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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
CURSO DE LICENCIATURA EM CIÊNCIAS SOCIAIS

DA CULTURA PENTECOSTAL AO LÍDER CARISMÁTICO: OS CRENTES


DA ASSEMBLÉIA DE DEUS E A PERFORMANCE DO PASTOR SILAS
MALAFAIA

Cleonardo Mauricio Junior

Recife
Julho
2011
CLEONARDO MAURICIO JUNIOR

DA CULTURA PENTECOSTAL AO LÍDER CARISMÁTICO: OS CRENTES


DA ASSEMBLÉIA DE DEUS E A PERFORMANCE DO PASTOR SILAS
MALAFAIA

Trabalho de conclusão de curso para


fins de avaliação e obtenção do grau
de Licenciado em Ciências Sociais
pela UFPE. Professora Orientadora:
Roberta Bivar Carneiro Campos

Recife
Julho
2011
Aos meus pais,

Que me deram caneta e papel,

vida e voz
Agradecimentos

Aos meus pais: A quem dediquei este trabalho. E aos quais devo eterna gratidão por
terem me apoiado quando cometi a boa loucura de deixar o curso de Economia e o
trabalho de bancário para fazer Ciências Sociais.

À Gabriela Máxima: Privada de muitos dos momentos que seriam só nossos para que
eu conseguisse terminar esta monografia.

Ao amigo Wellington Ribeiro: Confidente e, algumas vezes, mecenas.

Aos docentes: Maria Eduarda, José Luiz Ratton e Mísia Reesink, decisivos na minha
formação.

Aos tutores do Programa de Educação Tutorial (PET) de Ciências Sociais: Peter


Schröder e Alex de Jesus. E aos petianos que passaram pelo grupo e contribuíram com
este trabalho.

E especialmente à professora Roberta Campos. Orientadora deste trabalho. Pela sua


disponibilidade e paciência e por acreditar em mim mais do que eu mesmo. Desde já a
eximo dos possíveis erros que aqui possam ser encontrados.

Muito Obrigado!
Sumário

Introdução......................................................................................................................01

Capítulo 1: O movimento, a igreja, o pastor e o ministério......................................09

1.1 O Pentecostalismo: As três ondas............................................................................09

1.2 A Assembléia de Deus.............................................................................................11

1.3 Assembléias de Deus em Pernambuco....................................................................15

1.4 Assembléias de Deus Vitória em Cristo..................................................................18

1.5 Silas Malafaia..........................................................................................................21

1.6 Ministério Vitória em Cristo e Communitas............................................................22

Capítulo 2: O caráter coletivo do carisma..................................................................25

2.1 Weber e o Carisma como qualidade individual.......................................................26

2.2 Bourdieu e o Carisma como capital social..............................................................28

2.3 Csordas e a construção social do Carisma...............................................................30

2.4 Durkheim e o líder como emblema.........................................................................36

Capítulo 3: Um interregno metodológico. “Sozinho” numa casa de shows


“deserta”: a relação entre estranhamento e familiaridade e o papel da
subjetividade na construção do conhecimento antropológico.................................43
3.1 Do familiar e do estranho........................................................................................44

3.2 O lugar da subjetividade e o papel das emoções no fazer etnográfico....................51

3.3 A prática etnográfica e o protagonismo da subjetividade........................................56

Capítulo 4: Da cultura ao ícone pentecostal...............................................................58

4.1 Conhecimento e Poder.............................................................................................59

4.2 O pentecostal e a linguagem ou a linguagem pentecostal.......................................61

4.3 A circulação do Carisma: Internalização e Externalização da Palavra....................64

4.4 Construindo a identidade: o crente bodybuilder......................................................68

4.5 O líder carismático como desdobramento da cultura pentecostal...........................71

4.6 A mensagem (e o pastor) como elemento principal do culto..................................73

4.7 Uma análise da performance do Pr. Silas Malafaia: As primícias da internalização


da Palavra.......................................................................................................................75

4.8 Uma análise da performance do Pr. Silas Malafaia: Construindo a identidade e


mantendo autoridade..................................................................................................79

Conclusões.....................................................................................................................88

Referências
Bibliográficas.................................................................................................................95
Introdução

Um dos pontos fulcrais da Reforma Protestante do séc. XVI é a ausência de

mediação entre os homens e o sagrado. A partir de então todo crente, de posse das

escrituras, estaria apto a construir uma relação com o divino por si só, não

necessitando mais do clero para intermediá-la. A relação radicalmente hierarquizada

entre clero e leigos é flexibilizada, democratizando o acesso a um Deus que outrora

podia ser alcançado somente através da instituição, por meio do trabalho de seus

representantes oficiais. A autonomia dá-se também em relação aos santos católicos.

Estes não são mais requeridos como meios de acesso à divindade, muito menos

tomados como objeto de culto e veneração. A santidade passa a ser um alvo buscado

por todos: Não há santos protestantes, porque todos os crentes são santos.

No pentecostalismo, descendente da Reforma, sobretudo no seu ramo

neopentecostal, vários líderes carismáticos tem se destacado transformando-se em

verdadeiras celebridades. Geralmente possuindo suas próprias denominações repletas

de filiais, programas televisivos de alcance nacional e internacional, além de

protagonizarem eventos itinerantes que atraem centenas de pessoas, alguns destes

líderes são intitulados bispos, como Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de

Deus, ou apóstolos, como Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus,

indicando o que seria, na contramão da Reforma, um retorno à intensificação da

hierarquia, tanto em relação aos fiéis quanto em relação aos pastores comuns, ou seja,

aqueles que não são líderes denominacionais, não possuem exposição na mídia, nem

protagonizam eventos freqüentados por multidões, enfim, pregadores que não

alcançaram o posto de celebridades.

1
A atuação destes líderes nos leva a pensar, também, num retorno à intermediação

entre os leigos e a divindade. Fica difícil perceber, muitas vezes, a exata proveniência

das “bênçãos” alcançadas pelos fiéis: Se do próprio Deus, ou do líder carismático, seu

representante privilegiado. Além disso, a congregação consideraria tais pastores

munidos de uma autoridade maior que os seus próprios líderes religiosos locais e de

um virtuosismo religioso difícil de ser alcançado por eles próprios.

Se a Reforma superou a mediação pelo clero e aboliu o culto dos santos e se o

pentecostalismo invoca a relação com um Jesus vivo, cultivada através de

preenchimentos espirituais conectados ontologicamente com a queda original do

Espírito Santo, qualquer tipo de intermediação se configuraria como uma barreira

impedindo a conexão direta com a divindade. Sendo assim, instiga a curiosidade do

pesquisador atento o fato destes “santos” protestantes serem reverenciados em seus

programas televisivos, nas suas igrejas e em seus eventos abarrotados de seguidores.

Pretendo analisar, então, como tais líderes foram alçados a esta posição de

proeminência em relação aos demais pastores e crentes normais numa e como tal

posição é mantida e reproduzida na interação entre estes atores.

Os trabalhos que se proliferam tentando explicar o surgimento destas verdadeiras

celebridades da fé tem se debruçado principalmente sobre o papel da mídia, e da

sociedade de espetáculo, entendendo ser este o (único) fator responsável pela ascensão

dos líderes carismáticos. Não reivindico ignorarmos o papel da mídia na dimensão

alcançada por este fenômeno. Enfatizo, apenas, não podermos negar ao que acontece

no interior dos cultos pentecostais, as soluções que estes oferecem aos fiéis que o

procuram, papel indispensável no entendimento do pentecostalismo e de tudo o que lhe

diga respeito. É lá que o antropólogo deve estar. E só estando lá, assim entendo, pode-

2
se chegar a um bom entendimento do fenômeno. Entender a ascensão dos líderes

carismáticos, naturalmente, traz contribuições ao entendimento da expansão

pentecostal como um todo. Neste ponto também predomina uma supervalorização das

esferas das relações sociais e institucionais no entendimento deste evento. Quero trazer

à baila o plano simbólico como elemento indissociável para entendermos como se dá a

expansão pentecostal sem ignorar, no entanto, as outras esferas do fenômeno.

Ouvir os fiéis também é indispensável para entendermos como os líderes

carismáticos foram catapultados a uma posição de proeminência em relação aos seus

pares. É entre eles, pregador e ouvintes, que se constrói uma interação de onde o

primeiro sai num patamar acima na estratificação carismática. Não se pode, portanto,

analisar apenas uma ponta da interação. A isto me propus neste trabalho, acreditando

estar contribuindo para preencher uma lacuna nos estudos concernentes à análise dos

líderes carismáticos. Ouvi-los trouxe, ainda, oportunidade de fazer uma etnografia do

in-filling e trabalhar um tema escasso na literatura repleta de trabalhos concernentes ao

fenômeno oposto, o da possessão. Uma análise da cultura pentecostal (sim eles têm

cultura!) também brota destas conversas. Ignorá-la seria afirmar que a performance do

líder carismático acontece no vácuo. Sem compreendê-la não seria possível dar um

entendimento mínimo ao fenômeno aqui estudado.

O trabalho de campo

Como parte do projeto “Textualidade e Oralidade da Bíblia”, coordenado pela

prof(a) Roberta Campos, onde atuei como pesquisador de iniciação científica

voluntário, lancei o foco de minhas análises sobre o pastor Silas Malafaia, da

3
Assembléia de Deus, líder pentecostal em grande evidência atualmente, direcionando

ao campo por ele abrangido as perguntas que tinha em mente. Primeiro, realizei

trabalho de campo no Congresso de Avivamento Despertai, realizado em Recife, de 15

a 17 de Outubro de 2010, na casa de shows Chevrolet Hall. Neste Congresso,

protagonizado por Malafaia, contando ainda com a presença de outros pastores ligados

ao seu ministério, intentei verificar sua interação com os ouvintes especialmente no

momento reservado às suas prédicas. Freqüentei a programação completa do evento,

gravei suas mensagens, duas no total, e elaborei meu primeiro diário de campo. Outra

oportunidade para ouvir o Pastor Silas Malafaia, cuja igreja se localiza no Rio de

Janeiro, no bairro da Penha, se deu em 16 de Junho deste ano, na ocasião de sua vinda

à sede da ADVEC em Pernambuco, no bairro de Boa Viagem em Recife. Também

gravei sua mensagem nesta segunda oportunidade de ouvi-lo pessoalmente. No

entanto, esta não aparece de forma direta no trabalho, tendo sido usado como forma de

controlar as conclusões por mim levantadas pela análise, que nesta altura já havia sido

realizada, da pregação na ocasião do Congresso.

Era preciso ainda analisar a instituição na qual o pastor Silas Malafaia estava

inserido. Passei a freqüentar, então, a partir do mês de Abril até Junho deste ano, os

cultos de duas filiais da ADVEC em Recife: A filial “Boa Viagem”, como disse, sede

da ADVEC em Pernambuco, e a filial “Caxangá”. Foram 10 idas aos cultos ao longo

deste período. Apenas duas delas em “Boa Viagem”. Verifiquei a dinâmica dos cultos,

debrucei-me sobre a relação entre os membros de cada filial com seus respectivos

pastores, gravei mensagens e, principalmente, ouvi as conversas entre os fiéis antes e

depois do tempo destinado às programações. Chegava geralmente uma hora antes do

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culto e, ao seu final, permanecia por um tempo conversando com os “irmãos” no

espaço destinado à cantina da filial “Caxangá”.

Ouvir os fiéis, como disse, foi requisito indispensável para chegarmos a um

entendimento mínimo da cultura pentecostal. Realizei também, para tanto, cinco

entrevistas formais, semi-estruturadas. Conheceremos com mais detalhes nossos

entrevistados ao longo do trabalho, mas algumas informações precisam ser ditas desde

já. Das cinco entrevistas realizadas, quatro foram com fiéis da Assembléia de Deus

(AD) e uma com Jurandir, membro de uma igreja Batista tradicional e que, além de ter

ido ao Congresso no qual realizei trabalho de campo, possui livros e DVDs do pastor

Silas Malafaia e acompanha seus programas de televisão. Nadja, Eliete, Luciano e

Renato foram os “assembleianos” entrevistados. Destes, apenas Renato pertence à

Vitória em Cristo, AD de Silas Malafaia. O restante pertence à AD Campo do Recife,

“ministério” que também conheceremos no capítulo destinado à apresentação do

contexto institucional no qual se insere o trabalho. Nadja e Eliete foram ao Congresso

de Avivamento Despertai, mas só a primeira afirmou acompanhar os programas de

Silas Malafaia na televisão. Luciano foi o único a responder que, além de não ter ido

ao Congresso, não acompanhava os programas de Silas Malafaia, mas que, mesmo

assim, o admirava pela forma que “impunha a espada”.

Também assisti aos programas do Pr. Silas Malafaia na televisão. Nas

madrugadas, durante a semana, o Espaço Vida Vitoriosa, na Rede Bandeirantes, e aos

sábados, na mesma emissora, o Vitória em Cristo. O primeiro consiste na exibição de

um trecho de mensagem proferida por Malafaia em sua igreja ou em algum evento,

seguida de vários pastores que vão se alternando no estúdio trazendo, cada um, uma

pequena reflexão. Já o segundo, o principal, dedica mais tempo à exibição das prédicas

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de Silas Malafaia e se encerra com o próprio pastor no estúdio, trazendo uma reflexão

final, por vezes polêmica, e conclamando os ouvintes para contribuírem

financeiramente com seu ministério.

A rede mundial de computadores também se apresentou como um dos campos

trabalhados. Visitas constantes aos websites da Assembléia de Deus Vitória em Cristo

e da Associação Vitória em Cristo me possibilitaram ver entrevistas e mensagens

antigas do Pr. Malafaia, bem como acompanhar sua agenda e conhecer a programação

da igreja-sede nacional da ADVEC no bairro da Penha, no Rio de Janeiro, comparando

com o que acontecia nos cultos que freqüentei em Recife. Percorri também as redes

sociais acompanhando, sobretudo, a conta de Silas Malafaia no microblog twitter, que

é administrada pelo próprio. Lá pude receber informações instantâneas, principalmente

no que diz respeito à polêmica investida de Malafaia contra a implantação da PL 122,

que regula o casamento entre homossexuais.

. É indispensável ainda falar do alcance e da utilização dos dados coletados. Já

expliquei que a mensagem gravada na ocasião do Congresso serviu de base para

analisar a performance de Silas Malafaia, tendo a segunda oportunidade de ouvi-lo

pessoalmente servido como controle não aparecendo de forma direta no trabalho. Para

proceder com a análise do que chamarei de cultura pentecostal baseei-me

principalmente nas entrevistas realizadas com fiéis. Apesar de a quantidade de

entrevistas realizadas não possuir representatividade quantitativa, elas foram realizadas

em profundidade, algumas durando horas. A qualidade destas, porém, somada às

observações nos cultos, bem como ao acompanhamento dos programas de televisão e

dos websites (que também não aparecem no trabalho de forma direta), contribuiu para

que eu visualizasse, e reforçasse, chaves interpretativas do problema de pesquisa.

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Os capítulos

Na redação do trabalho dividi-o em quatro capítulos. No primeiro, conheceremos

o movimento, a igreja, o pastor e o ministério. Farei uma breve recapitulação do

movimento pentecostal em geral, para depois deter-me em apresentar a Assembléia de

Deus, explicando porque a chamo de a Igreja dos “ministérios”. Uma seção é dedicada

à apresentação mais detida do pastor Silas Malafaia. O mesmo acontece no propósito

de conhecermos sua igreja, A Assembléia de Deus Vitória em Cristo. Entenderemos

também, na última seção do capítulo, um fenômeno recente no pentecostalismo: a

ênfase nos ministérios conduzidos por estes pastores, no caso de Malafaia, a

Associação Vitória em Cristo, também conhecida como Ministério Silas Malafaia, em

detrimento da ênfase nas igrejas às quais estes pastores representam.

No segundo capítulo tratarei de explanar o conceito teórico que perpassa todo o

nosso trabalho. O objetivo aqui é salientar o caráter coletivo do carisma. Weber,

Bourdieu e Csordas nos levarão a dissociar o carisma das qualidades pessoais do líder

carismático. Durkheim, e mais uma vez Csordas, guiar-nos-ão ao entendimento do

líder carismático como emblema da cultura pentecostal e de como se dá sua

performance para que isto aconteça.

O terceiro capítulo é um interregno metodológico onde apresento as impressões

obtidas na minha ida ao Congresso de Avivamento Despertai, ocasião do meu

“batismo” como antropólogo (assim me considero, se já o puder fazê-lo). Nele trago

uma discussão sobre a importância da subjetividade e o papel das emoções na

construção do conhecimento antropológico, na medida em que mostro como minha

trajetória pessoal, grande motivo para fosse atraído por este projeto, exerce um papel

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no campo definindo o que é estranho, e o que é familiar, e as conseqüências disto para

o meu trabalho.

O quarto e último capítulo, a análise dos dados recolhidos no trabalho de campo,

faz um movimento da cultura ao ícone pentecostal. Apresento o que convencionei

chamar de cultura pentecostal baseado nos depoimentos dos fiéis entrevistados e na

observação participante dos cultos por mim freqüentados. Veremos como esta cultura

opera para formar seus ícones, os líderes carismáticos. Mostrarei ainda como o pastor

performa seu carisma enquanto constrói sua autoridade na interação face a face com

seus ouvintes. Para isso, analisarei a mensagem do pastor Silas Malafaia proferida por

ele na abertura do Congresso de Avivamento Despertai. Feito isto partirei para

apresentar minhas conclusões. Elas já terão sido apresentadas ao longo de todo o

trabalho, ficando o espaço formal da conclusão reservado apenas para uma

recapitulação dos pontos anteriormente apresentados, bem como para apresentar os

pontos aos quais pretendo dar continuidade em futuros trabalhos.

Na dinâmica pentecostal, que valoriza uma conexão ontológica com a verdadeira

queda do Espírito Santo descrita no livro bíblico de Atos dos Apóstolos, qualquer

situação que pretende intermediar este momento é considerada um obstáculo. Em tal

cultura, como os líderes carismáticos parecem se transformar em “santos”

protestantes? Por que eles são considerados mais “cheios do Espírito Santo” do que os

outros? E o que significa ser “cheio do Espírito Santo”? Poderíamos esboçar como se

dá a construção da identidade pentecostal? Como o líder carismático afirma sua

autoridade em meio aos que deveriam ser seus pares? Responder estas perguntas é o

objetivo que pretendo alcançar ao longo deste trabalho.

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O movimento, a igreja, o pastor e o ministério

Neste capítulo pretendo apresentar o Pastor Silas Malafaia, sua igreja e seu

ministério. Antes, trarei algumas características do movimento pentecostal em geral,

descritas por. Ricardo Mariano (2005), para depois contrapô-las, sobretudo o que ele

diz a respeito da vertente neopentecostal deste movimento, com os dados levantados

no campo. O mesmo será feito com o que Paul Freston (1994) apresenta como

aspectos generalizáveis da Assembléia de Deus no Brasil.

O Pentecostalismo: As três ondas

Ricardo Mariano mostra que o pentecostalismo é dividido, no Brasil, em três

etapas, ou ondas, se usarmos o termo criado por Paul Freston (1994). São elas: O

pentecostalismo clássico, iniciado com a criação da Congregação Cristã no Brasil

(São Paulo, 1910) e da Assembléia de Deus (Belém, 1911), caracterizou-se por um

ferrenho anticatolicismo, por enfatizar o dom de línguas e pelo radical sectarismo e

ascetismo de rejeição do mundo exterior (MARIANO, 2005, p. 29). A segunda onda, o

deuteropentecostalismo, teve início nos anos 1950 com a implantação da Igreja do

Evangelho Quadrangular. As diferenças teológicas estão na ênfase que dão em

diferentes dons do Espírito Santo. A primeira enfatiza o dom de línguas, a segunda, o

de cura. Há também diferenças de estratégia, com as igrejas deuteropentecostais sendo

responsáveis por introduzir inovações evangelísticas como o uso de rádios, cinemas,

teatros e estádios. É o corte histórico, os 40 anos que separam estas igrejas, a

justificativa para a distinção entre primeira e segunda onda, já que não há diferenças

teológicas significativas, apenas de ênfase em diferentes dons e nas estratégias

proselitistas.
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A terceira onda, o neopentecostalismo, tem início na segunda metade dos anos

1970, cresce e se fortalece nos anos 1980 e 1990 e tem como representante maior, e

síntese das características do movimento, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD).

Ao contrário da comparação entre primeira e segunda onda, há diferenças

significativas entre o neopentecostalismo e as outras fases, tanto no aspecto teológico

quanto nos aspectos comportamentais (abandono do ascetismo) e sociais (diminuição

do sectarismo). Ricardo Mariano (2005) destaca três aspectos fundamentais: Primeiro,

a exacerbação da guerra espiritual contra o diabo e seu séquito de anjos decaídos.

Não significa somente a intensificação dos rituais de exorcismo, mas a criação de uma

cosmologia radicalmente dual fundamentada na crença de que estamos mergulhados

numa guerra cósmica entre Deus e o Diabo pelo domínio da humanidade. Segundo, a

pregação enfática da Teologia da Prosperidade, doutrina que, grosso modo, defende

que o crente está destinado a ser próspero e feliz neste mundo. Isto gera um

rompimento com a idéia da busca da salvação pelo ascetismo de rejeição do mundo,

tornando o neopentecostalismo o primeiro segmento protestante a afirmar o mundo ao

invés de rejeitá-lo. Em terceiro lugar, o neopentecostalismo rompe com o legalismo

pentecostal abandonando as distinções ascéticas na aparência do crente. Além disso,

Mariano enfatiza que as igrejas neopentecostais passaram a agir como empresas,

estendendo sua atuação para diversas áreas da esfera econômica como a indústria

fonográfica, editoras e, sobretudo, as comunicações. Tais características demonstram

que este segmento está se acomodando rapidamente à sociedade inclusiva, à cultura e à

religiosidade popular, encontrando-se num processo de mundanização (MARIANO,

2005).

Ricardo Mariano (2005) ainda chama a atenção para um fenômeno que ele intitula

de “neopentecostalização” das igrejas pentecostais clássicas e das igrejas


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deuteropentecostais. Por “neopentecostalização” se entende a crescente influência

exercida pelas igrejas neopentecostais sobre as demais e a ânsia destas de

reproduzirem as novas crenças e práticas de sucesso entre as massas. Isto é uma

realidade tanto para as igrejas deuteropentecostais, como a Igreja do Evangelho

Quadrangular, que vêm a passos largos se aproximando da configuração

neopentecostal, como até para as pentecostais clássicas, sobretudo, para Mariano, a

Assembléia de Deus. É esta instituição que será o foco de nossas atenções a partir de

agora, onde, segundo este autor, já se nota toda sorte de apropriação de doutrinas e

práticas antes exclusivas das igrejas neopentecostais (p. 39).

A Assembléia de Deus

Passando a discorrer mais especificamente sobre a Assembléia de Deus (AD),

quero ressaltar desde já que não pretendo reconstruir aqui uma história desta

instituição. Meu objetivo é apenas mostrar que não se pode falar da AD sem levar em

conta a heterogeneidade institucional desta igreja, composta por uma profusão de

“ministérios”1, ou seja, por redes de igrejas que possuem, cada uma delas, seus

próprios líderes, correspondendo na maioria das vezes a convenções estaduais ou

regionais, tendo algumas delas, também, alcance nacional, podendo ou não estarem

ligadas ao órgão maior da AD no Brasil, a CGADB (Convenção Nacional das

Assembléias de Deus no Brasil).

Fundada em 1911, em Belém do Pará, por missionários suecos, a AD é a maior

igreja pentecostal do país, comportando, sozinha, 20% dos evangélicos brasileiros

1
Coloco aqui o termo “ministério” entre aspas significando o conjunto de igrejas sob uma
liderança comum para diferenciar do uso do mesmo termo que farei mais a frente. Optei por
manter o mesmo termo para designar coisas diferentes, pois é desta maneira que os próprios
fiéis se utilizam dele.

