Você está na página 1de 168

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ

Centro de Filosofia e Ciências Humanas – CFCH


Instituto de História – IH
Programa de Pós-Graduação em História Comparada

Os Círculos Paulinos: um Estudo Comparativo sobre as Relações de Poder à


Luz dos Rituais Batismais nas Comunidades Coríntia e Efésia (I-II EC).

Juliana Batista Cavalcanti M. T.

Rio de Janeiro
2016
Os Círculos Paulinos: um Estudo Comparativo sobre as Relações de Poder à
Luz dos Rituais Batismais nas Comunidades Coríntia e Efésia (I-II EC).

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada da


universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGHC/UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do grau de Mestre em História Comparada.
Integrantes da Banca:

_________________________________________
Profa. Dra. Norma Musco Mendes – Orientadora

_________________________________________
Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese – Orientador

_________________________________________
Prof. Dr. José de Assunção de Barros - PPGHC/UFRJ

_________________________________________
Prof. Dr. Marcos Caldas - UFRRJ

Rio de Janeiro
2016

II
CAVALCANTI, Juliana Batista

Os Círculos Paulinos: um Estudo Comparativo sobre as Relações de Poder à


Luz dos Rituais Batismais nas Comunidades Coríntia e Efésia (I-II EC). Juliana
Batista Cavalcanti M. T. – Rio de Janeiro, 2016. Dissertação (Mestrado em História
Comparada) – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Instituto de História
– IH, Programa de Pós-Graduação em História Comparada – PPGHC, 2016.
Orientadores: Profa. Dra. Norma Musco Mendes e Prof. Dr. André Leonardo
Chevitarese.

I. 1. História Antiga. 2. História dos Paleocristianismos. 3. Rituais Batismais.


4. Propaganda política. 5. Identidades 6. História Comparada – Dissertação. II.
Mendes, Norma Musco (Orientadora) e Chevitarese, André Leonardo (Co-
Orientador). III. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais. Programa de Pós-Graduação em História Comparada. IV. Título.

III
Resumo

CAVALCANTI, Juliana Batista. Os Círculos Paulinos: um Estudo Comparativo


sobre as Relações de Poder à Luz dos Rituais Batismais nas Comunidades
Coríntia e Efésia (I-II EC). Orientadores: Profa. Dra. Norma Musco Mendes e
Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/Instituto de
História/ Programa de Pós Graduação em História Comparada. Dissertação
(Mestrado em História Comparada).

A presente Dissertação visa comparar as relações de poder emergidas nas


comunidades cristãs paulinas de Corinto e Eféso em diálogo com os modelos
organizacionais imperialistas romanos, tomando como base o ritual batismal. A
opção pelo batismo se deve pela compreensão de que é o batismo que insere o
indivíduo numa nova realidade e consequentemente é este rito que o transportará
as tensões e debates sobre as formas de acesso ao divino, normas de
comportamento e sociabilidade.

IV
Abstract

CAVALCANTI, Juliana Batista. Os Círculos Paulinos: um Estudo Comparativo


sobre as Relações de Poder à Luz dos Rituais Batismais nas Comunidades
Coríntia e Efésia (I-II EC). Orientadores: Profa. Dra. Norma Musco Mendes e
Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/Instituto de
História/ Programa de Pós Graduação em História Comparada. Dissertação
(Mestrado em História Comparada).

This dissertation if propose to compare the relations of power emerged in Pauline


Christianity communities of Corinth and Ephesus in dialogue with Roman
imperialists organizational models, putting as base the baptismal ritual. The
option by baptism whether makes in comprehension of what is baptism what
inserts the individual in new reality and consequently is this rite what will take it
the tensions and debates about the forms of access to divine, roles of
comportment and sociability.

V
Dedido as palavras aqui expressas ao meu amado José
Maurício Cardoso, o homem que me mostrou os significados
do verbo amar em todas as dimensões da natureza humana.

VI
Agradecimentos

A Deus pela beleza diária das coisas simples.


A minha amada mamãe Maria Cavalcanti que sempre foi e sempre será
minha força quando eu estiver fraca. Jamais teria chegado até aqui sem a sua fé
em mim mesma e em meus sonhos.
A minha avó Geci Batista que soube escrever como ninguém uma história de
luta e superação. Um exemplo de mulher e também minha salvadora com seus
deliciosos pratos preparados aos domingos especialmente para a neta descuidada
que estava ocupada com a dissertação.
Ao meu avô Raimundo Pinto (in memoriam), um exemplo de homem e
educador. A saudade que sinto é imensurável, mas vivo na certeza de que aonde
quer que ele esteja ele jamais descuidou de celebrar por minhas vitórias e zelar
por mim em momentos de fraqueza.
Ao meu irmão Alberto Cavalcanti, por todas as vezes que resolvi de última
hora sair para desestressar e ele estava lá ao meu lado topando qualquer
atividade.
À minha querida sogra Norma Cardoso, hoje como uma segunda mãe. Além
de muito carinho e respeito, devo a ela uma das mais importantes aprendizagens
ao longo desta caminhada: perserverança.
A meu amado José Maurício Cardoso por todo apoio, alegria e amor que
poderia ter encontrado apenas em sua pessoa e que serei eternamente grata por
isso.
Ao meu orientador André Chevitarese pela amizade e sábias palavras.
À minha orientadora Norma Musco Mendes, por ter gentilmente me acolhido
no mestrado e acreditado no meu trabalho.
A minha família do coração Victor Vieira, Henrique Sobral, Natália Miranda e
Beatriz Simões. Sem eles não poderia estar aqui, fundamentais na minha
graduação e indispensáveis na minha vida.
Aos amigos queridos do NEA, em especial as amigas Marina Rockenback e
Dolores Pugas. Sem essas duas meu mestrado não teria tido o mesmo colorido, as
boas risadas durantes as aulas da profa. Norma Mendes, saídas animadas
(incluindo notícias de última hora de Coxim) e desabafos no Facebook foram
elementos extras para a conclusão dessa tarefa.
Aos amigos e companheiros do LHER, sou grata a cada um pelo apoio. Mas
agradeço especialmente a Lair Amaro e Vítor Almeida, dois grandes amigos que

VII
cultivei e que tanto incomodei ao longo desse percurso. O que seria dessa
Dissertação sem esses dois?
À amiga Mariana Pernambuco por simplesmente ser uma amigona e estar
sempre me dando apoio em tudo e, é claro, pelos animados e proveitosos bate-
papos histórico-teológicos.
Às amigas Milena Reis, Sáloa Farah e Aleska Lemos. Cada uma me ensinou e
ensina a importância de acreditar em si mesma e em seus sonhos. Seja o que for,
o que importa não é o obstáculo, mas lutar pelo fim.
Aos amigos de longa data Laís Leite, Natasha Briggs, Willian Black, Erick
Araujo e Mécia Argyros pelos quase 10 anos de muito humor e companherismo.
Amizades como essas são a certeza que a palavra amigo é complexa demais para
tentar ser definida em poucas palavras.

VIII
Sumário:

Abreviaturas..........................................................................................11

Introdução............................................................................................13

1. Apresentação da Documentação por diferentes olhares e exposição


da problemática.............................................................................. 15
1.1. Paulo ou Paulos? Uma Metodologia para a Busca do Paulo
Histórico......................................................................................... 16
1.2. As Epístolas aos Coríntios e aos Efésios por Diferentes
Olhares..................................................................................... 19
1.2.1. A Luz das Ciências das Religiões e da Teologia............20
1.2.2. A Luz da História........................................................ 39
1.2.2. A Luz da Arqueologia.................................................. 45
1.3. Um Breve Balanço....................................................................55

2. Os círculos de Poder. Cristianismos Paulinos como Associações


Voluntárias e Cultos de Mistério.....................................................60
2.1. Ekklēsiai e Associações Voluntárias....................................61
2.1.1. Associações Voluntárias e Ekklēsiai. Algumas
considerações Fenomenológicas..........................................62
2.1.1.1. Associações Voluntárias e Ekklēsiai. Diferentes
Olhares sobre os Aspectos Sociais.................................66
2.2. Ekklēsiai e Cultos de Mistério.............................................95
2.2.1.1. Paulo um místico?.........................................100
2.3. Considerações Parciais. Lideranças Itinerantes Carismáticas
versus Lideranças Comunitárias...............................................107

