnico-raciais
tiveram nos últimos anos, ainda é possível perceber a permanência e reprodução dessas
ideologias retrógradas, principalmente em gêneros subversivos, tais como a pichação.

1 Bases para a reflexão – interdiscurso, sujeito e memória discursiva

Para atingir os objetivos deste estudo mobilizamos, principalmente, os


conceitos da AD de interdiscursividade, formação discursiva e memória discursiva,
conceitos que acreditamos serem pertinentes para as análises, tendo em vista os
objetivos propostos. Inicialmente, podemos entender que, enquanto a
intertextualidade preocupa-se em estabelecer elos entre textos anteriormente
produzidos, o conceito de interdiscursividade irá auxiliar em uma melhor compreensão
das relações dialógicas no nível discursivo, onde não são, necessariamente,
materializadas linguisticamente. Nessa discussão, Orlandi (1999, p. 31) contribui
trazendo uma característica primordial do interdiscurso e que é essencial para distingui-
lo do intertexto. Para ela, “é preciso não confundir o que é interdiscurso e o que é
intertexto. O interdiscurso é todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que
determinam o que dizemos”.
Portanto, o interdiscurso, ao contrário do intertexto, trabalha também com o
esquecimento, com aquilo que foi dito por outros em determinados momentos
históricos e já esquecidos. Nas pichações, por exemplo, faz-se presente uma história
que, apesar de não ser esquecida, é silenciada. Embora não necessariamente exista na
materialidade discursiva nenhuma referência à escravidão, esses dizeres estão
presentes. O negro só é considerado como negro através da sua relação ao branco, por
intermédio de um discurso colonizador que perdura, e pela imposição de um padrão
anteriormente estabelecido que ainda ecoa. Como menciona Orlandi (1999), as
palavras passam por um estado “anônimo” para que possam ressignificar nas nossas.
Nessa concepção, através da prática de uma leitura discursiva, não só o que é dito

- 47 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

ganha significação, mas também o que não é dito. Isso porque só uma parte do que
dizemos é acessível ao sujeito. Por trás do que é dito (ou não dito) emerge uma relação
interdiscursiva feita de enunciados anteriormente produzidos e esquecidos que assim
o determinam. Para Orlandi (1999):

Se tanto o interdiscurso como o intertexto mobilizam o que chamamos de relações de


sentido, [...], no entanto o interdiscurso é da ordem do saber discursivo, memória
afetada pelo esquecimento, ao longo do dizer, enquanto o intertexto restringe-se à
relação de um texto com outros textos. Nessa relação, a intertextual, o esquecimento
não é estruturante, como o é para o discurso. (ORLANDI, 1999, p. 32).

É pertinente lembrar que essas relações discursivas são dependentes de uma


ideologia. Para Orlandi (1999), a ideologia é importante, pois ela se materializa através
da linguagem e pode, também, agir como deformadora da mesma, ela é operatória e
não temática, pois opera através de nós, e é por ela que pensamos e agimos. Sujeito
e ideologia caminham juntos em AD, sendo assim, emerge, através desse
atravessamento ideológico, um sujeito interpelado também pela linguagem e pela
história, pois para produzir sentidos ele é afetado por elas. Orlandi (1999, p. 47)
propõe pensarmos o sujeito discursivo como “uma posição entre outras, um lugar
que ele ocupa para ser sujeito no que diz.” Isto é, uma posição-sujeito.
O ato de interpretar é o que atesta a presença da ideologia no discurso, ou
seja, não existe sentido sem a interpretação e não existe a interpretação sem o sujeito.
Diante de qualquer símbolo, o homem é levado a interpretar, e esse ato de interpretar
é naturalizado pelo indivíduo, que só se constitui como sujeito através de uma
ideologia. Como aludido, para se compreender a língua, é necessário observá-la
sempre em contato com a história. Na concepção de Orlandi (1999), a interpretação
não é “livre”, mas é garantida pela história, através do trabalho da memória, isto é,
toda a interpretação ocorre por intermédio do acionamento da memória discursiva.
O conceito de memória discursiva para AD difere do que tomamos por memória,
pois não se associa unicamente ao ato de recordar. A noção de memória, trazida por
Orlandi, comporta dois entendimentos fundamentais:

a) a memória institucionalizada (o arquivo), o trabalho social da interpretação onde


se separa quem tem e quem não tem direito a ela; b) a memória constitutiva (o
interdiscurso), o trabalho histórico da constituição do sentido (o dizível, o
interpretável, o saber discursivo). O gesto de interpretação se faz entre a memória
institucional (o arquivo) e os efeitos da memória (interdiscurso), podendo assim tanto
estabilizar como deslocar sentidos. Ser determinada não significa ser
(necessariamente) imóvel. (ORLANDI, 1999, p. 46).

Sendo assim, o discurso é onde a materialidade ideológica se concretiza. Nesse


sentido, insere-se o conceito de formação discursiva, isto é, o que vai delimitar os
espaços das relações discursivas, embora essas linhas sejam opacas e nem sempre

- 48 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

estáveis. Além disso, compreendemos por formação discursiva aquilo que afirma o
que se pode dizer dentro de uma formação ideológica dada e é definida através dos
interdiscursos que lhe dão possibilidade de existência. Nessa articulação, são
perceptíveis os conceitos de FI e FDs em operação conjunta. Para Brandão (1997), o
processo das FDs envolve um funcionamento parafrástico, isto é, lugar de
reformulação e retomada de enunciados. Compreende-se, portanto, que as FDs
envolvem um pré-construído, possibilitando que o sujeito conheça as evidências e os
objetos de seus discursos, em outras palavras, é um espaço de representação da
realidade que é assimilado pelo enunciador em seu processo de assujeitamento
ideológico. Na definição de Brandão (1997), uma FD é compreendida enquanto um:

Conjunto de enunciados marcados pelas mesmas regularidades, pelas mesmas “regras


de formação”. A formação discursiva se define pela sua relação com a formação
ideológica, isto é, os textos que fazem parte de uma formação discursiva remetem a
uma mesma formação ideológica. A formação discursiva determina “o que pode e
deve ser dito” a partir de um lugar social historicamente determinado. Um mesmo
texto pode aparecer em formações discursivas diferentes, acarretando, com isso,
variações de sentido. (BRANDÃO, 1997, p. 90).

Portanto, as FDs são intrínsecas a uma ou mais FI e interpelam os indivíduos,


determinando suas possibilidades de dizer. Para Brandão, o discurso é uma espécie
pertencente ao gênero ideológico e, portanto, a FI tem como um de seus
componentes, várias FDs interligadas. Na materialidade discursiva “Fora preta
sapatão4”, por exemplo, pode-se observar não só uma FD racista, como também uma
FD machista, ou ainda uma FD homofóbica. Essas FDs são perceptíveis não só pelo
o que é dito, como pelo que também é silenciado. Através do silenciamento, a título
de exemplo, pode-se, da mesma forma, perceber uma FD patriarcal e uma FD
colonial. Ainda que em nenhum momento haja referência à escravidão ou ao homem
branco europeu, devido ao nosso contexto sócio-histórico, esses dizeres se fazem
presentes. Embora esses dizeres não estejam inscritos na materialidade textual, através
da memória discursiva, são ativados. Além disso, o conceito de FDs assegura também
a interpelação e o assujeitamento do indivíduo em sujeito. Dessa forma, pela ótica da
AD, não cabe juízos de valores no que se refere aos discursos, ou seja, importa mais
o que é dito do que quem o diz. O conceito de FDs é ainda o que consente que os
falantes compartilhem, ou não, com os sentidos das palavras, originando sentidos
diversos. Os sujeitos discursivos possuem FDs diversas. Logo, por consequência
dessas relações, entendemos que um discurso não é homogêneo, mas sim,
heterogêneo a ele próprio.

4Pichação encontrada no banheiro da universidade do ABC em São Paulo. Disponível em:


https://exame.com/brasil/estudante-denuncia-pichacao-racista-em-banheiro-de-faculdade-
do-abc/ Acesso em 29 de novembro de 2021.

- 49 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

2 O que dizem as paredes: o racismo nas pichações de banheiros

Para Barbosa (1984, p. 194), o banheiro, através da produção de pichações,


“em sua sujidade, propicia manifestações inconvenientes se apresentadas em outro
lugar, sem limites aparentes de censura externa e acessível a todos, torna-se um palco
discreto de confidências.” Assim sendo, o banheiro é um lugar onde o sujeito se
desnuda, não só nas vestimentas, como também no que se refere ao seu psicológico.
Lá, é onde ele se revela e deixa extravasar seu pensamento nu e cru nas paredes.
Todavia, embora seja um lugar íntimo e particular, naquele instante, é também um
veículo de comunicação aberto que possibilita o exercício de um diálogo de amplo
alcance, tendo o poder de atingir diversos tipos de pessoas, que podem tanto
contrapor-se aos seus dizeres, quanto assentir com eles, proporcionando aos autores,
protegidos pelo sigilo do anonimato, o conforto e a segurança de saberem que não
estão sozinhos em seus posicionamentos ideológicos.
Uma das pichações encontradas e selecionadas em nossa pesquisa demonstra
marcas nítidas de um posicionamento político. Esse enunciado estabelece relações, por
exemplo, não só com período e com o contexto sócio-histórico em que foi produzido,
mas também com os atravessamentos ideológicos, com as relações discursivas e com
a posição social que o sujeito ocupou nesse discurso. Como podemos ver na imagem
abaixo:

Figura 1 – Pichação encontrada no banheiro da UEM


Fonte: Jornal eletrônico https://www.paiquere.com.br/uel-e-uem-tem-mensagens-racistas-
e-homofobicas-pichadas-em-banheiros/ Acesso em: 15/05/2021.
Transcrição: “Família acima de tudo, Deus acima de todos. Chega de viadagem. Vamos
exterminar gays e negros.”

Logo, diante da materialidade discursiva “família acima de tudo, Deus acima


de todos”, um dos efeitos de sentido é a percepção da semelhança do enunciado com

- 50 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

o slogan do então candidato à presidência do Brasil: Jair Messias Bolsonaro, pertencente


ao Partido Social Liberal (PSL) na época em questão. Esse sentido ocorre através da
identificação de um movimento intertextual parafrástico, ou seja, ao retomar o slogan,
o sujeito discursivo deixa transparecer sua concordância com as ideologias do
candidato, sendo assim, o discurso do político ecoa através de seu dizer. Em uma
perspectiva textual, o conceito de paráfrase é a construção de um texto elaborado
baseando-se em outro já existente, interpretando, assim, o texto original com as
próprias palavras. Nesse exemplo, o posicionamento político do indivíduo é
demarcado linguisticamente pela alusão ao slogan do candidato supramencionado.
Nessa circunstância, o sujeito renuncia a sua própria voz para deixar transparecer a voz
do outro. Como podemos comparar com o enunciado basilar, referido abaixo:
“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.”
Nesse exemplo, a relação entre enunciados se torna evidente na materialidade
linguística, entretanto, a AD propõe uma outra relação de paráfrase no nível discursivo,
sugerindo que as relações parafrásticas existam ainda que não marcadas
linguisticamente. Em outros termos, para Orlandi (1999), toda a atuação de
funcionamento da linguagem envolve um exercício tenso entre os processos
parafrásticos e polifônicos. Isso ocorre porque nenhum dizer é novo, todo texto é a
retomada de um outro texto. Assim sendo, segundo a autora, todo o processo de
criação compete em uma reiteração de dizeres já estabelecidos, isto é, “produz a
variedade do mesmo” (ORLANDI, 1999, p. 35).
Para a autora, os limites entre o mesmo e o diferente são difíceis de serem
traçados, isto porque os sentidos proporcionados por essa retomada podem deslocar-
se por intermédio da criatividade, pois ela é o elemento que promove o desvio das
regras, afetando os sujeitos na sua relação com a história e com a língua. Vemos nesta
pichação, por exemplo, que, ao substituir a palavra “Brasil” pela palavra “Família”, o
sujeito desloca o sentido do enunciado basilar (que ecoa a defesa de valores
tradicionais sobre o patriotismo e a religiosidade, comumente defendidos por uma
ideologia política de direita) e dele faz uso para impor suas próprias ideologias (a
imposição de um grupo minoritário acima de um bem coletivo, uma vez que o Brasil
é amplo e diverso, enquanto a família pode ser focalizada e seletiva). Por meio dessa
ruptura, observamos expresso não somente um posicionamento político, como
também uma valorização de um grupo social que o sujeito nomeia como família. Nesse
sentido, o indivíduo não só toma para si os valores expressos pelo atravessamento do
discurso do candidato Bolsonaro, como também pontua seus próprios valores,
elencando-os através da alteração do substantivo “Brasil” pelo substantivo “Família”.
Por conseguinte, o deslocamento da palavra “Brasil” pela palavra “Família”,
também revela marcas de uma FD patriarcal e uma FD eurocêntrica, o que é
evidenciado na materialidade discursiva, mediante ao enunciado que se segue: “vamos
exterminar gays e negros”. Logo, se torna nítido que a expressão “Família acima de
tudo” não se refere a qualquer família, mas a uma elaboração familiar específica. Há,
nessa concepção de família, um processo de supressão da figura do negro (nisso insere-

- 51 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

se também a mulher negra por associação) e do homossexual ao grupo que se


compreende por família. O silenciamento dessas figuras torna-se um elemento
participante na construção dos sentidos. Com a exclusão desses indivíduos, infere-se
que o conceito de família, proposto na frase, é composto por mulheres e homens
brancos. A noção que o enunciado retoma, e que ocorre através das FDs que o
sustentam, faz referência à família entendida pelo imaginário social como “tradicional”,
onde a figura do homem branco exerce uma função central e de notória importância.
Outro fator a ser pontuado, é a presença de um discurso religioso na frase
“Deus acima de tudo”, evocado por uma FD religiosa. Um dos efeitos de sentido
possíveis é que o Deus ao qual o enunciador se refere é o Deus cristão. Essa referência
ocorre através da compreensão do processo de enunciação, isto é, através da
compreensão, dada por nosso contexto social, de que a religião predominante no Brasil
é a religião cristã. Além disso, por interesse político, os discursos do candidato
Bolsonaro trouxeram (e ainda trazem) forte apelo aos valores da religião predominante
no país. Também é importante destacar que esse efeito de sentido só é possível
mediante às condições de produção, sendo assim, um mesmo enunciado não
provocaria equivalente sentido quando proferido em países que tenham a
predominância de outras religiões, por exemplo. Nesses casos, a palavra “Deus”
remeter-se-ia a uma outra construção ideológica. Além disso, a alusão à religião cristã,
no contexto brasileiro, se torna bastante significativa, visto que a religião foi um
importante instrumento utilizado no processo de subalternização do negro e do
indígena na época da colonização. Essa forma de imposição religiosa foi muito
significativa para o exercício de supressão da figura do negro, bem como contribuiu
para o apagamento das culturas e religiões matrizes dos povos africanos e indígenas.
Retomando as reflexões sobre o conceito de família tradicional, composta por
um homem e uma mulher brancos e seus filhos, compreendemos que esse conceito é
uma herança de uma sociedade colonizada e sustentada pelo patriarcado do homem
europeu, o que, por sua vez, ainda espelha na concepção de família em alguns grupos
da sociedade contemporânea, todavia, é importante lembrar que o conceito de família
não é unívoco. Essa presença estabelecida da imagem familiar europeia foi divulgada
por muitos anos no meio social e reforçada pela indústria midiática, pois a mídia
recorrentemente é espelho de uma camada da população que pertence a lugares sociais
privilegiados. A constante divulgação da imagem de supremacia racial desses grupos
reforça o posicionamento de exclusão de quem não é pertencente a essa norma
estabelecida. Almeida (2019) nos dirá que, de modo geral, a expansão comercial
burguesa e a cultura renascentista levaram à construção do ideário moderno filosófico
que tornou o homem europeu o homem universal. O homem construído por essa
filosofia moderna considerava todos os povos e culturas não condizentes às suas como
menos evoluídas, primitivas. Por isso, a figura do homossexual (uma figura que
subverte a imagem de força e virilidade, dominação e sexualidade) e a figura do negro
(marcada por características fenotípicas que se diferem das do homem europeu) são

- 52 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

imagens que se distanciam desse ideal e são, portanto, excluídas do círculo social.
Como podemos ver nesse outro enunciado abaixo:

Figura 2 – Pichação encontrada no banheiro da UEL


Fonte: Jornal eletrônico https://www.paiquere.com.br/uel-e-uem-tem-mensagens-racistas-e-
homofobicas-pichadas-em-banheiros/ Acesso em: 15/05/2021.
Transcrição: Haddad 13 (RISCADO) #Ele não (RISCADO) Morte aos LGBTQI+ e
afrodescendentes. Bolsonaro 2018 é a nova era. Tá com medo?

No ambiente do banheiro público, por ser um espaço reservado ao corpo, o


indivíduo sente-se livre na expressão de sua sexualidade. Devido a isso, não só as
locuções heteroafetivas, mas também as homoafetivas podem ser observadas, o que,
por sua vez, gera uma réplica de intolerância, em resposta aos dizeres expressos nas
paredes. Da mesma forma, os posicionamentos políticos antagônicos ao enunciado
aparecem riscados, como podemos ver na imagem acima, por exemplo. Isto recorre
ao fato de que o discurso é sempre constituído dialogicamente, ou seja, os enunciados
ressoam em outros enunciados, eles coexistem em uma prática dinâmica. Para Bakhtin
(1997), no processo de enunciação, ocorre a “compreensão responsiva ativa”, isto é,
não há um entendimento passivo, o ouvinte transforma-se em locutor, a partir da
interação com o “outro” falante.

- 53 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

Outro elemento a ser pontuado, principalmente quando em comparação com


a supramencionada figura 01, é que a figura 02 destaca-se pelas escolhas lexicais das
palavras “LGBTQIA+” e “Afrodescendentes”, isto é, por serem termos mais
aprovados e utilizados socialmente. A sigla LGBTQIA+, por exemplo, é uma sigla que
se refere a formas de orientação e gênero. É normalmente utilizada por movimentos
políticos e sociais, com o intento de promover a inclusão de diversas orientações
sexuais e identidades de gêneros. A sigla nasceu em 1994, primordialmente
representada pelas letras GLS (gays, lésbicas e simpatizantes) e tinha forte apelo
comercial. O S (simpatizantes) não permaneceu por muito tempo, uma vez que era
muito amplo e incluía até mesmo os héteros que apoiavam a causa. Em 2005, no XII
Encontro Brasileiro de Gays, Lésbicas e Transgêneros, a letra B (bissexuais) e a T
(travestis, transexuais, transgêneros) foram oficialmente acrescentadas.
Posteriormente, a luta por mais protagonismo das mulheres alterou a ordem da sigla,
passando de GLBT para LGBT. A busca por mais representatividade, levou também
a inclusão das siglas Q (queer), I (intersexuais) e o A (assexuados). A nomenclatura
também conta com o símbolo + que indica haver ainda mais gêneros e orientações
sexuais e permanece em constante mudança.
Da mesma forma, o termo “afrodescendente” é frequentemente utilizado para
se referir a indivíduos com origens africanas, com o intuito de diminuir o estigma
causado pela herança da escravidão. A nomenclatura passou a ser popularizada
mundialmente depois de uma conferência da ONU sobre racismo e xenofobia no ano
de 2001. A alcunha foi utilizada com o intuito de fugir do sentido pejorativo que a
palavra “negro” trazia, devido a sua utilização em contextos de exclusão. Seu uso foi
defendido por acabar com a possibilidade de uma tonalização (como as palavras preto,
pardo, moreno, por exemplo). Atualmente, a palavra passa a representar um grupo de
origem ancestral africana (independentemente do fenótipo). Entretanto, no Brasil,
estudos discutem que o termo não define a realidade brasileira e comprime a
diversidade étnica do país.
Portanto, embora haja um deslocamento por parte do enunciador, a partir
dessas escolhas lexicais, se tornam perceptíveis, nesse discurso, a presença de uma FD
antirracista e uma FD partidária ao movimento LGBTQI+. Isto porque, ao refutar
ideais que discordamos, estamos, ao mesmo tempo, os evocando em nossos dizeres.
Logo, ao lançar mão desses termos, o sujeito produtor do discurso expressa a
existência de um atravessamento ideológico do movimento antirracista e da anti-
homofobia, ainda que ele não seja adepto a estes. Através desse posicionamento
antagônico, o dizer de origem, por ele negado, é, ao mesmo tempo, recuperado e
reconstruído. Nisto, também se revela a natureza dialógica da linguagem: o embate
ideológico que é por ela refletido. Para Brandão (1996), sob as nossas palavras outras
palavras se dizem. Por uma só voz outras se fazem ouvir, todo o discurso é
constitutivamente atravessado por outros. A autora complementa:

- 54 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

Nessa transgressão articula-se o discurso com o seu avesso, o seu reverso na medida
em que “se tenta fazer aparecer ao sujeito, em sua fala, o que se diz, à sua revelia, à
revelia de seu desejo”. O discurso não se reduz, portanto, a um dizer explícito, pois
ele é permanentemente atravessado pelo seu avesso. (BRANDÃO: 1996, p. 54).

Outro elemento dialógico aparente é que o discurso racista expresso nas


pichações se ergue em oposição a um determinado grupo de pessoas com
características fenotípicas em comum, isto é, pertencentes a um determinado grupo
étnico. Ao lançar mão dessa prática, o indivíduo não só atua na exclusão do outro, mas
está, ao mesmo tempo, reafirmando a sua própria identidade. A busca pelo senso de
superioridade, através de uma prática de depreciação do outro e através do falacioso
mito de supremacia racial, ainda atua nos modos de construção da subjetivação de
alguns indivíduos. Para Van Dijk (2008), os princípios organizadores de um discurso
racista recaem justamente nessa relação de um sujeito para com o outro. Segundo o
autor, pode-se perceber, em todos os níveis de racismo discursivo (sonoros, visuais,
ações), as seguintes estratégias: “1. Enfatizam os aspectos positivos do Nós, do grupo
de dentro; 2. Enfatizam os aspectos negativos do Eles, do grupo de fora; 3. Não
enfatizam os aspectos positivos do Eles; 4. Não enfatizam os aspectos negativos do
Nós.” (VAN DIJK: 2008, p. 18).
Nesse processo dialógico, é notável que o racismo discursivo opera não só na
exclusão, como na afirmação de uma superioridade étnica em relação à outra. No dizer
expresso acima, por exemplo, vemos um enunciado que busca estabelecer um diálogo
com seu interlocutor, através de uma pergunta: “Morte aos LGBTQI+ e
afrodescendentes. Bolsonaro 2018 é a nova era. Tá com medo?”. Quem exclui uma
identidade está, ao mesmo tempo, reafirmando outra, isto é, o racismo transcende os
limites de uma questão moral, todavia, envolve igualmente o processo de uma
construção identitária. Para Silva (2012):

A identidade é marcada pela diferença, mas parece que algumas diferenças – neste
caso entre grupos étnicos – são vistas como mais importantes que outras,
especialmente em lugares particulares e em momentos particulares. (SILVA; HALL;
WOODWARD, 2012, p. 11).

Dessa maneira, a linguagem não só tem o poder de segregar e excluir, bem


como é responsável por demarcar e construir identidades. Nesse sentido, é importante
a abertura de novos espaços para o diálogo das questões étnico-raciais, visto que o
acesso ao conhecimento de novas realidades contribui para diminuir os preconceitos
e estigmas criados e socialmente compartilhados pelo senso comum. Estigmas estes
que, muitas vezes, distanciam-se do que é factual. O conhecimento dessas novas
realidades é importante não só para a compreensão do que é a identidade do outro,
mas também, porque, concomitantemente, estamos trabalhando na construção das
nossas.

- 55 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

Considerações

O intuito desse estudo foi observar as diferentes relações discursivas


encontradas nos escritos em banheiros de universidades públicas, que continham a
temática do racismo. Partimos da premissa de compreender o racismo como um
problema social de ordem estrutural e não voltado somente à moral do indivíduo.
Consequentemente, isso fomentou a adoção de um viés discursivo, visto que os
discursos ainda possibilitam a propagação do racismo em nossa sociedade. Igualmente,
se mostrou uma árdua tarefa, posto que os efeitos de sentido se deslocam entre os
sujeitos, sendo que até mesmo o próprio conceito de racismo também é uma
construção histórica e social.
Diante disso, a pesquisa teve como objetivo principal identificar alguns dos
aspectos de heterogeneidade discursiva presentes no discurso racista, bem como
analisar possíveis efeitos de sentido que se originam desses dizeres. Constatou-se que
o objetivo foi realizado, visto que os conceitos sobre heterogeneidade discursiva foram
explorados e analisados, estabelecendo-se relações entre os conceitos investigados e os
enunciados encontrados. É sempre importante destacar que, pela ótica da AD, esses
sentidos se desdobram e se deslocam, através das posições-sujeitos, das formações
discursivas e das condições de produção, sendo assim, estamos certos que nem todos
os efeitos de sentidos foram alcançados. E se por um lado essa característica do
discurso apresenta uma limitação de nunca se pode alcançar o todo, por outro lado,
essa mesma característica é o que garante a abertura de novas possibilidades, de
transformações e mudanças de perspectivas, emergindo novos vieses a serem traçados
e pesquisados.
Para atingir o objetivo geral, estabeleceu-se também dois objetivos específicos.
O primeiro foi refletir sobre o racismo, sobretudo no espaço universitário, através da
nossa materialidade discursiva e do nosso gênero trabalhado: a pichação de banheiro.
Esse objetivo foi concluído, quando pudemos identificar algumas das especificidades
nos enunciados encontrados que fazem menção ao próprio ambiente acadêmico. O
segundo objetivo específico foi explorar os aspectos dialógicos nos escritos, tais como
os intertextos e referências textuais e históricas. Esse objetivo também foi atingido,
uma vez que as análises foram elaboradas através dos conceitos propostos pelas
ferramentas teóricas que abordaram aspectos da heterogeneidade discursiva.
Identificaram-se elementos intertextuais, tais como a paráfrase e a alusão, por exemplo.
Algumas referências textuais a discursos políticos e históricos também foram
encontradas. Observamos uma menção aos movimentos de resistência das minorias,
devido às escolhas lexicais de alguns termos, tais como, LGBTQIA+ e
afrodescendentes, nomenclaturas criadas com o intuito de diminuir estigmas e
preconceitos.
Em suma, pretendeu-se, com esse estudo, compreender e discutir como o
racismo discursivo se estrutura, por intermédio da análise das relações interdiscursivas.
Notou-se que, apesar do avanço que as discussões e os estudos sobre as questões

- 56 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

étnico-raciais tiveram nos últimos anos, ainda é possível perceber a permanência e


reprodução dessas ideologias retrógradas, principalmente em gêneros subversivos.
Espera-se que, da mesma forma que os discursos possibilitam a divulgação e a
permanência do racismo em nossa sociedade, ele também propicie a criação de novas
realidades. E isso pode ocorrer através da abertura de espaços e convites a um genuíno
debate, bem como pelo o compartilhamento e a divulgação de informações que visem
diminuir esses insistentes estigmas e preconceitos frequentemente e infelizmente ainda
hoje reproduzidos.

Referências

ALMEIDA, S. L. de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BARBOSA, G. Grafitos de banheiro: a literatura proibida. São Paulo: Editora


Brasiliense, 1984.

BRANDÃO, H. H. N. Introdução à Análise do Discurso. São Paulo: Editora da


UNICAMP, 1997.

DIJK, T. A. V. Racismo e discurso na América Latina. São Paulo: Editora


Contexto, 2008.

ORLANDI, E. P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas:


Pontes, 1999.

SILVA, T. T. da.; HALL, S.; WOODWARD, K. Identidade e diferença: a


perspectiva dos Estudos Culturais. 12 Ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.

- 57 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

ENTRE FLORES E ESPINHOS: A ASSOCIAÇÃO NACIONAL


DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS E A “ESQUERDA
PUNITIVA”

Vinicius Henrique dos Santos1

Resumo: O objetivo deste artigo é discutir as propostas da Associação Nacional de


Travestis e Transexuais (ANTRA) para a promoção da cidadania no Brasil. Para tanto,
o trabalho analisa o dossiê publicado pelo movimento social: “Assassinatos e violência
contra travestis e transexuais brasileiras em 2020” (BENEVIDES; NOGUEIRA,
2021) e, à luz do conceito de interseccionalidade, idealizado por Kimberlé Crenshaw
(2002), busca questionar o alcance e a aplicabilidade das reivindicações de extensão da
reação punitiva estipuladas pelo grupo na resolução dos problemas sociais. A hipótese
do estudo é que o programa de ação da ANTRA se aproxima de uma postura que
Maria Lucia Karam (1996) denominou de “esquerda punitiva” e se afasta de um ideário
de transformação do ciclo de exclusões e violências que atinge essa parcela da
população LGBTI+, posição que pode ser revista a partir da reflexão das várias formas
de subordinação que resultam dos efeitos interativos das múltiplas opressões que
atravessam a sociabilidade do grupo, sobretudo, no acesso aos instrumentos da justiça
brasileira.

Palavras-chave: Interseccionalidade; Travestis; Violência.

Introdução

Este artigo produz uma análise sociológica do dossiê “Assassinatos e violência


contra travestis e transexuais brasileiras em 2020” (BENEVIDES; NOGUEIRA,
2021), documento organizado e publicado pela Associação Nacional de Travestis e
Transexuais (ANTRA). Ademais, promove reflexão crítica acerca das principais
reivindicações deste movimento social na elaboração de seu respectivo programa
contra as opressões em nossa sociedade.
O objetivo do texto é dar um diagnóstico da reação punitiva no tempo
presente, especialmente, marcado pelo discurso de militantes ligadas à ANTRA, bem
como apontar para as raízes dos problemas sociais que são pouco explorados pelo
grupo ao optarem pela ‘solução penal’. Também, busca indicar uma alternativa ética e
política para essas esquerdas democráticas embasada pela análise interseccional.
E é prudente explicitar, logo de início, que esses objetivos não se associam às
perspectivas de grupos “anti-trans”, que se unem para produzir críticas à direitos

1 Mestrando em sociologia através do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da


Universidade Estadual de Londrina (UEL-PPGSOC), e-mail para contato:
vinicius.henriquesantos@uel.br

- 58 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

conquistados pela população de travestis e pessoas transexuais, muito menos


promover a manutenção do que a ANTRA classifica como cissexismo2. Os objetivos
deste trabalho se associam à perspectiva do abolicionismo penal e da necessidade de
construirmos alternativas para a resolução de problemas sociais ou conflitos cotidianos
sem a interferência direta de aparelhos repressores do Estado.
Nossa hipótese é a de que o discurso do ativismo, somado à reivindicação de
uma parcela da população LGBTI+, reproduz a naturalização da violência e da retirada
de mais direitos e garantias dos grupos desprovidos de poder em nossa sociedade
quando defende o uso da justiça criminal na solução de problemas sociais. E que esse
problema (ou entrave) para avanços e transformações da sociedade podem ser evitados
com o uso da chave interpretativa da interseccionalidade, conceito proposto por Kimberlé
Crenshaw (2002), para a reflexão das várias formas de subordinação que refletem os
efeitos interativos das múltiplas opressões que atravessam a sociabilidade de mulheres
negras e travestis.
Essa postura pôde ser observada quando, durante a escrita deste trabalho,
viralizou nas redes sociais um vídeo em que um homem branco retirava uma travesti
negra do porta-malas de seu carro. Ela teve seus pés amarrados com uma corda, o que
impossibilitava seus movimentos. Posta de pé, recebe uma rasteira e cai no chão, a
corda que a prende agora servia de condução, o homem arrasta a travesti pelo
estacionamento de um residencial de casas até a presença de dois guardas municipais.
Prostrada no chão, a travesti tentava falar, mas é interpelada por acusações de furto
pela região da zona norte de Teresina, a capital do Piauí. Apesar do barulho provocado
pelas pessoas que acompanhavam a cena, o silêncio da polícia local pôde ser ouvido e,
mesmo com a movimentação da câmera, a omissão dos servidores municipais diante
da violência também pode ser assistida. Logo, a referida cena transformou-se em
notícias3: “Travesti negra é mantida presa em porta-malas, amarrada e agredida a
pauladas” (LACERDA, 2021); “Travesti é torturada dentro de porta-malas em
Teresina” (KER, 2021).

2 De acordo com a entidade: “O cissexismo pode ser compreendido como a organização


cistemática de ações, noções discriminatórias e inferiorizantes de maneira institucional e/ou
individual contra pessoas trans. A sua finalidade é afirmar que travestis, mulheres e homens
trans, pessoas transmasculinas e demais pessoas trans são seres inferiores, que deveriam ocupar
um lugar subalterno na sociedade” (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2021, p. 8).
3 Apesar de matérias jornalísticas serem um dos principais meios de comunicação para veicular

denúncias de violência, bem como, da omissão do Estado brasileiro frente à discriminações e


assassinatos contra a população de travestis e transexuais, vale a pena destacar uma diferença
linguística, já observada por Don Kulick (2008), no que se refere as formas de representar as
travestis imprensa. Enquanto ‘criminosa’, geralmente a agência da travesti é explicitada no
título da notícia, por exemplo: “Travesti agride homem e leva R$50,00” (AÇO, 2020), mas no
caso de vítima de um crime não há agente, assim como nas manchetes do caso mencionado.
Ao invés de trazer ao primeiro plano a seletividade da justiça, o racismo e a violência de gênero
que interagem mutuamente com a travesti, os títulos das matérias atribuem a tortura a um
objeto ou instrumento, mas não a pessoas.

- 59 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

Embora não seja possível captar a real intenção de quem fez o registro, seja
para denúncia ou mera gravação do acontecimento, o arranjo das imagens que formam
o vídeo não é supérfluo, ingênuo ou neutros, nem mesmo a posição de quem estava
produzindo as imagens com o celular nas mãos, carregada de consentimentos.
Longe de negar as alegações dos movimentos sociais de que houve omissão e
transfobia4 por parte das guardas municipais e dos Estados brasileiros, aproximamos
para oferecer suporte científico para utopias de transformação social que extrapolam
a esfera da justiça criminal. A ANTRA, rede de organização política e social de travestis
e pessoas trans, quando foi notificada sobre o caso, exigiu uma resposta imediata dos
aparelhos de segurança pública do município de Teresina, capital do Piauí, para
identificar e punir os envolvidos, inclusive, a travesti suspeita de furto, em nota declara
que:

É inadmissível a espetacularização da violência contra pessoas trans de forma pública


e aceita de forma naturalizada por quem assiste passivamente esse horror! Que ela seja
levada à justiça pelo seu erro, mas que tenha suporte diante de tamanha violência. E
que esses torturadores que aparecem no vídeo são denunciados, processados e
paguem pelo que fizeram. Tortura é crime! (LACERDA, 2021)

Neste sentido, a ANTRA afasta-se das tendências abolicionistas e de


intervenção mínima, em outras palavras, do movimento negro e da teoria crítica de
raça, que por muito tempo já vieram analisar o papel do sistema penal como um dos
instrumentos de manutenção e reprodução da dominação e da exclusão, sobretudo,
como um dos motores do encarceramento em massa da população afrodescendente
ou como a permanência de costumes escravistas na suspensão seletiva da liberdade de
descendentes de escravizados mesmo após a abolição (ALEXANDER, 2017).
A espetacularização da violência contra a população prisional de forma pública
e aceita de forma naturalizada por quem defende a criação de novas leis punitivas
também agenciam passivamente esse horror, que, se não é inadmissível, à luz da ciência
já pode ser considerado obsoleto na resolução de problemas sociais ou conflitos
cotidianos. E levar a referida travesti à justiça criminal na esperança de obter suporte
diante da violência é uma solicitação paradoxal, tendo em vista que ignora os fluxos
das avenidas identitárias que atingem as travestis de forma simultânea, sobretudo,
quando estão diante do sistema judiciário.

4 Optamos pela utilização do termo transfobia por se tratar de categoria amplamente utilizada
pelas travestis e pessoas trans participantes de movimentos sociais e por ser o mais usado pelo
movimento LGBTI+ no Brasil e no mundo para caracterizar o ódio e a aversão dirigidos a
travestis e transexuais. Mas, gostaríamos de mencionar que a adoção do sufixo "fobia" para
caracterizar qualquer modalidade de preconceito e discriminação sexual e de gênero parece-
nos limitada, já que reforça um discurso biológico e patologizante, quando se sabe que os
fundamentos das disputas de poder entre grupos diversos, inclusive sexuais, são claramente de
ordem social, política, cultural e econômica.

- 60 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

Para melhor observarmos essa relação, dividimos o nosso texto em três partes:
na primeira, recuperamos a síntese antipunitivista de Maria Lucia Karam (1996), a fim
de refletir sobre o papel da justiça criminal em nossa sociedade e os equívocos de sua
utilização na resolução de problemas sociais; na segunda parte, nos debruçamos sobre
o dossiê produzido pela ANTRA e analisamos seu conteúdo de modo a apontar o
fluxo de reações punitivistas ali presentes e enquadrar sua postura na expressão
cunhada por Karam de esquerda punitiva; na terceira parte, utilizamos os dados
fornecidos pela ANTRA para uma análise interseccional, afastando-se de tendências que
promovem a utilização do cárcere como saída, ilustrando as limitações de leis punitivas
sobre a realidade de travestis negras; encaminhando-se para as considerações finais.

1 – Os espinhos da ‘solução penal’

“Esquerda punitiva” é uma expressão cunhada por Maria Lucia Karam (1996)
para referir-se a setores da sociedade brasileira que reivindicam ideias progressistas e
igualitárias, mas, e, ao mesmo tempo, se interessam pela extensão da reação penal sobre
condutas tradicionalmente imunes de intervenção dos aparelhos da justiça criminal.
Apesar de parecer uma postura razoável, à luz da análise sociológica ela não é
coerente e não promove avanços na resolução dos problemas sociais. Pois, o papel do
sistema penal não é outro senão ser um dos principais instrumentos de manutenção e
reprodução da dominação e da exclusão, características da formação social capitalista
(KARAM, 1996, p. 79).
Além disso, em um passado não muito distante, nosso Brasil gestou uma
história intima com a escravização de índios, africanos e descendentes, fazemos parte
do último país das Américas a abolir a escravidão, sem discutir os efeitos do
escravismo, este que se enraizou em nosso país de tal forma que costumes, hábitos e
palavras foram por ele marcados, inclusive, o sistema judiciário (SCHWARCZ, 2019,
p. 27).
Tratou-se de um costume escravista o hábito de cercear a liberdade da
população negra a partir da senzala e de castigos físicos, acima de tudo, no uso das
prisões utilizadas a partir das ações legitimadas pelo judiciário, que, tributado por
proprietários rurais, favoreciam as camadas senhoriais e assim classificavam os
escravizados como culposos permanentes em qualquer circunstância (COSTA, 2010,
p.342).
No Brasil, quase dois terços da população carcerária é afrodescendente,
pesquisas relacionadas ao tema, publicadas em sites, revistas, jornais on-line, como a
seguinte, do portal R7 Notícias5, apontam que o rigor da Justiça Criminal com os
negros é maior em relação aos brancos, enquanto para o primeiro caso a medida

5DALAPOLA, Kaique. Negros representam dois terços da população carcerária brasileira.


2017. Disponível em: <https://noticias.r7.com/brasil/negros-representam-dois-tercos-da-
populacao-carceraria-brasileira-08122017>. Acesso em: 12 abr. 2017.

- 61 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

tomada é a prisão, o segundo tem mais acesso a penas alternativas, da população total,
812 mil presos, 64% são afrodescendentes, pobres e periféricos (DALAPOLA, 2017).
De todo modo, o interesse da ‘esquerda’ pela repressão à criminalidade,
utilizando os mesmos aparatos que serviram para reprimir os grupos que dizem
representar, se expandiu e se expande através da atuação de movimentos populares,
como a atuação de uma parcela do movimento feminista na busca de punições
exemplares para autores de atos violentos contra mulheres e seu encontro com a Lei
Maria da Penha.
Contudo, a recente produção literária e acadêmica já assinalou as limitações
práticas do que fora aclamado de conquista das mulheres no campo judiciário. Juliana
Borges (2019) e Carla Akotirene (2019) contribuíram através da crítica sociológica para
desnaturalizar e refletir sobre os reais efeitos do cárcere e da justiça perante os casos
de feminicídio no Brasil.
Ambas alinhadas pelo conceito de interseccionalidade, elaborado por Kimberlé
Crenshaw (2002), as autoras foram capazes de demonstrar que quando a violência de
gênero era atravessada de forma simultânea pelo marcador de raça, mulheres negras,
pobres e periféricas não eram contempladas pela lei implementada. O que
supostamente seria resolvido pelo Estado através do encarceramento – como a
“esquerda punitiva” propunha:

[...] se manifesta na inoperância das delegacias de atendimento à mulher aos sábados,


domingos e feriados, nos horários noturnos e madrugadas, períodos de maior
ocorrência de violências contra as mulheres negras moradoras de bairros periféricos;
redes de atendimento e centros de referência geralmente instalados longe dos
territórios vulnerabilizados, em prejuízo às rotas feitas pelas vítimas em busca de apoio
jurídico e suporte psicossocial. Tudo isto somado o fato de o sistema de notificação
ser denso e exaustivo, além de conduzido por profissionais que não conhecem a
política de atenção à saúde da população negra, encarando o problema de saúde como
sendo de segurança pública. (AKOTIRENE, 2019, p. 40).

Por se dedicarem ao estudo de temas como racismos, sexismos e o


encarceramento em massa, Borges (2019) e Akotirene (2019) não deixam de perceber
e evidenciar a concentração do sistema penal sobre os membros das classes
subalternizadas, principalmente sobre a população afrodescendente a qual pertencem
e compartilham símbolos de resistência.
Se por um lado, o pensamento de feministas negras tem contribuído para a
superação e autocrítica do uso do sistema penal como solução de problemas sociais,
reconhecendo a limitação de leis, seja para efeito prático ou para a realidade mulheres
negras e periféricas, a publicação do dossiê “Assassinatos e da violência contra travestis
e transexuais brasileiras em 2020” (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2021) mostra que o
mesmo não aconteceu com o pensamento de ativistas travestis e transsexuais.

- 62 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

2 – As flores e a reação punitiva

A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) é uma rede


nacional que articula em todo o Brasil 127 instituições que desenvolvem ações para
promoção da cidadania da população de Travestis e Transexuais6, entre elas a
publicação anual de informações relevantes sobre a realidade de ambos os grupos, em
especial, a mensuração dos casos de assassinatos e violência.
Esse levantamento é realizado desde o ano de 2018 e a publicação acontece em
forma de dossiê nos dias 29 de janeiro – o dia nacional da visibilidade trans. Segundo
a organização, o projeto serve como ferramenta de denúncia no país e nos sistemas
internacionais de proteção de direitos humanos. E é um dos principais instrumentos
de coleta, organização e disseminação de dados relacionados à situação das travestis e
pessoas trans no país (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2021, p.11).
Visto que questões relacionadas à população LGBTI+ não fazem parte do
quadro de levantamentos que estruturam os censos demográficos dirigidos pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), gestando um profundo
desconhecimento da população brasileira sobre sua população LGBTI+. Ademais, o
próprio movimento enfrenta problemas com a subnotificação:

Após a decisão do STF sobre a retificação registral das pessoas trans, nos chama
atenção a falta de marcadores de orientação sexual e/ou identidade de gênero nos
formulários de atendimento, ou seu correto preenchimento, especialmente nas
delegacias, hospitais e órgãos de atendimento às vítimas de violência. As pessoas que
tiveram seus nomes retificados serão lidas pelo Estado como sendo pessoas cisgêneras,
o que contribui ainda mais para o aumento da subnotificação dos casos e dificulta a
busca de informações, motivações relacionadas e outros padrões encontrados nos
assassinatos de pessoas trans. (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2021, p.53)

Segundo Lilia Schwarcz (2019, p.199), não mensurar ou não divulgar dados
sobre a realidade de determinadas populações é uma forma de entrelaçar duas posturas:
a de desconhecer e desdenhar. Neste sentido, se nas modernas sociedades
democráticas o policiamento das manifestações e da qualidade de vida é uma das
tarefas das mais importantes e que revela muito sobre a qualidade da democracia e da
cidadania experimentada pelos setores da sociedade, a ausência de discussões e
policiamentos das condições de vida das travestis e pessoas trans também podem
revelar muito sobre a qualidade da democracia brasileira.
Logo, a ausência de dados governamentais expressivos sobre a situação das
travestis e pessoas trans no Brasil, bem como, a subnotificação de suas respectivas
existências em casos de violência e assassinatos, demonstram a precariedade da
democracia experimentada por essa parcela da população LGBTI+. Já a presença dos

6Informações retiradas do site da entidade. Disponível em: https://antrabrasil.org/sobre/.


Acesso em: 12 jul. 2021

- 63 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

dados, levantados e fornecidos pelo próprio ativismo, indicam a capacidade da


ANTRA em contribuir na construção e na manutenção da democracia brasileira. 7
Entretanto, o mesmo não pode ser dito sobre as propostas de intervenção do
movimento sobre a realidade social. Distanciando-se das tendências abolicionistas e de
intervenção mínima, a ANTRA adota a postura da esquerda punitiva ao reivindicar ideias
progressistas e igualitárias para a promoção da cidadania de travestis e pessoas trans,
mas, e, ao mesmo tempo, se interessa pela extensão da reação penal sobre condutas
patriarcalmente imunes de intervenção dos aparelhos da justiça criminal.
Apesar do texto de Magô Tohon8 (2021) compor a epígrafe do dossiê9,
indicando que os caminhos para a mudança não se iniciam na responsabilização
individual do outro sobre os problemas que afligem a sociabilidade travesti, mas no
próprio esforço coletivo para superar vocabulários, práticas e pensamentos que
estimulam a transfobia. E promover reflexão sobre a agência da travesti em relação à
estrutura, ao instigar a possibilidade de transformar aquilo que nos deforma, visto que
se o pensamento colonial é a regra o pensamento fora dele indicaria a saída.
Contudo, o pensamento de Tohon (2021) não ilumina as reflexões de Bruna
G. Benevides e Sayonara Naider Bonfim Nogueira (2021) responsáveis pela
argumentação e organização das informações destacadas pela ANTRA ao longo do
documento. Sobre a necessidade de obtermos dados governamentais expressivos
acerca da condição das travestis e pessoas transexuais no Brasil, as autoras revelam
uma crença paradoxal:

Acreditamos que a criminalização da LGBTIfobia deveria potencializar o


enfrentamento da omissão dos estados para podermos ter um levantamento de dados.
Porém, isso acontece, fato que, mais uma vez, reforça que os estados não estão
interessados em enfrentar o problema da LGBTIfobia, seja ela institucional ou não.
Não querer levantar esses dados é uma face da LGBTIfobia institucional e, ao mesmo
tempo, demonstra um descaso frente à violência contra a população LGBT+,
manifestado pela dificuldade no reconhecimento dessa violência específica
(BENEVIDES; NOGUEIRA, 2021, p. 26).

7 O objeto de investigação da ANTRA nos dossiês são casos de violência e assassinatos contra
travestis e pessoas transexuais no Brasil. A metodologia utilizada para o levantamento é a
mesma utilizada pela Transgender Europe – TGEU, isto é, a pesquisa quantitativa, construída
a partir de dados coletados via sites jornalísticos e outros canais de comunicação como
WhatsApp, Facebook, Instagram e e-mails. A entidade reconhece a subnotificação dos casos,
o que significa dizer que os dados produzidos não conseguem refletir a realidade concreta
desses números no país.
8 Consultora de diversidade da ANTRA.
9 E não é apenas sobre responsabilização, mas o quanto estamos dispostas enquanto pessoas

a superar vocabulários, práticas e pensamentos. É menos sobre estrutura e mais sobre


disposição para deformar aquilo que nos deforma. O pensamento colonial não é uma exceção
ou um erro, mas a própria regra. É preciso riscar a navalha no chão. É daqui pra adiante. Não
estamos dispostas a negociar nossas vidas. Já ultrapassamos o limite do intolerável. Não devem
existir saídas fora da radicalidade. (TOHON, 2021, p.01)

- 64 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

Assim, ignoram o fato de que nenhuma reação punitiva, por mais correta ou
sistemática que seja, pode dar fim à impunidade ou à criminalidade de qualquer
natureza, afinal, este não é seu objetivo. A imposição da pena, resume a manifestação
de poder que é destinada a manter e reproduzir os valores e interesses dominantes de
determinada sociedade. Para isso, “[...] não é necessário nem funcional acabar com a
criminalidade de qualquer natureza e, muito menos, fazer recair a punição sobre todos
os autores de crimes o que resultaria no esperado levantamento de dados.” (KARAM,
1996, p. 82).
Distantes do pensamento feminista negro, a ANTRA percebe de forma
superficial a concentração da atuação do sistema penal sobre os membros das classes
subalternizadas, sobre as mulheres negras e descendentes de escravizados, apesar da
extensa bibliografia disponível em relação ao encarceramento em massa da população
jovem e afrodescendente.
Loic Wacquant (2008) define que a penalização como uma das formas do
neoliberalismo de lidar com problemas sociais; ao passo que legislações de trabalho e
proteção social são enfraquecidas e o investimento no sistema penal aumenta, deixa-
se para trás propostas de um Estado de bem estar social para um Estado penal.
Enfim, ao promover a distorção do papel do Poder Judiciário, articulando a
imagem de um bom magistrado burocrata, ao invés de um aparelho de manutenção e
reprodução da dominação e da exclusão, a ANTRA encontra-se incapaz de ver os
acontecimentos presentes, bem como de lembrar-se das lições da história - como a
‘operação tarântula’10.
Em relação ao histórico de violações por parte de agentes e trabalhadores da
segurança pública, seja no atendimento ou abordagem de travestis e pessoas
transexuais, seja no não reconhecimento das diversas formas de violência que enfrenta,
a entidade sugere:

Assim, é preciso garantir o devido atendimento em todas as delegacias por meio de


formações periódicas, para garantir a criação e o cumprimento de um protocolo de
atendimento às pessoas trans regras corretas de abordagem e revista, além da garantia
do emprego respeito e uso correto do nome social e da identidade de gênero das
pessoas trans em todos os momentos em que seja necessário qualificar as partes e nos
boletins de ocorrência (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2021, p. 29).

Essa adesão da ANTRA, comum em amplos setores da esquerda, à ideologia


da repressão, da lei e da ordem, e do interesse paradoxal no desenvolvimento das
polícias, ao passo que não estimula ou compartilha propostas de transformação social,
ainda que utópicas, indica que a entidade política comunga dos preceitos da esquerda

10Operação policial que teve início em 27 de fevereiro de 1987 na cidade de São Paulo. Seu
objetivo era reprimir e encarcerar travestis e trabalhadoras sexuais que transitassem em público
pelas ruas da capital sob alegações de crime por promover o contágio venéreo.
(CAVALCANTI; BARBOSA; BICALHO, 2018, p.180).

- 65 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

punitiva, termo que serve para diagnosticar o abandono dos ideais de transformação
social para a conformação da realidade, utilizando o sistema penal como recurso para
a resolução dos problemas sociais e na manutenção da ordem e do status quo.
A "descoberta" da ANTRA do sistema penal acontece em um tempo de
sentimentos de insegurança e medo coletivo, provocados pelo processo de isolamento
social e de ausência de convívio coletivo, assim, alia-se à decepção enfraquecedora das
utopias e contribui ao conservadorismo presente em nossa sociedade, que não abre
mão de um presente marcado por assassinatos diários de travestis e transexuais.
Segundo o dossiê, o Brasil lidera o ranking de países que mais matam travestis
e pessoas trans no mundo, 98% das vítimas de assassinatos globais são pessoas que
vivenciam o gênero feminino e oriundas das classes populares (BENEVIDES;
NOGUEIRA, 2021, p.15), realidade que necessita ser transformada, mas isso não
ocorrerá caso a saída seja, justamente, o que sustenta o poder, afinal:

[...] sob o capitalismo, a seleção de que são objeto os autores de condutas conflituosas
ou socialmente negativas, definidas como crimes (para que, sendo presos, processados
ou condenados, desempenhem o papel de criminosos), naturalmente, terá que
obedecer à regra básica de uma tal formação social — a desigualdade na distribuição
de bens. Tratando-se de um atributo negativo, o status de criminoso necessariamente
deve recair de forma preferencial sobre os membros das classes subalternizadas, da
mesma forma que os bens e atributos positivos são preferencialmente distribuídos
entre os membros das classes dominantes (KARAM, 1996, p.81).

3 - A favor da leitura interseccional

Segundo Audre Lorde, “[...] as ferramentas do opressor não vão derrubar a


casa grande” (1979 apud AKOTIRENE, 2019, p.23), assim, a luta do ativismo de
travestis e pessoas transexuais, se desejarem mudar a atual situação, não devem seguir
reivindicando o uso de aparelhos que, até este momento, demonstraram ser ineficazes
na resolução dos problemas sociais que lhes atravessam, pois eles pertencem às
próprias classes dominantes e servem para a manutenção e reprodução de seus
poderes.
Mas, a favor da Sociologia e utilizando o conceito de interseccionalidade, podemos
interpretar os inúmeros expedientes continuativos da violência de gênero, isto é, a
transfobia, atravessada pela raça e classe.

A interseccionalidade visa dar instrumentalidade teórico-metodológica à


inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cis-heteropatriarcado –
produtores de avenidas identitárias em que mulheres negras são repetidas vezes
atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe, modernos aparatos
coloniais. (AKOTIRENE, 2019, p. 14).

- 66 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

Seguindo o postulado de Kimberlé Crenshaw (2002), através da


interseccionalidade podemos observar a colisão das estruturas, a interação simultânea
das avenidas identitárias que, ao atravessar a sociabilidade de uma travesti negra
acusada de furto, como no caso mencionado na introdução, surgem entraves
específicos diante da estrutura social, como seu recurso à leis que a protejam ou a
própria guarda municipal.
Visto que a desigualdade inerente à formação social capitalista proporciona a
réus homens, brancos e heterossexuais melhor utilização dos mecanismos de defesa,
ao contrário da travesti negra acusada de furto, que se levada a “justiça”, como solicitou
a ANTRA, certamente, a repercussão sobre a mesma seria a retirada de mais direitos e
garantias, algo que repercute de forma muito mais intensa sobre as classes
subalternizadas, afrodescendentes e pessoas dissidentes da ordem de gênero
hegemônica.
É com as lentes da interseccionalidade que se faz possível antever os problemas
do sistema penal como recurso à resolução de problemas sociais e analisar os entraves
da aplicação de leis como a da criminalização da LGBTfobia, que tem dificuldades de
aplicação por negligência por parte das instituições, como também, do próprio
preconceito e conservadorismo que transitam em nossa sociedade. Impedindo que,
por exemplo, uma travesti trabalhadora sexual utilize os recursos da lei para fazer uma
denúncia, quando seu próprio trabalho permeia a “ilegalidade”.

As trabalhadoras sexuais não são criminosas, mas os estabelecimentos onde parte


delas presta serviços podem (ao menos em tese) ser enquadrados pelas agências penais
de controle do Estado (polícias, Ministério Público, Poder Judiciário). Assim como
cafetões, cafetinas e demais intermediadores da prostituição podem ser criminalizados,
não obstante a pesquisa jurisprudencial que realizei tenha demonstrado que, no Brasil,
poucos casos são analisados pelo Poder Judiciário (ROMFELD, 2018, p. 179-201).

Enfim, o conceito de interseccionalidade pode, além de demonstrar os erros


presentes e as limitações de propostas de intervenção na realidade, incentivar a
retomada da utopia e das lutas pela transformação social. Pois, para a realização dos
ideais igualitários, para que a população de travestis e transexuais acessem o ambiente
escolar e ultrapassem a expectativa de morte de 35 anos, devem estimular uma filosofia
que a assegure a todos o atendimento das necessidades fundamentais para a
sobrevivência e as mesmas oportunidades de acesso às riquezas e ao desenvolvimento
pessoal.
Há que se fazer de forma de estabelecer a síntese que incorpore os ideais
libertários, asseguradores da livre expressão e realização dos direitos da personalidade
de cada indivíduo. Mas, isso é uma tarefa que extrapola os objetivos deste artigo. O
que procuramos demonstrar com esses argumentos analíticos é que o rompimento
com a excludente e egoística lógica do lucro e do mercado há que ser acompanhado
pelo rompimento com qualquer forma de autoritarismo, incluindo, a reação punitiva.
E da promoção do direito à diferença, para que a solidariedade no convívio supere e

- 67 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

afaste a crueldade da repressão e do castigo, seja sobre a população de travestis ou


sobre nós, apontando para um exercício democratizado do poder, onde o Estado seja
tão somente um instrumento assegurador do exercício dos direitos e da dignidade de
cada indivíduo.

Considerações Finais

Enfim, nossa análise sobre os levantamentos estatísticos, as informações


organizadas, sobretudo, as argumentações do movimento de travestis e pessoas trans
acerca das dinâmicas de violência que atravessam a realidade de uma parcela da
população LGBT+ no Brasil apontaram para a ausência de diálogo entre produções
científicas e o conteúdo pragmático do dossiê em questão.
Especificamente, a ausência do conceito de interseccionalidade para interpretar
dados que se relacionam à sociabilidade de travestis negras em meio ao ciclo de
exclusões e violências que as atravessam resultou na equivocada reivindicação do uso
do sistema penal para a resolução de conflitos e problemas sociais, um retrocesso em
relação às pautas e formulações dos movimentos negros e ativistas negras que apontam
os problemas do encarceramento e do uso do sistema penal como saída.
Entretanto, retomamos nossa atenção ao texto de Magô Tohon (2021) que
compõe a epígrafe do dossiê. Ela afirma na abertura do trabalho:

E não é apenas sobre responsabilização, mas o quanto estamos dispostas enquanto


pessoas a superar vocabulários, práticas e pensamentos. É menos sobre estrutura e
mais sobre disposição para deformar aquilo que nos deforma. O pensamento colonial
não é uma exceção ou um erro, mas a própria regra. É preciso riscar a navalha no
chão. É daqui pra adiante. Não estamos dispostas a negociar nossas vidas. Já
ultrapassamos o limite do intolerável. Não devem existir saídas fora da radicalidade.
(TOHON, 2021, p.01).

Assim, se for para riscar a “navalha” no chão e seguir adiante, sem olhar para
trás, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais deve recordar-se de
acontecimentos históricos como a “Operação Tarântula”, que perseguiu, prendeu,
torturou e assassinou travestis e transexuais há apenas 34 anos, sob o aval da justiça
criminal. Inclusive, perceber que a pena, em essência, pura e simples manifestação de
poder — e, no que nos diz respeito, poder de classe do Estado capitalista — é
necessária e prioritariamente dirigida aos excluídos, aos desprovidos deste poder,
demonstrando que o aparato da justiça criminal sob o sistema capitalista não é
armadura, mas arma contra as próprias travestis que recorrem ao mesmo solicitando
defesa.
Então, além da necessidade de um diálogo entre as teorias do abolicionismo
penal e da teoria crítica de raça, parece-nos que uma das alternativas que poderiam ser
seguidas pelo ativismo trans é a sugestão de Boaventura de Sousa Santos (2002), a fim

- 68 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

de superar o pensamento colonial, que é a própria regra, o movimento engajado pode


encontrar saídas alternativas olhando para o sul, em que se encontram pensamentos
de defesa não-violenta de conflitos e a suspensão imediata de qualquer verba para a
construção de novas cadeias, bem como, a construção de um programa para a redução
da população prisional – ao contrário da lei que pune a LGBTfobia – rumo à
implementação de políticas educacionais, de acolhimento social sobre jovens e adultos
em situação de vulnerabilidade ou egressos do sistema prisional.

Referências

ALEXANDER, Michelle. A Nova Segregação: Racismo e encarceramento em


massa. São Paulo: Boitempo, 2017. 373 p.

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen Livros, 2019.

AÇO, Diário do. Travesti agride homem e leva R$50,00. 2020. Disponível em:
https://www.diariodoaco.com.br/noticia/0077652-travesti-agride-homem-e-leva-r-
50. Acesso em: 28 jul. 2021.

CAVALCANTI, Céu; BARBOSA, Roberta Brasilino; BICALHO, Pedro Paulo


Gastalho. Os Tentáculos da Tarântula: abjeção e necropolítica em operações policiais
a travestis no Brasil pós-redemocratização. Psicologia: Ciência e Profissão, [S.L.], v.
38, nº. 2, p. 175-191, 2018. FapUNIFESP (SciELO).
http://dx.doi.org/10.1590/1982-3703000212043.

COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. 5ª. ed. São Paulo: Editora da
Unesp, 2010.

DALAPOLA, Kaique. Negros representam dois terços da população carcerária


brasileira. 2017. Disponível em: <https://noticias.r7.com/brasil/negros-
representam-dois-tercos-da-populacao-carceraria-brasileira-08122017>. Acesso em:
12 abr. 2017.

BENEVIDES, Bruna G.; NOGUEIRA, Sayonara Naider Bonfim. Dossiê dos


assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020.
São Paulo: Expressão Popular, 2021. 136 p. Disponível em:
https://antrabrasil.org/assassinatos/. Acesso em: 12 jul. 2021.

BORGES, Juliana. Encarceramento em Massa. São Paulo: Pólen, 2019.

- 69 -
Eixo 11
Gênero, sexualidade e relações étnico-raciais

CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos


da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, [S.L.], v.
10, n. 1, p. 171-188, jan. 2002. FapUNIFESP (SciELO).
http://dx.doi.org/10.1590/s0104-026x2002000100011.

KARAM, Maria Lucia. A esquerda punitiva. 1996. Disponível em:


<https://we.riseup.net/assets/369699/74572563-Maria-Lucia-Karam-A-esquerda-
punitiva.pdf>. Acesso em: 24 nov. 2019.

KER, João. Travesti é torturada dentro de porta-malas em Teresina. 2021.


Disponível em: https://revistahibrida.com.br/2021/07/20/travesti-e-troturada-
dentro-de-porta-malas-em-teresina/. Acesso em: 28 jul. 2021

KULICK, Don. Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no brasil. Rio de


Janeiro: Editora Fiocruz, 2008.

LACERDA, Victor. Travesti negra é mantida presa em porta-malas, amarrada


e agredida a pauladas. 2021. Disponível em:
https://almapreta.com/sessao/cotidiano/travesti-negra-e-mantida-presa-em-porta-
malas-amarrada-e-agredida-a-pauladas. Acesso em: 30 jul. 2021.

ROMFELD, Victor Sugamosto. PROSTITUIÇÃO BRASILEIRA E COVID-19: a


difícil “vida fácil” das prostitutas em tempos de pandemia. In: ROMFELD, Victor
Sugamosto. Pandemia e crises: percepções jurídicas e sociais. São Paulo: Editora
Even, 2020. p. 01-12.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Sociologia das ausências e uma Sociologia
das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 63, p. 237- 280. 2002

SCHWARCZ, Lilia Mortiz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo:


Companhia das Letras, 2019. 273 p.

WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. São Paulo: Boitempo, 2008. 156 p.

TOHON, Magô. Epígrafe. In: BENEVIDES, Bruna G.; NOGUEIRA, Sayonara


Naider Bonfim. Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e
transexuais brasileiras em 2020. São Paulo: Expressão Popular, 2021. p. 1.

- 70 -
- 71 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

DRAMA SOCIAL E O CONTEXTO DA PANDEMIA DE


COVID-19 NO BRASIL

Gabrielle Maria Iank Paulo1

Resumo: No ensaio, desejo dialogar sobre a forma como os brasileiros têm


manejado o contexto da pandemia de COVID-19. De forma cronológica traço
paralelos entre a realidade experimentada por nós enquanto nação vivenciando uma
pandemia e as discussões realizadas pela autora Maria Laura Viveiros de Castro
Cavalcanti, que trabalha com o conceito de “drama social” em Victor Turner. Serão
articulados ao longo do trabalho alguns pontos chave na relação do Brasil com a
pandemia, como a campanha do Governo Federal “O Brasil Não Pode Parar”, a
não adesão ao isolamento social, e alguns desdobramentos da CPI da Pandemia.
Pensando nesses acontecimentos, destrincharei o conceito de “drama social”
trabalhado pela autora, considerando que ele ocorre em quatro partes: crise,
ampliação da crise, regeneração, e rearranjo ou cisão. Analisamos a realidade
brasileira, cronologicamente, dentro destes quatro momentos do “drama social”.
Após estas discussões, aponto possíveis caminhos para as questões apresentadas,
levando em conta especialmente os conceitos de “rearranjo, ou cisão” articulados e
a realidade que estamos enfrentando enquanto nação no contexto da pandemia.

Palavras-chave: COVID 19. Drama social. Victor Turner. Processo ritual. Brasil

Introdução

Após o início de 2020, a vida de todos os habitantes do planeta Terra passou


por uma mudança radical: a chegada da pandemia da COVID-19. As mudanças foram
trazidas primeiro por um choque inicial, quando começamos a ter contato com notícias
vindas dos primeiros países afetados pela doença, como a China. Após este choque,
mais notícias vieram e foram sentidas de formas diversas em partes diferentes do
globo. Mesmo levando em conta diferenças culturais ou discrepâncias econômicas
muito distintas, como especificamente, no caso do Brasil a COVID é uma doença
respiratória que assolou o mundo.
No presente ensaio, desejo dialogar sobre a forma como os brasileiros têm
manejado este momento tão específico, e tão cruel como o que estamos vivendo. Sei
que escrever enquanto passamos por um fenômeno como a COVID é uma tarefa
arriscada, porém, a considero necessária. Pensando nisso, farei um esforço para que ao

1 Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina.


gabrielle.iank@uel.br

- 72 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

longo do texto consiga traçar paralelos entre a realidade experimentada por nós
enquanto brasileiros vivenciando uma pandemia e as discussões realizadas por autores
como Roberto da Matta, Victor Turner e Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
pensando lógicas rituais, e conceitos como o de drama social. Após estas discussões,
tentarei apontar possíveis caminhos para as discussões apresentadas, levando em conta
os conceitos articulados e a realidade que estamos enfrentando enquanto nação no
contexto da pandemia.

1. Desenvolvimento

Inicio este texto fazendo um exercício de viagem no tempo, mais precisamente,


ao mês de março de 2020. Em nossas rodas de amigos, grupos do Whatsapp, conversas
pelos corredores da Universidade, ou qualquer outro espaço que frequentamos
rotineiramente, começaram a surgir pelas bordas dos assuntos do dia a dia notícias
sobre um vírus que estava assolando a cidade de Wuhan, na China. Na época, pelo
menos para mim, a ideia de vivermos algo parecido com o que via nos noticiários sobre
a cidade de Wuhan me parecia distante demais. Fosse pela minha ingenuidade, ou por
incredulidade, me peguei muito surpresa quando nossas atividades rotineiras foram
subitamente suspendidas por conta de algo muito maior. Lembro-me com clareza
quando, após duas semanas letivas, as aulas da Universidade foram suspensas. Quando
as giras no terreiro de Umbanda do qual fazia parte foram também suspensas. Quando
qualquer atividade que não fosse lida pelo Estado como “essencial” fosse suspensa.
Nossos ritos, dos mais ordinários aos mais importantes, foram suspensos. E é neste
lugar de “suspensão dos ritos” que nos encontramos, ao meu ver, na virada para uma
lógica liminar que se apresenta como real até hoje, um ano e meio após o início da
pandemia. Pensemos: como esta “suspensão de ritos” nos afetou, e está nos afetando?
Como as semanas de pandemia que foram se passando, se transformando em meses,
que se transformaram em um ano, nos afetou? Acredito que estas perguntas ainda não
tenham respostas elaboradas o suficiente para serem sanadas, porém, gostaria de
abordar neste ensaio alguns pontos que sinto que, enquanto brasileira, são importantes
demarcadores sociais de ritos que fazem parte do nosso ethos social.
Quando penso no conceito de “drama social” trazido por Victor Turner e
transposto pela antropóloga Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, em seu artigo
intitulado Drama, Ritual e Performance em Victor Turner (2013), consigo traçar algum
paralelo com o conceito e a lógica pandêmica na qual estamos inseridos. Explico, a
seguir. Segundo a autora, podemos dividir o drama social em quatro partes: crise,
ampliação da crise, regeneração, e rearranjo ou cisão. No primeiro momento, o da
crise, a autora coloca como a tal crise é reconhecida dentro do cotidiano, trazendo à tona
tensões que já estavam presentes dentro da lógica do dia a dia brasileiro. De fato, quando
pensamos por exemplo, na vulnerabilidade social à qual cidadãos brasileiros num geral
estão submetidos, uma crise sanitária como a pandemia da COVID só faz “escancarar”

- 73 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

inúmeros problemas sociais que enfrentamos historicamente. Um exemplo a ser


tratado pode ser como a necessidade de se fazer um isolamento social efetivo não teve
êxito no Brasil, principalmente em regiões periféricas em grandes centros. Para que
possa ilustrar melhor este exemplo, trago aqui uma fotografia tirada por Isaac Fontana,
no Terminal Rodoviário de Londrina Milton Gavetti, no dia 15 de março de 2021:

Figura 1: Fotografia tirada por Isaac Fontana, no Terminal Rodoviário de Londrina Milton
Gavetti, no dia 15 de março de 2021.
Fonte: https://www.instagram.com/p/CMc_tFajey9/

Como fica claro na imagem acima, muitas pessoas estão precisando sair de casa
durante a pandemia e não somente, estão precisando se expor ao vírus em um
ambiente onde a aglomeração é inevitável: o transporte público. Consigo associar isso
a muitos fatores, um deles sendo a não continuidade de um auxílio emergencial digno
no Brasil. Com o fim do auxílio emergencial ofertado inicialmente pelo Governo
Federal no início da pandemia, muitas pessoas que já estavam em situações mais
vulneráveis; justamente o público-alvo do auxílio, precisaram sair de suas casas para
“enfrentarem” o vírus. Ao longo do texto, falarei também de outras táticas utilizadas
pelo Governo Federal para que esta vulnerabilidade social do povo brasileiro ficasse
ainda mais escancarada conforme a pandemia foi avançando. Por hora, voltamos ao
“drama social”.
Após este momento de crise inicial, segundo a autora, temos a ampliação da
crise. Neste momento, os atores atingidos buscam acionar suas redes de apoio para lidarem com
o momento conturbado do qual estão passando. Para ilustrar este momento retorno a março
de 2020, como havia feito no início do texto. Com a Universidade temporariamente

- 74 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

fechada, o terreiro do qual fazia parte também, percebi que o momento vivido por nós
não passaria tão logo. Me lembro de uma conversa que tive na época com meu
companheiro, que recém havia conhecido, sobre como achava que o isolamento social
não seria algo tão passageiro assim. Levando em consideração as orientações dos
órgãos de saúde responsáveis, as notícias que acompanhamos incessantemente e o
pavor que estávamos diante de algo completamente desconhecido, eu e meu
companheiro tomamos a decisão de que, pelo menos provisoriamente, ele iria sair da
república que dividia com mais duas pessoas e iria vir morar comigo. Veja, fizemos um
cálculo de risco. Estávamos assustados. Meus pais moram em uma cidade distante de
Londrina, a meu ver então não fazia sentido para mim “cumprir isolamento” com eles.
Neste período ainda não tínhamos sequer orientações sobre como o coronavírus era
transmitido, tínhamos medo até de ir ao mercado fazermos compras. No momento de
ampliação da crise, nada faz mais sentido do que estar próximo aos seus, ou pelo
menos, o quão próximo uma pandemia permite que estejamos. E isto, por conta da
forma como o vírus é transmitido, foi nos tirado, de certa forma. Quantas histórias
não ouvi de amigos, de conhecidos, que estavam com medo de contaminar parentes?
Em meados de março e abril, muito ainda falávamos em “grupos de risco” em contrair
COVID. Tentávamos preservar pessoas mais velhas. Acho que, mesmo neste
momento no qual ver qualquer pessoa é arriscado, consigo perceber vislumbres de
como o brasileiro tem em si um quê de alguém solícito, que carrega uma lógica familiar
mais “alargada”. Lembro-me que ouvi do antigo síndico de um prédio onde morei
pelos meus primeiros anos em Londrina que ele não ia mais ao mercado com medo de
se contaminar. Outras pessoas estavam fazendo suas compras para ele. Neste exemplo,
fica claro como algumas redes de apoio foram construídas no início da pandemia para
que todos tentássemos ficar bem juntos, ou pelo menos, vivos.
O terceiro momento relatado pela autora seria, então, a regeneração. Nela,
alguns dos sujeitos envolvidos se mobilizam em prol de soluções e esforços de conciliação que implicam
sempre a realização de ações rituais e amplos rituais coletivos. Posso colocar este momento do
drama social no contexto da pandemia, por exemplo, nos esforços que as áreas médicas
e da saúde embargaram para procurarem tratamentos e medidas de contenção da
doença que fossem efetivas. Também cabe aqui falarmos dos esforços individuais que
devemos empregar durante a pandemia para o bem-estar coletivo, como por exemplo,
a utilização de máscaras e álcool em gel para higienização, ou também, o isolamento
social voluntário por aqueles que conseguem fazê-lo. Outro pacto social que, ao longo
do tempo, foi se solidificando foram as campanhas de vacinação contra COVID-19,
que iniciaram no Brasil no início de 2021.
A meu ver, aqui começam a surgir algumas problemáticas nesse entrelace que
me propus a fazer. Primeiro, pois, sabemos que conforme março de 2020 ficou no
passado, e hoje rumamos para um ano e meio de pandemia, não conseguimos manter
grandes esforços em prol da não propagação do vírus no Brasil. Aqui, cabem alguns
parêntesis: a pandemia não foi levada a sério como deveria ter sido pelos nossos
governantes. Conforme os meses foram se passando, era percebido por todos que

- 75 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

estavam atentos que cada vez mais pessoas estavam precisando sair do isolamento
social voluntário para trabalhar, consumir, ir à academia, confraternizar com os seus.
O esforço individual passou a não compensar mais, de certa forma. Cabe aqui
resgatarmos o exemplo do ônibus lotado trazido no início do texto, complementando-
o com outro: uma campanha, que hoje posso colocar como criminosa, promovida em
vídeo pelo próprio Governo Federal em 27 de março intitulada “O Brasil Não Pode
Parar”.