11
(MARIANO, 2005, p. 24). Paul Freston (1994), para resumir o que ele entende ser a

principal característica desta igreja a classifica como detentora de um ethos sueco-

nordestino. Isto porque a AD teria uma propensão à contracultura aliada a uma

resistência à institucionalização e à erudição teológica, herança de seus fundadores,

missionários suecos culturalmente marginalizados por serem pentecostais num país

onde a igreja luterana era a religião estatal, possuindo, por isso mesmo, uma alta

adesão formal contraposta a um baixíssimo índice de prática e que enfatizava, além

disso, a formação teológica de seus ministros. O lado nordestino do ethos

assembleiano Freston imputa à forma de governo eclesiástico, segundo ele, oligárquica

e caudilhesca, encontrado nesta igreja. Por ser extremamente descentralizada nas suas

deliberações, proporcionando autonomia às igrejas locais, a AD possibilitaria, para

Freston, o surgimento de caudilhos, os líderes regionais dos “ministérios”, muitas

vezes mais fortes que a própria CGADB (FRESTON, 1994).

Freston responsabiliza este caudilhismo pelos cismas ocorridos no governo da

AD, formadores, a cada cisão, de novos “ministérios” com seus respectivos novos

líderes. O grande racha, ocorrido em 1989, entre o “ministério” Missão, descendente

direto da missão sueca, e o “ministério” Madureira, desligado da CGADB por já ter

um número de filiais que não mais cabia dentro de um órgão a que fosse subordinado,

é o maior exemplo elencado por Freston para afirmar que este modelo de governança

estaria em pleno declínio. “Madureira” formou sua própria convenção nacional e

adquiriu gráfica e editora próprias confirmando, para Freston, que a AD estaria “cada

vez mais fora de sintonia com a moderna sociedade urbana” (p. 88). A questão dos

“usos e costumes” também seria motivo de uma crise na AD, já que, para este autor,

muitos adeptos estariam trocando de denominação por não mais desejarem se adequar

à rigidez ascética desta igreja (FRESTON, 1994).


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Se Freston vê as constantes cisões como um indicador de crise, Ronaldo Almeida

(2009) apresenta a mesma questão como a principal causa da expansão institucional2

do pentecostalismo. Os 15 anos que separam as duas obras permitiram a Almeida

perceber que o pentecostalismo se expandiu institucionalmente através da dissidência e

da diversificação, possibilitando o alcance de um escopo maior de perfis e demandas

religiosas “na medida em que consegue atingir cada vez mais os diferentes grupos que

convivem numa realidade complexa como a das grandes sociedades brasileiras”

(ALMEIDA, 2009, p. 36). É sabido que Almeida se referia ao pentecostalismo em

geral para tratar de suas dissidências e a conseqüente diversificação do movimento

como fator de expansão. Era da formação de novas denominações que ele estava

falando. Há uma característica peculiar dos rachas na AD: deles não se originam novas

denominações, mas novos “ministérios”. No entanto, podemos entender estas novas

redes, oriundas das cisões, como denominações independentes que preferiram manter o

carisma do nome da instituição. Com isso, o modelo de Almeida, de expansão pela

dissidência e diversificação, pode enquadrar-se à dinâmica de cisões assembleianas.

Assim, é importante observar que, se em Freston a AD está inadaptada à modernidade,

utilizando-se do modelo proposto por Almeida vemos exatamente o contrário: essa

multiplicidade de “ministérios” teria possibilitado a acomodação, sob um mesmo

rótulo denominacional, de demandas religiosas as mais díspares possíveis presentes

nas grandes cidades brasileiras.

Outra colocação de Freston, a de que a questão dos “usos e costumes” estaria

provocando uma sangria nas fileiras de adeptos da AD é contestada, se entendermos

que a diversificação oriunda das cisões se deram, dentre outras coisas, para atender às

2
Em sua obra Almeida divide a expansão pentecostal nas suas dimensões institucional, das
relações sociais, e simbólica. Utilizo-me aqui apenas da primeira.

13
demandas de relaxamento nos costumes. Mariano mostra que a ruptura com o

ascetismo contra-cultural, e a dessectarização, vem ocorrendo com mais intensidade

nas práticas da AD desde 1989, época do grande racha. Para ele a igreja tem se

mostrado mais flexível e disposta a acompanhar as mudanças que estão se processando

no movimento pentecostal e na sociedade, vide seu recente ingresso na política

partidária, o que sinalizaria de modo irrefutável sua tendência à dessectarização. Este,

que para este autor é indicativo do de um processo de neopentecostalização, teria se

intensificado na AD, devido ao investimento massivo em programas de televisão,

quando das acaloradas discussões para decidir se o uso da TV era apropriado para a

evangelização no final da década de 1990, a própria CGADB passa, já em 2003, a

veicular programas semanais aos sábados, na então Rede Manchete (MARIANO,

2005).

Assim, contrastando os trabalhos de Mariano (2005) e Almeida (2009) às

constatações de Freston (1994) vimos que a crise no modelo da AD, detectada pelo

último, lá atrás, não se confirmou ao longo do tempo. Pelo contrário, foi justamente

pela dissidência e diversificação de “ministérios” com diferentes gradações de rigidez

nos costumes, juntamente com um processo de flexibilização e adaptação às mudanças

sociais que a AD manteve a sua posição como a maior igreja pentecostal do Brasil,

prometendo neste ano dar prova de sua grandiosidade com mobilizações de cunho

religioso nunca antes vistas no país para comemorar o seu centenário. Além da crise no

modelo gestor da AD, bem como a sangria nas fileiras da igreja devido ao seu rigor

ascético citados por Freston não terem se confirmado ao longo do tempo, outras

características por ele imputadas à igreja, como sua resistência à institucionalização, e

à erudição, precisam ser revistas, o que nos leva a entender que o ethos sueco-

nordestino, imputado por este autor à AD, não mais condiz com a realidade desta
14
instituição. O próprio autor já cita no seu texto instituições como a CGADB e a CPAD

(Casa Publicadora das Assembléias de Deus), o que refuta o anti-institucionalismo

assembleiano, o que se nos anos subsequentes à sua fundação foi uma realidade, logo

se dissipou pela impossibilidade de crescimento fora do caminho da

institucionalização. Ainda que preze pelo protagonismo dos dons espirituais no

cotidiano de suas práticas religiosas e o incentivo à participação dos leigos em seus

cultos, a resistência da AD quanto ao preparo teológico formal também ficou no

passado. A FAECAD (Faculdade Evangélica de Ciências e Tecnologia), ligada à

CGADB, com cursos como bacharel em Teologia e pós-graduação em Administração

Eclesiástica, seria o maior exemplo disso.

Assembléias de Deus em Pernambuco3

Para consolidar o entendimento da heterogeneidade da Assembléia de Deus, passo

a descrever um pouco do seu panorama institucional em Pernambuco. Neste estado os

principais “ministérios” da AD são conhecidos como “Campo do Recife”, ou

simplesmente “Recife”, e “Abreu e Lima”, ambos ligados à CGADB. “Recife” é

liderado desde 1998 pelo Pastor Ailton José Alves, que já foi terceiro secretário e,

posteriormente, membro do conselho administrativo da CGADB. Sua rede de igrejas,

com templos sempre pintados nas cores cinza e azul, está espalhada por Pernambuco,

formando uma convenção intitulada CONADEP (Convenção da Assembléia de Deus

em Pernambuco). Já ouvi várias vezes crentes deste e de outros “ministérios”

referindo-se ao “Campo do Recife” como a Assembléia de Deus do Pastor Ailton, que

3
A maioria das informações aqui descritas vem de conversas informais com fiéis destes
“ministérios”, do site oficial da CGADB e de comunidades virtuais conduzidas pelos membros
destas igrejas na rede mundial de computadores.

15
todas as noites apresenta um programa na emissora de rádio pertencente ao seu

“ministério”, a Rádio Boas Novas (AM 580). O “Campo do Recife” mantém a rigidez

no ascetismo contracultural dos fundadores da AD, dizendo, devido a isso, descender

diretamente do “ministério” de Belém, no Pará, onde, como vimos, iniciou-se a AD no

Brasil. Seus membros podem ser considerados os típicos crentes da Assembléia de

Deus que estamos acostumados a ver: Os homens sempre se dirigindo aos cultos

trajando terno e gravata, as mulheres sempre usando longos cabelos soltos ou presos

em coques no alto da cabeça e saias abaixo do joelho.

O templo central deste “ministério” encontra-se em Recife, na Avenida Cruz

Cabugá, no bairro de Santo Amaro, ao lado de um templo da IURD (Igreja Universal

do Reino de Deus), formando, pela grandiosidade dos dois templos vizinhos, o que

poderíamos chamar de um complexo evangélico na cidade. A força do “Campo do

Recife” foi demonstrada nas últimas eleições para deputado estadual e federal. Pela

primeira vez a igreja teria oficializado representantes na política estadual. Seus dois

candidatos foram eleitos: Pastor Eurico, deputado federal, com 185.870 votos foi o

quinto mais votado. Presbítero Adalto, deputado estadual, com 120.175 votos foi o

segundo mais votado. É interessante observarmos que, tanto no horário eleitoral

gratuito veiculado na televisão, quanto nos folhetos de propaganda distribuídos aos

eleitores, os então candidatos sempre estavam ao lado do Pastor Ailton, referendando

que aquela era uma candidatura da Assembléia de Deus. A aquisição, desde 1999, de

uma rádio e a campanha eleitoral para deputados federal e estadual realizados por este

“ministério” demonstram, de forma irrefutável, uma dessectarização, aliada, porém, à

manutenção inegociável do ascetismo nos costumes de seus membros como marca

registrada de suas práticas.

16
Contrapondo-se ao “Campo do Recife”, e aqui falo em contraposição no sentido

de um “ministério” com dimensões semelhantes a este, mas que possui uma maior

flexibilidade no ascetismo contracultural, está o “ministério” Abreu e Lima. Espalhada

também por todo o estado de Pernambuco com suas igrejas sempre pintadas de verde,

forma a convenção conhecida como COMADALPE (Convenção Estadual de Ministros

da Assembléia de Deus com Sede em Abreu e Lima – Pernambuco), liderada pelo

pastor Roberto José dos Santos, que atualmente exerce, a nível nacional, o cargo de

quinto secretário na mesa diretora da CGADB. O templo sede de “Abreu e Lima”,

também de dimensões gigantescas, localiza-se, como o próprio nome do “ministério”

já dá a entender, na cidade de Abreu e Lima, região metropolitana do Recife. Seus fiéis

podem freqüentar os cultos, no caso das mulheres, usando calça, brincos e maquiagem.

Os homens não precisam, todos eles, usarem terno e gravata, indumentária que, no

caso dos obreiros, diáconos, evangelistas e pastores não pode ser dispensada. A

convenção possui, ainda, uma escola, o Educandário Evangélico Neusa Rodrigues, e

uma faculdade teológica, a FATEADAL (Faculdade Teológica da Assembléia de Deus

em Abreu e Lima), ratificando o processo de dessectarização que perpassa a AD como

um todo no país, acompanhado, no caso deste “ministério”, por uma flexibilização no

ascetismo de rejeição do mundo exterior.

Assim, vê-se que a tentativa de Freston de resumir a AD às características

advindas de seu ethos sueco-nordestino não mais condiz com a realidade, pois falha a

enxergar uma homogeneidade que não existe nesta instituição. Ao longo de sua

história, e seus rachas, esta igreja se diversificou de forma a se transformar numa

instituição “guarda-chuva”, que abriga sob o mesmo título o que poderíamos entender

como sub-denominações com os mais variados graus de exigência ascética e sectária.

Ainda que estas redes mantenham o elo que as definem como Assembléias de Deus, e
17
não me refiro só ao nome, mas a ênfase nos dons espirituais e no poder de Deus ainda

atuante nos dias de hoje (o que também as definem como sendo pentecostais), é mais

condizente com a realidade heterogênea desta instituição utilizarmos o termo no plural,

Assembléias de Deus, ou chamá-la simplesmente de A Igreja dos “ministérios”.

Assembléia de Deus Vitória em Cristo

É preciso ter cuidado, também, ao usar o termo neopentecostalização proposto por

Ricardo Mariano (2005) em seu trabalho. Também é preciso levar em consideração a

heterogeneidade da Assembléia de Deus antes de citá-la como maior exemplo deste

processo entre as igrejas pentecostais históricas. As principais características apontadas

por Mariano como definidoras do neopentecostalismo consolidado pela IURD, quais

sejam, a exarcebação da guerra espiritual cósmica entre Deus e o diabo, a Teologia da

Prosperidade e o rompimento com o legalismo, não seriam encontradas na AD Campo

do Recife, por exemplo, que mantém com rigor, como vimos, a dinâmica do

pentecostalismo histórico no que diz respeito aos costumes, não enfatiza a pregação da

prosperidade, nem tampouco realiza cultos de exorcismo aos moldes da IURD. O

mesmo poderia ser dito da Convenção Abreu e Lima, excetuando-se a já falada

flexibilização do ascetismo de rejeição do mundo que pode ser vista neste “ministério”

Já no que diz respeito à Assembléia de Deus Vitória em Cristo (ADVEC),

Ricardo Mariano poderia encontrar mais elementos para confirmar a sua hipótese de

neopentecostalização na AD. A ADVEC originou-se de mais um “ministério” da AD

que cresceu a ponto de ter filiais, mais de 90, espalhadas por todo o país, pretendendo,

segundo seu site oficial, inaugurar 250 novas igrejas nos próximos cinco anos. Pouco

antes de rachar com a CGADB, o líder do então “ministério” Penha, o Pastor Silas

Malafaia, muda o nome de sua igreja para “Vitória em Cristo”, mesmo nome de sua
18
associação promotora de eventos evangelísticos e congressos, e do seu programa de

televisão. Em Pernambuco, a ADVEC possui sete filiais, o que mostra, ainda, sua

pequena inserção no estado se comparado ao alcance das igrejas dos “ministérios”

Campo do Recife e Abreu e Lima. Seu templo sede no estado se encontra no bairro de

Boa Viagem, sob a liderança do Pastor André Luis, coordenador da ADVEC em

Pernambuco.

Se elementos de uma neopentecostalização, no que diz respeito à intensificação de

uma cosmologia dual baseada no confronto entre o Deus e o diabo, ao ponto, por

exemplo, de ter em sua programação reuniões voltadas a realização de exorcismos, não

seriam encontradas na ADVEC, a ênfase na pregação da prosperidade financeira, além

do relaxamento nos costumes, são percebidos de forma enfática na dinâmica desta

igreja. Em relação a este último ponto é esclarecedora a fala de Renato, obreiro da

ADVEC Caxangá, que, ao ser interpelado por uma visitante questionando se poderia

entrar no templo trajando calça jeans, responde que ali “não tem esse problema como

na igreja do Pastor Ailton (Campo do Recife)”. A ADVEC se caracterizaria, então,

pela coexistência entre práticas neopentecostais consolidadas e as mais comumentes

relacionadas ao pentecostalismo histórico, conforme podemos ver na sua programação

abaixo:

Programação dos Cultos das Igrejas da ADVEC

Templo/Dia Dom Seg Ter Qua Qui Sex


Sede nacional Escola Bíblica - Culto da - Culto da -
Dominical e Palavra Vitória
Culto público
Sede estadual Escola Bíblica Culto de Culto da - Culto da -
Dominical e Oração Vitória Palavra
Culto público
Filial Caxangá Escola Bíblica - Culto - Culto da
Dominical e da Palavra
Culto público Vitória

19
É nos Cultos da Vitória que se pode perceber com mais intensidade a pregação

baseada na Teologia da Prosperidade. Os que freqüentam este culto participam de uma

campanha onde o crente deve comparecer, no mínimo, sete semanas a fim de alcançar

sua “benção”. No culto da Filial Caxangá, em Recife, são lidas cartas dos fiéis que

agradecem as vitórias, que vão de “portas de emprego abertas”, passando por carros

comprados, cujas chaves são levadas para serem “consagradas”, até casas reformadas,

sempre com aplausos e a repetição do bordão “A vitória do irmão é nossa vitória” após

cada leitura. Em contrapartida, há o estudo sistemático da bíblia no Culto da Palavra.

Durante o mês que freqüentei os cultos da filial Caxangá era o livro do Apocalipse que

estava sendo estudado. Uma apostila elaborada pelo próprio pastor era disponibilizada

para os fiéis que acompanhavam atentamente os slides apresentados pelo seu líder

nestes estudos bíblicos.

Pode-se dizer, assim, que a ADVEC se constitui num híbrido de práticas

neopentecostais, ao pregar a teologia da prosperidade e afrouxar o legalismo nos

costumes, e pentecostais históricas, como a presença da glossolalia em seus cultos,

além de uma preocupação com uma exegese bíblica, durante as prédicas, mais próxima

da encontrada nas igrejas protestantes históricas, fator praticamente ausente nas igrejas

neopentecostais como se pode ver, por exemplo, nas pregações dos pastores da IURD

ou da Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD). A existência de cultos com foco

exclusivo na oração e na consagração (a busca dos dons espirituais), também

comprova uma dinâmica reconhecidamente mais concernente ao pentecostalismo

clássico.

20
Silas Malafaia

A figura principal da ADVEC é, sem dúvida, o pastor Silas Malafaia, presidente

desta denominação deste Março de 2010, quando ainda se chamava AD Penha. Logo

após assumir a presidência um mês após o falecimento de seu sogro, o Pr. José Santos,

que esteve à frente deste “ministério” por 46 anos, Malafaia mudou, como vimos, o

nome desta rede de igrejas para “Vitória em Cristo” e rompeu com a CGADB.

Conhecido o líder evangélico que mais vende CDs, DVDs e livros de suas pregações,

Malafaia também acumula as funções de presidente da editora Central Gospel e da

gravadora Central Gospel Music.

O principal veículo promotor da visibilidade adquirida por Malafaia é o programa

de televisão, por ele comandado, também chamado de „Vitória em Cristo‟, já com 29

anos de exibição no Brasil em redes de televisão como a Rede TV e a Bandeirantes,

onde é transmitido todas as madrugadas. Em parceria com redes de transmissão

estrangeiras, a Inspiration Network e a Daystar, o programa, dublado em inglês, passou

a ser transmitido para os EUA, Europa, Oriente Médio e Ásia. Com isso, de acordo

com o website oficial de seu ministério, o “Vitória em Cristo” já é exibido em mais de

200 países. Silas Malafaia também está inserido numa rede internacional de pastores.

A participação recorrente de tele-evangelistas da Teologia da Prosperidade

americanos, como Mike Murdock e Myles Munroe, e a inauguração de filiais da

ADVEC em Boca Raton nos EUA, atesta sua parceria com pastores e ministérios

oriundos dos EUA, o berço do evangelismo midiático.

Malafaia apresenta ainda um perfil distinto da maioria dos líderes pentecostais por

deixar perceptível nas suas pregações seu nível de instrução, tanto no que diz respeito

ao seu conhecimento teológico quanto sua formação, nos seus dizeres, “secular”, em

Psicologia. Seu maior destaque, porém, no plano nacional tem sido sua atuação na
21
frente evangélica que combate a implantação da PL 122, projeto de lei que versa sobre

a criminalização da homofobia. Sua participação em debates sobre o projeto em

programas de rádio e de televisão, como no Programa do Ratinho no SBT, onde

participou de debate com a relatora da lei, culminando com a passeata realizada em

Brasília, em 1° de Junho, para pressionar o legislativo a não aprovar a lei fizeram de

Silas Malafaia o líder evangélico com maior atuação no espaço público brasileiro nos

últimos anos.

Ministério Vitória em Cristo e Communitas

Mesmo atuando fortemente na expansão de sua igreja, haja vista a recente

inauguração de um templo em Curitiba com capacidade para 3.000 pessoas, agora sede

da ADVEC no estado do Paraná, o principal campo de atuação do Pr. Silas Malafaia se

dá no âmbito do seu ministério4, a Associação Vitória em Cristo, também chamado de

ministério Silas Malafaia5. É uma característica interessante do movimento evangélico,

sobretudo no âmbito pentecostal, a profusão de ministérios que não divulgam

necessariamente a instituição a que estão vinculados, mas o seu propósito de

divulgarem os preceitos evangélicos, sobretudo na música, como o Ministério Diante

do Trono e o Ministério Apascentar. É o carisma do ministro de louvor, ou do pastor

líder, que se evidencia nos ministérios, e não a igreja, a denominação a qual

4
Aqui, para contrapor à utilização anterior do termo, ministério vem sem aspas, sendo
utilizado pelos fiéis quase como sinônimo de vocação, ou missão que transcende o
denominacionalismo. Cada crente deve, então, procurar seu ministério. Os ministérios
organizados, como os de música (Ministério Diante do Trono, Ministério Toque no Altar, etc),
teriam um propósito de, sem fazerem referência à instituição a qual estão vinculadas, se é que
estão vinculadas a alguma, perpetuarem as „boas novas‟ de uma forma específica, neste caso,
através do louvor.
5
Ao digitar a URL ministeriosilasmalafaia.com.br no browser, você será direcionado ao site
da Associação Vitória em Cristo.

22
pertencem. No caso do pastor Silas Malafaia, é o seu ministério que coordena o

programa de televisão por ele protagonizado e que, além disso, organiza os eventos

nacionais também por ele conduzidos, como o Congresso Pentecostal Brasileiro Fogo

para o Brasil, o Congresso de Avivamento Despertai, a ESLAVEC, uma escola de

formação de líderes, e a Cruzada Vida Vitoriosa para Você.

Para entendermos como estes ministérios funcionam faço aqui um paralelo com

o conceito de communitas6, de Victor Turner (1974). Para Turner, há duas

modalidades de relações sociais: O da sociedade tomada como um sistema estruturado,

frequentemente hierárquico, e “o segundo, que surge de maneira evidente no período

liminar, o da sociedade entendida como um „comitatus‟ não-estruturado, ou

relativamente estruturado e relativamente indiferenciado, uma comunidade, ou mesmo

comunhão, de indivíduos iguais...” (TURNER, 1974, p. 119). Se, como dito, é na

liminaridade, momento dos ritos de passagem onde os elementos estruturais são

temporariamente suspensos, que a communitas fica mais evidente, ela só pode se

tornar “acessível por sua justaposição a aspectos da estrutura social ou pela

hibridização com estes”, ou seja, a communitas só pode ser apreendida por alguma de

suas relações coma estrutura. É aí que Turner apresenta a sua tipologia das

communitas: A existencial ou espontânea, o que poderíamos chamar do tipo ideal da

communitas, encontrada nos períodos liminares; a communitas normativa, onde já se

mobilizam recursos e já há a presença tanto de controle social dos membros quanto da

organização baseado num sistema social duradouro; e a communitas ideológica, que

6
Reesink (2007) em “Turner, Weber e o Vidente: reflexões sobre a institucionalização de uma
aparição mariana” faz uma comparação entre os conceitos de carisma, communitas e
efervescência coletiva. A leitura deste artigo ajudou-me a entender o ministério como um tipo
de communitas, no meu caso, entre instituições.

23
pode ser entendida como uma organização em busca de modelos utópicos de

sociedades baseados na communitas existencial (TURNER, 1974).