3. ‘Em Cristo’. Agendas de Reino de Deus versus a Propaganda


Imperial.......................................................................................110
3.1. Augusto e a Nova Ordem Mundial. A (Re)Construção do
Culto Imperial como Mantedor dos Novos Tempos..................112
3.2. Do Movimento Político-social do Nazareno ao Jesus
Ressuscitado de Paulo. Releituras Paulinas sobre o Projeto de
Reino de Deus........................................................................119
3.3. Um grupo de “Loucos, Desonrados e Estúpidos, e Somente
para Escravos, Mulheres e Criancinhas”? Discutindo um Pouco
mais sobre as Agendas de Reino de Deus................................129
3.4. Um Breve Balanço Conclusivo...........................................151

Conclusão.............................................................................................153

Referências Bibliográficas......................................................................157

10
Abreviaturas Utilizadas:

1Cor. 1 Epístola aos Coríntios


2Cor. 2 Epístola aos Coríntios
Ef. Epístola aos Efésios

Imagens:
Figura 1: Museu Roma, Ara Pacis, piso térreo.
Figura 2: Rotas que interligam Roma com importantes polos ou centros
administrativos do império.
Figura 3: Rede de rotas existentes ao longo do Império Romano, indicando a
distribuição dos custos de condições favoráveis para a integração econômica ao
longo da costa do Mediterrâneo e os baixos níveis de conectividade entre o
núcleo do Mediterrâneo e do interior da Península Ibérica e da Gália, a bacia do
Danúbio, Anatólia central e os desertos do Egito.
Figura 4: Área do Fórum e principais templos da cidade de Corinto.
Figura 5: Geografia da cidade de Éfeso no século I EC.
Figura 6: A cidadela e a casa escavação com vista para o rio Eufrates e
Mesopotâmia além.
Figura 7: Dura-Europos, com vista para o rio Eufrates (canto superior direito).
Figura 8: Plantas Baixas da Casa em Dura-Europos sinalizando os estágios anterior
e posterior a reforma.
Figura 9: Plantas Isométrica, sentido AA’ (Horizontal), da Casa em Dura-Europos
sinalizando os estágios anterior e posterior a reforma.
Figura 10: Batistério, Dura Europos, leste da Síria, ca. 240.
Figura 11: Inscrição (Die Inschriften von Ephesos IV 1023) datada logo depois 104
AEC.
Figura 12: Fragmento da face b na inscrição da sinagoga com os nomes de judeus.
Figura 13: Denário de prata – c. 17 AEC. Anv. CAESAR AVGSTVS. Cabeça laureada
de Augusto à direita. Rer. DIVVS IVLIVS. Cometa com oito raios e cauda.
• Figura 14: Denário de prata – 2 AEC – 11 EC. Anv. CAESAR AVGVSTVS DIVI F
PATER PATRIAE Cabeça de Augusto à direita laureada. Rev. C L CAESARES
AVGVSTI F COS DESIG PRINC IVVENT. Caio e Lúcio Cesar togados e velados,
de pé, de frente com escudos sobrepostos e lanças cruzadas ao centro. No
campo, acima, o “simpulum” e o “lituus.

11
Figura 15: Denário de prata – 2 AEC. Anv. CAESAR AVGVSTVS DIVI F PATER
PATRIAE Cabeça de Augusto à direita laureada. Rev. PONTIF MAXIM. Ceres oo
Pax, provavelmente com os traços de Lívia, segurando cetro e espigas de trigo.
Figura 16: Denário de prata – 128 EC – 138 EC. Anv. HADRIANVS AVGVSTVS PP
Cabeça nua de Hadriano à direita. Rev. DIANA EPHESIA. Artemis ao centro e
veados ao lado.
Figura 17: Em bronze. 117 EC -138 EC. Anv. [AV]KAITPA - A∆PIAANOCЄB Busto de
Hadriano laureado à direita. Rev. ЄΦЄ – CIΩN Templo em quatro colunas de
Ártemis (estátua ao centro).
Figura 18: Reconstrução do horologium (relógio de sol), a sombra do obelisco
indicava o Altar da Paz Augustana no dia do aniversário de Augusto.
Figura 19: Procissão em um sacrifício religioso, com ênfase na Domus augustae.
Figura 20: Gema de Augusto.

12
Introdução.
Antes de tudo segue:
“Toda leitura dos evangelhos se realiza em um contexto
determinado. Não há leitura puramente espiritual. Não há leitura
científica imunizada. Alguns intérpretes acreditaram poder trabalhar
acima do confronto com os homens. Esta ingenuidade vai
desaparecendo. Na exegese mais técnica esconde-se uma visão
global da existência. Temos que nos aceitar como parte de um todo
e assim interpretar no campo de nossa experiência. Nossa condição
histórica impõe limites à nossa compreensão. E é impossível
elucidar completamente aquilo que conduz ou condiciona o
intérprete” (Morin, 1988: 5).

A fala de Émile Morin pode parecer num primeiro momento simples e


singela. Mas traz algo de maravilhoso que é a clara certeza de que todo o texto
tem o seu contexto e lugar de vida, mesmo um texto que primariamente se diga
ser de finalidade religiosa ou teológica. E isto porque toda documentação é fruto
da ação humana sobre diferentes eventos e situações de seu cotidiano. O que
significa dizer, razão pela qual escolhemos a fala de Morin, que o conhecimento é
transdisciplinar tal como é a nossa vida diária.
Contudo, um artigo, uma dissertação, uma tese ou mesmo um livro não
dariam conta de esgotar os diferentes olhares que podemos agregar a uma
mesma documentação. E mesmo que quiséssemos escrever volumes sobre uma
determinada documentação, até chegarmos à totalidade da questão, ainda assim
não conseguiríamos esgotar o assunto, pois somos filhos de nosso próprio tempo.
As perguntas que fazemos são demandas pessoais e do tempo em que nos
inserimos.
Neste sentido, deve ser pensada a presente Dissertação. Em outras
palavras, o que vem a seguir não é um trabalho que visa esgotar a temática geral
que é Paulo nem muito menos a microtemática, que é o batismo paulino. Todavia,
o que pretendemos aqui é partir do que já foi dito sobre Paulo e o seu batismo
(ou os seus batismos) e ponderar o que uma historiadora pode ainda dizer sobre
o assunto. Com isto, a presente Dissertação intitulada “Os Círculos Paulinos: um
Estudo Comparativo sobre as Relações de Poder à Luz dos Rituais Batismais nas
Comunidades de Corinto e Eféso (I-II EC)” se propõe a fazer um pequeno recorte
dentro de um oceano que é a presente temática.
De imediato iremos fazer uma breve, mas importante reflexão e discussão
metodológica de forma que possamos sinalizar uma metodologia que nos permita
entender Paulo e todo o seu corpus documental à luz da transdiciplinaridade. A
partir disto iremos nos voltar para as três documentações paulinas a serem
empregadas neste trabalho para indicar o que a partir delas pode ser dito sobre

13
os rituais batismais. Sinalizaremos ainda o que pode ser dito dos contextos e
lugares em que estes textos foram forjados, aplicando assim a importância de
uma ação conjunta entre História, Arqueologia, Ciências da Religião e Teologia.
Concluiremos o capítulo com uma revisão bibliográfica do assunto e com uma
proposta de análise.
O segundo capítulo tem por finalidade abordar os cristianismos paulinos
como associações voluntárias, fazendo uma revisão historigráfica sobre o conceito
e estabelecendo uma comparação em níveis terminológicos, fenomenológicos e
ritualisticos.
O último capítulo é destinado a pensar os programas de Reino de Deus e o
do Império Romano, subdividindo-se em níveis gerais e agenciais.

14
1. Apresentação da Documentação por Diferentes Olhares e
Exposição da Problemática.

Em seu livro “The First Paul” (2010) Crossan e Borg afirmam que Paulo é
uma das figuras mais emblemáticas e determinantes no pensamento cristão.
Sendo o seu nome utilizado para legitimar diferentes posições e muitas delas por
vezes contraditórias. O que leva a construção de um Paulo multifacetado, capaz
de atender projetos de poder dos mais variados. As próprias cartas que lhe são
atribuídas, sejam elas de fato escritas ou não por ele, apresentam ideias distintas
que geram opiniões e sensações por vezes confusas sobre a sua figura. Um
exemplo rápido disso, pode ser percebido na leitura de duas falas paulinas. São
elas:
Pois fomos batizados num só Espírito para ser um só corpo, judeus
e gregos, escravos e livres, e todos bebemos de um só Espírito
(1Cor 12:13).

Sede submissos uns aos outros no temor de Cristo. As mulheres o


sejam a seus maridos, como ao Senhor, porque o homem é a
cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja e o salvador do
Corpo. Como a Igreja está sujeita a Cristo, estejam as mulheres em
tudo sujeitas aos maridos (Ef 5:21-24).