Figura 2: Foto de divulgação da campanha nas redes sociais com o slogan


#oBrasilNãoPodeParar.
Fonte: https://www.meioemensagem.com.br/home/comunicacao/2020/03/28/justica-
proibe-campanha-o-brasil-nao-pode-parar.html

Ao longo do vídeo da campanha é defendido o argumento de que as pessoas


não podiam parar suas vidas por conta da pandemia. De que trabalhadores informais,
autônomos, e diversos outros grupos, citados um a um, não poderiam parar. Segundo
a frase inicial da campanha “para mais de 40 milhões de brasileiros autônomos, o Brasil
não pode parar”. Me questiono: não seriam justamente esses brasileiros autônomos o
público-alvo do auxílio emergencial organizado pelo governo?

- 76 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

Figura 3: Trecho do vídeo da campanha #OBrasilNãoPodeParar, que foi tirada do ar no dia


27 de março, sete dias após sua divulgação.
Fonte: https://www.meioemensagem.com.br/home/comunicacao/2020/03/28/justica-
proibe-campanha-o-brasil-nao-pode-parar.html

Algo que me chamou especialmente a atenção no trecho que selecionei para


ilustrar a campanha foram justamente as escolhas de se mostrarem aglomerações e
pessoas sem máscara. Esses comportamentos, que parecem ser incentivados pelo
Governo Federal não só nesta campanha, mas também pelas inúmeras vezes onde o
presidente da República é visto também promovendo aglomerações sem a utilização
de máscara, só mostram a contradição das atitudes do Estado Brasileiro perante a
pandemia, mostrando como a estratégia utilizada por eles foi a do descaso.
Corro o risco aqui de ser injusta em minha análise, então, também serei
categórica: acredito que boa parte das pessoas que não conseguem se engajar em
medidas profiláticas efetivas contra a COVID-19 não o façam por má intenção. São
inúmeras pessoas que não conseguem se manter em casa em meio à crise sanitária,
como já comentei acima. Veja, voltamos ao mapa da fome. Segundo dados, 19 milhões
de brasileiros estão passando fome e 119 milhões estão em insegurança alimentar
(GOULART, 2021). Também é necessário lembrarmos que o Governo Federal tem
realizado um verdadeiro serviço de propagação do vírus em sua gestão da pandemia,
criando narrativas fantasiosas e anticientíficas sobre como o vírus funciona, além de
ter criado um auxílio emergencial ineficaz, e uma campanha de vacinação contra
COVID desorganizada. Hoje, no dia 26 de outubro de 2021, estamos com 605.808
mortos pela doença no nosso país (CORONAVÍRUS, 2021).

- 77 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

Pensando em todas estas questões, acredito que possamos tratar do quarto e


último “estágio” trazido pela autora dentro da lógica do “drama social”, o rearranjo ou
cisão. Esta etapa implicaria que os esforços da fase anterior trariam justamente uma nova
configuração social, onde o grupo conseguiria se re-ajustar socialmente caso a etapa anterior fosse efetiva,
ou se romperia, caso não o fosse. Quando penso que estamos cada vez mais lutando pela
vacinação em massa, pelo uso de máscaras e pelo isolamento social como um direito
dada a situação catastrófica que estamos enfrentando diante de um vírus que já tirou
quase meio milhão de vidas brasileiras em um ano e meio, tenho a impressão de que
estamos mais próximos da lógica de cisão do que da de reajuste.

2. Considerações Finais

Como afirmei anteriormente no texto, acredito que, levando em conta o


conceito de “drama social” trabalhado por Turner e articulado por Maria Laura
Viveiros de Castro Cavalcanti, enquanto sociedade nacional, estamos mais próximos
de nossa cisão do que de nosso reajuste para sairmos da “liminaridade ritual”. Daqui para
frente no texto, tentarei articular porque penso isso. Pensando em uma possibilidade
de reajuste temos, de um lado, algumas ferramentas como a CPI da COVID-19 que,
com muito penar, se aproxima de uma tentativa em escancarar a forma desastrosa
como a pandemia tem sido administrada pelo Governo Federal. Segundo dados de
notícia feita pelo Cultura UOL no dia 09/06/2021, e informações levantadas pela CPI
em si, a farmacêutica e fabricante de vacinas contra COVID-19 Pfizer teve pelo menos
81 e-mails enviados para o Governo Federal ignorados. Estas comunicações tinham
como objetivo a negociação de doses do imunizante para o Brasil. Este dado foi
comentado na rede social Twitter de um dos senadores e vice-presidente da CPI,
Randolfe Rodrigues:

- 78 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

Figura 4: O senador e vice-presidente da CPI da COVID, Randolfe Rodrigues comenta em


seu Twitter sobre os 81 e-mails da Pfizer ignorados pelo Governo Federal, no dia 9 de junho
de 2021.
Fonte: https://cultura.uol.com.br/noticias/25780_pfizer-foi-ignorada-pelo-governo-federal-
81-vezes-expoe-randolfe-rodrigues-a-cpi.html

Esta, e muitas outras informações que escancaram a gestão criminosa da


pandemia estão sendo tratadas durante a CPI. Outra, por exemplo, que é muito
frequente nas perguntas feitas pelos senadores aos convocados a depor na CPI é sobre
a existência de uma espécie de “gabinete paralelo” que controlaria as decisões de gestão
do combate a COVID no Brasil. Há um vídeo, que foi ao ar ao vivo no Facebook do
presidente da República no dia 8 de novembro de 2020, que prova a existência de tal
gabinete. O vídeo, que teve sua divulgação ampliada por meio do site de notícias
Metrópoles no dia 04/06/2021, mostra figuras como a médica Nise Yamaguchi (que
foi ouvida na CPI da COVID no dia 01/06/2021) defendendo amplamente o
chamado “tratamento precoce” que prevê o uso de medicações sem comprovação
científica de forma profilática contra a doença. Um dos momentos mais emblemáticos
do vídeo, a meu ver, é quando o virologista Paolo Zanotto indica a criação de um
“shadow cabinet” para o manejo correto da pandemia, colocando também que a
vacinação em massa no Brasil seria ineficiente por conta da “extrema miscigenação
que temos no país”.

Então, nesse sentido, a gente precisaria, a minha sugestão é essa, até enviei uma
mensagem ao Executivo, mandei a carta para o Weintraub, o Arthur, talvez fosse
importante se montar um grupo e a gente aqui poderia ajudar. Não vou fazer parte
desse grupo, porque eu não sou especialista em vacina, mas eu gostaria de ajudar o
Executivo a montar um ‘shadow board’, como se fosse um ‘shadow gabinet’, esses

- 79 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

indivíduos não precisam ser expostos, digamos assim, à popularidade (trecho retirado
do vídeo da fala de Paolo Zanotto, sobre a criação deste “gabinete paralelo”).

Figura 5: Trecho retirado do vídeo divulgado pelo site Metrópoles.


Fonte: https://www.metropoles.com/brasil/exclusivo-videos-mostram-ministerio-paralelo-
orientando-bolsonaro-contra-vacinas

- 80 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

Uma coisa fica clara para mim analisando o vídeo, e todas as outras
informações mencionadas no decorrer do texto: temos um Governo Federal altamente
negacionista lidando com uma pandemia. Vejamos, praticamente todos no ambiente
estão sem máscara. É um ambiente fechado. Bolsonaro fala, no trecho destacado, que
“ninguém será obrigado a tomar vacina”. Pensando nisso, me pergunto: como
podemos cogitar um reajuste no nosso “drama social” pandêmico tendo como
presidente do nosso país alguém que age da forma que Bolsonaro age?

No dia 29 de maio de 2021, houve manifestações nacionais para não só


tirarmos Bolsonaro do poder, mas também toda narrativa negacionista que o constrói.
No próximo dia 19 de junho, teremos outro ato. Não sei até que ponto irmos às ruas
será o suficiente para que haja pressão não só por um impeachment, mas por
responsabilizarmos a (falta de) gestão do atual presidente. Porém, mesmo assim,
considero justo tentarmos. Existe uma narrativa válida para combatermos a pandemia,
uma narrativa de reajuste: a de ouvirmos nossos epidemiologistas que recomendam o
uso de máscaras. A de conseguirmos manter o distanciamento social, com amplo apoio
socioeconômico por parte do Governo Federal para os que de fato precisam, com a
criação de uma renda básica universal. A de termos um plano de vacinação nacional
efetivo, que garanta uma imunização também efetiva. Ou, caso tudo isso falhe, que
nosso presidente seja punido pelos crimes contra a humanidade dos quais é acusado.
Existe, por outro lado, o caminho pela cisão que estamos rumando, com a forma como
a pandemia de fato tem sido encarada. Como escrevi no começo deste ensaio, acho
arriscado escrever sobre o que estamos vivendo enquanto vivemos. Me sinto meio que
no olho do furacão, tentando criar reflexões que podem, ou não, ter algum sentido.
São muitas notícias, muitas mais informações do que caberiam nesta breve reflexão
chegando a todo momento, porém, não acredito que haja uma saída com vida para o
Brasil enquanto tivermos um genocida no poder, nos levando diretamente para uma
cisão. Cisão esta que diferentemente do que Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
coloca implicar

um rearranjo e redefinições de posições e relações e, se malsucedidos, configuram o


rompimento do grupo aldeão, traduzido na sua sua cisão que segue as clivagens de
parentesco e na criação de uma nova aldeia organizada, contudo, segundo os mesmos
princípios estruturais. (CAVALCANTI, 2003, p.416)

Isso implicaria um verdadeiro caos. Será que sobreviveríamos à cisão? Será que
a cisão já não ocorreu? Com mais de 600 mil mortos, o Brasil vive um momento
nefasto de genocídio, etnocídio, e uma tentativa de higienização social dura e difícil de
engolir.
Para finalizar por ora minhas reflexões, trarei um trecho do texto de Adriane
Luisa Rodolpho, intitulado “Rituais, Ritos de Passagem e Iniciação: uma revisão da

- 81 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

bibliografia antropológica” para que pensemos: o que nos custará não estarmos
chorando nossos mortos pela pandemia de COVID-19?

[…] a morte não se relaciona simplesmente com um cadáver, com o fim de uma vida,
mas trata-se igualmente de uma nova condição, uma nova iniciação à vida eterna, ao
reino dos mortos (dependendo das crenças de cada grupo sobre o destino dos
homens). Os rituais de sepultamento igualmente simbolizam a separação do mundo
dos vivos; estes devem zelar pelo bom encaminhamento dos ritos segundo os
costumes do grupo. O não-cumprimento destas prescrições pode ocasionar
resultados, como o destino da alma que pode errar sobre a terra, ou ocasionar outros
riscos para o mundo dos vivos. (RODOLPHO, 2004, p.142)

Referências

CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Drama, Ritual e Performance em


Victor Turner. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v.03.06, p.411-440, nov.
2013.

CORONAVÍRUS. 2021. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Acesso em: 15


jun. 2021.

DAMATTA, Roberto. Individualidade e liminaridade: considerações sobre os ritos de


passagem e a modernidade. Mana, Rio de Janeiro, v.6, n.1, p.7-29, abr. 2020.

GOVERNO lança campanha 'Brasil Não Pode Parar' contra medidas de isolamento.
CNN, São Paulo, 27 mar. 2020. Disponível em:
https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2020/03/27/governo-lanca-campanha-
brasil-nao-pode-parar-contra-medidas-de-isolamento. Acesso em: 14 jun. 2021.

GOULART, J. Brasil volta ao mapa da fome e começa a chegar ajuda global. Veja,
30 abr. 2021. Disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/radar-
economico/brasil-volta-ao-mapa-da-fome-e-comeca-a-chegar-ajuda-global/. Acesso
em: 15 jun. 2021.

METEORO Brasil. NÃO É GABINETE PARALELO, É SHADOW CABINET.


YouTube, 5 jun. 2021. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=0HKAxkk84B8&t=113s. Acesso em: 14 jun.
2021.

PFIZER foi ignorada pelo governo federal 81 vezes, expõe Randolfe Rodrigues à CPI.
UOL Cultura, 9 jun. 2021. Disponível em:

- 82 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

https://cultura.uol.com.br/noticias/25780_pfizer-foi-ignorada-pelo-governo-
federal-81-vezes-expoe-randolfe-rodrigues-a-cpi.html. Acesso em: 14 jun. 2021.

REZENDE, Constança; LOPES, Raquel. Ambição política moveu 'gabinete paralelo'


de Bolsonaro, hoje principal foco da CPI da Covid. Folha de S. Paulo, São Paulo, 12
jun. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/06/ambicao-
politica-moveu-gabinete-paralelo-de-bolsonaro-hoje-principal-foco-da-cpi-da-
covid.shtml. Acesso em: 14 jun. 2021.

RODOLPHO, Adriane Luisa. Rituais, ritos de passagem e de iniciação: uma revisão


da bibliografia antropológica. Estudos Teológicos, São Leopoldo - RS, v.44, n.2, p.
138-146, 2004.

SARIS, Simoni. Usuários do transporte coletivo em Londrina reclamam de


superlotação. Folha de Londrina, Londrina, 15 mar. 2021. Disponível em:
https://www.folhadelondrina.com.br/cidades/usuarios-do-transporte-coletivo-em-
londrina-reclamam-de-superlotacao-3062858e.html. Acesso em: 14 jun. 2021.

- 83 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

PERCEPÇÕES DE PROFESSORES DA REDE ESTADUAL DE


ENSINO DO PARANÁ DA CIDADE DE CAMBÉ ACERCA DO
MODELO DE SALA DE AULA VIRTUAL EM MEIO A
PANDEMIA DO COVID-19

Julio Cezar Galdini2


Simone Tereza de Oliveira Ortega3

Resumo: Com o surgimento do novo coronavírus foi preciso repensar o modo de


ensinar e aprender. O formato proposto pelo Governo do Estado do Paraná via
Google Classroom e aulas transmitidas pela TV aberta pareciam uma solução eficaz.
Com o encerramento do ano letivo, surge o questionamento acerca da eficácia do
processo de ensino-aprendizagem nesse modelo de ensino, bem como o cumprimento
do papel social do Estado para a formação do aluno. Nesse sentido, este trabalho tem
como objetivo apresentar as percepções positivas e negativas de docentes da rede
pública de ensino de duas escolas da cidade de Cambé-PR. Para tanto, foi elaborado
um questionário a fim de saber se de algum modo, o tempo de serviço, o grau de
instrução, o conhecimento de ferramentas tecnologias contribuíram ou não para uma
prática mais eficaz no modo remoto neste cenário de pandemia. Em relação à eficácia
do ensino remoto ofertado, concluiu-se que não foi perfeito, mas dentro do atual
momento, teve significado na vida do alunado. Como também, foi possível perceber
o aspecto positivo das mudanças causadas devido a pandemia na educação, ao
promover transformações, reinventou o papel do professor, alterando a prática
docente e o sistema de ensino estagnado no tempo.

Palavras-chave: Pandemia; Ensino público; Tecnologias; Ensino remoto; Google


Classroom.

1 Introdução

Em meados do mês de março de 2020, o sistema de educação do Estado do


Paraná e outros governos do Brasil se depararam com a situação da pandemia causada
pelo Coronavírus (COVID-19). Em uma tentativa de preservação de vidas, o
Ministério da Educação (MEC) publica a portaria n° 343, de 17 de março de 2020 em
que regulamenta as instituições de Ensino a substituírem aulas presenciais pelo ensino
a distância (EaD) por um prazo de 30 dias ou, em caráter excepcional, podendo ser
prorrogada enquanto durar a pandemia (BRASIL, 2020). A partir desta data as aulas
no Paraná foram suspensas, a priori, acreditava-se que seria algo breve, porém logo foi

2 Mestrando - UTF-PR - Mestrado Profissional em Ensino de Ciências humanas, Sociais e da


Natureza.
3 Mestranda - UTF-PR - Mestrado Profissional em Ensino de Ciências humanas, Sociais e da

Natureza.

- 84 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

possível perceber que seria necessário um tempo maior para o retorno das aulas no
modo presencial. O Governo do Estado do Paraná investiu em aulas no modo remoto,
gravadas e disponíveis por aplicativos, sites da internet e transmitidas também pela
televisão em canal aberto a fim de proporcionar acesso ao ensino a todos os alunos da
rede. Além disso, foi disponibilizado o Google Classroom, sala de aula virtual para que
os docentes da instituição e os alunos pudessem trabalhar no modo assíncrono e assim
realizar as avaliações necessárias.
De início, a ideia parecia boa, pois não havia uma previsão de retorno ao modo
tradicional de ensino, todavia com o passar do tempo alguns contratempos foram
surgindo, por exemplo, a falta de preparo dos profissionais da educação quanto ao uso
da tecnologia; alunos despreparados para utilizar ferramenta tecnológica; e o fato de
parte da população somente ter acesso ao material impresso. Essa situação vivenciada,
nos trouxe como questionamento: as instituições públicas de ensino cumpriram o seu
papel social na formação do aluno, proporcionando um aprendizado eficaz em um
cenário de pandemia?
Assim, o presente estudo apresenta o resultado de um questionário aplicado
aos docentes de duas escolas estaduais do município de Cambé, no estado do Paraná.
Nesse sentido, busca-se entender quais foram as percepções positivas e negativas dos
professores da rede básica sobre o ano letivo de 2020 e as principais dificuldades
encontradas por eles no desenvolvimento do trabalho pedagógico. Também foi
delineado o perfil desses docentes, a fim de saber se de algum modo, o tempo de
serviço, o grau de instrução, o conhecimento de ferramentas tecnologias contribuíram
ou não para uma prática mais eficaz no modo remoto neste cenário de pandemia. Para
tanto, apresentamos um breve panorama sobre as tecnologias e educação em tempos
de Covid-19; os procedimentos metodológicos; a apresentação e análise dos resultados;
e por fim, as considerações finais.

2 Tecnologias e educação em tempos de Covid-19

A evolução digital possibilita experiências proveitosas especialmente no âmbito


educacional, porém a desigualdade existente entre as diferentes instituições em relação
ao conhecimento tecnológico é significativa. Pois, dentro da rede de ensino há colégios
com tecnologia em abundância, salas de aulas equipadas, laboratórios de informática e
por outro lado há aquelas instituições que têm uma rede de internet limitada.
Além disso, é preciso salientar sobre a falta de preparo de boa parte do corpo
docente das instituições para lidar com as tecnologias disponíveis, por falta de interesse
ou carência de cursos de capacitação tecnológica. Embora haja professores que
buscam, sem auxílio do governo, novos meios e ferramentas para tornarem suas aulas
atraentes, convidativas e mais próximas da realidade do dia a dia dos estudantes,
considerados nativos digitais, geração Z.

- 85 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

É evidente que dentro da rede de educação pública os profissionais necessitam


de formações tecnológicas, tendo em vista a rápida evolução das mesmas que
demandam formação continuada, levando em consideração que a inovação acontece
praticamente a todo momento, o que por vez pode proporcionar mudanças
significativas na prática do professor (MOREIRA; MONTEIRO, 2012). Com esse
domínio, esse profissional é capaz de desenvolver aulas com um novo formato, mais
atraente para o seu público, no caso, os estudantes.
Nesse sentido, o uso das ferramentas tecnológicas na educação deve ser visto
sobre a ótica de uma nova metodologia de ensino, que possibilita a interação digital
dos educandos com os conteúdos, ou seja, o aprendiz passa a interagir com
ferramentas diversas que possibilitam utilizar os seus esquemas mentais a partir do uso
racional e mediado da informação (CORDEIRO, 2020).
Com a suspensão das atividades letivas presenciais, por todo o mundo, houve
uma necessidade de estudantes e educadores migrarem para a realidade online. A
respeito dessa migração para o mundo virtual, Moreira, Henriques e Barros (2020)
salientam que

Houve a necessidade de transpor metodologias e práticas pedagógicas típicas dos


territórios físicos de aprendizagem, naquilo que tem sido designado por ensino remoto
de emergência. E na realidade, essa foi uma fase importante de transição em que os
professores se transformaram em youtubers gravando vídeo aulas e aprenderam a
utilizar sistemas de videoconferência e plataformas de aprendizagem. (MOREIRA;
HENRIQUES; BARROS, 2020, p.357)

Por meio do ensino virtual, o docente passa a ter uma nova função junto ao
papel de apresentar o conteúdo, assumem o papel de motivador, criador de recursos
digitais, avaliador da aprendizagem e dinamizador de grupos de interação online, em
atividades síncronas e assíncronas (SALMON, 2000).
A partir deste novo formato de educação, ficou mais evidente que a educação
que sustenta um conhecimento coletivo e uma aprendizagem colaborativa requer o
envolvimento profundo dos diferentes sujeitos que nela participam, a fim de que haja
colaboração entre os pares que sustentam os processos de inovação e criação do novo
conhecimento.
Não podemos deixar de destacar o empenho dos educadores da rede pública
de ensino que aprenderam um novo modo de ensinar dentro deste novo formato e
superaram suas dificuldades com as tecnologias, reinventando-se a fim de promover
um ensino significativo a seus educandos. A partir desse momento, abre-se
precedentes para novas formas de aprender e reaprender, possibilitando uma libertação
da sala de aula tradicional e possibilitando um mundo de oportunidades para os
aprendizes de todas as idades. Os educadores foram expostos a novas formas de
ensinar, novas ferramentas de avaliação que manterão em sua prática docente. E, os

- 86 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

educandos entenderam que precisam se organizar, dedicar e planejar para que possam
aprender no mundo digital (CORDEIRO, 2020).
Em aproximadamente um mês, todo um sistema de ensino on-line foi
desenvolvido. Nesse formato, os educadores das instituições que permaneceram em
trabalho remoto, assumiram o papel de avaliadores da aprendizagem utilizando a
plataforma de ensino assíncrona em que o educando deveria acessar diariamente a fim
de realizar atividades postadas pela mantenedora (Estado) e as atividades
desenvolvidas pelo professor da instituição de ensino. Cada aluno recebeu uma conta
de e-mail especial criada pelo Governo em parceria com a Google, permitindo a ele
acesso a sala de aula virtual (Google Classroom) entre outros aplicativos educacionais, sem
custo para o aluno e com acesso ilimitado.
O Google Classroom é uma plataforma utilizada mundialmente para o ensino a
distância e/ou mediação com metodologias ativas. A plataforma mediadora não
necessita de instalação nos aparelhos dos educandos e funciona de modo eficaz
independente do modelo e qualidade do aparelho usado pelo aluno. A ferramenta é
online, abriga professores, alunos e até mesmo a equipe gestora da instituição e permite
a integração de diferentes recursos facilitadores e educacionais disponibilizados pelo
próprio Google (GOOGLE CLASSROOM, 2020). Um dos diferenciais desta
plataforma é o sistema de Feedback que é oferecido para que o professor proporcione
o suporte necessário aos seus alunos nas atividades, desde o início até o fim do
processo formativo (JUNIOR; MONTEIRO, 2020).
Em meados do último trimestre do ano letivo de 2020, o Governo começou a
exigir que os seus docentes que estavam em trabalho remoto começassem a realizar
aulas síncronas por meio da plataforma Google Meet, a fim de promover uma
aproximação com o corpo discente e uma motivação, tendo em vista que o número de
abandono escolar estava cada dia mais expressivo. Mais uma vez o professor foi
obrigado a reaprender a educar, tendo que preparar aulas a serem realizadas ao vivo.
Evidentemente, não houve êxito no que foi proposto, pois os alunos já estavam
saturados, assim como o corpo docente. Porém um ponto positivo das atividades
síncronas foi a possibilidade da realização de aulas interdisciplinares que acabaram
tendo uma boa aceitação, em especial pelas turmas do ensino fundamental II.
Próximo ao fim do ano letivo de 2020 e após inúmeras reclamações dos
docentes e das equipes gestoras, o Governo do Estado do Paraná lançou o programa
‘Formação em Ação”, em que um grupo de estudos mediados por um professor da
própria rede no papel de formador iria ensinar os docentes a utilizar algumas
ferramentas tecnológicas para promover uma melhora na prática docente deles, tendo
em vista que o próximo ano letivo provavelmente se iniciaria no formato híbrido de
ensino. Infelizmente, o curso foi ofertado a apenas professores de quatro disciplinas,
com futuras intenções de expandir para as demais. O curso foi uma tentativa de reparar
a falha na formação tecnológica dos docentes, mas que podemos considerar um
paliativo, tendo em vista a baixa oferta de vagas.

- 87 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

3 Procedimentos metodológicos

Para fins deste estudo, foi realizada uma pesquisa de campo por meio de um
formulário online. O questionário foi elaborado contendo 12 perguntas, sendo a
maioria de múltipla escolha (8 questões) a fim de facilitar a participação dos
pesquisados.
As questões tiveram como objetivos conhecer um pouco sobre a formação
acadêmica dos participantes, assim como o tempo de serviço dos mesmos na educação,
o número de locais em que eles trabalham, a sua intimidade com tecnologias, a
metodologia de trabalho que os mesmos utilizam no dia a dia, as reflexões dos mesmos
sobre a eficácia do ensino nesse novo modelo, tanto para eles quanto para os alunos,
os aspectos positivos e negativos elencados por eles sobre a sala de aula virtual (Google
Classroom) e também quais foram as maiores dificuldades enfrentadas nesse estilo de
trabalho.
O questionário desenvolvido foi aplicado para docentes de dois colégios
estaduais da cidade de Cambé, no estado do Paraná. A pesquisa foi divulgada por meio
dos grupos de mensagens instantâneas (WhatsApp) oficiais dos colégios com a
colaboração das equipes gestoras destas instituições para a elaboração deste trabalho.
No total, 36 educadores responderam os questionamentos propostos, sendo estes de
áreas distintas do conhecimento e com tempos variados de atuação na rede estadual
de ensino.

4 Apresentação e análise dos resultados

Com base no questionário aplicado (em anexo), os seguintes dados foram


obtidos.
Em relação à primeira questão, sobre o tempo de serviço dos educadores, foi
possível perceber que a maioria (cerca de 16 pessoas) leciona a mais de 20 anos na rede
pública de ensino e um grupo significativo (13 pessoas) a mais de 10 anos.
É preciso evidenciar que parte desse grupo relata a dificuldade em utilizar a
tecnologia, por não fazerem uso frequente de aparelhos tecnológicos. Este grupo
também se destaca por conseguir se reinventar, pois há 20 anos trabalhando no modo
presencial e devido a um acontecimento inesperado, recomeçam de uma forma
totalmente diferente, exigindo do profissional muita dedicação e vontade de mudança,
tanto na educação do seu alunado quanto de si mesmo.
Sobre a segunda questão, o grau de formação dos professores atuantes nestas
instituições, foi possível perceber que 92% do corpo docente (33 pessoas) possui
algum tipo de formação além da graduação, mostrando assim o comprometimento por
uma busca de melhora na qualidade do serviço ofertado pelos mesmos. Dos
professores pesquisados, alguns possuem ao menos uma especialização (cerca de 20

- 88 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

pessoas) e há um número significativo de docentes com título de mestre/doutor (cerca


de 13 pessoas) atuando na educação básica.
A respeito da terceira questão abordada no questionário, sobre o número de
instituições em que o profissional da educação trabalha, foi possível perceber que mais
da metade dos participantes trabalham em mais de uma escola (cerca de 21 pessoas).
Na verdade, essa comutação é algo preocupante, pois o docente precisa transitar por
várias instituições ao longo da semana de trabalho, o mesmo acaba tendo um desgaste
maior e não criando vínculos afetivos com os participantes das instituições e com seu
alunado, fato que afeta negativamente a prática docente do mesmo e o aprendizado do
aluno.
A possibilidade de o professor atuar somente em uma escola proporciona a ele
uma maior qualidade de vida, assim como uma melhor prática docente. Quando o
docente permanece na mesma instituição ele cria um laço de intimidade com os seus
alunos e acaba por conhecer as necessidades daquele alunado. Ao possibilitar essa
permanência o docente consegue planejar atividades e objetivos a serem alcançados a
longo prazo, além de que se cria afinidades com o corpo docente e equipe gestora da
instituição que pode levar e elaboração de atividades multidisciplinares tendo em vista
a convivência diária. É possível notar que a atuação de um docente em somente um
local é benéfica tanto para ele quanto para os seus educandos em vários âmbitos, mas
que infelizmente é uma realidade para poucos docentes.
Com relação à quarta questão, sobre o uso prévio da sala de aula virtual pelo
professor, foi possível notar que mais da metade dos participantes (cerca de 20 pessoas)
nunca haviam tido contato com essa ferramenta (Google Classroom). Apesar disso, os
educadores que foram para o ensino remoto conseguiram dominá-la rapidamente.
A respeito da quinta questão do questionário, sobre a realização de algum curso
de capacitação para o uso da sala de aula virtual, foi possível perceber que a maioria
dos educadores da rede pública (cerca de 32 pessoas) não tiveram nenhuma formação
prévia para o uso das ferramentas utilizadas ao longo do ano letivo de 2020 para o
ensino remoto.
Em relação ao grupo de educadores que já tiveram formação para o uso da sala
de aula virtual (cerca de 4), foi possível perceber que se tratava de educadores atuantes
em redes privadas de ensino e de professores ativos na busca por novas tecnologias e
desenvolvimento de suas práticas docentes.
É preciso ressaltar que mesmo o Governo tendo criado um curso de formação
tecnológica quase no fim do ano letivo de 2020, o curso ‘Formadores em ação’ foi
falho devido ao pouco alcance de profissionais da rede atingido por ele, pois somente
foi disponibilizado para quatro das catorze disciplinas que a rede oferece. É preciso
também salientar que a Secretaria de Educação realizou pouquíssimas ações a fim de
colaborar com seus educadores. Ao longo do ano, vídeos de como utilizar as
plataformas e solucionar erros na mesma foram elaborados por professores e
compartilhados com os colegas.

- 89 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

Quanto à sexta questão, sobre a eficácia da sala de aula virtual no ponto de


vista do docente, mais da metade dos participantes (cerca de 19 pessoas) afirmam que
para a sua prática docente a sala de aula virtual (Google Classroom) se mostrou eficaz.
Podemos inferir que essa eficácia no que tange a prática docente se deu devido
às facilidades que a plataforma Google Classroom oferece ao educador. Por exemplo, a
facilidade na correção das avaliações promove um ganho de tempo para o professor;
o feedback individual que possibilita um acompanhamento mais humanizado da
aprendizagem do aluno; a possibilidade da postagem de conteúdos; e o fácil acesso a
eles a qualquer momento e de qualquer lugar e aparelho.
Por outro lado, não podemos deixar de expor que há um grupo significativo
(cerca de 17 pessoas) que aponta a ineficácia da plataforma no que se refere à prática
docente. Acreditamos que um dos motivos desse descontentamento com a plataforma
seja devido à falta de domínio total dela, assim como a falta de capacitação para o uso,
tendo em vista que o Google Classroom é utilizado mundialmente por inúmeras
instituições renomadas no mundo.
Quanto à questão sete, sobre eficácia do ensino utilizando a sala de aula virtual
no que se refere ao aluno, a grande parte dos participantes (cerca de 27 pessoas)
apontaram que o aprendizado foi parcialmente eficaz e apenas 3% (1 pessoa) dos
entrevistados acreditam que foi totalmente eficaz, por outro lado há também um
número expressivo de educadores (cerca de 8 pessoas) que apontam que o ensino
promovido ao longo do ano letivo de 2020 foi ineficaz para os alunos.
Com relação a oitava questão aplicada, sobre as maiores dificuldades
encontradas pelos docentes na utilização da sala de aula virtual, as seguintes respostas
foram obtidas;

N° de professores que Dificuldade apontada.


abordaram o tema
10 Comprometimento do aluno com o estudo e com a
organização da rotina de estudo dele.
9 Participação do aprendiz e seu engajamento nas aulas e
atividades online.
9 Dificuldades do docente em usar a tecnologia, a falta de
capacitação por parte do Governo.
6 Falta de equipamentos e infraestrutura para que alguns
alunos conseguissem estudar em casa.
3 Participação e acompanhamento da família no processo de
ensino dos filhos.
1 Interação efetiva do professor com o aluno
1 Excesso de informações presentes nas ferramentas de
trabalho do docente.
1 Comunicação com os alunos da educação especial.
Tabela 1 – Dificuldades encontradas pelos educadores no uso da sala de aula virtual.
Fonte: dados da pesquisa 2021

- 90 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

Com base nos dados obtidos foi possível perceber que a maior dificuldade
apontada se refere ao comprometimento dos educandos com os estudos, assim como
a participação deles nas atividades on-line. Levando em consideração que os alunos da
rede pública pouco tiveram acesso a esse tipo de ensino e que eles foram introduzidos
às pressas neste formato, podemos concluir que isso seria algo esperado e que o
número de alunos que não participaram chega até ser simbólico dentre todos os
acontecimentos e dificuldades do ensino remoto.
Com relação a presença e participação dos pais ao longo do último ano junto
a educação dos seus filhos, foi sim um fator de extrema importância. Fator este que
contribuiu para que o aluno tivesse um aproveitamento dentro do possível.
Infelizmente como apontado por parte dos participantes deste estudo, alguns pais não
se fizeram presentes, devido a fatores como: necessidade de trabalhar, por pertencerem
a grupos essenciais; falta de conhecimento científico/ saberes para auxiliar; e até
mesmo desinteresse na vida acadêmica do filho.
Outro ponto interessante que surgiu com essa questão é a falta de interação
entre professor e aluno, elemento comum nas atividades presenciais e no modo
síncrono, mas que infelizmente a sala de aula virtual não proporciona, pois devido a
mesma ser uma ferramenta para o uso no modo assíncrono.
Por último, um apontamento muito relevante foi sobre a dificuldade de utilizar
a plataforma com os alunos da educação especial, a dificuldade na comunicação, tendo
em vista que esse grupo de aluno precisa de um acompanhamento mais próximo e uma
maior atenção. Foi possível perceber que a plataforma não é pensada para este público
e não houve uma preocupação por parte do Governo em buscar uma outra ferramenta
que fosse mais eficaz na formação científica deste grupo de alunos e que atendesse às
suas especificidades.
Quanto a nona questão, sobre os pontos positivos da utilização da sala de aula
virtual pelos docentes, aponta como algo positivo o uso da tecnologia, pois possibilitou
manter o ensino e o contato com os alunos em tempos tão adversos como o de uma
pandemia. Um outro ponto interessante abordado foi as novas possibilidades que a
tecnologia trouxe para o educar em relação a sua prática, em especial, no que tange a
elaboração de atividades e do uso de ferramentas que as corrigem promovendo uma
maior economia de tempo do docente.
Sobre a questão 10, o distanciamento social foi um dos pontos negativos que
mais dificultou o ensino no último ano, em especial quando se trata da educação
especial que necessita de um maior apoio por parte do educador. As barreiras das
dificuldades para o acesso ao ensino remoto não foram superadas por muitos
educandos devido à falta de acesso à internet e até mesmo a falta de tecnologia
necessária para isso, visto que boa parte do alunado não tinha acesso anteriormente,
quiçá durante um período de recessão econômica e lockdown em que muitos pais
passaram a sobreviver do auxílio financeiro disponibilizado pelo Governo federal.

- 91 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

A respeito da questão 11, sobre o que o docente mais havia sentido falta na
utilização da sala de aula virtual, os seguintes dados foram coletados: uma boa parte
dos participantes apontou que sentiram falta da presença física do aluno, o contato
com eles. Esse dado nos permite concluir que uma parcela dos educadores não
conseguiu diferenciar ferramentas para uso no modo assíncrono e síncrono. O Google
Classroom foi desenvolvido para que o docente trabalhe sem o contato direto com o
aluno, no modo assíncrono, onde teoricamente esse distanciamento não seria um fator
negativo, mas como estamos lidando com um grupo de profissionais que nunca teve
esse tipo de prática, com certeza esse ponto seria o principal.
Com relação ao último questionamento realizado aos participantes deste
estudo acerca do uso das metodologias ativas durante o ensino remoto, foi possível
perceber que parte dos educadores buscaram por fazer uso da sala de aula invertida, o
que proporciona uma maior autonomia ao aluno, tendo em vista que ele se tornou
responsável por boa parte do seu aprendizado, e utilizaram a rotação por estações,
porém essa última se faz mais eficaz quando feita no modo presencial.

5 Considerações finais

Por meio da realização deste estudo, foi possível notar que a pandemia do
COVID-19 trouxe mudanças significativas na educação. Cenário em que ocorreu a
reinvenção do papel do professor, assim como do formato de sua prática docente e
até mesmo do sistema de ensino que vinha de certa forma estagnado no tempo. Nesse
sentido, houve a necessidade de aprender uma nova forma de ensinar e aprender que
provavelmente permanecerá após a pandemia. O aluno percebeu que é preciso ter
autonomia, organização e comprometimento quando se trata de estudar e que a
internet vai muito além de diversão, mas também de uma ferramenta muito rica
quando utilizada de forma correta.
Com relação a eficácia do ensino ofertado de forma remota pelo Estado do
Paraná pode-se concluir que não foi perfeito e nem o melhor, mas dentro do atual
momento foi algo que significou na vida do alunado. Não podemos deixar de destacar,
que os educadores foram um dos pilares de extrema importância para o ensino remoto.
Eles contribuíram para que o ensino fosse minimamente eficaz, mesmo com todos os
entraves que se sucederam ao longo do ano letivo de 2020.
O fato da não qualificação para uso das tecnologias por parte do Governo para
com seus colaboradores foi, com certeza, um dos fatores que mais contribuiu de forma
negativa para que o ensino remoto não tenha sido melhor e mais significante, mesmo
assim devemos enaltecer aqueles profissionais que se reinventaram e aprenderam
novas formas de educar.
O distanciamento social e a falta de contato em tempo real com o aluno foram
um dos fatores que mais se fez presente ao longo da pesquisa, mostrando que as
relações interpessoais são sim de extrema importância durante o processo de ensino-

- 92 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

aprendizagem e que educação não se faz sozinho. Por outro lado, foi possível perceber
que para um grupo significativo de alunos a autonomia desenvolvida ao longo deste
período foi algo enriquecedor.
É notório que mesmo tendo as tecnologias conquistado vários dos educadores
devido às suas facilidades, ainda há aqueles que não renunciam ao ambiente escolar e
da sala de aula tradicional para se sentirem totalmente realizados. Por mais que haja
investimentos em tecnologias voltadas para a educação, a figura do professor e o
contato presencial com o aluno sempre será um dos fatores principais para uma
educação eficaz.
Apesar de todos os fatores contrários para que esse modelo remoto de ensino
fosse algo significante é preciso apontar que, para boa parte, ela cumpriu o seu papel,
mesmo que seja de uma forma minimamente eficaz. Esse sistema possibilitou a quase
todos uma continuidade de suas rotinas em um momento tão ímpar da vida deles. Não
podemos deixar de citar que houve sim uma exclusão de uma parcela da população
que não teve acesso à educação, o que contribuiu para o aumento da desigualdade no
nosso país, mas dentre o momento vivido qual seriam as outras possibilidades?
Poderíamos ter tido um modelo mais abrangente e eficaz? Com certeza, mas se
ponderarmos que todo esse sistema foi criado em praticamente um mês, não podemos
negar sua eficácia, apesar das falhas.

Referências

BRASIL. Portaria Nº 343, de 17 de março de 2020. Dispõe sobre a substituição


das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de
pandemia do Novo Coronavírus - COVID-19. D.O.U 18/03/2020. Disponível em:
<PORTARIA Nº 343, DE 17 DE MARÇO DE 2020 - PORTARIA Nº 343, DE 17
DE MARÇO DE 2020 - DOU – Impre nsa Nacional (in.gov.br)>. Acesso em: 05
marco 2021.

BRASIL, Coronavírus Brasil. Disponivel em: https://covid.saude.gov.br/ acesso


em: 18 de março de 2021.

CORDEIRO, K. M. D. A. O Impacto da Pandemia na Educação: A Utilização


da Tecnologia como Ferramenta de Ensino. IDAAM. (Graduação em Pedagogia pela
UFAM) - Universidade Federal do Amazonas. Amazonas, 2020.

GOOGLE CLASSROOM. Google for education. [S.l.: s.n.], 2020. Disponível em:
< classroom.google.com>. Acesso em: 10.03.2021.

JUNIOR, Verissimo Barros dos Santos; MONTEIRO, Jean Carlos da Silva.


Educação e COVID-19: As tecnologias digitais mediando a aprendizagem em

- 93 -
Eixo 12
Pandemia e Ciências Humanas e Letras

tempos de pandemia. Revista Encantar - Educação, Cultura e Sociedade, Bom Jesus


da Lapa, v. 2, p. 01-15, jan./dez. 2020. Disponível em:
<http://www.revistas.uneb.br/index.php/encantar/article/view/8583/pdf>.
Acesso em: 10.03.2021.

MOREIRA, J. A., HENRIQUES, S., BARROS, D. Transitando de um ensino


remoto emergencial para uma educação digital em rede, em tempos de pandemia.
Dialogia, São Paulo, nº 34, p. 351-364, jan./abr.2020.

MOREIRA, J. A.; MONTEIRO, A. M. Ensinar e aprender online com


tecnologias digitais: abordagens teóricas e metodológicas. Porto: Porto Editora,
2012.

SALMON, G. E-Moderating. The Key to Teaching and Learning Online. London:


Kogan Page, 2000.

- 94 -
- 95 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

UMA PROPOSTA DE TEORIA DE FORMAÇÃO DE


PROFESSORES PARA O CONTEXTO DE UMA ESCOLA
INDÍGENA KAINGANG COM BASE NO MODELO
TRADICIONAL DE ENSINO-APRENDIZAGEM DOS
KAINGANG1

Damaris Kanĩnsãnh Felisbino2


Marcelo Silveira3

Resumo: Este trabalho tem como objetivo elaborar uma proposta de formação de
professores não indígenas que têm interesse em trabalhar com uma comunidade
indígena. A metodologia usada neste trabalho teve como base entrevistar professores
indígenas que atuam nas duas escolas indígenas da Aldeia Sede, da Terra Indígena
Apucaraninha (Tamarana-PR), sendo que uma atende a alunos da Educação Infantil e
Ensino Fundamental I e a outra atende os alunos do Ensino Fundamental II e o
Ensino Médio. Por ser uma escola diferenciada, a maioria dos professores que
trabalham nessas escolas não sabe como atuar em sala de aula com alunos indígenas e
começam a trabalhar conforme se tem trabalhado nas escolas da cidade, com base em
outra cultura. Por este motivo, tivemos interesse em elaborar uma proposta de
formação de professores voltada para esses profissionais, não só voltada à sala de aula,
mas a todas as áreas componentes da comunidade escolar.

Palavras-chave: Kaingang; Formação de professores; Proposta de trabalho.

Introdução

O ensino escolar dentro das terras indígenas tem sofrido avanços na área da
educação escolar indígena. Atualmente, há cada vez mais indígenas se graduando em
muitas instituições de ensino superior no Brasil.
Esse avanço tem início, principalmente, a partir da Constituição Federal de
1988, que começou a tornar menos marginalizados os povos indígenas em território
nacional, no que concerne sua situação social, educacional e sociolinguística. Isso não
significou, porém, que todas as agressões (denotativa e conotativamente falando) que
esses povos vêm sofrendo desde a chegada do europeu no continente americano
acabaram do dia para a noite.

1 Esta pesquisa é fruto do projeto de pesquisa Gramática, Bilinguismo e Multietnia, aprovado


pelo Conselho de Ética Envolvendo Pesquisa com Seres Humanos, da Universidade
Estadual de Londrina, sob o número 2.673.710.
2 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade
Estadual de Londrina. Contato: damariskaninsanh91@gmail.com.
3 Docente da Universidade Estadual de Londrina. Contato: celosilveira@uel.br.

- 96 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

Agressões culturais, como ser forçado a se adaptar aos valores culturais do


outro, se refletem na educação europeizante a que os povos indígenas foram
submetidos. Um pouco dessa educação foi sendo culturalmente absorvida; no entanto,
a luta contra a descaracterização cultural, bem como por uma educação indígena
diferenciada, vem incessantemente acontecendo por meio de legislações que dão
prosseguimento ao que prega a Carta Magna, com relação à educação, ao mencionar a
ministração de aulas, no Ensino Fundamental regular, em língua portuguesa e
assegurando “a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de
aprendizagem” (BRASIL, 1988, art. 210, §2) e à cultura, quando se menciona as
culturas indígenas, datas comemorativas de alta significação (art. 215, §1-2).
Assim, na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) (BRASIL, 1996), os indígenas são
mencionados nos seguintes aspectos: a) o uso da língua materna no Ensino
Fundamental e processos próprios de aprendizagem (art. 32, IV, §3; 35-A, IV, §3); b)
a recuperação das memórias históricas, reafirmação de sua identidade étnica,
valorização de sua língua e ciência (art. 78, I); c) programas integrados de ensino e
pesquisa para “fortalecer as práticas sócio-culturais e a língua materna” (art. 79).
Então, o Ministério da Educação, por meio do Conselho Nacional de
Educação, aprova a resolução 3/1999, que fixa Diretrizes Nacionais para o
funcionamento das escolas indígenas e dá outras providências. O “Referencial
Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI) enfatiza a necessidade de uma
construção curricular liberta das formalidades rígidas de planos e programas
estatísticos, e pautada na dinâmica da realidade concreta e na sua experiência educativa
vivida pelos alunos e professores” (BRASIL, 1999, p. 19).
Diante desse cenário, no Paraná, nasce, em 2002, a Comissão de Universidade
para os Índios (CUIA), que se constituiu como um espaço de “gestão
interinstitucional” e é ligada à política estadual de educação superior voltada para os
indígenas (AMARAL, 2019).
A CUIA vem atuando desde então em função de, em 2001, ter havido a
aprovação da Lei Estadual n. 13.134, de 18 de abril de 2001, que garantiu três vagas
para os indígenas em cada instituição estadual paranaense no ensino superior
(PARANÁ, 2001). Segundo Amaral (2019), essa lei foi alterada por influência de alguns
poucos líderes indígenas e gestores da Fundação Nacional do Índio (Funai), elevando
o número das vagas de três para seis. Com isso, estabeleceu-se a Lei Estadual n. 14.995,
de 9 de janeiro de 2006 (PARANÁ, 2006).
No início houve poucos candidatos; hoje são muitos para disputar seis vagas
por universidade, cujo total são 42 vagas distribuídas para as sete instituições estaduais
e mais 10 vagas para a Universidade Federal do Paraná (UFPR). Em 2019, o 19º
Vestibular Indígena contou com 750 candidatos (PARANÁ, 2019), e o 20º Vestibular
Indígena, em 2020, contou com 555 candidatos (PARANÁ, 2020) disputando as 52
vagas.
Então, a consequência da aprovação dessa lei foi a colação de grau de muitos
profissionais, que estão atuando atualmente em cada terra indígena (T.I.) do Paraná. A

- 97 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

maioria dos profissionais trabalha na área da educação, nas escolas estaduais das Terras
Indígenas. Esses tiveram a sua formação igual à dos profissionais que atuam nas escolas
estaduais localizadas fora da aldeia. Essa formação vem da Secretaria do Estado da
Educação (SEED), o que faz com que as escolas indígenas sigam o mesmo padrão das
demais escolas do Paraná.
A proposta deste trabalho é pesquisar bases teóricas sólidas para a formação
de profissionais que atuam nas escolas indígenas da Terra Indígena Apucaraninha,
localizada no município de Tamarana-PR. Realizamos a pesquisa gravando
considerações de profissionais da educação sobre como os alunos indígenas aprendem
e também sobre sua experiência de trabalho. Demos liberdade ao informante de falar
sobre esses temas, pois assim se sentiriam à vontade, sem ter que se preocupar com o
tempo ou o formato desse registro.
Ao final do trabalho, apresentamos uma proposta teórica para a formação dos
profissionais que atuarão nessas escolas ou que já estão atuando, para que possam ler
e refletir sobre as escolas indígenas, seu funcionamento e sua organização na realidade
cultural e sociolinguística dos Kaingang.

Os Kaingang e a questão educacional na T. I. Apucaraninha

De acordo com o IBGE (2010), no Brasil, existem 305 etnias indígenas com
274 línguas diferentes e com culturas diferentes umas das outras. Esses povos estão
distribuídos por todo o país, por todos os estados. Dentre essas diversas etnias, existe
o povo Kaingang, que é a terceira maior população indígena do Brasil, da qual a maioria
é falante da língua. A língua pertence ao tronco jê, ocupando pouco mais de 30 áreas,
reduzidas em relação a seu território original, distribuídas pelos Estados de São Paulo,
Paraná, Santa Catarina e Rio grande do Sul. A população hoje está estimada em cerca
de 50 mil indígenas Kaingang (IBGE, 2010).
O povo que estudamos é o que habita a T.I. Apucaraninha, localizada em
Tamarana-PR, com aproximadamente 2000 indígenas, com mais de 400 famílias,
residentes em quatro aldeias (Sede, Barreiro, Água Branca e Serrinha), sendo a maioria
da população falante da língua. Na T.I., existem três escolas estaduais, mas
estudaremos somente as duas localizadas na aldeia Sede, em que são matriculados mais
de 200 alunos em cada instituição.
A Escola João Kavagtãn Vergílio atende aos alunos da Educação Infantil.
Primeiramente, eles são alfabetizados na língua Kaingang do Pré ao 3º ano, que é a
língua materna deles. Além de aprender o Kaingang, do 3º ano ao 5º ano se inicia o
processo de aprendizagem do português. Com exceção da professora de educação
física, os demais professores desta escola são indígenas.
No Colégio Estadual Benedito Rokag atuam nove profissionais não indígenas
e nove indígenas, em todas as disciplinas da matriz curricular. As lideranças afirmam
que seria bom se houvesse mais indígenas formados para atuar em todas as áreas das

- 98 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

disciplinas, pois, ainda que misturados com não indígenas, não é suficiente para tornar
uma escola que seja de fato diferenciada, visto que os não indígenas não pensam como
os indígenas. Essa consideração das lideranças vai ao encontro do que dizem as
Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, quando falam da Educação
Escolar Indígena: “III – ensino ministrado nas línguas maternas das comunidades
atendidas, como uma das formas de preservação da realidade sociolinguística de cada
povo; […]” (BRASIL, 2013, III).
Em relação à educação, esta tem avançado quanto à legislação que a regula.
Atualmente existem leis que asseguram uma educação específica de qualidade e
diferenciada para os povos indígenas, garantida pela Constituição Federal de 1988 e
pela LDB proporcionando aos povos indígenas o direito de ter uma organização
particular na organização escolar. Um exemplo disso é o calendário específico que
contempla a realidade desse povo e que seja de acordo com a realidade dos alunos.
A partir disso, as escolas se organizam para criar os seus próprios currículos,
tendo como mais importante a oralidade e as histórias contadas pelos seus
antepassados, pois daí vem todo o conhecimento e a valorização dos ancestrais.
Assim, as escolas indígenas estão asseguradas para que façam uma escola que
seja de fato uma organização específica e diferenciada. Por a escola ser uma
comunidade indígena, cada sistema de ensino e cada não indígena que trabalhará junto
com essas comunidades deverá respeitar essa organização conforme ela é. Existem os
saberes tradicionais dos mais velhos, pois eles, sim, têm todo o conhecimento
adquirido pelos seus antepassados, que é transmitido de geração em geração para
manter vivo todo esse conhecimento. Esse conhecimento é a fonte de toda a sabedoria
dos Kaingang, presentes em suas organizações, costumes e crenças.
Também é necessário saber que nem todos os povos indígenas têm costumes
iguais, pois cada etnia tem suas particularidades. Uma comunidade Guarani, por
exemplo, tem um modo de pensar e agir diferente. É necessário estudar um povo antes
de entrar em suas terras para trabalhar, porque são povos de culturas diferentes das
dos não indígenas.
A maioria das pessoas acha que os povos indígenas são todos iguais, por
estarem todos sob a mesma classificação: índios, indígenas, porém não são, embora
em algumas situações eles se juntem, como para lutar pelos seus direitos, por exemplo.
Todos os indígenas têm a qualidade de fazer as coisas em coletividade; isso é próprio
dessa cultura geral. Por isso, cada indivíduo não indígena que trabalha ou quer trabalhar
em uma escola indígena não deve fazê-lo sozinho, mas pensar sempre nessa
coletividade, entre outros fatores.
É interessante pôr em destaque, também, a questão da diversidade linguística
e cultural das T.I., visto que há, por vezes, crianças vindas de outras T.I. onde não se
fala o Kaingang, e invariavelmente há integrantes de outras etnias que passam a habitar
o mesmo território e a frequentar as mesmas escolas. Isso aponta para a necessidade
de uma formação acadêmica dos docentes que dê conta da diversidade e que se

- 99 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

apresente com bases teóricas e categorias de análise que comportem pensar a educação
escolar indígena com parâmetros mais apropriados.

Uma proposta de bases teóricas para a formação do professor

Saviani (2007, p. 108) diz que “a prática é a razão de ser da teoria, o que significa
que a teoria só se constituiu e se desenvolveu em função da prática que opera […]”.
De acordo com esse estudo podemos dizer que tudo o que foi ensinado aos Kaingang
da atualidade é uma teoria. Uma teoria que não teve um registro, pois ainda não existia
uma escrita. Apesar disso, entendemos essa prática educativa longe de estar no nível
da doxa, que está ligada ao saber opinativo, mas, sim, atingindo o nível da episteme,
visto que é uma prática que vem dando certo há séculos para os propósitos da cultura,
o que pressupõe um “saber metodicamente organizado e teoricamente fundamentado”
(SAVIANI, 2007, p. 132).
Tudo era e ainda é feito com base na oralidade, com explicações de como fazer,
como agir, sendo, assim, transmitidas de geração em geração. A suas práticas eram
feitas no dia a dia e assim sobreviveram, sempre dependendo do que os indígenas mais
velhos falavam; essa é a forma como a educação acontece espontaneamente na T.I.
Apucaraninha. Isso comprova o que o autor fala, visto que estamos diante de uma
teoria que nunca foi escrita, mas que sempre foi valorizada pelos mais novos e assim
posta em prática na comunidade.
Cada uma das técnicas desenvolvidas numa cultura “supõe séculos de
observação ativa e metódica, hipóteses ousadas e controladas, a fim de rejeitá-las ou
confirmá-las através de experiências incansavelmente repetidas” (LÉVI-STRAUSS,
1989, p. 29).
O sucesso de uma cultura que subsiste no tempo, mesmo que não tenha ligação
direta com saberes científicos, aponta para a necessidade de aproximação dessa ciência
com os saberes populares e tradicionais, bem como da valorização destes, papel
atribuído à etnociência.
A cultura está diretamente ligada à educação, visto ser esta considerada parte
daquela (BRANDÃO, 1986); assim, sobre a educação, Mazzeu (2009) afirma que é
fundamental para o ser humano, pois, diferentemente dos animais, o ser humano não
tem uma herança genética no desenvolvimento de suas ações sobre a realidade. Sendo
assim, o ser humano carrega consigo toda a herança cultural que é fundamental durante
a sua vivência.
A fala a seguir mostra essa realidade do ensino nas escolas indígenas, na
educação infantil. É a fala do professor Jorge Ri͂r Nã de Almeida, alfabetizador dos
alunos na Educação Infantil. Atualmente é o professor do 4º ano:

- 100 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

Ensinamos todas a eles todas as coisas. Português, geografia, ciência e matemática,


todas entram no currículo, mas ensinamos a realidade da aldeia daqui. Sobre os nossos
rios, nossa mata, então damos a geografia e ciência, certamente... e a história também...
Damos aula sobre as marcas, as marcas tribais.4

A fala do alfabetizador corrobora o que mencionamos há pouco, quando


falamos da necessidade de uma formação que dê conta da diversidade cultural, visto
que, além de contemplar a ciência do não indígena, é necessário também contemplar a
do indígena, ambas sendo trabalhadas por meio da língua Kaingang e Portuguesa, que
colaborará para a formação de sujeitos bilíngues; eles que ainda terão aulas de língua
inglesa!
Notamos que, na alfabetização, os alunos, além de aprender questões
gramaticais da língua Kaingang, aprendem a segunda língua, que é o português, que
para eles é como uma língua estrangeira. Assim, o ensino na T.I. já engloba todas as
disciplinas, que são as atividades multidisciplinares. O professor, no decorrer de sua
fala, diz que, “Apesar de trabalhar a realidade dos alunos, também ensinamos sobre as
coisas de fora da aldeia”.
Windle (2018) diz que

Os princípios da educação intercultural cidadã (BYRAM, 2008) são os seguintes: (a) a


experiência intercultural ocorre quando pessoas de diferentes grupos sociais com
valores, crenças e comportamentos diferentes se encontram; (b) ser "intercultural"
envolve análise e reflexão sobre a experiência intercultural e a tomada de atitudes em
função dessa reflexão; (c) a experiência de cidadania intercultural ocorre quando
pessoas de diferentes grupos sociais e culturas se envolvem em atividades sociais e
políticas; (d) a educação intercultural da cidadania envolve a mediação da experiência
de cidadania intercultural; análise e reflexão sobre ela; e mudanças cognitivas,
atitudinais, comportamentais, de autopercepção e de relacionamento com os outros.
Esses princípios se juntam a dimensões pedagógicas da educação intercultural,
principalmente o desenvolvimento de uma orientação comparativa (justaposição) nas
atividades de ensino e aprendizagem; a criação de uma comunidade de ação e
comunicação; e uma ênfase em uma conscientização da construção de identidades
dentro de contextos sociais onde existem relações de poder desiguais (BYRAM, 2008;
GORSKI, 2008) (WINDLE, 2018, p. 976).

Percebe-se que a interculturalidade ocorre desde as séries iniciais, pois é o que


percebemos com a fala do professor alfabetizador. Segundo o professor, todos os que
trabalham se unem para pensar a melhor forma de trabalhar, e durante a pandemia
tudo tem sido dificultado para ensinar os alunos. Também relata que as atividades são

4 Tradução de: “Nén kar ki e͂g ag kanhrãn ti͂, português, geografia, ciência ka matemática vy͂ ki rãnh nhu͂ gé
my͂n. Ha e͂g ne sir tagki aldeia realidade to han ti͂ my͂r. E͂g goj ag to my͂r, e͂g vãnh ky͂ e͂g sir geografia ti ni͂m
ti͂ my͂r ka ciência... ka história ti my͂r... Ag rágrá ty͂ e͂g ag my͂ ni͂m ti͂ gé, marcas tribais e͂n”.

- 101 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

multidisciplinares, as quais estão sendo trabalhadas por temas, englobando, assim,


todas as disciplinas.
Para o autor, a interculturalidade acontece quando pessoas diferentes se
encontram; podemos dizer que isso traz muitos desafios para os professores não
indígenas e os alunos, numa comunidade. Com isso, as pessoas podem refletir e tomar
uma atitude, procurando uma metodologia com a qual trabalhar com a comunidade,
uma melhor atividade pedagógica a ser desenvolvida dentro da sala de aula.
A comunidade escolar deverá pensar a melhor forma de trabalhar a
interculturalidade para ter essa mediação de experiência, fazer as mudanças necessárias
para tomar atitudes e seu comportamento para ter essa autopercepção e um
relacionamento com todos. Essas orientações do autor são muitos importantes para
pensar uma escola intercultural.
Isso percebe-se na fala dessa professora de educação física, que diz:

O maior desafio enfrentado na escola é o diálogo entre o professor e os alunos, devido


a grande maioria dos falantes da língua kaingang, isso dificulta um pouco o
aprendizado e essa comunicação que a gente tem que ter um com outro. Devido a
minha área ser de educação física o qual desperta muita vontade em participar das
aulas, eu consegui achar vários caminhos para que isso pudesse ser vencido. Então
isso me trouxe muitas saídas por ser dinâmicos, ser prático e por todos a grande
maioria, quase 100% participaram (Ester Eloy de Sant’Anna, professora de educação
física no Ensino Infantil e do Fundamental I, na Escola João Kavagtãn Vergílio).

Com relação a isso, Yamashita ensina que

A escola que conhecemos é configurada historicamente como espaço para aprender,


um espaço físico no qual se levantam paredes a fim de auxiliar na organização das
crianças, dos saberes, das normas e das regras, os quais mediam [sic] os processos de
aprendizagem. É, sem dúvida, um lugar cheio de significados para as crianças e para
os professores, além de fortemente marcado pelo convívio que fomenta o
desenvolvimento humano (YAMASHITA, 2020, p. 34).

Ao citar essa afirmação podemos dizer que, diferentemente do que acontece


com os não indígenas, este modelo de escola foi imposto para os indígenas. Mesmo
que uma organização específica esteja garantida na constituição de 88, esta lei não foi
aplicada nas escolas, porque todas as escolas estaduais no Paraná devem agir de acordo
com as normativas da Secretaria de Estado da Educação (SEED-PR), desde a sua
administração e organização.
Muitas vezes não é reconhecido a essas instituições um modo de organização
próprio, e outras tantas vezes os professores têm que cumprir um horário; contudo, a
educação escolar indígena vai além do espaço físico, e a maioria dos professores fica
preso à sala de aula. Trabalhar fora dela é um desafio muito grande e que ainda deve
ser superado, não só para os profissionais não indígenas, mas também para os próprios

- 102 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

indígenas com formação em nível superior; além disso, durante a pandemia, tem sido
um desafio muito grande para a maioria dos professores, pois, nos relatos de suas falas,
a maioria deles relata a dificuldade do ensino remoto.
A história do ser humano está marcada por processo e ao mesmo tempo pelo
fato de precisar se apropriar da cultura acumulada pelas gerações passadas, porém ele
precisará criar novos objetivos que correspondam aos desafios de seu tempo
(MAZZEU, 2009). Ainda de acordo com o autor, nós, a comunidade escolar, devemos
proporcionar que isso aconteça no meio escolar para beneficiar a criação de novos
objetivos por parte dos nossos alunos.

Metodologia

Esta pesquisa usou o método da pesquisa-ação, pois foi concebida e realizada


associada a uma ação em busca da resolução de um problema coletivo; os
pesquisadores e os participantes da situação estão envolvidos de modo participativo
(THIOLLENT, 1997). Também foi usada a observação participativa, visto que um
dos pesquisadores faz parte da vida cotidiana das pessoas participantes e observa o que
ocorre, ouvindo-as e interrogando-as (VIEIRA, 1998; HAMMERSLEY;
ATKINSON, 1993).
Foram entrevistados professores indígenas da T.I. Apucaraninha e também
professores não indígenas a respeito das diversas situações em que esse profissional se
encontra quando trabalha numa escola indígena. Para gravar os relatos dos professores
foi preciso fazer uma pergunta para que começassem do início, em que eles falam para
qual série dão aula, sem perguntar o nome, porque esta comunidade de pesquisa tem
uma cultura diferente: não se pergunta o nome das pessoas, diferentemente do que
acontece com o povo não indígena. Os Kaingang se sentem incomodados em falar seu
nome.
Para os professores indígenas foram feitas muitas perguntas porque eles
sempre respondem uma questão por vez e sempre são diretos nas suas respostas, não
as desenvolvendo.
As perguntas foram:
1) Hã ri ke ag mỹ ã aula nĩm tĩ? (Para quais (séries) você dá aula)?
2) Ne ki ã ag kanhrãn tĩ? (O que você ensina para eles?)
3) Hẽ ri ken kỹ ag kanhrãn tĩ? Ke ma inh mỹ ag kanhrãn tag to tó! (Como eles aprendem?
Pode falar sobre isso?)
4) Ag mỹ fóg vĩ ki vẽnhránrán tĩ? (Eles aprendem o português?)
5) Ag mỹ kanhrãn tỹ mrãnh ke tĩ, ag mỹ komẽr hã kanhrãn tĩ? Ã mỹ ne tugrĩn ke nẽ? (Eles
aprendem muito rápido ou demoram a aprender? (Por que você acha isso?)
6) Ãjag pedagoga fi ãjag mỹ hẽri ke tĩ, tag to? (A pedagoga de vocês fala o que sobre isso?)

- 103 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

7) Ẽg vĩ ki ag alfabetizan e mũ mỹn pré tá hã vỹ 3º tá krỹg e mũ mỹn. Kỹ ag hẽ ri ke tĩ? Ẽg vĩ


ki alfabeto tóg tỹ ũ nã kar kỹ fóg vĩ ki ke gé. Kỹ ag hẽ ri ke tĩ? (Eles são alfabetizados
primeiro na nossa língua do Pré ao 3º ano, certamente. Em nossa língua o alfabeto
é outro e o português também. Então, como eles fazem?)
8) Ẽg jykre ki ag ne ki kanhrãn tĩ? (O que eles aprendem sobre a nossa cultura?)

Estas foram as perguntas feitas para alguns profissionais indígenas que atuam
nas escolas indígenas da T.I. Apucaraninha, para dar uma visão geral sobre o que é
ensinado nessas instituições, para, então, refletir sobre como seria a proposta de teoria
para a formação de professores.
Já as seguintes perguntas foram feitas para os professores não indígenas:
1) Qual foi o maior desafio enfrentado quando começou a
trabalhar na escola indígena?
2) Quais as diferenças encontradas na escola indígena em relação
às escolas de branco?
3) Como os alunos indígenas aprendem?

Com relação às entrevistas, diferentemente dos professores indígenas, os não


indígenas deixaram se levar para além das perguntas, colocando tudo que tinham que
falar sobre os questionamentos feitos. Como sabíamos que eles falariam mais,
dissemos que era para ficarem à vontade para gravar o áudio porque essas perguntas
eram só para direcionar a fala deles.
A escolha por entrevistar professores indígenas e não indígenas teve razão de
ser pelas diferentes visões que têm a respeito da cultura indígena e também para
contemplar prováveis visões políticas diferentes, visto se tratar de pessoas com
ascendências diferentes, ligadas a diferentes relações de poder que sempre existiram
entre uma maioria dominante e uma minoria marginalizada. Esses são fatores que
influenciam a educação escolar, que é decidida política e ideologicamente por
representantes dessa maioria.
Esta pesquisa foi elaborada durante o isolamento social da pandemia da Covid-
19, por isso as perguntas foram enviadas pelo aplicativo WhatsApp dos que estiveram
dispostos a contribuir com ela. Então, foram selecionados dois professores não
indígenas que trabalham tanto com a Educação Infantil como com o Ensino Médio,
que atuam no Colégio Estadual Benedito Rokag, e dois professores da educação
infantil, além de uma pedagoga, que são indígenas e trabalham na Escola João
Kavagtãn Vergílio.
Nesses tempos de pandemia, a educação tem se tornado muito difícil, pois os
professores precisam enviar materiais impressos para os alunos, visto que eles não têm
acesso à internet. Esta foi a opção adotada pelas duas escolas. Liberali (2020, p. 18) diz
que “As experiências não são fáceis pois a contradição se impõe com força de
dominação de nossas potências. Porém, a coletividade e o engajamento com a realidade
sustentam as possibilidades de seguir em frente”. As escolas do Apucaraninha também

- 104 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

têm suas dificuldades, principalmente nesse momento em que vivemos uma nova
experiência, quando precisamos nos acostumar com a realidade, para assim podermos
continuar o nosso trabalho. As dificuldades enfrentadas pelos alunos e professores têm
sido um desafio não só para as escolas indígenas, mas para o mundo todo.

Aprendizado dos alunos Kaingang

Com as entrevistas e como trabalho de experiência na comunidade indígena,


em função da metodologia utilizada, podemos dizer que a maioria dos alunos é falante
da língua Kaingang, na qual são alfabetizados primeiro e que é a única língua falada até
o 3º ano do Ensino Fundamental, o que dificulta muito o seu aprendizado em língua
Portuguesa, a qual eles aprenderão em apenas 3 anos.