Proponho que os ministérios protagonizados por pastores e cantores podem ser

comparados aos tipos de communitas que já se situam dentro do domínio da estrutura:

a normativa e a ideológica. Na verdade, entendo que os ministérios evangélicos se

configurariam numa hibridização de ambos os tipos. Um ajuste ainda é necessário. Em

Turner a communitas se dá entre indivíduos. No ministério, por sua vez, aconteceria a

communitas entre instituições. No Congresso de Avivamento Despertai, na marcha

contra a PL 122 e em outros eventos de grande porte protagonizados pelo ministério de

Silas Malafaia, a estrutura denominacional é posta em suspensão, notando-se a

presença de pastores de diferentes igrejas corroborando para um objetivo comum. A

interdenominacionalidade, inclusive, é um fator sempre citado pelo próprio Silas

Malafaia como uma espécie de capital simbólico legitimador do propósito

desinteressado das atividades de seu ministério. O fato de Turner afirmar que a

communitas ideológica consiste na externalização de uma experiência exterior e numa

tentativa de se enunciar esta experiência de forma que elas “floresçam e se

multipliquem”, ou seja, se expandam ((TURNER, 1974, p. 162), consolidam a relação

entre communitas e ministério aqui pretendida.

Entendendo haver alcançado meu objetivo de apresentar os atores indispensáveis à

compreensão do contexto que abrange este trabalho, partirei para a definição, no

próximo capítulo, de um conceito igualmente indispensável aos objetivos que me

proponho alcançar: o conceito de carisma.

24
O caráter coletivo do carisma

Para entendermos como o líder carismático pentecostal constrói sua posição de

autoridade em relação aos crentes e pastores comuns, é indispensável, primeiramente,

entendermos ao que nos referimos exatamente quando utilizamos o termo carisma.

Pretendo apresentar algumas de suas propriedades ao longo deste trabalho. Sua

produção social, a possibilidade de seu compartilhamento e, conseqüentemente, de sua

circulação nas interações da comunidade pentecostal, revelando, por fim, a necessidade

de o carisma ser performado pelo líder carismático, e pelos fiéis, nos momentos de

culto e na vida cotidiana. Neste capítulo tratarei de explanar o caráter coletivo do

carisma. A discussão sobre o conceito de carisma tem como resultado a ênfase no seu

aspecto social, pois os principais autores que se inseriram nesta discussão o fizeram

para se contrapor, ou complementar, a definição clássica do carisma deixada por Max

Weber, que o entendia como qualidade pessoal do líder carismático (1999, 2000).

Apresento as explanações de Weber e logo em seguida as contraponho à discussão de

Pierre Bourdieu (2007) sobre o tema. Não satisfeito com as conclusões de Bourdieu,

por considerar que ele cai no extremo objetivista após criticar o que chama de

subjetivismo weberiano no trato da questão, trago os esclarecimentos de Thomas

Csordas (1997) para o debate. Com eles acredito resolvermos o problema de dissociar

o carisma da personalidade do líder sem tropeçar no que considero o objetivismo

bourdiano. É necessário ainda, e o farei, recuperar a discussão weberiana do tema.

Fugir de um olhar reducionista do seu trabalho e mostrar o que podemos depreender de

suas explanações sobre o carisma para contribuir significativamente com o debate.

Farei o mesmo ao trazer a antropologia da religião de Emile Durkheim (2008) para

25
corroborar com a consolidação do caráter coletivo do carisma, recuperando várias de

suas contribuições negligenciadas pelo próprio Csordas.

Weber e o Carisma como qualidade individual

Max Weber define por carisma

uma qualidade pessoal considerada extracotidiana e em virtude da qual se atribuem a


uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos ou, pelo menos,
extracotidianos específicos, ou então se a toma como pessoa enviada por Deus, como
exemplar e, portanto, como „líder‟” (WEBER, 2000, p. 158, 159).

O poder carismático satisfaz necessidades que transcendem as exigências da vida

econômica, em contraponto às estruturas patriarcais e burocráticas, as quais têm seu

lugar originário na economia, servindo, portanto, para satisfazer as necessidades

cotidianas, normais e recorrentes (WEBER, 1999, p. 323). Esta faceta anti-econômica

do carisma é uma de suas principais características, segundo Weber. O carisma puro é

o contrário de toda economia ordenada e jamais é, para seus portadores, uma fonte de

ganhos privados. Em suma, apesar de viver neste mundo, o carisma não vive dele

(WEBER, 1999, p. 324, 325).

Opondo o poder carismático à racionalização burocrática, Weber diz que esta

revoluciona os preceitos da dominação tradicional por meios técnicos, “de fora para

dentro”, ou seja, modificando as coisas e as ordens e, a partir daí, os homens. Enquanto

isso, o poder do carisma, ao contrário, revoluciona de “dentro para fora” e procura

transformar as coisas e as ordens segundo o seu querer revolucionário (WEBER, 1999,

p. 327). É o caráter de mudança central no modo de pensar, uma verdadeira metanóia 7,

7
Segundo a primeira definição do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, metanóia
significa mudança essencial de pensamento ou de caráter.

26
a principal característica das mudanças impostas pelo carisma, enquanto que a

racionalização impõe aos liderados a apreensão dos resultados exteriores, técnicos,

ignorando o teor de “idéia” das mudanças. (p. 328). Assim, para Weber, o carisma é,

de fato, o poder revolucionário especificamente “criador” da história, por romper todas

as normas da tradição impondo uma sujeição íntima ao nunca visto, ao invés de,

simplesmente, substituir os preceitos da santidade da tradição pelas regras

modificáveis da burocracia (WEBER, 1999).

O teor anti-econômico e extracotidiano por excelência do carisma é ressaltado mais

uma vez por Weber quando este fala sobre sua rotinização. Antes, Weber esclarece que

a existência de uma autoridade puramente carismática não significa uma situação

amorfa com falta de estrutura, sendo, ao contrário, uma formação social com estrutura

claramente definida, baseada na vida comunitária do líder carismático com seus

seguidores. Qualquer mudança nesta estrutura, qualquer desvio destes costumes,

deturpa a pureza da estrutura carismática e conduz a outras formas estruturais. A

rotinização do carisma é inevitável na medida em que há sempre o desejo do líder

carismático, dos seus seguidores, e também dos carismaticamente dominados, de

transformar o carisma em uma propriedade permanente da vida cotidiana. Além disso,

os seguidores do líder procuram sempre satisfazer as necessidades econômicas sem

depender mais do estilo de vida comunitário. Sendo assim, a forma de existência do

carisma acaba por ser subvertida pelo domínio do cotidiano, sobretudo aos interesses

econômicos. (WEBER, 1999, p. 332)

Para Weber, então, o carisma seria um elemento puramente pessoal (id., 1999, p. 303),

qualitativamente singular, determinado por fatores internos e, ainda, alheio à

economia. A dominação nos termos carismáticos se daria na medida em que aqueles a

quem o líder carismático se sente enviado reconhecem sua missão. Este


27
reconhecimento não é a razão da legitimidade, antes, as pessoas são chamadas a

reconhecer essa qualidade em virtude da vocação do líder e das provas de seu carisma.

Se as pessoas não o fazem, o líder fracassa, se há o reconhecimento da missão, o líder

os domina. (WEBER, 2000, p. 159).

Bordieu e o Carisma como capital social

Pierre Bourdieu (2007) faz uma crítica ao conceito de carisma trabalhado por Weber

dizendo que este autor se equivoca ao considerar o líder carismático como portador de

autonomia absoluta, entendendo, a partir disso, a mensagem religiosa como aparição

inspirada. Para Bourdieu, ao tentar fugir do extremo reducionista que considera a

religião como reflexo direto das condições econômicas e sociais, Weber teria caido no

outro extremo, o subjetivista (BOURDIEU, 2007).

Bourdieu quer ressaltar que é das relações recíprocas entre profetas, sacerdotes e leigos

que se deve retirar o entendimento do carisma. Ainda mais, a lógica das interações

entre estes agentes deve ser subordinada à estrutura das relações objetivas entre as

posições que tais agentes ocupam, para utilizar um importante termo bourdiano, no

“campo” religioso. A interação entre os agentes religiosos seria, na verdade, entre

posições distribuídas no campo8 e não entre os indivíduos per si. Tais posições são

determinadas a partir da distribuição desigual de elementos que Bourdieu chama de

“capital social” (ORTIZ, 1983, p. 19, 21). Assim, os indivíduos não poderiam definir a

situação na interação, pois esta já estaria fixada previamente. (BOURDIEU, 2007).

Bourdieu explica que a constituição do campo religioso é resultado da monopolização

da gestão dos bens de salvação por um corpo de especialistas religiosos, acompanhada

8
O “campo” é o “espaço onde as posições dos agentes se encontram a priori fixadas”,
configurando-se como “o locus onde se trava uma luta concorrencial entre os atores em torno
de interesses específicos que caracterizam a área em questão” (ORTIZ, 1983, p. 19)

28
pela desapropriação dos bens religiosos dos excluídos deste corpo, os leigos. Para ele,

a principal característica do campo religioso é a de ser uma reprodução das estruturas

sociais e, portanto, não poderia fugir de sua função política: representar, legitimar e

reproduzir a estrutura social que a construiu. (BOURDIEU, 2007). A religião

cumpriria este papel, primeiro, através da manipulação simbólica das aspirações,

ajustando as esperanças às oportunidades objetivas, e, depois, através da inculcação de

um habitus religioso cuja estrutura (estruturada) é uma reprodução das relações

econômicas e sociais. Resumindo, a religião tem o papel de justificar a existência

numa posição social determinada, legitimando tanto a posição das classes dominantes,

consagrando sua distinção, quanto a posição das classes dominadas, ao introjetar

nestas o ethos da resignação e da renúncia. (BOURDIEU, 2007a, p. 46, 53).

É pelo monopólio desta função política da religião que se configura a concorrência no

campo religioso, concorrência que se dá principalmente na oposição entre o sacerdote

e o profeta. O primeiro representa a Igreja, detentora do monopólio vigente dos bens

de salvação e que visa perpetuar a estrutura do campo religioso. O profeta ambiciona

subverter as posições no campo religioso e questiona o monopólio da Igreja, estando

obrigado, para fazer frente ao capital detido por esta, a realizar a acumulação inicial do

capital religioso. É neste âmbito que se deve entender o carisma em Bourdieu, como

sendo o capital religioso por excelência do profeta. O carisma não seria, então, fruto de

características anímicas. Pelo contrário, deve ser entendido como um recurso do

profeta com vistas à consecução de seu interesse religioso: questionar a autoridade da

Igreja e de seus sacerdotes e subverter as posições vigentes no campo religioso. Com

isso, Bourdieu quer afastar completamente a idéia de que o carisma seja uma

propriedade ligada à natureza de um indivíduo singular, surgindo aleatoriamente de

suas capacidades individuais.


29
Csordas e a construção social do carisma

É necessário superar a antítese que nos deparamos ao contrapor os conceitos de

carisma vistos até aqui. Bourdieu, como já disse, critica Weber por cair no

subjetivismo ao definir o carisma como uma qualidade do profeta. Ao apresentar seus

argumentos, porém, entendo que Bourdieu se desloca para o outro extremo, o

objetivista, anulando a subjetividade do líder, sobretudo a intersubjetividade na relação

profeta-seguidor. Se o carisma não está limitado às qualidades individuais do pastor9,

tampouco pode ser restringido à esfera estritamente objetiva da desigualdade no

acúmulo de capital social (CAMPOS, 2011), o que reduz o fenômeno religioso a uma

mera reprodução das estruturas sociais, que serviria tão somente para justificar a

existência dos indivíduos em uma determinada posição social (BOURDIEU, 2007).

No meu entendimento, Thomas Csordas (1997) é bem sucedido no intuito de separar o

carisma da personalidade do líder sem seguir o caminho, para mim reducionista,

proposto por Bourdieu. É necessário observar ainda, antes de partirmos para explanar a

teoria do Carisma de Csordas, que um olhar mais detido ao trabalho de Weber pode

nos livrar de uma visão simplista de seu trabalho quanto ao carisma. Vejamos: Se há a

necessidade dos seguidores reconhecerem a missão do líder para que se instale a

dominação carismática, já se pode depreender daí um conceito relacional. Ainda, se o

carisma pode preencher tanto a pessoa do líder quanto estar presente numa instituição,

ele não se restringe exaustivamente à personalidade do primeiro. Tendo o carisma,

como vimos, estrutura definida, a comunitária, rotinizando-se quando sua estrutura

sucumbe às necessidades econômicas do grupo, revela-se mais uma vez sua esfera

9
É indispensável dizer que considerado o pastor, líder carismático, um profeta no sentido
weberiano do termo. Apesar deste se localizar numa instituição, como o sacerdote, ele propõe
uma nova maneira de se vivenciar as escrituras bem no estilo “está escrito, mas eu vos digo”
conforme explicitado por Weber.

30
social, não somente de qualidade individual estrita. Csordas (1997), além de aceitar

algumas das premissas que elaborei acima, ainda que enfatizando o carisma em Weber

como qualidade pessoal, também compreende que ele já antecipa o entendimento do

carisma em termos de transformação do self e do habitus. Para reforçar esta

compreensão ratifico que Weber, como já explicitei no início do capítulo, ao

considerar o carisma força eminentemente criadora que exerce uma verdadeira

mudança central no modo de pensar (metanóia), de dentro para fora, aos que se

submetem à sua ação, apresenta claramente a possibilidade de transformação de visão

de mundo do seguidor e a realização por este de uma ação carismática. Porém, se na

análise que faz do carisma Weber vai além das questões pessoais, permanece uma

questão problemática: De fato, no momento em que nos fornece sua definição de

carisma Weber é taxativo ao conceituá-lo como qualidade individual, chamando-o

mesmo de puramente pessoal. É necessário assim, defini-lo com mais propriedade. E

este é o propósito de Csordas.

No capítulo cinco de Language, Charisma and Creativity (1997), Csordas visa

construir uma teoria retórica do carisma baseada na performance e entende que para

isso o lócus do carisma e seu modo de operação precisam ser melhor entendidos. Para

ele, o carisma se localiza não na personalidade de um líder carismático, mas nos

recursos retóricos, daí o “teoria retórica”, mobilizados entre os participantes de uma

performance ritual.

No intuito de apresentar onde realmente se localiza o carisma, Csordas deixa, de

imediato, um postulado:

Dizer que o carisma é percebido como residindo numa personalidade individual é um


dado; Aceitar isto como um fenômeno empírico é uma instância de concretude
deslocada. Deveria fazer toda diferença do mundo referir-se a „qualidade de um
indivíduo‟ como distinto de uma „qualidade imputada a um indivíduo‟. E o fato de

31
Weber ter dito o primeiro tem causado problemas intermináveis para a teoria do carisma
10
(CSORDAS, 1997, p.136, tradução nossa).

Para desfazer este engano, superar os problemas por ele trazidos e definir o lócus

correto do carisma, Csordas, inicia a discussão, paradoxalmente, se utilizando de

autores que ainda o consideram uma qualidade pessoal, afirmando que mesmo neles já

se pode depreender um conceito relacional de carisma. Nos trabalhos de Ann Ruth

Willner e Robert Bellah (apud CSORDAS, 1997) já se pode perceber, segundo

Csordas, que o carisma não está tanto na personalidade do líder quanto na percepção

dos seus seguidores. É possível derivar destes autores que o carisma não é “legitimado

meramente no reconhecimento dos seguidores, como era para Weber, é somente o

reconhecimento dos seguidores que traz o carisma à existência” (p. 137, tradução

nossa).11 O fato do carisma, já em Weber, conforme lembra Edward Shills (apud

CSORDAS, 1997), ser atribuído não só a seres humanos, também é importante para

entendê-lo como distinto de uma qualidade individual. Csordas considera contraditório

denominar o carisma como sendo uma qualidade, já que, segundo o próprio Shills, “ele

existe somente na medida em que é „imputado‟ ou „atribuído‟ às entidades que ele lista

(ações, imagens, relações sociais, assim como a pessoas que o utilizam ou agem nos

seus termos), ainda que a entidade seja uma personalidade „expansiva‟” (p. 138,

10 “To say that charisma is perceived as residing in an individual personality is data; to accept
this as an empirical phenomenon is an instance of misplaced concreteness. It should make all
the difference in the world to refer to the „quality of an individual‟ as distinct from a „quality
imputed to an individual‟, and the fact that Weber said the former has caused endless trouble
for the theory of charisma” (CSORDAS, 1997, p.136)

11 “merely legitimated in the recognition of followers, as it was for Weber; it is only the
followers‟ recognition that bring charisma into existence in the first place” (p. 137).

32
tradução nossa) 12. Isto reforça o entendimento do carisma como uma relação. O mais

importante em tal relação é que ela não se reduz a um mero reconhecimento passivo,

pelo contrário, é ativa, na medida em que atribui e imputa carisma (Csordas, 1997).

Mesmo aceitando, conforme diz Shills, que Weber já antecipa a possibilidade do

carisma ser entendido como separável das pessoas, à medida que poderia habitar em

objetos ou instituições, Csordas insiste que para este autor clássico o carisma continua

sendo uma qualidade pessoal. Com isso, se para Weber a institucionalização do

carisma é uma “‟des-personalização‟, mas que ainda pressupõe um lócus pessoal onde

se inicia tal processo”13 (p.138), o que Csordas quer é “des-nominalizar, deixar de

considerar o carisma uma entidade e, ao mesmo tempo, descentrá-lo da personalidade

do líder”14 (idem).

Csordas prossegue no seu intuito de separar o carisma da personalidade do líder e

resume seu propósito utilizando-se do conceito de cultura de Edward Sapir. Se o

carisma pode estar em qualquer lugar, desde imputado ao líder carismático, até nas

instituições, passando pela relação atribuidora de carisma entre líder e seguidor, por

que não dizer que o carisma estaria, como fez Sapir em relação à cultura, “entre os

participantes de um movimento religioso”?15 (p. 139, itálico no original, tradução

nossa). Mais especificamente o carisma estaria nas “interações entre indivíduos

12
“it exists only insofar as it is „imputed‟ or „attributed‟ to the entities He lists (acts, images,
social relations, as well as in persons Who use or act in terms of them), even when the entity is
an „expansive personality‟” (p. 138).
13
“„depersonalization‟ that presumes a personal locus to begin with” (p.138).
14
“to denominalize or deentify charisma, and at the same time to decenter it from the
personality of the leader” (p.138).
15
“among participants in a religious movement” (p. 139, itálico no original)

33
específicos e nos significados que eles abstraem destas interações”16 (idem, tradução

nossa). Adotando esta premissa, Csordas, finalmente nos entrega seu conceito de

carisma definindo-o como “um modo particular de eficácia interpessoal: não uma

qualidade, mas um processo do self17, intersubjetivo, coletivo e performativo”18 (p.

141).

Para esclarecer o que Csordas quer dizer ao enfatizar o caráter retórico do carisma,

vamos a alguns exemplos de lideranças carismáticas que ele dá em seu texto, neste

mesmo intuito. O primeiro exemplo apresentado é o do padre florentino do séc. XV,

Girolamo Savonarola. Aqui Csordas se baseia na obra de Richard Sennet (apud

CSORDAS, 1997) para dizer que, apesar de Savonarola parecer transpirar carisma

como uma qualidade pessoal, era na eficácia performativa do que ele dizia onde

repousava o carisma. Savonarola se projetava do púlpito para o palco da vida

cotidiana de seus ouvintes, transformando vida em teatro através de um gestual

dramatizado e espetacularizado (p. 148). Segundo Sennet, ele era um performer para

sua audiência. Também é importante dizer que Savonarola inspirava seus ouvintes a

performar os discursos por ele proferidos: ““Ele os inspirava ao teatro; se não estivesse

lá, ou se não pudesse demostrar sua Graça, os membros da multidão seriam como

16
“in the interactions of specific individuals and the meanings they abstract from those
interactions” (p.139)
17
Para Csordas, o self é a capacidade de se engajar e se orientar no mundo, caracterizada por
esforço e reflexividade. São através dos processos do self que os aspectos do mundo são
tematizados, tendo como resultado a objetificação do self como uma “pessoa” com uma
identidade ou um conjunto de identidades culturais (CSORDAS, 1994).
18
“a particular mode of interpersonal efficacy: not a quality, but a collective, performative,
intersubjective self process (p. 141)”

34
atores com linhas para ler num palco sem luzes”19 (p. 148, tradução nossa), ou seja, na

interação entre Savonarola e seus ouvintes, estes, durante as prédicas do frade

dominicano, já sabiam o que fazer, já eram cônscios de sua parte na dramatização.

No segundo exemplo dado por Csordas, o movimento católico Jamaa do Zaire, são três

tipos de linguagem ritual que trazem o carisma à tona. Um deles, o ritual mawazo

baseado na interpretação de sonhos, é definido por Csordas como uma prerrogativa

indispensável para os líderes Jamaa. É na interpretação de sonhos que o carisma é

produzido neste movimento religioso, assim como acontece no último exemplo de

Csordas, o cargo cult dos Kanakas da Nova Guiné. O que possibilita a emergência de

líderes carismáticos entre os Kanakas seria

“O repertório compartilhado de recursos simbólicos contidos no seu myth-dream: um


corpo de noções derivadas de uma variedade de fontes como rumores, experiências
pessoais, desejos, conflitos e idéias sobre o meio-ambiente total que encontra expressão
em mitos, sonhos, histórias populares e anedotas”20 (p. 146, tradução nossa)

É a circulação destes ítens que possibilitaria a emergência do carisma e a condição

para que isto aconteça é a relação orgânica e dialética entre a figura carismática e o

myth-dream. O papel do profeta é, portanto, “fertilizar, energizar e alimentar o myth-

dream”21 (p.146, tradução nossa).

Ao apresentar-nos Savonarola, Csordas deixa claro que o carisma provém da

performance coletiva do que é dito, ou seja, seu lócus está na articulação coletiva dos

aparatos retóricos compartilhados pela comunidade (p. 147). Entre os Jamaa e os


19
“He inspired them to theater; were He not there, or were he unable to demonstrate his Grace,
then the members of the crowd would be like actors with lines to read on a stage without
lights” (p. 148)
20
“the shared repertoire of symbolic resources contained in their „myth-dream‟: a body of
notions derived from a variety of sorces as rumours, personal experiences, desires, conflicts
and ideas about the total enviroment wich find expression in myths, dreams, popular stories,
and anedoctes”. (p. 146)
21
“to refertilize, energize and feed the myth-dream” (p.146)

35
Kanaka Csordas vê que “a retórica da linguagem ritual é novamente, o meio pelo qual

a figura carismática é imbuída de carisma”22 (p. 149, tradução nossa). É importante

salientar, no entanto, que esta performance coletiva não acontece num vácuo: O

carisma brota da performance do que se diz, mas do que é dito em comunhão, o que só

se realiza no compartilhar de um sistema simbólico no seio de uma comunidade

religiosa, tal como a crença na interpretação dos sonhos vista nos dois últimos

exemplos. Em suma, é na articulação, ou performance, coletiva dos recursos retóricos

disponíveis nos sistemas simbólicos dos movimentos religiosos que o carisma vem à

tona.

Durkheim e o líder como emblema

Emile Durkheim (2008) pode nos ajudar a compreender o caráter coletivo do

carisma e consolidar sua dissociação da personalidade do líder. Da mesma forma que

Bourdieu passa ao largo de reconhecer as contribuições de um autor do porte de

Weber, parece-me que Csordas, para defender sua visão fenomenológica do carisma,

subestima as contribuições que Durkheim pode trazer ao debate. A meu ver, Csordas

dispensa o auxilio da antropologia da religião durkheimiana muito precocemente. Cita

alguns autores que seguiram a trajetória durkheimiana para entender movimentos

carismáticos e alega que estes só fizeram esta escolha por Durkheim porque se

depararam em seus trabalhos com movimentos sem liderança definida. Parece que para

Csordas tal escolha seria precipitada, um caminho mais fácil, porém, equivocado e

conclui que não seria necessário utilizar-se de Durkheim para entender [nem mesmo]

estes movimentos (CSORDAS, 1997, p. 140). No entanto, proponho que se

22
“the rhetoric of ritual language is, again, also the means by wich the charismatic figure is
imbued with charisma” (p. 149

36
transpormos a explanação de Durkheim sobre o totem como emblema do clã

(DURKHEIM, 2008) para o líder carismático, entendendo-o como emblema da

comunidade, ou da cultura pentecostal, poderemos, a despeito do que diz Csordas,

trazer contribuições importantes para o debate. Dessa forma chegaremos a um melhor

entendimento das razões para o surgimento do líder carismático, atrelando sua

assunção a uma posição acima de seus pares à dinâmica da própria comunidade

pentecostal.