No primeiro fragmento observamos uma postura bastante radical de Paulo,


afirmando que não haveria diferenciação jurídica ou étnica entre os batizados,
uma vez que todos se tornaram iguais por intermédio do Espírito obtido após o
rito batismal. No entanto, no segundo o que percebemos é certa distinção entre
os membros advinda da justificação que “Cristo é a cabeça da Igreja” e sendo
assim aqueles que incorporam a alegoria “Cristo” devem submeter-se aos que
personificam a alegoria “Igreja”.
Tomando estas passagens como um relato contínuo, entenderíamos que ou
o autor destas passagens mudou radicalmente de ideia no decorrer da redação
das cartas ou não estamos falando da mesma pessoa. Para isso, se faz necessário
em primeiro lugar o uso de bases teórico-metodológicas para se entender esta
personagem e a sua documentação. Em um segundo momento, devemos buscar
o que pode ser dito sobre a documentação em questão. Estes caminhos serão
trilhados por nós neste primeiro capítulo.

15
Em outras palavras, abordaremos, de imediato, uma possível metodologia
para a busca do Paulo Histórico. A seguir, apresentaremos de forma geral o
corpus documental paulino a ser empregado na presente Dissertação, o que nos
abrirá espaço para uma leitura mais detalhada e por diferentes olhares (Teologia
e Ciências da Religião, História e Arqueologia) sobre o texto, os contextos e o
‘lugar de vida’ de suas composições. Por fim, mas não menos importante,
concluiremos este capítulo com um pequeno balanço do que foi apresentando,
refletindo o que já pode ser pensado ou desconstruído a partir da metodologia
aqui abordada.

1.1. Paulo ou Paulos? Uma Metodologia para a Busca do Paulo


Histórico.
De imediato, consideremos duas citações:
“A história da interpretação paulina é a história da
domesticação eclesiástica do apóstolo” (Käsemann, 1971:
66).

“O Paulo canônico comprovou-se incalculavelmente útil para


o patriarcado, santificando a opressão interior de mulheres,
muito mais útil, com efeito, que qualquer outra parte da
Bíblia” (Elliott, 1998: 21).

As duas citações acima nos chamam atenção, pois elas nos rementem à
preocupação manifestada por ambos os autores para a necessidade de bases
teórica e metodológica para se buscar o Paulo Histórico. Base esta que nos permita
vislumbrar ou perceber que o “Paulo canônico” ou o ‘Paulo cristão’ é antes de
qualquer coisa uma personagem lida e relida ao longo dos séculos1. Estando sujeita
aos interesses e percepções das lideranças religiosas, bem como do contexto
político-social que estas lideranças se inserem. Dessa forma, o autor dos primeiros
escritos judaico-cristãos2 não seria o mesmo tal como conhecemos hoje, ou melhor,
como diria Ginzburg (1990: 13), haveria filtros de leitura construídos e

1
Grupos religiosos, a patrística, a pesquisa moderna (experiência iluminista, escola mitológica e escola
das religiões) e mesmo a pintura e a sétima arte estão inclusas entre os diferentes meios de formação de
imagens de Paulo. Ver: Crossan e Borg (2009), Crossan e Reed (2007), Elliott (1998) e em especial a
obra de Gerdmar (2009), onde o autor tece de que forma a escola teológica germânica em longa duração
foi capaz de desjudaizar Jesus e todo o seu movimento, colocando como um ariano, em especial por
intermédio das obras de Gerhard Kittel e Walter Grundmann.
2
A opção pela expressão se deve ao fato termos interesse em frisar já num primeiro momento que o Paulo
histórico e o movimento em que ele esteve vinculado seriam mais uma leitura ou uma vertente de
judaísmos existentes em pleno século I EC. Percepção esta que já de antemão desconstrói concepções
consolidadas de Paulo como um cristão antissemita e misógino, sendo inclusive tido como fundador da
religião cristã.

16
reconstruídos em longue durée que nos dificultam acessar ou distanciam-nos da
personagem histórica e de suas ideias. O que não significa dizer que o acesso a
elementos do passado estejam irremediavelmente perdidos ou inalcançáveis.
A percepção destes filtros de leitura ao logo do desenvolvimento dos estudos
paulinos levou a analogias, no que diz respeito ao tratamento metodológico, com a
busca pelo Jesus Histórico. Em outras palavras, ao se perceber que tal como Jesus
a personagem Paulo também foi e é utilizada como uma projeção dos valores e
concepções dos indivíduos e/ou grupos buscou-se num primeiro momento adotar
um conjunto de critérios análogos ou muito próximo dos mesmos adotados para a
pesquisa do Jesus Histórico, que são eles:
(a) Dessemelhança: útil para distinguir as tendências das ‘tradições’ ou
memórias cristãs forjadas para atender as demandas fruto de tensões
entre comunidades ou lideranças rivais. Tendo a imagem do apóstolo
como um meio de impor uma verdade ou um ensinamento
oficial/verdadeiro (Erhman, 2013: 17). Estabelecendo assim que “a não
ser que seja requerido claramente pelas cartas genuínas de Paulo,
interpretações que assimilam o pensamento e a práxis de Paulo aos
propósitos reconhecidos das pseudopaulinas, devem-se considerar
duvidosas” (Elliott, 1999: 117).
(b) Inteligibilidade Histórica: busca interpretar Paulo a partir de um ambiente
judaico, onde interpretações ou leituras que implicam em suposição prévia
de que o pensamento paulino era antijudaico devem-se considerar
duvidosas. Em outras palavras, leituras que busquem afirmar ou ler (1) o
centro do pensamento paulino como contra a lei (Torá), (2) a lei (Torá)
para Paulo não tendo mais peso ou significado prático ou (3) a literatura
judaica não constituindo nenhuma fonte para elucidar as cartas, segundo
este critério devem ser desconsideradas ou colocadas em dúvida.
(c) Inteligibilidade Retórica: visa respeitar o contexto das cartas de Paulo,
entendendo que leituras que não trazem a concepção de que Paulo não
escreveu buscando persuadir os leitores e/ou ouvintes devem ser
questionadas.

Estes critérios apresentados por Meier (2003: 19-23) nos parecem em parte
interessantes, já que eles oferecem bases para tentar problematizar o Jesus
Histórico, os paleocristianismos, o Paulo Histórico, bem como toda a documentação
a ele atribuída. Tais critérios apresentam também determinadas ‘deficiências’ e/ou
delimitações. Em outras palavras, tais pressupostos disponibilizados por Meier são

17
importantes para o estudo dos cristianismos por apresentar ou tentar se apresentar
como um modelo científico e que entende que o Jesus de século I EC não é o Jesus
existente no interior de igrejas e congregações. No entanto, eles não pensam ou
não comportam uma análise mais completa e/ou aprofundada do contexto e do
“lugar de vida” (Sitz in Leben) dos textos. Em suma, estes critérios tomam por
vezes uma perspectiva muito mais teleológica do que propriamente uma teoria
e/ou uma metodologia aplicadas às ciências sociais, onde a disciplina História se
situa.
Neste sentido, se faz necessário recorrermos a outro modelo que abarque as
questões deixadas de lado ou não consideradas pelo arquétipo de Meier. Crossan
(1991, 1998) propõe três níveis teórico-metodológicos para pensar os cristianismos
originários3, são eles:
(a) Microcósmico. Ele está ligado à documentação literária, uma análise dos
textos sem o contexto, buscando perceber memórias ou ‘tradições’ formadas de e
sobre Paulo levando em conta a datação dos mesmos.
(b) Mesocósmico. Ele busca uma reconstrução histórica do ambiente e do
tempo em que Paulo viveu; teríamos assim um estudo do contexto sem os textos.
Cabe aqui conhecer a realidade político-social, religiosa e econômica da Bacia
Mediterrânica nos séculos I e II EC. Uma realidade distinta da Palestina deste
mesmo período, que estaria vivendo uma violenta tensão sociopolítica e econômica,
em particular no campesinato judaico. Abrindo espaço para resistências judaicas
entre elas de profetas e messias. O Mediterrâneo, por gozar neste mesmo período
de uma maior estabilidade e integração político-econômica, acabou por conhecer ou
florescer outras lógicas de organização religiosa.
(c) Macrocósmico. Ele envolve uma análise do movimento paulino na
perspectiva da Antropologia Social e Cultural. Busca-se reconstruir a dinâmica e a
estrutura social que Paulo viveu. Um mundo norteado por relações de honra e
vergonha e patronato em grandes centros urbanos cosmopolitas, contando com
uma intensa mobilidade de pessoas e mercadorias, beneficiados pela integração
estabelecida no Mediterrâneo tanto por via marítima quanto terrestre, e tendo
consequentemente uma enorme circularidade cultural e de ideias.
Estes níveis, especialmente o último, nos parecem interessantes, pois nos
permitem traçar um comparativismo construtivo, como diria Detienne (2004: 9),

3
Os níveis foram num primeiro momento proposto em suas obras O Jesus Histórico (1991) e O
nascimento do Cristianismo (1998). O intuito de Crossan era assim pensar as memórias de e sobre Jesus
nos primeiros anos de cristianismo que se seguiram após a morte de Jesus e o momento anterior aos
escritos de Paulo em meados dos anos 50 do primeiro século da era comum. Ao se voltar à personagem
Paulo, Crossan em seu livro Em busca de Paulo (2004) transporta estes níveis para os estudos paulinos.