Eles não chegam a fazer uma boa leitura, uma interpretação e formação de frases.
Estive pensando, talvez a nossa cabeça fica mio assim, certamente. A nossa língua vai
até o 3º (série), mas quando chega ao 3º caem mais coisas (conteúdos) e entra mais a
língua kaingang, certamente.
Às vezes penso o porquê que eles não conseguem aprender o português. Será que é
por causa da nossa cultura? O alfabeto kaingang é o mesmo que a do português,
certamente, mas tem a questão dos acentos também, mas o som e a fala são diferentes.
Outros estão no 4º ano, mas não reconhecem o alfabeto, não entendem o português.
Então eles dão a aula desde o começo (alfabetização do português). Eles sobem para
cima e começa é mais (conteúdos). Mas se somos kaingang, vamos ser assim mesmo.
Trabalhamos a nossa cultura. História... geografia, ciência estão aqui, dentro da nossa
aldeia (Lícia Gaotãn Guilherme Ribeiro, pedagoga indígena da Escola João
Kavagtãn).5

Com essa fala, podemos perceber que a questão do compreender e interpretar


o português é muito difícil para os alunos indígenas que estão em formação, nesse
processo de aprendizado de uma segunda língua. Eles aprendem o alfabeto, mas
confundem com o sistema escrito e fonético do Kaingang. Assim, não conseguem
interpretar, produzir um texto e nem mesmo criar as frases. A complicação se estende

5 Tradução de “Inh mỹ ag tóg tag hã ki krój nĩgtĩ, leitura kar kỹ interpretação de texto tag ti mỹn, formação
de frase mỹr. To isóg jikrén é, ẽg krĩ hỹn sir genh ke mũ mỹr. Ẽg vĩn ki ag tóg até 3º he mũ mỹr, ag tỹ 3º
ra mũ kỹ sir vãhã ag krĩ ti nỹ si ge mũ mỹr, língua kaingang ti ki rã tĩ gé mỹr.
Kỹ isóg siri ag tỹ hẽ ri ken ki kanhrãn tũg e né, fóg vĩn ki, he tĩ. Kỹ sóg ẽg cultura to ke mỹ vỹ, he tĩ.
Alfabeto kaingang vỹ hã ri ke nỹ gé vẽ mỹr, hara ti ne kri nãgnã nỹtĩ gé mỹr, há ti tó hã ne si tỹ ũ nĩ e
mũ mỹr.
Ũ ag sir ag tỹ 4º ano ki nỹtĩ ra alfabeto, fóg vĩ ki kagtĩg nĩgtĩ mỹr. Kỹ ag si vãhã desde o começo ki nĩm tĩ
mỹr, ag tỹ aula nĩm ti kỹ. kỹ ag ag tỹ kri ra mũn kỹ si ke tavĩ han em, fóg tũn ki mỹn. Ha ẽg tỹ tỹ
kanhgág pẽ nĩn kỹ ẽg ge nĩnh ke mũ.
Ẽg cultura hã to ẽg tóg ag mré rãnhrãj tĩ mỹr. História mỹr... Geografia, ciência tóg tag hã kãkã nĩ mỹn,
ẽg jamãn kãkã.

- 105 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

por 3 anos, visto que o estudo das duas línguas caminha até o 5º ano do Ensino
Fundamental I.
A fala seguinte é da professora de Artes, que explica o seguinte:

No 1º ano, ensino as formas, vogais e a pintar só para pintar desenhos, isso para eles.
Eles relembram o que eu ensinei. “É aquilo”, eles dizem. Então, me parecem que eles
aprendem rápido... as palavras.
Explico na língua para eles, mostro a forma da escrita e depois explico na minha língua
como é para fazer.
Certamente, tem uns que demoram a aprender, outros aprendem rápido e tem outros
(alunos) que são difíceis de ensinar.
Tem outros alunos que assistem muito desenhos, então, me parece que esses
aprendem mais a língua do branco. Talvez eles assistem desenhos, talvez no celular
(Priscila Garigtẽ Felisbino, professora de artes, na Escola João Kavagtãn Vergílio).

Ao ler essa fala, notamos que os alunos do 1º ano da Educação Infantil


aprendem muito bem a sua própria língua, pois a alfabetização na língua Kaingang se
inicia do Pré até o 5º ano e assim vão aprendendo a sua escrita.
Podemos dizer que atualmente existem algumas famílias Kaingang que têm
uma televisão em casa e algumas crianças assistem muito os desenhos. Como sabemos,
todos os alunos têm um conhecimento prévio do português, e certamente essas
crianças têm acesso à tecnologia ou em algum dado momento ouvem o português,
então, quando vão à escola, já sabem algumas coisas; essas crianças têm familiaridade
com a oralidade presente na televisão, com as músicas dos sites da internet, assim
vislumbramos o português começando a ser apresentado também pela oralidade, como
acontece com a língua-mãe da T.I.
Uma outra situação a ser exposta é que existem famílias que levam seus filhos
para vender artesanato fora da T.I., pois é cultural os Kaingang estarem sempre junto
de suas famílias, então os pais não deixam seus filhos em casa, mesmo havendo quem
cuide deles. Além disso, o tempo junto dos filhos não é muito longo, porque a maioria
dos Kaingang se casa cedo, entre seus 12 e 15 anos, e logo se tornam pais. Esses são
dois motivos que levam os alunos a terem dificuldade de aprendizado do Português.
Por outro lado, há os alunos que ficam só na terra indígena sem poder sair ou que vão
pouco à cidade, o que se torna fator importante para a dificuldade no aprendizado da
língua Portuguesa. Ir à cidade, por sua vez, não é garantia de aprendizado do
Português, a não ser o suficiente para oferecer o artesanato para compra, dizer o valor
ou comprar algo no comércio da cidade.
No colégio Estadual Benedito Rokag, existem alguns alunos nessa situação. Os
professores que atuam nessa instituição, que é uma escola bilíngue – ou até mesmo
trilíngue, visto que os alunos também aprendem a língua Inglesa –, enfrentam vários
desafios. Como os alunos concluem o Ensino Fundamental I e a maioria não fala o
português, apesar de entender a comunicação cotidiana, é difícil para eles entender a
maioria das aulas, visto que cada professor tem seu jeito de falar.

- 106 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

A professora de arte e física, Margareth Aparecida de Almeida, compartilha


como é sua experiência de trabalho dentro da escola Benedito Rokag. Segundo ela,
começou a trabalhar na escola em 2013, tendo sido chamada pela coordenadora da
Educação Indígena do Núcleo Regional de Educação de Londrina para lecionar as
aulas de física. Ela já conhecia a terra indígena e algumas pessoas, mas não conhecia
nada sobre a educação escolar indígena. “Eu fui com coração aberto, sem saber o que
encontrar, sem preconceito”, diz a professora. “Comecei a dar aula como eu dei aula
na escola não indígena. Falando muito e escrevendo muito. No primeiro dia já percebi
que não deu certo, não era isso.”
Essa mesma situação ocorre com quase todos os professores não indígenas
que chegam sem saber nada sobre a cultura local, mas, com o tempo, as formas de
pensar e as atitudes vão mudando. Notam que a metodologia não funcionou e que
precisam mudar o método de ensinar, e isso torna clara a necessidade de capacitação
continuada do corpo docente.
A professora diz ainda que começou a escutar mais os alunos e ao mesmo
tempo aprendia com eles. “Devagar eu fui construindo um jeito de trabalhar com isso,
né? Eu acho que a partir do momento em que você começa a conhecer, a entender
melhor a cultura indígena, né? É melhor, você começa a trabalhar, você começa a ver
o resultado do seu trabalho”.
De acordo com o que a professora disse, podemos inferir que, antes de
trabalhar com uma comunidade indígena, é preciso conhecer essa cultura, como
aventado no início desse artigo.
No decorrer da fala de Margareth, ela diz que o tempo é diferente, pois se trata
de uma escola indígena, pois nós não indígenas ensinamos uma língua que não é a
língua maternal deles, ele precisa de seu tempo de compreensão, afirma a professora.
“Toda teoria a gente tem que ligar na prática e a gente tem que ligar na uma prática da
cultura indígena pra que eles possam processar esse conhecimento”. Ela ainda relata a
importância de conhecer o aluno, seus familiares e a sua cultura, então, somente a partir
disso, vem a questão da metodologia.
Essa fala da professora é muito importante para os demais profissionais e é o
que nos leva a pensar na seguinte pergunta de pesquisa: qual seria a teoria de ensino-
aprendizagem mais adequada para trabalhar com a cultura Kaingang? É o que será
proposto a seguir.

Uma proposta de teoria para a formação do professor que atua numa escola
indígena

Com base na experiência de um dos autores como professora indígena, o que


é importante em função do método, um professor não indígena deverá observar como
a comunidade indígena funciona, saber qual é a realidade do povo, como é a sua
organização social dentro da T.I., antes de qualquer outra iniciativa, pois a comunidade

- 107 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

tem as suas lideranças: há um cacique, um vice-cacique e outras lideranças. Levará um


tempo para entender a sua forma de viver.
Esse será um tempo de estudo, será a base de se como atuar numa escola
indígena, pois a escola deve funcionar e agir de acordo com a realidade da T.I.
Os Kaingang, em geral, têm uma crença religiosa e a sua cultura está no seu dia
a dia, no seu modo de agir e pensar, e é preciso sempre respeitar essa crença, tentando
não questionar com algo contrário por meio da disciplina que leciona, mas dando aos
alunos a oportunidade de conhecer outras crenças e outras culturas.
Cada conteúdo deverá ser discutido com a equipe pedagógica, sempre
questionando: será que o conteúdo que estou aplicando está de acordo com a realidade
atual dos alunos? Será que é necessário os alunos aprenderem este conteúdo? Será que
já aprenderam com as suas experiências? Esses questionamentos são importantes
porque não se deve trabalhar na escola indígena como se trabalha numa escola não
indígena, em que o professor é obrigado a dar um conteúdo padronizado para todo o
Estado. As escolhas do conteúdo deverão estar de acordo com a realidade local, pois,
se não for assim, o diálogo entre professor, alunos e as experiências destes não
acontecerá ou ficará sem sentido para eles.
Os professores indígenas devem trabalhar em prol da revitalização das histórias
e da etnociência, a fim de proporcionar ao aluno indígena a valorização de sua própria
língua, cultura e costumes, levando-os a poder, inclusive, se reafirmar como indígena
Kaingang.
Além do mais, os Kaingang, em geral, não se preocupam com o tempo, e isso
se reflete no seu modo de viver, inclusive no espaço escolar. Por isso, alguns podem
demorar a aprender um conteúdo e outros, ao contrário, podem ser muito rápidos;
cada aluno tem o seu tempo para aprender certos conteúdos, e isso não os torna
diferentes, uns perante os outros.
Ao respeitar esses passos e colocá-los em prática, o profissional porá em prática
a teoria Kaingang, pois essa é a realidade do nosso povo. Um exemplo é este: se
perguntar para os alunos como se faz uma flecha, eles responderão de acordo com o
conhecimento indígena, e isso deixa claro que alguém os ensinou. Esse modo de ver o
processo deve estar ligado a todas as disciplinas, como matemática, português,
história...
Relembrando que a transmissão do conhecimento é feita pelos mais velhos e
que essa é a teoria-prática dos Kaingang, vemos o processo ensino-aprendizagem
sendo construído na relação com filhos, netos, bisnetos, e assim o conhecimento é
passado de geração em geração. O professor, no ambiente escolar, por sua vez, deverá
dar continuidade a essa teoria, colocando-a em prática na sala de aula, ou fora dela,
para que os alunos não se sintam presos às quatro paredes impostas pelo sistema e
para que essa liberdade de aprender e conhecer seja proporcionada, apresentando
coisas novas, tornando os alunos críticos, a fim de que possam construir a sua própria
história dentro e fora da terra indígena, até porque haverá alunos que desejarão
permanecer na aldeia depois de concluir Ensino Médio, mas haverá outros que

- 108 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

desejarão conhecer o mundo de fora da T.I. Estes que sairão já demonstram que
querem conhecer mais, algo desperta o interesse deles. Respeitar o desejo de cada um
é fundamental.

Considerações finais

Este trabalho teve como objetivo apresentar uma proposta de algumas bases
teóricas para formação dos professores não indígenas que estão atuando ou para
aqueles que querem atuar nas escolas indígenas da T.I. Apucaraninha.
Teve como metodologia a pesquisa-ação, a observação participativa e a
entrevista com alguns professores que trabalham nas duas escolas da aldeia Sede, que
é uma das quatro que compõem a T.I.
Ao final do artigo apresentamos alguns pontos gerais da cultura Kaingang, que
se tornam pontos-chave para a apresentação da teoria de ensino-aprendizagem. Há
muito ainda a estudar no campo da educação, então esperamos que este seja apenas o
início e que possamos dar uma continuidade a esta pesquisa.
Esta pesquisa teve o diferencial de um dos pesquisadores ser indígena
Kaingang, professora em uma das escolas, que mantém amizade com os participantes,
o que tornou ideal a metodologia da observação participativa, da pesquisa-ação e das
entrevistas. Além disso, contemplou o ponto de vista do professor indígena, bem
como do professor não indígena que se interessa em colaborar nas escolas da T.I. e
que precisam, do ponto de vista cultural dos Kaingang, adequar sua metodologia à
cultura da sociedade em que exercerá sua docência.

Referências

AMARAL, Wagner Roberto do. A Comissão Universidade para os Índios (CUIA) do


Paraná: uma experiência inédita de ação Interinstitucional de política pública de
educação superior indígena no Brasil. In: MATO, Daniel. Educación Superior y
Pueblos Indígenas y Afrodescendientes en América Latina. Colaboración
intercultural: experiencias y aprendizajes. Sáenz Pen͂a, 2019. p. 289-304

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 1986.

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de


Educação Básica. Resolução nº 3, de 10 de novembro de 1999. Fixa Diretrizes
Nacionais para o funcionamento das escolas indígenas e dá outras providências.
Diário Oficial da União, Brasília, 19 out. 1999.

- 109 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Secretaria de


Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Secretaria de Educação
Profissional e Tecnológica. Conselho Nacional da Educação. Câmara Nacional de
Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação
Básica. Brasília: Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.

BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do


Brasil de 1988. Brasília, 1988.

BRASIL. Presidência da República. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.


Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União,
Brasília, 23 dez. 1996.

HAMMERSLEY, Martyn; ATKINSON, Paul. Ethnography: Principles in Practice.


London: Routledge, 1993.

LIBERALI, Fernanda Coelho. Construir o inédito viável em meio a crise do


coronavírus – Lições que aprendemos, vivemos e propomos. Liberali, Fernanda
Coelho (org.); et al. Educação em tempos de pandemia: brincando com um mundo
possível / Organizadores: Fernanda Coelho Liberali, Valdite Pereira Fuga, Ulysses
Camargo Corrêa Diegues e Márcia Pereira de Carvalho. Campinas: Pontes, 2020. p.
13-20.

MAZZEU, Francisco José Carvalho. Uma proposta metodológica para a formação


continuada de professores na perspectiva histórico-social. Campinas, SP, 2009.

PARANÁ. Assembleia Legislativa. Lei n. 13.134, de 18 de abril de 2001. Reserva 3


(três) vagas para serem disputadas entre os índios integrantes das sociedades
indígenas paranaenses, nos vestibulares das universidades estaduais. Curitiba: DO, 18
abr. 2001.

PARANÁ. Assembleia Legislativa. Lei n. 14.995, de 9 de janeiro de 2006. Dá nova


redação ao art. 1º, da Lei nº 13.134/2001 (reserva de vagas para indígenas nas
Universidades Estaduais). Curitiba: DO, n. 7140, 09 jan. 2006.

PARANÁ. Universidade Estadual do Norte do Paraná. XX Vestibular dos Povos


Indígenas do Paraná. Edital n. 051/2020-GR. Jacarezinho: UENP, 21 dez. 2020.
Disponível em: https://uenp.edu.br/publicacoes-oficiais-uenp/link-docs-
proreitorias/coordenadoria-de-processos-seletivos/17500-edital-051-2019-gr-
homologacao-das-inscricoes-apos-recursos/file. Acesso em: 5 jan. 2021.

- 110 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

PARANÁ. Vestibular dos Povos Indígenas do Paraná reúne 750 candidatos.


Agência de Notícias do Paraná. Curitiba, 19 nov. 2019. Disponível em:
http://www.aen.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=109586. Acesso
em: 10 dez. 2020.

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia: o espaço da educação na universidade. Cadernos


de Pesquisa, v. 37, n.130, p. 99-134, jan. 2007.

THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 2008.

VIEIRA, Cristina C. Investigação Qualitativa e Investigação Quantitativa: uma


abordagem comparativa. Coimbra: Universidade de Coimbra - Faculdade de
Psicologia e de Ciências da Educação, 1995.

WINDLE, Joel. A formação do professsor de línguas em uma perspectiva de


formação intercultural cidadã. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, v.
57, n. 2, p. 975-992, maio/ago. 2018. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/tla/v57n2/0103-1813-tla-57-02-0975.pdf. Acesso em: 20
dez. 2020.

YAMASHITA, Bruna Ester Gomes. De que você vai se lembrar? In: OLIVEIRA,
Sandra Regina Ferreira de (org.). Escolas em Quarentena: o vírus que nos levou
para casa. Londrina: Madrepérola, 2020, p. 31-44.

- 111 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

PROGRAMA “PROFESSOR FORMADOR” E SEUS EFEITOS


NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA DURANTE A
PANDEMIA DE COVID-19

Franciela Silva Zamariam1

Resumo: No segundo semestre de 2020, a Secretaria de Educação e do Esporte (Seed)


do Paraná instituiu o programa Professor Formador, para atuação no Grupo de
Estudos Formadores em Ação, com o intuito de ofertar uma possibilidade de
formação continuada aos professores da Rede Estadual de Educação, tanto do quadro
próprio do magistério quanto aos professores em regime especial (PSS). Segundo o
EDITAL N. º 01/2020 – DG/SEED, primeiro de seleção interna para atuação no
referido programa, sua finalidade é “ofertar formação continuada por meio de
docência colaborativa na modalidade a distância”. Assim, o objetivo deste texto é
compartilhar nossa experiência como professora formadora na primeira turma do
Formadores em Ação, do NRE Londrina, discutindo as atividades realizadas entre os
meses de julho e dezembro de 2020, bem como seu impacto no ensino básico da Rede
durante a pandemia de covid-19. Os princípios teóricos aplicados nos encontros do
programa partem da “aprendizagem significativa” (AUSUBEL; NOVAK, 1980), cujo
pensamento levou aos conceitos que conhecemos como “metodologias ativas”,
“professor mediador” e “tecnologias digitais aplicadas ao ensino”, os quais colocamos
em diálogo, neste trabalho, com as ideias de Bondía (1998), sobre “experiência” como
forma de aprendizagem, e de “educação libertadora”, de Paulo Freire (2017).

Palavras-chave: Formação continuada; Professor Formador; Seed; Prática docente;


Metodologias ativas.

A profissionalização do professor, mesmo no século XXI, é um tema


espinhoso, dado que alguns estigmas seguem acompanhando a categoria, que ainda é
muito relacionada à missão espiritual. É comum ouvirmos expressões de senso comum
voltadas aos professores, como “professor deve ter o dom de ensinar”, “é preciso
ensinar por amor”, entre outras, levando muitos a uma visão do “professor missionário
/ redentor”, não um profissional que constrói sua carreira a partir de estudos e
investimento laboral. Embora tenha fundamentos históricos - uma vez que, no Brasil
(e em outras partes do mundo), durante muito tempo, a Educação tenha ficado a cargo
da Igreja - essa crença tem um impacto direto na (des)valorização social do professor
e na imagem de si, cuja distorção pode refletir na qualidade do ensino, portanto, na
qualidade da Educação. Assim, a formação de professores é um tema de grande
relevância para os avanços educacionais no país.

1Professora efetiva da Educação Básica, pela Seed-PR. Doutoranda em Estudos da Linguagem


do PPGEL – UEL. E-mail: franciela.zamariam@escola.pr.gov.br.

- 112 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

Isso posto, este texto busca discutir a formação continuada de professores


atuantes na Educação Básica, realizada por meio do Grupo de Estudos Formadores
em Ação, que vem sendo fomentado pela Secretaria da Educação e do Esporte do
Paraná (Seed-PR), desde o segundo semestre de 2020. Objetivamos compartilhar nossa
experiência como professora formadora na primeira turma do “Formadores em Ação”
de Língua Portuguesa, do NRE-Londrina, debatendo as ações realizadas entre os
meses de julho e dezembro de 2020, bem como seu impacto inicial no ensino da Rede
Estadual de Educação, mais especificamente das escolas do Núcleo Regional de
Londrina, durante a pandemia de covid-19.
Para tanto, trataremos, em um primeiro momento, da relevância da formação
continuada de professores para sua profissionalização; na sequência, explanaremos
sobre a instituição do Grupo de Estudos Formadores em Ação e seus objetivos; por
fim, debateremos as ações do programa e seu impacto no ensino emergencial, após o
que faremos nossas considerações finais.

A necessidade da formação docente continuada

Segundo o pesquisador canadense Maurice Tardif (2012), os anos de educação


básica ficam cristalizados no professor e acabam se tornando a principal referência em
sua prática. A formação docente inicial pode não ter competência para fazê-lo superar
as lacunas e crenças subjacentes, uma vez que não antecipa tais crenças nem as
considera. O modelo acadêmico atual, frequentemente, trata os licenciandos como
“espíritos virgens e não leva em consideração suas crenças e representações anteriores
a respeito do ensino”, limitando-se, na maioria das vezes,

a fornecer-lhes conhecimentos proposicionais, informações, mas sem executar um


trabalho profundo sobre os filtros cognitivos, sociais e afetivos através dos quais os
futuros professores recebem e processam essas informações. (TARDIF, 2012, p. 272)

Ainda conforme Tardif (2012), a formação para o magistério tem um impacto


pequeno sobre o que pensam, creem e sentem os graduandos, o que pode abrir espaço
para que outros agentes sociais preencham as lacunas formativas de modo a cristalizar
ações baseadas na prática não reflexiva.

Na verdade, eles terminam sua formação sem terem sido abalados em suas crenças, e
são essas crenças que vão se reatualizar no momento de aprenderem a profissão na
prática, crenças essas que serão habitualmente reforçadas pela socialização na função
de professor e pelo grupo de trabalho nas escolas, a começar pelos pares, os
professores experientes. (TARDIF, 2012, p. 273)

A essa baixa aderência da formação inicial na efetivação das ações docentes


soma-se o distanciamento entre a academia e a escola, as quais culminam na

- 113 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

necessidade da formação continuada voltada para os desafios cotidianos do magistério.


Muitos professores veem nos acadêmicos impositores de teorias e passam a rejeitá-las
como uma forma de resistência ou simplesmente por não enxergarem nelas aplicação
em seus contextos.

Na formação de professores, ensinam-se teorias sociológicas, docimológicas,


psicológicas, didáticas, filosóficas, históricas, pedagógicas, etc., que foram concebidas,
a maioria das vezes, sem nenhum tipo de relação com o ensino nem com as realidades
cotidianas do ofício de professor. Além do mais, essas teorias são muitas vezes
pregadas por professores que nunca colocaram os pés numa escola ou, que é ainda
pior, que não demonstram interesse pelas realidades escolares e pedagógicas, as quais
consideram demasiado triviais ou demasiado técnicas. Assim, é normal que as teorias
e aqueles que as professam não tenham, para os futuros professores e para os
professores de profissão, nenhuma eficácia nem valor simbólico ou prático.
(TARDIF, 2012, p. 241)

Esse movimento de polarização academia-escola deriva da visão equivocada


(ao mesmo tempo que a ratifica), disseminada tanto nos espaços escolares quanto nas
universidades, de que ou se é pesquisador ou professor, tanto que quando, em caráter
de “exceção”, há uma união entre os conceitos, usa-se o termo de reforço “professor-
pesquisador”. Novamente, vemos revelado o pensamento historicamente construído
de que ser professor é o resultado de uma missão espiritual, que pouca relação tem
com teorias e técnicas profissionais.
Lacunas e equívocos como os supracitados deram origem à demanda por uma
formação exclusivamente voltada para a prática e realizada por pares, tidas como
suficientes para que a Educação avance em qualidade. Cumpre ressaltar que esse tipo
de formação, colaborativa, em que professores têm momentos exclusivos para trocar
experiências e práticas bem-sucedidas, é muito importante para o aperfeiçoamento do
trabalho docente, contudo não nos parece adequado que seja visto como absoluto.
Esclarecido esse ponto, vejamos como se organizou a formação continuada no
estado do Paraná, durante a pandemia de covid-19, que se aproveitou dessa visão
pragmática dos professores e da comunidade escolar.

Instituição e organização do Programa Formadores em Ação

A partir de julho de 2020, a Secretaria de Educação e do Esporte (Seed) do


Paraná instituiu o programa Professor Formador, para atuação no Grupo de Estudos
Formadores em Ação, com o intuito de ofertar uma possibilidade de formação
continuada aos professores da Rede Estadual de Educação, tanto do quadro próprio
do magistério quanto aos professores em regime especial (PSS). Segundo o EDITAL
N. º 01/2020 – DG/SEED, primeiro de seleção interna para atuação no referido

- 114 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

programa, sua finalidade é “ofertar formação continuada por meio de docência


colaborativa na modalidade a distância” (SEED, 2020, grifo nosso).
Para conduzir o Grupo de Estudos, os Professores Formadores foram
selecionados, entre os educadores do estado, com a responsabilidade de repassar as
ideias e materiais provenientes da Secretaria de Educação e avaliar/fiscalizar as
aplicações dos estudos, em sala de aula, pelos cursistas, como critério parcial para
aprovação no curso. Parte desse processo ocorre durante as reuniões semanais do
Professor Formador com um Tutor do Núcleo Regional de Educação (NRE) e do
primeiro com seus cursistas. Costumam ser uma reunião entre Tutor e Formador e
duas, entre Formador e professores cursistas.
De modo geral, ainda que não declarados, foi possível perceber alguns
princípios norteadores das ações no programa, como “aprendizagem significativa”
(AUSUBEL; NOVAK; HANESIAN, 1980) e seus derivados: “metodologias ativas”,
“professor mediador” e “tecnologias digitais aplicadas ao ensino”. Essas ideias ficaram
implícitas nas reuniões dos formadores com a tutoria, que costumava marcar, em seu
discurso, expressões voltadas para a prática docente: “intencionalidade pedagógica”,
“cativar os estudantes”, entre outras.
O curso é organizado em Jornadas, que por sua vez, são subdivididas em
Roteiros Formativos, sempre iniciados com diálogos relativos às necessidades do
ensino remoto e finalizados com devolutivas do formador a respeito das aplicações
das atividades formuladas no curso pelos professores cursistas aos estudantes, bem
como compartilhamento das experiências. No momento em que trabalhamos como
formadora, os temas foram todos voltados ao ensino remoto emergencial, de modo a
auxiliar os professores a lidarem com as tecnologias aplicadas à educação e com a
grande evasão que atingiu as escolas naquela ocasião. A primeira Jornada constituiu-se
de dois Roteiros: 1. Google Meet e 2. Google Forms; a Jornada 2, de três Roteiros: 1. Google
Drive e Google Docs, 2. e 3. Museus e saídas de campo virtuais (foram dois roteiros sobre
o mesmo tema). A Jornada 3 compôs-se de dois Roteiros: 1. Plataformas Gamificadas
e 2. Plataforma Redação Paraná. Esta última teve o objetivo único de apresentar a
plataforma de produção de texto implantada pela Secretaria de Educação, portanto
não exigiu aplicação dos professores aos alunos.
A estrutura dos roteiros formativos permanecia fixa, sendo uma das
recomendações que não houvesse mudança, pelo formador, nos conteúdos nem em
sua sequência. Todos os materiais foram produzidos pela mantenedora e destinados a
toda a rede estadual de educação, incluindo os slides, que deveriam ser passados,
impreterivelmente durante as reuniões, tal qual enviados. Havia materiais teóricos para
consulta, entretanto sua leitura não era obrigatória nem havia tempo para discussão
desses textos. Os encontros deveriam obedecer à sequência pré-estabelecida: 1.
Momento de Vivência, destinado à aprendizagem prática de uso da ferramenta proposta;
2. Momento de Planejamento, quando ocorria o diálogo entre os presentes na reunião, para
auxiliar a organização das aulas de aplicação do recurso estudado; 3. Momento de
Implementação, que acontecia na aula remota de cada professor; 4. Relato de Experiência e

- 115 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

Devolutiva, o primeiro efetivado oralmente no encontro posterior à implementação, de


maneira genérica, depois enviado por escrito pelos professores cursistas, para a
avaliação do professor formador, sendo anexados ao documento prints de tela da
participação dos alunos, gravação da aula e materiais didáticos e atividades produzidos
por educadores e estudantes. Já a devolutiva era atribuição do formador e deveria
apresentar-se oralmente e genericamente, na reunião planejada para tal, e por escrito,
no formato adotado pela mantenedora, o feedback formativo. Na sequência, podemos
ver a organização de um Roteiro, postada na sala de aula virtual, o Classroom:

Figura 1 - Organização de um roteiro formativo no Classroom.


Fonte: Arquivo pessoal, Classroom, 2020.

O ápice de cada roteiro sempre dizia respeito à implementação. Dos cursistas,


exigiam-se a aplicação da ferramenta estudada no momento e a gravação dessa aula,
ainda que o conteúdo corrente fosse difícil de adaptar ao instrumento. Aí residiu uma
das maiores dificuldades, uma vez que muitos professores não tinham público para a
implementação, devido à precariedade dos recursos tecnológicos de suas comunidades
escolares. Vários alunos estavam buscando materiais impressos diretamente nas
escolas, por não terem internet ou aparelhos adequados à participação das aulas
virtuais. Outro entrave esteve na associação da ferramenta ao conteúdo trabalhado,
por exemplo, no que tange à visita remota a museus. Diversos cursistas precisaram
fazer uma quebra em seus planejamentos para encaixar alguma atividade que
empregasse o recurso exigido, já que poucos temas da própria sequência de conteúdos
enviada pela Secretaria de Educação tinham relação tours virtuais.
Todo o percurso descrito buscou atingir os dois objetivos centrais do
programa: aperfeiçoar a didática na Rede, partindo da prática, e reforçar a busca ativa
dos alunos, o que passou a ser uma das maiores responsabilidades do professor.

- 116 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

Devido a isso, o discurso de empoderamento e autonomia docentes, proferido


constantemente pela Secretaria de Educação, acabou entrando em contradição com a
prática exigida como avaliação no curso e no dia a dia da escola, conforme veremos a
seguir.

Paradoxo na prática

Os pilares discursivos sobre os quais foi erigido o Grupo de Estudos


Formadores em Ação encontram legitimidade nas origens “messiânicas” da profissão
de professor e no distanciamento entre a escola e a academia, como vimos. Esses dois
quesitos forjaram a demanda por uma formação docente mais próxima do contexto
escolar, constituída pela experiência, não por teorias inaplicáveis, ao mesmo tempo que
profissionalize esses indivíduos e os capacite ao exercício da docência, sem a
necessidade de frequentar cursos de pós-graduação.
Em consonância com Bondía (1998, p. 23-24), a experiência se define por três
fatores: saberes finitos, pelos quais se alcança a plenitude; saberes subjetivos e relativos,
únicos para cada indivíduo, ainda que dois passem pelas mesmas vivências; saberes
inseparáveis do sujeito, que formam sua personalidade, seu caráter e sua sensibilidade,
ou seja, o constituem como humano singular. Esse conjunto formador da experiência
pôde ser observado durante os encontros com os professores cursistas, os quais
demonstraram entusiasmo diante dos novos conhecimentos tecnológicos, espírito
colaborativo e mudança estável de comportamento profissional, conforme podemos
ler no relato abaixo, cuja autoria foi omitida para preservação da identidade:

Experiência MA-RA-VI-LHO-SA! Convidamos os alunos e professores por vários


dias com diferentes cartazes. Iniciamos com um jogo do wordwall
(https://wordwall.net/resource/7452034 ) para verificar o que já sabiam. [...] Em
seguida, depois de toda a explicação, promovemos um jogo (elaborado também por
nós) pelo Mentimeter (https://www.menti.com/7oiudcefhm), [...] Eles se
empolgaram pois era estilo videogame. Jogaram e explicaram o que erraram. Eles
entenderam o conteúdo e gostaram bastante da experiência. Nós também gostamos e
professores que estavam conosco ficaram muito interessados nas plataformas
utilizadas. Foi um sucesso, apesar do nervosismo! [...] Nossas aulas nunca mais serão
as mesmas. (Relato de experiência de professora cursista, 2020)

No entanto, é importante destacar que nem todas as ferramentas mencionadas


constavam na “cartilha” do curso. Apesar da recomendação para seguir à risca o
material enviado, inclusive para usar plataformas incompatíveis com a disciplina e as
séries alvos de nosso grupo (Khan Academy, por exemplo), buscamos ampliar o rol
de aplicativos de forma a encontrar os mais adequados ao ensino em contextos
diferentes. Assim, podemos dizer que propiciar a formação pela experiência genuína
esteve mais a cargo de alguns desvios do professor formador do que do curso em si.

- 117 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

Além disso, a referência a “o conteúdo”, com artigo determinado, não é


aleatória. De fato, há uma lista de conteúdos que deve ser cumprida na ordem
estabelecida, preferencialmente, com a metodologia indicada. Assim, temos um
retorno à Educação Bancária, largamente combatida pelo educador Paulo Freire
(2017), a qual busca depositar no educando conteúdos e saberes sequenciais, sem
preocupação com sua transformação social e de seu entorno.

Não há nada que mais contradiga e comprometa a emersão popular do que uma
educação que não jogue o educando às experiências do debate e da análise dos
problemas e que não lhe propicie condições de verdadeira participação. (FREIRE,
2017, p. 93)

Aliás, esse é outro paradoxo que pôde ser percebido no curso: a insistência de
que o professor usasse ferramentas e práticas inovadoras, com metodologias ativas, ao
mesmo tempo que deveria cumprir listas fixas de conteúdos tradicionais, muitas vezes
descontextualizados, e usar instrumentos orientados, sem o devido suporte
tecnológico ao professor, tampouco ao aluno. E aqui identificamos também o
cerceamento da autonomia docente, nas imposições do que ensinar e quando ensinar
a todos indistintamente, sem levar em consideração as diferentes realidades presentes
no Paraná: mais uma contradição, agora em relação ao discurso de empoderamento do
professor.

Considerações Finais

Se por um lado, tanto os primórdios da profissão professor, quanto o


distanciamento entre a academia, responsável pela formação docente inicial, e a escola
geraram uma demanda por uma formação continuada voltada à prática, por outro,
diante dos imensos desafios sociais contemporâneos, em especial os salientados pela
pandemia de covid-19, fica evidente que a ação precisa partir da reflexão, que, por sua
vez, deve pensar a ação, em um constante movimento cíclico.
O programa de formação continuada implantado pela Secretaria de Educação
do Paraná, Grupo de Estudos Formadores em Ação, tem elementos que atendem aos
anseios profissionais dos professores, todavia apresenta condições insuficientes para a
sua efetivação. Ademais, as contradições que demonstra, como as imposições de
implementação sem considerar os contextos diversos dos estudantes e professores,
dificultam o ensino e impactam diretamente na aprendizagem discente. Apesar do
discurso de “professor protagonista” e “estudante no centro do processo educacional”,
como pregam os princípios das metodologias ativas, adotados pelo programa,
permanecem a condução do ensino pela Secretaria de Educação (sequências de
conteúdos, materiais prontos etc.) e a visão do professor como mero executor de
tarefas, bem como do aluno como banco de conteúdos.

- 118 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

A formação docente pela experiência, ocorrida no curso, mostrou-se positiva


como forma de empoderamento do professor e como fortalecimento do trabalho
colaborativo, no entanto, como pudemos observar, essa construção ficou a cargo da
condução do professor formador e do envolvimento dos cursistas: houve relatos
negativos a esse respeito em outras turmas.
Nesse sentido, é imprescindível que repensemos a formação docente
continuada, de forma a estabelecer o equilíbrio entre a teoria reflexiva e a práxis, a fim
de que o objetivo maior, no contexto desta discussão, seja a educação pública de boa
qualidade e para a libertação de todos os sujeitos do processo. Para isso, é necessário,
sim, investimento interno na formação dos professores, mas também nas condições
adequadas para que ela se efetive, as quais passam pela provisão de tempo e
financiamento destinados ao estudo, que deve prever outras possibilidades de
aperfeiçoamento, incluindo o Lato Senso e o Stricto Senso.

Referências

AUSUBEL, D. P; NOVAK, J. D.; HANESIAN, H. Psicologia Educacional. Rio


de Janeiro: Interamericana, 1980.

BONDÍA, Jorge Larrosa. La experiencia de la lectura: estudios sobre literatura y


formación. Barcelona: Laertes, 1998.

PAULO, Freire. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro, Editora Paz
e Terra. 40ª ed., 2017.

PARANÁ. Secretaria da Educação e do Esporte do Paraná. EDITAL N. º 01/2020


– DG/SEED. Processo de seleção de professores do Quadro Próprio do Magistério
- QPM e professores que atuem em Regime Especial – CRES, visando à atuação para
Professor Formador no Grupo de Estudos Formadores em Ação. Curitiba, 01 jun.
2020. Disponível em:
https://www.educacao.pr.gov.br/sites/default/arquivos_restritos/files/documento/2020-
06/edital_012020_dgseed.pdf. Acesso em: 01 nov. 2021.

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 13 ed. Petrópolis:


Vozes, 2012.

- 119 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

DESAFIOS DO PLANEJAMENTO NO CAMPO DA GESTÃO


ESCOLAR

Gabriela Costa e Silva1


Soraia Kfouri Salerno2

Resumo: Estudo do planejamento no âmbito da gestão em instituições escolares. O


planejamento é um instrumento político para a construção da identidade institucional.
A importância do tema se revela pelo trabalho do profissional da educação que envolve
a participação em processos decisórios no coletivo, com vistas ao alcance dos fins,
identificando condições de trabalho e adequações de percurso, evitando recair em
práticas rotineiras e ou reiterativas sem clareza profissional. Como objetivo buscou-se
refletir e investigar sobre elementos que influenciam o distanciamento entre o
declarado e o vivenciado no espaço escolar. A pesquisa de perfil qualitativo respaldou-
se no levantamento de referenciais de base, tais com: Berger e Berger (1977), Saviani
(1992), Veiga (1998), Dourado (2002), Paro (2006), bem como a pesquisa de campo
realizada através de entrevista semiestruturada com Pedagogas de cinco Colégios
Públicos da cidade de Londrina-PR. A pesquisa de campo teve a aprovação pelo
Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Londrina sob o nº
2.038.996. Percebeu-se dificuldades na relação com o planejamento e a materialidade
escolar, indicando um distanciamento entre o declarado e o vivenciado como resultado
de um formalismo que inicia desde orientações pré-estabelecidas pelo sistema escolar
a dificuldades de participação dos profissionais.

Palavras-chave: Gestão Escolar; Planejamento; Projeto Político Pedagógico;


Instituição Escolar.

1 Introdução

A gestão escolar é o campo de destaque neste trabalho, pois contempla o


alcance do cumprimento dos fins institucionais. O Projeto Político Pedagógico, como
instrumento da gestão norteia o trabalho pedagógico e traz a revelo decisões coletivas
pelos profissionais das instituições escolares.
Nesta função o planejamento como instrumento político para a construção de
identidades pode oportunizar a transformação do campo para o ideal desejado, assim,
conhecer como o declarado e o vivenciado manifestam- se é importante, pois, a sua

1Graduanda do Curso de Pedagogia pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), e-mail:


gabriela.costa0@uel.br.
2Doutora em Políticas Educacionais e Sistemas Educativos pela Unicamp/SP; docente do

Departamento de Educação da Universidade Estadual de Londrina (UEL), e-mail:


soraiakfouri@uel.br.

- 120 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

elaboração e vivência consiste em participação e integração consciente dos


profissionais.
A importância se revela pela coerência do trabalho profissional no campo que
envolve processos educativos. O trabalho profissional requer a clareza do papel social
da instituição, a participação em processos decisórios para definição de percurso com
vistas ao alcance dos fins. Assim, as intencionalidades declaradas precisam ser definidas
pela coletiva condições de trabalho e adequações de percurso sob risco de recair em
práticas rotineiras e ou reiterativas.
Objetivou-se conhecer e investigar elementos que influenciam o
distanciamento entre o declarado e o vivenciado no espaço escolar. Declarado, pois,
buscamos compreender elementos expressos no planejamento e vivenciado, porque,
buscamos a materialidade desses elementos no local de trabalho.
Assim o problema consiste em, quais elementos influenciam o distanciamento
do planejamento com o local de trabalho no âmbito da gestão? Considerando a
realidade do local de trabalho, suas demandas e desafios.
O percurso metodológico pautou-se na pesquisa qualitativa, na qual utilizamos
da pesquisa bibliográfica, pelo levantamento de referenciais teóricos que discutem a
escola, a gestão escolar e o planejamento.
Com a pesquisa de campo, realizamos o levantamento de dados por meio de
entrevistas semiestruturadas com profissionais da Educação em cinco colégios
públicos da cidade de Londrina. A pesquisa de campo teve a aprovação do Comitê de
Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Londrina sob o nº 2.038.996.
A fundamentação metodológica para a pesquisa apoia-se em Trivinos (1987),
pois, a pesquisa qualitativa:[...] favorece não só a descrição dos fenômenos sociais, mas
também sua explicação e a compreensão de sua totalidade [...]”. A abordagem de
Bardin (2011) e Minayo (2011) fez- se necessário na análise de conteúdo para apoiar a
análise de elementos que emergem das falas dos participantes.

2 A escola como instituição

Não há como vivermos em sociedade sem estar intimamente relacionada com


suas instituições sociais. Ao longo da história, as instituições sociais têm sido
indispensáveis para a construção de padrões sociais, não sem conflito, mas com
continuidades e rupturas de padrões instituídos.
A escola tem um protagonismo importante, já que seu papel social contempla
a construção e transmissão de conhecimento que integra o instituinte (processo de
forças criadoras/definidoras), para o resultado – o instituído. Assim, tem-se a
relevância do estudo para compreendermos a instituição escolar e como ela tem se
constituído – ou seja, o conjunto de elementos presentes e suas relações.
Neste sentido, a proposta não é fazer um resgate amplo das instituições desde
sua gênese, mas, entendê- las a partir de sua construção na Modernidade. A instituição

- 121 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

escolar compõe o rol de instituições da modernidade, de acordo com Silva Jr e Ferretti


(2004, p. 49), “a instituição escolar tem sua origem na produção histórica do Estado
Moderno”, “as escolas públicas, gratuitas e laicas tem sua origem na modernidade” (p.
57). Sendo assim, o marco temporal neste trabalho se justifica, pois, “não há, portanto,
sentido em se falar de público e institucional na ausência do Estado Moderno”
(Ibidem, p. 54).
Silva Jr e Ferretti (2004, p. 49), apontam que a “identidade histórica de tal
instituição deve ser buscada no institucional, na organização derivada desse
institucional e na cultura escolar no Estado Moderno”. Os autores recorrem a Locke,
no que diz respeito ao Estado, o Estado Moderno “institui a escola com base no
princípio liberal de que a educação é direito de todos e dever do Estado” (p. 57).
Para Locke (apud SILVA JR e FERRETI, 2004), os poderes políticos passaram
a existir quando os homens em seu estado natural, através de um pacto social,
começaram a estabelecer regras e ordens para a sua sobrevivência, daí deriva- se o
político, constituindo o Estado como organizador social. Silva Jr e Ferretti (2004, p.
52) ressaltam que “o pacto social fora feito no estado natural com o objetivo da
sociedade política garantir os direitos de igualdade e propriedade, independentemente
de suas condições naturais”.
De acordo com Boneti (apud FERREIRA, 2006, p. 307), “o pensamento que
move a escola é o tipicamente burguês construído historicamente e concomitante ao
aparecimento das bases ideológicas do capitalismo” e ainda destaca que desde a
modernidade a escola assumiu um papel típico burguês mesmo que isso seja
questionado.
Silva Jr e Ferretti (2004, p. 58) destacam que a escola é uma síntese de tal
momento da história, orientando, portanto, os objetivos sociais historicamente
produzidos para a instituição escolar, isto é, a consolidação do pacto social burguês.
Assim, entendemos, que o institucional da escola carrega consigo toda a sua
densidade histórica, carrega todas as diferentes temporalidades históricas desde a sua
origem, por meio da objetivação e apropriação produzidas pelo cotidiano de qualquer
instituição (SILVA JR e FERRETTI, 2004, p. 56).
Fundamentamos a instituição social nos clássicos estudos de Berger e Berger
(1977), pois, apresentam um conjunto de características que são essenciais à
identificação de uma instituição social, sendo elas: a exterioridade, a objetividade, a
força coercitiva, a autoridade moral e a historicidade.
Segundo Berger e Berger (1977, p. 196), “as instituições são experimentadas
como algo dotado de realidade exterior”, ou seja, exterior ao indivíduo, para além de
si.
Para Berger e Berger (1977, p. 196), as instituições são possuidoras de
objetividade, para cumprir essa objetividade é necessário que todos ou (quase todos)
admitam que de fato a mesma existe, e que existe de maneira determinada, sendo assim,
os indivíduos teriam que admitir que tal instituição de fato é importante para a
sociedade a ponto de não negá- la.

- 122 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

A terceira característica possui ligações com as duas características citadas


acima. Berger e Berger (1977) apresentam a força coercitiva que consiste em
demonstrar aos indivíduos comportamentos e valores adequados para realizá- los em
sociedade. Se o indivíduo se afastar, esquecer ou modificar o estado das coisas
existentes é neste momento que a força coercitiva das instituições se apresentam com
rudeza, o que podemos considerar como o exercício do controle coercitivo.
As instituições não se mantêm apenas através da coercitividade, sendo assim,
apresentam sua quarta característica, a autoridade moral. Berger e Berger (1977, p.198),
apontam que as instituições “invocam um direito a legitimidade; em outras palavras,
reservam- se o direito de não só ferirem o indivíduo que as viola, mas também, o de
repreendê-lo no terreno da moral”.
Porém, Berger e Berger deixam claro que a imposição de valores morais,
atitudes e comportamentos atribuídos às instituições “varia de caso para caso”, ou seja,
“essa variação se exprime através da gravidade do castigo infligido ao indivíduo
desrespeitoso” (1977, p.198).
Por fim, a quinta característica fundamental apontada por Berger e Berger
(1977, p.198) é a historicidade, sendo que, “não são apenas fatos, mas fatos históricos,
tem uma história”. Os autores apontam nessa característica um compromisso
existencial, pois, a instituição “existia antes que ele nascesse e continuará a existir
depois de sua morte”. Apontam ainda, que as “ideias corporificadas nas instituições
foram acumuladas durante um longo período de tempo” (Idem, Ibidem).
Estêvão (2006 p. 219) analisa a escola como “uma instituição social perpassada
pela dialética estabelecida entre o sistema e mundo de vida”, e assim, discorre, que de
acordo com a proposta estabelecida por Habermas (1929) a sociedade pode ser
entendida com base em dois princípios; sistema e mundo da vida. O sistema se
autorregula e o mundo da vida remete para a coordenação das ações através da
harmonização das orientações para a ação. Estêvão, ressalta que, “aplicando a escola
esta proposta de análise, podemos afirmar que ela é uma instituição enraizada no
mundo da vida social e, por isso é uma arena de inter- relações entre sistema e mundo
da vida” (ESTÊVÃO, 2006, p. 220).
Em outra proposta, a de Sabirón, destaca que a escola não pode ficar na
dicotomia sistema e mundo da vida, ele propõe a compreensão da escola como uma
“organização, sistema e mundo de vida”. Sendo assim, Estêvão (Ibidem, p. 225),
ressalta, que a “escola é co-participante dos processos que ocorrem no seu interior e
que se prendem com a aplicação das funções sistêmicas e sua interpretação por parte
de seus actores”, assim, a escola pode favorecer mais o sistema ou ao mundo da vida.
Com isso, o autor destaca a relevância de compreender a “organização
compósita”, sendo a heterogeneidade, a pluralidade de mundos da escola, sendo assim,
de acordo com Derouet (apud ESTÊVÃO, 2006, p. 226), ressalta que “também será
legítimo defender que a escola, como organização social que é, se constitui num lugar
de vários mundos”. Por fim, de acordo com Estêvão (Ibidem, p. 227), há que
reconhecer que a compreensão da escola como organização complexa, multi

- 123 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

discursiva, como funcionamento que caracterizamos como políptico, ou seja, com várias
faces.
Destacamos que a especificidade da instituição escolar é o processo de
Educação multifacetado, a fim de atingir a todos em suas potencialidades visando o
entrelaçamento da instituição social com a vida.

2.1 Educação

Na obra Educação e Sociologia, Durkheim discorda de algumas definições de


Educação, dentre elas, a Kantiana, cuja definição de Educação seria levar o indivíduo
à perfeição. Segundo Kant (apud DURKHEIM, 1955, p. 34), “o fim da educação é
desenvolver, em cada indivíduo, toda a perfeição de que ele seja capaz”. Ao sustentar
a sua crítica a essa visão, ressalta que, “não podemos, nem devemos nos dedicar, todos
ao mesmo gênero de vida, temos nossas aptidões” (p. 34). Outra visão de que discorda
é a de uma Educação como garantia de felicidade para todos aqueles que a acessam,
sendo assim, Durkheim ressalta que “a felicidade é coisa essencialmente subjetiva, que
cada um aprecia a seu modo”, senão, a Educação e a instituição escolar perderia sua
finalidade, pois, somente atenderia fins individuais.
Durkheim (1955) mostra que a escola e a Educação não deve ter um caráter
individualista, que a sua existência enquanto instituição social não deve ocorrer de
forma isolada, não é mera abstração, mas ocorre de forma solidária com as outras
instituições sociais e também é de construção histórica, alertando que não podem ser
mudadas livremente, mas, com a mesma estrutura da sociedade. Assim, defende o
papel da Educação em preparar as novas gerações para viver em sociedade, definindo
a Educação como a “ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que não
se encontram ainda preparadas para a vida social” (Durkheim apud PEDRA, 1997, p.
46).
A escola, enquanto instituição, possui e deve cumprir sua função social, tendo
como objeto da Educação, a transmissão e assimilação dos conhecimentos
sistematizados, este é o fim a ser atingido. Assim, de acordo com Saviani (1992), a
Educação é fenômeno próprio dos seres humanos e através dela que se orientam,
produzem e reproduzem pelo ato de transformação da natureza que se faz por meio
da atividade com propósito, o trabalho. Sendo assim, diferentemente dos outros
animais que se adaptam à natureza se guiando por suas determinações biológicas,
adaptando- se a ela, o homem a modifica por meio do trabalho.
Saviani (1992) ressalta que o objeto da Educação diz respeito à identificação
dos elementos da cultura que precisam ser assimilados para que se tornem humanos,
produzindo uma natureza específica de acordo com os conhecimentos históricos
identificados. O conhecimento produzido e acumulado historicamente é transmitido
às novas gerações. Nesta perspectiva de tornar- se humanos, produzem a natureza
humana, que de acordo com o autor, é uma “segunda natureza”, pois, “o que não é

- 124 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

garantido pela natureza tem que ser produzido historicamente, pelos homens, e aí se
incluem os próprios homens'' (SAVIANI, 1992, p. 13).
A escola é destaque na sociedade como espaço específico para transmissão e
assimilação dos conhecimentos, Saviani (1992, p. 14), afirma, que “a escola diz respeito
ao conhecimento elaborado e não ao conhecimento espontâneo, ao saber
sistematizado e não ao fragmentado, à cultura erudita e não a popular”.
Para além de uma visão naturalista, a escola é espaço de contradições e
interesses múltiplos. Assim, o processo por ela desempenhado requer clareza por meio
de um projeto de Educação, o qual se distancia de práticas espontaneístas. O
planejamento pelos profissionais da Educação é imprescindível para a coerência do
percurso a ser trilhado.

2.2 O Projeto Político Pedagógico

Ao destacar a escola em seu caráter de instituição, manifestamos a sua natureza


que requer sistematização e intencionalidade, sendo assim, nos conduzimos à gestão
escolar e à importância do projeto político pedagógico (PPP), pois, o PPP implica em
processo enquanto tomada de decisões e em registro, quando nos referimos ao
documento como formalização da intencionalidade declarada.
A Educação tem como estabelecido na Constituição Federal (CF) de 1988 e na
Lei de Diretrizes e Bases (LDB) 9.394/96, o “direito de todos e dever do Estado e da
Família”. No artigo 205 da CF prevê a finalidade da Educação como “desenvolvimento
pleno da pessoa” e o artigo 206, inciso VI, é garantido a “gestão democrática do ensino
público, na forma da lei”. Assim, a gestão democrática escolar se fundamenta em
princípios como referenciado.
O artigo 14 da LDB, apresenta procedimentos para a materialidade da gestão
democrática, contemplando a participação dos profissionais da Educação e da
comunidade escolar. A gestão democrática também é garantida nos artigos 12 e 13
desta Lei. Sendo que o artigo 12 prevê incumbências aos estabelecimentos de ensino e
aos profissionais da Educação/docentes. O artigo 13 aponta incumbências aos
docentes da instituição de ensino, sendo, para participação da proposta pedagógica,
elaborar planos de trabalho e zelar pelo ensino aprendizagem.
A gestão democrática é um dos princípios norteadores que devem reger a
construção e implementação do projeto político pedagógico com os seus eixos
principais, a participação e a representação.
Dourado (2002, p. 157) ressalta que a “gestão democrática não é algo que se
decreta, mas é o resultado de ações construídas cotidiana e coletivamente”.
Participação pode ser feita com estratégias, ações e concepções que qualifiquem a
todos. Participação requer planejamento, informação, decisão, execução e avaliação,
no processo avaliativo da participação deve- se considerar o outro, e o processo de
auto- avaliação.

- 125 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

A gestão escolar e esta democrática, não está dada, sendo considerada utopia.
No entanto, como profissionais da Educação, a buscamos. “A palavra utopia significa
lugar que não existe. Não quer dizer que não possa vir a existir. Na medida em que
não existe, mas ao mesmo tempo se coloca como algo de valor, desejável” (PARO,
2006, p. 9).
Veiga (1998), define projeto político pedagógico no sentido etimológico da
palavra, “o termo projeto vem do latim que significa projectu, particípio do verbo
projicere, que significa lançar para diante”. Todo ser humano pensa e projeta, logo ele
faz objetivos, metas e ações do que se pretende alcançar, sendo assim, ele lança- se
para diante.
Segundo Veiga (1998), o projeto político pedagógico de cada instituição escolar
“busca um rumo, uma direção'. É uma ação intencional”. O projeto político
pedagógico não deve ser um mero instrumento burocrático, pois, esse instrumento de
planejamento da gestão assume a organização do trabalho pedagógico escolar,
buscando a organização em sua globalidade.
O trabalho pedagógico, a organização, a estrutura, a cultura da escola, a
comunidade escolar, são fundamentados pelo projeto político pedagógico de cada
instituição escolar, sendo intencional, pois é um instrumento da gestão que define e
norteia o trabalho pedagógico, o que expressa sua cultura organizacional única, mesmo
que mantenha relações de identidade com outras instituições da mesma natureza,
segundo apontado por Silva Jr e Ferretti (2004).

2.3 Dados do Campo

A aproximação com o campo para a coleta de dados oportunizou o


reconhecimento da dinâmica escolar, mesmo que de maneira delimitada e restrita pelo
tempo, com cinco instituições escolares do Município de Londrina, permitindo
reconhecer a intensa rotina que envolve o trabalho dos profissionais da Educação,
especificamente o trabalho dos pedagogos.
Buscou-se identificar elementos que influenciam o distanciamento, entre o
declarado e o vivenciado, do planejamento no âmbito da gestão escolar para o local de
trabalho, especificamente o planejamento vivenciado na gestão em instituições
públicas do Município de Londrina.
A metodologia proposta ocorreu no âmbito da pesquisa qualitativa na área das
Ciências Humanas. A pesquisa de campo foi realizada em Escolas Públicas do
Município de Londrina-PR, com o uso de entrevista semiestruturada como
instrumento para coleta de dados. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em
Pesquisa da Universidade Estadual de Londrina sob o nº 2.038.996. Foi utilizada
abordagem de Bardin e Minayo para análise de conteúdo e identificação do contexto
de trabalho.
De acordo com Triviños (1987, p. 152), a entrevista semiestruturada “[...]

- 126 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

favorece não só a descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a
compreensão de sua totalidade [...]”, além de manter a presença consciente e atuante
do pesquisador no processo de coleta de informações.
Sobre a coleta dos dados, Minayo, destaca:

Fazer ciência é trabalhar simultaneamente com teoria, métodos e técnicas, numa


perspectiva em que esse tripé se condicionam mutuamente: o modo de fazer depende
do que o objeto demanda, e a resposta ao objeto depende das perguntas, dos
instrumentos e das estratégias utilizadas na coleta dos dados (MINAYO, 2011, p. 622).

Sendo assim, tece reflexões em torno da construção científica. Minayo (2011,


p. 623), no que se refere ao campo, argumenta que é “preciso imergir na realidade
empírica na busca de informações previstas ou não previstas no roteiro inicial [...]”.
Ainda, segundo Minayo (2011, p. 623), o verbo principal da análise qualitativa
é compreender, pois, compreender é exercer a capacidade de colocar- se no lugar do
outro, tendo em vista que, como seres humanos, temos condições de exercitar esse
entendimento [...] ao buscar compreender é preciso exercitar também o entendimento
das contradições, pois a ação e a linguagem tem características conflituosas.
Com intuito de preservar as identidades com vistas ao cuidado com o
participante na pesquisa, as Pedagogas entrevistadas foram denominadas como,
Pedagoga A, Pedagoga B, Pedagoga C, Pedagoga D e Pedagoga E.
Para a realização das entrevistas, foi elaborado um rol de questões abertas
direcionado à equipe pedagógica para compreender a gestão de cada Escola a partir da
percepção relatada pelos profissionais sobre o PPP, como entrevista semiestruturada,
o profissional poderia expressar livremente para além das questões previamente
elaboradas.
É importante ressaltar que para a coleta foi necessário voltar algumas vezes em
algumas Escolas, em razão da rotina escolar que não permitiu que as Pedagogas
parassem para o atendimento ao pesquisador, a atitude na coleta de dados pautou-se
no respeito e consideração aos profissionais em seu local de trabalho. Abaixo
apresentamos alguns elementos dos dados coletados com a aplicação da entrevista
semiestruturada.
Ao indagar sobre a função do Projeto Político Pedagógico (PPP) as
profissionais, obteve-se respostas envolvendo o conceito de orientador, guia,
norteador, organizador e alinhamento com as diretrizes de sistema sobre a ação
profissional na escola. O caráter nestas expressões recorrentes pode caracterizar uma
visão personalizada do documento - o PPP -, ultrapassando o seu papel de instrumento
mediador de intencionalidades coletivas.
Na entrevista podemos perceber que existe dificuldades em perceber o papel
do PPP no cotidiano da escola, sendo possível identificar as dificuldades e dúvidas
sobre sua realização e a desatualização do PPP, inseguranças sobre o exercício de
reflexão e coerência do planejamento com a realidade da escola. Observamos que a

- 127 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

atualização e revisão do PPP acontece de forma burocrática, ou seja, somente quando


exigido e ou acontece algo que realmente o documento precisa ser alterado e ainda tal
distanciamento permite dúvidas quanto ao período de revisão e atualização.
Durante as entrevistas foi possível perceber que a participação na revisão e
atualização do PPP normalmente não acontece, pois, em todas as escolas, nas quais
aconteceram as entrevistas, normalmente quem coordena esse processo é a equipe
pedagógica ou somente uma Pedagoga, com isso se ressalta a dificuldade de
participação e envolvimento com o planejamento como a construção da identidade da
escola. O desafio principal apontado nas entrevistas foi o distanciamento de
professores e pedagogos, sendo um dado relevante que aponta o abismo entre o
declarado e o vivenciado na escola.
Buscou-se a reação das pedagogas sobre o papel do planejamento, como
instrumento profissional, antes de ser uma prática exigida no atual marco legal é um
direito dos profissionais definir a intencionalidade e o percurso. No entanto, as falas
revelam o seu quase exclusivo dever/obrigação. Não deixa de ser um dever, mas antes
poderia ser visto como um direito, que contempla o processo de conquista da
autonomia institucional.
Ao questionar as pedagogas sobre a relação e/ou diferença do PPP com o
Projeto Curricular e o Regimento da Escola, buscando identificar uma visão sistêmica
do planejamento para os profissionais da Educação, as falas evidenciaram dificuldade
no entendimento da relação dos documentos, sendo trabalhados de forma separada.
Os três documentos, comumente apresentados separados para efeito didático com
intuito de acesso e análise pontual, fazem parte da estruturação do PPP, não são ou
não deveriam ser construídos separadamente, considerando uma visão sistêmica da
instituição. Assim, não existe diferença, pois integram o mesmo percurso e documento.
Enquanto o Projeto Curricular é o percurso pedagógico do ensino, o Regimento traz
a normatização da unidade escolar o qual regula o processo pedagógico, assim o PPP
ao contemplar o histórico e estrutura da escola, princípios, missão e objetivos
estratégicos, bem como os diversos projetos que a escola possa ter, tem a normatização
da escola e seu percurso curricular contemplado em seu corpo.
Entende-se que a visão das pedagogas sobre a distinção dos documentos seja
resultado da organização e exigências do mantenedor, sendo, a SEED/PR e NRE,
pois, tratam como documentos distintos. Assim, a origem da fragmentação do
planejamento antecede a instituição, ocorrendo pelas determinações externas à
unidade escolar.

- 128 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

3 Considerações Finais

Esta pesquisa possibilitou reflexões acerca do contexto da gestão escolar, a


partir do reconhecimento da escola como instituição social, considerando que o seu
caráter como organização tem sua importância, no entanto não pode sobressair do seu
caráter institucional, pois a organização está para o cumprimento dos fins
institucionais.
Partimos do questionamento sobre a distância entre o declarado e o vivenciado
na gestão escolar, a partir do planejamento, consideramos compreender elementos
como: a escola como instituição social, o conceito de Educação a partir de Durkheim,
o Projeto Político Pedagógico como identidade institucional requer a clareza desse
elementos. O planejamento traz as intencionalidades declaradas formalmente, no
entanto não se pode recair no formalismo distanciado de uma prática coerente com o
declarado, ou seja uma distância entre o declarado e o vivenciado.
A análise de campo oportunizou uma aproximação da realidade para levantar
dados sobre o campo, a partir das falas dos profissionais sobre o planejamento,
considerando sua função, os reflexos na atuação profissional, o processo de elaboração
e participação, desafios encontrados pela escola, clareza do campo normativo e
exigências para o planejamento.
Os profissionais encontram-se numa rotina intensa e com condições de
trabalho extenuantes. Devido à rotina do ambiente escolar em algumas escolas a
entrevista não pôde se alongar e com diversos retornos em respeito ao tempo do
profissional.
Os participantes expressam a importância do planejamento, bem como suas
dificuldades, dúvidas e incertezas. O Projeto Político Pedagógico ainda tem sido
abordado, predominantemente, como um mero instrumento burocrático e normativo,
revelando um distanciamento dos profissionais da escola em sua participação.
São muitos os desafios enfrentados pelos profissionais da Educação que
evidenciam a distância entre o declarado e o vivenciado no ambiente escolar, tais como:
a carga de trabalho, desvio de função e cansaço da rotina escolar. Os participantes
relatam o desafio da participação dos profissionais no processo de elaboração/revisão
do PPP e dificuldades em superar a acentuada evasão de alunos no turno noturno. São
elementos que podem ultrapassar a possibilidade de superação dos profissionais,
acarretando o desânimo, pois refletem carências sociais e conflitos de informação no
sistema escolar que antecedem a organização escolar.
Ao debruçarmos sobre o tema, avançamos na compreensão desse processo,
com vistas ao enriquecimento do debate sobre o planejamento na Gestão Escolar.
Reconhecemos a busca necessária pela clareza sobre o papel social da escola
como uma instituição de múltiplas faces e de intensas contradições para continuar a
caminhada formativa.

- 129 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

Referências

BARDIN, L. Análise de conteúdo (L. de A. Rego & A. Pinheiro, Trads.). Lisboa:


Edições 70. (Obra original publicada em 1977). 2016.

BERGER, Peter L.; BERGER, Brigitte. O que é uma instituição social? In:
FORACCHI, M. M.; MARTINS, J.S. (Org.). Sociologia e sociedade. Rio de Janeiro:
Livros técnicos e científicos, 1977. p. 193-199.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Disponível


em:https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_E
C91_2016.pdf. Acesso em: 20 jun. 2021.

BRASIL. Ministério da Educação. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece


as diretrizes e bases da educação nacional. Ministério da Educação, 1996. Disponível
em:
http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/529732/lei_de_diretrizes_e_
bases_1ed.pdf. Acesso em: 20 jun. 2021.

DOURADO, Luiz Fernandes. A gestão democrática e a construção de processos


coletivos de participação e decisão na escola. Campinas, São Paulo: Papirus, 2002.
p. 149-160.

DURKHEIM, Émile. Educação e Sociologia. 4. ed. São Paulo: Melhoramentos,


1955.

ESTÊVÃO, Carlos A. Villar. Organizações Educativas, justiça e formação. In:


Formação continuada e gestão da educação. FERREIRA, Naura Syria Carapeto.
(Org.). 2 ed. – São Paulo: Cortez, 2006.

MINAYO, Maria Cecília de Souza. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade.


Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, p. 621-626. 2011.

PARO, Vitor Henrique. Gestão democrática da escola pública. São Paulo: Editora
Ática, 2006.

PEDRA, J. A. Currículo, conhecimento e suas representações. 5. ed. Campinas:


Papirus, 1997.

SAVIANI, Dermeval. Sobre a natureza e especificidade da Educação. Pedagogia


Histórico- crítico: primeiras aproximações. 3 ed. São Paulo: Cortez; Autores
Associados, 1992.

- 130 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

SILVA JR, João dos Reis; FERRETTI, Celso João. O institucional, a organização
e a cultura da escola. São Paulo: Xamã, 2004.

TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa


qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.

VEIGA. Ilma. P. A. Projeto Político Pedagógico da escola: uma construção


coletiva. 7° edição, Campinas, SP: Ed. Papirus, 1998.

- 131 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

ESCUTAR O LEITOR: LEITURA E SUBJETIVIDADE EM


DEPOIMENTOS DE LICENCIANDOS E PROFESSORES
DE LÍNGUA MATERNA

Sheila Oliveira Lima3

Resumo: O projeto, ainda em fase inicial, tem como objetivo investigar e identificar
fatores relevantes nas trajetórias de formação leitora de professores de língua materna
e licenciandos de Letras e Pedagogia, tendo como foco as subjetividades leitoras. Trata-
se de pesquisa de caráter qualitativo baseada em registros de depoimentos. Os corpora
compõem-se de: (a) registros de entrevistas com professores de língua materna da
educação básica; (b) depoimentos escritos de estudantes de Letras e Pedagogia sobre
sua formação leitora. A partir de tais corpora, pretende-se realizar análises baseadas no
conceito de “escuta” desenvolvido pela Psicanálise (LACAN, 1998) e ratificado para
esse tipo de trabalho pelos estudos relativos à formação de leitores (BAJOUR, 2014)
e pela metodologia do “paradigma indiciário”(TFOUNI; PEREIRA, 2018 e
GINZBURG, 2001). Espera-se identificar elementos da subjetividade que constituem
o processo de formação do leitor e que se manifestam nas suas práticas docentes. A
partir desses dados, pretende-se evidenciar mais amplamente a relevância dos aspectos
afetivos na condução do trabalho docente no campo da leitura.

Palavras-chave: Escuta; formação de leitores; leitura; formação docente; literatura.

Introdução

Ao longo dos últimos 10 anos, tenho dedicado minhas pesquisas à


compreensão dos processos de formação de leitores no contexto escolar brasileiro.
As primeiras investigações que implementei estavam focadas na busca de
indicativos dos percursos de formação de leitores nos materiais didáticos utilizados nas
salas de aula dos Anos Iniciais e Anos Finais do Ensino Fundamental. Nos projetos
realizados entre os anos de 2012 e 2017, observei que as abordagens dos livros
didáticos sobre a leitura de textos literários e não literários eram pouco distintas. Em
geral, faziam uso dos textos por meio de excertos e os tratavam como pretextos para
ensino do código alfabético, da gramática e para tematizar produções de textos orais e
escritos. A atividade de interpretação textual figurava, na maior parte das vezes, por
meio de questionários que roteirizavam uma leitura superficial - sobretudo quando se
tratava de literatura -, dinamizada por um verdadeiro retalhamento do texto, sem no
entanto considerar as articulações entre as partes desmembradas pelo exercício. Ao
lado disso, observou-se claramente a inexistência de abordagens da leitura que

3Professora no Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de


Londrina – UEL. E-mail: sheilalima@uel.br.

- 132 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

contemplassem o enlace subjetivo do leitor no momento da prática leitora e mesmo


na condução dos percursos formativos mais extensivos.
Tendo em vista que o livro didático é, no Brasil, um forte condutor das práticas
didáticas e mesmo um formador de condutas docentes, considera-se haver a
necessidade de um empenho maior nos cursos de formação de professores, no sentido
de problematizar mais amiúde os processos de leitura na escola básica, seja por meio
da reflexão sobre os instrumentos didáticos ali presentes, seja pelo reforço de
repertórios que capacitam uma postura mais crítica diante de tais materiais.
Num segundo momento das investigações sobre a formação de leitores, outro
projeto de pesquisa foi implementado, desta vez direcionado à compreensão dos
percursos experienciados por leitores considerados maduros e “bem-sucedidos”. Para
tanto, optou-se por uma metodologia investigativa que contava com análises de
registros autobiográficos de escritores a respeito de seus processos de leiturização e
entrevistas semiestruturadas com escritores brasileiros e pessoas que possuem
vinculação com a leitura em níveis mais avançados, mesmo não se tratando de
profissionais das Letras.
As entrevistas e os registros biográficos expuseram uma grande diversidade de
situações que envolvem a formação leitora e suas relações indissociáveis com os
processos de construção subjetiva. Dentre os dados mais relevantes obtidos pela
pesquisa, ressaltamos a constatação de situações particulares que revelam a ação da
escola nos percursos dos sujeitos, embora nem sempre se trate de marcas positivas.
De modo geral, na verdade, observou-se, nos depoimentos que fazem referência às
práticas escolares que envolvem a leitura, a fragilidade da instituição, não se
configurando, na maior parte dos relatos, em cenário que tenha favorecido ou
incentivado de modo consistente e sistemático a formação desses leitores.
As recusas operadas na escola, nas diversas cenas descritas pelos entrevistados,
levam a questionamentos a respeito da possível limitação do potencial formador do
docente de língua materna em contextos em que o leitor não se vê amparado a se
afirmar como tal. Isto é, pode-se perguntar em que medida o professor tem tido a
oportunidade de se colocar enquanto sujeito leitor, capaz de transmitir ao seu aluno
sua paixão pela leitura. Mais ainda, até que ponto as práticas ensinadas nos cursos de
licenciatura autorizam ou não o docente em formação a fazer proveito de sua
experiência afetiva de leitor na construção dos saberes docentes? E, por fim, o quanto
tais processos levam a um embotamento das práticas, fechadas num circuito
constituído pelos saberes acadêmicos, geralmente impostos mais que desenvolvidos
pelo sujeito?
Nesse sentido, as reflexões desenvolvidas ao longo desses 10 anos de pesquisa
desembocam no atual projeto que desenvolvo, ainda voltado para a escuta qualificada
dos depoimentos de leitores, porém, agora, focada nos docentes de língua materna em
exercício e em formação - licenciandos de Letras e Pedagogia.
Assim, a proposta do projeto “Escutar o leitor: leitura e subjetividade em
depoimentos de licenciandos e professores de língua materna" é investigar possíveis

- 133 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

relações entre os percursos de formação de leitores e o desenvolvimento das práticas,


enquanto docentes de leitura e de literatura, entendendo que, a partir de dados
oriundos de suas memórias e de suas experiências subjetivas, seja possível constituir
propostas para uma formação docente que possa articular mais favoravelmente as
experiências leitoras à formação de práticas docentes de leitura e de literatura,
considerando para isso a relevância da subjetividade e do afeto.