É sabido que para Durkheim a religião é coisa eminentemente social. Sua hipótese do

caráter sagrado da coletividade é destrinchada em As Formas Elementares da Vida

Religiosa (2008). Aqui Durkheim explica que a religião trata das coisas do sagrado em

contraposição ao profano. Ele escolhe o totemismo para servir de modelo às suas

generalizações a respeito da religião em sentido mais amplo, por esta ser, segundo ele,

a religião mais primitiva de todas. Durkheim declara que é a sociedade (no caso do

totemismo, o clã) quem suscita nos indivíduos a sensação do sagrado, portanto, da

religião. O deus ou princípio totêmico, a força anônima e impessoal que perpassa todos

os elementos considerados sagrados no totetismo23, é tão somente uma expressão

figurativa da sociedade, ou seja, o princípio totêmico é o próprio clã, pensado, porém,

sob formas sensíveis (DURKHEIM, 20008). Nas próprias palavras de Durkheim, o

totem é, simplesmente, “a forma material sob a qual se representa para as imaginações,

através de toda a espécie de seres heterogêneos, [o deus ou princípio totêmico] essa

substância imaterial, essa energia difusa, único objeto do culto” (idem, p. 248)

23
Estas coisas sagradas do totemismo são (1) o emblema, (2) o animal ou vegetal em si que
servem de totem e (3) os membros do clã. “As representações simbólicas do totem são mais
sagradas que o totem em si... Por último nessa hierarquia do sagrado vêm os membros do clã”.

37
Mas se o deus do clã não é outra coisa senão o próprio clã, só que representada para as

imaginações sob a forma sensível do totem e, seguindo as conclusões de Durkheim, o

Deus de uma sociedade não é senão a própria sociedade, como se deu essa

representação? Como a sociedade desperta no indivíduo a sensação do divino?

Segundo Durkheim, a sociedade tem tudo o que é preciso para fazê-lo, porque é para

os seus membros o que um deus é para os seus fiéis. Primeiro, como um deus, é poder

moral e imperativo. A sociedade alimenta em nós sensação de contínua dependência,

exigindo que nos tornemos seus servidores. Fazemos isso porque ela está investida de

autoridade moral, ou seja, é “objeto de autêntico respeito” (p. 261), na medida em que

seguimos suas prescrições sem considerar os efeitos úteis ou nocivos destas. A

sociedade, também como um deus, é força que eleva o indivíduo acima de si mesmo.

Não se constitui apenas como autoridade, mas como força sobre a qual se apóia a

nossa força. Durkheim mostra que “o homem que obedeceu ao seu deus e que, por essa

razão, acredita tê-lo consigo, enfrenta o mundo com confiança e com o sentimento de

energia fortificada” (p. 263, 264).

Enquanto Durkheim explica as maneiras pelas quais a sociedade suscita nos indivíduos

a sensação do sagrado, ele mostra, concomitantemente, como este modus operandi

pode convergir para um objeto ou indivíduo específico, o qual se torna reflexo do

deus-sociedade durkhieimiano. É aí que podemos fazer uma associação direta e

entender o fato de um determinado líder carismático se elevar acima de seus pares

como resultado das formas que a própria comunidade pentecostal suscitaria em seus

membros o sentido do sagrado, citadas acima. Primeiramente: no movimento para

estabelecer-se como poder moral e imperativo, a sociedade reveste com tal

propriedade algumas pessoas que passam a se tornar objeto de autêntico respeito. É por

isso, explica Durkheim, que seguimos os conselhos ou prescrições de alguém. Este


38
respeito origina-se da maneira como representamos um determinado indivíduo (p. 261,

262), ou melhor, da maneira como este indivíduo reflete as representações coletivas.

Estas representações são dotadas de uma “intensidade que os estados de consciência

puramente privados não poderiam atingir” (p. 262). Ao ser um ponto onde tais

representações convergem, a pessoa é envolvida por uma energia física que se torna

imanente à idéia que temos dela (p. 261). Resumindo, segundo Durkheim “é a

sociedade que fala pela boca daqueles que a afirmam em nossa presença; é a ela que

escutamos ao ouvi-los e a voz de todos tem tonalidade que a de um só não poderia ter”

(p. 262).

Em segundo lugar, para ser força sobre a qual se apóia a nossa força, a sociedade

não poderia nos ser totalmente exterior. Durkheim esclarece que ela não nos move

totalmente de fora: “como a sociedade só pode existir nas consciências individuais e

através delas, é preciso que ela penetre e se organize em nós; torna-se assim parte do

nosso ser e, por essa razão, o educa e o faz crescer“ (p. 264). E, para Durkheim, há

circunstâncias especiais onde essa introjeção da sociedade no indivíduo se manifesta:

os momentos de efervescência coletiva. Podemos, então, fazer uma relação com o

carisma: um momento de efervescência coletiva pode ser entendido como uma

experiência carismática, e vice-versa. É em tais ocasiões, como, trazendo um exemplo

do próprio Durkheim, nas “assembléias animadas por uma paixão comum”, que o

carisma é compartilhado e internalizado nos que se colocam sob seu raio de atuação.

Nestas ocasiões “nos tornamos suscetíveis a atos e sentimentos que não seriamos

capazes de outra maneira e só ao término, quando da dissolução da assembléia,

podemos perceber a altura a que tínhamos sido elevados acima de nós mesmos”

(p.264). Durkheim parece falar explicitamente dos líderes pentecostais ao explicar “a

atitude do homem que fala a uma multidão”, atrelando o que chama de sua
39
grandiloqüência ao fato deste conseguir “entrar em comunhão” com os que os escuta.

Sua força advém do fato de que

ele sente em si como que uma pletora anormal de forças que o ultrapassam e que tendem
a se difundir fora dele; às vezes, ele tem até a impressão de estar dominado por força
moral que o ultrapassa e da qual é apenas intérprete... Ora, esse aumento excepcional de
forças é bem real: vem-lhe do próprio grupo a que se dirige. Os sentimentos que
provoca pela sua palavra voltam para ele, aumentados, ampliados, e nessa medida
reforçam o seu próprio sentimento. As energias passionais que ele desperta ecoam nele e
aumentam o seu tom vital. Já não é simples indivíduo que fala, é grupo encarnado e
personificado (DURKHEIM, p. 264, 265, grifos meus)

A força suscitada pela ação da sociedade em nós é vinculada a um emblema, a um

signo, porque, segundo Durkheim, “a coisa em si [ou seja, a própria sociedade], devido

às suas dimensões, pelo número de suas partes e pela complexidade de sua

organização, é difícil de ser abarcada pelo pensamento” (p. 275). Por ser uma entidade

abstrata, não poderíamos ver nela a origem dos fortes sentimentos que

experimentamos, com isso teríamos que relacioná-los a algum objeto concreto cuja

realidade sentimos vivamente (DURKHEIM, 2008). “Se a própria coisa... não pode

servir de ligação com as impressões sentidas, ainda que seja ela que as tenha

provocado, é o signo que assume então o seu lugar; é sobre ele que transportamos as

emoções que ela suscita. É ele que é amado, temido, respeitado; é a ele que as pessoas

se sacrificam” (p. 275). As impressões que o clã desperta nas consciências individuais

recaem sobre o emblema do totem porque é ele, não o clã, nem mesmo o animal ou

vegetal escolhido para totem, que o primitivo vê à sua volta. São as múltiplas imagens

do totem que “se oferecem aos seus sentidos”, repetem-se por toda parte, estão “no

centro da cena”. Enfim, durante os momentos de efervescência é o emblema totêmico

“o ponto para o qual convergem todos os olhares”. (DURKHEIM, 2008, p. 275, 276).

O emblema do totem não só torna mais claro o sentimento que a sociedade tem de si

mesma. Durkheim esclarece que “ele serve para constituir este sentimento; é, ele

40
próprio, um dos seus elementos constitutivos” (p. 287). Para que se estabeleça um

intercâmbio entre as consciências individuais a ponto de entre elas se estabelecer uma

comunhão, ou seja, “uma fusão de todos os sentimentos particulares em um sentimento

comum, é preciso, pois, que os sinais que o manifestam venham fundir-se em uma só e

única resultante” (p. 287). Sem os símbolos os sentimentos sociais só poderiam ter

uma existência precária.

Podemos entender, seguindo Durkheim ainda, que a força suscitada pela comunidade

pentecostal encontra no líder carismático o seu emblema24. Ele seria o objeto concreto

a quem os crentes pentecostais relacionariam, transportariam, os fortes sentimentos por

eles experimentados nos momentos em que os fiéis participam de suas experiências

carismáticas. É ele quem está no centro da cena, o ponto para o qual todos os olhares

convergem nestes momentos de efervescência. Mais ainda, o líder carismático seria,

também, elemento constitutivo da comunidade pentecostal, não apenas a forma

material que torna mais perceptível a unidade social. Nos termos durkheimianos, ele

seria a resultante onde todos os sentimentos particulares se fundiriam estabelecendo a

comunhão entre as consciências individuais. Entende-se então, que numa perspectiva

durkheimiana o líder carismático seria a personificação das representações coletivas da

cultura pentecostal. No próprio conceito de Csordas há um entendimento de que é nos

recursos retóricos mobilizados pelos participantes de um movimento religioso que o

carisma se localiza. E o que seriam tais recursos retóricos senão elementos presentes

nas representações coletivas da própria cultura pentecostal? Porém, é necessário

reconhecer que Csordas dá um passo adiante no entendimento do tema. Se em

24
Esta idéia foi desenvolvida pela professora Roberta Campos numas das reuniões reservadas
à discussão da bibliografia concernente ao seu projeto financiado pelo CNPQ, “Textualidade e
Oralidade da Bíblia”, do qual faço parte como pesquisador de iniciação científica voluntário.

41
Durkheim podemos ver que o líder carismático é o emblema da cultura pentecostal, é

em Csordas que podemos saber como isto acontece: como já visto, na performance do

aparato retórico contido no sistema simbólico da comunidade.

É justamente o aprofundamento da discussão sobre esta cultura pentecostal e de

como ela necessita ser performada pelos crentes ordinários, um dos focos do último

capítulo deste trabalho. O que chamo de “cultura pentecostal”, termo que usarei a

partir daqui, é o sistema simbólico compartilhado numa comunidade pentecostal, tendo

sempre em mente as representações coletivas de Durkheim. Esta cultura seria baseada

na busca generalizada pelo carisma, onde o crente precisaria, continuamente, interagir

no intuito de se provar como preenchido pelo Espírito Santo. É a partir daí, como

veremos principalmente através de depoimentos recolhidos em conversas com crentes

da Assembléia de Deus, que o fiel constrói sua identidade como pentecostal e,

conseqüentemente, o carisma circula. Além disso, esta busca desembocaria na

construção da imagem do líder carismático pentecostal, personificação e ícone da

cultura pentecostal, e pedagogo da performance carismática. O outro foco do último

capítulo será especificamente o trato dos mecanismos pelos quais o líder constrói sua

autoridade e consolida o papel de personificação da cultura pentecostal. Para isso

utilizarei majoritariamente a mensagem realizada pelo Pastor Silas Malafaia, no

Congresso de Avivamento Despertai realizado em Recife, em Outubro de 2010. Antes

de partirmos para o último capítulo, porém, trarei uma discussão metodológica

concernente às minhas impressões advindas do trabalho de campo realizado no

referido congresso.

42
Um interregno metodológico. “Sozinho” numa casa de shows “deserta”: a relação
entre estranhamento e familiaridade e o papel da subjetividade na construção do
conhecimento antropológico.

Imagine o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipamento, numa praia tropical
próxima a uma aldeia nativa, vendo a lancha que o trouxe afastar-se no mar até
desaparecer de vista... você não tem nada para fazer a não ser iniciar
imediatamente seu trabalho etnográfico. Suponhamos, além disso, que você seja
um principiante, sem nenhuma experiência, sem roteiro e sem ninguém que o
possa auxiliar... Imagine-se entrando pela primeira vez na aldeia, sozinho ou
acompanhado de seu guia branco... (MALINOWISKI, 1976)

Foi exatamente este trecho da introdução dos Argonautas que lembrei ao entrar

naquela casa de shows lotada, não para a apresentação de algum grupo, cantor ou

cantora musical de sucesso (se bem que fosse haver muita música naquela noite ainda),

mas para ver de perto o Pr. Silas Malafaia conduzindo o 8º Congresso de Avivamento

Despertai, realizado no Recife, em outubro de 2010. Imaginei o frio que percorria a

espinha do grande Malinowski ao se ver sozinho naquela praia deserta sem ter nada

para fazer a não ser começar sua etnografia, suponho, para espantar rapidamente o

desejo de desistir e fugir dali. Eu estava sozinho, mas não tinha sido levado por uma

lancha, lá cheguei dirigindo o carro do meu pai. Não estava em uma praia deserta, ou

entrando numa aldeia, mas na maior casa de shows do estado. Também não precisei de

guia branco algum, pois podia entender perfeitamente o português que ali se falava,

mas mesmo assim, como consta no meu diário de campo elaborado naquela noite,

sentia-me “acuado, fora de lugar, sentado no canto fazendo anotações, sem coragem

alguma de me levantar e falar com as pessoas“ (Diário de Campo, 15/10/2010). Não

precisava supor ser um principiante, sem nenhuma experiência, sem roteiro e sem

ninguém que pudesse me auxiliar, pois esta era exatamente a descrição fiel de minha

situação (ainda sou principiante, porém já posso contar esta experiência). Restava-me

43
apenas, como eu supunha ter sido a estratégia de Malinowski, começar a fazer alguma

coisa antes que eu cedesse às súplicas de minha consciência para que saísse de lá,

afinal, eu não precisava esperar outro barco vir me buscar, era só pegar o carro e ir

embora. Ainda que decidido a dar início ao que eu entendia ser o trabalho etnográfico

propriamente dito (gravar, anotar, observar), permanecendo assustado com todo aquele

novo mundo a explorar, não procedi como havia planejado: não elaborar de imediato o

diário de campo, deixar aquela primeira noite apenas para observar e gravar minhas

impressões imediatas25. Ao invés disso “preferi anotar a gravar minhas impressões.

Morri de vergonha de tirar o gravador e começar a falar nele: todos iriam ficar

olhando” (Diário de Campo, 15/10/2010). Estava ali para analisar a performance do Pr.

Silas Malafaia durante a mensagem que ele daria aos congressistas e pretendo, através

desta experiência que tive, explorar a relação entre estranhamento e familiaridade,

além do papel da subjetividade, na construção do conhecimento antropológico.

Do familiar e do estranho

Roberto Da Matta (1978), em seu já clássico artigo sobre o trabalho de campo, diz

que tornar-se antropólogo é aprender a fazer uma dupla tarefa: transformar o exótico

no familiar e/ou transformar o familiar em exótico, estando o estranhamento, requisito

indispensável para a construção do conhecimento antropológico, presente em ambas.

Para o autor, a primeira transformação – do exótico em familiar - corresponde ao

movimento original da Antropologia, quando os etnólogos buscavam o “outro”

25
A técnica de gravar o diário de campo foi registrada primeiramente por Adjair Alves na sua
tese “O rap é uma guerra e eu sou gladiador: um estudo etnográfico sobre práticas sociais dos
jovens happers e suas representações sobre violência e criminalidade”, PPGA-UFPE, 2009.
Sob orientação da Prof (a) Roberta Campos.

44
distante sociologicamente, e geograficamente, e tentavam compreender os enigmas

sociais incompreendidos pelo Ocidente. A segunda transformação corresponde ao

momento presente,

quando a disciplina se volta para a nossa própria sociedade, num movimento semelhante
a um auto-exorcismo, pois já não se trata mais de depositar no selvagem africano ou
melanésio o mundo de práticas primitivas que se deseja objetificar e inventariar, mas de
descobri-las em nós, nas nossas instituições, na nossa prática política e religiosa. O
problema é, então, o de tirar a capa de membro de uma classe e de um grupo social
específico para poder – como etnólogo – estranhar alguma regra social familiar e assim
descobrir (...) o exótico no que está petrificado dentro de nós (...) (DA MATTA, 1978, p.
28).

Depois da experiência obtida no 8º congresso de Avivamento Despertai percebi que as

duas transformações estavam presentes no meu trabalho. Antes de mostrar esta

imbricação entre transformar o exótico em familiar e o familiar em exótico na minha

etnografia, é necessário falar do que me era familiar - e do que me era exótico – em

relação aos adeptos do protestantismo pentecostal antes de entrar sozinho naquela casa

de shows “deserta”.

Fui evangélico, membro de uma igreja pertencente à convenção batista nacional, a

qual havia rachado com a convenção tradicional (batista brasileira) pelo fato de uma

parte de seus líderes terem passado pelo que chamaram de renovação espiritual. O

grupo que havia fundado a comunidade da qual participava saiu de uma igreja batista

tradicional na cidade de Camaragibe, a primeira a surgir ali, para abrir outra, ligada à

ala renovada dos batistas. Devido à formação tradicional dos fundadores, práticas

reconhecidamente pentecostais como a ênfase na cura, e em outros dons do espírito,

ainda que fossem incentivados, não eram centrais na liturgia da nova congregação. Isto

possibilitou a convivência entre grupos que iam dos mais aos menos “avivados” no

seio da mesma comunidade, o que faz com que eu a classifique como tendo uma

prática intermediária entre a liturgia pentecostal e a protestante histórica. Eu fazia parte

45
do grupo mais próximo das práticas tradicionais. Aos 14 anos me converti justamente

na comunidade da qual os membros fundadores haviam saído para criar a nova, e

renovada, igreja. Alguns anos depois, aos 18, fiz o mesmo caminho: saí da igreja

tradicional e busquei a congregação que havia passado pelo “avivamento”, mesmo sem

saber ao certo o que isto significava. O que realmente procurava era uma liturgia

menos sisuda e cheia de restrições, característica muito atrativa para um jovem.

Cheguei à igreja renovada quando esta possuía 13 anos de existência, já sendo, a esta

altura, a congregação com o maior número de jovens na cidade. Envolvi-me naquela

instituição com um grau de comprometimento acima da média. Participei de grupos de

música, teatro, dei aula na escola bíblica dominical, até tornar-me líder dos

adolescentes e, posteriormente, dos jovens. Decidi tornar-me, então, pregador. O

momento da pregação era o mais sublime de todos para mim. Ficava entorpecido com

o efeito que a mensagem deixava nas pessoas. Imputavam a mim o dom da palavra:

cheguei a ser várias vezes o pregador no culto principal da igreja, que possuía, nesta

época, em torno de 3.000 membros. Escolhi para estudar, ratificando minha posição

mais próxima aos protestantes históricos, em um dos seminários teológicos mais

tradicionais do Brasil. Envolvi-me também, posteriormente, com um grupo de teólogos

percebidos no meio evangélico como sendo progressistas: os adeptos da teologia da

Missão Integral, que podem ser classificados como integrantes da versão protestante da

teologia da libertação católica. Esta trajetória, as escolhas e os grupos aos quais aderi

tornaram-me extremamente resistente às doutrinas essencialmente pentecostais,

sobretudo neopentecostais. Criticava ferrenhamente a teologia da prosperidade como a

comercialização do evangelho e via os pastores nela envolvidos como meros

charlatões. Aos 25 anos, um ano antes de desistir do curso de Economia e transferir-me

46
para o curso de Ciências Sociais, deixei a igreja e o curso de Teologia. Não desejava

mais ser pregador, nem tampouco evangélico.

Os pentecostais, sobretudo os neopentecostais, eram para mim, então, uma multidão

que se reunia para “bater panelas”, ou seja, fazer muito barulho desnecessário sem

nenhuma consistência teológica. Entendia-os, ainda, como um bando de

(des)enganados pelos charlatões da palavra. Ao entrar naquela casa de shows e

verificar que as impressões em mim arraigadas desde o tempo em que era um “nativo”

não se confirmaram, começou ali o processo de transformação do exótico em familiar.

A identificação de classe foi a primeira a aparecer, como relato em meu diário de

campo: “Com certeza há pentecostais de classe média. A aparência das pessoas

denuncia. Não devia esperar nada diferente disto já que o ingresso custa R$ 40,00”

(Diário de Campo, 15/10/2010). Entendi que os pentecostais não eram apenas

compostos por pobres, fáceis de serem ludibriados. A estética também foi um motivo

de estranhamento. Não havia apenas mulheres de saias longas, cabelos amarrados, de

estilo conservador/retrógrado, como eu esperava. Jovens com roupas da moda

desfilavam o tempo inteiro pelo salão. Como relatei no meu diário vi que “algumas

mulheres têm seus trajes de acordo com as pentecostais tradicionais, mas várias usam

calça, maquiagem e outros” (Diário de Campo, 15/10/2010). Impressionava-me o fato

de que “as pessoas são mais bonitas do que eu pensei que seria” (Diário de Campo,

15/10/2010). A liturgia também não era um “bater constante de panelas”, como eu

esperava. Os cânticos e as manifestações de louvor dos fiéis eram esteticamente belas,

até. Entendo que o meu maior motivo de estranhamento foi ter percebido que eu

poderia estar ali, não como pesquisador, mas como um deles, não fossem minhas

escolhas. Estar lá me fez passar pelo processo que Da Matta (1978) afirma ser um

47
encontro com o que a própria cultura do pesquisador reveste de bizarro. Foi por meio

de apreensões cognitivas (citando Da Matta ainda), através da via intelectual, que pude

desfazer a imagem que tinha dos pentecostais, construída por mim desde os tempos da

atuação militante entre os teólogos da missão integral.

Esta relação imbricada entre “familiar” e “estranho” é relatada por Maria Laura

Viveiros de Castro (2003) no artigo em que fala de sua experiência de trabalho de

campo entre os espíritas. As noções de familiar e estranho/exótico são diferentes em

Da Matta e Viveiros de Castro, mas analisar tais noções nesta autora serve para

compreender, na minha pesquisa, o processo chamado por ela de “des-conhecer”, o

qual se assemelha à atitude de transformar o exótico em familiar de Da Matta. Para

Viveiros de Castro, o centro espírita onde realizava sua pesquisa lhe era “familiar”

porque se localizava num bairro que remetia à sua infância. E “estranho” ao ser o

responsável por mudar a configuração daquele lugar que ela conhecia anteriormente

como um supermercado, onde brincava quando criança com as cores das latas

empilhadas pelos corredores, sem falar em todo o segredo, e o medo, que ronda esta

religião, para aqueles que, obviamente, não a conhecem. Para ela, estar ali era

“aproximar-se de um „familiar‟ – aquele comecinho de Ipanema – que lhe era

„estranho‟ – os bazares, sujos, desarrumados e espíritas!” (CAVALCANTI, 2003, p.