18
para se pensar/problematizar os documentos pertencentes ao estudo do Paulo
Histórico. Ou seja, ampliam-se as bases teórico-metodológicas ao inserir
percepções advindas de diferentes campos, como da Antropologia, da Arqueologia e
da Sociologia. E é este caminho comparativista que buscaremos percorrer para
compreender as relações de poder, bem como os diferentes projetos de Reino de
Deus propostos/configurados pelas lideranças das comunidades judaico-cristãs
paulinas de Corinto e Éfeso nos séculos I e II EC.

1.2. As Epístolas aos Coríntios e aos Efésios por Diferentes Olhares.


No tópico anterior buscamos tecer brevemente a importância de uma
metodologia de forma que tenhamos meios/recursos para não só problematizar a
documentação a ser trabalhada, mais também para que possamos entendê-la não
como relato contínuo, mas como um inventário (VEYNE, 1983: 34). O que nos
permite assim pensar comparações, mas também não ler os escritos paulinos como
um material único. Deste modo, entender este material como um inventário nos
possibilita ‘enxergar’ sob múltiplos olhares, perpassando desde as marcas textuais
até os diferentes contextos em diferentes escalas (local, regional e/ou global).
O material em questão, mais precisamente as treze cartas existentes no
cânon cristão4, as quais são atribuídas a Paulo: 1 Coríntios, 2 Coríntios, Romanos,
Gálatas, Filipenses, 1 Tessalonicenses, Filemon, Efésios, 2 Tessalonicenses, 1
Timóteo, 2 Timóteo, Colossenses e Tito. Deste conjunto apenas as sete primeiras
cartas são tidas como redigidas por Paulo, as demais seriam cartas
5
pseudoepigráficas. Ou seja, seriam cartas escritas por autores desconhecidos, mas
foi a ‘tradição cristã’ que leu estas respectivas epístolas como se tivessem sido
escritas pelo próprio apóstolo. Ehrman (2013: 13) nos diz que as cartas
pseudoepigráficas apareceram num contexto de ampliação do movimento, terceira

4
A opção pelo termo cânon cristã ao invés de novo testamento se deve ao fato de entendermos que aquela
expressão seja menos dogmática que esta. Ainda que ambas tragam em si filtros de leitura que busquem
harmonizar os textos e consequentemente retirando-os de seus contextos.
5
Ehrman (2013: 21-49) faz uma extensa explanação sobre o gênero epigráfico no mundo antigo.
Pontuando os seguintes aspectos: (a) cautela com o uso dos termos falsificação ou enganação, uma vez
que a conotação atual – por vezes carregados de valores negativos – é muito distinta do ambiente de
século I e II EC, (b) o evento não se restringiu ao ambiente paleocristão, (c) os contextos e motivações
para a composição são os mais diversos, (d) se tinha o conhecimento que ‘falsificações’ ocorriam, sendo
uma postura natural a defesa do texto como autêntico ou mesmo mecanismos retóricos para se tentar
evitar alteração ou atribuição de um texto e (d) mais que um gênero literário, estes textos se configuravam
como tendo sido realmente redigido pela pessoa que foi atribuída a autoria. Um bom exemplo disso é a
defesa de Tertuliano do texto de Enoque.

19
geração de cristãos, onde lideranças carismáticas itinerantes e institucionais entram
em choque sobre os ensinamentos apostólicos6.
A importância do material paulino se dá pelo fato de que praticamente
metade dos livros que comportam o cânon cristão serem compostos por estes
textos. Além de este conter os primeiros escritos cristãos, parte deles datados da
década de 50 do século I EC. Sendo assim, uma importante documentação para
se pensar o desenvolvimento, os embates e as questões cotidianas das
comunidades cristãs (KOESTER, 2005: 70), principalmente porque estas cartas
operavam como veículo político e propagandístico da comunicação oral na
ausência de Paulo na comunidade.
Deste material nos interessa discutir apenas três cartas, são elas: 1
Coríntios, 2 Coríntios e Efésios. A opção por estas cartas se dá pelo fato de que as
mesmas nos permitem analisar as articulações de poder existentes e sua
articulação com as diferentes percepções do rito batismal e das agendas de Reino
de Deus que estas lideranças vão buscar legitimar. Interessa-nos neste momento
apresentar cada uma das cartas a serem analisadas e o que pode ser dito sobre
elas a luz das Ciências das Religiões e da Teologia, da Arqueologia e da História.

1.2.1. A Luz das Ciências das Religiões e da Teologia.


1.2.1.1. Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios.
Fitzmyer (2008: 37), partindo do relato de Lucas em Atos (16:8, 18:1),
afirma que a ida de Paulo a Corinto advém de uma experiência visionária do
apóstolo que teria ordenado que ele fosse aos povos da Macedônia (Felipo,
Tessalônica, Bereia, Atenas e Corinto) em sua segunda viagem missionária por
volta dos anos 50 EC. Mesmo período em que haveria saído o edito romano que
ordenava os judeus a se retirarem de Roma7. Dessa viagem missionária teria

6
Não foi apenas o gênero pseudoepigráfico que surgiu neste contexto, mas também em finais do século I
e início do século II EC começam a aparecer personagens como Clemente de Alexandria, Inácio de
Antioquia e Policarpo de Esmirna. Indivíduos que gozavam de aparente prestígio em suas comunidades e
que se apoiam nas figuras de Pedro e Paulo como referências para fortalecer a unidade das igrejas. Essa
relação Pedro e Paulo é definida por Koester (2005: 310) como fruto de alianças entre essas igrejas que
tinham formado sua ‘tradição’ ou memórias em torno de um dos apóstolos. Sobre essa conexão Pedro e
Paulo ver a obra Gnilka (2006) Pedro e Roma. A figura de Pedro nos dois primeiros séculos, que busca
tecer afigura de Pedro e as negociações para essa parceria com Paulo nos dois primeiros séculos.
7
O edito em questão é mencionado é ordenado por Cláudio em seu nono ano, segundo Suetônio.
Fitzmyer (2008:38-39) comenta que a datação de nono ano de Cláudio como não sendo confiável por não
haver nenhum outro dado de sustentação para tal afirmação. Afirma ainda que autores como Murphy
O’Connor ponderam que a decisão de Cláudio teria sido, na verdade, em seu primeiro ano de reinado (41
EC) onde o imperador ordenou a não realização de reuniões de grupos judaicos. Outro autor citado por
Fitzmyer é Lüdemann que com base no texto de Dio Cassius afirma que a interpretação de Suetônio é
errônea, onde a punição de expulsão não estaria direcionada a toda a população judaica de Roma, mas há
alguns grupos ou um pequeno grupo da comunidade judaica romana, e o(s) afastou temporariamente o

20
nascido a comunidade de Corinto, para qual Paulo teria enviado cinco cartas. A
primeira epístola aos coríntios, tal como nós a conhecemos, seria na realidade a
segunda carta (CROSSSAN e REED, 2007: 302-303)8.
Paulo teria escrito9 esta segunda carta por volta dos anos 54 a 56 EC10,
depois ter sido solto da prisão em Éfeso de onde também enviara cartas para
Filemon e para os filipenses. Uma carta com uma longa, incisiva, e por vezes
apaixonada abertura (1Cor 1:1-4). Paulo reage a diferentes problemas que lhe
foram apresentados por membros da “casa de Cloé” (1Cor 1:5-6), respondendo
assim a questões levantadas pelos coríntios (1Cor: 7-16). Tendo ouvido sobre os
problemas que ocorriam lá, “pela presença de Estéfanas, Fortunato e Acaico”
(1Cor 1:16-17). Acredita-se que essas pessoas apoiavam Paulo, uma vez que ele
próprio batizou “também a família de Estéfanas”, que eram “as primícias de
Acaia” (1Cor 1:16; 16:15).
Brown (2010: 683-695), ao analisar a referida epístola, propõe uma divisão
em cinco partes. Vamos analisá-las detalhadamente.
1ª. Parte. Ela seria composta de uma fórmula introdutória11 (1Cor 1:1-3),
onde se constata a palavra Cristo nove vezes e há ainda uma ênfase na fórmula
batismal que ratifica o rito mediado por Cristo. O autor pondera ainda um toque
irônico12 na fala de Paulo no que diz respeito sobre o jogo de palavras estabelecido
entre o conhecimento e a carisma.