2. Leitura, subjetividade e formação docente: considerações teóricas

A formação do leitor configura-se a partir de elementos de diversa ordem.


Passa por instâncias distintas, as quais, juntas e articuladas, conduzem a um percurso
de elaboração muito particular a cada leitor, devido ao fato de que cada indivíduo vive
contextos muito específicos de relação com a linguagem. Analogamente, a formação
do docente responsável pela condução dos processos formativos dos leitores também
se configura de maneira complexa e em permanente processo de constituição.
Os estudos relativos ao fenômeno da leitura trazem luzes às reflexões sobre os
processos de formação do leitor. Barthes (1992, 2004), Jouve (2002), Petit (2009),
Rouxel (2013), Montes (2020), Bombini (2015), entre outros, trazem à baila toda uma
discussão a respeito das condições que constituem o fenômeno da leitura, revelando,
cada um com um foco particular, que não é possível limitar o ato de ler a aspectos de
pura cognição. Amparada em estudiosos como Jouve, Lima (2016, p. 1) considera que:

A leitura é um fenômeno complexo. Passa por diversas instâncias do corpo, nas suas
diversas compleições. Ela resulta de uma trama de processos, que se iniciam na feição
mais bruta do que podemos chamar de corpo, um corpo concreto, neurofisiológico,
até atingir seu limite máximo de abstração, revelado pelos instantes de prazer
experimentados por um corpo psíquico, urdido pelos afetos.

Se a leitura é fenômeno marcado pela complexidade, a formação do leitor e a


do docente responsável por esse processo não serão menos intrincadas. A formação
do professor de leitura e de literatura requer uma articulação entre experiência leitora,
conhecimentos teóricos de literatura e fundamentos didáticos. De modo geral, o que
se observa nos programas dos cursos de formação docente é um centramento no
trabalho em torno da teoria literária e da atividade analítica de obras e autores
canônicos. Nesse sentido, a experiência leitora do docente em formação, tomada como
elemento específico da subjetividade, tende a permanecer recôndita, sem que haja
momentos dentro dos programas de disciplinas para que seja problematizada.
Entretanto, compreende-se que a experiência é um dado fundamental da
aprendizagem, na medida em que se trata da efetiva situação em que o sujeito é afetado
pelos eventos de que participa. Larrosa (2001, p.271), ao responder à questão sobre as
relações entre leitura e subjetividade, dentro de uma concepção de experiência, afirma
“La experiencia seria lo que nos pasa. No lo que pasa, sino lo que nos pasa.” Deste

- 134 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

modo, conhecer profundamente um objeto requer ter uma experiência não mediada
com ele, para que se possa, depois, no relato da própria vivência, simbolizá-la. Nesse
sentido, no que se refere à leitura, nada supera a própria experiência do leitor para que
possa se considerar conhecedor de um texto e do próprio ato de ler. Sua relação,
marcadamente subjetiva, com o que lê é fundamental no processo de formação leitora
e também enquanto docente.
Para Petit (2013), a experiência leitora é fator essencial no trabalho dos
formadores de leitores. Isto é, embora o conhecimento didático seja extremamente
relevante, sobretudo na organização do trabalho docente, o formador de leitores deve
acessar o que lhe é mais íntimo em sua experiência para que possa tocar efetivamente
seus alunos e conduzi-los a uma vivência que os motive a prosseguir o percurso de
leituras. Petit (2013, p. 37) afirma:

Tudo que podem fazer os iniciadores de livros é levar as crianças – e os adultos – a


uma maior familiaridade e uma maior naturalidade na abordagem dos textos escritos.
É transmitir suas paixões, suas curiosidades, questionando seu lugar, seu ofício e sua
própria relação com os livros. É dar às crianças e aos adolescentes a ideia de que, entre
todas essas obras, certamente haverá alguma que saberá lhes dizer algo em particular.

Embora pareça um tanto comum a assertiva da pesquisadora francesa,


confirmando o que outros já disseram a respeito da necessidade de ser leitor para
formar leitores (Lajolo, 2007), sua perspectiva funda-se em algo mais complexo, isto
é, nas relações de afeto implicadas na experiência leitora - tema já tratado por Barthes
(1999, 2004). Ademais, Petit aponta com veemência as vinculações afetivas e os
processos de identificação que se impõem no processo de mediação da leitura, foco de
trabalhos relevantes como os de Montes (2020) e Andruetto (2017).
Tais relações, marcadamente subjetivas, comparecem mais em alguns
contextos do que em outros e parecem conduzir à composição do que Soares (2020)
denomina “fio afetivo”, enlace que aproxima e cria relações de cumplicidade nos
processos de ensino-aprendizagem.
Considerando os processos de formação leitora e de formação docente, o
desenvolvimento da capacidade de gerar o “fio afetivo” talvez resulte, entre outros
fatores, do potencial de enredar a própria experiência – docente e leitora – às dos
alunos com quem o professor interage, fundando uma nova experiência, comum,
compartilhada e fortemente urdida pelo circuito dos afetos.
Nesta pesquisa, analogamente ao que foi conduzido entre 2017 e 2020, no
projeto “Escutar o leitor: leitura e subjetividade em biografias e depoimentos de
escritores”, não se aborda o processo de mediação em ato, mas a memória construída
a partir dos eventos que constituíram o percurso de enlace subjetivo dos indivíduos
pesquisados com a leitura. Trata-se, portanto, de reconhecer não o fato em si da
mediação, mas o efeito que ela produziu, reconhecível pelas marcas que os leitores
recuperam ao retomar suas experiências de leitores por meio de narrativas orais ou
escritas. Entretanto, compreendendo que a experiência docente é parte essencial da

- 135 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

subjetividade dos participantes da pesquisa e considerando o conceito de “fio afetivo”


(SOARES, 2020), também interessa recuperar indícios relativos aos efeitos da
formação leitora dos sujeitos pesquisados na sua atuação em contextos de ensino-
aprendizagem da leitura e da literatura.
Deste modo, tendo em vista que o objeto da pesquisa não são os fatos em si,
mas conteúdos produzidos por meio da linguagem, instada fortemente por processos
de ordem inconsciente (Lacan, 1998), o trabalho analítico reivindica o conceito de
“escuta” como base da atividade de observação e construção de sentidos oriundos das
narrativas pesquisadas, tanto escritas quanto orais.
Nesse sentido, recorre-se ao trabalho realizado por Cecilia Bajour (2014) em
torno da leitura e da formação de leitores de literatura, no qual ela defende a relevância
do processo de escuta na atividade de mediação da leitura, no momento em que se
produzem os sentidos ou se abrem os hiatos de significação aos leitores em atividade.
Para Bajour (2014, p. 13):

El lenguaje estético se ofrece a los lectores que se acomodan e incomodan ante


maneras alternativas, diversas y a veces transgresoras de nombrar el mundo. Lo que
importa allí no es sólo lo que nos sacude nuestras valoraciones, ideas o experiencias
de vida sino cómo lo hace.

Trata-se, portanto, de reconhecer os processos mais refinados, singulares e


subjetivos da leitura em curso por meio da escuta, ou, nas palavras da autora de “oír
entre líneas”, isto é, captar não os preenchimentos, mas os vazios, os intervalos.
Procurando operar uma leitura dos dados conduzida pelo processo de
“escuta”, seguindo vertente semelhante à que comparece no trabalho de Bajour (2014),
também se busca como referencial metodológico o conceito de “paradigma
indiciário” (TFOUNI; PEREIRA, 2018; GINZBURG, 2001), que aponta para um
trabalho analítico que, para além de observar tendências homogeinizantes, pretende
reconhecer “pistas” que remetam a informações menos visíveis e não menos relevantes
sobre o problema examinado. Sendo assim, a metodologia do “paradigma indiciário”
conduz a uma investigação qualitativa, que utiliza o método interpretativo, com o qual
se intenta olhar os detalhes que, à primeira vista, podem ser irrelevantes, mas que
trazem indicativos muito precisos a respeito da peculiaridade de certos fenômenos.
Nessa perspectiva, tornam-se objetos da escuta a que se propõe o projeto as
entrevistas e os registros realizados pelos sujeitos pesquisados. Sendo assim, o processo
investigativo caracteriza-se pela recuperação dos traços de memória inscritos nos
eventos aos quais os sujeitos dão relevância, no campo semântico que manipulam para
compor suas narrativas, em toda matéria linguística e em todos os silenciamentos que
operam na busca de um significante capaz de envolver a experiência vivida no percurso
de formação enquanto leitores e enquanto formadores de leitores.
No projeto “Escutar o leitor: leitura e subjetividade em biografias e
depoimentos de escritores”, como já dito, foram analisadas narrativas de leitores

- 136 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

experientes, na tentativa de encontrar discursos que favorecessem um olhar mais


desejoso em relação à leitura enquanto atividade relevante social e individualmente. No
processo de pesquisa, notou-se, porém, que os discursos em torno da formação do
leitor, em geral, são constituídos por um imaginário configurado pela imobilidade. Isto
é, na maior parte das entrevistas, observou-se que os leitores abordam sua formação
sempre no passado, considerando-a um processo acabado, do ponto de vista de onde
a narram. Nesse sentido, ao buscar os leitores em processo de lida com a formação de
um outro (seu aluno), procura-se identificar, nas trajetórias em processo, elementos
vivos da experiência leitora, manifestados no transcurso das interações didáticas.
Assim, a investigação a partir das narrativas e dos relatos de experiências de
sujeitos envolvidos com a ação docente, na qualidade de professor ou de licenciando,
tem como perspectiva suscitar o reconhecimento de indícios da matéria subjetiva que
urde, nas práticas didáticas, os enlaces entre o fenômeno da leitura e os processos para
a formação do docente leitor.

3. Através das frestas: primeiros indícios a partir de memórias discentes

Antes de apresentar o corpus sobre o qual se operou a análise para esta


apresentação dos primeiros resultados da pesquisa em tela, cumpre explicitar a
condução metodológica implementada.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, baseada em uma metodologia analítica e
exploratória. Para tanto, tem como instrumentos de coleta de dados o registro
memorialístico de estudantes de licenciatura em Letras ou Pedagogia e a entrevista
semiestruturada com professores de língua materna da educação básica. Os
procedimentos de análise baseiam-se na escuta psicanalítica e no paradigma indiciário,
ambos constructos teórico-metodológicos que operam sobre pistas discretas, que não
expressam tendências generalizantes, mas conduzem o olhar a dados que evidenciam
singularidades dos processos observados, abrindo brechas para caminhos pouco
visíveis, mas não menos relevantes, quando se trata de compreender os mecanismos
que envolvem as ações docentes e seus enlaces com os processos de formação leitora
- foco da investigação do projeto.
As primeiras investigações realizadas pelo projeto, ainda em fase inicial, vêm
sendo constituídas de análises de depoimentos de estudantes de licenciatura em Letras,
coletados por meio da seguinte proposta de escrita do que tem sido nomeado, na
pesquisa, como “memória de leitor”:

- 137 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

"É nossa história que vemos desfilar em nossas


prateleiras". (Petit, 2002)
Escreva um depoimento, narrando sua experiência de formação de leitor e tentando
focar nos períodos em que frequentou o Ensino Fundamental 2 ou o Ensino Médio.
Você pode citar livros, fatos, lugares que façam parte da sua memória de formação
leitora. Entretanto, trata-se de uma escrita pessoal, livre, sem número mínimo ou
máximo de linhas, sendo o ideal você escrever da maneira mais livre possível, isto
é, sem modelos prévios. Procure, apenas, respeitar o uso da norma padrão da língua.

Quadro 1: Enunciado para coleta de depoimento de licenciandos em Letras


Fonte: Arquivos da pesquisa “Escutar o leitor: leitura e subjetividade em depoimentos de
licenciandos e professores de língua materna".

Conforme é possível observar, o enunciado procura motivar o depoimento


livre, entretanto valoriza aspectos da subjetividade, ao citar, em sua abertura, trecho de
obra de Michèle Petit, na qual se explicita a relação intrínseca entre a formação leitora
e a subjetividade.
Neste artigo, analisa-se um trecho de um dos depoimentos coletados, a título
de exemplificação dos procedimentos do paradigma indiciário e da escuta psicanalítica.
No texto a seguir, a estudante que autorizou o uso do depoimento para fins de
pesquisa realiza a seguinte narrativa, procurando estabelecer um contexto do seu
processo de formação leitora, iniciando o relato a partir do momento da lida primeira
com o código alfabético:

A infância em Patrocínio, circuito do triângulo mineiro, é caracterizada por


experiências familiares em casas contíguas de quintais comuns, e em uma destas,
iniciava minhas primeiras experiências com o letramento. Com pais semianalfabetos
e um tanto ausentes por conta de afazeres domésticos e trabalhos, a TV ficava ligada
em noticiários quase o dia todo. Em um destes dias eu tive minha primeira experiência
com a escrita ao tentar reproduzir as letras do canto inferior do da tela escrito “ao
vivo”. (…)

Quadro 2: Depoimento de estudante (E1) - parte 1


Fonte: Arquivos da pesquisa “Escutar o leitor: leitura e subjetividade em depoimentos de
licenciandos e professores de língua materna”.

Observa-se, no trecho, que a autora do texto procura evidenciar a ambiência


de letramento na qual estava inserida, destacando fatores como a baixa escolarização
dos pais e o acesso à cultura letrada por meio da mídia televisiva. Nesse momento do
depoimento, em se tratando de uma estudante de letras, é possível identificar certa

- 138 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

preocupação em abordar a própria experiência pelo crivo das teorias já apropriadas no


decurso de sua formação superior, ainda em processo.
Em um segundo momento do texto, entretanto, alguns movimentos subjetivos
se sobrelevam na narrativa, quando aparece um “eu" mais investido de afeto:

Fui uma criança bastante desinibida e falastrona que por muitas vezes fui convidada
a recitar poemas e cantar músicas de uma dupla que eu era fã chamada “Gian e
Giovane”. Na época, os CD’s eram acompanhados de um livrinho com as letras de
todas as músicas e eu passava horas olhando e tentando ler todas as músicas.
Acabei assim, ganhando uma certa popularidade na ‘Creche Criança Feliz’ e todas
as tias e professoras sabiam quem era. (…)

Quadro 3: Depoimento de estudante (E1) - parte 2


Fonte: Arquivos da pesquisa “Escutar o leitor: leitura e subjetividade em depoimentos de
licenciandos e professores de língua materna” (grifos nossos)

No excerto, o caráter analítico sobre a própria experiência sede lugar para um


relato mais voltado para certa exposição da estudante no período da infância,
construída por meio de uma inicial adjetivação (desinibida e falastrona) seguida de um
breve relato de suas habilidades com a oralidade poética (recitar poemas e cantar
músicas) e mesmo com a leitura (“passava horas tentando ler todas as músicas”).
Nota-se, no primeiro parágrafo do trecho, que a estudante expõe sua
personalidade infantil com certo júbilo, dadas as muitas qualidades no trato com a
palavra. A oralidade e a escrita são trazidas no relato como uma matéria com a qual a
licencianda já apresentava destreza desde tenra idade.
Interessa para a pesquisa, no entanto, o momento final do depoimento, quando
a estudante, mais que relatar as atividades que costumava realizar na infância, revive a
experiência da notoriedade com que é vista pelas “tias e professoras” da creche,
quando, então há o reconhecimento da criança enquanto sujeito (eu), em sua essência
(era).
O estreitamento do olhar do outro sobre a essência da criança que lia, cantava
e recitava registra-se no depoimento como elemento fundante da experiência da
licencianda enquanto leitora e chama a atenção da pesquisa para o fato de haver, no
percurso em tela, a inscrição do desejo de ler gravada no próprio corpo da leitora, na
voz que expõe sua essência ao expor suas leituras e desejos de leitora.
A interação triangulada entre o leitor, o texto e o seu ouvinte/apreciador se
estabelece por meio de uma relação atravessada pelo desejo. A criança deseja ser vista
e ouvida enquanto leitora habilidosa, ao mesmo tempo em que as professoras e tias
desejam ver e ouvir a aluna numa performance que pode evocar o sucesso de suas
ações docentes. Há, nessa triangulação de olhares e escutas, afetos entre diversos “eus”,

- 139 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

que se percebem reconhecidos em suas tarefas de ser: ser professora, ser leitora, ser
desinibida e falastrona, ser.

4. Considerações finais

O projeto “Escutar o leitor: leitura e subjetividade em depoimentos de


licenciandos e professores de língua materna” teve suas atividades iniciadas no ano de
2021. No atual momento, realizou apenas coletas de depoimentos de estudantes do
curso de Licenciatura em Letras-Português da UEL. O material está em processo de
análise, tendo como base metodológica o paradigma indiciário e a escuta psicanalítica.
No relato analisado, observou-se certa tendência da participante da pesquisa
em pautar sua narrativa a partir de um afastamento inicial, marcado por abordagem
baseada nos estudos sobre letramento aos quais provavelmente teve acesso em seus
primeiros anos de curso.
Ao longo do texto, entretanto, é possível entrever alguns elementos que
revelam aspectos da subjetividade, expressos pela perda do foco teórico-analítico
apresentado no início. O “eu" se faz presente não apenas pelo uso do pronome pessoal,
mas sobretudo pelo posicionamento no desenho da cena, quando assume lugar de
destaque aos olhares adultos, vale dizer, aos já leitores.
Embora ainda estejamos no princípio das análises, podemos considerar que o
depoimento traz um importante dado sobre o reconhecimento da subjetividade leitora
pelos adultos mediadores enquanto um elemento bastante relevante no processo de
enlace do fio afetivo entre o sujeito e a leitura.

Referências

ANDRUETTO, María Teresa. A leitura, outra revolução. Tradução de Newton


Cunha. São Paulo: Edições Sesc, 2017.

BAJOUR, Cecilia. Oír entre líneas: El valor de la escucha en las prácticas de lectura.
Ciudad Autónoma de Buenos Aires: El Hacedor, 2014.

BARTHES, R. Aula: aula inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Colégio de


França. São Paulo: Cultrix, 1992.

BARTHES, R. O rumor da língua. Tradução de Mario Laranjeira. São Paulo:


Martins Fontes, 2004.

BARTHES, R. O prazer do texto. Tradução de Jaime Guinsburg. São Paulo:


Perspectiva, 1999.

- 140 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

BOMBINI, Gustavo. Los arrabales de la literatura: la historia de la enseñanza


literaria en la escuela secundaria argentina (1860-1960). Buenos Aires: Miño y Dávila,
2015 (versão digital).

GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: reflexões sobre a distância. Tradução


Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

JOUVE, Vicent. A leitura. Tradução de Brigitte Hervot. São Paulo: Unesp, 2002.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética na psicanálise. Tradução de Antonio


Quinet.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

LACAN, Jacques. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998.

LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo:


Ática, 2007.

LARROSA, Jorge. La experiencia de la lectura: estudios sobre literatura y


formación. México, D. F.: Fondo de Cultura Económica, 2011 (edición eletrónica).

LIMA, Sheila Oliveira. Subjetividade e formação do leitor: o problema da ausência da


leitura literária em livros didáticos do ciclo 1 do ensino fundamental. Revista Terra
Roxa e Outras Terras, Londrina-PR, v. 31, p.18-30, dez-2016.

MONTES, Graciela. Buscar indícios, construir sentidos. Tradução Cícero


Oliveira. Salvador: Solisluna Editora, 2020.

PETIT, M. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. Tradução de Celina Olga


de Souza. São Paulo: 34, 2009b.

PETIT, M. Éloge de la lecture: la construction de soi. Paris: Belin, 2002.

PETIT, M. Leituras: do espaço íntimo ao espaço público. Tradução de Celina Olga


de Souza. São Paulo: 34, 2013.

ROUXEL, Annie; LANGLADE, Gérard; REZENDE, Neide Luzia. Leitura


subjetiva ensino de leitura. Tradução de Amaury C. Moraes [et al]. São Paulo:
Alameda, 2013.

- 141 -
Eixo 13
Educação docente e desenvolvimento profissional

SOARES, Poliana Rosa Riedlinger. Leitura e Contação de Histórias na EJA: um


diálogo para diferentes práticas de letramento. 2020. 126 p. Dissertação (Mestrado
em Estudos da Linguagem) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2020.
(dissertação)

TFOUNI, Leda Verdiani; PEREIRA, Anderson de Carvalho. Análise indiciária: uma


topologia das singularidades. In: TFOUNI, Leda Verdiani; PEREIRA, Anderson de
Carvalho; MILANEZ, Nilton (org.). O paradigma indiciário e as modalidades de
decifração nas Ciências Humanas. Edufscar. 2018. p. 121- 148.

- 142 -
- 143 -
Eixo 14
Linguagem e significação

A CONSTRUÇÃO DAS TIRAS CÔMICAS DE


: AS PRINCIPAIS ESTRATÉGIAS

Alisson Rodrigo Bertan Cominato1

Resumo: Busca-se caracterizar as principais estratégias para a construção das tiras


cômicas da série Bichinhos de Jardim, uma criação de Clara Gomes. Segundo Ramos
(2017), a tira pode ser vista como um formato, um componente de vários gêneros de
tiras. Pertencente ao hipergênero histórias em quadrinhos, o gênero tira cômica no
formato tradicional é composto, geralmente, por três ou quatro vinhetas, na vertical
ou horizontal, com personagens fixas ou não, contendo uma quebra de expectativa, o
desfecho cômico. Na série, o gênero tira cômica é predominante, trazendo situações
bem-humoradas e envolvendo seres comuns a jardins. A partir da seleção de 20 tiras
(2021), protagonizadas por Joana e Mauro, foram observados os recursos da linguagem
quadrinística em funcionamento nas tiras, com base em Acevedo (1990), Cagnin (2014)
e Ramos (2004; 2007; 2011; 2017). As principais estratégias identificadas foram: a
preferência pelo formato tradicional e em cores; personagens fixas, tanto no desenho
quanto na personalidade; temáticas diversas e atuais, como a pandemia e a influência
da internet; espaços não fixos, porém com elementos que denotam o ambiente jardim
e de um computador para questões referentes à internet; interações verbais na forma
de diálogos entre personagens. Tais estratégias reforçam as características do gênero
tira cômica.

Palavras-chave: Linguagem dos quadrinhos. Tira cômica. Bichinhos de Jardim. Clara


Gomes.

Introdução

Esse trabalho está vinculado ao projeto “Quadrinhos e Análise linguística”,


bem como à dissertação de mestrado do autor. O corpus, Bichinhos de Jardim, uma criação
de Clara Gomes, fora selecionado como objeto de análise uma vez que a produção,
atual e contínua, suscita questões sobre os aspectos da linguagem dos quadrinhos
levantados, anteriormente, por estudiosos da área. Buscando caracterizar as principais
estratégias para a construção das tiras cômicas da série, apresentar-se-á, a seguir, os
critérios metodológicos adotados para a seleção e análise das tiras, bem como o que
fora observado. O corpo do texto, por sua vez, apresentará as principais estratégias da
linguagem dos quadrinhos apontadas por Acevedo (1990), Cagnin (2014) e Ramos
(2004; 2007; 2011; 2017) e como e quais delas aparecem frequentemente na série

1 Mestrando em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina. Contato:


alisson.rodrigo@uel.br

- 144 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Bichinhos de Jardim. Por fim, a conclusão apresentará os principais aspectos levantados


na análise.

Metodologia

Entende-se, aqui, tira, como Ramos (2017) afirma: um texto curto, de formato
geralmente retangular, constituído de três a quatro vinhetas, com presença de
personagens fixos ou não e que traz uma narrativa com desfecho inesperado no final.
O autor enumera diferentes tipos de tiras: tira cômica, que possui desfecho cômico;
tira seriada, que compreende parte de uma narrativa maior; tira cômics seriada, que
mescla os dois primeiros tipos citados; e tira livre, sem formato regular, com marcas
variáveis. Destarte, a tira pode ser vista como um formato, um componente de vários
gêneros de tiras.
As tiras de Bichinhos de Jardim são, predominantemente, tiras cômicas, o mais
popular dos tipos apresentados. Tira cômica, como o próprio nome diz, revela
aspectos que aproximam este gênero do gênero piada, como, por exemplo, a quebra
da expectativa do leitor ao final da narrativa que acaba gerando o humor; o fato de
ambos serem textos curtos; apresentarem personagens fixos ou não; a necessidade de
conhecimentos prévios e de inferências por parte do interlocutor para entender o
efeito de humor das histórias.
A série Bichinhos de Jardim fora criada no início do ano 2000 pela cartunista
carioca Clara Gomes, para o jornal Tribuna de Petrópolis. Inicialmente, as histórias
abordavam as desventuras do caramujo Caramelo em busca do amor da borboleta
Brigitte e da realização do seu grande sonho: poder voar. No entanto, com o decorrer
do tempo, outros bichinhos foram integrando as narrativas, que passaram a abordar
temáticas mais atuais, como questões políticas, sociais e éticas. Com o advento da
internet, a cartunista trouxe os bichinhos para o seu blogue pessoal
(http://bichinhosdejardim.com/) e suas histórias também passaram a integrar as
páginas do jornal O Globo, onde estão até os dias de hoje.
O recorte realizado para a seleção do material compreendeu apenas as tiras
publicadas dos meses de janeiro a agosto de 2021. Dos personagens criados por Clara
Gomes, um dos critérios de seleção foi a interação de dois deles: Joana e Mauro. O
primeiro, uma joaninha que ganhou o coração dos leitores graças ao seu humor irônico,
e o outro, um “minhoco” um tanto ingênuo. As duas personagens funcionariam como
polos opostos e apresentam pontos de vista diferentes.
Vinte (20) tiras foram selecionadas no site oficial
(http://bichinhosdejardim.com/), nas quais se buscou analisar os principais aspectos
apontados pelos teóricos Acevedo (1990), Cagnin (2014) e Ramos (2004; 2007; 2011;
2017): formato da tira, elementos da narrativa (tempo, espaço, personagens e ação),
estratégias gráficas (balões, expressões faciais, onomatopeias); comparando as tiras
selecionadas e destacando a recorrência dos principais aspectos apontados.

- 145 -
Eixo 14
Linguagem e significação

A seguir, apresentam-se as estratégias observadas para a construção das tiras


cômicas de Bichinhos de Jardim.

1 As principais estratégias em

Ramos (2004; 2007; 2011; 2017) identificou um padrão ao investigar o ponto


de vista das pessoas diante das tiras cômicas. A maioria das pessoas, segundo ele,
compreende a tira cômica simplesmente como uma piada. Isso se dá, talvez, pelo fato
de ambos os gêneros compartilharem estratégias textuais semelhantes para provocar
um desfecho humorístico.

Há uma nítida mescla entre os conceitos de piada e tira cômica. Em parte, seria pela
falta de um estudo que comparasse os dois gêneros. Houve trabalhos científicos que
analisaram especificamente as tiras cômicas, mas abordaram o tema de forma
tangencial. A preocupação central não era saber se eram ou não uma piada (mesmo
apoiando-se em teorias de humor) (RAMOS, 2007, p. 127).

Posto isso, observa-se um ponto de partida para a caracterização da tira cômica,


suas semelhanças e diferenças com a piada e outros gêneros do discurso, visto que a
tira cômica possui tanto estratégias textuais que se assemelham à piada quanto
características específicas da linguagem dos quadrinhos (palavra e ilustração).
Logo, considerando a particularidade citada no parágrafo anterior, Ramos
(2004; 2007; 2011; 2017) enumera as características próprias do gênero tira cômica: as
variações de forma, o suporte e a sequência narrativa. Quanto à posição das tiras
cômicas, Ramos (2004; 2007; 2011; 2017) aponta-as em narrativa horizontal, vertical e
blocada.

Figura 1 — Existencialismo Anelídeo!


Fonte: Gomes, 2021, p. 1.

Na Figura 1, observa-se um exemplo tradicional de tira cômica: sequência


narrativa desenvolvida na linha horizontal - este é o formato predominante nas tiras
de Bichinhos de Jardim. Em quatro vinhetas, Joana e Mauro, personagens fixas, dialogam
sobre questões de cunho ético, social e existencial, muitas vezes abordadas pelo ser
humano. A narrativa se desenrola com a joaninha levantando os temas e o “minhoco”

- 146 -
Eixo 14
Linguagem e significação

demonstrando sua total indiferença diante destas questões. Na terceira vinheta, Joana,
indignada, questiona Mauro sobre o que ele tem na cabeça, já que não pensa em tais
assuntos. O leitor cria a expectativa de que o bichinho esclarecerá o motivo dessa total
indiferença. Contudo, na quarta vinheta, quebra-se a expectativa do leitor e provoca-
se o riso, quando Mauro, ao responder a dúvida de Joana, afirma possuir um cérebro
de minhoca. O humor acontece da dualidade de sentido que a expressão “cérebro de
minhoca” cria, uma vez que, como uma minhoca, anatomicamente, Mauro possui um
cérebro de minhoca, porém, como bem sabemos, uma pessoa com cérebro de minhoca
é alguém ignorante. A preferência pelo formato horizontal justifica-se, pois, apesar de
possuírem o mesmo tamanho, as vinhetas na vertical ocupam mais espaço se
considerarmos a disposição delas em um jornal e/ou revista.
No entanto, Ramos (2014), pautado nas observações de Bakhtin (2003) acerca
da flexibilidade dos gêneros do discurso, defende que a estrutura do gênero discursivo
não é algo fixo, acabado, imutável, uma vez que está sujeito a mudanças devido à
situação discursiva do momento.

Como se observa, a questão do formato fixo precisa ser reavaliada, dado o contexto
de produção. Há casos concretos que registram um alargamento no tamanho da tira
cômica. Mas o conteúdo continua obedecendo às características essenciais do gênero,
que são produzir uma narrativa tendencialmente curta, com desfecho inesperado, que
leva ao efeito de humor. E o fato de ser veiculada com dimensões maiores nos jornais
ajuda a familiarizar o molde em quem a lê, criando uma expectativa de que o gênero
abarca também tais dimensões ampliadas. Nos sites e blogs, que circulam em um outro
tipo de suporte, também é possível perceber ecos desse comportamento. (RAMOS,
2014, p. 9)

Dessa forma, apesar de possuir uma forma “fixa” (Figura 1), a tira cômica, bem
como os demais gêneros discursivos, são flexíveis quanto ao formato. Porém, isso não
atrapalha na sua classificação, pois se enquadra no gênero devido ao conteúdo
característico da tira cômica.
Como um dos diferentes gêneros que fazem uso da linguagem dos quadrinhos,
a tira cômica é predominantemente composta por uma sequência narrativa, ou seja, a
sequência em que são narrados os fatos, considerando tempo, espaço, enredo e
personagens, como se observa na Figura 1. A passagem do tempo é marcada de uma
vinheta para outra por meio do movimento das personagens e pela sucessão dos
acontecimentos. Enquanto nas três primeiras vinhetas os bichinhos permanecem
estáticos, apenas conversando olhando para o céu, na última vinheta é possível
perceber a movimentação de Mauro ao inclinar-se para responder à Joana. Há também
a alternação do ângulo entre a primeira, a segunda e a terceira vinhetas, estratégia pouco
comum na série Bichinhos de Jardim, mas que, aqui, corrobora para compreendermos a
passagem de uma cena para outra. Destarte, como Ramos (2014) observa, o tempo e
o espaço estão associados, pois, pela observação do espaço na sequência de cenas, é
possível reconhecer o tempo da ação.

- 147 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Cagnin (2014) destaca que, das noções tomadas para compreender o


funcionamento dos diversos contextos da leitura dos quadrinhos, a ideia de tempo
merece especial destaque. Para tanto, o autor enumera seis tipos de tempo: 1) tempo
como uma sequência de um antes e um depois, apresenta enredo com um começo, um
meio e um fim; 2) tempo como época ilustra um período histórico e é indicado,
geralmente, pela composição da cena; 3) tempo astronômico mostra a passagem do
dia para a noite e vice-versa; 4) tempo meteorológico é o que indica calor, frio, chuva,
neve etc; 5) tempo da narração, nos quadrinhos, por se tratar de mimese, a narração é
direta e tem-se uma representação; portanto, o passado se torna presente à medida que
é lido; 6) tempo de leitura, como Cagnin (2014) esclarece, um quadrinho passará por
três modalidades de tempo: futuro (enquanto não lido); presente (no momento da
leitura) e passado (depois dela). Em Bichinhos de Jardim, a concepção de tempo mais
explorada é a sequência de um antes e depois, talvez devido ao caráter imediato das
tiras, de buscarem representar assuntos recorrentes de maneira breve, porém há
narrativas em que podemos ver a presença do tempo astronômico e do meteorológico
que denotam a figura externa do jardim.
Ainda sobre a sequência narrativa, considerando os apontamentos sobre as
noções de tempo de Cagnin (2014), percebe-se o desencadear dos fatos, ou seja, o
enredo. Este é perceptível na apresentação das personagens em determinada situação,
Joana e Mauro estão deitados sobre as folhas, conversando e olhando para o céu. Logo,
surge a complicação: Mauro não se interessa por nenhuma das questões levantadas por
Joana. O clímax acontece quando Joana busca entender o porquê da displicência de
Mauro diante tais questões. Por fim, no desfecho, Mauro diz que não pensa em tais
questões, pois possui um “cérebro de minhoca”. Vale destacar que é esse desencadear
de fatos que leva o leitor a identificar o cômico, pois é a apatia de Mauro diante dessas
questões existenciais que leva o autor a questionar o porquê. Na expectativa de que o
“minhoco” esclareça essa dúvida, alcançamos um final diferente, trazendo, assim, um
desfecho inesperado e cheio de humor.
Deve-se considerar também as personagens. Cagnin (2014) classifica as
personagens da linguagem dos quadrinhos em três tipos: realista, estilizada e caricata.
Em Bichinhos de Jardim, as personagens são estilizadas, pois transmitem traços
específicos do autor, ou seja, são caracterizadas por atender ao seu estilo de desenho.
Ramos (2007, 2011, 2014; 2017) reconhece mais uma tendência relativa às
personagens, que podem ser fixas ou não. O primeiro grupo é constituído por
personagens constantes, os protagonistas, as mais frequentes nas histórias, já as
personagens não fixas aparecem na história apenas para interagir com as fixas,
ilustrando o momento desejado pelo criador. Para o total entendimento da Figura 1, é
necessário antes conhecer as duas personagens: Joana,a joaninha, pequena, vermelha e
de bolinhas pretas, é caracterizada como possuidora de uma personalidade realista,
rigorosa e mal humorada, por isso ela está tão engajada nas questões existenciais e por
isso ela demonstra espanto ao perceber que Mauro não se importa; Já Mauro, o
“minhoco” (como ele mesmo se intitula), com o corpo serpentino verde e listras

- 148 -
Eixo 14
Linguagem e significação

amarelas, é alguém despretensioso, por vezes simplório, que acredita na felicidade, mas
também é comum notar em seus comentários certo posicionamento crítico. Na Figura
1, o total desinteresse dele pode parecer fruto dessa ingenuidade que o caracteriza, mas
a afirmação de que ele possui um “cérebro de minhoca” é suficiente para perceber que
ele tem consciência de que pensar em tais assuntos seja necessário. Portanto, em
Bichinhos de Jardim, tem-se personagens fixas, tanto no desenho quanto na personalidade
e, por vezes, é conhecendo essa personalidade que se consegue compreender o texto
em sua totalidade.
“Nos quadrinhos, parte dos elementos da ação é transmitida pelo rosto e pelo
movimento dos seres desenhados” (RAMOS, 2014, p. 107). As ligeiras mudanças de
expressão das personagens motivam uma interpretação além do texto.

Figura 2 — Coisa leve


Fonte: Gomes, 2021, p. 1.

A narrativa da Figura 2 mostra Joana pedindo a ajuda de Mauro para publicar


um conteúdo leve em suas redes sociais. Na primeira vinheta, a joaninha aparece
olhando para a tela do computador, olhando fixa e concentradamente, e com a boca
aberta, enquanto Mauro observa calado. Na segunda vinheta é possível perceber que
Joana levantou a cabeça e agora olha em direção a Mauro, enquanto o “minhoco”
ainda olha sério e pensativo. Na última vinheta, quando chega ao desfecho cômico,
Mauro está com uma expressão sorridente, não pela crítica que ele fez, mas por
acreditar ter ajudado a amiga, enquanto Joana apresenta uma expressão fixa e calada,
como se não tivesse resposta para afirmação do amigo. O rosto é uma das principais
marcas de expressividade para a cena e a intenção que se deseja criar.
Acevedo (1990) enumera quatro expressões faciais que podem ser identificadas pelos
olhos, sobrancelhas e/ou pela boca das personagens:

Quando estamos alegres, tudo parece expandir-se e isto nota-se também no rosto. As
sobrancelhas se arqueiam para cima e a boca vai, como se diz, “de orelha a orelha”.
[...]
Na raiva, ao contrário, tudo parece contrair-se. Em vez de expansão, há tensão: as
sobrancelhas voltam-se para o centro do rosto e a boca se torce num movimento para

- 149 -
Eixo 14
Linguagem e significação

baixo, de modo inverso ao que acontece na alegria. [...]


Na tristeza, tudo parece cair: as sobrancelhas caem para os lados e a boca, repetindo
para baixo o movimento da raiva, parece amolecer. [...]
A serenidade, o repouso, a calma têm uma predominância de linhas horizontais. Os
movimentos das sobrancelhas e da boca tornam-se menos pronunciados, até
estabilizar-se. [...]
Alegria, raiva, tristeza e serenidade são as quatro expressões básicas. Assim as
denominamos porque a partir delas podemos conseguir outras expressões.
(ACEVEDO, 1990, p. 25-27).

Diante das informações expostas sobre as personagens dos quadrinhos, chega-


se a um dos pontos mais relevantes no estudo das histórias em quadrinhos: a
representação da fala e do pensamento. Segundo Ramos (2007, 2011, 2014; 2017), a
linguagem dos quadrinhos possui várias maneiras para representar a fala, sendo a
principal, o balão. Este é um recurso gráfico, geralmente indicado por uma linha que
contorna o balão, e que procura recriar uma conversa da personagem consigo mesma
ou com outrem.
Acevedo (1990) destaca que a maioria dos balões de fala/pensamento é
composta por dois elementos: o continente (o corpo, o rabicho ou apêndice) e o
conteúdo (toda a linguagem verbal ou figura), que se encontra em seu interior. No
entanto, apesar desses dois elementos em comum de quase todos os balões, há diversas
formas de se construir um balão de fala/pensamento, podendo, assim, apresentar
diferentes sentidos. Com isso, torna-se necessário, antes de entender o conteúdo do
balão, identificar seu formato, observando a linha que os contorna.
Ramos (2007, 2011, 2014; 2017) enumera uma variação de balões e o que
representam. O balão mais comum é o balão-fala. Ele possui um contorno contínuo,
reto ou curvilíneo e, geralmente, representa a fala da personagem. Nas Figuras 1 e 2,
as interações entre Joana e Mauro se dão por balões-fala, em que ambos se expressam
de modo que um possa ouvir o outro. Esse é o balão mais recorrente nas histórias dos
Bichinhos de Jardim.
Em contrapartida ao balão-fala, há o balão-pensamento. Neste, como o
próprio nome indica, a personagem expressa um pensamento, algo que só ela mesma
pode “ouvir”. O contorno desse balão é ondulado, lembrando uma nuvem. O balão e
a personagem são ligados por um apêndice em forma de bolhas; juntos, balão e
apêndice, representam o pensamento.
O balão-fala pode alterar seu formato dependendo da reação que a personagem
demonstra. Ele pode representar um grito, ganhando, nesse contexto, um contorno
desenhado com as extremidades para fora. Na Figura 3, a seguir, Joana, empolgada,
grita pelos nomes de Rebeca Andrade e Rayssa Leal, medalhistas brasileiras nas
Olimpíadas de 2020. Esse balão representa uma alteração no tom de fala. Por isso, é
apresentado como uma explosão.

- 150 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Figura 3 — Bom Humor Olímpico


Fonte: Gomes, 2021, p. 1.

Na Figura 3, ainda é possível observar alguns recursos apontados por Cagnin


(2014), tais como as linhas cinéticas, na terceira vinheta, demonstram o ânimo, a
exaltação de Joana ao citar o nome das atletas. A gota no rosto de Mauro representa
emoção, mas Cagnin (2014) demonstrou que, na linguagem dos quadrinhos, esse
aspecto pode ganhar conotações diversas, tais como esforço físico, desespero, suor,
lágrimas, raiva etc. Ainda pode se ver, na quarta vinheta, a mudança de plano, para um
plano amplo, geral. Essas estratégias, apesar de enriquecerem essa tira cômica, não são
muito comuns na produção de Gomes.
Além dos diferentes tipos de balão utilizados para representar a fala e o
pensamento, a linguagem dos quadrinhos conta com outro importante recurso para
retratar os sons nas histórias: a onomatopeia. Ela é uma figura de linguagem que
reproduz fonemas ou palavras que imitam os sons naturais, quer sejam de objetos,
quer sejam de pessoas, quer sejam de animais. Ramos (2007, 2011, 2014; 2017) defende
que esse recurso aumenta a expressividade do discurso e torna os quadrinhos ainda
mais interessantes e divertidos, já que, além de uma representação sonora, é visual, ou
seja, é como se o som pudesse se concretizar por meio da onomatopeia. Existem várias
maneiras para realizar essas representações que muito dependem da língua utilizada no
país onde foram criadas. Além disso, Ramos (2007, 2011, 2014; 2017) defende a ideia
de que não existem normas para o uso e a criação desse recurso, pois o limite se
encontra na criatividade e na imaginação de cada autor, como são mostrados em alguns
exemplos a seguir.

Figura 4 — Otimismo Derrapante


Fonte: Gomes, 2021, p. 1.

- 151 -
Eixo 14
Linguagem e significação

A tira cômica citada anteriormente apresenta a onomatopeia tec! que, aliada à


personagem, às linhas cinéticas e à mudança de cenas, torna perfeitamente possível o
entendimento da sequência narrativa. tec! representa o som do teclado do computador,
apresentado em um tamanho contínuo, mostrando que, mesmo que se repita, o som
do teclado é o mesmo. Pensando nisso, Ramos (2007, 2011, 2014; 2017), ao falar de
onomatopeia, aponta que elementos como a cor, o tamanho, o formato e até o
prolongamento podem designar significados distintos no contexto em que é
produzido.
A seguir, as conclusões alcançadas com a análise das tiras.

Conclusão

Dentre os diversos recursos da linguagem dos quadrinhos, alguns são


recorrentes: a preferência pelo formato tradicional e em cores; personagens fixas, tanto
no desenho quanto na personalidade; temáticas diversas e atuais, como a pandemia e
a influência da internet; espaços não fixos, porém, com elementos que denotam o
ambiente jardim e de um computador para questões referentes à internet; interações
verbais na forma de diálogos entre personagens.
Os aspectos apontados corroboram para reafirmar a classificação da produção
de Gomes, Bichinhos de Jardim, como tira cômica, além de que amplia a compreensão
dos aspectos característicos da linguagem dos quadrinhos.

Referências

ACEVEDO, Juan. Como fazer histórias em quadrinhos. Tradução de Sílvio


Neves Ferreira. São Paulo: Global Editora, 1990.

CAGNIN, Antonio Luiz. Os quadrinhos: um estudo abrangente da arte


sequencial, linguagem e semiótica. São Paulo: Criativo, 2014.

GOMES, Clara. Tira cômica “Bom Humor Olímpico”. Rio de Janeiro, 03 ago.
2021. Disponível em: http://bichinhosdejardim.com/bom-humor-olimpico/. Acesso
em: 01 jun. 2021.

GOMES, Clara. Tira cômica “Coisa leve”. Rio de Janeiro, 15 jul. 2021. Disponível
em: http://bichinhosdejardim.com/coisa-leve/. Acesso em: 01 jun. 2021.

- 152 -
Eixo 14
Linguagem e significação

GOMES, Clara. Tira cômica “Existencialismo Anelídeo”. Rio de Janeiro, 17 ago.


2021. Disponível em: http://bichinhosdejardim.com/existencialismo-anelideo/.
Acesso em: 01 jun. 2021.

GOMES, Clara. Tira cômica “Otimismo derrapante”. Rio de Janeiro, 09 jan.


2021. Disponível em: http://bichinhosdejardim.com/otimismo-derrapante/. Acesso
em: 01 jun. 2021.

RAMOS, Paulo. Faces do humor: uma aproximação entre piadas e tiras. Campinas,
SP: Zarabatana Books, 2011.

RAMOS, Paulo. Tiras cômicas e piadas: duas leituras, uma piada. 2007. Tese
(Doutorado em Letras). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. Disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8142/tde-04092007-141941/pt-
br.php. Acesso em: 01 jun. 2021.

RAMOS, Paulo. Tiras livres: um novo gênero dos quadrinhos. Paraíba: Marca da
Fantasia, 2014.

RAMOS, Paulo. Tiras no ensino. São Paulo: Parábola, 2017.

- 153 -
Eixo 14
Linguagem e significação

A DENÚNCIA SOCIAL NAS TIRAS CÔMICAS DE

Amanda Carolina Pereira de Jesus1

Resumo: Pretende-se mostrar os aspectos sociais presentes nas tiras cômicas de Os


Fradinhos do cartunista Henfil. A tira cômica consiste em um gênero discursivo cuja
principal característica é o desfecho inesperado, gerador do efeito cômico (RAMOS,
2011; 2017). Entende-se que as HQ possuem uma linguagem autônoma, com recursos
próprios (balões, onomatopeias, linhas cinéticas, metáforas visuais, vinhetas...)
(ACEVEDO, 1990; CAGNIN, 2014; RAMOS, 2012). O humor acompanha as
transformações sociais, funcionando como um instrumento de denúncia
(TRAVAGLIA, 1989; 1990; 2015). Sendo dois frades dominicanos, Cumprido é alto,
magro e conservador, enquanto Baixinho é baixo, gordo e depravado (MORAES,
1996). Aquele, segundo o próprio Henfil, representa o lado hipócrita do Brasil de 1964,
à medida que este diverge de tudo o que é estabelecido. Foram analisadas cem tiras
publicadas entre 1964 e 1980, compiladas na revista Fradim, número 1 (HENFIL,
1980), observando quais recursos da linguagem quadrinística foram usados para a
construção do humor ácido, em conexão com a denúncia social. Para a compreensão
do humor, baseou-se nas categorias propostas por Travaglia (1989; 1990; 2015). As
personagens evidenciam, sem pudor, o preconceito, as injustiças e a hipocrisia,
apoiando-se em: expressividade facial e corporal, balões-fala, metáforas visuais,
onomatopeias e pouco detalhamento espacial.

Palavras-chave: Humor; Tira cômica; Os Fradinhos; Denúncia social.

1 Considerações Iniciais

Neste trabalho, o objetivo é mostrar os aspectos sociais representados nas tiras


cômicas Os Fradinhos do cartunista Henfil. O objeto de estudo são as tiras publicadas
na revista Fradim, número 1, segunda edição (1980). A produção das tiras foi pautada
pelo contexto da ditadura militar brasileira, após o golpe AI-5. Com isso, as tiras
mostram questões sociais veladas pelo regime político da época.
Henfil (Henrique de Souza Filho) nasceu em 5 de fevereiro de 1944, em Belo
Horizonte, Minas Gerais. De família religiosa, a partir de sua convivência com os
frades dominicanos, surgiu a ideia de criar os dois fradinhos: Cumprido e Baixinho. As
personagens foram lançadas na revista Alterosa em 1964, mas passaram a ganhar

1Mestranda em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina (UEL).


Bolsista CAPES. Colaboradora dos projetos de pesquisa Quadrinhos e Análise Linguística e
Quadrinhos e Análise Linguística: as personagens em atuação nas novelas gráficas. Contato:
amanda.carolina.jesus@uel.br.

- 154 -
Eixo 14
Linguagem e significação

reconhecimento nacional a partir das publicações das tiras no semanário da imprensa


alternativa O Pasquim e posteriormente em sua própria revista Fradim (1971).
Com personalidades opostas, fradinho Baixinho é sarcástico e provocador; já
Cumprido, sensível e conservador. O contraste das personalidades revela que,
enquanto Baixinho se opõe ao regime da ditadura militar, Cumprido, por sua vez, é
favorável. Isso faz com que Cumprido sofra ataques físicos e verbais de Baixinho
constantemente. Por meio de um humor ácido e agressivo, com Os Fradinhos, Henfil
questionou, de forma afrontosa, as injustiças sociais presentes em uma sociedade que
pregava a moral e os bons costumes.
A análise das tiras foi realizada a partir de uma breve abordagem da trajetória
de Henfil e de uma contextualização sócio-histórica do período de produção, a
ditadura militar brasileira (1964-1985). Para caracterização da linguagem dos
quadrinhos, foram considerados os estudos de Cagnin (2014), Acevedo (1990), Ramos
(2012). Para o humor em conexão com a linguagem dos quadrinhos e a denúncia social,
apoiou-se na concepção de humor proposta por Travaglia (1990) e a categorias de
análise estabelecidas por Travaglia (1989a; 1989b; 2015).
A partir disso, foi apresentada a concepção de humor, em conexão com
recursos da linguagem quadrinística, por exemplo: as onomatopeias, detalhamento
espacial, metáforas visuais, linhas cinética e expressões corporais e faciais. Tais
aspectos são apresentados na análise da tira “Mil gols de Pelé” (Figura 1) realizada
neste artigo.

2 Contexto Sócio-Histórico

Henfil (Henrique de Souza Filho) nasceu em 5 de fevereiro de 1944, em Minas


Gerais. O cartunista possui grande relevância na para os quadrinhos. Suas personagens
pioneiras foram lançadas no contexto da ditadura militar brasileira, em 1964, na revista
Alterosa, de Minas Gerais, onde Henfil deu início à sua carreira como cartunista. Os
Fradinhos são dois frades dominicanos, com características e personalidades opostas:
Cumprido é alto, magro, sensível e simpatiza com os valores conservadores. Em
contrapartida, Baixinho, que é baixo e gordo, é revolucionário, contestando tudo o que
é estabelecido (MORAES, 1996).
Em 1969, no semanário de humor O Pasquim, Baixinho e Cumprido passaram
a ser reconhecidos nacionalmente. Criado por Tarso de Castro Sérgio Cabral e Carlos
Prospéri, o projeto do Pasquim surgiu em 1968, período em que se iniciava no Brasil a
ditadura militar, com o golpe de 1964, estendendo-se até 1985. Com a proposta de
criar um veículo próprio, sem as regras impostas pela grande imprensa, o primeiro
número chegou às bancas em 26 de junho de 1969, com apenas seis meses que o Ato
institucional número cinco – AI-5 – havia sido promulgado e a imprensa vivia “[...]
uma fase de niilismo e perplexidades” (MORAES, 1996, p. 103).

- 155 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Durante o regime militar, os direitos sociais e civis foram reprimidos;


adversários eram punidos por práticas de tortura, à medida que a imprensa era
censurada. De acordo com Silva (2019),

[...] a censura foi a principal arma do governo para centralizar o poder no executivo, já
que impedia os veículos de comunicação de fazerem denúncias, tecerem comentários
contra as ações não governamentais, mostrar ações negativas do governo e atividades
que consideravam subversivas (SILVA, 2019, p. 3).

A imprensa alternativa contestava contra o momento que a mídia vivia. Era


formada por jornalistas e políticos que questionavam a censura do governo,
denunciando “[...] crimes contra a liberdade individual, torturas e má administração de
recursos públicos” (SILVA, 2019, p. 3). As perseguições por parte do poder público
eram intensas. Ocorreram prisões de editores, ataques com bombas nas redações,
apreensões de edições inteiras, além de cortes que destruíam boa parte dos materiais
produzidos (MARTINS; LUCA, 2006). Mesmo com o obstáculo da censura,
jornalistas que não admitiam a subversão imposta pelo regime conseguiam, por meio
de recursos como o humor, denunciar o governo (SILVA, 2019).
“Os Fradins representaram um gesto raivoso de protesto contra o moralismo
no âmbito dos costumes que tomava volume no discurso político da ditadura militar
[...]” (PIRES, 2010, p. 59). Em 1970, Henfil lançou a revista Fradim, com isso o
cartunista passou a ter mais liberdade para produzir suas tiras. De acordo com Pires
(p. 32, 2010), “[...] foi no jornal O Pasquim e não revista de sua autoria Fradim que Henfil
pôde trabalhar mais livremente, apesar da pressão de censura oficial”. Para Henfil, sem
O Pasquim, a revista Fradim não seria possível: “‘[...] o Pasquim é o pai e a mãe do
Fradim. Foi de lá que saiu o Fradim. Se não fosse o Pasquim a revista do Fradim não
existiria’” (HENFIL, 1977, p. 47 apud PIRES, 2010, p. 83).

3 A linguagem dos quadrinhos

Para Acevedo (1990), Cagnin (19752/2014) e Ramos (2012), as histórias em


quadrinhos possuem uma linguagem autônoma, com recursos próprios, sendo assim
uma forma diferente e particular de contar histórias por meio de, por exemplo:
vinhetas, balões, personagens, tempo, espaço, metáforas visuais, onomatopeias, linhas
cinéticas etc.
A vinheta ou quadrinho é onde se agrupa “[...] cenário, personagens,
fragmentos do espaço e do tempo. ” (RAMOS, 2010, p. 89). O formato pode variar,
sendo os mais recorrentes o retângulo e o quadrado, também os mais presentes em Os

2A primeira edição da obra Os quadrinhos: linguagem e semiótica: um estudo abrangente da arte sequencial
de Antonio Luiz Cagnin foi publicada em 1975. Neste estudo, é utilizada a edição publicada
em 2014.

- 156 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Fradinhos. É comum as vinhetas possuírem um contorno, denominado por Acevedo


(1990), de linha demarcatória, cuja função é demarcar o tempo e o espaço. Porém,
como afirma Vergueiro (2014), o contorno não deve ser visto como uma “prisão”.
Assim sendo, não há um limite, pois tudo depende da criatividade do cartunista. Pode
acontecer de alguns quadrinistas não usarem a linha demarcatória, como ocorre em
muitas tiras de Os Fradinhos.
“A vinheta perfila o espaço, enquadrando-o em largura e altura. Esta limitação
bidimensional do espaço real denomina-se enquadramento” (ACEVEDO, 1990, p. 77). Há
diferentes planos de visão de acordo com o enquadramento das personagens e do
cenário. Em Os Fradinhos, há pouco detalhamento espacial, sendo mais recorrente o
plano de visão total ou conjunto. Neste plano, a personagem é representada por inteiro
(CAGNIN, 2014; RAMOS, 2012). “O fundo ou cenário é mínimo” (CAGNIN, 2014,
p. 108).
A representação da fala ocorre na linguagem dos quadrinhos por meio de
balões. Para Acevedo (1990, p. 101), “[...] o balão é composto por dois elementos: o
continente (o corpo e o rabicho) e o conteúdo (linguagem escrita e imagem)”. Sentimentos
e entonação de fala podem ser indicados de acordo com o contorno do balão,
caracteriza Ramos (2010). Essas variações “[...] formam um código de sentido próprio
da linguagem dos quadrinhos” (RAMOS, 2012, p. 36). Em Os Fradinhos, os balões de
fala não apresentam contorno, ficando, portanto, “[...] o texto desguarnecido em um
canto qualquer do quadrinho. E o apêndice torna-se apenas um traço que liga a fala à
personagem” (CAGNIN, 2014, p. 144). Para Ramos (2012), trata-se do balão-zero.
Nas tiras cômicas de Os Fradinhos apenas para representação do pensamento, é
utilizado o balão com contorno, sendo o balão-pensamento. Para Ramos (2012), o
balão em questão possui formato de nuvem e o apêndice formato de bolhas.
As personagens protagonistas de Os Fradinhos são fixas, estilizadas e com
aspectos caricatos. O nariz de Cumprido e os pés das personagens são
desproporcionais ao corpo (aspecto caricato). As metáforas visuais consistem em uma
maneira de “[...] expressar ideias ou sentimentos por meio de imagens” (RAMOS,
2012, p. 112). São exemplos de metáforas visuais, gotas expelidas pelo rosto, que
podem representar lágrimas, suor ou desespero; notas musicais, que podem expressar
música ou assobio, entre outras.
Para representação dos sons emitidos por personagens e objetos, a linguagem
dos quadrinhos utiliza as onomatopeias.

A onomatopeia tem duplo aspecto duplo:


– analógico: pelo formato e tamanho que tomam o desenho, motivados pela qualidade,
tipo e intensidade dos sons;
– o linguístico, por empregar as letras, as palavras e criar (CAGNIN, 2014, p. 156).

Os movimentos nas histórias em quadrinhos são indicados por meio das linhas
cinéticas. De acordo com Acevedo (1990), são linhas que indicam o movimento ou

- 157 -
Eixo 14
Linguagem e significação

trajetória de um objeto. Podem aparecer em torno do objeto, do corpo das


personagens, de forma que indica o caminhar, o movimento da cabeça e a inclinação
do corpo.
Esses recursos apresentados são os mais recorrentes nas cem tiras publicadas
na revista Fradim, segunda edição de 1980, objeto de estudo deste trabalho. Tais
mecanismos compõem a linguagem quadrinística, comprovando sua autonomia.

4 O humor nas tiras cômicas de

O humor se constitui de acordo com o caminhar da sociedade. Pensa-se em


humor como algo que tem como objetivo apenas o fazer rir. Entretanto, essa é apenas
uma das faces que o humor possui, e seus objetivos podem ir muito além do riso. “Ele
é uma espécie de arma de denúncia, de instrumento de manutenção do equilíbrio social
e psicológico, uma forma de revelar e de flagrar outras possibilidades de visão do
mundo e das realidades naturais ou culturais que nos cercam e, assim, de desmontar
falsos equilíbrios (TRAVAGLIA, 1990, p. 55). Por meio do humor, Henfil buscou
questionar a hipocrisia e o falso moralismo, com temas polêmicos, como a sexualidade,
a religião, o racismo, o uso de estereótipos criados socialmente e o momento político
da época. A linguagem é constituída através de gírias e palavrões, sendo comum o uso
de palavras como: “meleca”, “pum”, “putsgrila”, “porra”, entre outras
Graças à sua roupagem de algo “não-sério”, por meio do humor, libera-se o
que a sociedade reprime de forma mais aceitável (TRAVAGLIA, 1990). O humor é
um fenômeno social em que se pode produzir ataque ao estabelecido, à censura, ao
controle. Por meio do estudo do humor, descobrem-se as repressões de uma
sociedade. Ainda de acordo com Travaglia (1990), o humor é visto como um
instrumento para revelar verdades escondidas.

O humor é visto por quase todos estudiosos, como um recurso, um meio, um caminho,
um instrumento, uma arma usada em todas sociedades para descobrir através da análise
crítica do homem e da vida e revelar verdades escondidas e falsificadas, permitindo uma
visão especial da vida, uma nova visão do mundo pela transposição de conceitos, uma
ampliação dos contatos com nossas realidades. (TRAVAGLIA, 1990, p. 67).

Travaglia (1989a; 1989b; 2015) propõe sete categorias de análise do humor: 1)


composição, que pode ser descritivo, narrativo e dissertativo; 2) objetivo, podendo ser
riso pelo riso, liberação, crítica social e denúncia; 3) grau de polidez, caracterizado
como sujo ou pesado, de salão ou médio; 4) assunto, pode ser negro, social, sexual,
étnico, erótico, pornográfico; 5) código, materializado em verbal (linguístico) e não
verbal; 6) scripts, que são os causadores do humor, tais como estupidez, burrice,
esperteza ou astúcia, absurdo, ridículo, mesquinhez; 7) mecanismos, os quais são os
recursos utilizados para produção do humor, como cumplicidade, ironia, mistura de
lugares sociais ou posições de sujeito, ambiguidade, estereótipos, contradição,

- 158 -
Eixo 14
Linguagem e significação

sugestão, jogo de palavras, trava-língua, exagero, desrespeito a regras conversacionais,


violações de normas sociais, observações metalinguísticas e descontinuidade de tópico
ou quebra de tópico. O autor estabeleceu essas categorias a partir da análise realizada
em 1989 de dois programas da televisão brasileira: um de elite, Viva o gordo da Rede
Globo; outro popular, A praça é nossa do SBT (TRAVAGLIA, 1989a). Em 2015, o
linguista retoma as categorias para analisar outros objetos. São eles: a piada, a piada
visual, a esquete, a tira, a charge (e suas variações), o cartum, o pega, o trava-língua e a
paródia.
A partir dessa concepção de humor e das categorias propostas pelo linguista,
foi realizada a análise de uma tira cômica de Os Fradinhos na próxima seção.

4.1 A tira cômica

A tira cômica é um gênero discursivo em que a principal característica é a


construção de uma expectativa que ao final da narrativa é quebrada. “Essa estratégia
de criar uma situação inesperada é o que leva à produção do humor” (RAMOS, 2017,
p. 64). Trata-se de um texto predominantemente narrativo, com personagens fixas ou
não. Sendo tendencialmente curta. Dependendo do suporte, os formatos podem
variar, podendo ser apenas em uma vinheta (ou quadrinho) ou em mais de um andar.
Para compreensão do efeito cômico, são necessários conhecimentos prévios e
inferências por parte do leitor, como afirma Ramos (2017).

- 159 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Figura 1 – Mil gols de Pelé3


Fonte: Henfil (1980, p. 61)

Transcrição
— Ai, que emoção: faltam 7 gols! 7 gols pro Pelé inteirar os mil! (1ª vinheta)
— Já pensou que bacana: quando ele chegar nos 999 é atropelado e tem que amputar
as duas pernas? (2ª vinheta)
— Tá ok! Tá ok! Amputa só uma perna... (3ª vinheta)

Nessa figura, tem-se uma tira em formato vertical, constituída por três vinhetas
ausentes de linha demarcatória. O cenário é composto apenas por duas pedras, onde
os dois fradinhos se sentavam. As personagens e o cenário estão representados por
completo, sendo este o plano de visão geral. A temática é o futebol brasileiro,

3 Henfil comumente não intitulava as tiras de Os Fradinhos, portanto, o título apresentado foi
atribuído pela autora do trabalho.

- 160 -
Eixo 14
Linguagem e significação

especificamente os gols do jogador Pelé, que é considerado pelos brasileiros um ídolo


do futebol. Pelé foi essencial para o Brasil na Copa de 1970, que ocorreu no período
da ditadura militar.
Na primeira vinheta, os dois fradinhos estão sentados, um de costas para o
outro. Cumprido está sorrindo e com as mãos juntas. Entusiasmado e com uma
expressão alegria, ele diz que faltam apenas 7 gols para Pelé completar mil. Na seguinte,
Baixinho, com uma expressão maliciosa, diz que seria bom se, quando Pelé estivesse
próximo aos mil gols, sofresse um acidente; e isso o fizesse ter que amputar as duas
pernas. Ao ouvi-lo, Cumprido fica em estado de choque diante da maldade de
Baixinho. Isso faz com que ele se estremeça (ação indicada com as linhas cinéticas em
torno de sua cabeça). Na última vinheta, Cumprido e Baixinho levantam-se das pedras
onde se sentavam. O estado emocional de Cumprido é de raiva, sendo possível
perceber esse sentimento por sua expressão facial: as sobrancelhas arqueadas e as
pupilas juntas, olhando para Baixinho, enquanto com as mãos em torno de seu pescoço
o enforca. Este, por sua vez, está sorridente, posicionado na ponta dos pés e com os
braços abertos. Para suavizar o que disse anteriormente, fradinho Baixinho diz que, ao
invés das duas pernas, poderia Pelé amputar somente uma.
A quebra de expectativa (característica principal da tira cômica) ocorre na
segunda vinheta, pois Cumprido esperava que Baixinho dissesse algo como “tomara
que ele complete os mil gols”, uma atitude considerada normal para os brasileiros,
muitas vezes vistos como uma nação que valoriza o futebol, elegendo o jogador Pelé
um ídolo nacional. Mas seu desejo era que o jogador sofresse um grave acidente,
fazendo Cumprido indignar-se, de forma a conversa terminar em uma agressão. O
efeito humorístico é construído por meio da provocação de Baixinho ao dizer que seria
bom se Pelé se ferisse de modo que necessitasse amputar as duas pernas, depois de
forma ainda mais sádica, faz uma correção dizendo que então poderia amputar apenas
uma perna. A personagem mostra seu sadismo ao colocar seu desejo para Cumprido
com gargalhadas, intensificando sua falta de sensibilidade.
A composição é narrativa. Também há uma sequência dialogal. O propósito é
a liberação, pois Baixinho disse o que pensava, sem se preocupar com o que seria
considerado adequado socialmente. O assunto é social por abordar um evento que
mobiliza a sociedade brasileira, a Copa do Mundo, buscando despertá-la sobre as
repressões veladas pela ditadura. E o assunto também é ácido por fazer rir de um
desejo cruel. O fato de uma pessoa precisar amputar as pernas é algo que sensibiliza e
até mesmo choca, não despertando o riso. Isso faz com que o grau de polidez seja sujo
e pesado. Travaglia (1989a; 1989b; 2015) propõe duas possibilidades quanto ao código
utilizado para construir o humor: o verbal e o não verbal. Porém, como dito
anteriormente, entende-se que as histórias em quadrinhos possuem uma autonomia
linguística, conforme (RAMOS, 2012). Sendo assim não se trata de uma união entre o
verbal e o não verbal, pois ela se constitui por meio de mecanismos que são próprios
da linguagem dos quadrinística, portanto, na análise dos gêneros quadrinísticos, como
a tira cômica, o código utilizado para constituir o humor será a linguagem dos

- 161 -
Eixo 14
Linguagem e significação

quadrinhos. Os scripts que causam o humor são o absurdo da imaginação de Baixinho


(amputar as pernas do jogador) e a mesquinhez, ou seja, sua falta de generosidade e
sensibilidade com o próximo. Os mecanismos para criar o humor são de acordo com
o que Travaglia (1989a; 1989b; 2015) propõe: a ironia (dizer que, então, ele pode
amputar apenas uma das pernas) e a violação de normas sociais, visto que Baixinho é
contrário ao sucesso do jogador, reforçando a autoridade militar em enganar a
sociedade.
Portanto, a denúncia social presente nessa tira se refere à maneira com que os
militares se aproveitaram do evento da Copa do Mundo de 1970 para desviar a atenção
da sociedade dos crimes cometidos pelo governo, por exemplo as torturas e
perseguições aos artistas e à imprensa. A forma de Os Fradinhos realizar essa denúncia
é por meio de uma afronta ao ídolo do futebol brasileiro, o jogador Pelé. Além disso,
questiona-se também o fato de os dois fradinhos serem pertencentes ao universo
religioso cristão, e estarem sempre se desrespeitando, um provocando o outro, ou seja,
comportamentos opostos ao que se espera de dois frades dominicanos, que de acordo
com a religião cristã possuem como valores a justiça, a oração, a fé, praticar a bondade,
o respeito e a verdade. Diante disso, entende-se que Henfil criou as personagens
contraditórias aos princípios cristãos (embora pertençam a ele) como uma forma de
questionar os valores religiosos, revelando a hipocrisia e a imoralidade que podem
existir nessa esfera da sociedade.

5 Considerações Finais

Diante do exposto, pode-se concluir que, em Os Fradinhos, quadrinhos e humor


são instrumentos de denúncia social. Por meio de elementos da linguagem
quadrinística como expressões faciais e corporais, onomatopeias, linhas cinéticas e
pouco detalhamento espacial, o humor é constituído, revelando repressões e injustiças
de uma sociedade que estava sob o controle da ditadura militar brasileira. No que se
refere às estratégias de construção do humor, foram identificados com base nas
categorias propostas por Travaglia (1989a; 1989b, 2015) como aspectos mais
recorrentes: a denúncia e a crítica social, a liberação por dizer o que se pensa
independentemente do que é adequado socialmente, constituindo um humor social e
ácido. Além disso, o grau de polidez é sujo e pesado, sendo causado por meio de
atitudes e situações absurdas, criadas com ironia e violação das normas sociais.
Por meio da análise, foi possível constatar que, enquanto fradinho Baixinho
buscava atacar a política governamental vigente com o objetivo de alertar a sociedade
o que está errado, fradinho Cumprido era de acordo com o que o governo propagava.
Com suas personagens, Henfil fez do humor e dos quadrinhos uma forma “[...] de
reconhecimento das mazelas sociais provocadas pela ditadura militar” (PIRES, 2010,
p. 68).

- 162 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Referências

ACEVEDO, Juan. Como fazer histórias em quadrinhos. Tradução de Silvio


Neves Ferreira. São Paulo: Global, 1990.

CAGNIN, Antonio Luiz. Os quadrinhos: linguagem e semiótica: um estudo


abrangente da arte sequencial. São Paulo: Criativo, 2014.

HENFIL (Henrique de Souza Filho). Fradim, n. 1, 2. ed. Rio de Janeiro: Codecri,


1980.

MORAES, Dênis de. O rebelde do traço: a vida de Henfil. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1996.

PIRES, Maria da Conceição Francisca. Cultura e política entre Fradins,


Zeferinos, Graúnas e Orelanas. São Paulo: Annablume, 2010.

RAMOS, Paulo. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2012.

RAMOS, Paulo. Tiras no ensino. São Paulo: Parábola, 2017.

SILVA, Douglas Porto da; PINTO, Paulo Rodrigo Ranieri Dias Martino. A difusão
de notícias na mídia impressa brasileira no período da Ditadura Militar: censura,
imprensa alternativa e o jornal Movimento. In: XV Jornada de Iniciação Científica e
Mostra de Iniciação Tecnológica, IX, 2019. São Paulo. Anais... São Paulo:
Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2019. Disponível em:
http://eventoscopq.mackenzie.br/index.php/jornada/xvjornada/paper/view/1663/
1065. Acesso em: 20 out. 2021.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. O que é engraçado? Categorias do risível e o humor


brasileiro na televisão. Estudos Lingüísticos e Literários, Maceió, v. 5 e 6, p. 42‐
79, 1989a. Disponível em:
https://www.seer.ufal.br/index.php/revistaleitura/article/view/6579/5508. Acesso
em: 28 set. 2021.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Recursos lingüísticos e discursivos do humor: humor e


classe social na televisão brasileira. In: XXXVI Seminário do Grupo de Estudos
Lingüísticos do Estado de São Paulo, 1989, São Paulo. Estudos Lingüísticos ‐ XVIII
Anais de Seminários do Grupo de Estudos Lingüísticos do Estado de São Paulo.
Lorena: Prefeitura Municipal de Lorena / GEL‐SP, 1989b. v. XVIII. p. 670‐677.
Disponível em:

- 163 -
Eixo 14
Linguagem e significação

http://www.ileel.ufu.br/travaglia/sistema/uploads/arquivos/anais_recursos_linguiti
cos_discursivos_humor.pdf. Acesso em: 28 set. 2021.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Uma introdução ao estudo do humor pela lingüística.