120). É aí onde está a diferença das noções levantadas por estes autores trabalhadas até

aqui: em Viveiros de Castro o “estranho/exótico” e o “familiar” não são os extremos a

serem transformados um no outro, a depender da situação, pelo antropólogo herói ou

xamã (termos utilizados por Roberto Da Matta para definir o tipo de protagonista de

cada viagem de transformação). O “estranho” e o “familiar” convivem no mesmo

“objeto”, situação que também aconteceu no meu próprio trabalho de campo. Focando

48
na questão da familiaridade, comparando minha experiência com a da autora, soava

“familiar”, para mim, falar dos pentecostais, tecer comentários sobre quão

desengonçadas eram as assembleianas, criticar sua inaptidão teológica ou seu

fanatismo e intolerância costumeiros. Para a autora, “familiar” era o lugar da pesquisa,

as pessoas lhe eram “estranhas”. Para mim, as pessoas me eram familiares (pelo menos

achava que era até estranhá-las), afinal, elas foram, durante muito tempo, o principal

motivo de críticas de um jovem candidato a pastor. O lugar, e no meu caso se tratava

de um lugar sociológico, este sim, foi o principal fator de estranhamento, ao contrário

do que aconteceu com Maria Laura Viveiros de Castro. Ter me deparado com um

grupo oriundo das camadas médias urbanas no momento do meu trabalho de campo

foi, justamente, o gatilho para iniciar-me neste processo imprescindível a todo

antropólogo. Perceber que não havia entre nós, à primeira vista, fronteiras

sociológicas, produziu em mim o estranhamento de projetar-me neles (já que não

queria fazê-lo), ver-me caber ali, podendo ser amigo daquelas pessoas as quais eu

considerava tão diferentes de mim. Esse des-conhecer, ou seja, desfazer-se de

conhecimentos pertencentes à esfera do senso comum (e é justamente o tipo de

conhecimento que eu possuía, pois nunca havia participado de um evento pentecostal

daquela dimensão antes) na medida em que se aproxima do grupo a ser estudado é,

segundo a autora, uma exigência para a construção do conhecimento antropológico.

Tal des-conhecer foi completado ao verificar que estava enganado quanto às minhas

concepções anteriores, e que havia ficado, poderia dizer, encantado pela estética das

pessoas, do local, e da liturgia.

Quanto à segunda transformação citada por Roberto Da Matta (1978), transformar o

familiar em exótico, descobrir o exótico no que está petrificado dentro de nós, foi,

49
como vários outros autores, e o próprio Da Matta, já o disseram, um processo mais

difícil. O objetivo de minha ida ao 8º Congresso de Avivamento Despertai era verificar

a performance do Pr. Silas Malafaia analisando-o, nas palavras de Simon Coleman

(2009), como um Mestre da Narrativa. Era necessário acompanhar a mensagem que o

Pastor Malafaia realizaria naquela noite e verificar como sua posição de superioridade

espiritual em relação aos demais é construída na interação com os fiéis, face a face.

Mesmo não freqüentando um culto evangélico sequer há cinco anos, nem me

identificando mais como evangélico já há algum tempo, ainda havia um resquício de

encanto em relação a este momento, o da prédica. A academia ainda não me

proporcionara as sensações que me vinham quando do recebimento, ou da execução,

de uma prédica, nos meus termos, bem realizada. Tornar a mensagem o centro de uma

pesquisa científica e entendê-la como fazendo parte de uma ideologia linguística26 que

a abrangia e de uma dramatização do carisma por parte de quem a realizava não seria

tarefa fácil, mesmo que o pastor fosse alguém a quem, na minha época de pregador, eu

não admirasse tanto. Eu precisava fazer o que Roberto Da Matta (1978) chamou de a

viagem do xamã, para dentro de mim mesmo, a fim de poder transformar o familiar em

exótico, desligar-me emocionalmente daquilo e, finalmente, encontrar-me com o outro

e com o estranhamento. A experiência no campo de Carmen Susana Tornquist (2007),

ao realizar sua pesquisa no seio do movimento social do qual era ativa militante, o

movimento pelo parto humanizado, serve para iluminar um pouco do que acontecera

comigo. Não pretendo equiparar nossas experiências, pois não fazia minha pesquisa

26
Robbins diz que a ideologia lingüística, termo usado pioneiramente pelos antropólogos do
Cristianismo, “refere-se às idéias compartilhadas pelas pessoas sobre a natureza da linguagem,
como ela funciona, e como as pessoas devem usá-la. Ideologias da linguagem variam muito
entre os grupos, e formam componentes cruciais da visão que as pessoas possuem, não só
sobre comunicação, mas também sobre a natureza da pessoa, ação e moralidade” (ROBBINS,
2010, p. 13).

50
dentro do meu próprio grupo, o que só aconteceria, ainda que dele não faça mais parte,

se analisasse os teólogos da missão integral. No entanto, o conceito de alteridade

construída, utilizado pela autora, serve para esclarecer, guardadas as devidas

proporções, minha experiência. Tornquist mostra que “a antropologia das sociedades

urbano-industriais exige que o estabelecimento de fronteiras, tênues do ponto de vista

geográfico e social, sejam estabelecidos simbolicamente pela pessoa que faz a

pesquisa” (TORNQUIST, 2007, p. 44). A questão, então, se resumia em erigir

fronteiras simbólicas esforçando-me para objetivar, em mim mesmo, tais fronteiras. O

questionamento da autora sempre foi “como estranhar o que me era tão familiar?” e eu

precisava fazer esta pergunta a mim mesmo, ainda que, diferente dela, não mais

convivesse com este familiar. Se bem que eu nutria (ainda nutro?) a esperança de num

futuro longínquo, senil e cansado das vicissitudes da vida acadêmica, eu voltasse a

tratar não mais de desencantar as almas dos meus leitores, mas de voltar a encantar a

vida de alguns. Rememorar e recolocar as lentes da teoria foi a estratégia utilizada por

mim para analisar a performance do Pr. Malafaia para que, ao invés de fazer uma

análise teológica da mesma, procedesse com uma análise antropológica.

O lugar da subjetividade e o papel das emoções no fazer etnográfico

A subjetividade foi relegada ao segundo plano na construção do conhecimento

científico ocidental, não só nas ciências naturais, mas também nas ciências humanas. O

nascimento da Sociologia, e a construção de seus métodos, estão enquadrados na

tentativa de transportar inequivocamente a metodologia pretensamente garantidora da

objetividade das ciências naturais para as ciências do espírito. Roberto Cardoso de

51
Oliveira (RCO) (1995) nos mostra como Durkheim, nas suas Regras do Método

Sociológico, faz questão de desqualificar a subjetividade como integrante da

verificação dos fatos sociais na Sociologia, a fim de conferir cientificidade a esta

disciplina então nascente. Durkheim visa, esclarece RCO, eliminar tudo aquilo que

seja variável na análise dos fatos sociais. Quanto mais fixidez no objeto a ser estudado,

mais objetividade, conseqüentemente, menos variação. A variação é o vilão da história

na medida em que ela implica a presença do elemento individual, portanto variável e,

por sua vez, pertubardor de qualquer tentativa de generalização, ou seja, de se alcançar

o conhecimento objetivo. RCO nos mostra que, para Durkheim, devem-se estudar os

fatos sociais onde eles se apresentam isolados de suas manifestações individuais. O

método serviria, então, para garantir a eliminação da subjetividade do sujeito

cognoscente e da conseqüente individuação do objeto cognoscível, os quais trariam

como conseqüência a inviabilidade de qualquer pretensão científica, entendida aqui

como a capacidade de quantificar os fenômenos (OLIVEIRA, 1995)

Tendo o que ele chama de cientismo se solidificado na sociologia, RCO diz como a

hermenêutica vai resgatar a subjetividade para seu interior. Primeiro há a necessidade

de superar a confusão que o cientismo faz entre verdade e certeza. É somente a

segunda que o procedimento metodológico garante através da verificação de seus

passos. A verdade não é monopólio do método. Em segundo lugar, é necessário,

segundo RCO, de um momento não-metódico, chamado pela hermenêutica de

compreensão, em oposição à explicação, o momento estritamente metodológico, para

apreender o excedente de significação não apreensível pelo método. Não se trata de

desfazer-se da explicação devido às possibilidades abertas pela compreensão, “mas

saber o que pode estar em seu lugar quando – e somente quando – dele escaparem

52
realidades tangíveis por qualquer outra realidade que não seja metódica” (OLIVEIRA,

1995: 8). A subjetividade é resgatada e entendida como envolvendo o momento

metódico, ou seja, o momento da explicação, já que o “precede, acompanha e fecha”,

no sentido de que a própria escolha dos assuntos a serem pesquisados está inserida no

domínio da subjetividade, bem como no sentido de ser a única maneira de se apreender

os fenômenos não quantificáveis.

RCO fala do resgate da subjetividade para a epistemologia, porém, em seu texto,

não fica claro como ela atua na construção do conhecimento. E era justamente esta

questão que me angustiava enquanto entrava naquela casa de shows onde passaria pelo

meu “batismo antropológico”. Fui ao Congresso imbuído de alguns conceitos quanto à

postura que deveria assumir no trabalho de campo, mas ficava em aberto ainda, e

principalmente, como eu conseguiria, uma vez no campo, construir conhecimento

sobre o papel do pregador na expansão do pentecostalismo. Pretendia entender a

relação entre o pastor e os fiéis como sendo produtora de carisma e possuía algumas

recomendações, advindas de minhas leituras, de como deveria me portar a fim de

conquistar meu objetivo. Sabia, como diz Maria Laura Viveiros de Castro (2003), que

era necessário “deixar-se levar”, o que significa um aparente abandono de si diante de

uma determinada situação. Esperava que o “descentramento”, causado pelo choque

entre minha cultura e a dos meus pesquisados, como diz José Guilherme Magnani

(2009), iluminasse os elementos que eu buscava, fazendo com que, conforme disse

Roy Wagner (2010), eu conseguisse efetuar a “invenção da cultura” pentecostal,

tornando-me um intérprete dela, baseando-me, inevitavelmente, na minha própria

cultura. Preencher os “resíduos” entre minha teoria e a teoria dos nativos, conforme

disse Mariza Peirano, ou deixar-me “afetar”, como recomendou Favret-Saadra (2005),

53
também eram meus objetivos. Mas como exatamente faria isso na prática? Deixaria

que “a presença continuada no campo e uma atitude de atenção viva” (MAGNANI,

2009) ou “uma mistura de empatia e humildade como forma de abordar a realidade”

(CAVALCANTI, 2003) fizessem seu trabalho? Ficaria ali sentado no meio daquelas

pessoas e esperaria passivamente ouvir os primeiros acordes do “anthropological

blues” (DA MATTA, 1978)?

É através das emoções, os agentes da subjetividade, que apreendemos, e ao mesmo

tempo construímos, aquilo que o método não consegue dar conta. O papel das emoções

na construção do conhecimento é detalhado por Alison M. Jaggar (1997), quando ela

esclarece a relação entre a observação e as emoções. A observação constitui as

emoções, na medida em que estas não são simples respostas instintivas a situações ou

eventos, em vez disso, dependem essencialmente do modo como percebemos estas

situações, através de nossos valores, e de como aprendemos ou decidimos responder a

elas. Da mesma forma que a observação constitui as emoções, estas constituem a

observação, já que observar não é apenas inferir, mas é uma atividade de seleção e

interpretação, e o que se seleciona e se interpreta é influenciado pelas atitudes

emocionais. Em suma, “a experiência individual da emoção focaliza a atenção

seletivamente direcionando, moldando e até definindo em parte nossas observações,

exatamente como nossas observações direcionam, moldam e definem em parte nossas

emoções” (JAGGAR, 1997, p. 167,168).

Não haveria outra forma mais intensa das emoções entrarem em cena na construção

do conhecimento do que na prática antropológica. Miriam Pilar Grossi (1992) chama

de “mergulho na subjetividade” o contato com o outro, pois este suscita perguntas

como “afinal, quem sou eu mesmo?”, “o que significa minha própria cultura?”. A

54
subjetividade é entendida como constituidora do processo de conhecimento na medida

em que conhecemos porque sentimos, assim como Loring Danforth, cita Grossi, só

conheceu o significado da morte para um grupo de camponeses gregos a partir de seu

próprio sentimento de perda, suscitado por uma canção em um velório (GROSSI,

1992). Esta autora, citando diretamente Danforth, permite entendermos o que se

sucedeu: “... quando começaram a cantar um lamento sobre a separação violenta de

dois irmãos pensei em meu próprio irmão e chorei. A distância entre eu mesmo e o

outro tinha se tornado realmente pequena” (GROSSI, 1992, p. 13,14).

Diante daquela multidão entoando um canto que eu conhecera ainda na minha

adolescência, comecei a me lembrar do quanto fiz amigos naquela época. De como

amizades profundas, verdadeiras e duradouras foram construídas no tempo, 11 anos,

que passei entre uma igreja e outra. Comparei imediatamente a situação com a que

vivenciava na atualidade: o número que considerava reduzido de amizades

(verdadeiras) num ambiente que remete diretamente à competição, muitas vezes

desleal. Fiz, sim, amigos na faculdade, havia, também, competição naquela outra

realidade, mas o sentimento balizador daquela sociabilidade, o que eu via acontecer

novamente diante dos meus olhos, era a solidariedade mútua. Pude presenciar o que foi

debatido no capítulo teórico deste trabalho: o carisma é produzido coletivamente numa

dramatização orquestrada na interação entre platéia, cantores e pastor. Em vários

momentos, o carisma parece estar muito mais na congregação do que no pastor. Este

serve, como também já foi dito, baseando-me em Durkheim (2008), de emblema da

ação carismática, fazendo o trabalho de gatilho emocional, utilizando-se, consciente ou

inconscientemente, de termos e dramas na sua mensagem performada. A música

suscitou as lembranças de Danforth e as minhas. Porque sentimos, conhecemos. Minha

55
subjetividade, constituída na lembrança de minhas amizades, apreendeu, compreendeu,

a subjetividade daquele grupo que se abraçava e entoava um lindo cântico e passei a

“ver” o carisma “reaching me out” (me alcançando), como diria Simon Coleman

(2009), se lesse o trecho do meu diário de campo que se refere justamente a este

momento: “As pessoas todas juntas, cantando e batendo palmas. Não há como não se

arrepiar no meio desta multidão” (Diário de Campo, 15/10/2010). A distância entre eu

mesmo e o outro tinha se tornado realmente pequena.

A prática etnográfica e o protagonismo da subjetividade

As subjetividades são os motores de nossa prática cotidiana, conforme nos diz

Sherry Ortner (2007). Para compreendê-las, num outro grupo, é preciso um “mergulho

na subjetividade”, como diria Grossi (1997). A prática etnográfica, após esta

experiência, deixou de ser, para mim, simplesmente anotar, gravar e observar. A

subjetividade deve ser entendida, nos dizeres de Da Matta (1978) , como um “dado

sistemático da situação”, e como nos diz, mais uma vez, Miriam Pillar Grossi (1997),

“constituidora do processo de conhecimento”. Subjetividade só se lê, já que a cultura é

um texto, com as lentes de nossas subjetividades, os motores da ação social, nossa e de

nossos “outros”, e os vetores da construção epistemológica. São nossas subjetividades

protagonistas, também, no processo de estranhamento, crucial para o conhecimento

antropológico. Se familiarizar o exótico faz parte de uma tarefa racional e cognitiva, a

viagem contrária é subjetiva, emocional, afetiva e provoca um encontro com a

alteridade, seja ela sociológica ou construída simbolicamente, além de um encontro

com nós mesmos. Se Heráclito diz que não se pode entrar duas vezes no mesmo rio,

56
pois nem o rio, nem nós seremos os mesmos, participar deste rito de passagem que é a

etnografia é “estranhar” cada vez mais a si próprio, tornar-se um degredado, já que,

sendo uma ponte entre duas culturas, se é sempre ponte, transição, sem pertencimento

completo. Há uma enorme diferença entre os ensinamentos obtidos nas leituras e o

momento onde se ouvem os acordes do anthropological blues. Como provar deste

momento? Imagine-se, você, leitor, numa casa de shows “deserta”...

57
Da cultura ao ícone pentecostal27

Antes de entrar na casa de shows “deserta” e analisar especificamente a

performance do pastor Silas Malafaia, é indispensável apresentar o que chamo de

cultura pentecostal. Através do depoimento de alguns crentes pentecostais por mim

entrevistados, mostrarei que esta cultura se assenta, sobretudo, na busca generalizada

pelo carisma, sendo justamente na consecução desta busca que o carisma circula e,

por conseguinte, os crentes constroem suas identidades como pentecostais28. Os fiéis

se encontrariam permanentemente submetidos ao escrutínio da comunidade,

necessitando provarem-se, e permanecerem se provando, como pessoas “cheias do

Espírito Santo”. É indispensável proceder com a explanação desta cultura baseada na

urgência pelo preenchimento com o Espírito Santo, porque, na minha concepção, é ela

quem possibilita, incentiva e impulsiona o surgimento dos grandes líderes

pentecostais: aqueles que chegaram ao patamar mais elevado, quase inalcançável pelo

crente comum, desta busca. Os pastores-celebridade galgaram os maiores níveis de

uma estratificação carismática latente na cultura pentecostal, já que, no nível do

discurso, todos estariam no mesmo patamar de santidade: Não há santos protestantes,

posto que todos são santos. Só depois mostrarei, baseando-me na mensagem de Silas

Malafaia no Congresso de Avivamento Despertai, como o líder pentecostal deve


27
Este capítulo se insere diretamente nas discussões concernentes ao projeto “Oralização e
Textualidade da Bíblia”, coordenado pela prof(a) Roberta Campos do qual sou pesquisador de
iniciação científica voluntário.
28
A expressão „construção‟ da identidade carismática é utilizada aqui no lugar do termo
„produção social do carisma‟, enfatizado no segundo capítulo. O que o antropólogo entende
como um processo, a „construção‟, “inventando” cultura nos moldes de Roy Wagner, o fiel
entende como „produção‟, realidade ontológica. As expressões são intercambiáveis, mas a
preferência pela primeira se dá por entender que, neste capítulo, procedo mais fortemente com
a tentativa de “tradução” da cultura pentecostal para os termos acadêmicos.

58
realizar a performance do carisma, no intuito de construir, e, principalmente, manter,

sua autoridade carismática nas interações face a face com a comunidade de fiéis.

Conhecimento e Poder

Para Ari Pedro Oro (2009, 2010), que realizou trabalho de campo no Breakthrough,

congresso pentecostal internacional realizado em Buenos Aires, na Argentina, é “a

força do carisma pessoal” dos promotores do evento que funciona como atrativo para

os congressistas. No caso específico de pastores e líderes, de menor porte, ali

presentes, um objetivo seria acrescido: “apre (e) ender parte desse carisma [dos líderes

promotores], ou... adquirir o habitus de pregadores em tempos de globalização”. Para

tanto anotam, gravam, fotografam, compram livros e DVDs do encontro. Ainda mais,

Oro percebe que estes líderes em menor escala compareceriam ao evento nutrindo o

desejo de “fortalecerem o seu carisma pessoal”. Eles visam “aumentar seu

conhecimento religioso, reforçar a sua santificação pessoal, revigorar o entusiasmo

religioso, fortalecer a autoestima. Em síntese, aumentar o seu poder pessoal” (ORO,

2010, p. 44).

Joel Robbins (2009), por sua vez, afirma que os fiéis vão às igrejas pentecostais em

busca de interações rituais bem sucedidas, ou seja, utilizando-se do termo proposto por

Randall Collins, à procura de interações produtoras de energia emocional. Robbins

explica que a causa da grande expansão das igrejas pentecostais em tempos de

globalização é serem bem sucedidas como instituições numa época em que estas,

sejam políticas, sociais, ou econômicas, tem declinado ou simplesmente sumido. Esta

“institution-building ability” citada por Robbins, acontece, justamente, devido ao fato

59
destas igrejas proporcionarem interações rituais produtoras de energia emocional, alvo

de todo e qualquer indivíduo. Segundo Collins (apud ROBBINS, 2009), buscamos

interações a fim de obtermos esta energia emocional, mudando de interação em

interação até encontrá-la, criando o que ele chama de uma cadeia de interações rituais

que dá forma à sociedade (ROBBINS, 2009).

Se em Oro o atrativo para a massa de fiéis é o reconhecimento do carisma do

líder, estando a dimensão do aprendizado presente apenas entre os líderes de menor

escala, o que atrai os crentes, para Robbins, são as experiências extáticas encontradas

nos cultos. É necessário, em primeiro lugar, generalizar a busca de conhecimento, que

em Oro está restrita aos líderes menores, para todos os fiéis pentecostais. Uma

sugestão que já está implícita em Campos (2011) quando sugere que os fiéis também

querem o carisma para si. Nas conversas com os fiéis percebemos que cada crente é

incentivado a procurar, buscar (!), sua vocação, seu ministério. Quando perguntados se

possuíam uma vocação específica, apenas Jurandir, 28 anos, justamente o único

evangélico não-pentecostal entrevistado, disse não possuir um “chamado” especial. A

Irmã Nadja, a Irmã Eliete e o Evangelista29 Luciano, todos da AD Campo do Recife,

disseram exercer os ministérios da oração, da visita a hospitais e da pregação da

palavra, respectivamente. Renato, 37 anos, obreiro da AD Vitória em Cristo, além do

ministério da palavra, disse possuir a vocação de “ministrar” os louvores. E todos estes

ministérios e vocações passam pelo âmbito da aquisição de conhecimento. Da compra

de materiais, que podemos considerar, didáticos, à mímesis da performance de grandes

líderes.

29
O próprio Luciano forneceu a informação da hierarquia dos ministérios na AD. A pessoa
começa como “auxiliar de lista interna”, passando pelos cargos de “auxiliar de lista externa”,
“diácono” ou “obreiro”, depois evangelista, até chegar a pastor.
60
Em segundo lugar, deve-se esclarecer que, no meu entender, o fiel vai buscar no

pentecostalismo tanto o conhecimento, quanto a experiência extática (ou energia

emocional, segundo Robbins, o que Oro, por sua vez, chama de força sagrada). Para

tanto, submeto a uma única rubrica, o carisma, o que estes dois autores entendem

como sendo atrativos diferentes do culto pentecostal. Isto porque a busca do poder

(êxtase, força sagrada) não se separa da busca do conhecimento, o qual, para ser

reconhecido, precisa ser “revestido” pelo primeiro. O evangelista Luciano, 45 anos, há

10 convertido, deixa isso bem claro quando, perguntado sobre se concorda com a

exigência de cursos de teologia para que os crentes exerçam o pastorado, diz preferir a

“unção” de Deus: “Entre a teologia e a unção, receba a unção. Porque a teologia sem

unção não sobrevive. A unção sem a teologia sobrevive”. Diante disso, reforço a

declaração feita no início deste capítulo: a cultura pentecostal precisa ser entendida,

majoritariamente, como a cultura da busca generalizada pelo carisma, o que envolve

poder e conhecimento. E é neste processo, como veremos, que o carisma circula e o

crente constrói sua identidade como pentecostal.

O Pentecostal e a linguagem ou a Linguagem Pentecostal

Mas como se dá esta busca generalizada pelo carisma? Ela se concretiza num

processo contínuo de internalização e externalização, gerando uma cadeia de

circulação verbal onde cada crente, tendo armanezado, internalizado, o carisma em seu

self, através das chamadas experiências de in-filling (preenchimento), precisa estendê-

lo (reaching out)30, externalizá-lo, ao (ainda que desconhecido) outro, sobretudo no ato

30
Traduzo por “estender-se” o termo “reaching out”, usado por Coleman (2000, 2006, 2009).
Significa um princípio formador da identidade do crente, que deve estender-se até, ou alcançar,
61
de “dar uma palavra”, “abençoar” ou “profetizar sobre a vida do seu irmão”. Para

entender como isto acontece é necessário compreendermos, antes, um pouco da

ideologia lingüística pentecostal, tema extensivamente discutido por Simon Coleman

(2000, 2006, 2009) em seus trabalhos.