direito daquela comunidade judaica o direto à reunião. O autor conclui após apresentar a posição destes
dois autores, Murphy O’Cornnor e Lüdemann, que com base na crítica literária deve-se concluir que
Suetônio e Dio Cassius estavam escrevendo sobre dois incidentes diferentes.
8
Koester (2005: 135) afirma que a primeira carta estaria perdida e é mencionada em 1Cor 5:9. O autor
diz ainda que há alguns pesquisadores que defendem que a primeira carta seja mencionada em 2Cor 6,
14-7,1, embora o próprio autor não considere tal ideia, pois estes versículos não teriam sido escritos por
Paulo; seriam uma peça judaico-cristã que de algum modo foi incorporada a carta.
9
Autores como Murphy-O’Connor (2004: 182) atribuem uma coautoria de Sóstenes, sustentação esta feita
com base na fórmula introdutória (1Cor 1:1-3) que juntas Sóstenes a Paulo. Entretanto, Chevitarese
(2011: 124) ao comparar as cartas remetidas por Cícero e Paulo pondera que as cartas poderiam ter sido
redigidas pelo próprio remetente ou o que é mais provável ditada a um secretário. Neste último caso,
somente a despedida costumava a ser feita pelo próprio remetente, o que poderia estar explicando esta
fórmula introdutória.
10
Fitzmyer (2008: 48) pondera que pode se arrastar a datação até 57 EC, tomando como base 1Cor 16: 8-
9.
11
Malina e Pilch (2006: 61) chamam atenção pela forma introdutória paulina se assemelhar aos modelos
redacionais helenísticos que apresentam o seguinte comportamento: remetente(s), o(s) destinatário(s) e
um cumprimento ou saudação. Cada um destes três elementos é chamado de inscrição ou prescrição.
12
Horsley (1998: 21-22) observou a retórica e escrita da carta paulina. Num primeiro momento ele
pondera que cartas como primeira coríntios eram redigidas para serem lidas em voz alta. Adotando uma
comunicação pessoal dirigida à comunidade, contendo argumentos destinados a convencer os
ouvintes/leitores, o que explicaria o uso de uma argumentação ou retórica com elementos próprios do
cotidiano da cultura helenística dominante. Há ainda uma argumentação, segundo o autor, por vezes
forense ou judicial (que foi usada nos tribunais para defender ou condenar passado ações) ou retórica
epidíctica (que foi projetado para discursos públicos ou orações fúnebres para elogiar ou culpar pessoas,

21
2ª Parte. Ela corresponderia à primeira parte do corpo da carta
(compreendendo 1Cor 1:10 a 4:21). São quase quatro capítulos dedicados a
apresentar e discutir o problema de divisões e tensões existentes nessas casas-
igrejas. As divisões giravam em torno de lideranças que rivalizavam com Paulo,
entre elas estava Apolo, Cefas e Cristo13.
A primeira parte do corpo da carta traz ainda percepções e/ou leituras sobre
sabedoria/conhecimento e, ao que parece ou ao menos como Paulo transparece na
carta, pela forma de apreensão destes conhecimentos ou sabedorias (1Cor 1:27-
31):
Mas o que é loucura no mundo, Deus o escolheu para confundir os
sábios; e o que é fraqueza no mundo é vil e desprezado, o que não
é, Deus escolheu para reduzir a nada o que é, a fim de que
nenhuma criatura possa vanglorificar-se diante de Deus. Ora, é por
ele que vós sois em Cristo Jesus, que se tornou para nós sabedoria
proveniente de Deus, justiça, santificação e redenção, a fim de que,
como diz a Escritura, aquele que se gloria, glorie-se no Senhor.

Theissen (1988: 41) sublinha, ao comentar sobre essa primeira parte da


carta e mais especificamente sobre o fragmento acima, para o fato de que o quadro
configurado é de uma tensão entre aqueles que estariam ou não autorizados a
lembrar e a falar de e sobre Jesus. Os defensores de um conhecimento distinto de
Paulo, para Theissen, seriam representantes do que ele chama de um gnosticismo

cidades ou ideias). Chevitarese (2011: 79-99) nos parece dialogar com as ponderações de Horsley ao
afirmar que a narrativa não deve ser lida de maneira estanque e nem interpretada de forma por demais
particular, uma vez que, a narrativa contém ou teria um núcleo formativo, chamado por ele de herança
cultural compartilhada coletivamente, que permite ao ouvinte ou leitor “conhecer os “gatilhos” que
faziam disparar sentidos últimos do que aquela narrativa tinha a dizer para seus leitores e ouvintes,
durante o próprio processo de leitura ou momento seguinte após ela ter sido lida ou contada” (2011: 80).
13
Munck (2004: 61-70) observa que essas facções no interior da comunidade paulina, teriam fomentado a
redação da carta. O autor busca entender de que forma um ambiente helenístico impactou a configuração
da comunidade. Outro elemento realçado por ele são os ditos de Jesus. Ainda de acordo com Munck, ao
acionar a historieta do corpo (1Cor 12: 25) e falar sobre os carismas, Paulo estaria tentando ordenar quem
está ou não autorizado a ser o portador das memórias de e sobre Jesus. Goulder (2004: 173-181), por sua
vez, segue as ideias de Baur, as quais são refutadas por Munck. Ao afirmar ser possível afunilar estes
grupos em duas figuras centrais: Paulo e Cefas, pois aqueles que seguiam Apolo e Cristo poderiam ser
alocados dentro do grupo de Paulo ou dentro de um tipo de judaísmo onde o batismo é o elemento central
para o ingresso e marca identitária destes grupos judaico-cristãos. A outra ala estaria centrada em Cefas
que trazia ainda leituras sobre o papel da circuncisão no interior das comunidades judaicas. Outro
elemento que reforçaria a tensão entre Paulo e Cefas seria quanto à apostolicidade. O autor lembra a
constante preocupação de Paulo ao longo da carta em se firmar enquanto apóstolo, especialmente quando
reforça o discurso de apostolicidade, via experiência visionária (1Cor 9: 1-2), a fim de se igualar àqueles,
tal como Cefas, que caminharam e conviveram com Jesus (1Cor 15: 9).
No que diz respeito a Cristo, existem discussões que o colocam como um membro da comunidade
coríntia, outras como uma referência direta ao Jesus Ressuscitado. Entretanto para fins de discussão do
presente trabalho o que nos interessa é entender que a personagem Cristo, independentemente de ser o
Jesus Ressuscitado ou um membro da comunidade judaico-cristã de Corinto chamado Cristo, estava se
colocando como uma liderança alternativa a Paulo. Ver: Fitzmyer (2008: 100-105) e Cavalcanti (2013:
96-109).

22
do século I EC. Eles eram vistos por Paulo como um grupo intermediário às
lideranças carismáticas itinerantes e às comunitárias. E fomentação de comparáveis
na estrutura social a partir de concepções ligadas às ações do espírito e à
intelectualidade, que eram para estes a base do conhecimento.
Paulo contrapõe a leitura deste grupo, denominada como ‘sabedoria do
mundo’, por intermédio do que podemos chamar de ‘teologia da cruz’ (ELLIOT,
2004: 169), em que a morte e a ressurreição no projeto de reino paulino eram
necessárias para que a salvação se processasse. Por este motivo a atmosfera das
casas-igrejas14 estava permeada pela constante consideração de que Cristo havia
morrido. Os gnósticos, como são caracterizados por Theissen, apresentavam um
projeto alternativo calcado na sabedoria e/ou no conhecimento. O que poderia ser
interpretado com uma resposta ou ressignificação feita por indivíduos de
comunidades cristãs helênicas.
Pagels (1992: 56-57) com base na exegese de Valentino e em comparações
com o Evangelho de Felipe advoga de forma semelhante a Theissen sobre um
possível gnosticismo de primeiro século concorrente a Paulo. A autora alega que
Paulo recorre à ironia para qualificar quem seria os verdadeiros e os falsos sábios.
Os falsos seriam aqueles que são poderosos e bem nascidos em termos humanos,
os verdadeiros seriam os fracos e desprezados, mas que do ponto de vista
pneumático são sábios e poderosos. A autora alerta ainda que o uso da expressão
“vangloriar-se diante de Deus” (1Cor: 1:29) estaria ligado ao tom irônico de Paulo
para fortalecer sua ‘teologia da cruz’ e enfraquecer o grupo gnóstico.
Horsley (2008: 21-38) se distancia das leituras apresentadas por Theissen e
Pagels que dialogam com a dualidade de uma sabedoria judaica versus o mito da
sabedoria gnóstica. Este autor, influenciado pelos estudos de Munck sobre os
termos ‘sabedoria’ e ‘palavra’, entende que essas sabedorias, sejam elas
defendidas ou criticadas por Paulo, ecoam ou devem ser lidas a partir de uma
tradição judaica helenística que teria como elementos centrais a Sabedoria de
Salomão e Fílon. A partir dessas obras, Horsley observa que a retórica e a filosofia
popular são marcas presentes e que quase todo o filósofo ou grupo filosófico atacou