DELTA ‐ Revista de Documentação de Estudos em Lingüística Teórica e Aplicada,
São Paulo, v. 6, n. 1, p. 55‐82, 1990. Disponível em:
http://www.ileel.ufu.br/travaglia/sistema/uploads/arquivos/artigo_uma_introduca
o_ao_estudo%20do_humor_pela_linguistica.pdf Acesso em: 28 set. 2021.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Texto humorístico: o tipo e seus gêneros. In:


CARMELINO, Ana Cristina. Humor: eis a questão. São Paulo: Cortez, 2015. p. 49-
90.

VERGUEIRO, Waldomiro. A linguagem dos quadrinhos: uma “alfabetização”


necessária. In: Como usar as histórias em quadrinhos em sala de aula. RAMA,
Angela; VERGUEIRO, Waldomiro (Orgs.). São Paulo: Contexto, 2014. p. 31- 64.

- 164 -
Eixo 14
Linguagem e significação

A MISCIGENAÇÃO BRASILEIRA MANIFESTADA NA


REGIÃO CENTRO-OESTE POR MEIO DOS DADOS DO ALIB

Ana Heloisa Valente1


Vanderci de Andrade Aguilera2

Resumo: O presente artigo propõe uma análise da materialização da miscigenação


brasileira com foco nas localidades da Região Centro-Oeste, da rede de pontos do
Atlas Linguístico do Brasil (ALiB), a fim de compreender a história social e relacionar
o processo de povoamento híbrido do Brasil à manifestação nas diferentes línguas
identificadas nos estados de Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Com base nos
pressupostos teórico-metodológicos da Dialetologia Pluridimensional (THUN, 1998)
foram entrevistados 84 informantes, ou seja, quatro em cada uma das 21 localidades
dos estados centro-oestinos, dois homens e duas mulheres de duas faixas etárias e do
nível fundamental de escolaridade. Foram analisadas as respostas 2 e 3 das Questões
Metalinguísticas (COMITÊ NACIONAL DO PROJETO ALiB, 2001): “Falam
diferente aqui na região? Poderia dar um exemplo de como falam diferente?” O
levantamento das respostas a essa questão demonstrou a consciência da mestiçagem
da população brasileira e propiciou uma reflexão a respeito da variedade e
heterogeneidade linguística brasileira.

Palavras-chave: Questões metalinguísticas; Atlas Linguístico do Brasil; História


social; Diversidade linguística.

Introdução

Apesar de a nação brasileira ser conhecida por possuir uma homogeneidade


linguística, assumindo o português como única língua oficial, a presença de diferentes
culturas em todo o território nacional acaba demonstrando que o Brasil não é tão
homogêneo na prática como é na teoria. Em termos científicos, o brasileiro tem no
seu DNA uma complexa mistura e, segundo Lygia Pereira (2019), “o Brasil é
provavelmente o país com maior miscigenação no mundo”. A cientista, especialista
em genética, busca estudar o sequenciamento do genoma humano para desvendar
questões da área da saúde por meio do projeto “DNA no Brasil” e afirma que, apesar
de outros países já estudarem o genoma de suas nações há tempos, o caso do Brasil é
peculiar justamente por conta da imensa miscigenação existente no país.
A formação histórica do Brasil revela que este é um país miscigenado cultural
e etnicamente devido a vários fatores: (i) os indígenas, de vários grupos, já ocupavam
toda a superfície brasileira antes da chegada dos colonizadores portugueses; (ii) depois,

1 Letras na Universidade Estadual de Londrina. E-mail: ana.heloisa.valente@uel.br.


2 Professsora do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade
Estadual de Londrina –. E-mail: vanderci@uel.br.

- 165 -
Eixo 14
Linguagem e significação

no século XVI, os chamados “navios negreiros” trouxeram os africanos para serem


vendidos como escravos no país; (iii) ainda com o objetivo de conseguir mão-de-obra
cada vez mais barata, expedições foram organizadas para o interior do Brasil a fim de
aprisionar e escravizar índios, gerando o convívio e a exploração de diversos povos e
culturas; (iv) no século XIX, o estabelecimento da corte portuguesa no Brasil abriu o
país para imigrantes europeus, resultando no acréscimo de italianos, alemães, suíços,
poloneses e espanhóis para a mestiçagem brasileira.
Durante muito tempo, a miscigenação foi vista como algo ruim e considerada
um atraso para o desenvolvimento da nação; a Proclamação da República em 1889,
por exemplo, levou uma série de autores a defenderem que mestiçagem do Brasil
deveria ser superada. Nas décadas de 30 e 40, com a publicação de Casa-Grande e
Senzala, por Gilberto Freyre, foi transferido um valor positivo à miscigenação de etnias,
ao afirmar que essa mescla produziu um país harmônico, utilizando o termo democracia
racial para definir o Brasil. Embora Freyre rompa com a noção pessimista dos
positivistas, sua teoria acabou por mascarar os problemas sociais que negros e
indígenas sofriam no Brasil, por isso o conceito passa a merecer outras reflexões.
Diante desse cenário complexo, o presente artigo se propõe a analisar a
manifestação da miscigenação na Região Centro-Oeste do Brasil, bem como
demonstrar o valor da ideia de nação e etnia, a partir das 84 respostas às questões
metalinguísticas nº 2 e 3 dos Questionários 2001 do Atlas Linguístico Brasileiro (ALiB),
e com apoio em Freyre (1933), Renan (1947), Bakhtin (1970), Thiesse (1999), Beline
(2002) e Monteiro (2008).

1 Noções de nacionalidade

Segundo Renan (1947), uma nação se constrói a partir de um legado de


memórias que é aceito por todos como consensual. Dessa forma, pode-se afirmar, de
acordo com Thiesse (1999), que “pertencer a uma nação é ser um dos herdeiros desse
patrimônio comum, reconhecê-lo, reverenciá-lo” e que a nação nasce de “um
postulado e de uma invenção”; sendo assim, esse pensamento condensa-se na alma
nacional, manifestando-se através de um conjunto de elementos simbólicos, como a
história, que estabelece uma continuidade com os ancestrais, costumes, uma série de
heróis, modelos de virtudes nacionais etc. Posto isso, conclui-se que o reconhecimento
pessoal de um indivíduo com a sua nação é a sua nacionalidade e esta, por sua vez, é
uma identidade.
Por sua vez, para construir uma identidade nacional, é preciso adquirir uma
consciência de unidade de nação e também reconhecer as diferenças em relação às
outras nações. A ideia de nação para os brasileiros deveria ter seu início com a
separação de Portugal, visto se tratar de uma nação diferente que dominava o Brasil.
No entanto, esse desenvolvimento apresenta um problema: como a independência foi
proclamada por um príncipe português, não houve uma verdadeira e completa ruptura

- 166 -
Eixo 14
Linguagem e significação

com o colonizador. Dessa forma, a real construção da nacionalidade começa com a


nacionalização do monarca, quando Pedro I renuncia a Portugal e assume a
nacionalidade brasileira.
Quanto ao trabalho de constituição da nacionalidade, Bakhtin (1970) afirma
que a identidade nacional é um discurso, logo esta é constituída dialogicamente, ou
seja, a linguagem tem um papel fundamental nessa formação identitária brasileira. Um
exemplo simples disso são os autores românticos que, com suas obras e manifestos,
estiveram na linha de frente da construção da identidade nacional. Depois de muitos
anos de história, em que o Brasil experienciou a convivência entre povos totalmente
distintos (o indígena e o europeu), o embranquecimento da população que trouxe
novas etnias para dentro do país e, por fim, a aceitação da presença do africano na
cultura brasileira, a mistura e a miscigenação passaram a ser pontos-chave para
descrever a nacionalidade brasileira.
Um ponto a ser levantado é que, ao considerar o Brasil um país de “democracia
racial” – conforme afirma Freyre (1933) –, são desconsideradas as camadas em que se
observa o princípio da exclusão, como nas relações raciais, de sexo, orientação sexual
etc. Descreve-se o brasileiro como alguém aberto, acolhedor, cordial, agradável e
ocultam-se o preconceito e a violência que perpassam as relações cotidianas. O mesmo
ocorre nas relações linguísticas, visto que “a língua é um tipo de comportamento
estritamente social, assim como tudo numa cultura” (SAPIR, 1929 apud BELINE,
2002, p. 121).
Frente ao exposto, observa-se que os entendimentos dos pesquisadores se
aplicam à realidade da região Centro-Oeste, uma vez que é possível observar certa
noção de unidade linguística nas localidades de Goiás, Mato Grosso do Sul e Mato
Grosso, onde os entrevistados responderam às questões metalinguísticas nº 2 e 3 do
ALiB – que busca pesquisar, sob a ótica da Dialetologia Pluridimensional, se os
informantes reconhecem diferenças nos falares do local em que vivem; foi observada
uma maioria esmagadora que demonstrou estranhamento a algum dialeto próximo, o
que é reflexo da miscigenação sobre a língua brasileira.

2 Metodologia e discussão dos dados presentes no ALiB

O ALiB entrevistou 84 informantes na região Centro-Oeste, sendo quatro em


cada uma das 21 localidades, estratificados segundo o sexo (dois homens e duas
mulheres) e a faixa etária (I - entre 18 e 30 anos e II - entre 50 e 65 anos), todos com
apenas o nível fundamental de escolaridade, completo ou incompleto. O corpus
constitui-se de 79 respostas, dado que cinco áudios apresentaram problemas técnicos,
impossibilitando a computação delas.
Em trabalho anterior, Valente (2021, inédito) analisou as respostas dadas pelos
mesmos informantes à questão nº 1 das Perguntas Metalinguísticas do ALiB e
desenvolveu um gráfico em que mostra a supremacia da língua portuguesa falada no

- 167 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Brasil e algumas referências à língua brasileira, ao amazonense, ao portunhol e ao


guarani, na percepção desses falantes.

Gráfico 1 – Como se chama a língua que você fala?


Fonte: Elaborado pela autora com os dados do ALiB (VALENTE, 2021, inédito).

Como observado no gráfico, 90% dos informantes acreditam que a língua


materna é a portuguesa; as respostas “brasileiro”, “portunhol” e “guarani”, porém,
demonstram uma fagulha do reconhecimento da nação sobre a diversidade linguística,
em que se aprofunda o presente trabalho. Ao analisar o que os mesmos informantes
percebem na localidade em que vivem, nas respostas à Questão 2, observou-se que
eles têm consciência de falares diferentes, isto é, têm consciência de que a língua
portuguesa falada no Brasil não é homogênea. Embora não sejam linguistas, esses
falantes reconhecem essa diversidade e reforçam a premissa de Labov (1972 apud
MONTEIRO, 2008), para quem a heterogeneidade é inerente ao próprio sistema
linguístico e, “numa língua que serve a uma comunidade complexa […], a ausência de
heterogeneidade é que seria disfuncional” (MONTEIRO, 2008, p. 57).
As respostas dadas às questões nº 2 e 3 do questionário ALiB demonstraram
que a grande maioria, 61 falantes (72%), reconhece a existência de falares diferentes na
localidade onde cada um deles vive, enquanto 18 (21%) informantes acreditam que
todos falam igual.
Para ilustrar essas percepções, foram extraídas do corpus algumas afirmações
que merecem atenção maior e um aprofundamento teórico, como se pode observar
nos excertos 1 e 2. Observe-se que INQ. se refere à fala do Inquiridor ou Entrevistador
e INF. à do Informante ou Entrevistado; os números antes da barra remetem aos
informantes: 1 - homem, da faixa etária I; 2 - mulher, da faixa etária I; 3 - homem, da

- 168 -
Eixo 14
Linguagem e significação

faixa etária II e 4 - mulher, da faixa etária II. Depois da barra, os números indicam as
localidades3.

(1) INF.- Tem.


INQ.- Quem?
INF.- Os índios.
INQ.- Que língua que eles falam?
INF.- Carajás.
INQ.- Você aprendeu a língua deles?
INF.- Não (1/104).

(2) INF.- Só carajá.


INQ.- E eles falam na rua?
INF.- Falam, falam na rua aí (4/104).

Esses excertos mostram que é necessário conhecer as línguas indígenas e


demonstrar sua evidência na língua falada no Brasil sob um olhar específico, mas que
não é o foco deste artigo.
Visando manter o foco na variação linguística dentro do português, faz-se
fundamental a menção a Beline (2002), pois o autor chama atenção justamente para o
fenômeno que se observa nas respostas dos informantes aqui analisadas:

Se afunilarmos um pouco nosso foco, contudo, podemos nos lembrar de um fato


linguístico com que sempre convivemos, mas ao qual talvez nunca tenhamos dado
tanta importância, em termos científicos: o fato de que detectamos diferenças entre o
português que falamos em São Paulo, em termos genéricos, e o português que se fala
na cidade do Rio de Janeiro, ou nas cidades de Salvador e Porto Alegre (BELINE,
2002, p. 121).

O excerto 3 mostra que a informante 4 de Aripuanã-MT, por exemplo, tem


uma percepção semelhante à de Beline expressa nos seguintes termos:

(3) INQ. - Tem gente que fala diferente aqui em Aripuanã?


INF.- Tem, tem muita gente, cuiabano memo fala diferente.
INQ.- Como que eles falam diferente daqui?
INF.- O cuiabano ele, ele fala diferente porque por acauso se ele vai falá assim, você, ele fala
é…eis fala cortano, entendeu, muitas palava ele fala cortano, né, tudo ele vai cortano né,
como um, por acauso um… um paranaense, um polista (?=paulista) né, um
carioca…(4/103).

3 104 – São Félix do Araguaia.

- 169 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Nas localidades 118-Porangatu e 121-Formosa, em Goiás, por exemplo, os


informantes comunicaram que a diferença está justamente em quem vem de fora,
como os “nordestinos” e “gente que puxa o r”, conforme mostram os excertos 4 e 5:

(1) “Tem, tem muita gente que puxa bastante o R, né, e tem uns que já fala, mas que
tem de tudo aqui, tem nordestino, tem tudo, aí é, tem gente que fala diferente, sim (1/121).”

(2) “Ah, sotaque, né, tem sotaque diferente, tem... De região, principalmente em
fazenda, certo, [...] Sempre nas fazenda tem alguém que fala... Não sei se é por causa da
mistura, porque tem...” (3/121).

Esses depoimentos são um reforço da teoria explicada por Beline (2002), além
de serem uma comprovação de que o próprio povo brasileiro, mesmo o leigo, não só
reconhece a existência dessa variedade linguística como demonstra capacidade de
relacioná-la à mistura causada pela miscigenação. O gráfico 2 mostra, em percentuais,
os índices de informantes que percebem as diferenças linguísticas locais:

Gráfico 2 – Levantamento das respostas à questão nº2


Fonte: Elaborado pela autora com os dados do ALiB (2021).

Dentre todas as respostas afirmativas para as questões nº 2 e 3, é significativo


chamar atenção especificamente para as respostas dadas pelas informantes de Coxim,
ponto 112, e de Nioaque, ponto 116, do Mato Grosso do Sul (MS). Na maioria dos

- 170 -
Eixo 14
Linguagem e significação

diálogos, expressos nos excertos 6 e 7, há referência aos paraguaios e ao guarani como


a principal diferença notada na língua:

(1) INF.- Ah deve tê né, porque aqui tem tudo, é, como que fala, gente de todo lado,
paraguaio, tem uns... né, aí eles já fala diferente da gente né.
INQ.- Que língua o paraguaio fala?
INF.- Ah como que é? Castelhano né?(4/112).

(2) INF.- Não tem só paraguaio, tem aquele lá da aldeia que eis ((?=eles)) fala que é
guarani né, que é guarani por cau’do ((?=por causa do)) que é lá da aldeia (2/116).

Essa distinção se evidencia principalmente por conta de o estado fazer


fronteira com o Paraguai e com a Bolívia:

Mapa 1 – Fronteira do Brasil com Paraguai e Bolívia


Fonte: Ceiri News4 (2015).

É preciso ressaltar que as informantes reconhecem a língua falada no Paraguai


como diferente não só por ser outra nação, tendo em vista os pontos colocados por
Renan (1947), mas também porque, conforme explica Beline (2002), as diferenças

4 Disponível em: http://imguol.com/c/noticias/2013/08/26/mapa-bolivia-e-brasil-


1377530807586_300x300.gif.

- 171 -
Eixo 14
Linguagem e significação

percebidas nas variantes do português brasileiro não impedem a comunicação entre os


nativos; já diante do guarani, muitos brasileiros encontram dificuldades de
compreensão.
Outros dois excertos merecem relevância para a pesquisa a qual se propõe este
artigo: a fala dos informantes 107/4 (Vila Bela da Santíssima Trindade) e a do 111/1
(Alto Araguaia) apresentaram visões opostas a respeito de quem fala diferente:

(1) INQ.- Então aqui tem gente que fala diferente?


INF.- É porque nóis falamo diferente dos otro né, num é o portugueis que fala em Portugal,
e pelo que a gente vê né... (Inf 107/4).

(2) INQ.- Assim, grupos de pessoas que falam diferente de vocês aqui.
INF.- Sem sê a língua portuguesa mesmo, são estrangera (Inf 111/1).

Enquanto o informante da localidade 111 - Alto Araguaia considera que as


pessoas que falam diferente são só os estrangeiros e acaba deixando de lado as variantes
linguísticas, o informante da localidade 107 – Vila Bela da Santíssima Trindade
reconhece que, justamente por conta da diversidade linguística, o português brasileiro
se afastou do português de Portugal. Ao afirmar isso, ainda que inconscientemente, o
indivíduo identifica a distinção entre as nações brasileira e portuguesa, o que é
fundamental para o desenvolvimento da identidade nacional.
Estando claro que a existência da diversidade linguística no Brasil é percebida
pela maioria dos falantes brasileiros, pode-se afirmar que esse fato se deve em parte à
miscigenação de povos, culturas e línguas em solo brasileiro durante os cinco séculos
de povoamento exógeno. Ao mesmo tempo, o contato com a língua espanhola falada
na fronteira com o Paraguai e a Bolívia auxilia na identificação linguística do brasileiro,
que possui uma identidade nacional e enxerga um contraste ao olhar para as outras
nações.

Considerações finais

Após a análise de 79 depoimentos de diferentes localidades da região Centro-


Oeste, relativos às perguntas 2 e 3 das Questões Metalinguísticas presentes no
Questionário do Atlas Linguístico do Brasil, foi constatado que 72% dos informantes
reconhecem pessoas que falam diferente nas proximidades. Sendo assim, estando claro
que a existência da diversidade linguística no Brasil é percebida pela maioria dos
falantes brasileiros, pode-se afirmar que esse fato se deve em parte à miscigenação de
povos, culturas e línguas em solo brasileiro durante os cinco séculos de povoamento
exógeno. Ao mesmo tempo, o contato com a língua espanhola falada na fronteira com
o Paraguai e com a Bolívia auxilia na identificação linguística do brasileiro, que possui
uma identidade nacional e enxerga um contraste ao olhar para as outras nações.

- 172 -
Eixo 14
Linguagem e significação

A identidade brasileira costuma ser definida por esse princípio da mistura.


Neste sentido, é um fato afirmar que a questão da identidade está marcada pela
presença da ideia de nação, visto que, culturalmente, a nação brasileira é descrita como
híbrida e aberta. Essa diversidade cultural cria, consequentemente, a realidade da
diversidade linguística; além disso, como já dito, as formas de expressão linguística
também são extremamente importantes para a identificação pessoal de inúmeros
indivíduos, fazendo-se necessário reconhecer e acolher o plurilinguismo existente no
Brasil.
Ressalta-se, por fim, o papel e a importância dos atlas linguísticos para esse
trabalho com a língua: o trabalho dos geolinguistas de registrar a língua em uso é
também a perpetuação do patrimônio cultural de um povo, visto que sua identidade é
formada por sua língua.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular da Idade Média e no Renascimento: o


contexto de François Rebelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo:
HUCITEC; Brasília: UnB, [1970] 1987.

BELINE, Ronald. Introdução a linguística – A variação linguística. São Paulo:


Contexto, 2002.

COMITÊ NACIONAL DO PROJETO ALiB. Questionários 2001. Londrina:


UEL, 2001.

COSTA, Jean Carlo. Nação, raça e miscigenação no Brasil moderno: uma


análise hermenêutica dos Ensaístas da formação da nacionalidade brasileira, 1888-
1928. 2003. Tese (Doutorado em Sociologia) – Centro de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade de Pernambuco, Recife, 2003.

FIORIN, José Luiz. A construção da identidade nacional brasileira. Bakhtiniana,


São Paulo, v. 1, n. 1, p. 115-126, 2009.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: Formação da família brasileira sob o


regime da economia patriarcal. 48. ed. São Paulo: Global, 2003.

MONTEIRO, José Lemos. Para compreender Labov. Rio de Janeiro: Ática, 2000.

- 173 -
Eixo 14
Linguagem e significação

RENAN, Ernest. Que é uma nação? Tradução de Samuel Titan Jr. São Paulo:
Plural, [1947] 1997.

THIESSE, Anne-Marie. Ficções criadoras: As identidades nacionais. Tradução de


Eliane Cezar. Paris: CNRS, 1999.

THUN, Harald. La geolingüística como lingüística variacional general (com ejemplos


del Atlas lingüístico Diatópico y Diastrático del Uruguay). In: International Congress
of Romance Linguistics and Philology – Dialettologia, geolinguistica, sociolinguistica.
v. 5, 1998. Anais […]. Berlin; Boston: Max Niemeyer Verlag, 1998. p. 701-729.

- 174 -
Eixo 14
Linguagem e significação

CONSTITUIÇÃO DA LINGUÍSTICA COMO CIÊNCIA NO


CAMPO DAS HUMANIDADES

Ana Paula da Silva1


Frederico Manhães Slonski2

Resumo: As ciências que se edificam humanas não funcionam de maneira ilhada,


independente, e os conceitos passeiam entre suas várias construções. Este processo
surgiu a partir de conflitos, dentre os quais destaca-se, no decorrer do presente
trabalho, a constituição da Linguística e seu lugar no campo das ciências humanas.
Assim, tem-se por objetivo apresentar, a partir de um ponto de vista diacrônico, a
disputa entre Saussure e Müller e suas respectivas concepções acerca da língua. A
metodologia utilizada foi de caráter analítico e comparativo, em virtude da necessidade
de reflexão do papel da Linguística nas Ciências Humanas e na crítica sobre os
processos sociais. Assim, para a composição deste trabalho, foi realizada uma pesquisa
de caráter bibliográfico ancorada majoritariamente na perspectiva de Maurice Leroy
(1971), Paveau e Sarfati (2006), Émile Durkheim (2007) e Weedwood (2002).

Palavras-chave: Naturalismo; Ciências Humanas; Linguística.

1 Introdução

Na vista da transição de um método com pontos de vista antes condicionados


pelas ciências naturais, e agora sob a luz de suas condições e forças históricas e sociais,
os teóricos das ciências humanas conduzidos por Humboldt e sua antropologia
linguística, Whitney com sua linguística geral e Durkheim com o fato social, que
posteriormente serviriam como base para Saussure firmar suas teorias, estabeleceram
uma tradição de crítica aos modelos naturalistas para livrar suas ciências das parcelas
que ainda deles restavam, tirando-as de um lugar de ciência natural para um outro que
atendesse melhor os problemas apresentados por cada um de seus objetos. (PAVEAU
E SARFATI, 2006).
Dessa forma, nossa perspectiva de análise se apoia num ponto de vista
diacrônico que busca entender a construção da Linguística como ciência dentro do
campo das Humanidades. Para isso, foi realizada uma pesquisa de cunho bibliográfico
a fim de trazer um panorama e uma contextualização do conflito que se estabeleceu
entre aqueles que conceituavam a língua como fato natural e aqueles que a entendiam
como instituição social.

1 Pós-Graduação em Letras na Universidade Estadual de Londrina – UEL. E-mail:


ana.paula.silva.1@uel.br
2 Pós-Graduação em Letras na Universidade Estadual de Londrina – UEL. E-mail:

frederico.manhaes@uel.br

- 175 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Num primeiro momento, faz-se necessário destacar o método comparativo e


a sua contribuição para o processo de constituição da Linguística como ciência e como
ciência dentro do campo das humanidades. Seu início tem como marco o final do
século XVIII com os estudos de Jones acerca do sânscrito e suas similaridades com o
latim e o grego, que funcionaram como o “ímpeto principal para o desenvolvimento
da filologia comparativa” (WEEDWOOD, 2002, p. 104). Dessa forma, o método
comparativo busca reconstruir uma língua antiga ou estágios mais antigos de uma
determinada língua. Para realizar isso, faz-se uma comparação de palavras ou
expressões presentes em diferentes dialetos ou línguas que estejam associados à língua
que se deseja reconstituir. O método comparativo foi inicialmente aplicado na
reconstrução do proto-indo-europeu e, com o passar do tempo e com o
desenvolvimento dos estudos, expandiu-se sua aplicação em outras línguas. Ressalta-
se ainda que se apoia no princípio da mudança fonética, teoria que, ao ser introduzida,
foi duramente criticada, mas que após a oposição inicial, foi amplamente aceita pela
comunidade científica.
Assim, de maneira geral, é com o comparativismo que a Linguística começa a
ser pensada enquanto ciência, saindo da filosofia e construindo suas primeiras leis
científicas. No entanto, as escolas comparativistas enxergavam a língua, por vezes, a
partir de diferentes lentes. Evidenciam-se duas: o idealismo alemão (Boas) e a corrente
naturalista. Essas duas correntes se colocam em pólos opostos, uma vez que a primeira
entendia a língua como detentora de um valor simbólico que se materializa na cultura
e na história enquanto a segunda defendia, baseada em um pensamento darwinista, que
a língua seria um organismo vivo que obedecia às leis naturais.
Esse conflito teve início entre os comparatistas do fim do século XVIII e
perdurou ao longo do século XIX, principalmente entre August Schleicher e Max
Müller, contraditórios aos teóricos que influenciaram o pensamento saussuriano. Os
dois primeiros acreditavam a língua como algo que se manifesta e se desenvolve de
maneira independente à vontade humana, e quanto aos últimos, temos como exemplos
Wilhelm von Humboldt, que excepciona a linguagem “enquanto manifestação do
espírito humano” (LEROY, 1971, p. 47), e William Dwight Whitney, que, de maneira
mais categórica, concebe a linguagem “como uma instituição humana e as palavras
como signos convencionais" (LEROY, 1971, p. 50).
Estreitando mais intensamente nosso percurso, nos apoiaremos na crítica
direcionada por Saussure, em um de seus manuscritos, quando faz notar “a ridícula
doutrina de um Max Müller, que reivindica para a linguística o lugar de uma ciência
natural” (SAUSSURE, 2012, p. 104). Com forte influência darwinista, Müller situa a
linguística num lugar que, para Saussure, compreenderia apenas um de seus aspectos,
considerando-a uma ciência de ordem física.

- 176 -
Eixo 14
Linguagem e significação

2 Müller e Schleicher

“Deixa acontecer naturalmente”


(Grupo Revelação)

Visualizando uma linguística histórica, a partir da unção do evolucionismo


científico de Darwin e o romantismo filosófico de Hegel, Schleicher elabora uma
concepção que, ao mesmo tempo em que compreende uma síntese, apresenta uma
superação de seus antecessores comparativistas. Por meio de uma transposição de
modelos naturalistas para os domínios da linguística, o autor propõe a organização das
línguas em uma árvore genealógica que se define a partir de uma “Ursprache”, uma
língua primeira, de onde as demais se ramificam. Desse modo, Schleicher situa a
linguística enquanto uma ciência natural, atribuindo a ela características genéticas e
tipologizantes, de forma que a língua é tomada como um organismo vivo.
Com forte influência de Schleicher e prezando por uma base naturalista e
darwinista, Müller vai trazer a ideia de que a língua é um organismo vivo e biológico
que obedece às leis naturais de evolução e desenvolvimento, ou seja, se desenvolve de
forma natural e independente. Suas pesquisas apontam para uma linguística genética
que preza pela “assimilação das leis linguísticas às leis naturais e o apagamento do
parâmetro humano” (PAVEAU E SARFATI, 2006, p. 41). Ademais, segundo Müller,
as teorias naturais, destacando-se a teoria de seleção natural, são uma maneira eficiente
de explicar os processos de mudança linguística, que são vistas a partir de um propósito
intrínseco, preordenado e, por isso, composto de fases evolutivas previsíveis.
Assim, de maneira geral, Max Müller defende em seus estudos (Lectures on the
Science of Language, Royal Institution, Londres, 1816, 1863) que a Linguística deveria
se colocar dentro do campo das ciências naturais e físicas, uma vez que já havia
“passado pelos mesmos estágios de desenvolvimento - empírico, classificatório e
teórico” (WEEDWOOD, 2002, p. 94) dessas disciplinas.

3 Whitney e Humboldt

“Deixa a vida me levar


Vida leva eu”
(Zeca Pagodinho)

Dentro do paradigma comparativista, podemos encontrar dois principais


pontos de vista que se bifurcam, sobretudo, no que tange ao modo como a língua se
delimita: contínua ou descontinuamente. No primeiro compreender, da perspectiva
naturalista, contínua, se toma a língua por um organismo vivo que possui uma
hereditariedade genética da qual evolui uma característica inata do ser humano. Da
perspectiva descontínua, pelo contrário, a língua, enquanto instituição social, não

- 177 -
Eixo 14
Linguagem e significação

acompanha uma hereditariedade, se constrói por assimilação, de acordo com o grupo


social no qual está inserida.
Dentro desse ponto de vista podemos destacar dois autores, fortes influentes
do que é expropriado e condensado por Ferdinand de Saussure: Wilhelm von
Humboldt, um grande precursor do pensamento alemão do século XIX e William
Dwight Whitney, um importante linguista norte americano, construtores de modelos
linguísticos dos quais abordaremos então alguns traços.
Instigado pelos estudos de Franz Bopp, seu contemporâneo e vinte e cinco
anos mais jovem, Humboldt apresentou diversas contribuições para o método
comparatista e a reflexão linguística de seu tempo. Podemos destacar de princípio a
conexão existente entre o caráter nacional e as línguas nacionais, em que

a língua (...) possa, por vezes, aparecer como o reflexo de uma mentalidade nacional,
mas o que chamamos de nação é, mais precisamente, um grupo social (...) O inegável
é que a vida em comum numa mesma unidade política cria modos de vida, atitudes,
reflexos que são próprios a esse conjunto de cidadãos e constituem efetivamente, por
oposição a outros grupos similares, o que chamamos um espírito nacional. (LEROY,
1971, p.48).

Sua contribuição mais significativa e original para o desenvolvimento da


linguística enquanto ciência foi a teoria sobre as formas internas e externas, na qual a
forma externa seria a parte sonora, a manifestação fonética, a matéria bruta que
fomenta os moldes das línguas e a forma interna seria a parte estrutural, a gramática, o
sistema, que se impõe sobre a forma externa e que faz com que as línguas se
diferenciam entre si.
Além da teoria sobre as formas interna e externa, faz-se importante destacar a
ideia de Humboldt sobre a própria língua e a sua dinamicidade. Para ele, a língua não
era um mero produto de uma atividade ou um conjunto de enunciados produzidos por
uma comunidade de fala, mas um sistema dinâmico, a própria atividade, a “energeia”, e
os princípios e regras que possibilitam aos falantes a criação de enunciados.
Centrados num “estudo comparativo solidamente apoiado nos fatos”
(LEROY, 1971, p.46), os teóricos comparativistas concluíram uma perspectiva
linguística. Como acompanhamos ao longo do texto, alguns deles, como Humboldt,
entendem que “a transmissão linguística é descontínua” (LEROY, 1971, p.48), dada
pela assimilação que o sujeito tem dentro de seu grupo social. Whitney,
compartilhando de semelhante princípio e também contrariando as teorias inatistas de
sua época, encara a língua como uma instituição social, sendo um bem social precioso
para os que a praticam.
O autor também afirma que a língua muda assim como a sociedade muda para
que possa continuar sendo objeto de comunicação, ou seja, que permite que os sujeitos
sociais continuem sendo inteligíveis uns para com os outros. Essas mudanças se
caracterizam a partir do elemento social, e não do individual, ou seja, só serão validadas
quando aderidas pela maioria dos usuários da língua ou de um determinado grupo

- 178 -
Eixo 14
Linguagem e significação

social. Daí destacamos o rompimento com o pensamento filosófico que acreditava o


homem enquanto um indivíduo livre e consciente, como senhor da linguagem. Ao
contrário: ele traz que a língua é não só um elemento anterior a cada indivíduo, mas
também exterior a cada sujeito de forma individual.
Segundo ele, a mudança linguística surge com os falantes de uma determinada
sociedade a partir da reflexão sobre seus papéis sociais levando, assim, à conclusão de
que a língua não é um objeto de posse individual, e sim que pertence ao coletivo. Ao
afirmar isso, reforça o rompimento com a perspectiva de que a língua é inata ao
indivíduo, trazendo a concepção de que ninguém nasce em posse de uma língua, mas
que esta é adquirida a partir da interação com os outros membros da comunidade da
qual esse indivíduo participa.
É perceptivo o embate sobre o lugar que a linguística deveria ocupar, entre as
ciências naturais ou entre as ciências humanas, e sobre o próprio conceito de língua. É
em meio a esse embate que se coloca Saussure, e é sobretudo a partir dele que será
definido o principal viés pelo qual será constituída a linguística enquanto ciência ao
longo do próximo século.

4 O lugar de Saussure nas Ciências Humanas

Saussure é considerado um marco na linguística por suas teorias e conceitos.


No entanto, é necessário perceber que suas ideias foram possíveis graças a formulações
anteriores, que lhe serviram como base de expansão e propulsão. Tais formulações
começaram com as relações de Jones entre o sânscrito, o grego e o latim, que
fomentaram, de certa forma, na Europa, um entusiasmo pelas pesquisas linguísticas e
suscitaram ininterruptas investigações e descobertas dentro desse campo de estudo.
Assim, estudos filológicos passaram a métodos histórico-comparativos que ganham
status de investigação científica e preparam terreno para o surgimento da linguística
como ciência.
Avançando na historiografia linguística, vê-se que o aprofundamento dos
estudos histórico comparativos viria a constituir os estudos dos Neogramáticos,
firmados na continuação da abordagem histórica, e a própria ciência da linguagem. Os
estudos Neogramáticos contribuíram significativamente para os estudos subsequentes,
uma vez que pertencem ao processo de amadurecimento dos métodos de investigação,
conceituação e análise que seriam lapidados posteriormente por Saussure. Este,
embora inicialmente tenha composto o grupo dos Neogramáticos, parte para uma
diferente sistematização, que apresenta formulações contrárias ao modelo vigente.
Assim, Saussure se apropria das ideias já postas nesse campo de estudo e as
amplia e transforma, chegando à concepção segundo a qual a língua é um conjunto de
relações, constituindo um sistema mais fundamental inclusive que os próprios
elementos isolados que o constituem, ou seja, o que interessa são regras que
determinam o movimento das peças durante o jogo.

- 179 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Dessa forma, o sentido está conectado com a noção de valor, que é


determinada pela oposição dos signos linguísticos. Isso leva a um estudo imanente da
linguagem e, para isso, demonstrou-se a importância da sincronia em oposição à
diacronia, alvo de principal interesse dos comparativistas. Em vista disso, nota-se que
as teorias de Saussure foram formuladas à luz de um longo percurso histórico que
tanto foi absorvido quanto criticado no processo de constituição dos seus conceitos.
Saussure reafirma o lugar da linguística dentro das ciências humanas, uma vez
que, assumindo uma posição análoga a Whitney, entende a língua como fato social, ou
seja, que existe quando é validada socialmente. Ademais, entende que o indivíduo é
um sujeito histórico e, consequentemente, a língua é valor construído. Logo, Saussure
consolida a linguística, bem como seu método e objeto de estudo, dentro do campo
das ciências humanas. Tomando Whitney como uma de suas bases, Saussure amplia
os estudos e os conceitos trazidos por ele, já que concordava quanto ao caráter de
instituição social da língua. No entanto, acreditava que a língua se distinguia das demais
instituições sociais por atingir a todos os indivíduos, por ser utilizada por todos e por
constantemente sofrer ação de todos os indivíduos.
Em se tratando do caráter de instituição social da língua, Saussure adota as
fundamentações teóricas de Durkheim, definindo a língua como fato social, uma vez
que esta é composta por três fatores piriformes à teoria durkheimiana: a generalidade,
constituinte identificado em todo o corpo social; a exterioridade, algo que se coloca
como exterior à vontade dos sujeitos; e a coercitividade, princípio que determina que
existe uma força externa aos sujeitos que os molda em detrimento de suas vontades e
desejos individuais.
Este é um dos rompimentos de Saussure para com o modelo estabelecido, já
que a partir de sua teoria, mostra que a língua não é individual e que o homem não é o
senhor dela, mas que ela se constitui na massa falante como fato social. Ademais,
Saussure retira as reflexões sobre a língua do empírico e as desconstrói a fim de tratar
a língua como um objeto abstrato. A partir disso, também a concepção de sujeito se
altera, já que a língua passa a ser exterior e anterior a ele e atuar como fator coercitivo,
ele não é mais “livre”, ele é guiado e moldado. Por fim, ressalta-se o valor do signo
para Saussure, que faz a partir da semelhança e da diferença, ou seja, a língua é um
sistema que significa a partir de valores, estes cravados no fato social e na massa falante.

5 Considerações Finais

Têm-se, portanto, que as ciências humanas não funcionam de maneira ilhada,


independente, e os conceitos passeiam entre suas várias edificações, tendo grande
destaque os movimentos do conceito de valor. Mais propriamente, o valor se apresenta
como um ponto central em seus métodos, que variam em fundamentos teóricos de
acordo com as qualidades do objeto de cada respectiva ciência. O valor de produção
neste método que acompanha as transições sociais de sua época se desloca de algo já

- 180 -
Eixo 14
Linguagem e significação

dado, condicionante, natural - e, por quê não, divino - para a condição de material,
manipulado via interferência humana, convencional. É ultrapassado o campo de uma
fenomenologia demasiado solta em seus fins e origens para compreender os fatos de
maneira sólida e sistemática, na atribuição de seus estados e processos.
Assim, partindo de um processo que une, em especial, a Economia e a
Sociologia, com Marx e Durkheim, Saussure assegura a Linguística dentro das ciências
humanas, propondo interpretações do valor enquanto método, não mais presas a uma
visão científica naturalista. Emancipando-a, definitivamente, das ciências naturais,
Saussure a institui nas ciências humanas, preocupadas com o valor de um ponto de
vista dos fatos e fenômenos sociais. Esta emancipação tem papel decisivo na reflexão
do campo das humanidades, uma vez que designa-se à Linguística a compreensão dos
movimentos sociais por meio da comunicação discursiva em sociedades pluralistas. Tal
caráter reflexivo traz um entendimento da história e dos seus desdobramentos no
contexto atual, operando como elemento crítico sobre os processos sociais.

Referências

DURKHEIM, E. As regras do método sociológico. Tradução Paulo Neves:


revisão da tradução Eduardo Brandão. 3 Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

LEROY, Maurice. As grandes correntes da linguística moderna. São Paulo:


Cultrix, 1971.

PAVEAU, Marie-Anne; SARFATI, Georges-Elias. As grandes teorias da


linguística: da gramática comparada à pragmática. São Carlos: Claraluz, 2006.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006.

SAUSSURE, Ferdinand de. Escritos de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix,


2012.

WEEDWOOD, Barbara. História concisa da linguística. São Paulo: Parábola


Editorial, 2002.

- 181 -
Eixo 14
Linguagem e significação

BREVE PANORAMA DAS RELAÇÕES ENTRE LINGUÍSTICA


E PSICOLOGIA

André Morin Carneiro1


Guilherme José Franzon Schürmann2
Maria José Guerra de Figueiredo Garcia3

Resumo: Neste estudo apresenta-se um panorama histórico acerca das relações entre
as Ciências da Linguagem e a(s) Psicologia(s). Assim, não visa a aprofundar a temática,
senão fornecer breve percurso, objetivo, sobre os pontos de contato entre as duas áreas
do conhecimento. Para tanto, serão apresentadas evidências das contribuições de uma
área à outra e vice-versa. As vertentes abordadas e seus respectivos representantes são:
a Semiologia de Ferdinand de Saussure e Roland Barthes, a Linguística Estrutural de
Leonard Bloomfield, a Gramática Gerativa de Noam Chomsky, em suas relações com,
respectivamente, a Psicologia Social e a Psicanálise (de Lacan), o Behaviorismo de
Skinner e a Psicologia Cognitiva; bem como a Semiótica de linha francesa e a Análise
de Discurso em suas relações com a Psicanálise de Freud e Lacan. Buscaremos, aqui,
estabelecer quais pontos já foram aprofundados e quais ainda podem ser
aprofundados, de forma que este trabalho possa servir de ponto de partida para um
futuro aprofundamento quanto ao estado da arte no assunto.

Palavras-chave: Ciências da Linguagem. Psicologia. Comportamento. Cognição.


Inconsciente.

Introdução

Partimos aqui do pensamento de que não se pode falar em algo como uma
“teoria boa” ou “teoria ruim”. Uma teoria é boa na medida em que há nela coerência
conceitual e um modelo coerente. No entanto, para uma ciência se desenvolver como
tal, é necessário que ela dialogue com as suas próximas. Edgar Morin destaca: “a ciência
nunca teria sido ciência se não tivesse sido transdisciplinar” (MORIN, 2005, pp.135-
136). Para o autor, “mesmo o conhecimento mais sofisticado, se estiver totalmente
isolado, deixa de ser pertinente” (MORIN, 2007, p. 32).
Dito isso, há uma preocupação por parte dos autores com respeito às relações
entre a Linguística e as ciências próximas a ela em geral; a Psicologia, em particular.
Tecer tais relações, no entanto, é tarefa exaustiva, dadas as diversas vertentes e

1 Graduando em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); e-mail:


andre.morin@uel.br.
2 Graduando em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); e-mail:

franzon.schurmann@uel.br.
3 Professora do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Estadual de Londrina

(UEL); e-mail: majogue@uol.com.br.

- 182 -
Eixo 14
Linguagem e significação

abordagens tanto de uma como de outra ciência. O presente estudo propõe-se, assim,
breve panorama sobre o tema, apresentando relações entre escolas específicas de cada
uma das disciplinas.
As relações apresentadas serão o projeto semiológico de Saussure; a relação entre
significante e significado na linguística, na semiologia e na psicanálise; o estruturalismo
“antimentalista” de Bloomfield e o behaviorismo, especificamente a abordagem de
Skinner; o gerativismo e o nascimento da ciência cognitiva; as relações desta com os
estudos da linguística textual; a transdisciplinaridade da Análise do Discurso
pecheutiana, que une, ao lado da teoria da ideologia de Althusser, a linguística e a
psicanálise; e a possibilidade de uma articulação entre psicanálise e semiótica. Por fim,
teceremos breves conclusões sobre as relações que foi possível traçar e serão
enumeradas algumas das que não se pôde fazê-lo.

Semiologia e Psicologia social

Comecemos com o projeto de delimitação da Linguística como ciência. No


final do século XIX, os estudos da linguagem, com os chamados neogramáticos, ainda
não formavam propriamente uma ciência. Foi a partir da publicação de seu Curso de
Linguística Geral (CLG) por seus estudantes que Ferdinand de Saussure funda a
linguística como uma ciência propriamente dita, uma vez que é com esse livro que se
consolida um método de trabalho. (MORIN e a determinação das ciências modernas”)
A linguística, assim como as outras ciências modernas, ao se constituir como
tal, precisou delimitar seu campo de estudo e seu objeto. Foi o que fez Saussure (2006)
na primeira parte do seu CLG. O mestre genebrino apresenta ali as relações da nova
ciência da língua com as ciências conexas, dentre as quais destacamos a Psicologia
social. A Linguística, sendo definida como o estudo da língua como sistema de signos,
seria uma parte da Semiologia, estudo da “vida dos signos no seio da vida social”, que
seria por sua vez parte da Psicologia social, visto que “tudo é psicológico na língua”
(SAUSSURE, 2006, p. 14).
A fim de delimitar então a tarefa da Linguística e seu objeto, o segundo capítulo
do CLG reflete acerca de “suas relações com as ciências conexas”, dentre as quais
destacamos a Psicologia social:

[A Linguística] distingue-se também da Antropologia, que estuda o homem somente


do ponto de vista da espécie, enquanto a linguagem é um fato social. Dever-se-ia,
então, incorporá-la à sociologia? Que relações existem entre a Linguística e a
Psicologia social? Na realidade, tudo é psicológico na língua, inclusive suas
manifestações materiais e mecânicas, como a troca de sons; e já que a Linguística
fornece à Psicologia social tão preciosos dados, não faria um todo com ela?
(SAUSSURE, 2006, p. 14, grifo nosso)

- 183 -
Eixo 14
Linguagem e significação

E ressalta a importância do objeto da Linguística para diferenciá-la da


Psicologia (e da Antropologia etc.):

Sempre encontramos o dilema: ou nos aplicamos a um lado apenas de cada problema


e nos arriscamos a não perceber as dualidades assinaladas acima, ou, se estudarmos a
linguagem sob vários aspectos ao mesmo tempo, o objeto da Linguística nos aparecerá
como um aglomerado confuso de coisas heteróclitas, sem liame entre si. Quando se
procede assim, abre-se a porta a várias ciências — Psicologia, Antropologia,
Gramática normativa, Filologia etc. —, que separamos claramente da Linguística, mas
que, por culpa de um método incorreto, poderiam reivindicar a linguagem como um
de seus objetos (Ibid., p. 16).

Ainda definindo a Ciência da Língua, diferencia-a da Semiologia, ciência geral


da qual a “Linguística não é senão uma parte”:

A língua é um sistema de signos que exprimem ideias, e é comparável, por isso, à


escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos (sic), aos ritos simbólicos, às formas de polidez,
aos sinais militares etc., etc. Ela é apenas o principal desses sistemas.
Pode-se, então, conceber uma ciência que estude a vida dos signos no seio da vida
social; ela constituiria uma parte da Psicologia social e, por conseguinte, da Psicologia
geral; chamá-la-emos de Semiologia (do grego sêmeion, ‘signo’). (SAUSSURE, 2006,
p. 24)

Cabe ao psicólogo determinar o lugar exato da Semiologia; a tarefa do linguista é


definir o que faz da língua um sistema especial no conjunto dos fatos semiológicos. A
questão será retornada mais adiante; guardaremos, neste ponto, apenas uma coisa: se,
pela primeira vez, pudemos assinalar à Linguística um lugar entre as ciências foi
porque a relacionamos com a Semiologia. (Ibid., p. 24)

Definindo assim a ciência da língua, para Saussure a Linguística e a Psicologia


teriam relações apenas no que diz respeito a uma hierarquia, não sendo compatíveis
entre si por elas mesmas; a linguística dando material para o psicólogo.
Ainda, a dicotomia significante/significado — ou conceito/imagem acústica — teria,
para Saussure, um caráter psíquico. Não sendo a imagem acústica “o som material,
coisa puramente física, mas a impressão (empreinte) psíquica desse som […] tal imagem
é sensorial e, se chegamos a chamá-la ‘material’, é somente nesse sentido”, conclui-se
que “o signo linguístico é, pois, uma entidade psíquica de duas faces” (Ibid., 2006, p.
80).

- 184 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Bloomfield e o comportamento

Se como vimos, para Saussure a língua tem um caráter psíquico, ou mental, o


maior nome do estruturalismo norte-americano, Leonard Bloomfield rejeita
explicitamente o mentalismo em linguística, e nas ciências em geral. Para o
estadunidense, as ciências naturais possuíam maior credibilidade na comunidade
científica graças ao que se denominada fisicalismo, possibilidade de aplicação das
teorias no mundo físico, o que o levaria a defender um ponto de vista antimentalista
em linguística. Para o linguista estadunidense, “essa tese não mentalista teria encontrado
sua melhor formulação no trabalho do behaviorista A. P. Weiss”, psicólogo que teria
sido o primeiro a aplicar os trabalhos de Pavlov (PASSOS, 2004, p. 52, grifo nosso).
Sobre o que seria o papel da psicologia na teoria linguística, Barthes afirma que

pelo menos para Saussure, Hjelmslev e Frei, como os significados fazem parte dos
signos, a Semântica deve fazer parte da Linguística Estrutural, enquanto, para os
mecanistas americanos, os significados são substâncias que devem ser expulsas da
Linguística e dirigidas para a Psicologia. (BARTHES, 2012, p. 42)

Ora, é disto que se trata a abordagem não mentalista: afastar da Linguística uma
investigação que caberia a outra área do conhecimento. Isso não quer dizer que algo
de psicológico não se atenha ao método bloomfieldiano. Uma forte consequência
epistemológica para ele é o fato de que Bloomfield define a língua a partir de um
conceito psicológico; define-a como comportamento aprendido, tese com a qual,
veremos a seguir, o maior de seus sucessores rechaça com veemência.

Chomsky e o cognitivismo

Chomsky (2005) rejeita o modelo behaviorista, propondo uma perspectiva


mentalista e cognitiva, baseada no princípio de uma natureza biológica da faculdade da
linguagem. Seu modelo padrão “introduz dois conceitos que se tornam centrais em
linguística: as distinções competência/desempenho e estruturas profundas/superficiais”, o que
implica “a presença de esquemas internos ao sujeito, anteriores à produção das
frases” (PAVEAU; SARFATI, 2006, p. 170, itálicos dos autores, negrito nosso). Assim,
tomou-se um objeto de investigação diferente, não o comportamento e seus
resultados, mas os sistemas cognitivos internos ao sujeito que se acionam para a
interpretação do mundo (CHOMSKY, 2006). Essa mudança geral de perspectiva é
chamada de “revolução cognitiva” dos anos 1950.
Toma-se assim, o corpo e a mente como uma unidade, baseando-se na
retomada de uma visão segundo a qual propriedades ditas mentais são resultado de
uma estrutura orgânica semelhante à do cérebro (Ibid.).

- 185 -
Eixo 14
Linguagem e significação

A partir dessa nova visão, Chomsky definira o que chama de modelo perceptual
(não mais uma caixa preta, como no caso dos behavioristas), em que as entradas e as
saídas não são mais estímulo e resposta, mas sinais e outras informações e
representações sintática, semântica e fonética. O gerativista argumenta que descobrir
as características de um tal modelo é um problema central para a psicologia.
Outro ponto de ruptura trazido pela rejeição do modelo comportamental é
que, não há mais razão para supor que os princípios que governam a fala sejam
aprendidos. Afirmando que a faculdade da linguagem é biologicamente inata, Chomsky
(2006) insiste no ponto que os comportamentos linguísticos não devem ser assumidos
como aprendidos. Para ele, ainda (Ibid.), a performance linguística é governada por
princípios de estrutura cognitiva.

Barthes

O mais proeminente discípulo (indireto) de Saussure a dar continuidade a seu


projeto semiológico, Roland Barthes, destaca o papel do contato entre a Semiologia e
as disciplinas que já se estabeleciam à época de seu advento, entre elas a psicanálise
lacaniana. Para ele, a nova ciência

recém-esboçada e ainda frágil, buscou ela avidamente, posso dizer, contato com outras
ciências, outras disciplinas, outras exigências. Faz dez anos que a Semiologia (francesa)
se movimenta consideravelmente: forçada a deslocar-se, a arriscar bastante em cada
encontro, manteve ela um diálogo constante e transformador com: o estruturalismo
etnológico (Lévi-Strauss), a análise das formas literárias (os formalistas russos, Propp),
a Psicanálise (Lacan) [...]. (BARTHES, 2012, p. 10, grifo nosso)

Retomando a passagem do CLG já citada, sobre o lugar da Semiologia no


campo das ciências humanas, Barthes busca invertê-la, argumentando que:

É preciso, em suma, admitir desde agora a possibilidade de revirar um dia a proposição


de Saussure: a Linguística não é uma parte, mesmo privilegiada, da ciência geral dos
signos: a Semiologia é que é uma parte da Linguística; mais precisamente, a parte que
se encarregaria das grandes unidades de significação do discurso. Daí surgiria a unidade das
pesquisas levadas a efeito atualmente em Antropologia, Sociologia, Psicanálise e
Estilística acerca do conceito de significação. (Ibid., p. 15)

Vemos aí a importância para o semiólogo da Psicanálise — dentre outras áreas


similarmente relevantes — em sua relação com a ciência dos signos. Tal importância é
ainda atestada quando, ao dissertar sobre representações gráficas da significação,
compara o grafismo S/s de Lacan ao Se/So de Saussure e ao ERC (expressão-relação-
conteúdo) de Hjelmslev, comparação natural, visto que o leitor de Freud o tomou

- 186 -
Eixo 14
Linguagem e significação

emprestado da linguística (LACAN, 1998). Para Barthes, o psicanalista difere da


representação saussuriana, no entanto,

em dois pontos: 1) O significante (S) é global, constituído por uma cadeia de níveis
múltiplos (cadeia metafórica): significante e significado estão numa ligação flutuante e
só ‘coincidem’ por certos pontos de ancoragem; 2) A barra de separação entre o
significante (S) e o significado (s) tem um valor próprio (que não tinha, evidentemente,
em Saussure): representa o recalcamento do significado (BARTHES, 2021, p. 63)

A Análise do Discurso Pecheutiana

A disciplina que mais diretamente possui relações com a psicologia,


particularmente com a Psicanálise de Jacques Lacan, é sem dúvida a Análise do
Discurso francesa, que parte de sua leitura do inconsciente freudiano estruturado como
linguagem; bem como dos conceitos de real e do Outro, aliados ao materialismo e à teoria
da ideologia de Althusser, para desenvolver seus métodos de análise (PAVEAU, 2008).
Assim, temos uma teoria que tem em sua própria base um pensamento psicológico;
sem sujeito não haveria discurso, sem a hipótese do inconsciente, não poderia haver
uma análise do discurso.
Segundo Paveau (2008), a onipresença de Jacques Lacan na França dos anos
50 e 60 exerceu enorme influência sobre as concepções científicas que viriam a
aparecer. Para a autora, a concepção lacaniana do real “como aquilo sobre o que
finalmente o desejo se constrói, é comum à psicanálise, à linguística e à filosofia
dos anos 1960. Toda a concepção da língua em que se baseia a ADF está
impregnada dessa ideia de divisão e de falha”, própria do sujeito freudolacaniano
(Ibid., p. 23, grifos nossos).
Ainda, outra noção muito cara à Análise do Discurso, aquela de ideologia (de
Althusser), está também relacionada à psicanálise:

a teoria da ideologia como o inconsciente do sujeito proposta por L. Althusser em seu


artigo de 1970 já estava amplamente presente na primeira das Três notas sobre a teoria dos
discursos: a teoria da ideologia nasce então, em parte, em um texto sobre a psicanálise,
nasce parcialmente da psicanálise, e me parece importante ressaltar isso. (PAVEAU,
2008, pp. 25-26)

Linguística Textual

Como já dissemos brevemente, o surgimento das abordagens cognitivas deu-


se em uma época em que se reagia ao então dominante behaviorismo, que via a mente
como uma caixa-preta (KOCH; CUNHA-LIMA, 2007). Assim, quando ocorre a
chamada “virada cognitiva” na Linguística Textual na década de 80, “o texto passa a

- 187 -
Eixo 14
Linguagem e significação

ser considerado resultado de processos mentais” (KOCH, 2004, p. 21). A partir de


então, “caberia à Linguística Textual desenvolver modelos procedurais de descrição
textual, capazes de dar conta dos processos cognitivos que permitem a integração dos
diversos sistemas de conhecimento dos parceiros da comunicação” (Ibid. p. 22).
Koch (2004) descreve brevemente os quatro grandes sistemas de
conhecimento que concorrem para o processamento textual, de acordo com
Heinemann & Viehweger (1991 apud KOCH, 2004, p. 22): “o linguístico, o
enciclopédico, o interacional e o referente a modelos textuais globais”, que são ativados
“quando processamento textual”. Tais sistemas admitiriam “a existência de modelos
cognitivos, que são originários ora da Inteligência Artificial, ora da Psicologia da
Cognição” (KOCH, 2004, p. 22, grifo nosso).

Semiótica e Psicanálise

No Brasil, o professor Waldir Beividas é provavelmente o nome que mais


buscou traçar as relações entre conceitos da Psicanálise e aqueles da Semiótica
discursiva (e de seus desdobramentos na semiótica tensiva). O semioticista defende
que as duas áreas do conhecimento têm muito a contribuir uma com a outra. Nesta
seção, não falamos, no entanto, de relações de influência — salvo aquela que a
linguística exerceu sobre o pensamento lacaniano —, mas de sugestões de articulação
entre as duas disciplinas, dadas por Beividas (2001).
Segundo o semioticista, após uma primeira fase de conceptualização da
psicanálise por Lacan, influenciado pelo estruturalismo, então na moda, a continuidade
de uma possível formalização científica deixou o que o autor chama de “vácuo
conceptual” entre a fase estruturalista e aquela dos matemas. A linguística “em Lacan”
não teria ido além da frase, deixando de lançar mão dos estudos do discurso. De forma
que, argumenta, a semiótica poderia auxiliar a preencher tal lacuna: “Uma rápida
história da constituição da semiótica greimasiana e [...] da psicanálise freudolacaniana
nos fornecerão as primeiras pistas por onde [...] instaurar um diálogo entre ambas e
canalizar o exame da 'nova' cientificidade que nos desafia aqui” (BEIVIDAS, 2001, p.
169). Para o autor, tal tarefa representa um desafio (Ibid. p. 187-ss), porém, num nível
mais abstrato:

Bastaria tentar uma interlocução entre semiótica discursiva e psicanálise que


explorasse esse vazio, isto é, que resgatasse aquelas simetrias escondidas do
significante lacaniano, as quais extrapolam os limites do fonemático. Bastaria tentar
uma confrontação ou uma comparação ou até mesmo uma homologação dessas
simetrias com as estruturas que a semiótica propõe para a realidade do discurso, e,
enfim, verificar até que ponto nessa confrontação as estruturas discursivas
responderiam melhor que o significante lingüístico às coerções que o inconsciente
apresenta para o campo geral dos discursos e para o campo específico da psicanálise.
(BEIVIDAS, 2001, p. 187)

- 188 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Considerações finais

Como vimos, não é possível dizer que haja uma relação biunívoca entre a
Linguística e a Psicologia, visto que as várias vertentes de cada grande área do
conhecimento são por vezes incompatíveis entre si. Procuramos, assim, demonstrar
que as relações que as diferentes abordagens linguísticas tiveram com as disciplinas
psicológicas que com elas dialogam engendraram — ou podem engendrar —
consequências sobre seus respectivos pressupostos teóricos e metodológicos.
Por se tratar de um panorama, não foram incluídas neste estudo diversas outras
vertentes, tanto da Linguística quanto da Psicologia. Não falamos, apenas para citar
dois exemplos, da linguística cognitiva de Steven Pinker ou da psicolinguística. Trata-
se, portanto, de um tema a ser aprofundado.

Referências

BARTHES, R. Elementos de semiologia. 19. ed. São Paulo: Cultrix, 2012.

BEIVIDAS, W. Inconsciente : psicanálise, semiótica, ciência, estrutura.


São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001.

CHOMSKY, N. Language and Mind. 3. ed. Cambridge University Press, 2005.

KOCH, I. Introdução à Linguística Textual. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

LACAN, J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: LACAN,


J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

MORIN, E. A antiga e a nova transdisciplinaridade. In: MORIN, Edgar. Ciência com


consciência. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

MORIN, E. A articulação dos saberes. In: MORIN, Edgar. Educação e


complexidade: os sete saberes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 2007.

KOCH, I. V.; CUNHA-LIMA, M. L. Do cognitivismo ao sociocognitivismo. In:


MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. (orgs.). Introdução à linguística: fundamentos
epistemológicos. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2007. v. 3, cap. 7, p. 251-300.

PASSOS, M. de L. Bloomfield e Skinner: língua e comportamento verbal. Rio de


Janeiro: NAU Editora, 2004.

- 189 -
Eixo 14
Linguagem e significação

PAVEAU, M-A. O redemoinho de palavras. Análise do Discurso, inconsciente, real,


alteridade. Matraga, Rio de Janeiro, v. 15, n. 22, p. 13-32, jan./jun. 2008.

PAVEAU, M-A. Formalismos: do descritivismo ao gerativismo. In: PAVEAU, M-A;


SARFATI, G-E. As grandes teorias da linguística: da gramática comparada à
pragmática. São Carlos: Claraluz, 2006.

SAUSSURE, F. de. Curso de Linguística Geral. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

- 190 -
Eixo 14
Linguagem e significação

FLEXÃO DE GÊNERO EM PORTUGUÊS: A QUESTÃO DO


NEUTRO

André Morin Carneiro1


Guilherme José Franzon Schürmann2
Maria José Guerra3

Resumo: O presente artigo propõe uma abordagem panorâmica sobre flexão de


gênero e discurso. A partir desse estudo, a fim de contemplar a investigação empírica,
há a aplicação dessa conceituação para a discussão do fenômeno discursivo relativo à
presença do neutro como marca de gênero no português do Brasil. O trabalho está
dividido em duas partes: na primeira, observamos a flexão de gênero como um
fenômeno gramatical. A análise lança mão, também, de elementos da linguística
histórica que investigam as mudanças linguísticas ocorridas e o percurso gramatical do
uso discursivo do neutro. A segunda parte terá por objetivo refletir sobre a relação
entre a gramática e o sujeito enunciativo, observando a presença da flexão de gênero
nos discursos do português e a relação que esse tipo de flexão estabelece com o sujeito
que se projeta no discurso. Esses mecanismos da flexão no contexto discursivo são,
aqui, observados tendo em vista as demandas por mudanças gramaticais em função de
questões identitárias. Refletimos, assim, sobre a relação entre a gramática, o discurso e
o cotidiano da vida pública com auxílio de nomes dos estudos discursivos como
Bakhtin e outros; e as ideias sobre a constituição do sujeito na contemporaneidade.

Palavras-chave: Morfologia; Flexão de Gênero; Gênero Neutro; Sujeito Enunciativo.

1.Introdução

Desde os primórdios da Linguística se discute sobre a natureza das mudanças


na língua. Em Saussure (2006), pai da Linguística, temos essa discussão em vários
momentos, um deles está na abordagem da dicotomia: langue e parole. Para o linguista,
a língua se forma como sistema social de comunicação e a fala(parole) é o produto do
movimento da massa falante no exercício do discurso. A língua é um sistema arbitrário,
firmado a partir de um pacto social. As mudanças linguísticas acontecem em virtude
do movimento da dinâmica social absorvido pela massa falante, que repensa e refaz o
jogo das significações de acordo com as variações da vida cotidiana.

1 Graduando em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); e-mail:


andre.morin@uel.br.
2 Graduando em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); e-mail:

franzon.schurmann@uel.br.
3 Professora do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Estadual de Londrina

(UEL); e-mail: majogue@uol.com.br.

- 191 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Em Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, há a iniciativa de fazer uma


grande mudança na língua portuguesa brasileira, com a inserção do Tupi como língua
oficial do país. Mesmo tendo as melhores das intenções, Policarpo tem sua ideia
rechaçada. A língua está em constante mudança, contudo, as mudanças seguem regras
que já estão inseridas no próprio sistema. Não é qualquer tipo de alteração que pode
ser instaurada, as novas regras não podem ferir os princípios do sistema.
Neste princípio de século, no Brasil, temos mais uma tentativa de mudança
social da língua, desta vez, com relação ao gênero neutro. O debate está voltado para
questões decisivas que envolvem a flexão de gênero. Dentre essas questões
importantes, temos o acréscimo de um morfema neutro para a flexão de gênero, além
do masculino e feminino. Essa iniciativa tem como objetivo criar, identificar e
construir sentidos, os quais fazem reconhecer, socialmente, aqueles que, na
contemporaneidade, não se identificam nem com o masculino, nem com o feminino.
Uma outra questão marca esse debate dentro do cotidiano social; ou seja, essa
questão está, agora, delimitada além das fronteiras das Ciências Humanas, em especial,
as fronteiras da Linguística. Os discursos do cotidiano social não estão preocupados
com os parâmetros que a Linguística, como ciência, impõe. Ao contrário, trata-se de
uma lógica popular uma reflexão que pede a aplicação de conceitos e técnicas
científicas. Tudo isso é constatado quando se observa que todo o debate, grosso modo,
recebe o nome geral de pronome neutro, mesmo sendo um tema que afeta não só
pronomes, mas substantivos, adjetivos e até artigos.
Assim, dentro dessa perspectiva, o trabalho que estamos apresentando surge de
um debate sobre a relação entre modelos linguísticos e a aplicação desses modelos para
dar conta dos fenômenos linguísticos da atualidade, como o caso do neutro. Não
faremos uma discussão sobre a adequação ou inadequação do pronome frente ao
debate sobre minorias e preconceitos, e não faremos uma análise sociológica ou
antropológica do tema. Pretendemos uma breve análise panorâmica, a partir de quatro
teorias; são quatro enfoques diferentes dentro do campo da teoria linguística. As
teorias são: gramática tradicional e morfologia; análise diacrônica, levando em conta a
perspectiva historiográfica; teoria variacionista e análise do discurso. Obviamente que
não se pretende, aqui, esgotar o assunto, a questão do neutro no português é um
fenômeno complexo que não será explicado com uma abordagem sucinta, no entanto,
pretendemos aqui fazer uma primeira visão, para um futuro aprofundamento em
outros estudos.

2.A flexão de gênero na Gramática Tradicional

A primeira visão que trazemos é do arcabouço da Gramática Tradicional.


Trata-se dos parâmetros estabelecidos pela gramática tradicional no modelo descritivo,
campo cuja definição estabelece um percurso que vai de Bloomfield até estudos
contemporâneos de morfossintaxe. A Morfologia tem, pela própria etimologia, uma

- 192 -
Eixo 14
Linguagem e significação

relação direta com o estudo da composição da forma da palavra. Nos estudos


linguísticos tradicionais, a morfologia está preocupada com a flexão e a derivação; a
primeira, dando conta dos mecanismos de construção das formas vocabulares, e a
segunda, dando conta da construção de novos vocábulos para comportar novos
lexemas, abarcando as novas dinâmicas socioculturais.
Os estudos de Morfologia, desde a origem, estão relacionados à Sintaxe; pois,
como explicita Lyons (1987), a flexão desde o período clássico, até os comparativistas,
era entendida como parte dos mecanismos sintáticos para a composição do vocábulo
na frase. A concepção morfológica só se consolida a partir de Saussure e Bloomfield.
A sintaxe é responsável pela construção do sintagma, assim, é por meio das regras
sintáticas que os constituintes imediatos se articulam compondo, as formas
vocabulares, as frases e períodos. A flexão dos constituintes é então regida pelas
relações sintáticas da frase. Dessa forma, a Morfologia e a Sintaxe continuam sendo
áreas que se completam, juntas elas determinam, basicamente, a gramaticalidade de
uma língua. Neste trabalho, retomaremos várias vezes a intersecção entre Morfologia
e Sintaxe por intermédio de discussões sobre, por exemplo, questões de concordância.
A separação entre morfologia e sintaxe (pós bloomfieldiana) especifica a
competência da sintaxe para o estudo da distribuição frásica das formas vocabulares e
a morfologia de sua estrutura interna gramatical (LYONS, 1987). Neste artigo nos
preocupamos mormente com a morfologia, sendo que tratamos de uma questão de
flexão de gênero, contudo essa separação é muito importante para nos norteamos
dentro dos estudos linguísticos. Assim, de acordo com Gonçalves:

No escopo dos estudos linguísticos, morfologia é a área que estuda a forma das
palavras em diferentes usos e construções. Desse modo, os estudos morfológicos
abrangem (a) a análise da estrutura interna das palavras em seus constituintes menores
dotados de expressão e conteúdo, chamados morfemas, (b) as diferentes funções
dessas unidades e (c) os vários mecanismos responsáveis pelas criações de novas
unidades. (GONÇALVES, 2019, p. 14)

Os morfemas são, então, unidades mínimas detentoras de significação. Não


podemos confundir morfema com palavra, sendo que uma palavra pode ser
constituída apenas de um morfema, como em “rei”, mas também, de mais de um,
como em “reis” (rei + -s). Os morfemas podem ser classificados como: formas presas
ou formas livres. As formas livres são aquelas que não dependem de outras para ter
significado, como a palavra “rei”, colocada acima. A forma presa, diferentemente, não
contém significado fora do contato com outras formas, como é o caso do morfema “-
s” para indicação de plural. É possível, dentro dessa mesma conceituação, distinguir
dois tipos de morfema: os lexicais e os gramaticais, ou estruturais. Os morfemas
lexicais são portadores de significação lexical, isto é, possuem significados construídos
socialmente. Os morfemas gramaticais ou estruturais são aqueles que não possuem um
sentido definido socialmente, carregam, por seu turno, a significação lógica que
estrutura e sustenta as relações sintáticas da frase. No caso do exemplo acima, o

- 193 -
Eixo 14
Linguagem e significação

morfema de número “-s” é uma forma presa e configura, também um morfema


estrutural, porque tece a coesão sintática da frase por intermédio das relações
harmônicas de número.
O que nos interessa, particularmente, a respeito dos morfemas, é o morfema
de marcação de gênero, um morfema gramatical(estrutural) constituído normalmente,
por uma forma presa, que permitirá a flexão para os gêneros distintos no sistema de
flexão da língua. O descritivismo norte-americano de Bloomfield e o
distribucionalismo de Harris propõem um método, cuja base é a comparação. O que
permitirá encontrar os morfemas nas palavras segmentando e marcando as diferenças.
O movimento social em defesa do não-binarismo de gêneros propõe uma nova
partícula de flexão do gênero gramatical, além do masculino e feminino. É necessário
analisar como essas novas partículas propostas funcionam dentro do sistema da língua
e qual a finalidade a que servem. A flexão, segundo Câmara Junior (2015), remete à
curvatura, é quando algum termo se dobra, se modifica, se adapta para conseguir entrar
em alguns contextos frasais.
Como aqui estamos falando da questão de flexão de gênero, as classes afetadas
serão majoritariamente os substantivos e os adjetivos (KOCH, 1994). A flexão de
gênero é condicionada pelas formas masculinas e femininas, o masculino será marcado
pelo morfema zero e o feminino com a adição do “-a” final átono. Quando o
masculino é marcado pela vogal temática a relação é a mesma, como coloca Koch:

Quando a forma masculina é atemática, há simplesmente o acréscimo mencionado:


peru/perua - autor/ autora; mas, quando tal forma termina em vogal temática como
pombo, parente, essa vogal é suprimida, através de uma mudança morfofonêmica,
decorrente do acréscimo do morfema -a: - o + a= pomba; - e + a= parenta. (KOCH,
1994, p. 41)

Todos os substantivos em português têm marca de gênero, contudo, não são


todos que variam em gênero e, quando há essa variação, têm-se diferentes processos
além da flexão para consumar essa transformação. O gênero está presente também em
outras classes de palavras, como: adjetivos, artigos e pronomes. Manifestado por uma
oposição entre masculino e feminino, no qual, geralmente, o masculino é o termo não-
marcado. Como dito anteriormente, nem todas as palavras terão o contraste de gênero
masculino e feminino, mas todos têm um gênero, que será marcado por intermédio da
concordância sintática. Esse processo é denominado gênero sintático (CÂMARA JR.,
1985) ou gênero implícito (BOTELHO, 2004).
O gênero na língua não tem ligação com o gênero biológico. Podemos chegar
a essa conclusão facilmente se, por exemplo, olharmos a palavra “mulher”. “Mulher”
referencia um ser biológico do sexo feminino, utilizando em uma frase concordaremos
sintaticamente também com o gênero feminino. Contudo, se mudarmos para o
aumentativo “mulherão”, o gênero sintático já se torna masculino, mesmo ainda
representando um ser do sexo feminino. Ou seja, a flexão de gênero é arbitrária e não

- 194 -
Eixo 14
Linguagem e significação

está fixada no semântico; é uma propriedade lexical que evidencia e repercute no


sintático, assim, permitindo a concordância entre as palavras dentro dos sintagmas.
Aqui temos a primeira questão na análise de nosso objeto, pois a partícula
neutra, que propõem para o gênero neutro, dá à flexão de gênero gramatical uma
sobre-determinação social e impõe à língua o gênero social como marca gramatical, ou
seja, ela entra em choque com o próprio princípio de flexão arbitrária do sistema.
Assim, a análise gramatical pede que se observe essa proposta de um novo gênero
neutro, tendo em vista a adequação ao sistema da língua. Alguns exemplos podem
elucidar o contexto gramatical da nova proposta:

(1) Muito prazer em conhecê-les! Bem-vindes ao meu blog!4


(2) A pessoa a que você está se dirigindo pode se sentir ofendide caso você
chame elu [. . .]