Ele nos mostra que os pentecostais “percebem as palavras sagradas como ponto-

chave para sua fé” (COLEMAN, 2006, p. 163, tradução nossa)31. Quando se refere a

palavras sagradas, Coleman não está falando do uso de termos específicos, os quais em

si mesmos teriam algum tipo de eficácia. O que este autor descreve é uma atitude

especial no ato de declarar as palavras, conhecida como “confissão positiva”: “a noção

de que palavras inspiradas são investidas por uma eficácia performativa, através da

qual aquilo que se fala se manifesta no mundo material”32 (COLEMAN, 2006, p. 167,

tradução nossa). Ou seja, na confissão positiva as palavras não apenas descrevem, mas

criam a realidade, abolindo as distinções entre o real e o metafórico. Sendo assim, “não

só a Bíblia é vista como uma fonte de verdade objetiva, mas as palavras de um falante

inspirado também podem ser consideradas como verdade encarnada”33 (p. 167,

tradução nossa).

Na experiência contada pela irmã Nadja, 50 anos, convertida há 14 anos e há seis na

Assembléia de Deus Campo do Recife, podemos iluminar a importância da oralização

os outros, contribuindo para a formação de seus selves carismáticos. Sempre que utilizar o
verbo „estender‟ no sentido do conceito elaborado por Coleman, colocarei entre parênteses,
logo em seguida, o termo em inglês.
31
Conservative Protestants perceive sacred words as key to their faith (COLEMAN, 2006, p.
163).
32
The notion that inspired words gain a form of performative efficacy whereby that wich one
speaks is manifested in the material world (COLEMAN, 2006, p. 167).
33
Not only is the Bible seen as a source of objective truth, but the words of an inspired speaker
can also be regarded as truth incarnate (p. 167).

62
da palavra entre os pentecostais. Nadja fala que, antes de se converter, havia se

envolvido com um rapaz que “tinha feito coisas erradas na cidade de Camaragibe”,

tendo passado 45 dias no presídio Aníbal Bruno.

Certo dia eu cheguei pra visitar esse rapaz e tinha muitas literaturas (folhetos contendo
versículos bíblicos distribuídos nos momentos de evangelização) na cela. Um [outro]
rapaz (o responsável por colar as literaturas nas paredes da cela) tinha sido solto e ele
(o homem com quem se relacionara) tinha ido pra lá... E tinha várias literaturas. E eu
comecei a ler. Eu lembro nitidamente que eu comecei a ler aquelas literaturas... lendo,
lendo, lendo, lendo... Aí eu disse assim: Olha Deus, se tudo isso aí é verdade, se o que
está escrito aí é verdade, se eu presto pra ser uma crente, ainda disse assim... se tu tirar
ele daqui, mesmo que eu não tenha que ficar com ele, eu vou te servir. E eu disse isso
num domingo. Na quinta-feira chegou um juiz aqui em Camaragibe. E esse juiz ele veio
pra substituir um [outro] juiz que tinha saído. Ele veio [e] assinou o habeas-corpus. Só
trabalhou aqui em Camaragibe terça, quarta, quinta e sexta... E (voltando a falar do
homem preso, com o qual havia se relacionado) ele saiu. Quando ele saiu do Aníbal
Bruno o cunhado dele disse: Nadja, vamos buscar. Eu fui com o advogado e a gente foi
buscar no presídio. Quando eu estava na porta do presídio que vi ele saindo, tinha três
carros esperando por ele, porque tinha que sair do presídio e ir embora, porque o fato
repercutiu muito aqui em Camaragibe. A pessoa (contra quem o rapaz preso tinha feito
‘coisas erradas’) era bem conhecida e ele tinha que sair de Pernambuco. Quando eu ia
saindo, nesse dia era dia de ciclo de oração no presídio Anibal Bruno e tinha um grupo
de irmãos do outro lado da avenida. Nisso quando eu saí da porta do Aníbal Bruno que
ele (o rapaz antes preso, agora liberto) pegou na minha mão, aí um homem do outro
lado, um irmão, gritou: - Moça, moça. Aí eu olhei. [O irmão disse:] - Deus está
mandando lhe dizer que você presta. Nunca vou esquecer.

Vê-se que a leitura dos versículos bíblicos nas literaturas coladas na parede da cela

não foi suficiente para suscitar uma experiência suficientemente significativa para

Nadja. O contato anterior com a palavra escrita, lida nas literaturas encontradas na

cela, só se transformou num episódio marcante para a entrevistada quando da sua

verbalização, podendo ser entendida como uma objetificação, ou materialização, da

palavra escrita na fala do „irmão‟ que gritou em sua direção. Não quero eliminar o

caráter transcendental da experiência descrita pela entrevistada como marcador da

significância deste momento, já que foi em segredo que Nadja questionou se “prestava

para ser crente” para, depois, ver o mesmo termo ser utilizado por um desconhecido. O

que desejo sublinhar é a necessidade, entre os pentecostais, das palavras serem

colocadas em circulação a fim de serem ativadas. E falar, como fez o „irmão‟ que

63
gritou “você presta”, é a principal maneira para converter a palavra de sua forma fixa,

e, portanto, pode-se dizer, “desativada”, em sua versão ativa. Diante da tradição

protestante histórica anterior, de ênfase literária, textualista, o cultivo da oralidade no

pentecostalismo se configura numa “reação consciente contra a fixidez da palavra

escrita, ao mesmo tempo em que se mantém a preocupação dos textualistas com

relação ao conhecimento imutável e confiável”34 (COLEMAN, 2006, p.168-169 ,

tradução nossa).

A circulação do Carisma: Internalização e Externalização da Palavra

Entendida a importância da linguagem entre os pentecostais é necessário

compreender também a (complexa) relação entre oralidade e o texto escrito no

pentecostalismo para não cairmos no erro de classificar os pentecostais como um

segmento que relegou a bíblia, ou, como eles se referem, a Palavra, ao segundo plano.

Disse ser através de um processo contínuo de internalização e externalização do

carisma, característica principal da cultura pentecostal, que o carisma circula e se

define a identidade carismática35. Ao esclarecer mais especificamente como se dá o

primeiro dos processos, a internalização do carisma, pretendo elucidar os termos desta

relação entre oralidade e texto escrito.

34
The cultivation of orality in an otherwise literate context implies a self-conscious reaction
against the fixity of the written word while retaining the textualist‟s concern for reliable,
unchanging “knowledge” (COLEMAN, 2006, p.168-169)
35
O que chamo de identidade carismática, Coleman intitula de habitus carismático. Para ele,
quatro práticas formam este habitus: Internalização, Externalização, Dramatização e
Localização da Narrativa. Falaremos de todas neste capítulo.

64
Para Coleman, a Internalização se refere ao fato de que “os fiéis não consideram

estarem interpretando a Bíblia ou os sermões inspirados, mas que os estão recebendo

(COLEMAN, 2000, p. 127, itálicos no original, tradução nossa)36. Esta assimilação

não se reduz ao aspecto metafórico, pelo contrário, ela é entendida como um fenômeno

físico. É o que verificamos quando Nadja cita o momento da mensagem como “o que

alimenta a alma”. “O que me alimenta, no meu caso, é a palavra”, diz ela. Luciano diz

que “é [isto] justamente o que alimenta a alma de um ser humano: a palavra”. Neste

sentido “o texto é incorporado (embodied) na pessoa, transformando-a numa

representação, que anda e fala, deste poder” (COLEMAN, 2000, p. 128, tradução

nossa)37.

O Evangelista Luciano esclarece como se dá este processo. Perguntado como a

pessoa pode ser “cheia do Espírito Santo”, ele conta a história abaixo, retirada

diretamente da Bíblia38 e que relata o episódio em que Cornélio, membro do exército

romano e ainda não convertido, num episódio que envolve Pedro, o apóstolo, “rende-

se a Deus” e é “preenchido com poder”.

Cornélio não era um homem convertido, mas Deus o que fez, se revelou através de um
anjo. O anjo desceu, entregou a mensagem pra ele e naquele momento disse o anjo:
Manda chamar a Pedro, que se encontra na cidade de Jope, ele tem uma mensagem de
Deus para você. Então o que aconteceu: Cornélio imediatamente chamou os
trabalhadores e foi buscar a pessoa de Pedro, e Pedro se deslocou até a casa de Cornélio.
Chegou lá Pedro ministrou a palavra e, naquele momento, diz a Bíblia que o Espírito
Santo, ele caiu sobre Cornélio e toda a sua família e ambos foram cheios do Espírito

36
Believers do not regard themselves as interpreting the bible or inspired sermons, but
receiving them (COLEMAN, 2000, p. 127)
37
… the text is embodied in the person, who becomes a walking, talking representation of its
power (COLEMAN, 2000, p. 128)
38
Livro de Atos dos Apóstolos, capítulo 10

65
Santo. Ali já estava a evidência do Pentecostes39... A Palavra fez com que ele recebesse
o Espírito Santo.

Luciano realiza aqui o que Coleman chama de Dramatização, outra prática

carismática que consiste na representação dramática dos textos bíblicos na vida

cotidiana, utilizando-se da Bíblia como um script, invocando personagens bíblicos

para atingir os mesmos resultados por eles alcançados pela reprodução de suas

palavras e atitudes (COLEMAN, 2000). Através, então, da dramatização, nosso

Evangelista mostra a importância primordial da palavra escrita, a Bíblia, na ideologia

lingüística pentecostal. Sim, é necessário ativar as palavras ao colocá-las numa cadeia

verbal, mas é necessário que esta linguagem seja, em primeiro lugar, internalizada, e é

a Palavra, exclusivamente a Palavra, que deve ser internalizada, o que nos coloca

diante de um tipo de oralidade que depende da palavra escrita para operar. Como disse

Luciano: “A Palavra fez com que ele recebesse o Espírito Santo”. Se a forma de

exposição da Bíblia no pentecostalismo difere da tradicional exegese protestante

histórica, na medida em que se realiza de forma mais descolada do texto, enfatizando a

linguagem, não se pode dizer que o abandona, pois as dramatizações, histórias, causos

e referências são retirados das páginas da Bíblia, ou seja, a linguagem tem que vir da

Bíblia ao mesmo tempo em que é proferida sob inspiração divina.

Outra prática comum que nos ajuda a entender como se dá a internalização da

Palavra no self do crente é a memorização pelos fiéis do máximo possível de textos

bíblicos, guardados para serem utilizados nos momentos oportunos. Porém, nas

conversas com os entrevistados, na freqüência aos cultos, prestando atenção na leitura

das cartas que relatam as “vitórias” e ouvindo tanto os testemunhos inseridos na

39
O Pentecostes é o momento descrito no livro de Atos dos Apóstolos, capítulo 2, em que o
Espírito Santo desce sobre as pessoas. É daí que se origina o termo pentecostalismo.

66
programação oficial, quanto as conversas informais levadas pelos crentes na frente do

templo, antes e depois do culto, pode-se depreender qual seria o principal meio (pelo o

menos o mais relatado) de ser “cheio do Espírito Santo”: Através da fala inspirada de

outros crentes e do instante da mensagem proferida pelo pastor, sendo o primeiro

momento considerado uma mímesis do segundo aplicada ao cotidiano dos crentes

comuns.

Nadja, mais uma vez, nos auxilia a entender como se dá esta abertura do self à

linguagem. Ela relata um episódio onde teria de passar por uma cirurgia. Internada um

dia antes de sofrer a intervenção cirúrgica, combina de passar este dia “louvando e

conversando sobre a palavra” com uma colega crente que havia conhecido no dia

anterior, na ocasião da conversa com o anestesista. Porém, ao chegar ao hospital,

levada pelo filho, e a esposa dele, para ser internada, fica sabendo que não poderia

ficar no quarto junto com sua mais nova “irmã” e, lamentando, dirige-se ao quarto

onde ficaria para, segundo ela, só depois entender qual seria o “propósito de Deus”

nesta ocasião. Ela continua:

Quando eu botei o pé no quarto eu disse bom dia, quando eu olhei pra senhora que
estava deitada, o Espírito Santo de Deus falou ao meu coração: „Ela precisa de você, a
outra não. Ela precisa de você. ‟ Naquele momento eu comecei a chorar porque foi
muito forte. Aí eu já fui pedindo perdão a Deus... Senhor, me perdoe, me desculpe. Eu
disse bom dia, eu já fui dando bom dia, eu tava com meu filho e minha nora. „Quem vai
ser minha companheira de quarto?‟ Ela falou bem fraquinho. Eu disse: „Sou eu‟. Um dia
antes um irmão disse assim: Olhe Nadja, você vai ser usada naquele hospital e se você
não tiver palavras pra dizer, diga só que Jesus é bom. Quando eu entrei que olhei, ela
tava com uma imagem (de santo) bem grande ao lado da cama e um terço na mão. Eu
percebi que ela era bem católica e eu aprendi muito a respeitar. Não sou de agredir
porque eu creio que essa obra quem faz é o Espírito Santo. Eu disse: Jesus, como é que
eu vou falar pra essa mulher. Me lembrei logo da palavra do irmão („diga só que Jesus é
bom’) . De repente o meu filho saiu, e minha nora, e eu fiquei só com ela e a filha dela.
E ela começou a passar mal, uma meia hora depois ela começou a passar mal... Ela tava
com uma sonda no nariz. E a filha dela ligando para o [outro] filho dela que vinha e
dizendo: „Ela só ta esperando você pra sedar. Ela chamou por você a noite todinha‟. E
ela começou passando mal, passando mal e a filha chamava, chamava na cigarra e o
67
médico não vinha. Aí a filha saiu pra chamar o médico. Saiu correndo pelo corredor e
eu fiquei com ela. Na hora o Senhor falou: „Segura na mão dela‟. E eu segurei. Não
tinha nem trocado de roupa ainda, não tinha botado a roupa do hospital. Segurei na mão
dela, aí vi o nome dela [na placa acima da cama]. [Então, eu disse:] „D. Maria José,
Jesus é bom. Me lembrei [das palavras do irmão] e comecei: „Jesus é bom, Jesus é bom,
chame por ele, chame por ele, D. Maria José, que ele está aqui. Vamos chamar por Ele,
porque Ele é bom‟. Aí comecei falando do amor de Deus: „Ele te ama, te ama‟. E de
repente ela olhou pra mim e começou a dizer: „Jesus, ela está dizendo que tu és bom. Tu
és bom, tu és bom. E a gente começou a glorificar o nome do Senhor. Eu comecei a orar
com ela, exaltando só o nome do Senhor. Quando a filha chegou com o médico ela já
estava calma. O médico examinou e foi embora.

Aqui, de forma mais clara, o ciclo de internalização e externalização do carisma

aparece por completo. Nadja primeiro recebe do „irmão‟ o que deve ser dito no

momento oportuno: “Jesus é bom”. Armazenada “em seu espírito”, a palavra alcança

sua eficácia performativa na externalização: o momento em que “pode se dar vida à

Palavra, na medida em que a linguagem é externalizada do falante e se transforma em

sinais físicos da presença do poder sagrado” (Coleman, 2000, p. 131, tradução

nossa)40. É o instante em que Nadja, como diria Coleman, passando a fé aos outros

(passing faith on others, p.131), segura as mãos de dona Maria José e movimenta o

“Jesus é bom”, antes recebido, na direção do mais novo recipiente deste interminável

ciclo de verbalização da Palavra.

Construindo a identidade: O crente bodybuilder

Inserir-se nesta cadeia de circulação verbal não é uma opção disponibilizada aos

crentes. Performar o carisma, provando, e provando-se, cheio do Espírito Santo é um

requisito compulsório para quem está inserido na cultura pentecostal. Todos são

40
The Word can be made to „live‟ as signs of language are externalised from the speaker and
turned into physical signs of the presence of sacred Power (COLEMAN, 2000, p.131)

68
impelidos a falar e não é raro ver nos cultos as admoestações para que as pessoas

deixem a timidez de lado. Há uma recomendação explícita para que todos se tornem

profetas uns para os outros. “Crescer na fé”, então, implica saber o que dizer, como

dizer e esperar as reações certas. Nos dois relatos que transcreverei abaixo podemos

ver alguns elementos importantes a este respeito.

Primeiro a experiência da Irmã Eliete, 70 anos, professora aposentada. Ela conta:

Um dia desses eu estava no Detran. Tinha uma moça que vinha com uma bagagem, mas
muito triste o jeito dela. Muito triste. Deus falou ao meu coração: “Dê uma palavra pra
ela”. Eu disse: “Meu Deus, como é que eu vou falar com ela? Não conheço a moça”.
Uma moça muito bem vestida. Eu fui e falei assim: “Moça, Eu não te conheço, mas tira
essa preocupação que isso que tu vais fazer Deus vai te dar uma vitória”. Ela fez: “Que
bom! Eu precisava tanto ouvir isso aí”. Eu disse: “Você vai sair vitoriosa nisso que você
vai fazer”.

Depois, a irmã Nadja compartilha mais uma de suas experiências. Ela relata:

Foi logo quando eu me converti. “Senhor, tu me usa? Tu vai me usar? Como é? “Eu
ficava me perguntando, sabe? E naquele dia eu saí. Quando eu sentei lá atrás no ônibus e
o Senhor me dava uma palavra pra eu dizer ao motorista, que Deus o amava e que ele
prestasse atenção, mas eu não disse, eu não dei conta, fiquei na minha pensando que era
coisa de minha cabeça, uma nova convertida. Aí de repente um rapaz veio com a
bicicleta e bateu no ônibus. O rapaz foi quem bateu no ônibus... O rapaz morreu...
Naquilo eu fiquei muito inquieta, botei pra chorar dentro do ônibus: „Meu Deus, me
perdoe, porque quando tu me dizia que era pra eu dizer pra ele prestar atenção... tudinho,
né. Aí nesse momento o motorista desceu, e o motorista tava „afastado‟ (não era mais
evangélico). Quando eu desci, aí eu peguei e falei pra ele aquilo que Deus tava falando
ao meu coração. Pedi perdão logo a Deus e pedi perdão a ele... Aí Deus começou a me
revelar algumas coisas da vida dele, que Jesus [o] amava e que tinha uma cadeira (um
emprego no setor administrativo) esperando por ele naquele lugar. Foi quando Deus
começou a falar. Aí ele (o motorista) [disse]: - „Eu sou afastado do evangelho. Quando
eu saí de casa hoje a minha esposa disse que eu ia ter um encontro com o Senhor‟. E
naquele momento, ali naquela agonia, naquela situação, ele se voltou pra Jesus.

Eliete tinha dúvidas quanto à melhor forma de se dirigir àquela desconhecida, mas

mesmo hesitando, vai até a moça e entrega a mensagem a ela reservada. Após fazê-lo e

descobrir que o alvo de sua profecia estava prestes a fazer o vestibular, a entrevistada

diz ter sido tomada por uma sensação de dever cumprido: “Fica admirado a pessoa que
69
recebeu e fica admirado a gente que falou: - Meu Deus, era isso mesmo que tu queria

que eu falasse”. Já a irmã Nadja não poderia ter “ficado na dela”. Esta opção não está

disponível ao crente pentecostal. Seu dever é falar e alcançar os outros (reaching out)

com o carisma. Nadja imputa ao fato de ainda ser nova convertida na ocasião, o

motivo de não ter discernido imediatamente que deveria entregar uma mensagem de

Deus ao motorista. Ela ainda possuía várias dúvidas, como se vê nas perguntas que dão

início à sua fala, em relação a como Deus a “usaria”. O evangelista Luciano explica

que o crente não está pronto desde sempre e precisa empreender um esforço espiritual

diário para chegar à maturidade espiritual. “Mesmo uma pessoa se convertendo ao

Senhor, diz nosso Evangelista, ele não é liberto totalmente... A Bíblia Sagrada, ela vai

nos orientando através dos ensinamentos e dos estudos, ela vai nos orientando cada dia

mais a gente se libertar daquilo que não agrada a Deus”. Coleman se utiliza do termo

“cultura bodybuilding” (COLEMAN, 2006) para ressaltar a disciplina que perpassa a

rotina do crente que empreende sua carreira espiritual entre os pentecostais. É,

portanto, na medida em que se dominam estas situações de verbalização do carisma

armazenado no self do crente, ou seja, quando se é apto para compreender o que vem

de Deus e o que, como disse Nadja, é “coisa de minha cabeça”, que se alcança o selo

de homem ou mulher “cheio do Espírito Santo”. Aqueles que não falam, precisam

fazê-lo. De outra forma, ainda não estão prontos.

Esta aptidão é monitorada constantemente. A estética do movimento que permeia a

cultura pentecostal no que diz respeito à difusão compulsória do self através da

linguagem, deixa a essência espiritual do crente disponível e sujeita ao escrutínio

permanente dos outros e de si mesmo. As situações onde o crente estende (reaching

70
out) o carisma até os outros, servem de indicadores do sucesso espiritual dos fiéis,

permitindo à coletividade mensurar este sucesso objetivamente.

A sanção coletiva da identidade carismática se consolida nos momentos, formais

ou não, destinados ao compartilhamento das experiências de cada crente: nas cartas

lidas nos momentos de testemunho, quando se tem a oportunidade de pegar o

microfone e “contar suas vitórias” na igreja, ou mesmo, e principalmente, nas

conversas cotidianas entre os crentes. É este compartilhar na comunidade que gera um

desejo em todos os membros de vivenciarem estas experiências e mostrarem-se,

também, cheios do Espírito Santo. A ênfase que a congregação dá a estes momentos

impulsiona as pessoas a buscá-los. E isto é mais do que um simples desejo. É

indispensável para que qualquer crente se reconheça, e seja reconhecido, como

pentecostal.

O líder carismático como desdobramento da cultura pentecostal

Um dos objetivos primordiais deste trabalho é tentar compreender a existência do

líder carismático pentecostal como uma conseqüência dos desdobramentos da cultura

que afirmo ser baseada na busca generalizada pelo carisma. A possibilidade que se

abre ao protagonismo destes personagens no meio pentecostal advém, a meu ver, da

própria dinâmica da cultura na qual eles estão inseridos, e que dela são ícones ou

emblemas, como vimos no segundo capítulo, e espelhos ou pedagogos, como veremos

a partir de agora. Se o crente pentecostal precisa trilhar sua carreira espiritual,

empreendendo esforço cotidiano nos moldes de um bodybuilder, pode-se deduzir que

tal carreira possua um topo. Porém, “se todos aspiram à santidade, apenas alguns

71
podem tornar-se os chamados grandes homens (e, mais raramente, grandes mulheres)

de Deus (COLEMAN, 2009, p. 419, tradução nossa)41 e chegar ao cume desta carreira.

É lá que estão os grandes líderes carismáticos, os “santos” protestantes de Coleman

(2009): aqueles, para mim, que foram bem sucedidos nesta busca generalizada pelo

carisma, atingindo, pode-se dizer, o sucesso carismático.

Caracterizando-se a cultura pentecostal, sobretudo, pelo processo incessante no qual

os fieis aderem de internalização e externalização do carisma, podemos entender que o

líder carismático se encontra numa posição privilegiada dentro, ou, melhor, na origem

e acima, desta cadeia de circulação (majoritariamente) verbal. O momento em que o

crente comum “dá uma palavra” ou “profetiza sobre a vida” de outrem, pode ser

compreendido, conforme já disse, como uma reprodução em menor escala do instante

da mensagem proferida pelo pastor. O líder carismático cumpre o dever de estender-se

até o outro (reaching out), entregando-lhe a Palavra, no entanto o faz em outro

patamar, bem mais elevado. Se o crente ordinário executa o que a comunidade

considera ser sua missão engajando-se em interações com pessoas que estejam ao

alcance de suas mãos, seja, conforme os depoimentos aqui relatados, com uma

companheira de quarto de hospital ou com uma desconhecida na rua, o pastor-

celebridade, por sua vez, o faz diante de uma platéia e no momento considerado como

a principal oportunidade para se “receber” a Palavra: o instante reservado à prédica no

culto público. O “grande homem de Deus” também não se limita às paredes da igreja

local. É visto nos eventos itinerantes de alcance nacional e internacional e alcança a

todos com sua mensagem através do rádio e televisão. A este propósito, Coleman

(2009) cita a Mobilidade, a capacidade do pregador de mover-se globalmente em


41
All aspire to holiness but only some can become so-called great men (and, more rarely, great
woman) of God (COLEMAN, 2009, p. 419).