14
O uso da expressão casas-igrejas advém da percepção a partir dos estilos arquitetônicos encontrados
na cidade de Dura Europos, em que havia a prática de se adaptar casas/moradias para diferentes cultos
religiosos (casas adaptadas para serem sinagogas, igrejas cristãs e templos mitraicos). Ver: Harvey e
Hunter (2008: 93). Contudo, Hannack (1908: 85-88), a partir de escritos de Tertuliano, Hipólito,
Origines e Cipriano, já nos chamava atenção para o uso do termo casas-igrejas para se referir a
cômodos ou casas que se serviam ou eram adaptadas para as atividades dos grupos cristãos, afirmando
ainda que as adaptações certamente coincidem com a expansão do cristianismo e que é concomitante ao
processo de hierarquização das lideranças religiosas. Segundo o mesmo, a mais antiga construção que
se tem notícias é da igreja de Edessa, que foi destruída pela inundação em 201 EC.

23
seus adversários chamando-os de charlatões, mágicos ou falsos filósofos. O uso da
retórica nessas tensões entre grupos rivais é central para a vitória da sabedoria
sobre o que Fílon chama de sofismo.
Esse trecho da carta permite ainda pensar sobre a estratificação social da
comunidade coríntia, mais especificamente quando Paulo afirma (1 Cor 1:26-29):
Vede, pois, quem sois, irmãos, vós que recebestes o chamado de
Deus; não há entre vós muitos sábios segundo a carne, nem muitos
poderosos, nem muitos de família prestigiosa. Mas o que é loucura
no mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios; e, o que é
fraqueza no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte;
e, o que no mundo é vil e desprezado, o que não é, Deus escolheu
para reduzir a nada o que é, a fim de que nenhuma criatura se
possa vangloriar diante de Deus.

Crossan e Reed (2007: 150) defendem que Paulo, ao afirmar que não havia
muitos “sábios segundo a carne” e nem muitos de “família prestigiosa”, seria
assim, uma evidência da existência de diferentes grupos sociais integrando a
assembleia coríntia. A importância dos membros no interior da mesma estava
diretamente ligada ao status do indivíduo, mas também por aos dons do Espírito.
No caso, aqueles de “família prestigiosa” teriam tamanha importância que
detinham plenas condições para se envolver em relacionamentos patronais
comuns vigentes na cultura compreendida pelos membros como normal/natural.
Os autores afirmam ainda que seria justamente por este fator que Paulo não
estaria interessado em depender financeiramente deles.
Meeks (1992: 89), por sua vez, lembra que esse quadro da comunidade
coríntia parecia ser a realidade das comunidades paulinas de um modo geral, e,
consoante a Theissen (1982: 45), afirma que, a partir de uma análise sociológica,
a grande maioria dos membros que compunham a comunidade eram indivíduos
de origem escrava e pobres livres. Apenas alguns teriam um status social mais
elevado; suas análises estão calcadas não só num estudo da região bem como
dos nomes citados15.
Stark (2006: 41-44), partindo de leituras dos historiadores Goodenough e
Judge, pondera que o fato de Paulo não dizer que não havia ninguém, mas “não
muitos” é um indicativo de que ainda que houvesse um predomínio de indivíduos
provindos de estamentos sociais mais baixos, é inegável a existência de membros

15
A partir desse mesmo excerto e de uma análise geral das cartas autênticas, historiadores marxistas –
como Heinz Kreissig (1967: 93-96) –, seguindo leituras de Marx e Engels sobre os paleocristianismos,
entendem o movimento paulino como dentro do contexto de luta de classes, em que as ekklesia, seriam
formadas unicamente por proletariados (artesãos, comerciantes e membros das profissões liberais bem
sucedidos). Anteriormente a Kreissig, Adolf Deissmann (1911) faz uma observação semelhante, partindo
de seu estudo sobre o tipo de grego empregado nas cartas paulinas. Afirmando que o gênero adotado
indicaria o modo encontrado por Paulo para se reportar as classes baixas e iletradas das cidades.

24
mais prestigiosos. Além disso, Stark reforça sua tese recorrendo à descoberta da
inscrição em Corinto, a qual faz menção a Erasto16. Este documento, segundo
Stark, seria um indicativo de colaboradores e membros com status social mais
elevado no círculo paulino.
A segunda parte do corpo da carta (1 Cor 5:1-11:34) é destinada às
admoestações em diferentes campos. Aparentemente, os capítulos 1 Cor 5-6
abrangem questões que Paulo teria escutado sobre a prática cristã em Corinto,
referentes ao matrimônio, às práticas sexuais e alimentares, provavelmente de
indivíduos ligados a Cloé. Os fragmentos centrais para nós, nessa parte,
correspondem ao uso de tribunais para a solução de impasses entre membros da
ekklesia (1Cor 6:1-8) e das práticas alimentares (1 Cor 8).
Malina e Pilch (2006: 82) advogam que essa questão gira em torno da
tensão forjada pela teologia paulina entre o ‘mundo’ e os ‘santos’, em primeira
instância. Uma vez que, os ‘santos’ ou os membros da comunidade devem manter
determinadas posturas que os distanciassem da ordem imperialista romana, a qual
Paulo busca romper. Sendo assim, a recomendação para que os cristãos coríntios
não recorram aos tribunais deve ser lida sobre uma ótica de resistência à norma
vigente17.
Em segunda instância, temos o comentário de Meeks (1992: 122-123), com
base numa análise em associações voluntárias, que nos diz que a kát oikon ekklesia
não era apenas o lugar onde as pessoas se reuniam para fazer suas orações. O
espaço também era utilizado para outras relações pré-existentes a assembleia,
como de ordem comercial. Além disso, a adaptação dos cristãos à casa acarretava
certas implicações tanto na estrutura interna dos grupos quanto para o seu
relacionamento com a sociedade mais ampla.
3ª. Parte. Ela compreende basicamente os passos 1 Cor 12:1-14:40. Estes
dois capítulos abordam sobre os carismas ou os dons advindos do Espírito. Vê-se aí
a denominada historieta do corpo (1Cor 12:12-27), onde a igreja é comparada ao
corpo humano. Destacam-se neste ponto específico três aspectos: (a) o corpo seria

16
Meggitt (2004: 219-225) produziu um interessante artigo sobre o status social de Erasto, tomando
como base a menção deste em Rm 16: 23, que em muito contribui para pensar o padrão socioeconômico
dos cristãos coríntios.
17
Ainda dentro do primeiro nível a partir de leituras de Morton Smith e John Crossan eu chamo atenção
em meu breve artigo “As refeições sagradas: o programa paulino de Reino de Deus em oposição ao
projeto imperial”, publicado pela Revista Nearco (2014, Ano VII, Número I), sobre a necessidade de
pensar este nível em duas instâncias. Uma vez que os ‘santos’ não seriam apenas aqueles que estão fora
da comunidade. O grupo dos ‘santos’ é configurado ainda por aqueles que aceitam e incorporam a
hierarquização paulina encabeçada pelos apóstolos, depois profetas, mestres e assim por diante. A não
adesão ao modelo, que é relembrado por intermédio da passagem do mito para a história (ou para o real),
implica em dizer que o sujeito deixou de pertencer à categoria ‘santos’ e se integrou ao do ‘mundo’.