Em (1) o morfe “-e” é colocado em “conhecê-los” e “bem-vindos”, que são


sequencialmente um pronome oblíquo da terceira pessoa do plural e um adjetivo, o
qual está concordando com a terceira pessoa. Como o morfema masculino no
português é o morfema não marcado, ele ocupa também os casos de neutralidade de
gênero, como quando dizemos: “bom-dia a todos”; não há necessidade de dizer, por
exemplo, “todos e todas”, pois o primeiro já representa a totalidade. Assim, a inserção
de um outro pronome neutro nesses casos parece dispensável, ou até redundante, de
acordo com as regras da gramática tradicional portuguesa. No uso (2) os morfes “-e”
e “-u”, ambos com o cargo de morfema neutro, aparecem em “ofendida” e “ela. O uso
do morfema neutro causa o problema de concordância. A partícula “ofendida” é um
adjetivo, esse deve sempre concordar com o substantivo o qual está modificando, no
caso da nossa frase é “pessoa”. Como o substantivo é feminino, devemos colocar
“ofendida” para que a concordância esteja correta. O pronome “elu” também deveria
estar concordando com o substantivo que está substituindo anaforicamente. Logo,
dentro dos padrões do sistema gramatical, a proposta de gênero não está adequada.
Ela cria tensões dentro do sistema que prejudicam o seu uso para a comunicação. Da
forma como está configurada a nova flexão, não está se levando em conta as regras
básicas do sistema da língua portuguesa.

3.Como a língua muda?

Já temos então uma primeira visão sobre o funcionamento da língua, só que,


como temos desde Saussure (2006), a língua não é estática, ela passa por processos de
mudança. Não perdendo de vista também que o fenômeno social do gênero neutro

4 Disponivel em: < https://aminoapps.com/c/comunidade-lgbt/page/blog/como-usar-


pronomes-neutros/7eZ8_gxGuPuvwmLrW7YY03ooa72zznz47D> acessado: 04 de dez.
2021

- 195 -
Eixo 14
Linguagem e significação

também requer uma mudança na língua. Assim, temos que refletir: como a língua muda
e o que é passível de mudança? A realidade da língua é a mudança, contudo, a própria
mudança não foge às regras estruturais do sistema. Se a transformação da língua fosse
caótica, seria impossível a comunicação, já que estaríamos todos usando variações
distintas. Faraco (2005) elucida como ocorre a mudança na língua sem que o sistema
perca sua organização:

Entre elas, o próprio fato de que as mudanças linguísticas, embora ocorrendo


continuamente, se dão de forma lenta, o que faz com que só excepcionalmente
percebamos esse fluxo histórico no nosso cotidiano de falantes. Além disso, as
mudanças atingem sempre partes e não o todo da língua, o que significa que a história
das línguas se vai fazendo num complexo jogo de mutação e permanência, reforçando
aquela imagem antes estática do que dinâmica que os falantes têm de sua língua.
(FARACO, 2005, p. 15)

A mudança pode acontecer em qualquer âmbito da língua, desde seu


vocabulário, as regras, e até mesmo a estilística. Uma fonte de percepção das variações
na língua é a própria escrita. Sendo que escrevemos material duradouro, esse tipo de
produção é passível de maior controle social e seus contextos são mais formais. Com
relação ao gênero neutro, podemos perceber sua relação com um grupo social com a
escolaridade maior, pois a escrita tem maior relevância do que a fala. Sendo que, por
exemplo, o “x” usado como morfe de flexão de gênero é um de alofone principalmente
como marca de plural dos cariocas. Ou seja, a formatação da partícula neutra parece
ser produto do meio escrito e não diretamente da fala.
Ainda sobre a língua, temos que não se trata de um sistema fechado e que o
seu movimento é influenciado pelo movimento social. De forma que a morte de uma
língua é basicamente o desaparecimento da sociedade que a falava. Logo, quando
observamos um evento da mudança linguística temos que ter alguns pressupostos em
mente. Alguns desses: é preciso sempre abordar a mudança dentro de seu contexto
sócio-histórico e apresentar o seu encaixe no sistema sincrônico da língua, mas
também seu encaixe no sistema social (como vimos a mudança não acontece de uma
vez e nem de forma totalizante, logo ela entrará em contato com o sistema que estava
na sua forma original). Um exemplo para usarmos nossos pressupostos de análise é a
inserção do feminino em alguns substantivos do português:

Pedr’ Amigo, des aqui é tençon,


Ca me non quer’ eu convosc’ outorgar!
O rafec’ ome, a que Deus quer dar
Entendiment’, em algua sazon,
De querer ben a mui bõa senhor.
Este non cuida fazer o peor;
E quen molher rafec’, a gran sazon,
Quer ben, non pode fazer se mal non. (transcrito de F. JENSEN, 1992, pp.
384-386 apud FARACO, 2005, p. 31, grifo nosso)

- 196 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Esse trecho é de uma cantiga trovadoresca de meados do séc XIII. O termo


“senhor”, mesmo em relação ao adjetivo no feminino “bõa”, mostra que se refere à
uma mulher e continua no masculino. Se vemos o recorte linguístico da época, os
termos lexicais, principalmente sinônimos de poder, como “senhor”, não flexionavam
para o feminino. Podemos complementar a análise, observando o contexto social da
época, no qual a mulher nunca chega ao lugar de proprietário, portanto só o masculino
para comportar o lugar da honra, o linguístico traduz o social. Trazemos o exemplo
por se tratar também de uma mudança nos parâmetros de gênero da língua como
refração de mudanças sociais. Observando esse caso, em que o masculino engloba
todas as flexões de gênero, vemos que o feminino como marca de gênero foi uma
conquista da diversidade.
O movimento social pelo gênero neutro, igualmente, tem raízes nas identidades
sociais que se refletem e se refratem na língua. Mudanças como essa do feminino
podem elucidar os embasamentos históricos que podem auxiliar a compreensão das
mudanças do mundo contemporâneo.

4.A mudança linguística e o social

Como vimos no tópico anterior, o aspecto social influencia na mudança


linguística. A própria variação que chamamos de português padrão não tem critérios
exclusivamente linguísticos para ser tão representativo (FARACO, 2019), há muito da
política e das relações de classe para fundamentar essa escolha. Neste tópico,
abordaremos um pouco essa relação entre a língua e a sociedade.
A linguagem não é usada apenas para comunicação de informações, há muitas
outras funções; entre estas, ocupa uma posição central a função de comunicar ao
ouvinte a posição social do falante (GNERRE, 2009). Assim, os conteúdos e as
variações linguísticas que os falantes utilizam são influenciadas pelas classes sociais,
variações utilizadas pelas classes dominantes terão maior prestígio social, ou seja, “uma
variedade linguística ‘vale’ o que ‘valem’ na sociedade os seus falantes” (GNERRE,
2009, p. 6).
Uma das áreas importantes para entendermos a relação entre as variações
linguísticas e o social é a sociolinguística. Ora, o próprio Labov, um dos maiores nomes
dessa área propõe que: “a forma do comportamento linguístico muda rapidamente à
medida que muda a posição social do falante. Essa maleabilidade da língua sustenta
sua grande utilidade como indicador de mudança social” (LABOV, 2020, p. 175). Por
consequência, temos que refletir sobre quais são os parâmetros de estudo dessa relação.
Os parâmetros empíricos das variações que possibilitam a comunicação são expostos
por William Bright:

- 197 -
Eixo 14
Linguagem e significação

As três primeiras dessas dimensões aparecem em resposta a uma pergunta: quais são
os fatores que condicionam a diversidade linguística? E ele [William Bright] distingue
três fatores principais: a identidade social do falante, a identidade social do destinatário
e o contexto, situando-se assim no marco de uma análise linguística que tomou
emprestadas noções-chave da teoria da comunicação (emissor, receptor, contexto).
[…] Seus estudos, ele acrescenta, dizem respeito às relações entre linguagem e
sociedade, mas essa definição é vaga, e ele então esclarece que “uma das maiores
tarefas da sociolinguística é mostrar que a variação ou a diversidade não é livre, mas
que é correlata às diferenças sociais sistemáticas. (CALVET, 2002, p. 21)

Para compreendermos ainda melhor o que nos diz Bright podemos recorrer a
um dos trabalhos feitos dentro da sociolinguística. Um bom exemplo é o de Bernstein
(apud CALVET, 2002) que trabalhou a diferença das produções textuais de crianças de
classe baixa e alta. Nesse trabalho ele reconhece que as crianças de classe baixa
construíam seus textos de forma bem mais simples, sem aporte imagético: “Eles jogam
futebol, ele chuta, quebra a vidraça etc.” (CALVET, 2002). Enquanto as crianças de
classe alta produziam textos mais complexos com usos imagéticos: “Meninos jogam
futebol, um deles chuta, a bola atravessa a janela e quebra uma vidraça etc.” (CALVET,
2002). O autor justifica essa diferença pelo próprio ambiente, ao qual as crianças estão
expostas. Sua educação e socialização serão certamente distintos, e, logo, para além de
outras determinações, a posição social determina os comportamentos linguísticos.
Assim, as formas linguísticas e variações que utilizamos não são escolhidas a
esmo, têm muito de nossa própria posição social e a quem nos dirigimos. Não somos
coordenados pela concordância da “língua oficial”, mas pela participação nas normas
que compartilhamos na nossa sociedade falante (LABOV, 2020). Mesmo que a
classificação de algo tão volátil quanto uma variação linguística seja no mínimo
complicado, na teoria variacionista, há algumas classes de variação a que podemos
recorrer. A classe que nos interessa é a diastrática, que como nos expõe Lagares, é a
variação pela qual os atores sociais se reconhecem nos grupos sociais:

Os atores sociais reconhecem grupos sociais estratificados e hierarquizados


(provavelmente, em boa parte, consequência de esteriotipações), e, ainda, é possível
enxergá-los com critérios objetivos. […] Todos os falantes têm consciência em graus
diversos do fenômeno da variação linguística, e são capazes de reconhecer seu valor
social. (LAGARES, 2011, p. 35)

Observando o movimento pelo gênero neutro como uma variação de grupo,


estamos mais seguros para analisar o seu ponto identitário, sendo que, pela teoria
variacionista, as variações linguísticas ligam-se à identidade dos falantes. O sujeito já se
distingue de acordo com as variações que utiliza. Para entendermos melhor essa
questão da identidade e da linguagem, partiremos para nosso último tópico, com
relação ao discurso.

- 198 -
Eixo 14
Linguagem e significação

5.O sujeito no discurso e a questão identitária


Ainda refletindo sobre as relações entre o social e a língua, observaremos agora,
com auxílio das teorias do discurso, o ponto de vista do sujeito e suas relações com a
linguagem. Já que o pronome neutro é uma questão identitária, como essa se tornou
uma questão linguística? A linguagem é um simples instrumento de comunicação e não
tem nada a ver com identidade? Benveniste (2005) no capítulo “Da subjetividade da
linguagem”, do Problemas de Linguística Geral I nos diz que a linguagem até pode
encaixar em uma discrição instrumental ao estilo behaviorista, até porque é a forma
que os seres humanos amiúde utilizaram para se comunicar. Contudo, falar da
linguagem como instrumento é colocá-la na oposição homem e natureza.
Instrumentos como bicicleta, martelo e afins não estão inseridos na natureza humana.
O homem existe sem esses instrumentos, mas no caso da linguagem: “É um homem
falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, e a
linguagem ensina a própria definição de homem” (Benveniste, 2005, p. 285). O homem
é parte da linguagem e a linguagem é parte dele, não concebemos a imagem do homem
fora da relação dialógica da linguagem, sendo que é constituinte da nossa própria
identidade. Ou ainda, como coloca Humboldt: “Falar – mesmo nas mais simples
formas do discurso – significa unir suas sensações individuais à natureza humana geral”
(HUMBOLDT, 2013 [1859] apud GRILLO, 2017, p. 63).
A dialogia da linguagem, do “eu” que dialoga com o “tu”, é também, segundo
Benveniste (2005), constituinte da própria identidade. A consciência de si mesmo
também só pode ser experienciada em relação a um tu, ou seja, por meio de contraste.
A linguagem é indissolúvel dessa relação entre o eu que se coloca como sujeito em
relação a um tu de quem se diferencia. Levando em conta nosso objeto de observação,
o movimento social em defesa do não-binarismo, temos aqui a justificativa para que
uma questão de identidade e representação social tenha se transformado em uma
questão linguística. A língua e a linguagem não são simples instrumentos de
informação, é a partir dela que nos constituímos sujeitos e nos identificamos frente a
Outros. Ora, se o falante não se sente representado em sua própria língua, movimentos
de mudança são imprescindíveis.
Podemos complementar ainda com o pensamento bakhtiniano, sendo que a
partir desse temos que nem as formas, nem os conteúdos da comunicação social serão
engessados. No ensaio introdutório de Sheila Grillo (2017) é exposto como para
Bakhtin o sentido decorre do diálogo entre locutor e interlocutor, e as formas
linguísticas não existem como formas estáveis: “A língua como um sistema estável de
formas normativas idênticas é somente uma abstração científica, produtiva apenas
diante de determinados objetivos práticos e teóricos. Essa abstração não é adequada à
realidade concreta da língua.” (VOLÓCHINOV, 2017 [1929] apud GRILLO, 2017, p.
65). Tendo isso em vista, o que determinará as condições do sentido e da forma signo?
Primeiramente o que, segundo Volóchinov (2017 [1929] apud GRILLO, 2017), será

- 199 -
Eixo 14
Linguagem e significação

objeto da formação dos signos é a ideologia, essa, por sua vez, será uma refração da
realidade. Os signos ideológicos não representam a coisa em si, mas apenas uma parte
de sua realidade, e por isso um mesmo objeto pode gerar diferentes signos. Como, por
exemplo, é o caso da cruz, dentro das sociedades antigas ela era um instrumento de
tortura, mas dentro da ideologia cristã ela representa a morte de Jesus pelos pecadores.
Assim, o signo é uma experiência externa ao sujeito, sendo que ele sempre será criado
nos grupos ideológicos e só terá o significado opondo ou concordando com outros
signos de seu âmbito. Dessa forma, para que surjam signos é necessário muito mais
que dois homens, eles precisam estar socialmente organizados pela coletividade. O ato
comunicativo é intrínseco ao signo, pois esse só existirá enquanto relação com o outro.
Ora, algo só se torna signo pela necessidade de representação, se esse não é
compartilhado, não tem o porquê de sua existência.
Sobre a realidade da palavra, Volóchinov (2017), diz estar totalmente ligada à
sua função de signo, tornando esse o meio mais apurado e importante da comunicação
individual. A palavra é importante para esse propósito principalmente por ser um signo
neutro. Como vimos anteriormente, alguns signos ligam diretamente ao seu campo
ideológico, como no caso da cruz, mas a palavra caminha com facilidade entre todos
esses e pode se tornar parte de qualquer um. Os conteúdos dessas formas sígnicas
serão enviesados, não criamos signos de tudo, apenas daquilo que tenha o mínimo de
pertinência social: “somente aquilo que adquiriu um valor social poderá entrar para o
mundo da ideologia, tomar uma forma e nele consolidar-se.” (VOLÓCHINOV, 2017,
p. 111). Assim os signos sociais mudarão de acordo com as exigências ideológicas do
contexto: “Ao realizar-se no processo da comunicação social, todo signo ideológico,
inclusive o signo verbal, é determinado pelo horizonte social de uma época e de um
grupo social.” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 110).
Logo, a vida sígnica tem relação direta com os embates ideológicos na
sociedade, é somente a partir dessa tensão e diferentes direcionamentos do signo que
farão com que ele seja pertinente para a comunicação social. Na teoria bakhtiniana, a
retirada do signo da disputa social, significa a morte deste: “O que determina a refração
da existência no signo ideológico? O cruzamento de interesses sociais
multidirecionados nos limites de uma coletividade sígnica, isto é, a luta de classes”
(VOLÓCHINOV, 2017, p. 112). Hoje poderíamos ampliar, repensar e
recontextualizar essa ideia bakhtiniana da luta de classes estar refletida e refratada no
signo, para também englobar as lutas de gênero, lutas contra o racismo, lutas contra o
machismo etc.

- 200 -
Eixo 14
Linguagem e significação

6.Considerações finais

O presente artigo não pretende aqui esgotar o tema. Abordamos alguns


aspectos à luz de teorias linguísticas contemporâneas que podem auxiliar a entender o
fenômeno social pela busca do gênero neutro como uma forma discursiva de afirmar
a identidade de um grupo social presente na sociedade e que busca reconhecimento e
exercício pleno da cidadania. A mudança que se pretende no sistema da língua, acaba
por se tornar também uma questão linguística. Várias questões foram levantadas,
porém, uma delas chama a atenção. Trata-se da própria reivindicação linguística que se
faz: busca-se o chamado pronome neutro; contudo, a alteração não se faz apenas no
pronome, mas na própria flexão de gênero da língua, o que vai muito além do
pronome.
Na primeira parte desta análise, abordamos a gramática tradicional e vimos os
problemas que essa nova flexão de gênero se apresenta frente ao sistema gramatical da
língua e às regras morfossintáticas desse sistema gramatical. A seguir, com a linguística
histórica e teoria a variacionista, constatamos as relações entre o social e a mudança
linguística e discutimos a questão do gênero neutro como reflexo de necessidades
sociais que chegam às mudanças linguísticas. Observamos, também, que esse não é o
único, nem o primeiro tipo de mudança dessa natureza. O fator social tem grande
influência nos usos linguísticos e na expressão da visão de mundo de uma determinada
sociedade.
Por fim, acompanhados pelo discurso, enfocamos ainda mais a relação entre o
social, por meio do sujeito, e as formas linguísticas. Com Benveniste e Bakhtin,
concluímos que as conexões entre língua e identidade são mais estreitas do que
normalmente reconhecemos. Nosso principal objetivo é demonstrar alguns aspectos
da linguística que nos auxiliam a pensar como os jogos sociais da linguagem refletem
e refratam as tensões da vida social.

Referências

BAGNO, Marcos; LAGARES, Xóan. Políticas da Norma e Conflitos


linguisticos. São Paulo: Parábola, 2011.

BENVENISTE, Émile. Problemas de Lingüística Geral I. São Paulo: Pontes,


2005.

BOTELHO, José Mário. O gênero imanente do substantivo no português.


Botelho. Rio de Janeiro:2005.

CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística: uma introdução crítica. São Paulo:


Parábola, 2002.

- 201 -
Eixo 14
Linguagem e significação

CAMARA JR., Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa. Vozes. Rio de


Janeiro: 2015.

ELSON, Benjamin. Introdução à morfologia e à sintaxe: tentativa e


experimento. Petrópolis: Vozes 1973.

FARACO, Carlos Alberto. Linguística histórica. São Paulo: Parábola Editorial,


2005.

FARACO, Carlos Alberto. História do português. São Paulo: Parábola Editorial,


2019.

GNERRE, Maurizio. Linguagem escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

GONÇALVES, Carlos Alexandre. Morfologia. São Paulo: Parábola Editorial 2019.

GRILLO, Sheila. Ensaio introdutório. In: VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e


filosofia da linguagem. São Paulo: Editora 34, 2017.

LABOV, William. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2020.

LYONS, John. Linguagem e linguística. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1981.

SAUSSURE, Ferdinand. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 2006.

SILVA, Maria Cecilia Peres de Souza; KOCH, Ingedore Villaça. Linguística


aplicada ao português: morfologia. São Paulo: Cortez, 1994.

VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:


Editora 34, 201

- 202 -
Eixo 14
Linguagem e significação

BICHO, LAGARTA, GONGO, TAPURU: DENOMINAÇÕES


PARA BICHO-DA-FRUTA NO FALAR NORDESTINO

Flávia Pereira Serra1

Resumo: Considerando que a língua é reflexo da história de seus falantes e da


sociedade da qual fazem parte, os estudos dialetológicos tornam-se imprescindíveis,
em especial em países como o Brasil, cuja extensão continental contribui para riqueza
e diversidade cultural e linguística da região. Nesse âmbito, destacamos o léxico, “nível
da língua que melhor evidencia as pegadas do homem na sua trajetória histórica”
(ISQUERDO, 2009). Assim, apoiados nos preceitos teórico-metodológicos da
Dialetologia e Geolinguística (CARDOSO, 2010), o presente trabalho objetiva
investigar as denominações atribuídas ao bicho-da-fruta, item lexical foco da questão 086
do Questionário Semântico-lexical do Projeto Atlas Linguístico do Brasil (ALiB). Os
dados, extraídos do banco dos dados do ALiB, correspondem aos inquéritos realizados
com 272 informantes, que estão estratificados igualmente entre sexo – homem e
mulher – e faixa etária – Faixa I, 18 a 30 anos, e Faixa II, 50 a 65 anos –, e distribuídos
em 68 localidades, que correspondem à área do subfalar nordestino (NASCENTES,
1953) e adjacências. A análise dos dados mostra a ocorrência das lexias bicho, bicho-da-
goiaba, morotó, gongo, tapuru, distribuídas pelos diferentes pontos da região, comprovando
a heterogeneidade lexical do falar nordestino.

Palavras-chave: Dialetologia; Léxico; Subfalar nordestino.

Introdução

De acordo com a perspectiva social da linguagem, entendemos que uma língua


está diretamente relacionada com a história e cultura de seus falantes, o que a torna
heterogênea ao assumir diferentes traços segundo o grupo do qual faz parte. Esses
traços podem ser de natureza fonético-fonológica, morfossintática e lexical, dentre os
quais destacamos, neste artigo, o último, pois o léxico é um dos aspectos que melhor
determinam o falar de uma comunidade, pois, por ser o nível mais aberto da língua e,
consequentemente, estar em constante mudança, frequentemente molda-se de acordo
com as necessidades das comunidades de fala.
É considerado um importante fator de identificação social e cultural, que
“constitui um vasto universo de limites imprecisos e indefinidos. Abrange todo o
universo conceptual dessa língua. Qualquer sistema léxico é a somatória de toda a
experiência acumulada de uma sociedade e do acervo da sua cultura através das idades”
(BIDERMAN, 1979, p. 139)

1Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade


Estadual de Londrina (PPGEL/UEL). E-mail: flavia.pereira.serra@uel.br.

- 203 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Por conta desse e de outros fatores, o nível lexical tem sido alvo de análises
linguísticas em diversas áreas, dentre as quais destacamos a Dialetologia, método
geolinguístico por meio do qual se investigam os falares/dialetos de diversas
localidades considerando sua distribuição geográfica (perspectiva monodimensional)
e/ou características sociais de seus falantes (perspectiva pluridimensional).
No caso do Português Brasileiro, pesquisas dialetológicas de natureza lexical
têm sido realizadas a fim de se verificar os limites e investigar as particularidades das
áreas dialetais brasileiras (RIBEIRO, 2012; PORTILHO, 2013; ROMANO, 2015;
SANTOS, 2016; SANTOS, 2018). Para tanto, os pesquisadores têm se baseado em
Nascentes (1953), o qual propôs para o Brasil a divisão em dois grandes dialetos, o do
falar do Norte, composto pelos subfalares amazônico e nordestino, e o falar do Sul,
composto pelos subfalares baiano, fluminense, mineiro, sulista e uma área que
Nascentes denominou de território incaracterístico.
Neste artigo, enfocamos a área do subfalar nordestino, na qual buscamos
investigar as variantes lexicais atribuídas ao bicho-da-fruta, larva da mosca-da-fruta, nome
popular para o inseto anastrepha obliqua, item investigado na questão 86 (Como se chama
o bichinho branco, enrugadinho, que fica dentro da goiaba ou do coco?) do Questionário
Semântico Lexical (QSL) do Atlas Linguístico do Brasil (ALiB).
Vale ressaltar que a área do subfalar nordestino não corresponde fielmente à
delimitação geográfica e política da região Nordeste, uma vez que esta corresponde
aos estados Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco,
Alagoas, Sergipe, e Bahia; enquanto aquela contempla os mesmos estados, com
exceção de Bahia e Sergipe, além de abarcar o nordeste do Tocantins. Estes últimos,
segundo Nascentes (1953), compõem o subfalar baiano, inserido no Falar do Sul.

O léxico como fator de identidade cultural: breves considerações

Segundo Villalva (2014), o léxico de uma língua refere-se ao conjunto de


palavras que compõe o acervo linguístico de uma comunidade de fala, no qual estão
inclusas as palavras em uso pelos seus falantes, palavras em uso por outras
comunidades, palavras que costumavam ser empregadas, mas caíram em desuso e
eventualmente podem ressurgir. Em linhas gerais, é o nível linguístico responsável
pelos processos de nomeação ocorridos em uma comunidade.
Vale ressaltar que esse processo está diretamente relacionado com a história e
cultura de seu povo, uma vez que este

[...] é o nível da língua que melhor evidencia as pegadas do homem na sua


trajetória histórica. É por mor meio dele que o homem nomeia o espaço que o
circunda e a consubstancia a sua visão de mundo acerca da sociedade. Nessa
perspectiva, as migrações dos homens se traduzem também em migrações de
palavras que ora se fixam na fala de determinados grupos sociais, ora são

- 204 -
Eixo 14
Linguagem e significação

substituídas por outras que melhor traduzam a realidade sociocultural desses


grupos. (ISQUERDO, 2009, p.43)

Conclui-se, portanto, que o acervo lexical de um povo é um cartão de visitas


que possibilita conhecer sua trajetória e observar a maneira com a qual visualizam o
mundo.

Procedimentos metodológicos

Para que fosse possível investigar a variação lexical referente ao bicho-da-fruta


no subfalar nordestino, inicialmente fizemos a seleção dos pontos linguísticos,
considerando a Rede de pontos do Projeto ALiB, com base na área do subfalar
nordestino demarcada por Nascentes (1953) e georreferenciada por Teles (2018).
Assim, dos 250 pontos linguísticos do ALiB, selecionamos 68, sendo 54 dentro dos
limites do subfalar nordestino e 14 nas áreas de entorno.
A seguir, o mapa com as localidades selecionadas para a investigação.

Figura 1 – Rede de pontos selecionados para a análise


Fonte: Elaborada por Santos (2020)

- 205 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Após a seleção dos pontos linguísticos, procedemos à constituição do corpus da


pesquisa, extraído do banco de dados do Projeto ALiB, referente às respostas à questão
086 do Questionário Semântico Lexical - Como se chama o bichinho branco, enrugadinho, que
fica dentro da goiaba ou do coco?.
Na sequência, lançamos os dados no programa computacional SGVCLin -
Software for Generation and Visualization of Linguistic Maps (ROMANO et al, 2015), para a
elaboração das cartas diatópicas, de arealidade e dos relatórios que subsidiaram a
análise executada com base na distribuição diatópica, arealidade e etimologia das lexias
identificadas.

Análise dos dados

A questão 086 do QSL, referente ao pequeno bicho de cor branca, geralmente


encontrado em goiabas e cocos, suscitou 327 registros, distribuídos em 16 formas,
incluindo suas variantes fonéticas e morfofonêmicas, e 29 abstenções de respostas.
Segundo Aguilera (2013), que analisou cartas publicadas no ALiB, com base em dados
das capitais brasileiras referentes ao campo semântico fauna, o elevado índice de não-
respostas para essa pergunta – neste caso, 8,8% – está relacionado ao fato das frutas,
antes de serem vendidas em sacolões e supermercados, receberem tratamento contra
as moscas-da-fruta, fator que impede que estas depositem seus ovos na fruta,
impedindo, consequentemente, o desenvolvimento das larvas conhecidas como bicho-
da-goiaba.
Das 16 formas encontradas em nosso corpus, destacamos as seis mais
recorrentes: bicho, que reúne as variantes compostas bicho-da-goiaba, bicho-do-coco, bicho-da-
fruta e bicho-da-mosca; lagarta, que reúne as variantes lagarta branca e lagarta de goiaba; tapuru;
gongo, que reúne as variantes bigongo e gongolo; e morotó, cuja distribuição está retratada na
Carta Linguística da Figura 2.

Figura 2 – Carta linguística referente à distribuição diatópica das variantes


Fonte: Elaboração própria, por meio do programa SGVCLin (ROMANO et al, 2015).

- 206 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Por meio da distribuição diatópica das lexias, notamos que se trata de uma área
heterogênea, na qual a lexia bicho é hegemônica, presente em todos os estados
contemplados, abrangendo 43% do total de registros; lagarta, segunda variante mais
recorrente, com 23%, também foi elicitada em todos os estados, porém de forma
menos expressiva; tapuru, 16,5%, mais recorrente no litoral oriental do subfalar
nordestino; gongo, 5%, registrada no PI, MA, e CE, além da área de entorno no PA; e
morotó, 2%, presente no sul do PI e oeste de PE, além de municípios da BA, fora dos
limites do subfalar nordestino.
Além destas, foram registradas as variantes larva (com sete registros), minhoca
(cinco registros), broca (com quatro registros), corongo, mosca branca, lêndia, piolho, lesma,
rosca, coró, e caraquinha de goiaba (com um registro, cada).
A fim de analisar a densidade dessas variantes, elaboramos cartas de arealidade,
apresentadas nas Figuras 3 a 7, expostas e discutidas nas subseções seguintes.

Figura 3: A realidade de Bicho (da goiaba/ do coco/ da fruta/ da mosca)


Fonte: Elaboração própria, por meio do programa SGVCLin (ROMANO et al, 2015).

A lexia bicho, representada pela Figura 3, reúne as variantes simples e derivativas


bichinho, bichoca, e as compostas bicho(inho) da goiaba, bicho(inho) do coco, bicho da(e) fruta(s),
e bicho-da-mosca.
Sua arealidade mostra que a forma tem ampla distribuição no território
investigado, se estendendo além de seus limites, principalmente em direção à região
Norte e ao sul da região Nordeste, mais precisamente aos estados Sergipe e Bahia, não
incluídos por Nascentes (1953) como parte do subfalar nordestino e, por isso,
considerados área de entorno.
Apesar de sua ampla distribuição, não há registros da lexia na faixa que se inicia
nos litorais leste do CE e oeste do RN, que segue em direção ao oeste e centro da PB

- 207 -
Eixo 14
Linguagem e significação

e PE. Nos pontos 65 – Olinda, no litoral de PE, 66 - Afrânio e 67 – Cabrobó, ao oeste


do mesmo estado, e 74 - União dos Palmares (AL), também não houve ocorrências.
Ao observarmos os dados das capitais publicados pelo ALiB na Carta L13
(CARDOSO et al, 2014), constatamos que a variante bicho-da-goiaba é a mais recorrente,
sendo registrada em todas as capitais brasileiras, com exceção de Rio Branco (AC) e
Recife2 (PE). No entanto, sua realização é mais expressiva nas capitais do Sul e Sudeste,
sendo unânime no Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP), e Porto Alegre (RS).
Segundo o Dicionário Houaiss, bicho é um termo da zoologia referente a uma
“designação comum e geralmente depreciativa de diversos insetos e suas larvas (cupim,
broca, traça, caruncho etc.) ou de vermes que se alimentam de madeiras, frutos, cereais,
tecidos, papéis etc., causando danos ou inutilizando-os”; provém do “latim vulgar
bēstĭu, no sentido de 'todo e qualquer animal'” (HOUAISS, 2021, online). A Figura 4
traz a arealidade da variante lagarta.

Figura 4 A realidade de Lagarta


Fonte: Elaboração própria, por meio do programa SGVCLin (ROMANO et al, 2015).

Para a elaboração da cartada Figura 4, reunimos a lexia lagarta com as variantes


morfofonêmicas lagarto, laigata, lagata, largarta, largata, as derivativas laga(r)tinha, lagatão,
lagartixa e as compostas lagarta da goiaba e lagata branca.
Assim como bicho, a variante também está presente em todos os estados
contemplados na área do subfalar nordestino, porém de forma mais espaçada,
concentrando-se principalmente no sudeste da região. Também se estende além dos
limites da área, com ocorrências em Sergipe e Bahia, estados considerados área de
entorno, apesar de geograficamente fazerem parte da Região Nordeste.

2 Vale lembrar que,


para este artigo, estamos considerando a lexia bicho e suas demais variantes,
incluindo bicho-da-goiaba, como um só item. Por isso, nota-se que em nossos dados,
demonstrados na Figura 2, o ponto 70 – Recife, registra o uso da lexia, embora na carta L13
do ALiB, não registrar o uso de bicho-da-goiaba na localidade.

- 208 -
Eixo 14
Linguagem e significação

É menos expressiva: (i) ao oeste da região – no MA, presente apenas nos


pontos 26 (São Luís), 27 (Brejo), 29 (Bacabal), 30 (Tuntum), e no leste do PI, região
fronteiriça com o MA, presente nos pontos 34 (Teresina), 36 (Picos), 37 (Canto do
Buriti); e (ii) em sua porção setentrional – não tendo sido registrada em municípios do
CE – Camocim (39), Sobral (40), Ipu (42), Limoeiro do Norte (47), Tauá (48) –, RN
(Angicos (52), PB (Campina Grande (60)), e PE – Olinda (65), Recife (70), e
Garanhuns (72).
Segundo a Carta L13 do ALiB (CARDOSO et al, 2014), a lexia difunde-se por
todo o litoral leste brasileiro, de Fortaleza (CE) à Vitória (ES) – com exceção de Recife
(PE) –, com ocorrências também em Teresina (PI) e em Porto Velho (RO).
Segundo o Houaiss, lagarta, oriunda provavelmente do latim *lacarta por
lacērta,ae, é uma “designação comum às larvas vermiformes das borboletas e mariposas,
que são frequentemente polípodes e que apresentam o corpo alongado e mole”, refere-
se, portanto, por extensão de sentido, à larva da mosca-da-fruta, a qual suas
denominações são objeto foco deste artigo.
A Figura 5 expõe a arealidade de tapuru no espaço do subfalar nordestino e
entorno.

Figura 5: A realidade de Tapuru


Fonte: Elaboração própria, por meio do programa SGVCLin (ROMANO et al, 2015).

A Carta L13 do ALiB (CARDOSO et al, 2014) mostra que a lexia é fortemente
disseminada no Norte brasileiro e também em algumas capitais do Nordeste, como em
São Luís (MA), João Pessoa (PB), Recife (PE) e Maceió (AL).
Na região do subfalar nordestino, de acordo com a Figura 5, foi registrada
principalmente na faixa que inicia no centro do PI, em direção ao centro do CE e toda
a PB, se dissipando pelo litoral leste da área, além de também ser registrada no MA
(pontos 26 – São Luís e 28 – Bacabal), ao oeste. Nota-se ainda que a lexia tapuru é mais
produtiva na área onde não foi registrada a forma bicho, coexistindo apenas com a
variante lagarta, em grande parte das localidades.

- 209 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Segundo o Houaiss, é proveniente do “tupi tapu'ru no sentido de 'larva e


árvore', em Nasc, 'larva de insetos dípteros'; por extensão 'bicheira'”. Segundo
Nascentes, a árvore a qual se referem é “habitada por uma multidão de brocas, o cupim
Coptotermes marabitaus” (1966, p. 715). Importante destacar que o litoral oriental
brasileiro foi povoado, antes da chegada dos portugueses, por índios da família Cariri,
do tronco linguístico Tupi-Guarani, o que consequentemente, contribuiu para a
formação do português falado na região. Prosseguindo em nossa análise, apresentamos
a Figura 6 com a arealidade de gongo (gongolô).

Figura 6: A realidade de Gongo


Fonte: Elaboração própria, por meio do programa SGVCLin (ROMANO et al, 2015).

A lexia gongo, juntamente com suas variantes bigongo e gongolô, foi registrada ao
oeste da região do subfalar nordestino, mais precisamente no norte do PI, em direção
ao centro-oeste e sul do MA, e nordeste de TO; também registrada no ponto 15 –
Marabá (PA), localizado na área de entorno.
Assim como as notas sobre a Carta L13a do ALiB evidenciam que um
informante de Porto Velho (RO) atribui nomenclaturas diferentes para os bichos da
goiaba e do coco, sendo este último denominado gongo, enquanto o da goiaba é
chamado minhoca, larva ou tapuru; informantes maranhenses também fazem diferença
entre os bichos. Para eles, apenas o encontrado no coco, chama-se gongo ou bigongo, em
contrapartida, o presente na goiaba não tem um nome específico, recebendo a
nomenclatura genérica de bicho:

Excerto 1
(INF 029/01, Imperatriz (MA))
INQ. – E aquele bichinho branco, enrugadinho, que dá na goiaba?
INF.– Eh... fala só bicho-da-goiaba, dêxa eu vê, ele...
INQ. – É como vocês chamam aqui.

- 210 -
Eixo 14
Linguagem e significação

INF.– Eh... o bicho-da-goiaba, só chama bicho-da-goiaba, num tem otro nome


pra ele, não.
INQ. – E o, e o enrugadinho que dá no coco?
INF.– Gongo.

Excerto 2
(INF 029/04, Imperatriz (MA))
INQ. – ... aquele bichinho branco, enrugadinho, que dá em goiaba, em coco?
INF.– Nois chama aqui bicho de goiaba mehmo.
INQ. - E o que dá em coco?
INF. – O que dá no coco é bigongo, já comi tanto. Morro de saudade...
INQ. – E como é o bigongo?
INF. – A gente frita. Mamãe trazia... mamãe quebrava coco, aí a gente fritava,
comia com arroz, tão gostoso... Crocante, ele fica crocantinho...
INQ. – E é um bichinho bem limpinho, né, (inint.)
INF. – Ah, é uma delícia, uma delícia! Eu comi muito!
INQ. – Ele é bem branquinho, né?
INF. – Bem alvinho... Aquilo ali, a gente fura ele é só o leitinho. Já comi muito!
INQ. – Ah, eu imagino...
INF. – E quando frita ele fica tão sequinho...
INQ. – Deve ser gostoso, o povo (=?experimenta) só do coco...
INF. – Ah, pense!

Excerto 3
(INF 032/03, Balsas (MA))
INF. – Eh..., nós usa, aqui, chamando bicho, mehmo, bicho de goiaba, é.
INQ. – E o que dá no coco? Aquele enrugadinho que dá no coco?
INF. – Aqui, nós usa, chamá aquelas caraquinha de goiaba, né?
INQ. – Uhn rũ. E o do coco? Do coco? O bichinho que dá no coco? Por
exemplo, no coco babaçu, às vezes, dá aquele bichinho.
INF. – Ah, o gongo. Aquele é o gongo.
INQ. – É o gongo?
INF. – É.

Excerto 4
(INF 033/03, Alto Parnaíba (MA))
INQ. – É... Como é esse gongo que o senhor fala?
INF.– É a mesma coisa da... bicho vareia. Tem de vários tipos né? Da goiaba
dá o que a gente chama de bicho mesmo.
INQ. – Da goiaba chama de bicho mesmo?
INF.– É, enrugadinho. Ou gongo, tanto faz. As características são...

- 211 -
Eixo 14
Linguagem e significação

INQ. – Tanto se ele... Mas eu digo o senhor chama de gongo pro que dá na
goiaba?
INF.– Bicho é o que dá na goiaba.
INQ. – Bicho? E o que senhor chamou de gongo?
INF.– O que dá no coco.
INQ. – Em que coco?
INF.– É o babaçu. Palmeira.
INQ. – Ah, então tem uma diferença?
INF.– Tem diferença.
INQ. – Eu chamo de bicho-da-goiaba? E gongo?
INF.– É. Que ele é mais longo. E o outro é corcundinha assim. O bichinho
bem feitinho.

Os excertos acima também informam que o bicho-do-coco é encontrado em


palmeiras de coco babaçu e é comumente comido frito na região, diferentemente do
bicho-da-goiaba; além disso, tem formato diferente, sendo aquele mais curvado e este
mais longo.
Por conta dessas diferenças, o projeto Altas Linguístico do Maranhão
(ALiMA), que é vinculado ao ALiB e utilizou seus questionários como base para a
realização de seus inquéritos, decidiu, em seu próprio questionário semântico-lexical,
fazer duas perguntas distintas para esses bichos.
Gongo está dicionarizada como uma variante para bicho-do-coco, sendo este a
“larva de besouro (Pachymerus nucleorum) da família dos bruquídeos, de ampla
distribuição brasileira, que se desenvolve no interior do fruto de várias palmáceas,
como o babaçu, o coqueiro, a carnaúba, entre outras; bicho-de-coco, gongo, morotó”
(HOUAISS, 2021, online). Nossos dados refletem essa acepção, uma vez que nossos
informantes têm como referente para gongo apenas o bicho-do-coco, e não o bicho-da-goiaba.
O Vocabulário Falares Africanos na Bahia (CASTRO, 2008) registra gongo e
gongolô como de origem banto, provenientes do quimbundo ou quicongo ngongolo. A
primeira variante, gongo, também pode ser proveniente do yorubá ìgòngò. Segundo a
autora, as duas formas são variantes de ingongo, que significa “centopeia”. É provável
que os falantes africanos tenham associado a forma do artrópode vermiforme com a
do bicho-da-fruta e, por isso, atribuído a mesma denominação.
É válido ressaltar que os estados onde concentram-se gongo e suas variantes,
isto é, PA (área de entorno), MA e PI, faziam parte da Companhia Geral de Comércio
do Grão-Pará e Maranhão, no início do século XVIII, período em que houve grande
importação de africanos escravizados, principalmente do grupo banto, trazidos para
trabalhar nas lavouras açucareiras.
Para melhor visualização da diatopia de morotó, elaboramos a carta representada
na Figura7.

- 212 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Figura 7: A realidade de Morotó (de goiaba)


Fonte: Elaboração própria, por meio do programa SGVCLin (ROMANO et al, 2015).

A lexia morotó, de provável origem indígena (HOUAIS, 2021, online;


NASCENTES), está dicionarizada como uma variante para bicho-do-coco. É menos
produtiva do que as demais variantes, sendo registrada apenas ao sul do subfalar
nordestino, nos pontos 37 (PI) e 66 (PE), sem se estender além dos limites da área, em
municípios da BA.
Morotó não é mencionada nas cartas do ALiB referentes ao bicho-da-goiaba,
pois não foi uma das variantes mais recorrentes registradas nas capitais brasileiras, no
entanto, nas notas da Carta L13, a lexia é citada, por um informante de Salvador (BA)
como uma das formas genéricas atribuídas ao referente, juntamente com bicho, minhoca,
turu, entre outras.

Considerações Finais

O estudo das variantes para denominar o bicho branco encontrado em goiabas


e cocos, distribuídas pelos pontos do subfalar nordestino e entorno, indicou que, assim
como mostram as cartas do ALiB acerca de dados das capitais estaduais, há maior
preferência pelo uso de formas genéricas como bicho, bicho-da-fruta, bicho-da-goiaba, bicho-
do-coco, bicho-da-mosca e por formas criadas por extensão de significado, como lagarta,
larva e broca, que também remetem a fases da metamorfose do bicho.
Por meio desta análise, confirmamos ainda a heterogeneidade lexical da área
do subfalar nordestino, a partir do registro de 16 formas diferentes para o mesmo item,
distribuídas de forma espaçada e irregular em toda a região investigada. Além disso,
comprovamos a riqueza genealógica do léxico brasileiro (MACHADO FILHO, 2017),

- 213 -
Eixo 14
Linguagem e significação

pois foram registradas lexias de origem latina, tupi e africana, refletindo a história do
nosso país.

Referências

AGUILERA, Vanderci de Andrade. "Reflexões sobre a variação lexical no campo da


fauna nos dados para o Atlas Linguístico do Brasil". In: CASANOVA, Emili;
CALVO, Cesáreo (Eds). Tome VI: Valencia 2010. Berlim, Boston: De Gruyter,
2013, p. 17-28.
BIDERMAN, Maria Teresa Camargo. Teoria Linguística (teoria lexical e linguística
computacional). 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1979.

CARDOSO, S. A. Geolinguística: tradição e modernidade. São Paulo: Parábola


Editorial, 2010.

CARDOSO, Suzana Alice. Atlas linguístico do Brasil. SciELO-EDUEL, 2014.

CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-


brasileiro. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, Topbooks, 2001.

COMITÊ NACIONAL DO PROJETO ALiB: Atlas Lingüístico do Brasil:


Questionários. Londrina: UEL, 2001.

GRANDE DICIONÁRIO HOUAISS ONLINE. Disponível em: <


https://houaiss.uol.com.br/>, Acesso em: 21 de setembro de 2021.

HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Sales. Dicionário Houaiss da língua


portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

ISQUERDO, Aparecida Negri. O caminho do rio, o caminho do homem, o caminho


das palavras. In: RIBEIRO, S.S.C.; COSTA, S.B.B.; CARDOSO, S.A.M. (orgs.) Dos
sons às palavras: nas trilhas da língua portuguesa. Salvador: EDUFBA, 2009, p.41-
59.

MACHADO FILHO, Américo Venâncio Lopes; NEIVA, Isamar. Ainda sobre" As


origens e estruturação histórica do léxico português": étimo e processos de formação
em dados do Atlas Linguístico do Brasil (ALIB). De volta ao futuro da lingua
portuguesa. Atas do V SIMELP-Simpósio Mundial de Estudos de Língua
Portuguesa, p. 87-104, 2017.

- 214 -
Eixo 14
Linguagem e significação

NASCENTES, Antenor. O linguajar carioca. 2.ed. Completamente refundida. Rio


de Janeiro. Organização Simões, 1953.

NASCENTES, Antenor. Dicionário Etimológico da Língua Portuguêsa. Rio de


Janeiro: 1955.

PORTILHO, Danyelle Almeida Saraiva. O falar amazônico: uma análise da


proposta de Nascentes (1953) a partir de dados do Projeto ALiB. 2013. 155p.
Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagens) – Universidade Federal do Mato
Grosso do Sul, Campo Grande.

RIBEIRO, Silvana Soares Costa. Brinquedos e brincadeiras infantis na área do


“Falar Baiano”. 2012. 752f. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Federal da
Bahia, Salvador.

ROMANO, Valter Pereira. Em busca de falares a partir de áreas lexicais no


centro-sul do Brasil. 2015. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) –
Universidade Estadual de Londrina, Londrina.

ROMANO, Valter Pereira; SEABRA, Rodrigo Duarte; OLIVEIRA, Natan


[SGVCLin] - Software para geração e visualização de cartas linguísticas. Revista de
Estudos da Linguagem, v. 22, n.1, p.119-151, 2015.

SANTOS, Leandro Almeida dos. Brincando pelos caminhos do Falar


Fluminense. 2016. 197f. Dissertação (Mestrado em Língua e Cultura) Universidade
Federal da Bahia, Salvador.

SANTOS, Graziele Ferreira da Silva. O léxico dos jogos e diversões infantis no


corpus do Projeto ALiB: visitando o Falar Nordestino. 2018. 207f. Dissertação
(Mestrado em Língua e Cultura) Universidade Federal da Bahia, Salvador.

TELES, Ana Regina Torres Ferreira. Cartografia e Georreferenciamento na


Geolinguística: revisão e atualização das regiões dialetais e da rede de pontos para a
elaboração do Atlas Linguístico do Brasil formuladas por Antenor Nascentes. 2018.
483f. Tese (Doutorado em Língua e Cultura). Universidade Federal da Bahia,
Salvador.

VILLALVA, Alina. Introdução ao estudo do léxico: descrição e análise do


Português. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

- 215 -
Eixo 14
Linguagem e significação

UM BREVE OLHAR SOBRE “A FLOR E A NÁUSEA” E


“ESCADA” DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Giovanna Freitas1

Resumo: O presente artigo realiza uma análise dos poemas “A flor e a náusea” (1945),
e a “Escada” (1954), do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, a fim de
observar as relações, como também às significações presentes nos poemas, uma vez
que o poeta utiliza as imagens como estratégia poética. O primeiro poema faz parte de
um momento sócio-histórico brasileiro em que o eu lírico expressa em seus versos as
suas reflexões sobre a sociedade por meio da significação da imagem flor, a qual
significa a pureza e a liberdade, e busca por meio desta romper e purificar o sujeito
social que sofre frente às transformações sociais, políticas e culturais. O segundo,
mostra ao leitor outro tema, o amor erótico, em que o poeta utiliza a imagem da escada
e suas significações para demonstrar a ascensão de um sentimento. Para este estudo,
utilizamos os teóricos Antonio Candido (2006) sobre os fatores sociais; Octavio Paz
(1982) para o conceito de significação; e acerca da imagem Alfredo Bosi (1977) entre
outros teóricos pertinentes a esta pesquisa.

Palavras-chave: Carlos Drummond de Andrade. Poesia brasileira. Significação.


Imagem.

Introdução

O poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade 2 nasceu em 31 de outubro


de 1902 na cidade em Itabira, de Minas Gerais. Foi cronista, contista e poeta brasileiro.
Drummond é um dos mais representativos poetas modernistas do século XX e
considerado um dos maiores nomes da poesia brasileira. Entre 1934 e 1987 viveu no
Rio de Janeiro produzindo poesia, crônica e contos. Em 1930 publicou seu livro de
estreia, Alguma poesia e nos cinquenta anos seguintes publicou obras como Sentimento do
mundo (1940), A rosa do povo (1945), Claro enigma (1951) e outras obras. Faleceu no Rio
de Janeiro em 1987.
Nos poemas presentes na obra A rosa do povo (1945), Drummond intensifica a
presença do engajamento social e político, como também faz uma reflexão sobre a
forma poética e sobre os aspectos da natureza da poesia, quanto à forma. Há a

1 Mestranda em Estudos Literários no Programa de Pós-Graduação de Letras da Universidade


Estadual de Londrina – UEL. E-mail: giovanna.rodrigues@uel.br
2 Disponível em: Carlos Drummond de Andrade. < https://www.carlosdrummond.com.br/

>. Acessado em: 14 jul. 2021.

- 216 -
Eixo 14
Linguagem e significação

alternância entre o verso livre e o metrificado na composição dos seus poemas. O livro
é um poderoso olhar, partindo da perspectiva do modernismo brasileiro, acerca das
transformações históricas, sociais e culturais da Segunda Guerra Mundial,
desenvolvendo em sua escrita uma divisão ideológica, uma perspectiva da vida nas
cidades, da morte e do amor.
John Gledson faz algumas considerações sobre a poesia de Drummond
contida no livro A rosa do povo (1945), o autor ressalta a concretude nos versos do poeta:
“A poética inteira de Drummond em A rosa do povo – nunca é demais ressaltar a
importância deste fato – baseia-se na sua confiança de que os poemas são formas vivas
que refletem as formas vivas do mundo objetivo: a rosa do povo, concretamente”.
(GLEDSON, 1981, p. 196).
Em 1954 publica a obra Fazendeiro do ar, três anos depois da publicação de Claro
enigma (1951), é composta por um conjunto de versos que ainda se desenvolvem na
perspectiva de observar o ciclo da vida e de questionar o sentido das coisas. A obra
possui um tom noturno no desenvolver dos poemas, mas em contrapartida deste tom
noturno, o Fazendeiro do ar (1954) permeia o erotismo e a vida no poema “Escada”.
Para este artigo, analisaremos o poema “A flor e a náusea” da obra A rosa do
povo (1945) e o poema “Escada” inserido na obra Fazendeiro do ar (1954). Para este
estudo, partimos de temas transversais recorrentes nas referidas obras de Drummond,
tais como a posição social do eu lírico frente às transformações sociais, o amor e o
erotismo.

Contexto social em “A flor e a náusea” de 1945

Ao tratar de unir a sociedade, poesia e o sujeito em uma mesma fala poética,


Drummond constrói em A rosa do povo (1945) uma vertente de sua poesia denotando
um lirismo social resultante do modernismo literário, da sociedade brasileira e das
transformações sociais e culturais presente nesta época.
Em diversos momentos da história a literatura brasileira sofre influências da
literatura europeia. Antônio Candido afirma em seu texto Literatura e Sociedade que “[...]
o fator social é invocado para explicar a estrutura da obra e o seu teor de idéias,
fornecendo elementos para determinar a sua validade e o seu efeito sobre nós.”
(CANDIDO, 2006, p.25).
Partindo deste pressuposto, a Segunda Guerra Mundial influenciou diversos
escritores a escreverem sobre uma literatura voltada para o momento sócio-histórico
vigente. A rosa do povo (1945), de Carlos Drummond de Andrade, é um exemplo deste
momento histórico em que o poeta utiliza as palavras para evocar a liberdade de um
povo. Sobre o poeta, Alfredo Bosi afirma: “O Drummond “poeta público” da Rosa
do Povo foi a fase intensa, mas breve, de uma esperança que nasceu sob a Resistência
do mundo livre à fúria nazifascista, mas que logo se retraiu com o advento da Guerra
Fria” (BOSI, 2015, p.293).

- 217 -
Eixo 14
Linguagem e significação

O poema “A flor e a náusea” estruturado com nove estrofes possui uma forte
crítica social permeada de um lirismo social latente. O eu lírico se envolve em uma
problemática social, mas ao mesmo tempo tem como característica uma hesitação na
sua capacidade de contribuir, denunciar e transformar o seu contexto social.

A FLOR E A NÁUSEA

Preso à minha classe e a algumas roupas,


vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:


Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.


Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.


Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?


Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.

- 218 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.


Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!


Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde


e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.


(DRUMMOND, 2000, p. 15).

Na primeira estrofe vemos um eu lírico melancólico que anda vestido de


branco pela rua cinzenta da cidade, preso em sua posição social dentro de um sistema,
que impõe ao sujeito a exercer seu papel continuamente, sendo este um aspecto da
estrutura da sociedade como um todo. Este sujeito deseja revoltar-se contra este
sistema opressor: “Devo seguir até o enjoo? /Posso, sem armas, revoltar-me?”.
Complementando esse senso de revolta temos na segunda estrofe, “Não, o tempo não
chegou de completa justiça.”.
O sujeito em crise faz reflexões críticas ao modernismo e ao capitalismo, ao
falar de pessoas como mercadorias, ao relacionar cifras de cédulas de dinheiro e
códigos de barras como na terceira estrofe, “Sob a pele das palavras há cifras e
códigos.”. Além deste verso, a crítica social ao capitalismo vem logo após este
momento, no verso “As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase” em
que demonstra injúria e melancolia contra os bens materialistas, as quais a sociedade
valorizava em excesso. No próximo verso, vemos uma revolta contra a passividade da
população frente aos problemas sociais, políticos e econômicos ao dizer que em
“Quarenta anos e nenhum problema /resolvido, sequer colocado”. O eu lírico
apresenta uma solidão frente a esta conclusão e ao afastamento entre as pessoas que
não mais se correspondem, apenas sabem das notícias ao lerem os jornais.

- 219 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Na sexta estrofe, o eu lírico relembra com dor a sua posição social na sociedade,
já que em sua juventude se declarou anarquista, “Ao menino de 1918 chamavam
anarquista”, porém agora se vê condicionado e submisso a esta sociedade como tantos
outros. O momento da esperança de um possível rompimento com esta imposição é
mostrado pelo autor na sétima estrofe e em seu primeiro verso “Uma flor nasceu na
rua!”, ao descrever a flor frágil e desprotegida que nasce em meio à rigidez do asfalto
demonstra que ainda há esperança, e por ser algo tão inusitado tem a capacidade de se
camuflar enganar o sistema, “Uma flor ainda desbotada/ilude a polícia, rompe o
asfalto.”.
A flor que mesmo feia rompe com o asfalto maciço e tem a coragem de nascer
em meio a uma cidade em constante desenvolvimento capitalista como um “rio de aço
do tráfego.” É desta figura de pureza que o autor usa a flor como um símbolo de
liberdade e esperança, mesmo pequena perturba a ordem social estabelecida,
desabrocha frente às transformações do seu tempo e simboliza, além da esperança, a
fé diante do desespero.

A imagem presente no poema “Escada”

De acordo com Octavio Paz, o poema é em suas palavras, versos e estrofes


“único, irredutível e irrepetível.” (PAZ, 1982, p.18). Ainda de acordo com ele, o poeta
em seu fazer poético desenvolve, adapta e utiliza o que é comum em seu contexto, o
estilo de seu tempo dando um sentido único e novo em suas obras, “O poema é feito
de palavras, seres equívocos que, se são cor e som, também são significado.” (PAZ,
1982, p. 23).
A imagem é um recurso de criação poética, é por meio do uso desta que o autor
cria, recria e faz referências a metáforas que permitem entender a sua intenção na
construção do poema. Alfredo Bosi afirma que “A imagem é um modo da presença
que tende a suprir o contacto direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a
sua existência em nós.” (BOSI, 1977, p.13). O poema “Escada” da obra Fazendeiro do
ar (1954) de Drummond possui uma importante imagem, a qual carrega o título do
poema, a “Escada”.

ESCADA
Na curva desta escada nos amamos,
nesta curva barroca nos perdemos.
O caprichoso esquema
unia formas vivas, entre ramas.

Lembras-te, carne? Um arrepio telepático


vibrou nos bens municipais, e dando volta
ao melhor de nós mesmos

- 220 -
Eixo 14
Linguagem e significação

deixou-nos sós, a esmo,


espetacularmente sós e desarmados,
que a nos amarmos tanto eis-nos morridos.

E mortos, e proscritos
de toda comunhão no século (esta espira
é testemunha, e conta), que restava
das línguas infinitas
que falávamos ou surdas se lambiam
no céu da boca sempre azul e oco?

Que restava de nós,


neste jardim ou nos arquivos, que restava
de nós, mas que restava, que restava?
Ai, nada mais restara,
que tudo mais, na alva,
se perdia, e contagiando o canto aos passarinhos
vinha até nós, podrido e trêmulo, anunciando
que amor fizera um novo testamento,
e suas prendas jaziam sem herdeiros
num pátio branco e áureo de laranjas.

Aqui se esgota o orvalho,


e de lembrar não há lembrança. Entrelaçados,
insistíamos em ser; mas nosso espectro,
submarino, à flor do tempo ia apontando,
e já noturnos, rotos, desossados,
nosso abraço doía
para além da matéria esparsa em números.

Asa que ofereceste o pouso raro


e dançarino e rotativo, cálculo,
rosa grimpante e fina
que à terra nos prendias e furtavas,
enquanto a reta insigne
da torre ia lavrando
no campo desfolhado outras quimeras:
sem ti não somos mais o que antes éramos.

E se este lugar de exílio hoje passeia


faminta imaginação atada aos corvos
de sua própria ceva,

- 221 -
Eixo 14
Linguagem e significação

escada, ó assunção,
ao céu alças em vão o alvo pescoço,
que outros peitos em ti se beijariam
sem sombra, e fugitivos,
mas nosso beijo e baba se incorporam
de há muito ao teu cimento, num lamento.
(DRUMMOND, 2012, p. 45).

A estrutura do poema nos remete a uma escada, pela maneira como o escritor
estruturou seus versos em uma espiral constante, com pontos finais apenas no final de
cada estrofe, utiliza a vírgula para uma sensação de continuidade. A escada como
imagem tem um significado ao longo da história, aparecendo em alguns momentos
significativos como um ligamento a algo a mais, a algo superior. Na Bíblia cristã, temos
a escada de Jacó3 que liga a terra ao céu, o mundo dos mortais com o mundo celestial.
Além disto, a imagem do objeto escada lembra uma travessia, mais
precisamente a barca de Caronte4, o qual na Mitologia Grega é o barqueiro de Hades.
Sua função é atravessar as águas do rio Estige e Aqueronte e levar as almas do mundo
dos vivos para o mundo dos mortos, denominado Hades. A escada também nos
remete a uma ponte ou a uma torre, lembrando também da torre de Babel5 construída
para alcançar o mundo dos deuses e chegar na porta do céu.
No referido poema vemos como tema central o amor. O poema inicia com o
seguinte verso, “Na curva desta escada nos amamos,” temos como referência a imagem
da escada, em que em suas curvas o amor desenrola-se. Já no segundo verso
percebemos que o sentimento faz com que o eu lírico reflita sobre esta relação, “nesta
curva barroca nos perdemos.” O erotismo presente na segunda estrofe se destaca no
primeiro e segundo verso “Lembras-te, carne? Um arrepio telepático /vibrou nos bens
municipais”, neste momento temos o indício que a escada da qual o autor se refere no
início do poema é de um imóvel municipal.
A saudade permeia os versos do poema como “das línguas infinitas /que
falávamos ou surdas se lambiam /no céu da boca sempre azul e oco?”. O eu lírico
sente falta da pessoa amada, e nesta falta questiona aquele amor, ou o que poderia
obter daquele relacionamento, “mas que restava, que restava?/Ai, nada mais restara,”.
O eu lírico nos encaminha para o fim do poema, como também para o fim desta união

3 Disponível em: Bíbliaon-Bíblia sagrada Online. < https://www.bibliaon.com/genesis_28/>


Acessado em: 03 jul.2021
4 Segundo a mitologia grega, Caronte, nome popular de Kháron, trata-se do barqueiro cuja

função era transportar as almas para além dos rios do Hades, pelo pagamento de um óbolo.
(BRANDÃO, 1986, p. 317).
5 Segundo o Antigo Testamento (Gênesis 11,1-9), a torre de Babel foi construída pelos

descendentes de Noé na Babilônia, a intenção da construção era de construí-la tão alta que
alcançasse o céu. A torre vista por Deus como soberba, provoca sua ira e castiga os mortais
ao confundir a linga de todos e por toda a terra. Disponível em: Bíbliaon-Bíblia sagrada Online.
<https://www.bibliaon.com/versiculo/genesis_11_1-9/ > Acessado em: 03 jul. 2021.

- 222 -
Eixo 14
Linguagem e significação

com o verso, “Aqui se esgota o orvalho, /e de lembrar não há lembrança.” Após este
momento de lamentação chegamos ao fim do poema, ou a base desta escada, a parte
que é presa ao chão, que nos remete ao que é sólido, ao real, “mas nosso beijo e baba
se incorporam /de há muito ao teu cimento, num lamento”.
O amor estruturado na imagem da escada ocorre também em O Banquete6 de
Platão em forma de metáfora chamada de “escada do amor”, a ascensão de seu amor
através da scala amoris. Neste banquete, a imagem da escada é usada por Diotima7,
sarcedotista da arte de amar. Ela utiliza a escada para ter a ascensão ao amor, uma vez
que irá buscar de maneira insaciável atender aos desejos de seu apaixonado e para isso
faz uso das “belezas” do mundo dos mortais.
Assim, podemos analisar o poema de Drummond por meio desta perspectiva
da scala amoris. A construção do poema se desenvolve de forma ascendente,
primeiramente, o poema descreve um relacionamento pautado pela atração física e
posteriormente, evolui para um sentimento. Há uma ascensão do sentimento do eu
lírico que passa a lamentar a ausência da sua amada.

Considerações Finais

O poema “A flor e a náusea” da obra A rosa do povo (1945) e o poema “Escada”


que integra a obra Fazendeiro do ar (1954) do poeta brasileiro, Carlos Drummond de
Andrade possuem temas diferentes.
A “A flor e a náusea” possui um lirismo social ao tratar de uma revolta do eu
lírico e o posicionamento do sujeito na sociedade, o poeta utiliza-se do eu lírico para
falar sobre uma coletividade, realizando assim, uma crítica ao mundo moderno e ao
seu sistema capitalista.
O poema “Escada” foge a este tema ao tratar de um amor erótico, os primeiros
versos ressaltam a experiência dos sentidos através do ato erótico realizado em uma
escada pública, porém ao utilizar a escada, o poeta infere ao leitor um sentido de
elevação e quanto mais próximos os amantes estão do céu, mais o sentimento se torna
puro.
O poeta utiliza as imagens como estratégia poética. Observamos no primeiro
poema a significação da flor, a qual significa a pureza e a liberdade, busca por meio
desta romper e purificar o sujeito que sofre frente às transformações sociais, políticas
e culturais. O nascimento da flor relembra o eu lírico de seu passado, ao mesmo tempo
em que lhe dá esperança, evoca e convoca para luta do tempo presente.
No segundo poema referido, Drummond usufrui da imagem da escada, o
objeto serve como elo, como uma travessia, uma ponte, uma ascensão ao amor, onde

6 PLATÃO. O Banquete. Disponível em:


<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000048.pdf> Acessado em: 04
jul.2021
7 . Diotima é citada como sacerdotisa no Banquete. (BRANDÃO, 1986, p. 187).

- 223 -
Eixo 14
Linguagem e significação

o céu coincide com o céu da boca da pessoa amada. O paraíso para o eu lírico é através
do prazer, mas este se esvai rapidamente ao decorrer da escada ou dos seus
sentimentos, esta passagem de tempo transforma este amor erótico para um
sentimento, porém esta relação não é duradoura e se finda em cimento.

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de, 1902-1987. Rosa do Povo / Carlos Drummond de


21ºed.- Rio de Janeiro: Record, 2000.

ANDRADE, Carlos Drummond de, 1902-1987. Fazendeiro do ar/ Carlos Drummond de


Andrade;posfácio Silviano Santiago. — 1ª ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega- vol I- Rio de janeiro: Vozes Ltda, 1986.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira / Alfredo Bosi. – 50. ed. – São
Paulo: Cultrix, 2015

BOSI, Alfredo. 1936- O ser e o tempo da poesia. São Paulo, Cultrix, Ed. da Universidade
de São Paulo, 1977.

CANDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. - 9ªed- Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul,
2006.

GENESIS. Disponivel em: Bíbliaon-Bíblia Sagrada Online. <


https://www.bibliaon.com/genesis_28/>. Acessado em: 03 jul.2021

GENESIS. Disponível em: Bíbliaon-Bíblia Sagrada Online.


<https://www.bibliaon.com/versiculo/genesis_11_1-9/>.Acessado em: 3 jul. 2021.

GLEDSON, John. Poesia e Poética de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo:


Livraria Duas Cidades, 1981.

PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: editora Nova Fronteira, 1982.

PLATÃO. O Banquete. Disponível em:


<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000048.pdf. >.Acessado em: 04
jul.2021

VIDA E OBRA. Carlos Drummond de Andrade. Disponível em: Carlos Drummond de


Andrade. <https://www.carlosdrummond.com.br/>. Acessado em: 14 jul. 2021.

- 224 -
Eixo 14
Linguagem e significação

VERBOS COPULATIVOS EM KAINGANG: UM ESTUDO NA


T.I. APUCARANINHA

Jéssica Brandet Alves1

Resumo: O verbo ser é considerado verbo de ligação, cópula, verbo estativo, pois tem
a função de ligar o sujeito e suas características, chamadas de predicativo do sujeito.
Nem todas as línguas, porém, apresentam um verbo para realizar essa função. A
variedade de realizações nas línguas conhecidas é bastante grande. Assim, esta pesquisa
tem como objetivo analisar como as orações construídas com o verbo ser em
português são realizadas em Kaingang, pois, como afirmado na pesquisa de
Domingues (2013), não há um elemento lexical específico para essa função no
Kaingang. A metodologia deste artigo consiste em uma pesquisa qualitativa.
Inicialmente, pretendíamos, após contar com os materiais teóricos já existentes em
relação ao tema, fazer uma pesquisa de campo. Porém, devido à pandemia da
COVID19, não foi possível realizar tal pesquisa de campo. Dessa maneira, foi
necessário recorrer a encontros virtuais, mensagens de texto e ao livro Brilhos na
Floresta em Kaingang, traduzido pela professora Kaingang Damaris Kanĩnsãnh
Felisbino, também colaboradora nesta pesquisa. Assim, com base nas pesquisas de
Domingues (2013) e Domingues e Silveira (2020), analisamos os dados coletados,
apresentando a maneira como o verbo ser se apresenta na língua Kaingang.

Palavras-chave: Língua Kaingang. Verbo Ser. Gramática pedagógica.

Introdução

O verbo possui um importante peso semântico, já que a oração se organiza em


torno dele. São classificados de diversas formas, como os transitivos, intransitivos e
copulativos, de ligação; podem ser vistos como categorias conceituais, como
concordância, valência, tempo, aspecto, modo, evidências/validacionais,
localização/direção, marcadores de atos de fala, negação,
subordinação/nominalização, switch-reference (PAYNE, 2006, p. 104), dependendo
do modelo teórico abordado.
Para uma abordagem do verbo ser, é necessário, inicialmente, nos atentarmos
para os verbos copulativos, também conhecidos como predicativos ou de ligação. De
acordo com Payne (1997, p. 117), os verbos copulativos tendem a ser muito irregulares,
possuindo mais padrões de conjugação quando comparados a verbos “normais”. Além
disso, ainda segundo Payne, os verbos copulativos derivam de verbos estativos ou,
ocasionalmente, de verbos simples de ação, como o verbo ir ou vir. Os verbos

1 Especialista em Língua Portuguesa e Mestranda em Estudos da Linguagem (UEL). E-mail:


jessica.brandet@uel.br.