72
eventos itinerários ou de ter sua mensagem transmitida nacional e internacionalmente

pela mídia, como pré-requisito indispensável para que o líder carismático se eleve

acima de seus pares. Assim, a distância entre as celebridades da fé e os crentes e, até

mesmo, pastores comuns, é a mesma que separa o comezinho do extraordinário.

A mensagem (e o pastor) como elemento principal do culto

Em um dos cultos que freqüentei na filial da ADVEC da av. Caxangá, em Recife,

esclareceu-se para mim o papel do culto na cultura pentecostal. Durante sua mensagem

proferia na ocasião, o pastor Neto, líder daquela igreja, classificou o culto público

como o momento “para recarregar as baterias espirituais do crente”. Este papel do

culto como lugar para ser “cheio com o Espírito” se multiplica em momentos de

encontros considerados solenes, como o Congresso de Avivamento de Despertai,

aumentando as expectativas entre os fiéis que o “Espírito seja derramado”.

Participar de um evento deste porte e testificar a observação do intenso uso do

corpo pelos crentes pentecostais nos ajuda a compreender que o empoderamento entre

os fiéis vai além da linguagem falada, como diz Coleman:

A confissão positiva pode se estender além do reino da linguagem falada para forma de
auto-apresentação que demonstra o empoderamento da pessoa fisicamente e
espiritualmente saudável, que vai desde a dança, passando pelo levantar das mãos, e até
mesmo o tremor durante os cultos, empregando um comportamento entusiástico em
circunstâncias aparentemente cotidianas (COLEMAN, 2006, p. 171, tradução nossa).42

42
“Positive Confession” can be extended beyond the realm of spoken language into form of
self-presentation that demonstrate the empowerment of the physically and spiritually healthy
person, ranging from dancing, raising the hands, and even quaking during services to
employing an enthusiastic demeanor in ostensibly everyday circumstances (COLEMAN, 2006,
p. 171)

73
Tanto nos cultos por mim assistidos nas filiais da ADVEC quanto no Congresso43, a

posição de mãos estendidas para o alto, inclinadas em direção ao púlpito, com as

palmas das mãos para cima e com os olhos cerrados, numa nítida posição de

“recebimento”, enquanto as orações eram proferidas em tom de profunda emoção,

consistia na imagem que se dava mais constantemente aos olhos do observador. Era o

corpo pentecostal o primeiro a chamar a atenção deste pesquisador. O entusiasmo no

momento de entoar os cânticos, o balançar de mãos e do corpo, são, realmente, provas

de que os crentes empregam uma linguagem corporal pentecostalmente orientada e

entendem o corpo como um indicador do “ser cheio do Espírito”. Porém, limitar-se a

estes momentos pode acarretar no que, no meu entendimento, acontece com Joel

Robbins (2009). Ele superdimensiona, a meu ver, o papel do corpo em detrimento da

linguagem, na medida em que define como pré-requisito para que a interação se

configure como produtora de energia emocional o que chama de “emotional

entrainment”: a noção de que os participantes dos cultos pentecostais, levados pela

sincronia corporal, entram de forma coordenada numa corrente de emoções. A simples

freqüência aos cultos, sobretudo as grandes concentrações, guia o nosso primeiro

olhar, como aconteceu comigo, principalmente para a estética dos louvores e cânticos,

levando-nos a estas conclusões. Realizar o trabalho de campo em cultos de pequeno e

grande porte, tanto nas igrejas-sede quanto nas congregações, e, principalmente, ouvir

os fiéis, buscando realizar uma etnografia do in-filling, leva-nos a outras conclusões.

Coleman admite que “a linguagem não pode simplesmente ser dissociada das formas

43
A partir daqui, referir-me-ei ao Congresso de Avivamento Despertai somente com o termo
Congresso

74
sensoriais...” (COLEMAN, 2006, p. 167, 168, tradução nossa)44. O conceito de

embodiment, por ele utilizado, porém, mostra a Palavra como sendo “recebida”,

“ingerida” pelo corpo para ser colocada na já explicitada cadeia de circulação verbal.

Se o momento dos louvores, da música, pode nos induzir a uma ênfase exagerada na

dimensão corporal e sensorial, é preciso entender que os fiéis dançam certas músicas

que dizem certas coisas, ou melhor, as coisas certas, no sentido de que, as músicas, as

falas, e até mesmo, em várias ocasiões o cotidiano, são entendidos como

dramatizações cujos scripts, como vimos, se originam das histórias e “verdades” da

Bíblia. Além disso, o momento dos louvores ainda é visto como uma preparação para o

instante considerado como o principal: a “ministração” da Palavra. Como diz a irmã

Eliete:

O momento principal do culto? O momento principal do culto é o momento da palavra.


É muito bom o momento de adoração... Mas aqueles hinos são como uma preparação
para ouvir a palavra. Mas na hora da palavra é a hora que você vai aprender.

Deve-se, então, entender a pregação como o instante do culto para o qual convergem

todos os outros momentos, e o líder carismático como o ponto específico para o qual

convergem todos os olhares. Porque é aí, como diz Nadja, que “Deus usa o pregador

naquele momento pra falar, pra transmitir algo pra igreja, pra mim, né?”

Uma análise da performance do Pr. Silas Malafaia: As primícias da


internalização da Palavra
O cenário está montado para o pastor Silas Malafaia realizar a performance

carismática no Congresso de Avivamento Despertai. O palco-púlpito grandioso,

ladeado por dois enormes telões, está montado na maior casa de shows da cidade.

44
“… the deployment of language cannot be divorced from sensual forms…” (COLEMAN,
2006, p. 167, 168)

75
Antes de tomar um assento, recolho o impecável material reservado aos congressistas

na recepção: crachá, pasta personalizada, revistas, bloco de papel e caneta, além do

cronograma da programação que aconteceria naqueles dias. Gastei, ainda, um tempo

na loja do evento, manuseando livros e DVDs de mensagens dos preletores escalados

para o Congresso. Cada um deles tinha um stand específico para apresentar seus

respectivos ministérios. No espaço que cabia à Associação Vitória em Cristo, um

enorme mapa-mundi estava marcado com pontos representando os países para os quais

o programa de televisão de Silas Malafaia, o Vitória em Cristo, é transmitido. Assim

que chego à pista, repleta de cadeiras simulando a disposição de um templo,

surpreendo-me com a quantidade de fiéis que ali já se encontrava. Todos na

expectativa do pastor começar sua mensagem. Procuro um lugar pra sentar ainda

espantado com a grandiosidade de tudo aquilo. Finalmente sento e o culto começa.

“Olha ele ali!”, disse uma senhora sentada ao meu lado ao seu marido enquanto

apontava em direção a Silas Malafaia, que até então não havia aparecido. Outros

pastores, ligados ao seu ministério, fazem o papel de mestres de cerimônia,

conduzindo o culto, juntamente com os cantores que “ministram” os louvores, até a

hora da prédica da primeira noite reservada ao protagonista daquele evento.

Enfim, Chega o momento de Malafaia pegar o microfone e a platéia já irrompe em

palmas antes que ele diga qualquer coisa. Eliete, nossa entrevistada, diz que isso se dá

porque

há pregadores e pregadores. Há pregadores que são tão usados por Deus que quando ele
chega, a igreja começa a dar „glória a Deus‟ logo. Glória a Deus! Quando vê o pastor
entrar, porque sabe que ele é usado por Deus. É porque todas as vezes que ele vem
pregar ele faz de uma maneira tão linda de pregar que ele atinge as pessoas.

A expectativa para que isto aconteça, ver o pastor ser “usado por Deus”, parece tão

densa que pode ser percebida na atmosfera do lugar. Antes de começar sua mensagem,

76
Malafaia apresenta alguns dos produtos que estarão sendo comercializados naqueles

dias: livros, Bíblias e Dvds. Avisa que as mensagens ali pregadas serão

disponibilizadas nos stands para venda, logo após suas realizações. Olha para quem

está coordenando a gravação do evento, pergunta: “Está pronto?”. Recebe um sinal de

positivo e diz:

Eu quero trazer uma palavra pra você e a minha oração é que eu seja apenas instrumento
da vontade de Deus para a sua vida. Eu quero dizer pra você uma coisa que seja
profética para sua vida: Deus quer usar você para coisas grandiosas (gritos da platéia de
Glória a Deus e Aleluia)...

Anuncia o texto bíblico que servirá como base para toda sua prédica e continua:

... Então, Ezequiel 37, versículo um: (lendo) “Veio sobre mim a mão do Senhor e o
Senhor me levou em espírito e me pôs no meio de um vale que estava cheio de ossos”.
Há duas coisas aqui que eu quero considerar deste primeiro versículo: É que Deus
sempre vai nos levar ao lugar que ele quer nos usar. Então aprenda o seguinte: É Deus
que tá dirigindo a tua vida? Sim ou não? (platéia responde, sim). Se for Deus que está
dirigindo a tua vida, não fique preocupado com o aparente e com as circunstâncias. Deus
sempre vai te levar a um lugar, e te prepare, nesse lugar você vai ser usado para a glória
dEle (gritos da platéia de Glória a Deus e Aleluia)...

Se a Palavra deve ser proferida por um falante inspirado, o líder carismático se

apresenta aqui como o maior deles e não se exime em elevar sua fala ao nível das

“coisas grandiosas”. Ao dizer com veemência que Deus usará o ouvinte “para a Glória

dEle” logo se vê a reação da congregação “recebendo a palavra”: no balançar da

cabeça em sinal de afirmação acompanhado de gritos de “Glórias” e “Aleluias”. Pode-

se entender melhor, ao presenciar este momento, o que Coleman afirma ser o instante

em que a “linguagem, ecoando da Bíblia, mas sendo também anunciada sob inspiração

divina, emerge do corpo do pregador e é assimilada pelo corpo do ouvinte..."

(COLEMAN, 2009, p. 430, tradução nossa)45. É o pastor, portanto, quem dá início ao

45
“a language echoing that of the Bible, yet also enunciated under divine inspiration – emerges
from the body of the preacher but is also assimilated to the body of the listener…”
(COLEMAN, 2009, p. 430)

77
tão já discutido até aqui ciclo permanente de “ingestão”, e da subseqüente

externalização, da Palavra até o outro. É ele quem ativa, primeiramente e com mais

autoridade, a cadeia de circulação verbal que caracteriza a dinâmica das comunidades

pentecostais.

É interessante apontar, também, que o fiel não ouve a Palavra que emerge do

pregador passivamente. Ainda que se configure como um momento aonde se vai

“receber” a Palavra, ele também consiste em, ou melhor, exige, uma participação ativa.

Essa participação vai além do ato de call and response, termo que designa o momento

em que a platéia responde com gritos de “Glórias e Aleluias” às profecias do pastor.

Estende-se a uma atitude permanente de concentração e a manutenção de um estado de

sensibilização à possibilidade de “recebimento”, como diz o Evangelista Luciano:

O culto é individual. Você pode estar numa reunião e ali ser cheio do Espírito Santo
somente você. E por que somente você? ... Tanto pode você receber uma descarga do alto e
ser cheio do Espírito Santo, como pode dois, três ou até mais. Vai depender se realmente
aquela pessoa vai para cultuar, buscar realmente a presença de Deus, entendeu? ... Depende
muito de quantos na reunião estão realmente buscando a presença de Deus.

Configura-se aí, portanto, “uma construção especificamente carismática do sentido de

um fluxo entre o santo e o crente comum...” (COLEMAN, 2009, p. 430, tradução

nossa)46. Pastor e fiel se engajam, sobretudo no momento da mensagem, numa

interação compreendida como sendo singular, ainda que este último esteja no meio de

uma multidão, ou ainda, podemos ir além, encontre-se em casa assistindo a mesma

mensagem gravada em DVD.

O pastor não só dá início à cadeia de circulação verbal pentecostal, oferecendo o

que podemos chamar de as “primícias da internalização da Palavra”. Além de ser um

46
a specifically charismatic construction of the sense of flow between saint and ordinary
believer… (COLEMAN, 2009, p. 430)

78
momento onde a “linguagem transcende os limites entre as pessoas na medida em que

se move – é redistribuída - do pregador ao fiel” (COLEMAN, 2009, p. 431, tradução

nossa)47, há espaço para os crentes desenvolverem as mesmas habilidades retóricas,

ainda que, como vimos, numa menor escala, apre(e)ndendo-as com seu pastor. Para os

crentes, a relação com o pregador consiste num fluxo que combina a ingestão corporal

da linguagem que advém do pastor com uma relação de mímesis do carisma que ele

performa. Assim, podemos dizer que o líder carismático, além de emblema ou ícone da

cultura pentecostal, configura-se no pedagogo da ação carismática, pois está à frente da

interação ritual na qual o carisma vem à tona e é assimilado pelos fiéis, dando início à

cadeia de compartilhamento generalizado do carisma.

Uma análise da performance do Pr. Silas Malafaia: Construindo a identidade e


mantendo autoridade

Malafaia continua sua mensagem elencando o personagem bíblico Abraão como

exemplo de que “Deus sempre vai nos levar para o lugar que Ele quer nos usar”. Ele

diz:

... É assim que Deus fez com Abraão, meu amigo [ouvinte]... Sabe o que me impressiona na
chamada de Abraão?... Você sabe quando eu leio a chamada de Abraão, eu fico
impressionado quando Deus diz pra Abraão lá em Gênesis 12, vocês já conhecem o texto,
(recitando) “sai da tua casa, da tua parentela, vai para uma terra que eu te mostrarei, eu vou
fazer de você uma grande nação, vou abençoar os que te abençoarem, vou amaldiçoar os
que te amaldiçoarem e tu serás uma benção”...

Logo após apresentar a história de Abraão, Malafaia se insere na prática que Coleman

(2006) denomina de Localização da Narrativa (Narrative Emplacement) para

47
“… Language as transcending ... the boundaries between persons, as it moves - is
redistributed – from preacher to believer.” (COLEMAN, 2009, p. 431)

79
esclarecer o texto bíblico aos seus ouvintes. Ele justapõe sua própria história de vida à

narrativa de Abraão, borrando os limites entre as duas histórias, ambas, agora,

sagradas:

... Imagina se Deus chegasse hoje pra mim e dissesse: - Silas, sai do Rio de Janeiro para
uma terra que eu te mostrarei. Eu diria: perfeitamente Senhor, pode me dizer o lugar que
eu to saindo. Deus dissesse: - Não, eu só mandei você sair. Você já parou pra notar o
que é que Deus fez com Abraão? Deus não disse o local. Não disse que era pro Norte,
que era pro Sul, que era pro Leste, Oeste. Se fosse eu, talvez dissesse: - Senhor, eu vou
sair por onde? Por exemplo, quem está no Rio de Janeiro: - Senhor, se eu for pro Norte
eu vou sair pro Espírito Santo, se eu for pro Sul, eu vou sair para São Paulo, se eu for
pra Oeste eu vou sair pra Minas Gerais, pra Leste eu vou ter que pegar um barco, porque
é mar. Mas, me diz aí. Deus dissesse: - Sai! (com ênfase) Sai por onde você quiser sair.
Deixa que eu vou te levar ao lugar certo (gritos). E Abraão, diz a bíblia, que saiu para
uma terra sem saber para onde ia, tá em Hebreus 11:8. Impressionante porque Deus
sempre vai nos levar ao lugar que ele quer nos usar...

Em outro trabalho, Coleman (2009) diz que o domínio deste modo de se justapor à

narrativa bíblica, ao mesmo tempo em que a esclarece, trazendo-a para mais perto do

cotidiano de seus ouvintes, faz do líder carismático um mestre da narrativa (master

speaker).

Para elevar-se acima de seus pares, porém, este tipo de justaposição entre sua

própria história e o texto não é suficiente para o pregador. A identidade do líder

carismático se assenta na afirmação de sua autoridade. O pastor-celebridade constrói

sua identidade na performance de seu carisma ao mesmo tempo em que instaura sua

autoridade acima dos crentes e pastores comuns. A questão posta como problemática é

que esta forma de indexicar sua própria autoridade realiza-se numa cultura onde é

inadmissível que alguém se posicione abertamente como o responsável pelo “derramar

do Espírito Santo”. Deve-se ficar claro, pelo menos no que diz respeito às declarações

públicas, que “o poder vem sempre de Deus”. Podemos verificar isto nos depoimentos

dos fieis entrevistados neste trabalho. Perguntados sobre quem seria o modelo para

suas respectivas vocações, todos foram unânimes em dizer que só Jesus Cristo pode ser

80
considerado um modelo a ser seguido. Percebe-se, então, que o limite entre instaurar

sua autoridade e ser visto como alguém que está se vangloriando é tênue para o líder

carismático e o pregador precisa caminhar em cima desta linha.

Mathew Engelke (2006) mostra que a análise da performance dos líderes

carismáticos põe um desafio à noção consolidada, principalmente, segundo ele, por

Max Weber, de que a provisão de significado no âmbito religioso estaria

necessariamente atrelada a uma noção de clareza. No trabalho de Weber as figuras

religiosas, como os profetas, surgem como responsáveis por ajudar as pessoas a

construírem um sentido para o mundo. Engelke salienta, porém, que “a clareza não é

sempre o objetivo final da prática religiosa” (ENGELKE, 2006, p. 64, tradução

nossa)48. Exemplo disto são os líderes carismáticos, os quais dependem da

ambigüidade para manterem suas posições de autoridade. Deve-se, então, investigar

de forma mais detida que papel a ambigüidade desempenha na produção de sentido,

sobretudo nos momentos em que tal ambigüidade é central para o desenrolar dos

eventos. Csordas (1997) e Coleman (2009) trazem sua contribuição ao debate para

melhor esclarecermos como os líderes carismáticos performam seu carisma em meio à

ambigüidade. Csordas afirma que os líderes carismáticos operam numa lacuna

semiótica (semiotic gap) entre o significado convencional e o significado ritual de

algumas ações. O aplauso no momento de ovação aos líderes, por exemplo, segundo

Csordas, pode ser considerado um louvor ao líder em reconhecimento às suas

conquistas e, ao mesmo tempo, um louvor a Deus, por “usar seu filho querido

poderosamente” (CSORDAS, 1997). O primeiro significado não seria aceito

deliberadamente pelos pentecostais. Por sua vez, Coleman afirma, ao analisar uma

48
“clarity is not always the end goal of religious practice” (ENGELKE, 2006, p. 64)

81
mensagem de Morris Cerullo, pastor americano precursor dos pastores midiáticos, que

o fiel é convidado a preencher esta lacuna a que Csordas se refere, e responder, para

ele mesmo, o que denomina de pergunta não-dita (unspoken question) sobre “a

proveniência exata da verdade e da revelação as quais Cerullo se refere”: “Elas vem do

próprio Cerullo, ou de Deus? (COLEMAN, 2009, p. 429, tradução nossa)49

Atuar no gap semiótico lançando aos fiéis perguntas não-ditas é o que faz Malafaia

desde os primeiros instantes de sua mensagem. O que nomeei em meu diário de

campo, assim que me apercebi desta prática, do “jogo de ser ou não ser”. Ao mesmo

tempo em que diz querer “apenas ser instrumento de Deus” ele afirma ser profeta de

“coisas grandiosas” para seus ouvintes. Esta dinâmica perpassa toda sua prédica. Os

momentos em que Malafaia afirma mais fortemente sua posição de profeta se alternam

ao reconhecimento de sua parte de que “a glória é para Deus”. Podemos entender,

então, que a própria ambigüidade é performada em meio ao carisma, ou que, mais

ainda, é dele parte constitutiva. No desenrolar da mensagem do líder carismático que

hora analisamos podemos perceber este “caminhar sobre a ambigüidade” com maior

intensidade.

Malafaia volta ao texto base de sua prédica (Ezequiel, capítulo 37) baseando-se

numa metáfora na qual o vale é a representação do início da carreira espiritual, onde se

faz coisas consideradas menores na hierarquia carismática. Ele, primeiro, dá as

diretrizes para que os crentes possam mover-se do “vale” em direção ao lugar em que

Deus os usará poderosamente:

49
“the exact provenance of the truth and revelation to wich Cerullo refers”: “Do they come
from him or from God?” (COLEMAN, 2009, p. 429)

82
Então, grave isso aqui: Primeiro: Não murmure. Não murmura, não. Deus sabe o que é
que ele tá fazendo. Não murmura, não. Segundo lugar: Não seja precipitado para querer
sair da rota que Deus quer te levar. Terceiro: Não fica desanimado com o que você tá
vivendo e vendo agora. Não desanima, não. Com o que você tá vivendo e com o que
você tá vendo. Agora, em quarto lugar: Te prepare, porque o lugar que Deus te levar
(aumentando o tom de voz) é lugar de VI – TÓ – RIA! (gritos)...

Depois, diz:

...Agora deixa eu falar uma coisa aqui, rapaz, que eu tô com vontade de falar porque
aqui tem um monte de pastor. E aqui também tem muita gente nova. Deus levou
Ezequiel pra onde, hein? (a platéia responde, ‘para um vale de ossos secos’). Pra um
vale o que? (a platéia responde, ‘de ossos secos’). (Malafaia corrige:) Sequíssimos.
Você pensa que você vai começar na montanha, meu filho? Tem um vale de ossos
sequíssimos te esperando. As pessoas pensam que vão começar por cima... sabe...
Entrou no ônibus agora e quer sentar no primeiro banco e na janela. An? Você entrou no
ônibus agora? Vai ficar pendurado lá na porta quase caindo. É o lugarzinho que tem pra
você, meu filho. O camarada chega agora... (dramatizando:) “Não, porque eu vou... eu
vou ter uma igreja de tanto. (dá uma gargalhada em tom de chacota:) Deixa eu rir de
você. Meu filho, primeiro tem um vale antes de Deus te colocar no topo da montanha.
Você vai ter que passar pelo vale. (aumentando o tom de voz) Não reclame, não. Deus
está te preparando no vale pra te levar aos lugares altos desta vida ou do ministério
(gritos de ‘Glória’ e ‘Aleluia’). Eu não conheço a história de um grande empresário, de
um grande homem da história que começou por cima. Se você conhecer um me conta.
Eu não conheço uma história, quer na vida material, quer na vida espiritual, alguém que
chegou na montanha, alguém que chegou no topo e começou no topo. Pode pegar a
história de qualquer um, seja no mundo espiritual ou no mundo secular (aumentando o
tom de voz:) pra chegar no topo passa pelo vale (gritos de ‘Glória’ e ‘Aleluia’)

Aqui, Silas Malafaia profetiza “do alto da montanha e deixa claro que antes de alguém

chegar ao lugar onde se vai ser “usado poderosamente”, antes de se estabelecer, como

ele, “no topo da montanha” é necessário, primeiro, “passar pelo vale de ossos secos” ,

como também aconteceu com Ezequiel. Subentende-se que, se Silas Malafaia dá as

diretrizes para que se possa deixar o “vale” e chegar ao topo, ele já trilhou este

caminho. Assim sendo, ele apresenta o tempo em que ainda estava no “vale”.:

Sabe como é que eu comecei na igreja? Batendo bumbo. Comecei batendo bumbo. E
meu sogro gostava de fazer todo domingo um desfile... Meu sogro gostava de fazer um
desfile da praça da penha à praça são Lucas... Um quilometro, um quilometro e meio,
sabe. A banda na frente, a igreja atrás e ele na frente da banda com a Bíblia. Três horas
da tarde de domingo. Era uma coisa linda. E pra azar meu, quando não tinha hino, quem
batia a marcha era o bumbo. E quem era o besta que tava lá? (imitando o som do bumbo
e gesticulando como se estivesse tocando:) Bum, bum, bum. Não tinha música
nenhuma, mas o bumbo funcionava (risos). Cansei de bater bumbo, rapaz. Você tá
pensando que eu comecei o que, por cima? Cansei de pregar de madrugada na zona sul
83
do rio de janeiro com meus colegas da igreja. Cansei de pregar dentro de ônibus,
distribuindo folheto dentro de ônibus, meu irmão. Cansei de fazer isso... Mas rapaz, a
gente começa em baixo. Ninguém começa pregando pra televisão, não. Ei, (aumentando
consideravelmente o tom de voz) tem um vale de ossos secos pra você se preparar. Mas
eu sou profeta de Deus. (gritando) Deus também tem uma montanha pra você subir e
conquistar (gritos)...