25
composto por uma multiplicidade de membros, onde cada um deles é diferente do
outro, desempenhando funções bem definidas; (b) a necessidade que cada uma
das partes do corpo tem de se ajudar mutuamente para que o corpo na sua
inteireza possa sobreviver e; (c) tal como o corpo humano é composto de
diferentes partes e cada uma delas concorre para a manutenção do corpo, assim
como, também a igreja deve superar as partes para que o todo sobressaia.
O recurso evidencia que desde as origens mais remotas do cristianismo, os
ditos de e sobre Jesus e/ou sua mensagem não foram tão uniformes quanto às
muitas igrejas cristãs contemporâneas desejariam que fossem. Pelo contrário, a
igreja de Corinto estava permeada em debates em torno da natureza, da
mensagem e do destino de Jesus. Ao questionarmos se a metáfora é uma invenção
de Paulo ou se ela seria uma fórmula já bem conhecida para se falar sobre conflitos
internos por um corpo social, percebemos que: (1) por intermédio da leitura de dois
analistas romanos, Dionísio de Halicarnaso e Tito Lívio, essa história sinaliza a
existência de uma herança cultural compartilhada entre às inúmeras culturas
mediterrânicas tocadas pela civilização grega (CHEVITARESE, 2011: 83-87); (2)
essa historieta nos é útil para pensar até que ponto a autoridade de Paulo era
válida, uma vez que havia lutas (e@riz) entre os partidários de Paulo, Apolo, Cefas e
Cristo (1Cor 1:11-12) e as disputas em torno da ressurreição de Jesus (1Cor
15:12) e; (3) até que ponto vai o radicalismo paulino? Em outras palavras, em que
termos Paulo e sua ‘teologia batismal’ de fato rompem as estruturas imperialistas
romanas? Estaria Paulo apresentando uma postura dúbia? A indagação pode ser
ainda mais aprofundada quando levamos em conta a seguinte colocação paulina
(1Cor 15:28-30):
E aqueles que Deus estabeleceu na Igreja são, em primeiro lugar,
apóstolos; em segundo lugar, profetas; em terceiro lugar,
doutores... Vêm, a seguir, os dons dos milagres, das curas, da
assistência, do governo e o de falar diversas línguas. Porventura,
são todos apóstolos? Todos profetas? Todos doutores? Todos
realizam milagres? 30. Todos têm o dom de curas? Todos falam
línguas? Todos as interpretam?

Ao analisar este passo18, observei que Paulo se relaciona com os seus e com
os rivais, como se ele fosse um patrono. Ele seria dotado de elementos que lhe
garantiriam notoriedade, apostolicidade e capacidade de deter dons provenientes
do Espírito. E ler Paulo como um patrono significa inseri-lo num ambiente
mediterrânico que girava em torno de uma intensa conexão centro e periferia,

18
Brevemente abordado também no artigo “Há, portanto, muitos membros, mas um só corpo”: uma
breve análise sobre o programa paulino de Reino de Deus.”. In: Revista Jesus Histórico e Sua Recepção.
Rio de Janeiro, Ano 2013, Volume VI, edição 10.

26
entre patronos e clientes. Atingindo todos os estratos sociais, fossem eles verticais
e/ou horizontais. De forma que, a tensão estabelecida entre os diferentes grupos
estava em quem deteria o controle dos bens que eram, por definição, escassos e
mais do que isso o patrono máximo garantiria a sua notoriedade ao distribuir
parcela desses bens aos seus potentados.
Ainda em 1Cor 14, mais especificamente no evento que trata da glossolalia
(falar em línguas)19 e da profecia, Paulo afirma que o glossolálico só deve se
manifestar se houver um tradutor, caso contrário este deve permanecer calado,
defendendo, neste sentido, a profecia, por ser entendida por ele como uma forma
de se conquistar novos membros. Fitzmyer (2008: 508-509) observa que esta
opção pela profecia, ao invés da glossolalia, seria um indicativo de que Paulo vê por
intermédio da glossolalia a sua autoridade (e consequentemente a de seus clientes)
ameaçada, não apenas como apóstolo, mas como portador “legítimo” da mensagem
de Jesus.
Sendo incapaz de descartá-la, Paulo, de imediato, diminui a importância da
glossolalia. A seguir, ele se insere também como um místico capaz de vivenciar
essa experiência religiosa, o que lhe permite ampliar seu raio de circunferência ou
de amplitude junto aos membros da Igreja de Corinto. Paulo se afirma como uma
liderança carismática itinerante que reforça o papel das lideranças comunitárias a
partir do grau de hierarquização estabelecido pelo mesmo (1Cor 12:28-30).
Theissen (1988: 36) afirma que na Bacia Mediterrânica de século I EC, muito
por conta de sua realidade político-social e econômica, lideranças, tal como Paulo,
não eram incomuns. Muito embora, foram as lideranças comunitárias – sejam elas
tradicionais ou funcionais – que ganharam maior destaque. Contudo, a função de

19
Mendonça em sua dissertação demonstra o porquê de Paulo ver com certo receio um fenômeno tão
marcante na vida dos cristãos de Corinto. Ao que tudo indica esse dom do Espírito foi utilizado como
mecanismo para a inversão da estrutura "natural" de poder, anulando todas as lógicas organizacionais que
garantiam a notoriedade do autointitulado apóstolo Paulo. Ver: Mendonça, A. Glossolalia: Dialogando
com o Divino, Discursando com o Poder. Dissertação. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2009.
Chevitarese (2011: 66-76), a partir do trabalho da antropóloga Goodman, faz uma análise entre o
fenômeno descrito em At 2 e 1Cor 14, sinalizando que a glossolalia: (1) não pertence ao campo do
efêmero, já que ela se relaciona com estados alterados de consciência; e (2) não deve ser vista como um
fenômeno espontâneo, uma vez que ele é apreendido. A confrontação das narrativas permite vislumbrar
que ainda que a passagem lucana tenha elementos que sugiram o contexto da glossolalia, o mais correto
seria lê-la como outro tipo de experiência estática na medida em que os discípulos de Jesus: (a) que se
encontravam inicialmente reunidos em oração, por conta da presença do Espírito Santo, começaram a
proclamar em alto e bom som as boas novas de Jesus. A multidão que estava por perto pode ouvi-los; e
(b) não precisaram de intérpretes para serem entendidos por judeus, “parto, medos e elamitas, da
Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Figia e da Panfilia, do Egito e das regiões
da Líbia próximas de Cirene, romanos (residentes em Jerusalém) [...] e prosélitos cretenses e árabes [...]”
(At 2:9-11). O que levou o autor a afirmar que o caso de Atos trata-se de uma xenoglossia.

27
lideranças tal como Paulo, neste contexto, era orientar os líderes comunitários,
além de serem marcados pelo caráter autárquico.
4ª. Parte. Ela diz respeito ao capítulo 15, que traz como tema central a
ressurreição. Este é um tema nevrálgico para Paulo, uma vez que alguns dos
cristãos de Corintos estavam dizendo que os mortos não ressuscitariam. Logo, o
seu argumento se desenrola com uma estratégia retórica definitiva. Este tema já se
encontra nos primeiros versos do referido capítulo, uma vez que Paulo apresenta a
fórmula querigmática (anúncio da boa nova) da ressurreição de Jesus, onde se
assenta toda a sua teologia20. E ao citá-la, Paulo buscou reafirmar a sua
importância. Ou melhor, ele tentou estabelecer uma base comum com os membros
como um ponto de referência para o resto do seu argumento (HORSLEY, 1998:
197-198).
O desdobramento desta atividade mnemônica está na ênfase do encontro
com o Jesus ressuscitado, primeiramente com os discípulos, muitos deles ainda
vivos. Assim Paulo (1Cor 15:5-8) a apresenta:
Apareceu a Cefas, e depois aos doze. Em seguida, apareceu a mais
de quinhentos irmãos de uma vez, a maioria dos quais ainda vive,
enquanto alguns já adormeceram. Posteriormente, apareceu a
Tiago, e, depois, a todos os apóstolos. Em último lugar, apareceu
também a mim como a um abortivo.

Chevitarese (2011: 33-34) chama atenção aqui para o fato de Paulo não só
relembrar a fórmula querigmática, como também reforçar o evento do encontro
com o Jesus ressuscitado de forma a ser inserido dentre aqueles que poderiam ser
tidos como “verdadeiros” portadores da mensagem de Jesus. E isto responde
diretamente no significado de seu batismo, uma vez que o anúncio paulino
conviveu com outras visões querigmáticas. Era central para Paulo deixar claro não
só a importância da experiência mística com Jesus ressuscitado como forma de
adesão, mas também como forma identitária e como conexão a ele e aqueles que
estavam em sua rede de sociabilidade (MACDONALD, 1988: 75-76).
Paulo (1Cor 15:12-34) argumenta a realidade da ressurreição dos mortos,
explicando (1Cor 15:35-57) "com que tipo de corpo" os mortos são ressuscitados.
Horsley (1998: 200) diz que, apesar da retórica paulina dialogar com um ambiente
helênico, a temática da ressurreição e a explicação apresentada pelo apóstolo

20
Chevitarese (2011: 31) afirma que o querigma da ressurreição de Jesus está associado à cidade de
Antioquia, a capital da Síria, ainda nos anos trinta do século I. E levando em conta a datação de 1
Coríntios, é possível fornecer um recorte temporal de praticamente vinte anos entre o início da pregação
oral do querigma por missionários judeus-cristãos e a sua sistematização por escrito por Paulo. Sobre este
ponto, o referido autor apresenta inclusive um interessante quadro sobre a atividade mnemônica
empregada por Paulo.