- 225 -
Eixo 14
Linguagem e significação

copulativos são: ser, estar, continuar, permanecer, ficar, andar, parecer, tornar-se e
revelar-se. Esta pesquisa aborda o verbo ser.
Dessa maneira, o objetivo geral desta pesquisa consiste em estudar como as
orações que têm verbo ser em português são realizadas na Língua Kaingang, pois,
como afirmado na pesquisa de Domingues (2013), não há um elemento lexical
específico para essa função no Kaingang.
Outro objetivo da presente pesquisa é fornecer fundos teóricos para a
compreensão do verbo ser na língua Kaingang, os quais usaremos na elaboração da
referida gramática pedagógica.

1 Metodologia

Inicialmente, para esta pesquisa, desejava-se coletar dados de conversas com


os amigos, vizinhos e familiares, em momentos de realizações de eventos culturais,
fazendo gravações de diferentes tipos de textos, como narrativos, injuntivos,
explicativos, entre outros. Porém, devido à pandemia da COVID-19, não foi possível
realizar essa pesquisa de campo planejada. Dessa maneira, recorremos a encontros
virtuais e mensagens de texto, bem como anotações e gravações feitas por smartphones
que já são dados do projeto. Além disso, também foram colhidos exemplos do livro
Brilhos na Floresta (2020), cuja versão para o Kaingang foi feita por Damaris Kanĩnsãnh
Felisbino, integrante do projeto “Gramática, Bilinguismo e Multietinia” e colaboradora
nesta pesquisa, especialista em Língua Portuguesa, mestranda em Estudos da
Linguagem e professora de Português e Kaingang na Terra Indígena Apucaraninha,
onde nasceu, cresceu e mora.
No segundo momento, o material coletado foi reunido ao banco de dados do
projeto de pesquisa “Gramática Bilinguismo e Multietnia” (GraBiM), contando com
materiais de escrita e audiovisuais, transcrições, conversões para a linguagem formal e
traduções feitas por Felisbino.
Com as glosas feitas, bem como a conversão para a linguagem tida como
formal e a tradução, iniciou-se a investigação acerca do verbo ser na língua
Kaingang, observando os elementos lexicais responsáveis por exercer a função
copulativa nas sentenças. Como referência para a tradução, foi utilizado o Dicionário
Kaingang-Português (WIESEMANN, 2011) e o breve apêndice que o acompanha,
assim como as considerações de Felisbino.
2 Verbos estativos descritivos
Na língua Kaingang, não há um item lexical específico que exerça a função dos
verbos copulativos. Assim, as noções de estado/qualidade do sujeito são exercidas por
verbos com semântica de adjetivo, sendo esses tipos de orações descritas como
sentenças atributivas (PAYNE, 1997).
Os verbos descritivos são responsáveis por dar a noção de sentido permanente
ou temporário de um estado. No caso da língua Kaingang, segundo Domingues e

- 226 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Silveira (2020), essa marcação é exercida por meio de itens lexicais que desempenham
a função de aspecto.
Nos exemplos dados pelos autores, é possível analisar as seguintes sentenças
elicitadas, a primeira não tendo o copulativo em Kaingang, mas tendo a mesma
correspondência temporária que a oração em Português, e a segunda apresentando em
Kaingang um verbo estativo gramaticalizado atribuindo aspecto temporário ao
adjetivo em posição de verbo:

1) Gĩrvỹ og sór mũ
menino MS tomar líquido querer ASP (sentido temporário)
‘O menino está com sede.’ (lit. ‘O menino quer tomar líquido’)

2) ka vỹ téjgy jẽ
árvore MS alta ASP (sentido temporário)
‘A árvore é alta.’

Segundo os autores, o morfema mũ fica responsável por descrever um estado


temporário do sujeito, visto que na função de verbo esse morfema tem sentido de ir,
andar em sua forma plural (cujo singular é tĩg); podemos notar, tanto pela oração
elicitada (O menino está com sede) quanto pela tradução da oração em Kaingang (o menino
quer tomar líquido), o fator temporário, que é gerado pelo marcador de aspecto durativo
mũ em conjunto com o modalizador sór em correspondência com o verbo estar no
Português.
O morfema jẽ, por sua vez, descreve o sentido permanente, duradouro do
estado do sujeito. A semântica verbal, com sentido de estar em pé, parece permanecer
quando o morfema está em posição própria de marcador de aspecto, imprimindo no
verbo e, por consequência, à situação de comunicação sua semântica.
De acordo com Payne (1997), construções de sentenças tipicamente
existenciais necessitam de um locativo ou adjunto temporal. Assim, os verbos
posicionais ou locativos podem ser empregados no sentido de existência. Segundo
Domingues e Silveira (2020), essa é uma possibilidade aparente na língua Kaingang.
Domingues (2013) novamente nos auxilia com alguns exemplos de sua
dissertação de mestrado. Ela nos fornece dois exemplos com o morfema jẽ com
sentido de permanência (3) e (4) e dois exemplos com os morfemas mũ e nĩ com sentido
de temporário (5) e (6):
3) mĩg vỹ jũ jẽ
onça MS brava ASP
‘A onça é brava.’
4) gĩr vỹ kaga jẽ
criança MS doente ASP
‘O menino é doente.’

- 227 -
Eixo 14
Linguagem e significação

5) Pedro vỹ jũ nĩ
Pedro MS bravo ASP
‘Pedro está bravo.’
6) gĩr vỹ kaga mũ
criança MS doente ASP
‘O menino está doente.’
Dessa maneira, pode-se afirmar que, segundo os autores, o morfema jẽ marca
um estado permanente, enquanto os morfemas mũ e nĩ marcam um estado temporário
ou momentâneo.
Sendo assim, poderia se pensar nas partículas mũ e nĩ como o verbo estar e a
partícula jẽ como verbo ser. Porém, a autora e seu orientador levantaram um
questionamento a partir do seguinte exemplo:
7) kukrũ vỹ kusa nĩ
panela MS fria ASP
‘A panela é fria.’
Uma panela é fria naturalmente. Para que ela esteja quente, é necessária a
circunstância de estar no fogo. Apesar disso, pode-se notar que o marcador usado é o
nĩ, que expressa estado temporário em (7). Assim, um verbo estativo/descritivo de
sentido temporário estava sendo usado como sentido permanente, ao menos do ponto
de vista do não Kaingang.
A partir do questionamento desse questionamento, respondido por um
colaborador, foi possível concluir que o formato do objeto interfere na marcação de
aspecto, pois, como já dito, a cosmologia Kaingang é formada por metades que se
completam: os Kamẽ, com traços compridos; os Kanhru, com traços redondos.
Assim, a panela, objeto de formato redondo, recebe a marcação de aspecto nĩ.
Com isso, pode-se afirmar, segundo Domingues (2013), que a partícula jẽ expressa
estado permanente e as partículas nĩ e mũ, estado temporário. Contudo, nas orações
em que se tem um sujeito de traço semântico arredondado, a partícula nĩ é utilizada
para estado permanente.
Com isso, pode-se ressaltar a importância do que é considerado extralinguístico
(a questão da cosmologia) na questão sintático-semântica, aquele influenciando este,
como já aventado em Guerra, Silveira e Felisbino (2020).
Diante do referencial teórico apresentado acerca dos verbos
estativos/descritivos na língua Kaingang, foram selecionadas algumas frases simples
com o verbo ser para que se pudesse analisar como elas se dão no Kaingang. Com o
auxílio da colaboradora Kaingang, chegou-se a alguns exemplos.
Como primeiro exemplo, temos a seguinte oração:
8) Jéssica fi vy͂ tỹ professora je͂
Jéssica MF MS EXIST professora ASP (em pé)
‘Jéssica é professora’
Na oração 10, é possível observar o marcador de aspecto je͂ desempenhando a
função de verbo estativo/descritivo de sentido temporário, pois, segundo a

- 228 -
Eixo 14
Linguagem e significação

participante Kaingang, o sujeito Jéssica pode deixar de ser professora. Outro fator foi
também foi responsável pelo uso desse marcador, pois o sujeito da oração, nas palavras
dela, passa a impressão de estar em pé, provavelmente pela imagem que se tem do
professor, em pé, ministrando aula.
A oração seguinte (11) foi:
9) Toto vy͂ son ky͂ ni͂gti͂.
Borboleta MS pintura POSP. formadora de verbo ASP (estar sentado)
‘A borboleta é colorida’

A frase possuí sentido de permanente, assim, o indicador de aspecto utilizado


é o ni͂. De acordo com a colaboradora, isso ocorre porque a borboleta é classificada
como Kanhru, ou seja, traços redondos, conforme vimos na oração (7). Assim, a
partícula ni͂ compõe-se com tĩ, formando nĩgtĩ; o marcador de aspecto tĩ indica
habitualidade e é utilizado, neste exemplo, para somar ao estado permanente indicado
por nĩ, mostrando mais uma vez a importância de aspectos culturais na língua
Kaingang.
Nas orações 12 e 13, o marcador de aspecto muda:
10) Ã gãnh vy͂ téj ja sa
2SG.POSS cabelo MS comprido MODO (terminado) ASP (pendurado)
‘Seu cabelo era longo’

11) Sala kãtá quadro vy͂ kupri sa


Sala dentro quadro MS branco ASP
‘O quadro da sala de aula é branco’
No caso dessas duas orações, não há marcação de aspecto permanente ou
temporário, e sim do aspecto sa, que indica pendurado. Isso porque o cabelo longo
fica pendurado na cabeça, escorregando pelas costas, enquanto o quadro dentro da
sala fica pendurado na parede.
Na sequência, foram analisadas as seguintes orações:
12) My͂ sér me͂ ag ny͂ti͂g ti͂. Alegre muito 3MPL
ASP HABIT
‘Eles são muito divertidos’
13) Ty͂ e͂ g ve͂ nh vi͂ u͂ to ve͂ nhránrán ti͂ ny͂ti͂.
IND. EXIST 1PL. língua outra sobre escrever HABIT
ASP ‘Nós somos estudantes da língua’
Nos dois casos, o marcador de aspecto utilizado é o ny͂ti͂. Segundo nossa
colaboradora, isso ocorre, pois ele se encontra no plural, para concordar com o sujeito
(ag, no primeiro caso; ẽg, no segundo), ou seja, quando o marcador de aspecto está no
singular, a forma utilizada é o ni͂. Porém, quando está no plural, a forma é ny͂ti͂.
Também foi analisada a oração:

- 229 -
Eixo 14
Linguagem e significação

14) Ka vỹ téjgy jẽ
árvore MS alta ASP (sentido duradouro/permanente)
‘A árvore é alta.’

Nela encontramos o marcador de aspecto jẽ, que dá à oração o sentido de


estado temporário. Além disso, assim como no primeiro exemplo, passa a impressão
da árvore “estar em pé”. O marcador em questão também é utilizado para sinalizar que
a árvore é alta, de acordo com a colaboradora Kaingang.
Outra oração analisada foi a seguinte, já mencionada anteriormente:

15) Gĩr vỹ og sór mũ


menino MS tomar líquido querer ASP
‘O menino está com sede.’ (lit. ‘O menino quer tomar líquido’)
Nesta oração é possível observar o uso do marcador de aspecto mũ, que
apresenta o sentido de temporário. Segundo Wiesemann (2011), este marcador indica
que alguém está fazendo algo. Também pode indicar, dependendo do contexto, o
verbo ir ou andar no plural. O exemplo dado pela autora consiste na oração:

16) Mũ ag mũ
Ir eles ASP
‘Eles estão indo’

No exemplo acima, percebemos a dupla ocorrência do morfema mũ: em


primeiro lugar aparece o verb mũ (no plural) cuja tradução é ir, andar; a segunda
ocorrência, no final da oração, trata-se do marcador de aspecto durativo, que
corresponde ao gerúndio do verbo em português.
Quando o marcador de aspecto mũ é unido ao marcador de aspecto ni͂, temos
uma oração com o sentido de estar fazendo algo sentado. É o que ocorre no exemplo
abaixo:

17) Rãnhraj ẽg mũ ni͂


trabalhar 1PL ASP ASP
‘Estamos trabalhando’

Outra oração analisada, retirada do livro Brilhos na Floresta em Kaingang (2020),


foi:

18) Aruisio vỹ ty͂ nẽn kãtá ke jẽ.


Aluísio MS EXIST mata virgem dentro.de ASP
‘Sr. Aluísio é um homem da floresta.’

- 230 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Neste exemplo, temos a utilização do marcador de aspecto jẽ, pois Aluísio é


permanentemente um homem da floresta. Dessa maneira, pode-se afirmar que o
morfema jẽ marca um estado permanente quando as orações contêm substantivos
predicativos. É o mesmo que acontece em (21):
19) Ūn gré tag vỹ tỹ ijóg jē
homem-este MS MS meu.pai ASP
‘Esse homem é meu pai.’
Em outras orações analisadas (20 a 27), encontramos o marcador de aspecto jẽ
sendo usado com o sentido de permanente na língua portuguesa.
As orações 20 e 21 estão no singular e são apresentadas com os sujeitos 1S e
3 S:
20) Tỹ inh kasike jẽ.
EXIST 1SG cacique ASP
‘Eu sou cacique’
21) Tỹ ti kasike jẽ.
EXIST 3MSG cacique ASP
‘Ele é cacique.’
Na mensagem dos exemplos 20 e 21, o enunciador apresenta o aspecto
imperfectivo realis, apontando para a existência da atribuição do sujeito no momento
em que enuncia, ou seja, o momento da fala é concomitante ao momento de referência.
Trata-se de uma atribuição tida como permanente no português do Brasil, porém é
temporária na língua Kaingang, visto que o cacicado não é um cargo vitalício.
Em 22 e 23, temos o que na GT chamamos de tempo pretérito imperfeito do
modo indicativo:
22) Tỹ inh kasike jẽ e vẽ.
EXIST 1SG cacique ASP MODO ASP
‘Eu era cacique’
23) Tỹ ti kasike jẽ e vẽ.
EXIST 3MSG cacique ASP MODO ASP
‘Ele era cacique.’
Em 22 e 23, vemos e vẽ (um intensificador e um indicador de aspecto)
atribuindo valor de perfectivo realis ao estado permanente de ser cacique, ou seja,
indicando que a pessoa teve durante um período a incumbência de ser cacique, o que
nos leva a pensar numa permanência, porém que também pode ser vista como uma
temporalidade: o enunciador esteve no cargo de cacique por um tempo. O aspecto
perfectivo fica esclarecido, visto que, no momento da enunciação, o enunciador já não
tinha mais essa incumbência; o momento da fala é posterior ao momento de referência.
A pequena diferença sintática entre 24 e 25, em comparação com 22 e 23, é a
ausência do indicador de modo e, que é um intensificador.
24) Tỹ inh kasike jẽ vẽ.
EXIST 1SG cacique ASP ASP
‘Eu era cacique (mas…)’

- 231 -
Eixo 14
Linguagem e significação

25) Tỹ ti kasike jẽ vẽ.


EXIST 3MSG cacique ASP ASP
‘Ele era cacique (mas…).’
As orações 24 e 25, então, passam a ter tom irônico, pois o aspecto perfectivo
realis do evento é irrealis, ou seja, o enunciador fala que era para ele ser cacique, mas
pelo jeito não é mais considerado como tal, visto que há quem esteja passando por
cima das ordens dele.
As orações seguintes (26 e 27) se apresentam no futuro do presente do modo
indicativo, terminologia vista pela GT.
26) Tỹ inh kasike jẽnh ke mũ.
EXIST 1SG cacique ASP.FUT FUT ASP
‘Eu serei cacique’
27) Tỹ ti kasike jẽnh ke mũ.
EXIST 3MSG cacique ASP.FUT FUT ASP
‘Ele será cacique.’
Em 26 e 27, jẽnh ke mũ é usado para marcar o futuro; trata-se, então, de aspecto
imperfectivo irrealis. Esses três morfemas têm traços semânticos que apontam para: (a)
o aspecto temporário que o cargo de cacique exige, expresso em Português pelo verbo
ser e em Kaingang por jẽ cuja flexão -nh2 indica futuro; (b) a indicação de futuro
expressa por ke, que entendemos ser verbo auxiliar de futuro; (c) a indicação tanto do
aspecto continuativo do verbo andar (“serei cacique durante um tempo”) quanto parte
da construção do tempo futuro do ir (“vou ser cacique”), ambos significados expressos
por mũ (andar, ir).
No caso dos exemplos 28 a 33, temos o uso de nỹtĩ para marcar o aspecto
plural no lugar do jẽ das orações no singular. Isso ocorre porque o jẽ é utilizado quando
se fala apenas de uma pessoa, enquanto o nỹtĩ é usado para mais pessoas. Quando se
trata de pessoas, ao menos, uma pessoa pode ser considerada kanhru e mais de uma
pessoa pode ser considerada kamẽ. Assim, nỹtĩ identifica a cópula plural, que é
relacionada aos kamẽ, enquanto jẽ identifica a cópula singular, relacionada aos kanhru
(orações 24-27).
Apresentamos, então, as orações 28 a 31, que estão no tempo presente, todas
finalizando com o aspecto nỹtĩ.
28) Tỹ ãjag kasike nỹtĩ.
EXIST 2PL cacique ASP
‘Vocês são caciques.’
29) Tỹ ag kasike nỹtĩ.
EXIST 3MPL cacique ASP
‘Eles são caciques.’

2 Nem todos os verbos em Kaingang recebem alguma forma de flexão indicativa de futuro,
tempo que é geralmente indicado pelo morfema ke, classificado como verbo intransitivo por
Wiesemann (2011, s.v. ke).

- 232 -
Eixo 14
Linguagem e significação

30) Brasil kãki ẽg nỹtĩ


Brasil dentro.de 1PL ASP
‘Nós estamos no Brasil’
31) Brasil kãki ẽg nỹtĩgtĩ
Brasil dentro.de 1PL ASP
‘Nós estamos no Brasil (para sempre)’
Notamos que em 28 e 29, a expressão da língua portuguesa se dá com o uso
do verbo ser, cujo correspondente em Kaingang é o aspecto nỹtĩ; em 30, porém, a
expressão do Português se dá com o verbo estar, cujo correspondente em Kaingang é
também o aspecto nỹtĩ. Já em 31, o aspecto de permanência (do verbo ser em
Português), está presente, trazido pelo morfema tĩ, ao final desse composto, que
contempla, então duas vezes o tĩ; a tradução da oração poderia muito bem ficar Nós
somos no Brasil, para contrastar com o estamos. Assim, concluímos que o raciocínio de
que o cacicado é temporário está mais claro no Kaingang do que no Português, para
efeitos contrastivos. Então, apresentamos as orações 32 e 33 para confirmar a
concordância de gênero kamẽ/kanhru.
32) Brasil kãkã inh jẽ.
Brasil dentro.de 1SG ASP
‘Eu estou no Brasil’
33) Brasil kãkã inh jẽgtĩ.
Brasil dentro.de 1SG ASP
‘Eu estou no Brasil (para sempre)’
As orações 34 e 35 tem aspecto perfectivo realis, marcado, no plural, pelo uso
do modalizador ja, que tem sentido terminativo, de algo que já aconteceu.
34) Tỹ ãjag kasike ja nỹtĩ.
EXIST 2PL cacique MODO ASP
‘Vocês eram caciques.’
35) Tỹ ag kasike ja nỹtĩ.
EXIST 3MPL cacique MODO ASP
‘Eles eram caciques.’
As orações 36 e 37 têm aspecto imperfectivo irrealis e têm estrutura semelhante
à forma singular (que apresentam jẽnh ke mũ, conforme análise das orações 26 e 27),
porém, por ser plural, os elementos que indicam futuro e aspecto durativo são nỹtĩnh
ke mũ.
36) Tỹ ãjag kasike nỹtĩnh ke mũ.
EXIST 2PL cacique ASP.FUT FUT ASP
‘Vocês serão caciques.’
37) Tỹ ag kasike nỹtĩnh ke mũ.
EXIST 3MPL cacique ASP.FUT FUT ASP
‘Eles serão caciques.’
Também foram feitas análises de orações no pretérito perfeito do indicativo
(perfectivo realis). Elas apresentam o modalizador ja (com sentido de algo terminado,

- 233 -
Eixo 14
Linguagem e significação

próprio do perfectivo) e os aspectos jẽ e nỹtĩ, que funcionam como copulativos nas


orações 38 a 42, respectivamente de singular/kanhru e plural/kamẽ:
38) Prũg ja ã jẽ.
Casar com mulher MODO 2SG ASP
‘Você foi casado.’ (lit. você se casou [com uma mulher])
39) Mén ja fi jẽ.
Casar com homem MODO 3FSG ASP
‘Ela foi casada.’ (lit. ela se casou [com um homem])
40) Kyprũg ja ẽg nỹtĩ.
Casar com mulher MODO 1PL ASP
‘Nós fomos casados.’ (lit. nós nos casamos [com mulheres])
41) Kymén ja fag nỹtĩ.
Casar com homem MODO 3FPL ASP
‘Elas foram casadas.’ (lit. elas se casaram [com homens])
Nos quatro exemplos anteriores, é possível observar novamente o marcador
de aspecto jẽ sendo utilizado quando a oração se refere a apenas uma pessoa e o nỹtĩ
quando se refere a mais de uma pessoa. Outra questão aqui é a não existência de uma
tradução literal do copulativo, visto que, em Kaingang, o verbo casar-se com é usado,
tanto em suas variações de gênero quanto de número: prũg (FSG); mén (MSG) x ku- (PL).
No modo imperativo, foram analisadas orações em que o predicativo fosse um
adjetivo e em que fosse um substantivo. As frases com predicativo adjetivo, com o
verbo copulativo, foram:
42) Ki rĩr há han!
Cuidar bem fazer
‘Seja cuidadoso!’ (lit. ‘cuide-se bem!’)
43) Vẽjo ẽvãnh nĩ!
frente olhar IMP
‘Seja cuidadoso!’ (lit. ‘Olhe em frente!’)
44) Ki rĩnrĩr há han mãn nĩ!
Cuidar.PL bem fazer de.novo IMP
‘Sejam mais cuidadosos!’ (lit. ‘Cuidem-se bem de novo!’)
45) Ki rĩnrĩr há han jé!
Cuidar.PL bem fazer IMP
‘Sejamos cuidadosos!’ (lit. ‘Cuidemo-nos bem!’)
Assim como acontece em Português, orações imperativas não apresentam
sujeito. O que vai diferenciar o singular do plural, no caso das segundas pessoas, então
será o número verbal. O uso do aspecto nĩ de acordo com a colaboradora, ocorre
porque o enunciador da oração não está incluso no enunciado (o enunciador é agente,
mas não é afetado pela ordem) e ele (nĩ) pode estar presente tanto no singular quanto
no plural (43-44). A diferença entre o não uso e o uso de nĩ pode expressar não polidez
(42) e polidez (43). Em 45, a presença do jé inclui o enunciador em seu próprio
enunciado, ou seja, ele é agente e afetado pela sua própria ordem.

- 234 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Considerações finais

Pode-se concluir que a representação das orações com verbo ser é realizada por
meio de itens lexicais que desempenham a função de marcadores de aspecto, sendo
eles mũ, nĩ e jẽ. Inicialmente, tentou-se, em comparação com a língua Portuguesa,
indicar quais desses marcadores exerceriam a função de estado permanente e estado
temporário com mais regularidade, como ocorre com os verbos ser e estar. Após as
investigações, concluiu-se que os marcadores de aspecto citados não exercem apenas
sentido permanente ou temporário. O contexto de uso é o que irá determinar isso. Isso
se assemelha ao que ocorre na língua Inglesa com o verbo to be, que ora significa ser,
ora significa estar.
De acordo com Schmitt (1992, 2005), o verbo ser possui uma leitura aberta,
sendo potencialmente, mas não exclusivamente permanente. Assim, diferentemente
do verbo estar – que possui uma leitura transitória – o verbo ser pode adquirir outros
significados de acordo com o contexto. Dessa maneira, pode assumir contextos
estativos. Isso ocorre, por exemplo, em 20 e 21. Trata-se de uma atribuição tida como
permanente no português do Brasil, porém é temporária, pois ser cacique não é um
cargo vitalício.
Além disso, o marcador nĩ também é utilizado quando se quer passar a ideia de
estar sentado e quando faz referência a algo pertencente ao grupo Kanhru (redondo),
como no caso do exemplo “a borboleta é colorida” e “a panela é fria”. Já o marcador
jẽ é utilizado quando se tem a ideia de o referente estar em pé e quando o sujeito
pertence ao grupo Kamẽ (comprido). Quando o referente se encontra no plural, o
marcador utilizado é o ny͂ ti͂. Quando o referente se encontra pendurado (como nos
exemplos “seu cabelo era longo” e “o quadro da sala de aula é branco”), o marcador
de aspecto utilizado é o sa. Além disso, o marcador de aspecto vẽ, quando unido ao jẽ,
é utilizado com sentido de algo no passado.
Dessa maneira, pode-se concluir a importância de aspectos culturais e sociais
na estrutura da língua Kaingang. Isso se dá porque sua lenda de origem determina a
divisão social do povo e interfere na gramática da língua também, como é o caso da
utilização de marcadores diferentes de acordo com o grupo a que o referente pertence
(Kamẽ ou Kanhru).
Espera-se que esta pesquisa sirva, também, para que outros pesquisadores se
interessem pelos estudos da língua Kaingang e de seu povo, para que seja possível
auxiliar na descrição, preservação e revitalização da língua Kaingang.

- 235 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Referências

DOMINGUES, Gislaine. Descrição morfossintática do nome e do verbo no


Kaingang. 2013. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) – Universidade
Estadual de Londrina, Londrina, 2013.

DOMINGUES, Gislaine; SILVEIRA, Marcelo. Os verbos estativos/descritivos no


Kaingang: considerações morfossintáticas e semânticas observadas em sentenças que
denotam estado temporário e permanente na língua. In: SILVEIRA, Marcelo;
GUERRA, Maria José; SANTOS, Ludoviko C. dos (org.). Macro-jê: língua, cultura
e reflexões. Londrina: Eduel, 2020. 1 livro digital.

GUERRA, Maria José; SILVEIRA, Marcelo; FELISBINO, Damaris Kanĩnsãnh.


Reflexões sobre modelos teóricos e descrição das línguas Macro-Jê – aspectos
epistemológicos e gramaticais. In: SILVEIRA, Marcelo; GUERRA, Maria José;
SANTOS, Ludoviko C. dos (org.). Macro-jê: língua, cultura e reflexões. Londrina:
Eduel, 2020. 1 livro digital.

PAYNE, Thomas E. Describing morphosyntax: A guide for field linguists.


Cambridge: Cambridge University Press, 1997.

PAYNE, Thomas E. Exploring Language Structure – A Student’s Guide.


Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

WIESEMANN, Ursula. Kaingang–Português Dicionário Bilingüe. Curitiba:


Evangélica Esperança, 2011

- 236 -
Eixo 14
Linguagem e significação

O GIGANTE NA CAPA: O ENQUADRAMENTO DA NOTÍCIA


SOBRE AS JORNADAS DE JUNHO, NA REVISTA SEMANAL
“VEJA” (2013)

Larissa Morais Vanzela1

Resumo: Este trabalho foi desenvolvido a partir dos estudos propiciados pela linha
de pesquisa Territórios do Político, do Programa de Pós-graduação em História Social,
da Universidade Estadual de Londrina - UEL. Objetiva analisar de que forma as
manifestações nacionais, ocorridas no mês de junho de 2013, foram noticiadas pela
imprensa brasileira, quais atores se sobressaíram e que instrumentos discursivos foram
usados para este fim. Deste modo, foi priorizada a cobertura realizada pela revista
semanal “Veja”. O estudo foi desenvolvido a partir da análise da literatura
especializada, com destaque para a obra de Michel Foucault, no que o autor definiu
como formas de controle social dos discursos. Já no que diz respeito à metodologia,
utilizou-se a análise de conteúdo temática, assim como pressupõe Laurence Bardin. A
partir do estudo foi possível entender que, ao optar por noticiar as manifestações em
seus termos, a revista “Veja”, colaborou para colocar na cena pública, grupos com
ideais autoritários, que não compartilhavam a mesma visão política da empresa e que
poderiam vir a prejudicar, em muito, a atuação da imprensa livre brasileira.

Palavras-chave: Imprensa, Jornadas de Junho, Veja, Análise de discurso.

Introdução

No presente artigo pretende-se realizar uma discussão a respeito da série de


manifestações populares que ocorreram no ano de 2013, nomeadas posteriormente
como Jornadas de Junho. Devido a extensão do evento, marcado por atos espalhados
por diversos estados brasileiros, esta análise está direcionada principalmente aos
encontros que ocorreram na cidade de São Paulo.
Neste contexto, os primeiros atos foram convocados no dia 06 de junho, por
um coletivo de jovens chamado “Movimento Passe Livre (MPL)” 2, mobilizados em
virtude da revogação da tarifa do transporte público, de ônibus e metrô. No entanto,
conforme essas manifestações ganhavam visibilidade pública, as reivindicações

1 Mestranda em História Social pela Universidade Estadual de Londrina –UEL, servidora


pública no Instituto Federal do Paraná – IFPR (Campus Ivaiporã). E-mail:
larissamvanzela@gmail.com
2 De acordo com as informações da página oficial do grupo, na web “O Movimento Passe

Livre (MPL) é um movimento social autônomo, apartidário, horizontal e independente, que


luta por um transporte público de verdade, gratuito para o conjunto da população e fora da
iniciativa privada”. (Por uma vida sem catracas, São Paulo. Disponível em:
https://www.mpl.org.br/ Acesso em: 25 jun. 2021)

- 237 -
Eixo 14
Linguagem e significação

também se transformaram, em parte, devido a adesão de novos atores como o “Vem


Pra Rua”, “Movimento Brasil Livre (MBL)” e o “Nas Ruas”3, grupos voltados a temas
relacionados ao combate da corrupção e um progressivo delineamento do antipetismo.
Nesse sentido, o objeto de investigação deste trabalho é analisar de que maneira
as Jornadas de Junho foram abordadas pela imprensa brasileira. Enquanto mediadora
da informação pública, a imprensa pode agir no sentido de restringir e interditar os
discursos que não estejam no horizonte de seu interesse informativo e
consequentemente, influir na percepção que seus leitores fazem a respeito dos eventos
cotidianos (FOUCAULT, 2014). Desta forma, é imprescindível analisar quais atores
se sobressaíram nestas narrativas e que instrumentos discursivos foram utilizados para
este fim.
Para isto, foi priorizada a cobertura jornalística realizada pela revista “Veja”.
Criada no ano de 1968, por Roberto Civita (1936-2013) e administrada pelo Grupo
Abril, a revista “Veja” é um periódico de informação geral, com fluxo semanal e agenda
liberal. Não obstante isto, possui um dos maiores índices de tiragens no país, se
comparado a outras revistas do mesmo gênero (MIRA, 1997).
No que diz respeito ao referencial teórico-metodológico, adota-se as categorias
analíticas elaboradas por Michel Foucault (2014), no que o autor definiu como formas
de controle social dos discursos. Já como metodologia, utilizou-se as contribuições de
Laurence Bardin (2011), no desenvolvimento da análise de conteúdo temática, que
deram origem aos Quadros 1 e 2, que poderão ser visualizados mais adiante no texto.
Diante do exposto, o leitor encontrará este trabalho estruturado da seguinte
maneira. Na primeira seção, foi realizado uma revisão das produções bibliográficas
sobre o tema das Jornadas de Junho, tomado de empréstimo algumas contribuições
do campo das Ciências Sociais, de forma a compreender as tessituras do acontecimento
na história brasileira. Na segunda seção, foram analisadas quatro edições da revista
“Veja”, publicadas durante o mês de junho, período marcado por uma grande disputa
no âmbito público para definir um significado sobre essas manifestações. Ao final da
discussão, são apresentadas ponderações sobre os desdobramentos das Jornadas de
Junho e ação da imprensa de revista.

Um gigante que desperta: caminhos para uma análise das Jornadas de Junho

“Se a tarifa não baixar a cidade vai parar”, é o recado que consta em um dos
cartazes de manifestantes que foram às ruas em 2013, e pediam a revogação do
aumento da tarifa de ônibus e metrô – uma taxa de aumento de 0,20 centavos –

3O “Movimento Brasil Livre” foi fundado em 2014, por um grupo de jovens, dentre eles Kim
Kataguiri, atualmente eleito Deputado Federal, pelo partido DEM-SP. A organização “Vem
Pra Rua” é uma iniciativa de Rogério Chequer (empresário), fundado no ano de 2014. Já o
movimento “Nas Ruas” atua desde 2011, uma iniciativa de Carla Zambelli, então Deputada
Federal, pelo partido PSL-SP.

- 238 -
Eixo 14
Linguagem e significação

instituído pela prefeitura da cidade de São Paulo, comandada na época por Fernando
Haddad (PT).
De fato a cidade parou como o prometido, não apenas em função do
transporte público, mas por uma multiplicidade de outras demandas que emergiram ao
longo daquele mês. Segundo explica Tatagiba (2014, p.56), estas manifestações podem
ser compreendidas como parte de um processo mais profundo, que ultrapassa a
demonstração de um descontentamento popular pouco articulado, “a lógica de “cada
pessoa um cartaz” foi expressão eloquente da crise de representação das democracias
contemporâneas”.
Sendo assim, a interrogação que se impõe de imediato é, o que teria mudado
entre os manifestantes em um intervalo de poucas semanas, a ponto das reivindicações
terem se modificado de forma tão ampla? Seria possível falar em uma crise de
representação, assim como alertava Tatagiba (2014)? E se sim, quais características
podem ser apontadas como indicadoras deste processo? Diante destas problemáticas,
o objetivo deste tópico é analisar como se desenvolveram as manifestações das
Jornadas de Junho, na cidade de São Paulo.
Antes de dar prosseguimento à discussão é preciso esclarecer o critério
utilizado sobre as produções bibliográficas escolhidas. Talvez, devido à proximidade
do evento no tempo, os resultados ainda são esparsos no campo da História e por isso,
será acompanhado a discussão empreendida no campo das Ciências Sociais, em
específico, o que foi produzido sob o prisma da Teoria dos Movimentos Sociais e que
respondem aos objetivos traçados neste tópico.
Feitas as seguintes considerações, de acordo com Gohn (2019), o
acontecimento das Jornadas de Junho pode ser compreendido a partir de duas
perspectivas complementares, que ligam o evento tanto a outros processos históricos
de participação democrática no Brasil, bem como, pode ser relacionado a uma
conjuntura social mais ampla, de mobilizações que ocorreram em escala internacional,
a partir do chamado “movimento dos indignados”, que compreenderam atos de
grande repercussão como o Occupy Wall Street4, nos Estados Unidos.
Ainda no que trata sobre este assunto, as manifestações em escala internacional
se intensificaram como resultado da crise mundial do capitalismo em 2008, aliadas às
políticas econômicas neoliberais, que se mostraram incapazes de atender de forma
satisfatória, a promessa de melhoria da qualidade de vida para a população, em geral.
Em diversos países, multidões saíram às ruas para manifestar sua insatisfação contra

4 De acordo com as informações da página oficial do grupo, na web: "Occupy Wall Street é um
movimento que se iniciou em setembro de 2011, na Liberty Square no Distrito Financeiro de
Manhattan, e se espalhou por 100 cidades nos Estados Unidos [...] #ows está lutando contra o
poder corrosivo dos grandes bancos e corporações multinacionais acima do processo
democrático, e toda a Wall Street que criaram um colapso econômico responsável por causar
a maior recessão em gerações” (About Occupy Wall Street, Estados Unidos, Disponível em
< http://occupywallst.org/about/> Acesso em 25 jun. 2021, tradução nossa)

- 239 -
Eixo 14
Linguagem e significação

políticos, em defesa do meio ambiente, pelos direitos das mulheres e contra reformas
políticas e sociais conservadoras, dentre outros temas (GOHN, 2019).
A nova era das mobilizações também apresentou novas ferramentas e uma
transformação dos atores em cena. Foi a vez do uso intensivo da internet e das redes
sociais, que serviram como pontes para a mobilização de adeptos, além da ampla
divulgação dos protestos. Um ciberativismo que garantiu uma aceleração das
discussões públicas, principalmente o lançamento de exigências independentes e por
vezes sobrepostas. Em relação aos novos atores, nota-se uma mudança substancial no
perfil do manifestante, ele não é mais o militante e sim, tornou-se o ativista, aquele que
atua em prol de causas pontuais e não possui uma relação fixa com nenhuma instituição
(GOHN, 2019).
Logo, as manifestações brasileiras possuem muitas semelhanças aos modelos
de ação internacionais descritos anteriormente, sobretudo quanto à forma de
mobilização e às reivindicações dos primeiros protestos. A saber, quando o MPL
chamou as primeiras manifestações, a defesa da “tarifa zero” representava, em última
instância, o princípio de ocupação do espaço urbano, direito que foi negado a aqueles
que estão localizados nas zonas periféricas devido às taxas incompatíveis de transporte
(TATAGIBA, 2014). Todavia, estas semelhanças não são suficientes para explicar o
desfecho das manifestações e a ampliação das demandas, mesmo depois de anunciada
a revogação da tarifa de transporte, em diversas cidades e a retirada do Movimento
Passe Livre das ruas, por parte de seus dirigentes.
De acordo com Gohn (2019) e Pérez (2019), um dos indícios dessa
modificação dos protestos durante 2013, está ligado à emergência dos chamados
coletivos, que trata de um formato mais fluído de organização política. O termo coletivo
ainda merece algumas delimitações na Teoria dos Movimentos Sociais, porém é
possível caracterizá-lo enquanto grupos que agregam em seu escopo de manifestantes,
indivíduos com perspectivas ideológicas diferentes e que podem se reunir em prol de
lutas comuns. Os coletivos não se vinculam a partidos e se denominam como
“apartidários”, uma vez que prezam pela horizontalidade da tomada de decisões e não
possuem porta-vozes autorizados a falar em nome dos grupos.
Este tipo de organização horizontal em que se baseiam os coletivos, não é nova
na história da participação democrática brasileira. Durante a década de 1970, momento
atravessado pelo golpe militar (1964), a resistência foi protagonizada tanto por
movimentos sociais organizados, como por meio da participação popular mobilizada
em torno de bairros, conjuntos de trabalhadores e estudantes, que reivindicavam
direitos sociais básicos, tolhidos durante o regime. Esta forma de associativismo, assim
como denomina Gohn (2019), congregou visões sociais diferentes quanto à
estruturação da participação democrática, apesar de lutarem pela mesma causa, de
derrubada do regime militar. Entre esses grupos, destacavam-se aqueles que
reivindicavam bens e serviços, bem como uma parcela do que conhecemos hoje por
novos movimentos sociais ligados a raça, gênero, sexo, dentre outros.

- 240 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Em contrapartida, Tatagiba (2014) apresenta outros dois exemplos de reunião


de interesses difusos em manifestações que tomaram as ruas. O primeiro ocorreu
pouco mais tarde, na década de 1980, no período de abertura democrática com a
votação da Emenda Dante de Oliveira, que originou o movimento das Diretas Já, e
em segundo, relembra as manifestações que perduraram durante o processo de
impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, em 1992.
O que teria se transformado entre 1970, 1980 e 1992, se comparado a 2013,
foram as participações de atores intermediários entre as diversas aspirações, dentre
estes, os partidos políticos e os movimentos sociais. Os manifestantes não apenas
abdicaram do confronto por meio deste tipo de organização institucional em 2013,
mas deixaram claro que existia uma barreira intransponível entre esses atores,
principalmente durante os últimos dias dos protestos, em que militantes trajados ou
com bandeiras partidárias foram hostilizados. Ainda de acordo com Tatagiba (2014):

As Diretas Já e a Ética na Política foram frames construídos a partir de um forte


trabalho de negociação e articulação políticas, conduzido pelas principais lideranças
partidárias da oposição [...]. Em junho foi diferente. Se as massas nas ruas afirmam o
desejo do exercício da política sem mediações institucionais, a lógica de “cada pessoa
um cartaz” tão presente nos protestos de junho, ratificava que - para além da demanda
básica, “a redução da tarifa” - os sentidos dos atos poderiam ser tantos quanto aqueles
dispostos a encarar a disputa pelo enquadramento do confronto (TATAGIBA, 2014,
p.41)

Os protestos de 2013, atribuíram um grande enfoque ao Movimento Passe


Livre de forma a exigir do mesmo, uma forte capacidade de articulação, assim como
desempenhado pelos partidos e movimentos sociais em momentos anteriores
(TATAGIBA, 2014). Entretanto, o know-how de atuação do MPL, enquanto coletivo,
implicava justamente em não depender destas formas tradicionais, muito menos da
ocupação de meios institucionais, tão caros ao jogo democrático.
Como resultado, viu-se a emergência de outros líderes que enxergaram no
mesmo processo contestatório, a oportunidade política de trazer à baila, um repertório
alinhado à direita do espectro político. Em outras palavras, ocorreu um progressivo
fortalecimento do ativismo de grupos liberais e conservadores, com grande capacidade
de articulação entre si, e que prevaleceram na cena pública, por meio da mesma
estratégia da convocação de protestos de 2014 a 2016.
Todavia, é preciso fazer aqui um adendo, o afastamento institucional dos
coletivos revela um processo de enfraquecimento dos canais democráticos mais
profundo. De acordo com os dados apresentados por Pérez (2019, p.585) a partir do
Latinobarómetro, “entre os anos de 1995 a 2017, o apoio dos brasileiros aos partidos
políticos vem decaindo progressivamente”. Outra pesquisa realizada pelo IBOPE5,

5 Banco de Dados CESOP. Disponível em:


<https://www.cesop.unicamp.br/por/banco_de_dados/v/4482> Acesso em: 25 jun. 2021.

- 241 -
Eixo 14
Linguagem e significação

pouco tempo depois das manifestações de 2013, também revela dados semelhantes. A
pesquisa buscava avaliar a confiança dos brasileiros nas instituições do Estado, a partir
do seguinte enunciado: "Para cada uma das instituições o (a) sr(a) tem muita confiança,
alguma confiança, quase nenhuma confiança ou nenhuma confiança”. Se considerado
apenas as avaliações obtidas na escala de “muita confiança” e “alguma confiança”, os
Partidos somaram um índice bastante inferior (20,9%) comparado ao do Corpo de
bombeiros (84,6%) ou mesmo das Igrejas (72,8%). Caso semelhante ocorreu com o
Governo Federal (44,1%), Congresso (26,5%) e os Sindicatos (37,3%).
Embora esse assunto seja de extrema importância, não é o objetivo aprofundar
esta reflexão neste momento. Por hora, é suficiente compreender que o afastamento
dos coletivos dos espaços institucionais, não ocorreu à margem de seu contexto
histórico e revela uma crise de representatividade que ultrapassa seus limites.
Apesar disto, Tatagiba e Galvão (2019) apresentam um outro ângulo desta
discussão, dessa vez associado aos limites da atuação dos governos petistas, nos
últimos anos. Assim, as manifestações refletiram tanto a insatisfação de grupos que
desejavam avançar mais com relação às políticas redistributivas de renda e programas
sociais, quanto daqueles setores da sociedade, que estavam incomodados com as novas
mudanças e o questionamento da sua posição no status quo:

As políticas públicas implementadas pelos governos petistas afetaram material e


ideologicamente, as diferentes classes e grupos sociais. As políticas sociais feriram,
direta ou indiretamente a ideologia meritocrática, isto é, a crença de que o sucesso se
deve ao esforço e aos méritos individuais geralmente associados à trajetória escolar e
à obtenção de um diploma. As reservas de vagas nas universidades para alunos
oriundos de escolas públicas e cotas raciais para o ingresso nas universidades públicas
e concursos públicos representaram uma ameaça aos padrões de distinção social caro
as classes médias [...] Além das cotas, foram alvo de críticas crescentes os programas
Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Mais Médicos, a extensão dos direitos
trabalhistas às empregadas domésticas, entre outros. Assim, por limitadas que fossem
as conquistas dos subalternos provocaram descontentamentos e tensões com as
classes médias e dominantes (TATAGIBA; GALVÃO, 2019, p.77)

O Partido dos Trabalhadores, teria atuado de forma insuficiente na tentativa


de estabelecer um diálogo com os coletivos, que acabaram se multiplicando durante
seu período de governo, mas em desacordo com as decisões do mesmo. Um diálogo
necessário, principalmente pelo histórico de consolidação do partido enquanto uma
via progressista e de esquerda. (TATAGIBA; GALVÃO, 2019). Apesar das tentativas
da ex-presidente Dilma Rousseff em acalmar os ânimos das ruas, as concessões
realizadas por ela foram encaradas e amplamente divulgadas, pelos veículos de
imprensa, apenas como uma forma de chegar à reeleição, no ano seguinte.
Em suma, a proposição de Secco (2011, p.286) é acertada quando afirma que
“os petistas ganharam a batalha eleitoral, mas perderam a luta política". As Jornadas
de Junho foram o início de um processo tortuoso de disputa pelo poder, em que o PT

- 242 -
Eixo 14
Linguagem e significação

perderia cada vez mais espaço, até o abrupto processo de impeachment que se
desencadearia, apenas dois anos depois.

O Gigante na capa: análise do enquadramento da revista semanal Veja

A presente seção é dedicada à análise do discurso da revista semanal “Veja”,


no que foi produzido a respeito das manifestações que ocorreram em 2013. Nesse
sentido, o corpus documental foi composto por 4 edições, publicadas entre os dias 05 a
26 de junho, o que totaliza cerca de 149 reportagens analisadas. Este recorte temporal
foi priorizado devido à grande disputa no âmbito público em definir um significado
sobre a ocupação das ruas, o que permitiu o surgimento de diversas formas de
narrativas na imprensa.
Como metodologia, foi utilizada a análise de conteúdo temática, instrumento
voltado para a seleção de categorias de contexto que pudessem traduzir de forma
ampla, os conteúdos dispostos nas páginas dos exemplares e posteriormente
codificadas em quadros explicativos, como será visto adiante nos Quadros 1 e 2
(BARDIN, 2011).
Sendo assim, durante a análise do periódico foi possível reconhecer pelo menos
três tipos diferentes de enquadramento da notícia em um espaço curto de tempo: o
primeiro se deu através de um silenciamento da revista quanto às manifestações
realizadas pelo Movimento Passe Livre, durante o início daquele mês. O segundo
ocorreu a partir da ênfase dada aos atos de depredação no espaço urbano por
manifestantes, e por último, houve um agenciamento do significado dos protestos, em
favor da pauta ideológica defendida pelo periódico, assim como, uma projeção de
passado, presente e futuro baseado no acontecimento.
Diante destas três formas narrativas, utilizou-se como referencial teórico as
contribuições elaboradas por Michel Foucault (2014), que responderam a duas
demandas específicas: 1) seria possível falar em um processo de interdição dos
discursos das ruas pela imprensa? 2) O lugar que o periódico ocupa autoriza a
elaboração de uma narrativa “verdadeira” que constrange outros discursos?
De acordo com a teoria foucaultiana, todo o discurso produzido em uma
sociedade está submetido a processos de controle que podem, eventualmente, agir para
limitar os poderes de fala, autorizar o aparecimento de discursos ou selecionar os
sujeitos que podem compartilhar de um determinado saber (FOUCAULT, 2014)
Por “formas de controle”, o autor se refere a verdadeiros aparelhos de sujeição
dos discursos, que agem de forma interna e externa, desde a sua produção até o
momento de circulação desse saber. Quanto a sua produção, as formas de controle são
exercidas na intenção de submeter o enunciado ainda durante a sua elaboração, através
de uma série de regras de controle, chamadas na teoria foucaultiana por disciplinas. Cabe
ressaltar também, que é neste momento que são forjados os discursos “verdadeiros”
ou aqueles que estão autorizados a circular socialmente. Por outro lado, no que se trata

- 243 -
Eixo 14
Linguagem e significação

dos controles externos ao discurso, estes se configuram por meio de um violento


processo de interdição e exclusão das falas não autorizadas. Dito de outra forma, esta
"maquinaria" do controle, busca constranger e excluir as falas que não obedecem às
regras de aparecimento dos discursos (FOUCAULT, 2014).
A partir desta perspectiva, Foucault (2014, p.10) estabelece uma função
fundamental dos discursos no exercício do poder, uma vez que ele não é apenas o que
“traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é aquilo porque, pelo que se luta, o
poder do qual nós queremos apoderar”.
Diante desta perspectiva, considera-se que a imprensa também é um domínio
responsável por balizar os discursos no âmbito público. Ela congrega um corpo
editorial hierarquizado, regido a partir de uma disciplina, que a autoriza no trabalho de
restrição e interdição de outras falas que não estejam no horizonte de interesse
informativo. Por estar no domínio daquilo que é o “verdadeiro”, ou seja, dentro das
regras de produção dos discursos, pode vir a exercer tamanho poder, a ponto de
constranger outros saberes.
Um dos exemplos desse processo de exclusão discursiva aparece na “Edição
n° 2325 - A verdade sobre José Dirceu”6. Neste exemplar não consta nenhum tipo de
menção a série de protestos conduzidos pelo coletivo MPL, que chegava ao seu
terceiro dia de encontro. Este silenciamento pode ter ocorrido devido a uma primeira
associação do coletivo a exigências mais próximas às defendidas por partidos de
esquerda e que, por isso, não deveriam ser discutidas no âmbito da revista, naquele
momento. Vale ressaltar que na “Edição n° 2324 - Roberto Civita (1936-2013)”7, já se
delineava uma forte agenda antipetista e contrária a demais partidos com projetos
progressistas, por meio de comentários negativos sobre programas sociais de
redistribuição de renda, como o Bolsa Família, ou mesmo os trabalhos mantidos pela
Comissão Nacional da Verdade (CNV), encarregada de investigar crimes cometidos
durante a ditadura militar, com a perspectiva de esclarecer o desaparecimento de
pessoas, durante o período.
Após seis dias de manifestações, mantida sob intensa repressão policial pelo
governo do estado de São Paulo, o conjunto editorial da revista Veja rompeu o silêncio
e decidiu entrar no debate sobre o evento, que já estava sendo discutido por outros
veículos de imprensa como a “Folha de São Paulo”. As manifestações estamparam a
capa da “Edição n° 2326 - A revolta dos Jovens, depois do preço das passagens, a vez
da criminalidade e da corrupção?”8, que na época, instigava seus leitores a compreender
mais a fundo, qual era o sentido de tamanha movimentação. Para visualizar como

6 A verdade sobre José Dirceu. São Paulo: Revista Veja, 2013-. ISSN 0100-7122 versão online.
Disponível em: <Veja (abril.com.br)> Acesso em: 25 jun. 2021.
7 Roberto Civita (1936-2013). São Paulo: Revista Veja, 2013-. ISSN 0100-7122 versão online.

Disponível em: <Veja (abril.com.br)> Acesso em: 25 jun. 2021.


8 A revolta dos Jovens: depois do preço das passagens, a vez da corrupção e da criminalidade?

São Paulo: Revista Veja, 2013-. ISSN 0100-7122 versão online. Disponível em: <Veja
(abril.com.br)> Acesso em: 25 jun. 2021.

- 244 -
Eixo 14
Linguagem e significação

ocorreu este enquadramento, foi construído o Quadro 1 -- Análise Temática - Edição


2326, a seguir:

Quadro 1 - Análise Temática - Edição 2326


Categoria de
Ênfase Discursiva Exemplos
contexto
Jovens "Bando de selvagens que protestavam contra o aumento
Descontrolados das tarifas de transporte coletivo"
Vandalismo "Protestos que produziu o maior número de detidos em
Ilegalidade confronto com a política desde o regime militar"
Detidos pela polícia "Quebram tudo a sua volta dia sim, dia não"
Depredação "Manifestantes depredaram ônibus, agências bancárias,
vitrines de lojas e estações de metrô"
"Sempre dispostos a driblar o tédio burguês"
"Rebeldes sem causa"
Classe Média
"Repórteres da Veja entrevistaram dezenas de jovens
Riqueza
que, candidamente, confessaram nunca andado de
Burguesia nacional
ônibus"
"Tem jeito de massa a quem tarifas aéreas dizem mais
respeito do que tarifas de ônibus"
"A razão de tanta fúria"
Animosidade "Lutam e vociferam"
"Fúria difusa da parte dos manifestantes"
"Mais de 100 pessoas ficaram feridas, incluindo dezenas
Caracterização do que nada tinham a ver com a manifestação"
Público nas ruas. Violência "Com o PM e o pichador no chão, outros manifestantes
Agressão física o cercaram. Passaram a agredir o soldado com pedras,
Agressão contra chutes e socos"
policiais "Agressores ensandecidos"
"Esse movimento cresceu como hospedeiro de
interesses políticos e se tornou um vetor de violência”
"Militantes de partidos de extrema esquerda (PSTU,
Militantes de esquerda PSOL, PCO e PCdoB), militantes radicais de partidos de
Partidos de esquerda centro-esquerda (PT e PMDB)"
"Alas radicais dos partidos"
"Punks e desocupados"
Outras organizações "Desse subgrupo formado por radicais políticos e punks
Punks partiram a maior parte das ações de depredação na
Avenida Paulista"
"Foi a quarta de uma série de manifestações organizadas
MPL
por um grupo nanico criado por estudantes em São
Grupo pequeno
Paulo"
Estudantes
“É a estudantada tradicional oriunda da mais pura e
Elite
característica "elite branca"

- 245 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Contra aumento de "No caso da série de manifestações iniciadas em São


0,20 centavos Paulo e no Rio, a faísca foi o aumento das passagens"
"Uma lição valiosa, porém, é a de que esses surtos de
Significados ainda
indignação da juventude sempre guardam uma razão real
"ocultos"
escondida atrás de dizerem em cartazes desconexos"
Sentidos que não
"Qual seria a doença brasileira que se manifesta através
foram desvendados
Motivações do das ruas? São várias moléstias"
público Movimentos
"A exemplo do movimento americano [...] reuniu
Internacionais
pessoas com situação financeira estável e que não
Situação financeira
passavam por nenhum problema urgente"
estável
“Foram os militantes do MPL ligados a partidos que
Massa de manobra de
organizaram os protestos"
partidos de esquerda
"radicais insuflados por partidos de esquerda"
Fonte: Revista Veja (2013).

De acordo com os dados obtidos no quadro é possível inferir, tanto pelo uso
dos termos apresentados, como pelos sentidos que estes conformam, que o
enquadramento exercido pela revista, objetivou colocar em debate uma imagem
bastante pejorativa dos manifestantes, com ênfase em seu descontrole, a quebra do
patrimônio público e a violência contra civis e a própria polícia.
Os manifestantes apareceram ainda como atores que não poderiam se encaixar
dentro das próprias reivindicações sobre o uso do transporte público, uma vez que
pertencem a uma “elite” brasileira e que, portanto, concentram uma rebeldia “sem
causa” ou mesmo podem ter sido mobilizados pelo desejo de uma esquerda política.
Em última instância, um discurso que não deve ser ouvido.
O que se sobressai deste enquadramento é uma tentativa deliberada de
desmoralização do coletivo Movimento Passe Livre, semelhante a interdição da palavra
do “louco” na teoria foucaultiana. O louco é aquele que tem a fala interditada de tal
maneira, que nunca pode ser escutado e quando é convidado a falar, está sob a
condição de uma mística que o coloca novamente no lugar em que o discurso tende a
desaparecer (FOUCAULT, 2014). Do mesmo modo, o manifestante representa a fala
que precisa ser interditada, e quando não está sujeito a figura de vândalo, aparece
relegado à posição de um ator que não pode ter um pensamento independente de sua
classe social.
Esta redução do manifestante à posição de vândalo continuou vigente no
volume posterior, “Edição Histórica n° 2327 - Os sete dias que mudaram o Brasil”9,
em oposição a um personagem novo, "o jovem brasileiro”, conforme segue no Quadro
2 - Análise Temática - Edição 2327:

9Os sete dias que mudaram o Brasil. São Paulo: Revista Veja, 2013-. ISSN 0100-7122 versão
online. Disponível em: <Veja (abril.com.br)> Acesso em: 25 jun. 2021.

- 246 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Quadro 2 - Análise Temática - Edição 2327


Categoria de
Ênfase Discursiva Exemplos
contexto
"Fizeram questão de obrigar os militantes do PT, do
PSOL e outras agremiações a baixar suas bandeiras
quando tentaram participar dos protestos"
Manifestantes de "Curiosamente, aqueles que mais se enxergam como
esquerda expulsos agentes de mudança, os partidos de esquerda, foram os
PT e PSOL que mais se viram emparedados pela nova realidade das
ruas"
"Se há algo que tira do sério um político de esquerda, é
justamente um movimento de massa inescrutável"
"Milhares de brasileiros, em sua maioria jovens (e uma
Os jovens brasileiros minoria de marginais e vândalos) - protestaram no país
O povo contra o aumento das passagens"
Verdadeiro "O povo brasileiro nas ruas"
Revolução "A revolução verdadeira foi a que começou a ser feita
Caracterização do pelos brasileiros que foram às ruas protestar”
Público nas ruas
"Esqueçamos os vândalos e anarquistas, gente que não
estava lutando por um governo melhor, mas por governo
nenhum"
"Entre os vândalos que macularam os protestos há desde
Vândalos
militantes de esquerda até pitboys sem causa, mas só os
Baderneiros
anarquistas que incitam o quebra-quebra"
Contrário à povo
"Protagonismo em arruaças"
brasileiro
"Os arruaceiros representam uma parcela mínima dos
Bandidos
manifestantes"
Anarquistas
"Para que fosse coibida a baderna nos protestos, eles
deveriam ser os primeiros a serem identificados e
punidos"
"O MPL se tornou irrelevante ao cabo de alguns poucos
MPL
dias"
"Os protestos deflagrados inicialmente para exigir a
redução da passagem de ônibus logo evoluíram para
Contra a corrupção outras causas. Uma delas vital para o combate à
impunidade e a corrupção no país, é a rejeição à chamada
PEC 37"
"Os cartazes nas ruas fizeram das Copas os símbolos
Motivações do odiados do gasto público"
público Gastos públicos "É inescapável a percepção que se gastou dinheiro
público de mais com belos estádios e de menos com o
restante do cotidiano"
"Os brasileiros estão indo as ruas não admitem mais
Contra partidos de
serem usados como massa de manobra por partidos e
esquerda
políticos profissionais"
Crise de "As manifestações da semana passada mostraram de

- 247 -
Eixo 14
Linguagem e significação

representatividade modo inequívoco que estão quebrados os canais de


institucional comunicação de imensa porção da sociedade brasileira
com as instituições que deveriam representá-la"
“Igualzinho ao que o então presidente Fernando Collor,
sinônimo de corrupção e quadrilhismo no Brasil, desferiu
em 1992 ao convocar o povo para vestir verde e amarelo
[...] O povo saiu de preto em sinal de luto. Petistas
Mobilização de apanharam da multidão, tiveram suas bandeiras
sentidos históricos queimadas"
"A história mostra que que os grandes espasmos
populares espontâneos nem sempre prenunciam
mudanças políticas de mesma coloração e envergadura"
"Na Avenida Paulista, o coração de São Paulo, a mesma
rejeição foi dirigida a petistas"
"Foram violentamente lembrados que estão no poder"
"A presidente Dilma Rousseff ficou por quase duas horas
Antipetismo
acuada no Palácio do Planalto, impedida de deixar o local
pela porta da frente por uma multidão"
"O PT assistiu, pasmo e impotente, a um território que
antes lhe pertencia ser tomado por uma multidão"
Fonte: Revista Veja (2013).

Como foi discutido na seção anterior, as manifestações chamadas pelo


Movimento Passe Livre tiveram atores múltiplos, com reivindicações bastante
heterogêneas. Nos momentos finais de mobilização as ruas foram preenchidas, em sua
maioria, com interesses mais alinhados a ideologias conservadoras e liberais, a direita
do espectro político. Nesta última edição, publicada pela revista Veja, estas frentes
passaram a compor o repertório de atuação do personagem “jovem brasileiro”, que
luta contra os partidos de esquerda, é anticorrupção e está preocupado com a má
administração dos gastos públicos no governo Dilma Rousseff (PT).
Aqui também se delineia fortemente o antipetismo, representado pelo enfoque
dado aos manifestantes que foram expulsos dos protestos, por estarem trajados com
símbolos do partido ou a representação da presidente “acuada” no Palácio do Planalto.
Todavia, o apartidarismo foi uma questão muito mais profunda do que uma simples
rejeição ao Partido dos Trabalhadores, assim como discutido na primeira seção desta
pesquisa, o que não impediu que o corpo de editores da revista optasse por noticiar
nestes termos.
Já em um sentido oposto “ao jovem brasileiro”, temos a imagem do "vândalo",
que assume a posição de antagonista. Ele pode ser traduzido enquanto aquele
manifestante que não tem motivo para estar nas ruas, exceto o de deturpar a
legitimidade das reivindicações do “jovem brasileiro”. São estes os anarquistas,
militantes de esquerda e ativistas de classe média. Eles se diferenciam do MPL, que
apenas é citado para relembrar a falta de articulação ou os novos objetivos de luta,
ainda pouco relevantes.

- 248 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Assim, tanto o “jovem brasileiro” que vai às ruas para lutar por seus direitos,
quanto o “vândalo” que está disposto a impedi-lo, estão alinhados à narrativa que já
vinha sendo publicada pela revista. O manifestante legítimo é aquele que defende
políticas liberais e que está preocupado com o futuro do Brasil. Já o vândalo é o
militante de esquerda, que tem de ser cerceado, preso e punido, ele não deve ter um
local de fala, apenas o discurso excluído.
Por último, outro ponto que precisa ser destacado foi a intensa mobilização de
sentidos históricos sobre o acontecimento. Através deste jogo de distensão entre o
presente e o passado, a revista já anunciava um possível futuro político para o país, a
partir de assuntos como o impeachment de Fernando Collor de Mello e uma renúncia
por parte de Dilma Rousseff, para acalmar os ânimos das ruas. Uma edição que
pretendeu ser "histórica" no título, apenas por narrar eventos em uma temporalidade,
de forma a promover no âmbito público, a narrativa de um desfecho inevitável.

Considerações Finais

Dado a singularidade das Jornadas de Junho, enquanto acontecimento na


História do Tempo Presente, algumas questões sintomáticas precisam ser pensadas. A
primeira delas é o afastamento da camada populacional mais jovem, dos espaços
institucionais.
Como pode ser visto, a organização em coletivos priorizou como tática
política, exercer pressão sobre as autoridades do Estado, através das ruas. Uma
mobilização que se mostrou bastante promissora para o MPL e que resultou de
imediato, na redução do aumento da tarifa de transporte público. No entanto, vale
ressaltar que, a atuação política apenas por meio deste tipo de mobilização não deve ser
encarada enquanto o único recurso possível, principalmente, se levado em conta, a
necessidade da garantia de permanência de políticas públicas progressistas. Nesse
sentido, é preciso ter atenção tanto ao monitoramento da sociedade civil sobre a
política, quanto à ocupação dos espaços institucionais e de formulação dessas políticas.
Ao manterem uma oposição aos espaços institucionais e a decorrente
ocupação destes, os coletivos acabaram por criar um grande vácuo de participação
nestas vias democráticas. Espaços de fala que se constituíram fundamentados na luta
de movimentos anteriores, desde 1988. Uma atitude bastante perigosa, primeiro
porque a descrença nas instituições do Estado, se levado às últimas consequências,
podem conduzir a uma rejeição completa da democracia enquanto preceito
fundamental, ou mesmo, abrir caminho para atuação institucional de grupos que não
tem o mesmo compromisso com o jogo democrático. Sendo assim, os espaços de
participação têm a sua função e precisam ser ocupados, tanto quanto as ruas.
Parte deste processo de confiança institucional também é fomentado pela ação
da imprensa e a maneira como ela interfere em debate, no âmbito público. Durante a
análise da revista “Veja”, seu interesse informacional foi o de silenciar alguns discursos

- 249 -
Eixo 14
Linguagem e significação

que compreendeu como oriundos de uma esquerda, assim como, buscou promover a
reverberação de outros mais alinhados a sua agenda liberal , fato que, certamente,
influenciou em muito a opinião de seus leitores, quanto às movimentações de junho.
Isto demonstra, assim como pontua Foucault (2014), a importância dos discursos nos
jogos de poder.
Em contrapartida, o que chama a atenção é que, ao criar o personagem “o
jovem brasileiro” e dar voz a esta representação como parte da estratégia discursiva, a
revista Veja colaborou para colocar na cena pública, grupos com ideais autoritários,
que não compartilhavam a mesma visão política da empresa e que poderiam vir a
prejudicar, em muito, a atuação da imprensa livre brasileira. Provavelmente, um
enquadramento que não estava em perspectiva naquele momento.

Referências

A revolta dos Jovens: depois do preço das passagens, a vez da corrupção e da


criminalidade? São Paulo: Revista Veja, 2013-. ISSN 0100-7122 versão online.
Disponível em: <Veja (abril.com.br)> Acesso em: 25 jun. 2021.

A verdade sobre José Dirceu. São Paulo: Revista Veja, 2013-. ISSN 0100-7122
versão online. Disponível em: <Veja (abril.com.br)> Acesso em: 25 jun. 2021.
Banco de Dados CESOP. Disponível em:
<https://www.cesop.unicamp.br/por/banco_de_dados/v/4482> Acesso em: 25
jun. 2021

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011. 279 p.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France,


pronunciada em 2 de dezembro de 1970: tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio.
24 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014. 74 p.

GOHN, Maria da Glória. Participação e democracia no Brasil: da década de


1960 aos impactos pós-junho de 2013. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019. 294 p.

JÚNIOR, Carlos Zacarias de Sena. Decifra-me ou devoro-te: as Jornadas de Junho, o


golpe de 2016 e a ascensão da extrema-direita no Brasil. Coleção História do
Tempo Presente. Vol. II, Roraima, 2020.

MIRA, Maria Celeste. O leitor e a banca de revistas: o caso da Editora Abril. 1997.
359f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Campinas, SP. Disponível em:

- 250 -
Eixo 14
Linguagem e significação

<http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/280039>. Acesso em: 25


jun. 2021.

Os sete dias que mudaram o Brasil. São Paulo: Revista Veja, 2013-. ISSN 0100-7122
versão online. Disponível em: <Veja (abril.com.br)> Acesso em: 25 jun. 2021.

PEREZ, Olivia Cristina. Relações entre coletivos com as Jornadas de Junho.


Opinião Pública [online]. CESOP, v. 25, n°3, 2019. Disponível em
<https://www.cesop.unicamp.br/por/opiniao_publica/edicao/183> Acesso em: 25
jun. 2021.

Por uma vida sem catracas, São Paulo. Disponível em: https://www.mpl.org.br/
Acesso em: 25 jun. 2021
Roberto Civita (1936-2013). São Paulo: Revista Veja, 2013-. ISSN 0100-7122 versão
online. Disponível em: <Veja (abril.com.br)> Acesso em: 25 jun. 2021.

SECCO, Lincoln. História do PT. 2°ed. Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial, 2011.
338 p.

SINGER, ANDRÉ. O lulismo em crise: um quebra cabeça do período Dilma


(2011-2016). 1°ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. 388 p.

TATAGIBA, Luciana e GALVÃO, Andréia. Os protestos no Brasil em tempos de


crise (2011-2016). Opinião Pública [online]. 2019, v. 25, n. 1 p. 63-96. Disponível
em: <https://doi.org/10.1590/1807-0191201925163>. Pub. 16 maio 2019. ISSN
1807-0191. Acesso em: 25 jun. 2021.

TATAGIBA, Luciana. 1984, 1992 e 2013, sobre ciclos de protestos e democracia no


Brasil. Política e Sociedade. Santa Catarina, v.13, n.18, 2014. Disponível em
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/2175-
7984.2014v13n28p35> Acesso em:25 jun. 2021

- 251 -
Eixo 14
Linguagem e significação

CONTROLE DOS CORPOS: O CORPO DA MULHER EM


DISCURSO

Manuela Serpeloni1
Julia Franzon2
Rosemeri Passos Baltazar Machado3

Resumo: O presente estudo tem como principal objetivo analisar aspectos


relacionados ao processo de construção/apreensão dos efeitos de sentidos
direcionados ao corpo da mulher cisgênero, de forma a transcender o aspecto
biológico do catamênio e adentrar seus desdobramentos sociais. Para tanto, foram
selecionadas três publicidades da marca Sempre Livre, conhecida por seu trabalho com
absorventes, a fim de refletir acerca dos mecanismos biopolíticos atuantes sob tais
corpos. Assim, tomou-se como metodologia a abordagem qualitativa e o procedimento
de levantamento bibliográfico, a fim de realizar a fundamentação teórica pautada na
AD para, em seguida, utilizar a corrente teórica como dispositivo de análise das
publicidades. A partir dessas reflexões, foi possível perceber o movimento de
monitoramento e controle dos corpos, uma vez que há o desconforto do sujeito
mulher cisgênero em vivenciar e falar sobre o tema menstruação, fator resultante de
uma cultura fundamentalmente machista.

Palavras-chave: Corpo; Mecanismos Biopolíticos; Mulher Cisgênero; Menstruação.

Introdução

O olhar desta pesquisa volta-se para a temática do corpo feminino submetido


aos tabus e crenças acerca da menstruação, devido aos mecanismos biopolíticos1 de
controle desse corpo, por isso, pretende-se, para além do aspecto biológico, analisar
os desdobramentos da menstruação por um viés social, a fim de entender os discursos
fundados nessa temática, uma vez que,

Assim como o morrer, também o menstruar manifesta-se como fato social e cultural,
implicando em crenças, condutas, atitudes ou mesmo rituais próprios associados às
concepções nativas sobre a menstruação. Isso se aplica não apenas às sociedades ditas
‘primitivas’ como também às modernas, contemporâneas, nas quais se inclui
certamente a sociedade brasileira (SARDENBERG, 1994, p. 7).

1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade


Estadual de Londrina (UEL). E-mail: manuela.serpeloni@uel.br.
2 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade
Estadual de Londrina (UEL). E-mail: julia.a.frazon@uel.br.
3 Docente da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: rosemeri@uel.br.

- 252 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Pensando nisso, é necessário desconstruir as problemáticas decorrentes da


menarca e da determinação do “ser mulher” a partir dela, uma vez que a simbologia
do sangue abarca fundamentações ideológicas que oscilam entre a vida - dada a sua
abundância em um corpo humano saudável - e a morte, já que a sua perda se relaciona
a doenças e ferimentos. A depender dos contextos históricos e da cultura, um
significado distinto é atribuído ao sangue, contudo, a figura feminina é indissociável
das atribuições, tendo em vista seu sangramento periódico. Tais simbologias denotam
o desencadear de comportamentos sociais e pré-conceitos que podem ser prejudiciais
tanto para a saúde da mulher quanto para a sua própria relação com seu corpo.

O sangue menstrual tem três características básicas que fazem com que ele tenha um
impacto emocional muito mais forte do que qualquer outro: é humano, derrama
independentemente da vontade da mulher e está relacionado ao sexo e à procriação.
Isso poderia explicar os tabus e mitos que cercam a menstruação. E tabu significa
proibido, perigoso, mas, às vezes, tem ao mesmo tempo um caráter sagrado. O ciclo
menstrual é um fato feminino, e como a mulher é o sexo dominado, mitos e tabus não
fazem nada senão manifestar essa situação (HERMOSA; MEJIA, 2015, p.17. Nossa
tradução).