A carreira espiritual que o crente deve trilhar, e a hierarquia carismática que dela

advém, se esclarecem neste trecho. Se um dia ele se limitava a bater bumbo à frente do

séquito comandado pelo seu falecido sogro, o líder anterior da ADVEC, Malafaia

agora prega do alto de um palco, sua “montanha”, numa casa de shows lotada com

transmissão para dezenas de países. E é do alto de sua montanha que ele reúne

autoridade para profetizar aos seus ouvintes, afirmando a possibilidade de Deus fazer

com que eles alcancem, também, o sucesso na busca generalizada pelo carisma.

Malafaia continua

... O versículo 4 tem uma coisa interessante: (lendo) “Então lhe disse: Profetiza sobre
estes ossos e dize-lhes, Ossos secos, ouvi a palavra do Senhor”. Meu irmão, olha que
coisa interessante: Quem é que tava com o profeta no vale? Quem? (a platéia responde,
Deus) E Deus manda o profeta? Aqui tem um princípio: Deus realiza a sua obra aqui na
terra através dos seus servos... Deus realiza aqui na terra os seus intentos através de
você, (e apontando aleatoriamente para pessoas da platéia) de você, de você, é de você.
Dá pra vocês dizerem pra dois três aí, olha: “É através de você. Através de você”
(gritos). É você o instrumento. Tem gente muito enganada... Você é o instrumento de
Deus, rapaz. É você. Não é outro, não.

Um dos motivos pelos quais o pentecostalismo tem encontrado uma expansão

assustadora consiste no fato de que a construção da autoridade do líder carismático

passa pela sua habilidade em motivar seus ouvintes a serem profetas onde estiverem.

Já discorri aqui sobre a o engajamento compulsório dos crentes pentecostais na cadeia

de circulação do carisma como elemento indispensável à construção da identidade

carismática. É isto o que faz Silas Malafaia acima: Exorta os fiéis a cumprirem seus

deveres de profetas. Cada um destes pequenos profetas, no entanto, é inserido numa

hierarquia baseada numa autoridade carismática que é diretamente proporcional à

84
convicção que cada um deve ter, e buscar, de estar exatamente no lugar em que Deus o

colocou:

Aí eu aprendo um princípio que tá aqui nesse texto e que eu quero que você aguce o seu
ouvido: Se você está no lugar que Deus quer que você esteja. Se você está exatamente
no centro da vontade de Deus... agora vem uma palavra pra você... Se você está
exatamente no centro da vontade de Deus e se você está no lugar que Deus quer que
você esteja, seja esse lugar geográfico ou posicional, ou as duas coisas, (aos gritos),
neste lugar você tem autoridade profética ( gritos da platéia). É aqui o engano de muita
gente, meus amigos. Você quer profetizar numa área e num local e numa posição que
você não tem... [mas] Ei, psiu! Você não está no lugar que Deus quer que você esteja
pra fazer isso. Você não tem autoridade profética. O que eu vejo de gente quebrar a cara
nesse negócio. Você não tem autoridade profética. Você tá fora do lugar. Esse homem
aqui estava no lugar que Deus queria que ele estivesse (referindo-se a Ezequiel [?]). E
Deus disse [para Ezequiel]: “Você tem autoridade profética. Você tem legalidade
espiritual. O que é uma coisa muito importante, porque se você estiver fora do local que
Deus quer te usar, você não tem legalidade espiritual pra ser profeta neste local.

A mensagem transcorre de forma que uma série de “promessas” são colocadas à

disposição fiel, mas ele precisa ter sua vida dirigida por Deus. Porém, não se diz quais

os sinais para ter essa certeza. A dúvida permanece na cabeça dos ouvintes. Esta

produção de angústia move os fiéis a permacerem na busca generalizada pelo carisma,

ao mesmo tempo em que a autoridade do líder carismático é mantida, pois, a única

coisa que se tem certeza é que o emissor desta mensagem, por estar onde está, se

encontra exatamente no lugar onde Deus quer “usá-lo”.

Logo em seguida o “jogo do ser ou não ser” é, mais uma vez, realizado. Primeiro

Malafaia lembra que a “glória” deve ser de Deus:

Agora olha o que é que diz o versiculo 5: (lendo) “Assim diz o Senhor Jeová a estes
ossos: „Eis que farei entrar em vós o Espírito e vivereis‟. Versículo 6: „E farei nervos
sobre vós e farei crescer carne sobre vós. E sobre vós estenderei pele e porei em vós o
Espírito e vivereis. E sabereis que Eu sou o Senhor‟”. Ezequiel quer operar tudo aquilo
através de quem? (platéia responde) – de Deus. - Não esquece isso não, meu filho.
Porque enquanto é osso sequíssimo não dá pra ficar metido a besta, mas quando é um
grande exército, (dá uma risada) Ai meu Deus... Ei, ei, o tempo todo, o que vai ser feito,
é o Senhor que vai fazer através de você. Não fica metido a besta não que papai do céu
puxa o tapete... É a mão de Deus, é o favor de Deus, é o agir de Deus, (aumentando o
tom de voz) é a misericórdia de Deus, é a bondade de Deus, o que somos, o que temos, o

85
que fazemos. É Deus, é Deus. (num tom de voz ainda mais alto). A Ele a glória, a Ele a
honra, a Ele o louvor para sempre (gritos da platéia). Não se esquece não, hein (a
platéia irrompe em palmas)

Para depois construir sua posição de autoridade em comparação a outro pastor, que não

tem o nome revelado, mas que, para Malafaia, não tem o conhecimento suficiente da

Palavra e precisa, por isso, recorrer ao que ele define como manipulação:

Aí tem que fazer o fogo cair, aí meu irmão, aí começa uma coisa, que é uma das mais
horrorosas no nosso meio, chamada espírito de manipulação. Porque se alguém prega e
o fogo cai, não tem nenhum problema, eu sou pentecostal, eu gosto de ver o fogo de
Deus descer, eu gosto, mas não suporto ver forçação de barra, não suporto ver
manipulação,... Aí o cara vem e faz uma arruaça... Tem um amigo meu, que não vou
citar o nome por questão de ética... uma vez eu estava ouvindo ele pregar e... eu sabia
que ele tava pregando numa igreja e o culta tava sendo transmitido... e depois ele ia falar
comigo que ele ia comprar materiais na minha editora, e ele falou pra mim: - olha,
depois do culto eu te ligo pra gente marcar um encontro. E aí eu falei: ok. Aí eu tô
vendo o cara pregar. A pregação dele era assim... eu conheço onde ele foi pregar, tava
lotado, hiper-lotado, um grande congresso jovem, lotado de crente... E aí ele começou...
E eu estou ouvindo o cara... Meu irmão, não dava pra espremer, Jabes (Jabes de Alencar
é um dos pastores presentes no congresso) e sair duas frases [que prestassem] da
mensagem [dele]. Eu falei: - Jesus, faça com que ele não ligue pra mim, vai (risos da
platéia). Não deixa ele ligar pra mim hoje no final desse culto, porque não vai prestar.
Mas não deu outra, Jeová queria que ele ligasse (risos da platéia). Aí, quando foi lá pras
onze da noite [ele ligou]: - Malafaia, amanhã a gente vai se encontrar? Eu falei: Vamos.
E eu acabei de ver a palhaçada que tu fez aí na igreja (risos da platéia). Talvez se você
pedisse uma vaga pro Silvio Santos, ou na globo, ou na rede TV, ou na bandeirantes, sei
lá onde, te arrumavam. Rapaz não faz isso, não. Você é um camarada que tem tantas
mensagens, não faz isso não, rapaz. Toma vergonha. Isso é manipulação, rapaz. Não
faça isso. Pregue uma mensagem pro povo que vai edificar, que vai dar alguma coisa.

Fica consolidada, assim, a posição de Silas Malafaia como um “verdadeiro” profeta

que reúne, como deve ser, e como já vimos, poder e conhecimento.

Malafaia chega ao momento final de sua mensagem. Oferecer as “primícias” da

internalização da Palavra. Dar início ao processo de externalização onde o crente

constrói sua identidade carismática, recebendo e mimetizando a performance de seu

pastor. Justapor-se às narrativas bíblicas e performar seu carisma enquanto constrói sua

autoridade, assentado sobre o papel da ambigüidade na construção de sentido. Estes

elementos desembocam no que entendo como o momento de “profusão de profecias”,

quando a mensagem se encerra e se tem a impressão de o pregador se aproximar mais

86
de seus ouvintes, que por sua vez, exercem neste momento derradeiro do ritual sua

postura mais ativa, ao mesmo tempo em que se percebe mais claramente a ingestão por

eles da Palavra que vêm do pastor

De pé, todos. (A platéia e levanta). Eu quero terminar sendo um profeta de Deus pra sua
vida... Eu queria ser profeta pra você. Se você quer receber uma palavra profética, você
que está me acompanhando pela TV e você que está aqui, eu gostaria que você
colocasse as suas mãos assim como eu estou fazendo (estende as mãos para o alto com
as palmas para cima)... Eu quero ser profeta de Deus pra você. Quando eu disser
“amém” eu gostaria que você, se você quiser e se você crê... Você fechasse as suas mãos
e fizesse uma declaração: “eu recebo”, “é pra mim”, “vai acontecer no nome de Jesus”.
Qualquer palavra que você quiser dar, e depois eu te dou um minuto só pra você
agradecer e adorar a Deus. Você está com as mãos pra frente? Então eu quero ser
profeta pra você, não importa quem você é, se você é membro, se você é obreiro, se
você é pastor, se é pobre, se é rico, se é empregado, ou se é patrão. Eu quero ser profeta
de Deus pra você. Então eu quero liberar uma palavra pra você que está aqui e [para
você] que está me assistindo. Grave! É uma pequena retrospectiva, mas é uma palavra
profética pra você. Grave: se você estiver no lugar que Deus quer que você esteja, se
você obedecer exatamente aquilo que Deus quer que você faça, você se prepare! Porque
Deus, através de você, vai fazer (aumentando o tom de voz) uma obra grandiosa que não
vai poder se contar. Receba essa palavra em nome de Jesus, Amém (gritos da platéia).

Todos receberam. E saíram cantando que seriam “benditos quando (e enquanto)

profetizassem”. Prontos para darem continuidade à busca generalizada pelo carisma.

Dirigindo-se à saída nenhum deles parava de cantar: “Eu sei que a minha voz será a

voz de Deus, quando eu obedecer a sua voz”. Todos Santos. Mas uns mais que os

outros.

87
Conclusões

Ao final desta caminhada, na qual buscamos entender como o líder carismático se

eleva acima de seus pares, o leitor já deve ter percebido que não hesitei em ir

apresentando ao longo do texto as conclusões de minha pesquisa. Farei aqui apenas

uma recapitulação sintética destas, no intuito de proceder com minhas considerações

finais. Como intenciono ingressar na pós-graduação em Antropologia, apontarei,

depois, caminhos que pretendo seguir no objetivo de dar continuidade a este trabalho

que, por hora, pretende trazer uma pequena contribuição ao debate sobre o

pentecostalismo e as celebridades pentecostais.

Antes de tudo, deve ficar consolidado em nosso entendimento o caráter relacional

e coletivo do carisma. Desatrelar este conceito do seu aspecto de qualidade individual

e vê-lo como processo, emergindo das interações entre os indivíduos, é indispensável

para compreendermos que o carisma, mais do que acumulado (no sentido de capital

social), precisa ser performado nestas interações. Weber já esboça o caráter

relacional/coletivo do carisma, a despeito de, no exato momento de proceder com a

elaboração de seu conceito, se distanciar deste entendimento que aqui buscamos

consolidar. Csordas e Durkheim (este é ignorado pelo primeiro, embora seja um autor

clássico indispensável) contribuem significativamente para apresentarmos a própria

comunidade pentecostal como o lócus por excelência do carisma. A análise conjunta

de seus trabalhos permite-nos dizer que a produção social do carisma consiste na

articulação coletiva dos recursos simbólicos compartilhados na comunidade religiosa,

88
sendo o líder carismático, por sua vez, o emblema50 deste aparato simbólico contido

no que convencionamos chamar de cultura pentecostal.

Seguindo o caminho aberto por Campos51 (2011), que em seus trabalhos mostra a

necessidade do carisma ser performado, querendo-o, os fiéis, para si mesmos, bem

como através dos trabalhos de Coleman (2000, 2006, 2009), chego ao entendimento de

que a busca generalizada pelo carisma é o principal aspecto da cultura pentecostal.

Nossos entrevistados, exceto Jurandir, o único não-pentecostal (o que para mim foi

elucidativo), afirmaram ter seus próprios ministérios (vocações), sendo necessário,

para a consecução destes, buscar conhecimento e poder, ou seja, como vimos, carisma.

Esta busca se dá num processo contínuo de internalização e externalização, gerando

uma cadeia de circulação verbal onde cada crente, tendo internalizado em seu self o

carisma, procede com a sua externalização estendendo-o (reaching out) até o outro,

principalmente através da prática de “dar uma palavra”. Aqui, o “Jesus é bom”

recebido por Nadja de um irmão na noite anterior ao ser internada no hospital, para

depois repassá-lo à sua companheira de quarto, serve como modelo para iluminar

como funcionaria esta cadeia. A busca pelo carisma não é uma opção ofertada ao

crente. Sua adesão a esta corrida pelo carisma é compulsória. De novo Nadja, que se

sentiu culpada por não externalizar a palavra que deveria ser dada ao motorista a fim

de evitar o acidente que estava por acontecer, pode nos ajudar a compreender o que

hora afirmo. A comunidade vê neste processo de circulação verbal, como diz Coleman

50
Este insight, de entender o líder carismático como emblema da cultura pentecostal foi
sugerido pela Prof(a). Roberta Campos numa reunião de pesquisa do seu projeto “Textualidade
e Oralidade da Bíblia”. Esta idéia tem sido mote das reuniões destinadas à revisão bibliográfica
no projeto.
51
Este trabalho só foi possível ser realizado não só devido aos seus artigos, mas ao projeto
coordenado pela Prof (a). Roberta Campos, financiado pelo CNPQ, “Textualidade e Oralidade
da Bíblia”, do qual sou voluntário.

89
(2006) acrescentando nesta cadeia a circulação do dinheiro em forma de dízimos e

ofertas, uma tentativa de se chegar a um meio objetivo de medir o carisma do fiel.

Este, sob constante escrutínio da comunidade, constrói sua identidade como

pentecostal e põe em circulação o carisma. Esta “medição” e escrutínio se dão,

conforme relatei, nos momentos formais destinados ao compartilhar das “bênçãos”,

como na leitura das cartas onde são apresentadas as “vitórias” nos cultos das quartas-

feiras na ADVEC-Caxangá, nas conversas informais entre os crentes, ou nas

admoestações feitas pelos pregadores. Este compartilhar, e a ênfase que a comunidade

dá a estes momentos, geram o anseio nos membros de vivenciarem, eles também, suas

próprias experiências. Conseguir vivê-las torna-se indispensável para que o crente se

reconheça como pentecostal. Compartilhá-las é essencial para que, como tal, seja

reconhecido.

A linguagem, portanto, é o principal elemento da construção da identidade do

crente. A prática da confissão positiva eleva o que diz o falante inspirado ao mesmo

patamar sagrado do texto escrito. É só lembrar do “você presta” gritado à Nadja na

ocasião da primeira experiência que me relatou. A complexa e intrínseca relação entre

a oralidade e a Bíblia como texto escrito (a oralidade da Bíblia), haja vista que a fala

inspirada atrela-se às histórias e causos bíblicos, abole o entendimento de que os

pentecostais teriam abandonado, ou relegado ao segundo plano, as Escrituras. Estamos

diante de uma exegese bíblica diferente, que coloca a dramatização oral no mesmo

patamar do texto escrito, pois dele se origina, já que precisa tê-lo incorporado

(embodied) para se revestir de autoridade. Como acontece com Luciano, que ao

invocar o relato bíblico da ocasião em que Cornélio é “cheio do Espírito Santo”

90
dramatiza o texto, usando-o como um script a ser seguido para que o mesmo resultado

seja obtido.

A busca generalizada pelo carisma tem os seus vencedores. Aqueles que atingiram

o sucesso carismático. É assim que entendo o surgimento dos “santos” protestantes:

Como resultado desta cultura da corrida pelo carisma assentada na oralidade da Bíblia.

Os líderes carismáticos são tanto emblemas, quanto pedagogos desta cultura. Eles

elevam do prosaico ao nível do extraordinário o princípio de estender-se até o outro.

Ele está acima, e na origem, da cadeia de circulação verbal, na medida em que oferece

as “primícias” da internalização da Palavra, já que o faz, como disse Eliete, no

momento principal do culto, para o qual todos os outros servem apenas de preparação.

E, também o faz em outro patamar, sendo o ponto para o qual convergem todos os

olhares não mais nas ruas ou nos hospitais, mas nos cultos públicos, em eventos

itinerantes que arrastam multidões, ou nos programas transmitidos pela mídia, assim

como Silas Malafaia no Congresso. O fiel recebe, para ele literalmente, (como vimos

nas declarações dos nossos entrevistados ao dizerem a Palavra é “alimento”) a palavra

do pregador, criando um fluxo durante as prédicas que se estende de um ao outro. Este

fluxo é quase “perceptível” nos gestos, olhares e respostas, no estilo call and response,

de cada fiel, como relatei no capítulo anterior. Ao mesmo tempo, o ouvinte em busca

de carisma o mimetiza neste ritual pedagógico levado adiante pelo seu líder,

reproduzindo-o, em menor escala, na sua própria tarefa de também estender-se ao

outro (reaching out), nos momentos semelhantes aos apresentados por mim

anteriormente.

Esta relação entre pastor e fiel, que envolve um fluxo de recepção e mímesis

ligando ambos, leva o entendimento do carisma para além da dominação. Visão já

91
deixada bem clara por Campos em seus trabalhos (2005, 2011). Seguindo os passos

desta autora, não estou negando a faceta da dominação carismática. No entanto, dirigi

minha preocupação, a todo o tempo, para entender como o profeta instaura sua

autoridade diante de seus pares. Deste entendimento se abre uma nova perspectiva à

compreensão da economia do carisma. Não se pode dizer que os fiéis, desprovidos de

carisma, são dominados pelos líderes carismáticos, que o monopolizam, como diria

Bourdieu. O panorama é mais complexo. Os fiéis querem carisma e o tem, o que se

configura como uma condição para que se entendam como pentecostais. Nadja, Eliete,

Luciano e Renato, ao serem instados a dizerem quem são os crentes “cheios do

Espírito Santo”, marca do pentecostalismo, contaram as experiências por mim

descritas no capítulo anterior, onde performaram seus próprios carismas. Além disso,

os fiéis participam ativamente do processo de construção do carisma de seu líder, que,

por sua vez, para ser bem sucedido, não pode reter carisma, pelo contrário, precisa

performá-lo, de forma a dar início ao processo de circulação do carisma pentecostal.

Neste ritual pedagógico da ação carismática comandado pelo pastor, onde se

formam os profetas, podemos ver a expansão pentecostal sem nos fecharmos no

âmbito das relações sociais e da esfera institucional, reduzindo o crescimento

avassalador do pentecostalismo ao acúmulo de capital social e ao poderio econômico

de suas instituições, sobretudo no que diz respeito ao alcance por elas obtido através da

mídia. A análise das interações rituais entre o pastor e os féis ilumina a esfera

simbólica da expansão pentecostal, elencando fatores imanentes à lógica da cultura

pentecostal como elementos indispensáveis a esta expansão. Campos (2011) já

chamava atenção que é na circulação do carisma e na multiplicação de profetas que

o pentecostalismo encontra uma das principais causas de sua expansão.

92
Trazer o entendimento mais amplo do que chamei de economia do carisma não nos

impede, no entanto, de perceber que estes profetas são inseridos numa cultura onde

todos são “vencedores”, mas onde uns vencem mais que os outros. Esta estratificação

carismática, porém, se encontra subjacente à cultura pentecostal. Não pode ser

desnudada ou verbalizada pelos profetas, pois o que se busca entre os pentecostais é

uma conexão direta com o Espírito Santo. Para se pregar “do alto da montanha”, como

fez Silas Malafaia, é indispensável ficar claro que as estrelas pentecostais, como tal,

não possuem luz própria. Ela vem Deus. A performance do carisma do líder, executada

ao mesmo tempo em que ele constrói sua autoridade, deve, portanto, se assentar na

ambigüidade em relação à proveniência da “benção”, da Palavra a ser internalizada. A

ambigüidade é, podemos dizer, parte constitutiva do carisma do líder. Ela surge na

justaposição dramatizada da biografia do líder carismático à narrativa bíblica, aos

moldes do que Malafaia fez ao justapor-se às histórias dos personagens bíblicos

Ezequiel e Abraão. Toda sua performance, como nos mostra Coleman (2009) , baseia-

se no lançar constante das perguntas não-ditas (unspoken questions) que o permitem,

conforme dito por Csordas (1997), agir sobre um gap semiótico, no ritmo que

denominei fazer parte de um “jogo de ser ou não ser”. Este “jogo” fica claro no

caminho traçado por Malafaia, na mensagem por nós analisada, de “batedor de

bumbo” até a conquista “do alto da montanha”, sem esquecer, no entanto, de dar a

devida “glória a Deus”. Assentando-se nestas práticas, Malafaia tem a possibilidade de

“caminhar sobre a ambigüidade” e construir sua posição de mediador de uma maneira

aceitável pela cultura pentecostal. Entender dessa maneira os motivos pelos quais

surgem os líderes pentecostais e o modo como performam seu carisma é uma

contraposição veemente à visão de que estes pastores sejam charlatões manuseando

instrumentalmente as práticas relatadas acima, movidos por motivos escusos. O líder


93
carismático, é necessário deixar bem claro, ocupa um lugar dentro da lógica da busca

generalizada pelo carisma baseada na oralidade da Bíblia, ou melhor, é parte

constitutiva desta.

Tendo enfatizado as interações face-a-face entre pastor e fiéis, o próximo passo

deste trabalho é proceder com a análise das interações midiatizadas. O fluxo

construído entre pastor e ouvinte resiste à mediação da televisão? Longe do cenário do

culto repleto de sons, símbolos e imagens que contribuem com a recepção da palavra,

atinge-se a mesma eficácia ritual? Pode-se dizer que há uma efervescência coletiva

virtual? Estudar a relação entre mídia e as interações rituais é indispensável para o

objetivo deste pesquisador de dar um passo adiante e entender a forma como o

pentecostalismo se transnacionaliza. Pode-se verificar o mesmo papel da esfera

simbólica da expansão pentecostal quando suas instituições atravessam as fronteiras de

onde se instalaram originalmente? Seriam os líderes carismáticos os agentes da

transnacionalização pentecostal? As perguntas ainda são muitas e o caminho a trilhar

permanece longo. Sigo na busca generalizada pelas respostas.

94
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