Para uma mulher, é comum escutar a frase “virou mocinha” após sua primeira
menstruação, enunciado que explicita a noção de maturidade e atribuição da condição
de mulher por meio de seu primeiro período, porém, este evento vem acompanhado
de diversas regras e tabus acerca do corpo, que fazem com que o sujeito se distancie
dele e recrie uma experiência pessoal por meio do discurso social. Além disso, cabe
destacar que a condição de mulher não pode ser reduzida ao fator biológico
menstruação, a ter um útero, pois se trata de uma perspectiva reducionista e
excludente, uma vez que mulheres trans se situam na condição de mulher mesmo sem
apresentarem um útero, e há síndromes em que mulheres nascem sem o útero.
Dessa forma, entende-se o recorte da propaganda referente à menstruação,
contudo, é válido reforçar que o ser mulher abrange um nível social, em uma distinção
entre sexo, referente às características inatas biologicamente, e gênero, que diz respeito
às construções histórico-culturais acerca das determinações de papéis sociais.
Portanto, a análise das publicidades da marca Sempre Livre permite apreender
os possíveis efeitos de sentidos referentes à discursivização menstrual, de forma a
investigar o conceito e seus desdobramentos em uma relação direta com o corpo que
menstrua para além do aspecto biológico, mas atingindo o espectro social.
A publicidade, como uma forma de comunicação que veicula abertamente em
diferentes tipos de mídia, é uma maneira de propagação e manutenção da ideologia
dominante (TAVARES, 2006), uma vez que busca gerar no público o ímpeto da
compra a partir da identificação e projeção. Para tanto, tratando-se dos comerciais de
absorventes, há a imagem do “ser mulher” construída por meio do resgate de situações
vivenciadas, bem como dos frequentes estereótipos a elas impostos.

- 253 -
Eixo 14
Linguagem e significação

A maneira como as mulheres se comportam e são vistas socialmente é parte da


ideologia patriarcal. O comportamento da mulher está inteiramente ligado e
relacionado à posição de dominação e superioridade exercida pelo homem, bem como
afirma Pierre Bourdieu, em A Dominação Masculina (2002, [1930-2002]), o homem
exerce diferentes formas de dominação sobre a mulher e ela é, então, subjugada ao
homem, tendo seu comportamento moldado e construído por estes. Dada essa
alocação social de inferioridade, as mulheres são ensinadas a esconderem traços de sua
personalidade que não seguem o padrão pré-determinado, assim como seus próprios
corpos. Agem e são representadas no imaginário social por características como
delicadeza, fragilidade e discrição, o que faz com permaneçam em estado de
insegurança. As condições relacionadas à menstruação são então diretamente
reforçadas por tal dominação, já que os corpos são apagados e silenciados.
Nesse sentido, Simone de Beauvoir pontua que “Não é enquanto corpo, é
enquanto corpos submetidos a tabus, a leis, que o sujeito toma consciência de si
mesmo e se realiza: é em nome de certos valores que ele se valoriza” (BEAUVOIR,
1970, p. 56). Dessa forma, a mulher, submetida ao tabu da menstruação, pensa a
construção de seu corpo e de sua condição de mulher a partir dos discursos sobre tal
temática a ela referidos. Ainda segundo a autora, sua assertiva: “Não se nasce mulher,
torna-se mulher” (BEAUVOIR, 1980, p. 9) traz a explicação de que “nenhum destino
biológico, psíquico ou econômico define a forma que a mulher ou a fêmea humana
assume no seio da sociedade” (BEAUVOIR, 1980, p. 10). Para Beauvoir, é o conjunto
articulado da civilização que determina o que e como se qualifica o feminino na cultura.
Ao pensar a menarca, pode-se refletir sobre as construções envoltas nesse
fenômeno, resultando na crença da condição de mulher a partir disso. Contudo, a
biologia vem acompanhada do aspecto social e dos mecanismos que controlam e
definem esses corpos e suas experiências consigo, de forma a moldar suas ações e
pensamentos.
Portanto, pretende-se desvelar os sentidos envoltos no corpo que menstrua e
entender como a menstruação é vista por um viés social, de forma a transpassar o
biológico e entender as caracterizações e imposições que recam nesses corpos.

O corpo investido de sentido

Ao pensar o corpo, Hashiguti (2007) o coloca como forma material no discurso


e pontua três dimensões que se imbricam e complementam: a dimensão real ou biofísica,
relativa ao fenótipo e à mecânica corpórea possibilitadora dos gestos e movimentos;
uma dimensão simbólica, que diz respeito aos sentidos imprimidos ao corpo ao longo da
história e que atuam a partir da memória discursiva; e uma dimensão imaginária,
possibilitadora da unidade identitária do sujeito na relação imaginária estabelecida com
o outro no âmbito discursivo.

- 254 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Antes que algo seja dito, vê-se a matéria corpórea e a ela confere-se uma
impressão, um sentido. Contudo, esse ver não está atrelado diretamente à visão, mas à
relação imaginária que é resgatada sobre o corpo, ao gesto de interpretação que é feito
mediante o corpo:

Na inter-relação pessoal entre sujeitos, a identificação social é um processo que se


relaciona à sua condição corpórea, ao fato de que ele é sujeito de-em uma
corporalidade e que essa corporalidade é apreendida pelo olhar mesmo antes que ele
fale. Essa anterioridade da materialidade corpórea determina direções de sentidos, pois
o olhar é sempre olhar pelo discurso (HASHIGUTI, 2007, p. 2).

Dessa forma, a AD não trata do corpo empírico, mas da materialidade que


significa na qualidade de corpo de sujeito. Nessa produção de sentidos, não se pode
pensar sua materialidade como auto significante, mas sim como construção a partir de
gestos interpretativos de ordem discursiva, política.
Esse corpo transcende sua biologia e atinge um aspecto social, sendo opaco,
uma vez que se constitui por meio do olhar que o discurso viabiliza. “O corpo,
enquanto forma material atua como condição de produção no discurso no âmbito do
visível, ao mesmo tempo em que é atravessado por diferentes e conflitantes discursos,
tornando-se opaco e contraditório para o sujeito” (HASHIGUTI, 2007, p. 6).
O sujeito coloca-se no mundo pelo seu corpo, sua existência é possibilitada
pela matéria corpórea e, se o corpo é componente do sujeito, não passa impune à
interpelação ideológica. Como pontua Orlandi, “A interpelação do indivíduo em
sujeito pela ideologia produz uma forma sujeito histórica com seu corpo. Há, eu diria,
uma forma histórica (e social) do corpo, se pensamos o corpo do sujeito” (ORLANDI,
2017, p. 86).
Por conseguinte, o corpo do sujeito é deslocado ao ser interpelado
discursivamente, por isso se pode dizer que o corpo é um espaço de funcionamento
da linguagem, uma vez que não passa impune à história e à ideologia, atuando como
lugar do simbólico.
Como pontua Colling, pensar o corpo “É descobrir que um corpo se produz
tanto do imaginário que existe em torno dele, como das práticas que se articulam em
espaços definidos, em ritmos, em modos de vestir e de utilizar a língua, em leituras,
em gestos, em olhares permitidos e proibidos” (COLLING, 2014, p. 26).
Retomando Foucault, em Vigiar e Punir (1987), é possível sistematizar mais
facilmente a compreensão que o autor adota sobre o corpo. Pode-se dizer que para
Foucault o corpo seria uma matéria viva remodelável, isto é, uma composição de carne,
ossos e os demais elementos, que se molda por meio de técnicas dominadoras de
cunho disciplinar e biopolítico.
A respeito do conceito de biopolítica, a definição foucaultiana aponta para a
apropriação do poder sob os processos biológicos de forma a controlá-los e,
ocasionalmente, modificá-los:

- 255 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Se pudéssemos chamar de ‘bio-história’ as pressões por meio das quais os movimentos


da vida e os processos da história interferem entre si, deveríamos falar de ‘biopolítica’
para designar o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos
cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana
(FOUCAULT, 1988, p. 135).

Em oposição ao conceito de sujeito, tido como uma invenção fundada nos


discursos e dinâmicas de poder, Foucault conceitua o corpo como superfície
preexistente. Sendo objeto de relações de poder-saber, o corpo é um agente que sofre
as ações das diferentes técnicas e tecnologias elaboradas ao longo da história e que o
constituem por meio de atitudes disciplinadoras. É possível postular que ele atuaria
como um caminho para que o sujeito venha a ser, uma vez que essa trajetória só se
realiza por meio de tal matéria, isto é, a subjetividade que habita a constituição do
sujeito só se torna possível pelas trilhas do corpo.
Entende-se que o corpo precisa cumprir suas funções no funcionamento social
e, a fim de certificar-se que isso irá ocorrer, os mecanismos de controle atuam,
influindo nas formas de pensá-lo e usá-lo. Nesse sentido é que Foucault pontua os
chamados “corpos dóceis”, resultantes do poder disciplinar que os molda de acordo
com as demandas sociais.
Souza (2010), destaca o conceito de “discursivização da carne” ao pontuar que,
em primeira instância, a materialidade física é colocada somente como carne, e vem a
ser corpodiscurso por meio do “trabalho realizado ciosamente pelos agentes ideológicos
que cuidam de imaginá-la, esperá-la, erguê-la, educá-la, administrá-la, alocá-la em
corpodiscurso” (SOUZA, 2010, p.1).
Ainda de acordo com o autor, essa discursivização carnal não acontece em um
momento isolado, mas já existe antes mesmo do nascimento e perdura por toda a
existência do sujeito. Por ser um trabalho discursivo, implica na articulação de língua,
linguagem, história e ideologia, assim, o corpo torna-se efeito de linguagem.

O corpo é a materialidade do sujeito apropriada pelo Estado, remarcado pelas


instâncias ideológicas e enformado por uma dialética política [...] Todos os processos
de assujeitamento da carne em corpo-discurso e a necessária ereção do sujeito, são
desdobramentos da materialidade ideológica, e precisamente por isso não se pode
considerar o sujeito como uma substância – podendo se incorrer no erro de interpretá-
lo como uma essência. Pode-se, assim, dizer que o sujeito é uma coagulação da
ideologia, cujo cerne é linguístico-histórico-simbólico, ou seja, discursivo (SOUZA,
2010, p. 1).

Ao pensar a experiência de mulheres cis, o discurso acerca da corporalidade


toma rumos ainda mais violentos, uma vez que se fundamentam, majoritariamente, em
sua corporeidade, “o corpo parece a âncora da mulher no mundo, sua razão de ser,
para si mesma e para o outro, para o desejo do outro” (NATANSHON, 2005, p. 288).

- 256 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Tendo isso em vista, ao refletir sobre o corpo que menstrua, lida-se com um
processo que é natural, biológico e também periódico, trata-se de algo, quase sempre
– salvo alterações hormonais e anatômicas –, inerente ao corpo e que, por tal
características, deveria ser naturalizado. Contudo, o pensamento acerca desse
fenômeno aparece juntamente ao silenciamento do mesmo, por mais que a abertura
dos tempos atuais seja maior do que antes, ainda não é possível falar em naturalização,
uma vez que o ciclo menstrual apresenta multidimensões e ocorre a partir de uma série
de influências recíprocas que não são só biológicas ou psicológicas, mas também
sociais e culturais

Como o corpo é o primeiro lugar da inscrição, a sociedade sempre leu, encarou a


mulher a partir de seu corpo e de suas produções, fechando-a na reprodução e na
afetividade. A natureza – menstruação, gravidez, parto, etc., destinava as mulheres ao
silêncio e à obscuridade, impossibilitando-as de outras formas de criação (COLLING,
2014, p. 27).

A constante exposição das mulheres a normas reguladoras de seu corpo, tanto


no âmbito estético quanto no da saúde e, aqui, faz-se um recorte para a questão
menstrual, cria um compilado de modos de agir e pensar, de forma a influir na própria
experiência pessoal com o ciclo. Por se tratar de um processo fisiológico caracterizado
descamação das paredes uterinas, as diversas simbologias atribuídas ao sangue vêm à
tona, pois ele “tem para todas as culturas evocações emocionais, simbologias, rituais,
que oscilam entre a vida e a morte; associando sua abundância à vida, à saúde e sua
perda ao desaparecimento, enfermidade e morte” (HERMOSA; MEJIA, 2015, p.14.
Nossa tradução).
Nessa toada, a veiculação de discursos que colocam esse sangue como grotesco
e repugnante resulta em um desprezo que atua tanto no pessoal quanto no social; em
âmbito pessoal, o sujeito que menstrua pode rejeitar esse processo em detrimento de
seu acolhimento, não entendendo o sangue como parte de si; em âmbito social, vê-se
a rejeição a partir do asco e da alegação de questões estéticas.
As expressões criadas como sinônimos do termo “menstruação” atuam no
sentido de ratificar a linguagem como materialização de processos ideológicos, de
forma a demonstrar o tabu ainda vigente. Dessa forma, é recorrente o uso de
expressões como: “pingadeira”, “regras”, “sinal vermelho”, “o chico”, “naqueles dias”,
“período”, “embaraço” e tantas outras que corroboram para a ocultação do termo e
não abertura do tema.
O legado e a manutenção das práticas ideológicas características de uma cultura
androcêntrica em que “nós” é masculino e mulheres tentam desenvolver-se à sua
margem atuam no sentido de silenciar e reduzir, senão extinguir, o espaço do feminino.
Ao longo da história, ter homens como porta-vozes somente reforçou a cultura do
patriarcado e invisibilizou questões relativas às mulheres. Logo, o legado dessa

- 257 -
Eixo 14
Linguagem e significação

hierarquia de negação faz com que as experiências do feminino assumam valores


distintos e estejam relegadas aos ditames do masculino.

Análise do

Inicialmente, é interessante refletir acerca do nome adotado pela marca de


absorventes, em que se pode entender o advérbio “Sempre” como indicador da ideia
de continuidade, uma vez que se lida com um ciclo, e o adjetivo “Livre” como
eminência da liberdade em relação ao momento do ciclo em que há sangue, isto é,
liberdade em relação à menstruação, tendo o absorvente como um possibilitador do
conforto. Contudo, é possível apreender um efeito de sentido ainda mais profundo,
que atua no sentido contrário da liberdade: o aprisionamento do corpo que menstrua,
uma vez que esse evento deve ocorrer de forma discreta e imperceptível aos olhos
externos.
Uma das justificativas para tal máxima se encontra do discurso do belo e de
ideal estético tão frequentemente atrelados/impostos ao feminino e enraizados no
imaginário coletivo, o que resulta na rejeição ferrenha de fatores que não são tomados
pelo social como agradáveis esteticamente.
Ademais, uma raiz mais distante que atua como interdiscurso remete ao
cristianismo que, mesmo sendo originado no século I, ainda é pedra fundamental em
grande parte das FDs e práticas ideológicas da sociedade ocidental. Em Levítico15:19-
20, livro pertencente à Bíblia, lê-se a retificação do sangue como impureza, de forma
que até aqueles que tivessem contato com a mulher ficariam impuros:

Quando uma Mulher tiver fluxo de sangue que sai do corpo, a impureza da sua
menstruação durará sete dias, e quem nela tocar ficará impuro até a tarde, tudo sobre
o que ela se deitar durante a sua menstruação ficará impuro, e tudo sobre o que ela se
sentar ficará impuro. (Lv 12, 19.20)

Antes do advento da tradição judaico-cristã, as sociedades viveram sob o


legado da cultura matriarcal, na qual o governo do universo se dava sob o signo do
feminino, pela figura de Pachamama, a Grande Mãe. Contudo, o mito da criação da
mulher pela costela de Adão subverte os valores anteriores, colocando o homem no
centro das relações e, consequentemente, a mulher como submissa:

À mulher ele [Deus] disse:


“Farei mais intensas as dores de sua gravidez,
e com dor você dará à luz.
Seu desejo será para seu marido,
e ele a dominará” (Gn. 3,16).

- 258 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Contudo, a questão da submissão se desdobra também na dominação, pois se


perde espaço, tanto no plano físico quanto simbólico, e espaço significa um lugar a ser
ocupado, uma possibilidade de poder. A impureza do sangue impossibilitou as
mulheres de adentrarem as sinagogas no período menstrual e, atualmente, ainda se
desdobra na impossibilidade de uma plena naturalização da menstruação e da ocupação
de um lugar caso esse sangue venha à tona. Como pontua Orlandi “o corpo do sujeito
está atado ao corpo da cidade, ao corpo social. E isto é constitutivo, é parte de seu
processo de significação” (ORLANDI, 2017, p. 86).
A reflexão de Orlandi permite compreender uma organização política acerca
das possibilidades sujeito-espaço, pois a significação do primeiro está diretamente
atrelada aos espaços que pode ou não ocupar, a depender de sua posição. Isto é,
aplicando tal reflexão à publicidade exposta, o corpo que apresenta a mancha de sangue
não será bem recebido ou acolhido no ambiente profissional, bem como nos demais.
Dessa forma, vê-se o articular dos dispositivos de controle que, por meio de
uma ideologia predominantemente machista, atuam sob esse corpo que menstrua de
forma a limitar a naturalização desse evento e também seus movimentos. Assim, a
propagação dos discursos acerca desse corpo não atua somente no sujeito que o
observa, mas atinge a experiência pessoal do sujeito que vivencia a menstruação, pois
este internaliza as limitações impostas de forma que elas regulam sua forma de agir e
pensar.

Imagem 1: Sempre Livre #SEMPREJUNTAS


Fonte: Sempre Livre (2010)

Pertencente à campanha #SEMPREJUNTAS, este é um recorte de uma das


cenas do comercial, que se desenvolve por meio do seguinte roteiro, narrado por
diferentes mulheres:

Todo mês é o mesmo desconforto... não é só menstruação, é ter que esconder meu
absorvente, é ter que faltar na aula, é ter que dizer que eu tô bem, quando eu não tô,

- 259 -
Eixo 14
Linguagem e significação

é inacreditável, a gente precisa se sentir confortável com a nossa menstruação, e


sempre livre está com a gente nessa. Sempre Livre se adapta ao nosso corpo e deixa a
gente super tranquila. Viu?! Sinta-se confortável em ser mulher, sinta-se confortável
com Sempre Livre. Sempre Livre, sempre juntas! (SEMPRELIVRE, 2010).

Aqui, é importante destacar o discurso presente na imagem, “Sinta-se


confortável em ser mulher, sinta-se confortável com Sempre Livre”, que desencadeia
alguns efeitos de sentido. Em primeira instância, apreende-se o desconforto presente
na condição de mulher, que pode ser interpretada em um sentido macro, isto é, viver
em uma sociedade machista em que mulheres são submetidas a situações de assédio,
violência, exclusão e privação. Ou no sentido micro, pensando o recorte da publicidade
referente à menstruação e a biopolítica exercida sobre tal.
Porém, a condição de mulher também é algo a ser discutido, pois, na
publicidade, subentende-se a condição de mulher como determinante pelo útero,
determinação situada de forma estritamente biológica e não social, o que recai em uma
perspectiva reducionista e transfóbica, uma vez que se desconsidera a condição de
mulher trans e a condição biológica de síndrome de Rokitansky (ausência de útero).
Uma distinção básica acerca de sexo e gênero é que o primeiro é determinado
pelo órgão genital, vem inscrito no corpo biológico, enquanto o gênero diz respeito
aos significados atribuídos socialmente às características físicas, modos de agir, pensar
e sentir, todos partes de construções histórico-culturais. Dessa forma, é a partir dessas
configurações psíquicas e sociais que se desenvolvem os papeis de gênero, tomados
como feminino e masculino em uma perspectiva binária. Tendo em vista tais
distinções, é importante delinear as determinantes da condição de mulher.
Em O Segundo Sexo, Beauvoir apresenta sua máxima “ninguém nasce mulher,
torna-se mulher”, ao afirmar isso, a autor vai de encontro ao pensamento determinista
característico do final do século 19, que justificava a inferiorização do feminino por
meio de fatores biológicos. Beauvoir, então, argumenta que o “ser mulher” está situado
em construções socio-culturais.
O título da obra logo explicita a condição à mulher imputada, a de coadjuvante,
relegada ao segundo plano, enquanto o homem seria o Sujeito, a mulher seria o Outro.
A forma do humano e do sujeito exercendo função social (ser produtivo) seria uma
forma masculina, enquanto “A mulher aparece como o negativo, de modo que toda
determinação lhe é imputada como limitação, sem reciprocidade” (BEAUVOIR, 1970,
p.9), isto é, o segundo sexo.
A autora coloca o corpo da mulher como o elemento fundante de sua situação
no social, ele seria o possibilitador da relação entre sua presença no mundo e sua
vivência subjetiva, contudo, “Êle só tem realidade vivida enquanto assumido pela
consciência através das ações e no seio de uma sociedade” (BEAUVOIR, 1970, p. 57).
Dessa forma, a posição de Outro se relaciona diretamente ao contexto
masculino em que esse corpo está situado, trata-se de uma resultante das construções
externas acerca do corpo, mas também de uma subjetividade que se encontra

- 260 -
Eixo 14
Linguagem e significação

encarnada. Situado na sociedade que o constrói, são os costumes e modo de ser que
agem sobre ele:

[…] os indivíduos nunca são abandonados à sua natureza; obedecem a essa segunda
natureza que é o costume e na qual se refletem os desejos e os temores que traduzem
sua atitude ontológica. Não é enquanto corpo, é enquanto corpos submetidos a tabus,
a leis, 56 que o sujeito toma consciência de si mesmo e se realiza: é em nome de certos
valores que êle se valoriza. E, diga-se mais uma vez, não é a fisiologia que pode criar
valores (BEAUVOIR, 1970, p. 56-57).

Logo, este corpo seria sua materialidade que o amarra à sua consciência, mas
seria também a amarração das significações a ele imputadas, que interferem
diretamente no âmbito pessoal, em seu modo de se enxergar, posicionar-se e
relacionar-se consigo mesmo. À vista disso, a relação entre as vivências pessoais e as
vivências externas são possibilitadas pela via do corpo.
Em uma outra perspectiva, Judith Butler, em Problemas de gênero: feminismo e
subversão da identidade, lança um olhar mais crítico ao pensamento de Beauvoir, pois a
autora amplia a perspectiva crítica acerca da formação cultural do que é próprio de
cada gênero e o próprio binário de sexo. Por conseguinte, até mesmo a leitura de um
corpo como “naturalmente” feminino se enquadraria, também, em uma construção
discursiva e, portanto, cultural. Butler ressalta que mesmo em termos de naturalidade
corpórea, existem construções históricas que, no âmbito do discurso da ciência,
respondem aos interesses políticos.

O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado
num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o
aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos.
Resulta daí que o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele
também é o meio discursivo/cultural pelo qual “a natureza sexuada” ou “um sexo
natural” é produzido e estabelecido como “pré-discursivo”, anterior à cultura, uma
superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura (BUTLER, 2020, p. 27).

Tendo isso em vista, a autora defende que não seria viável reduzir as categorias
de gênero de forma fixa, pois o gênero não seria algo fechado em si, mas uma categoria
variável e fluida. Bem como o sujeito, eles não seriam preexistentes, mas o molde da
identidade de gênero estaria em uma constante construção estratégica por parte dos
processos regulatórios, a fim de atender às imposições culturais. Dito de outra forma,
Butler postula o gênero como performativo, já que é a repetição de sua performance
que constrói a identidade que a ele é sugestiva como natural.

Os domínios da “representação” política e linguística estabelecem a priori o critério


segundo o qual os próprios sujeitos são formados, com o resultado de a representação
só se estender ao que pode ser reconhecido como sujeito. Em outras palavras, as

- 261 -
Eixo 14
Linguagem e significação

qualificações do ser sujeito têm que ser atendidas para que a representação possa ser
expandida (BUTLER, 2020, p. 18).

Dessa forma, as ações e gestos que o corpo produz apontam uma identidade
que é inata, porém, a linguagem dos corpos atua no sentido de produzir e reproduzir
comandos sociais. Disso decorre a denominação de atos performativos, pois não se
trata de uma postura inerente, antes, a identidade exteriorizada é produto cultural e
discursivo das performances referentes ao gênero que esses corpos produzem.
Consequentemente, a autora depreende que os moldes criados por meio do gênero
são, na realidade, ilusões usadas para o controle e organização social, que aparentam
um caráter ingênito a fim de mascarar o ato de criação política.
Logo, pensar o gênero é pensar o controle biopolítico sob ele exercido, a
reflexão acerca da condição de mulher vem carregada das performances de
feminilidade impostas a essa categoria e o corpo, também controlado por tais poderes,
enquadra-se nessa categoria e recebe rótulos acerca de uma anatomia feminina ou não
por discursos também construídos anteriormente.

Considerações

Na perspectiva teórica em questão, não é possível conceber a neutralidade de


uma enunciação, pois esta se constitui em um horizonte valorativo específico e
discursivamente marcado. Bem como define Orlandi (2020), o sujeito é um lugar de
significação historicamente construído, isto é, para a Análise do Discurso, a língua deve
ser concebida em seu processo histórico-social, no qual o sujeito e os sentidos
compõem partes desse processo. Consequentemente, o sujeito está “inserido em um
processo histórico que lhe permite determinadas inserções e não outras, ocupando um
lugar social a partir do qual enuncia” (MUSSALIM, 2003, p. 110).
A análise do discurso publicitário considera a sua inscrição em uma
determinada formação discursiva que é, inevitavelmente, definida por meio de uma
formação ideológica dada, isto é, “a partir de uma posição dada em uma conjuntura
sócio histórica que determina o que pode e deve ser dito” (ORLANDI, 2020, p. 42).
Desse modo, os efeitos de sentido ali presentes são resultantes das “posições
ideológicas colocadas em jogo no processo sócio histórico em que as palavras são
produzidas”.
Na publicidade, manifestam-se as posições ideológicas marcadas pela posição
entre aquele que efetua o dizer, o sujeito-locutor, que é a empresa que anuncia, e o
sujeito-interlocutor, o público para o qual a mensagem se direciona. Essa relação só se
estabelece por haver uma representação imaginária elaborada anteriormente acerca do
outro.
Assim, pela marca Sempre Livre ter como produto os absorventes e pelas
construções discursivas utilizadas nas publicidades, apreende-se que os discursos se

- 262 -
Eixo 14
Linguagem e significação

direcionam ao sujeito mulher que se identifica com tal condição em gênero e sexo. E
pensar esse sujeito e sua condição enquanto ser que menstrua é pensar também as
situações às quais o corpo é submetido, seja em âmbito biológico, seja no social.
Todas as publicidades evidenciaram o sentido de monitoramento e controle
dos corpos, uma vez que apontam o desconforto para falar sobre e viver a
menstruação, fator resultante de uma cultura fundamentalmente machista e das
práticas biopolíticas que regulam esses corpos e influem diretamente nas FIs do outro
e do sujeito mulher cis, ao ponto de interferirem na relação dessas mulheres com seus
corpos e experiências menstruais.

Referências

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução de Sérgio Milliet. v. 1, 4. ed.


São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970. Disponível em:
http://www.mediafire.com/file/jwnvr06bi488a4u/BEAUVOIR%252C_Simone_de.
_O_Segundo_Sexo%252C_VOL_I_-_Fatos_e_MItos.pdf/file. Acesso em: 13 mar.
2021.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução de Sérgio Milliet. v. 2, 2. ed.


São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1980. Disponível em:
http://www.mediafire.com/file/hnkikp6l50uopmk/BEAUVOIR%252C_Simone_d
e._O_Segundo_Sexo%252C_VOL_II_-_Experi%25C3%25AAncia_Vivida.pdf/file.
Acesso em: 13 mar. 2021.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução Maria Helena Kühner. 2.


ed. Rio de. Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. Disponível em:
https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/16/o/BOURDIEU__Pierre._A_domina%C
3%A7%C3%A3o_masculina.pdf?1332946646. Acesso em: 13 mar. 2021.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 20.
ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2020.

COLLING, Ana Maria. Tempos diferentes, discursos iguais: a construção do


corpo feminino na história. Dourados, MS: UFGD, 2014. Disponível em:
https://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/bitstream/prefix/2648/1/tempos-diferentes-
discursos-iguais-a-construcao-historica-do-corpo-feminino-ana-maria-colling-1.pdf.
Acesso em: 3 jul. 2021.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de


Janeiro: Edições Graal, 1988. p. 126-140.

HASHIGUTI, Simone Tiemi. O corpo como materialidade do discurso. In:


INDURSKY, Freda; FERREIRA, Maria Cristina Leandro; MITTMANN, Solange

- 263 -
Eixo 14
Linguagem e significação

(org.). O discurso na contemporaneidade: materialidades e fronteiras. São Carlos:


Clara Luz, 2009. p. 161-168.

HERMOSA-BOTELLO, Alicia; MEJIA-CASADO, Rosa. Miedos y temores


relacionados com la menstruación: estudio cualitativo desde la perspectiva de género.
2015. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 24, n. 1, p. 13-21,
jan./mar. 2015. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/tce/a/XrGBcMhS3pntn74tLvySPqd/?format=pdf&lang=e
s. Acesso em: 10 mar. de 2021.

MUSSALIM, Fernanda; Bentes, Anna Christina. Introdução à linguística:


domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2003.

NATANSOHN, Graciela. O corpo feminino como objeto médico e “mediático”.


Estudos Feministas, Florianópolis, v. 13, n. 2, p. 287-304, maio-ago. 2005.
Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/381/38113204.pdf. Acesso em: 5 jul.
2021.

ORLANDI, Eni Puccineli. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 13.


ed. Campinas, SP: Pontes, 2020.

ORLANDI, Eni Puccineli. Discurso em Análise: sujeito, sentido, ideologia. 3. ed.


Campinas, SP: Pontes, 2017.

SARDENBERG, Cecilia. De sangrias, tabus e poderes: a menstruação numa


perspectiva sócio-antropológica. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 2, n. 2, p.
314-344, 1994. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16215/19709. Acesso em: 10
mar. 2021.

SOUZA, Levi Leonel de. O discurso encarnado: ou a passagem da carne ao


corpodiscurso. Entremeios: revista de estudos do discurso. v. 1, n. 1, p. 1-9, jul.
2010. Disponível em: http://www.entremeios.inf.br/published/7.pdf. Acesso em: 4
jul. 2021.

TAVARES, Fred. Publicidade e consumo: a perspectiva discursiva. Comum, Rio de


Janeiro, v. 11, n. 26, p. 117-144, 2006. Disponível em:
http://aluno.facha.edu.br/pdf/Comum26.pdf#page=118. Acesso em: 11 mar. 2021.

- 264 -
Eixo 14
Linguagem e significação

AS BALIZAS DA COSMOLOGIA KAINGANG E O


FUNCIONAMENTO DA GRAMÁTICA: CONCORDÂNCIAS
VÁRIAS

Marcelo Silveira1
Juliana Machado de Oliveira2
Lucenilda Maria Rodrigues3

Resumo: Os sistemas de classificação nominal são complexos e bastante variados.


Esse processo de gramaticalização tem sido observado e é a base dos estudos
apresentados neste artigo em relação à língua Kaingang da Terra Indígena
Apucaraninha (Tamarana – PR). Essa língua da família Jê meridional apresenta
classificadores nominais relacionados ao sexo (masculino, feminino, neutro) e ao
gênero natural (macho e fêmea). Há ainda uma categoria classificatória da cosmologia
dessa cultura, que é bipartida e complementar entre si, denominada Kamẽ e Kanhru,
relacionados a características físicas dos entes (comprido, redondo, baixo, etc.). Em
sua cosmovisão, animais, plantas e pessoas são classificados em um desses campos.
Nosso objetivo é descrever a concordância em Kaingang, bem como influência desse
fator cultural nessa concordância. Este trabalho colabora com dados para a elaboração
de uma gramática pedagógica da língua Kaingang.

Palavras-chave. Concordância. Kaingang. Cosmologia. Kamẽ. Kanhru.

Introdução

Pesquisar a concordância na língua Kaingang se pôs a nós mais como uma


necessidade do que uma paixão. A necessidade surge para cumprir o objetivo principal
do projeto de pesquisa “Gramática, Bilinguismo e Multietnia”, que é a elaboração de
uma gramática pedagógica da língua Kaingang, de sua variante falada na Terra Indígena
(T.I.) Apucaraninha, localizada no município de Tamarana, no norte do Paraná. Por
isso, o objetivo deste artigo é descrever a concordância em Kaingang, bem como a
influência da cosmologia nessa concordância
Estudar essa língua indígena exclusivamente brasileira se tornou, logo de início,
intrigante (e não deixou de ser com o passar do tempo); o estudo da concordância foi
ganhando contornos desafiadores, visto que, inevitavelmente comparando-a com a
língua Portuguesa, começamos a encontrar maneiras de concordar bastante diferentes
do que o nosso conhecimento alcançava. À medida que as incongruências (em nosso
pensamento de base europeia) se apresentavam, mais o desafio nos impulsionava a

1 Docente da Universidade Estadual de Londrina. Contato: celosilveira@uel.br


2 Graduanda do Curso de Letras Português. Contato: j.machadoliveira@uel.br
3 Graduanda do Curso de Letras Português. Contato: lucenilda.maria@uel.br

- 265 -
Eixo 14
Linguagem e significação

buscar as respostas com nossa colaboradora e participante desta pesquisa, a Damaris


Kanĩnsãnh Felisbino, professora bilíngue, mestranda em Estudos da Linguagem e
pesquisadora do Kaingang, sua língua-mãe.
Seguindo o objetivo de abordagem da questão da concordância, esta pesquisa
se justifica pelo número limitado de estudos feitos especificamente sobre o assunto na
língua Kaingang, bem como por apresentarmos aqui dados novos, que demandaram
ampliar a visão sobre o tema.
O percurso metodológico deste trabalho foi composto por pesquisa
bibliográfica em artigos, dissertações e teses que abordam a concordância e o gênero
na língua Kaingang, bem como em obras que tratam teoricamente do assunto, a fim
podermos analisar o nosso corpus, composto de cinco fontes: (i) gravações de fala
espontânea em que os participantes contam uma história marcante de sua vida; (ii)
orações que compõem diálogos que aconteceram via aplicativo multiplataforma de
mensagens instantâneas e chamadas de voz (WhatsApp); (iii) tradução da obra Brilhos
na Floresta (ISHIKAWA et al., 2019, 2020); (iv) trabalhos acadêmicos que mencionam
a questão da concordância com exemplos de falantes da T.I. Apucaraninha; (v)
elicitações respondidas por Felisbino.

1 Concordâncias

A afirmação de Corbett (2006, p. 1) de que a “concordância é um fenômeno


amplo e variado”4. Isso nos impulsionou a tratar dos tipos de concordância em
Kaingang, para então apresentar o que nos apareceu como surpresa nos estudos que
temos empreendido, que é concordância de gênero, mais especificamente. Corbett nos
ensina que há línguas no mundo em que a concordância é bastante presente, ao passo
que há outras em que esse processo está ausente. O Kaingang se situa no meio do
caminho desse continuum.
Explicações sucintas de Bussmann sobra a concordância são expostas neste
momento: define como a “Correspondência entre dois ou mais elementos da frase em
relação às suas categorias morfossintáticas (caso, pessoa, número, gênero)”;
aprendemos ainda que a “concordância gramatical ocorre dentro de uma frase ou de
seus constituintes” e que a “concordância anafórica se estende além do limite da frase
e indica, por exemplo, a correferência entre um pronome e seu precedente”
(BUSSMANN, 2006, s.v. agreement). A concordância anafórica não faz parte deste
trabalho.
No âmbito da concordância gramatical, Bussmann (2006) lista a concordância
de caso, de número e de gênero, marcando relações e funções sintáticas, que se dão
nos seguintes domínios: entre sintagma nominal e sujeito, entre objeto e verbo
(animacidade, definição e relação temática com o complemento verbal), na

4 Todas as traduções são nossas.

- 266 -
Eixo 14
Linguagem e significação

concordância verbal (determinada principalmente pela função sintática), na


concordância nominal (afetando os elementos que acompanham o substantivo, como
determinantes, atributos adjetivos e adposições), em concordância predicativa (em que
sujeito e predicado concordam em gênero, número ou caso).
A definição de Bussmann apresenta o modo como se vê, comumente, a
definição: como uma correlação. Contudo, consultando a colaboradora bilíngue,
notamos em praticamente todas as suas respostas a ideia do controlador, ou seja, “esta
palavra só está assim porque aquela outra significa tal coisa”. Diante dessas recorrentes falas,
entendemos mais apropriado o conceito de concordância que se utiliza do conceito de
controlador e de alvo, em detrimento de correspondência, que sugere uma relação
bilateral, de pesos iguais entre os elementos. Sendo assim, este artigo adota a definição
de Ackema et al. (2006, p. 1), que conceitua concordância como “o fenômeno linguístico
em que características particulares de um elemento em uma cláusula (o ‘controlador’)
determinam a forma morfológica de outro elemento (o ‘alvo’)”.
Com base em nosso objetivo, serve-nos melhor a mesma ideia desenvolvida
por Corbett (2006), que analisa com profundidade o conceito de controlador e alvo e nos
dá mais elementos para a descrição do tema nas orações da língua Kaingang do nosso
corpus. Assim, o autor, seguindo a ideia de haver um controlador e um alvo, diz que a
concordância, em uma língua, acontece quando a informação gramatical aparece em
uma palavra (alvo) que não é a fonte dessa informação (controlador). Podemos
exemplificar com a oração Eles chegaram cedo, em que a forma chegaram indica a
quantidade de pessoas que chegaram (mais do que um, portanto plural); chegaram só
está no plural porque o sujeito da oração, eles, indica pluralidade. E não poderia ser o
contrário? Não, visto que chegaram não pressupõe o sujeito eles, já que outro pronome
pessoal pode concordar com essa conjugação verbal: vocês. Assim, eles (e também vocês
ou elas) é o controlador do alvo, que é o verbo na forma chegaram (CORBETT, 2006).
Corbett se apoia em Steele quando diz que “O termo concordância comumente
se refere a alguma covariância sistemática entre uma propriedade semântica ou formal
de um elemento e uma propriedade formal de outro” (STEELE, 1978, p. 610 apud
CORBETT, 2006, p. 4). A covariância, para Corbett, é a noção essencial, pois não
basta apenas que dois termos compartilhem propriedades entre si ou que apresentem
uma simples correspondência; é preciso que haja sistematicidade no processo, ou seja,
um elemento varia conforme a variação do outro.
Assim, a teoria está assentada nos seguintes elementos, a saber: (i) o controlador
(geralmente o sintagma nominal), também chamado de gatilho ou fonte; (ii) o alvo, que é
o elemento cuja forma é determinada pela concordância; ele é o locus da concordância;
(iii) o ambiente sintático em que a concordância acontece, chamado de domínio da
concordância; (iv) o aspecto em que a concordância acontece, chamado de características
ou categoria da concordância. Pode haver outros fatores que afetam a concordância,
mas que não se refletem diretamente como características, chamado de condições de
concordância ou fator condicionante. Neste trabalho, o foco ficou somente no controlador
e no alvo.

- 267 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Corbett nos explica “Assim, dentro de um domínio específico, um alvo


concorda com um controlador em relação às especificações de seus recursos (ou seja,
os recursos e seus valores); isso pode depender de alguma outra condição ser atendida”
(CORBETT, 2006, p. 4-5). As características envolvidas na concordância são voltadas
ao gênero, ao número e à pessoa, com relevância semântica direta e em vários graus;
“se houver vários alvos para um controlador de concordância, eles compartilharão, na
instância canônica, os mesmos valores (quando perceberem os mesmos recursos)”
(CORBETT, 2006, p. 7). Daqui parte a constatação de que a concordância (ao menos
a canônica) é mais redundante do que informativa. Se a situação não apresenta
controlador, a única informação sobre o controlador é a fornecida pelo alvo; sendo assim,
essa situação não é canônica (p. 21).

2 A questão do Gênero

Sobre a concordância de gênero, Kramer (2015, p. 1) considera ser este


normalmente definido como “a categorização de substantivos em duas ou mais classes,
refletindo-se na morfologia de concordância sobre determinantes, adjetivos, verbos e
outras categorias sintáticas”. Trata-se de uma forma de descrever o comportamento
subcategorial dos substantivos. É o que logo vem à mente quando se pensa em gênero:
masculino (bonito) e feminino (bonita) (e, quem sabe, neutro em alguma língua que se
estuda na escola), ou seja, os elementos que têm, de certa forma, relação com o sexo
biológico. O termo gênero, porém, se origina do latim genus, e significa tipo, classe, e não
sexo biológico. Dentre os gêneros, os mais recorrentes são o sexo biológico, a
animacidade, a humanidade, formas geométricas, para citar alguns deles.
Dessa definição de Kramer, podemos inferir que (a) deve haver pelo menos
dois gêneros (não existe número máximo), (b) eles são restritos ao elemento cujo papel
seja de substantivo e (c) há padrões de concordância entre eles, cruciais para identificar
um sistema de gênero e diferenciar os gêneros.
Kramer divide os gêneros em dois tipos: o “gênero natural (baseado em alguma
propriedade semântica, por exemplo, masculino / feminino, animado / inanimado)” e
o que chama de “gênero arbitrário, ou seja, gênero atribuído sem referência a qualquer
semântica propriedade” (por exemplo, manhã, que é feminino em português, masculino
em francês e neutro em russo) (KRAMER, 2015, p. 2); trata-se, então, das
propriedades naturais/semânticas, de um lado, e o valor que lhe é dado
arbitrariamente, de outro. Segundo o autor, classificadores e declinações não são
gêneros. Os classificadores são “morfossintaticamente independentes do substantivo
e frequentemente invariantes, […] são elementos que servem para colocar substantivos
em categorias semanticamente baseadas, muitas vezes dependendo da animacidade,
forma ou qualquer número de distinções semânticas” (KRAMER, 2015, p. 2).
D’Angelis (2002, p. 7) afirmou que não há referência para os classificadores
“fora do sintagma nominal no qual eles coocorrem com o nome especificado (ou onde,

- 268 -
Eixo 14
Linguagem e significação

algumas vezes, ocorrem no lugar do nome especificado)”; com relação à marcação de


classe nominal, por sua vez, ela “implica a existência de um sistema de concordância
gramatical (com outros termos)”. Assim, entende-se que, para ser gênero, é preciso
haver concordância. O que há, então, em Kaingang são gêneros.
Sobre as declinações e o sistema pronominal, Kramer (2015, p. 68) afirma que
as primeiras (que não há em Kaingang) não se classificam como concordância, visto
que “declinações diferentes não acionam padrões de concordância diferentes”, o que,
por si só, não as faz ser consideradas como tal. Isso não exclui a possibilidade de haver
relação entre as declinações e o sistema de gêneros da língua. Sobre a concordância
pronominal, assumimos aqui que ela acontecerá sempre que uma língua tiver um
sistema pronominal, desde que haja, claro, covariação de traços entre dois elementos.
Dado o panorama teórico sobre o tema gramatical abordado, passaremos a
discutir sobre a cosmologia Kaingang, base para a concordância de gênero nessa língua.

3 Cosmologia Kaingang

Há várias versões da mitologia para a origem do povo Kaingang. É comum, na


maioria delas, a presença de dois cunhados (às vezes, dois irmãos): Kamẽ e Kanhru
(VEIGA, 2004; MITOS E HISTÓRIAS…, 2013). Segundo Veiga (2004, p. 68), “Os
Kamẽ estão relacionados ao sol, à persistência, à permanência, à dureza e aos lugares
baixos e a objetos longos e ao mundo dos mortos. Os Kaĩru estão relacionados à lua,
ao orvalho, à umidade, à mudança, à agilidade, a lugares altos e a objetos baixos e
redondos e ao mundo dos vivos” (grifos da autora).
Assim, os Kamẽ, por estarem relacionados a objetos longos, aos raios do sol,
etc., usam marcas tribais compostas por traços e por riscos (rá téj); os Kanhru, por sua
vez, pela relação com a lua, com objetos baixos e redondos e usam marcas tribais
compostas por círculos (rá ror). Trata-se de metades exogâmicas complementares. A
oposição ror x téj é importantíssima como categoria classificatória na cosmovisão
Kaingang, associada às metades patrilineares Kanhru e Kamẽ, já mencionadas. “O
pertencimento a cada um dos subgrupos e metades é patrilinear” (VEIGA, 2004, p.
63), ou seja, filhos e filhas herdam a marca do pai e só podem se casar com pessoas da
marca oposta.5
Apesar de haver versões do mito de origem que apontam Kamẽ e Kanhru
como sendo irmãos (de mesma marca clânica, portanto), sempre, nesses casos, houve
restabelecimento da divisão em metades, voltando a haver a diferença que se
complementa e que influencia o funcionamento da gramática.
Passemos aos exemplos de concordância na língua Kaingang.

5 Aos poucos os casamentos, no Apucaraninha, têm acontecido também entre casais da


mesma metade tribal.

- 269 -
Eixo 14
Linguagem e significação

4 Concordâncias várias

Este tópico será dividido em concordância verbal, nominal, cosmológica no


sintagma posposicional, cosmológica em orações locativas e aspectual.

4.1 Concordância verbal

Iniciemos nossa trajetória pela concordância de número.


O quadro 1 expõe a concordância de número em Kaingang que, como em
português, há oito pronomes pessoais: dois pares para indicar o masculino e o feminino
somente para as 3ªs pessoas do singular e do plural, que são apresentados neste
primeiro quadro.

singular plural
1ª pessoa inh ẽg
2ª pessoa à ãjag
3ª pessoa masculina ti ag
3ª pessoa feminina fi fag
Casal fag
Quadro 1: Pronomes pessoais e possessivos em Kaingang
Fonte: o autor.

Os pronomes pessoais se realizam também como pronomes possessivos,


diferenciados pela sintaxe: o pronome possessivo vindo acompanhado, à sua direita,
pelo elemento possuído. Como sujeito, por sua vez, o pronome normalmente está
depois do verbo, no final ou quase no final da oração; por vezes, o sujeito pronominal
está no início da oração, em orações com benefactivo, com circunstância ou nos casos
em que está acompanhado de marcador de sujeito.
Os pronomes pessoais, porém, nem sempre são controladores dos verbos, pois
os verbos podem ser alvo de seu complemento. Sobre o assunto, D’Angelis (2004), em
artigo intitulado “Concordância verbal de número em Kaingáng: algumas pistas”,
afirma que as conjugações verbais não são um caso de concordância, mas uma questão
de ação simples, individual para verbos no “singular” e ação múltipla, plural, repetitiva.
Antes de discutir essa questão, cabe uma explicação sobre as orações
trabalhadas por D’Angelis, advindas de falantes Kaingang do Rio Grande do Sul e que
foram submetidas à consideração de Felisbino6, que fez as devidas adaptações ao
Kaingang falado no Norte do Paraná, na T.I. Apucaraninha: a) os nominativos tỹ e tag
são usados sob a forma vỹ; b) os usos da 1ª pessoa do singular ixóg (composição de
inh+tóg; isóg na grafia do Paraná) são realizados por inh; c) a negação pi é realizada como

6 Colaboradora Kaingang desta pesquisa

- 270 -
Eixo 14
Linguagem e significação

pijé; d) o verbo jãn (comer), que apresentou diferença no singular e no plural, é realizado
no Apucaraninha por jẽ e jẽgjẽ, respectivamente; e) da mesma forma que em “d”, o
substantivo vãfy (balaio, artesanato), usado tanto no singular quanto no plural no RS,
se realiza como vãfy e vãgfy, respectivamente, no PR. Os exemplos de 1 a 30, então, são
de D’Angelis, mas reescritos por Felisbino, conforme a variante usada em sua Terra
Indígena.
Estas duas últimas diferenças (itens d e e) são as únicas que interferem um
pouco nas considerações de D’Angelis (2002), apreciadas juntamente com os dados
adaptados à variante Kaingang da T.I. Apucaraninha. Sinalizamos que, para este
estudo, houve a trocado termo NOM (nominativo) por MS (marcador de sujeito), por
não estarmos tratando de sistema de alinhamento morfossintático no Kaingang;
mantivemos SG/PL indicando singular e plural junto aos verbos; os verbos
permanecem em negrito.

1) Kófa vỹ jun huri.7 2) Kófa ag vỹ junjun huri.


velho MS chegar.SG já velho MS.PL MS chegar.PL já
“O velho já chegou” “Os velhos já chegaram”

Em 1 e 2, temos orações intransitivas com sujeito no singular e plural, com


verbos respectivamente no singular e plural também. De acordo com Corbett (2006),
teríamos aqui um típico caso de um controlador (kófa e kófa ag) e o alvo (jun e junjun), o
verbo tendo sido reduplicado para indicar pluralidade na ação. Mesmo que não
tratemos o verbo junjun como plural, mas indicando ação plural, é certo que essa ação
se dá pela existência de um sujeito plural cada indivíduo realizando uma ação.
Em 3 e 4, trata-se de orações transitivas diretas com sujeitos no singular e
objetos no singular e no plural. Nestes exemplos, o verbo fica no singular quando o
objeto direto (OD) está no singular e fica no plural quando o OD está no plural. Os
controladores em 3 e 4 são inh e Kamẽ ag, e os alvos são rán e ránrán.

3) Kófa fi vỹ inh rán Kiki 4) Kófa fi vỹ Kamẽ ag ránrán Kiki


ki ki.
velho F MS 1SG marcar.SG Kiki velho F.SG MS Kamẽ M.PL marcar.PL
LOC Kiki LOC
“A velha me pintou no Kiki.” “A velha pintou os Kamé no Kiki”

Nas orações 5 e 6, os sujeitos (kasor e kasor ag) são controladores e o alvo são os
verbos; o verbo no plural deriva do singular pela composição com um termo prefixado:
ter (morrer.SG) e kãgter (morrer.PL)

7 Os negritos, nas orações, identificam os termos envolvidos na relação de concordância.

- 271 -
Eixo 14
Linguagem e significação

5) Kasor vỹ ter 6) Kasor ag vỹ kãgter.


cachorro MS morrer.SG cachorro M.PL MS morrer.PL
“O cachorro morreu” “Os cachorros morreram”

Em 7 e 8, D’Angelis (2002) afirma que a noção de concordância começa a se


desfazer, pelo fato de o verbo das orações aparecer no plural, mesmo sendo o único
plural marcado das orações.

7) Ka kym inh 8) Ka kykym inh.


pau cortar.SG 1SG pau cortar.PL 1SG
“Eu cortei o pau” “Eu cortei paus”

Entendemos, neste caso, que o controlador (ka), apesar de não ter marca
morfossintática de plural, traz consigo, pragmaticamente, a ideia de plural. O alvo, neste
caso, kym, realiza-se no plural com reduplicação parcial: kykym.

9) Kófa (ag) vỹ vã(g)fy (hyn)han tĩ 10) Kófa ag tóg vãgfy hynhan ja


velho (M.PL) MS balaio(s) fazer.PL nĩ.
HAB velho M.PL MS balaios fazer.PL
“O(s) velho(s) faz(em) balaio(s)” ASP ASP
“Os velhos fizeram o balaio”

As orações 9 e 10 de D’Angelis (2002) trouxeram sempre balaio no singular


(vãfy) mostrando que, assim como em 8, o plural do OD não precisa necessariamente
estar especificado para o verbo estar no plural. Pode ser uma forma de evitar a
redundância. No Apucaraninha, porém, quando a forma plural de balaio (vãgfy),
controlador, é apresentada, o verbo (alvo) se realiza no plural; se realiza, por sua vez, no
singular, quando o OD estiver no singular, não importando o número do sujeito da
oração.
Para finalizar a retomada da pesquisa de D’Angelis, trazemos exemplos como
3, 4, 7 e 8, porém com o sujeito controlando o verbo (que é o alvo) (orações 11 e 12).
11) Kófa pijé gojfa kron tĩ 12) Kófa ag pijé gojfa kronkron
velho NEG cachaça beber.SG tĩ.
HAB velho M.PL NEG cachaça beber.PL
“O velho não bebe cachaça.” HAB
“Os velhos não bebem cachaça”
A explicação de D’Angelis (2006, p. 78) para a diferença dessas 4 orações em
relação à 11 e 12 é que se trata de ação expressa no verbo que depende de “decisões
que são individuais, de cada um dos envolvidos”; trata-se de verbo que “expressa uma
ação que é experienciada individualmente”.
Finalizamos esta seção entendendo que os controladores, sejam sujeitos, sejam
objetos diretos com ou sem marcação morfológica, influenciam o alvo. Estes são os

- 272 -
Eixo 14
Linguagem e significação

verbos, os quais se realizam no singular ou no plural (ou em ações múltiplas),


reduplicados total ou parcialmente, derivados, outro léxico ou que tenham a mesma
forma que o singular.
Nos excertos de 1 a 12, vimos exemplos de concordância de número entre o
sujeito e o verbo ou entre o objeto direto e o verbo. Neles apareceram também
concordâncias de número e de gênero nos sintagmas nominais, tema da próxima seção.

4.2 Concordância nominal

D’Angelis (2002) colabora com seus ensinamentos acerca da concordância


nominal, em artigo intitulado “Gênero em Kaingang?” O quadro deste artigo afirma
que a forma [ŋgrɛ] (15, 17, 20, 22) significa órgão sexual masculino, então macho, usado
para animais e seres humanos em Terras Indígenas Kaingang do Rio Grande do Sul e
de Santa Catarina; da mesma forma, [ũnt tǝ] (16, 21) faz o mesmo papel, mas para
explicitar o sexo feminino. No Apucaraninha (3ª coluna), tais termos só aparecem nas
traduções para homem e mulher. Nos demais casos, os itens lexicais correspondentes às
3ªs pessoas acumulam as funções de indicar sexo e gênero masculino e feminino, bem
como o número, no Kaingang da T.I. Apucaraninha.

Tradução Xapecó, Nonoai, Inhacorá Apucaraninha


13. (um) veado macho kɛm̃ be ti kãme
14. veados machos kɛm ̃ be ɂag kãme ag
15. veado macho kɛm ̃ be ŋgrɛ kãme
16. veado fêmea kɛm ̃ be ũntɐt̃ ә kãme fi
17. (um) homem ũnŋgrɛ ũn gré
18. (uma) mulher ũntɐ̃tә fi ũn tỹtá fi (igual)
19. minha esposa iɟɲ pɾũ fi inh prũ fi (igual)
20. veados machos kɛm ̃ be ŋgrɛ ɂag kãme ag
21. veados fêmeas kɛm ̃ be ũntɐt̃ ә fag kãme fag
22. homens ũnŋgrɛ ɂag ũn gré ag (igual)
Quadro 2: Macho e fêmea, masculino e feminino, singular e plural no Kaingang de Xapecó
(SC) e Nonoai e Inhacorá (RS), comparado ao do Apucaraninha (PR).
Fonte: Baseado em D’Angelis (2002, p. 12).

Podemos notar que o termo ti (13) indica gênero masculino e número singular;
fi (13, 14), feminino singular; ag (14, 20, 22), masculino plural; fag (21), feminino plural.
Os sentidos são exatamente os mesmos dos pronomes pessoais de 3ª pessoa. Em 18,
20, 21 e 22, esses itens lexicais, que indicam os gêneros masculino e feminino (fi, ag,
fag), coexistem com itens lexicais que indicam o sexo (gré e ũn tỹtá). Assim, D’Angelis

- 273 -
Eixo 14
Linguagem e significação

conclui que a forma não feminina singular é marcada opcionalmente, enquanto a forma
masculina plural é obrigatoriamente marcada, bem como as formas femininas.
Esses mesmos dados, no Apucaraninha, se comportam de maneira diferente:
gré e ũn tỹtá carregam consigo o traço de humanidade; sendo assim, os animais só
carregam os termos gramaticais indicadores de gênero feminino singular, e masculino
e feminino plural. A forma opcional ti, em 13, não é mais usada na T.I. pesquisada.
Nas orações 1-20, vimos aparecer concordância de número e gênero masculino
e feminino nas variações da palavra velho, a saber: kófa (velho MS), kófa (M.PL), kófa
(F.SG), para completar as possibilidades, incluímos kófa (F.PL). Outra ocorrência
é kasor e kasor para cachorro e cachorros; assim, para o feminino, teríamos a inserção
de fi e fag na forma básica masculino singular (M.SG).
Outros exemplos de D’Angelis (2002) apresentam também invariância no
plural de substantivos inanimados em orações cujo elemento que concorda é apenas o
verbo.
Nas orações 23-26, a forma dos sujeitos, sejam eles singulares ou plurais, não
é alterada. O plural, então, como já dito, é somente informado pelo verbo,
provavelmente evitando redundância, visto que basta um plural (no verbo) para indicar
o plural do único argumento (no substantivo, mesmo que somente ideologicamente),
no contexto de uma oração monovalente.

23) Kukrũ vỹ góv 24) Kukrũ vỹ gógóv.


panela MS quebrar.SG panela MS quebrar.PL
“A panela quebrou” “As panelas quebraram”
25) Fágfy vỹ mur 26) Fágfy vỹ munmur
pinhão MS brotar.SG pinhão MS brotar.PL
“O pinhão já brotou” “Os pinhões já brotaram”

Em 27-30, duas orações trivalentes, o OD, inanimado, é pého (abóbora) e ele


também não varia morfologicamente em número; isso acontece novamente com o
verbo que no singular é nĩm e no plural é vin, reforçando a desnecessidade de
redundância para a clareza da oração e apontando para o não vínculo morfossintático
na concordância entre o sujeito e o verbo.

- 274 -
Eixo 14
Linguagem e significação

27) Inh mỹ fi tóg pého nĩm 28) Inh mỹ fi tóg pého


1SG.para 3SG MS abóbora vin
dar.SG 1SG.para 3SG MS abóbora
“Ela deu a abóbora para mim” dar.PL
“Ela deu as abóboras para mim”
29) Inh mỹ fag tóg pého pir 30) Inh mỹ fag tóg pého
nĩm vin
1SG.para 3PL MS abóbora um 1SG.para 3PL MS abóbora
dar.SG dar.PL
“Elas deram uma (única) abóbora “Elas deram as abóboras para
para mim” mim”

Um detalhe nestas quatro orações é que tóg é opcional no Apucaraninha e,


segundo Wiesemann (2011), marca o sujeito como agente da oração. Todos os vỹ
usados nas orações do Apucaraninha foram originalmente tỹ para os falantes do Rio
Grande do Sul.
Exemplificamos com os excertos 31 e 32 (dentre de muitos iguais que
encontramos em nosso corpus) como acontece o gênero masculino/feminino em seres
inanimados: os substantivos singulares não têm morfema indicador; os plurais são
acompanhados por ag (masculino plural). Todos os exemplos a partir do 31 fazem
parte do nosso corpus.

31) Kamrĩ ag peskisan fi 32) Sỹ peskisan ke vẽ livro ag


tĩ ki
cogumelo M.PL pesquisar 1SG+MS pesquisar FUT ASP livro
3F.SG HAB M.PL LOC
“Ela pesquisa cogumelos” “Tenho que pesquisar nos livros”

Nos nossos dados, não houve ocorrência de entes inanimados acompanhados


pelas formas femininas fi (singular) e fag (plural)
Vejamos agora análises referências à concordância envolvendo posposições.

4.3 Concordância cosmológica no sintagma posposicional locativo

Este tópico une três assuntos para dar sequência à descrição que vimos
fazendo: concordância, cosmologia e posposições locativas.
Sobre a concordância, notamos, nos exemplos apresentados nas seções
anteriores, que a relação entre controlador e alvo em Kaingang é assimétrica, visto que,
como diz Corbett (2006, p. 19-20), eles não partilham de características morfológicas

- 275 -
Eixo 14
Linguagem e significação

comuns. De qualquer forma, há uma relação entre eles, o que nos permite continuar
falando em concordância.
Sobre a cosmologia Kaingang, relembremos que ela envolve os personagens
Kamẽ e Kanhru e, consequentemente, as duas metades clânicas em tudo do mundo
Kaingang está classificado, que são basicamente elementos que têm forma redonda,
baixos, pertencentes à metade Kanhru, e elementos que têm forma comprida, altos,
pertencentes à metade Kamẽ.
A respeito dos elementos que indicam localização (posposições, em Kaingang),
são elementos que normalmente são elementos regidos, como acontece na língua
Kaingang. Os exemplos 33 e 34 são representativos de quase todas as posposições.

33) Goj ra inh vyr ũri 34) Escola ra fi vỹr


rio para 1SG ir hoje Escola para 3F.SG ir
“Fui para o rio hoje” “Ela foi para escola”
35) Norte ra Tibaji vỹ tĩ tĩ 36) Ẽmã ũ ra ti
norte para Tibagi MS ir vyr
HAB Moradia um outro para 3M.SG ir
“O rio Tibagi vai para o norte” “Ele se mudou para um outro lugar”

As orações de 33 a 36 apresentam a posposição ra com os seguintes traços em


todas as ocorrências: + movimento, +/– plural, – distante, – animado, + localizado,
sem qualquer variação morfossintática. Outras 18 posposições que compõem nosso
corpus (COSTA, 2021, p. 90) se comportam da mesma forma. O mesmo não acontece,
porém, com duas posposições compostas, kãkã e kãki, que são alvo de cada uma das
metades exogâmica do povo Kaingang: Kamẽ e Kanhru, conforme exemplos:

37) ẽpỹ kãkã 38) ẽg jykre kãkã


roça kã+kã(POSP+POSP)
roça em.KANHRU 1PL.POSS. pensamento em.
“na roça” KANHRU
“dentro do nosso pensamento”
39) Kynĩn fi vỹ ĩn kãkã 40) Carro kãkã inh nĩ
nĩ. carro em.KANHRU 1SG ASP
Kynin F MS casa em.KANHRU “Eu estou dentro do carro”
ASP
“Kynĩn está dentro da casa”

Em 37, pode-se notar que a posposição kãkã, formada pela reduplicação de kã


(em), está relacionada a roça (ẽpỹ); em 38, 39 e 40, a mesma posposição está relacionada
a jykre (pensamento), a ĩn (casa) e a carro. Todos esses entes têm formato não comprido,

- 276 -
Eixo 14
Linguagem e significação

isto é, cheio, quadrado, retangular, sendo o pensamento relacionado ao formato do


cérebro.
Por outro lado, com entes cujo formato é comprido, temos um único exemplo,
para o momento, em que a personagem da história se deita em uma rede para dormir.

41) fi rene kãki


3F.SG.POSS rede kã+ki(POSP+POSP)
3F.SG.POSS rede em.KAMẼ
(1) “na rede dela”

O uso da posposição em 41 é kãki, composto de kã (em, dentro de) e ki (em, por


dentro de). Notamos que o movimento de por dentro de pode estar também na semântica
da oração, mas não parece ser obrigatório.
Com os exemplos 37-41, notamos usos discriminados de posposições com o
mesmo sentido, porém relacionados a entes com formatos diferentes, de acordo com
a cosmologia Kaingang. Sobre o assunto, em conversa com Felisbino, encontramos
outros exemplos que usam de forma diferente kãkã e kãki e que compõem a seção
seguinte.

4.4 Concordância cosmológica em orações locativas

As orações locativas indicam a existência de adjunto adverbial de lugar


compondo a estrutura da oração. Em se tratando de localização que use as posposições
kãkã e kãki, trazemos exemplos de orações estativas e transitivas, cujos verbos
controlam semanticamente o alvo, que é a posposição.

42) Brasil kãkã inh jẽ 43) Brasil kãki ẽg nỹtĩ


Brasil em.SG. 1SG. ASP. Brasil em.PL 1PL. ASP.ASP.
em pé sentado
(2) “Estou no Brasil” (3) “Nós estamos no Brasil”

Note-se que as orações estativas 42 e 43 têm, a primeira, sujeito no singular


(inh) e a segunda, no plural (ẽg), acompanhados, respectivamente, de verbos que
indicam o número de realizações de determinado evento (estar no Brasil, em 42 e 43; e
colocar, em 44 e 45, como veremos a sseguir) concordando também com o pronome
pessoal. Em 42, há um sujeito e um evento; em 43, há sujeito plural, cada um
responsável por um evento, o que, em conjunto, torna o número de eventos plural.
As orações 44 e 45, por sua vez, apesar de terem sujeito singular (inh),
apresentam posposições diferentes, justamente por causa do número de eventos.
Nestes casos, elas concordam com a ideia de pluralidade expressa pelo verbo: enquanto
nĩm representa somente uma ação de colocar, vin, que é o seu plural, representa várias

- 277 -
Eixo 14
Linguagem e significação

ações, significando que o agente colocou várias coisas no mesmo copo. Assim,
entendemos a concordância de kãkã (Kanhru) com ação única (singular) e kãki (Kamẽ)
com ações múltiplas (plural).

44) Kópa kãkã inh nĩm 45) Kópa kãki inh vin
copo em.SG 1SG. copo em.PL 1SG.
colocar.SG colocar.PL
(4) “Coloquei dentro do (5) “Coloquei dentro dos
copo” copos”

Um último caso que identificamos, ainda com relação à concordância voltada


à cosmologia Kaingang, é dos verbos estativos, também com função gramatical de
aspectualização.

4.5 Concordância aspectual

Nos seguintes exemplos elicitados, temos nĩ (sentar-se) e jẽ (estar em pé), que


são o verbo da oração, indicando a posição em que o sujeito, o referente ou o locativo
estão, conforme o tema da oração.
46) Carro kãkã inh nĩ 47) Jágjánh jãfã kãkã inh jẽ
carro em.KANHRU 1SG. Banheiro em.KAMẼ 1SG.
ASP.KANHRU ASP.KAMẼ
(6) “Eu estou no carro” (7) “Eu estou no banheiro”

Em 46 e 47, exemplos elicitados, temos nĩ (sentar-se) e jẽ (estar em pé),


indicando a posição em que o locativo se encontra. O carro, por seu formato mais
retangular, é realizado com a posposição indicativa de Kanhru, corroborado pelo
marcador de aspecto nĩ, que significa sentado e aponta para como o carro é visto:
sentado8. O banheiro, por sua vez, é mais alto do que largo, então é do mundo dos
Kamẽ, o que é corroborado pelo uso verbo jẽ, que significa em pé e aponta para a posição
em que o banheiro se encontra: em pé.

Considerações

Por se tratar de uma pesquisa em pleno andamento, não temos respostas a


todas as questões. Diante disso, é primordial que ela tenha continuidade (e terá), visto
ser uma das partes fundamentais da gramática que vem sendo preparada.

8 Os verbos posicionais do Kaingang que também são usados como marcador de aspecto de
outro verbo são jẽ (em pé), nĩ (sentado), nã (deitado), sa (pendurado)

- 278 -
Eixo 14
Linguagem e significação

Mesmo diante das descrições postas neste artigo, que sintetiza o que já
conhecemos sobre a influência da cosmologia Kaingang na gramática da língua, outras
questões permanecem com pontos de tensão, motivadoras de novas pesquisas, a fim
de identificar se há uma hierarquia que privilegia um tipo de concordância em relação
aos demais. Por exemplo, em havendo a seguinte situação em uma oração – (a)
concordância cosmológica no sintagma posposicional, (b) concordância cosmológica
em orações locativas e (c) orações que apresentam verbo posicional na posição de
marcador de aspecto –, qual seria a concordância privilegiada?
Fica, por enquanto, esta descrição da concordância em língua Kaingang, com
foco especial na concordância de gênero referente à cosmologia desse povo e como
ela influencia a gramática dessa língua, como início destas pesquisas.
É importante sinalizar que a pesquisa de D’Angelis (2002) sobre
morfofonologia será necessária para estudar a sonoridade que pode estar por trás dos
léxicos referentes aos mundos Kamẽ e Kanhru; além disso, é preciso complementar
estes estudos com pesquisa mais aprofundada sobre a concordância anafórica, já
iniciada por Felisbino, em 2018, em trabalho para disciplina da Especialização em
Língua Portuguesa.
Em síntese, a concordância, em Kaingang, acontece de várias formas: (a) entre
sujeito e verbo, (b) por meio de elementos gramaticais que indicam gênero feminino
singular (o masculino singular é zero) e gênero masculino e feminino plural na função
acompanhando (à direita) os entes da oração; (c) em verbos que indicam ação única e
ação múltipla e as posposições kãkã e kãki; (d) em locuções posposicionais com os
mesmos elementos de “c”; (e) em orações estativas, em que jẽ está relacionado a kamẽ
e nĩ relaciona-se a kanhru.
Esperamos ter alcançado nosso objetivo, ou seja, descrever a concordância em
Kaingang, bem como influência do fator cultural nessa concordância; esperamos,
também, ter contribuído para a descrição de línguas indígenas e para a ciência
linguística.

Referências

ACKEMA, Peter; BRANDT, Patrick; SCHOORLEMMER, Maaike; WEERMANN,


Fred. The Role of Agreement in the Expression of Arguments In: ACKEMA, Peter;

BRANDT, Patrick; SCHOORLEMMER, Maaike; WEERMANN, Fred (ed.).


Arguments and Agreement. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 1-32.

BUSSMANN, Hadumod. Dictionary of Language and Linguistics. Translation


and edition: Gregory Trauth and Kerstin Kazzazi. London; New York: Routledge,
2006.

- 279 -
Eixo 14
Linguagem e significação

CORBETT, Greville G. Gender. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.

CORBETT, Greville G. Agreement. Cambridge: Cambridge University Press, 2006


(Cambridge Textbooks in Linguistics).

COSTA, Luana Camila. A expressão da locatividade no Kaingang da TI


Apucaraninha. 2021. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) –
Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2021.

D’ANGELIS, Wilmar da Rocha. Gênero em Kaingang? In: SANTOS, Ludoviko dos;


PONTES, Ismael (org.). Línguas Jê: estudos vários. Londrina: Eduel, 2002. p. 215-
242. Disponível em:
http://www.portalkaingang.org/Genero%20em%20Kaingang%20DAngelis.pdf.
Acesso em: 24 set. 2021.

D’ANGELIS, Wilmar da Rocha. Concordância verbal de número em Kaingáng:


algumas pistas. LIAMES, v. 4, p. 71-81, Primavera 2004. Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/liames/article/view/1425/1415.
Acesso em 24 set. 2021.

ISHIKAWA, Noemia Kazue; IKEDA, Takehide; BANIWA, Aldevan; BRUNO,


Ana Carla. Brilhos na Floresta. Manaus: INPA, 2019. Disponível em:
https://repositorio.inpa.gov.br/handle/1/4659. Acesso em: 19 jun. 2020.

ISHIKAWA, Noemia Kazue; IKEDA, Takehide; BANIWA, Aldevan; BRUNO,


Ana Carla. Vãnh kãmĩ grugru. Tradução: Damaris Kanĩnsãnh Felisbino. Manaus:
INPA, 2020. Disponível em: http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--
files/biblio%3Aishikawa-2020-vanh/Ishikawa_2020_Vanh_Kami_Grugru.pdf.
Acesso em: 7 jan. 2021. 20 jun. 2020.

KRAMER, Ruth. The Morphosyntax of Gender. Oxford: Oxford University Press,


2015.

MITOS E HISTÓRIAS DO POVO KAINGANG. Curitiba: IPHAN, 2013. v. 1-4.


VEIGA, Juracilda. Os Kaingáng e Xokléng no panorama dos Povos Jê. LIAMES, v.
4, p. 59-70, Primavera 2004.

- 280 -

Você também pode gostar