28
estariam enraizadas no pensamento apocalíptico judaico, não tendo paralelo na
retórica helenística.
Entretanto, há de se pensar se realmente não há paralelos com o mundo
helênico, ou ainda, questionar-nos-emos se o judaísmo de Paulo já seria fruto de
interações culturais no contexto de um judaísmo de diáspora. O trabalho do
antropólogo Victor Turner (2013: 19-54), neste sentido, nos permite abrir ainda
mais a questão. O autor ao estudar o ritual dos ndembu21, propões o conceito de
liminaridade para referir-se à qualidade anti-estrutural da fase iniciatória entre a
separação e a reintegração. E o conceito de communitas para designar o modo
fechado e não diferenciado do relacionamento social que dá início à experiência de
reciprocidade. Turner afirmou ainda que os rituais de iniciação são praticados por
grupos minoritários e não pela sociedade dominante.
Assim, o uso regular de termos como ‘irmão’ e ‘irmã’, a ênfase no amor
mútuo, o papel proeminente atribuído ao Espírito e aos seus dons e às lembranças
da experiência de iniciação (a eucaristia, hinos e cantos, são bons exemplos)
poderiam ser um indicativo de que dentro de uma Antropologia Comparada é
possível se pensar em paralelos entre o batismo paulino e outros rituais de
iniciação, bem como nos fomentar a refletir sobre os limites da leitura de Horsley,
ao afirmar que Paulo está falando apenas de um ambiente judaico. E ainda a
fazermos a seguinte pergunta: a que judaísmo Horsley está se reportando?
Smith (1973: 70) nos diz que o batismo era a base para formação de cultos
de mistério; onde apenas alguns iniciados teriam acesso ao conhecimento detido
pelo líder do culto. O autor indica ainda que Paulo não só pode ser inserido nestes
cultos de mistério, já que o batismo paulino implicava em rituais de pureza e
impureza, mas também que é possível perceber no batismo de Paulo ensinamentos
provindos de Jesus, visto que em ambos os batismos a iniciação se dava pela
possessão do Espírito. Sendo central, para se entender tanto o batismo de Paulo
como os paralelos com o batismo de Jesus – a níveis ritualísticos e simbólicos no
processo de adesão –, a compreensão da ressurreição como um elemento
norteador deste processo.
5ª. Parte. Por fim temos a conclusão do corpo textual (1Cor 16:1-18) e a
fórmula conclusiva (1Cor 16:19-24). A conclusão oferece instruções para que os
coríntios fizessem uma coleta a Jerusalém. Além de esquematizar o plano de
viagens de Paulo. Paulo mais uma vez apresenta uma postura que pode ser lida

21
Povo do noroeste de Zâmbia, eles são de base matrilinear e combinam a agricultura de enxada com
caça, à qual atribuem alto valor ritual. Seu ritual de iniciação implica em longos períodos de reclusão na
floresta para treinamento dos noviços em costumes exotéricos.

29
como de patrono ao solicitar hospitalitas para Timóteo aos seus potentados
coríntios22.
1.2.1.2. Segunda Epístola de Paulo aos Coríntios.
A epístola 2 Coríntios foi produzida também em meados da década de 50 da
EC na região da Macedônia23. No entanto, a sua redação é mais polêmica do que
a carta de 1 Coríntios, no que diz respeito a ser uma compilação. Os que
consideram a mesma em unidade, entre eles estão Bates e Stepheson, que
consideram esta como a quarta carta endereçada a Corinto. Esta teoria é
reforçada pelo fato de haver apenas uma fórmula introdutória e outra conclusiva.
Contudo, a maioria dos estudiosos consideram 2 Coríntios como um texto
composto, diferindo apenas no que diz respeito ao número e sequência das letras.
Sendo, segundo os mesmos, a primeira carta na ordem cronológica o passo (2Cor
10:13) que relata os ataques sofridos por Paulo e a existência de outros
missionários na comunidade. Sendo escrita num contexto em que Paulo envia Tito
à sua frente para ver como as coisas estavam em Corinto, obtendo resultados
positivos (CROSSSAN & REED, 2007: 32-33).
As argumentações defendidas pelos estudiosos para advogar que a segunda
epístola aos coríntios é uma compilação giram em torno de três aspectos. O
primeiro deles é sobre a visível discrepância entre os caps. 1Cor 10-13 de outras
partes da epístola (WELBORN, 2011: XIX-XX; BROWN, 2012: 723-724; KOESTER,
2005: 141-142; FURNISH, 1984: 29-41).
Por conseguinte, os autores sinalizam que os capítulos 1Cor 8 e 9 são
recursos distintos para parceria na coleta. Depois de uma longa discussão sobre a
coleção em 1 Cor 8, Paulo introduz mais uma vez o assunto no capítulo seguinte
(1Cor 9), trata-o por completo o capítulo anterior. Embora ambos os capítulos
abordem a coleta, eles não se relacionam entre si, diferindo no tom, no objetivo,
na estratégia e no estilo. O primeiro (1Cor 8) restringe-se às igrejas da
Macedônia como modelos de generosidade para os coríntios, enquanto que o
segundo (1Cor 9) se orgulha da disponibilidade dos cristãos da Acaia e faz um
apelo para o povo da Macedônia. Assim, estes capítulos devem ser originalmente
peças independentes de correspondência.
O terceiro e último aspecto corresponde a passagem 2Cor 2:14-7:4 que
interrompe o relato da pesquisa de Paulo por Tito em 2Cor 2:12-13, sendo
continuada perfeitamente em 2Cor 7:5-6. Não há nenhum paralelo como este nas

22
Discuto também essa questão em meu artigo já mencionado na nota 17.
23
A mais antiga atestação de 2 Coríntios encontra-se na inclusão da carta no cânon de Marcião. É
conhecido também o seu uso por Teófilo e pelo autor da epístola de Diogneto (FURNISH, 1984: 29).

30
cartas paulinas, e sendo tido ainda hoje como um dos melhores exemplos de
inserção de fragmentos extensos secundariamente em outro texto na
documentação canônica. Os autores que entendem desta forma a compilação de 2
Coríntios alertam ainda sobre a passagem 2Cor 6:14-7:1 seria uma interpolação,
pois estaria muito distante das ideias paulinas no que diz respeito, ao estilo e às
ideias. O pensamento teria mais em comum com a literatura de Qumran do que
com as cartas de Paulo (FURNISH, 1984: 39-41)24.
Ainda que haja uma forte discussão sobre a divisão da carta a mais aceita
compreende cinco partes (FURNISH, 1984: 35-41; BROWN, 2012: 723-728;
WELBORN, 2011: XIX-XX). Tal como fizemos com a epístola anterior, vamos
analisar detalhadamente cada uma delas.
1ª. Parte. Contém a fórmula introdutória (2Cor 1:1-2) e a ação de graças
(2Cor 1:3-11). Não se sabe por qual motivo Paulo mudou os remetentes, tal
como aparece em 1Cor 1:2 (à Igreja de Deus em Corinto e aos santos em toda a
parte), para incluir “os que se encontram na Acaia”. A hipótese mais aceita é que
essa seria uma estratégia de Paulo para a preparação para a coleta a ser feita em
toda a Acaia. É possível ainda ver o comentário de Paulo (2Cor 1:3-11) sobre as
atribulações que ele sofreu em Éfeso.
2ª. Parte. Corresponde a primeira parte do corpo da carta (2Cor 1:12-7:16)
que discute transações com os coríntios. Ela pode ser subdivida em duas partes.
A primeira diz respeito a 2 Cor 1:12-2:13 e aborda a alteração de planos depois
da segunda visita, que Paulo a descreveu como dolorosa, em que o apóstolo
aparentemente não obteve o sucesso esperado – ao que tudo indica fora
hostilizado pelos cristãos coríntios. Welborn em seu livro “An end to enmity”
(2011) busca entender quem é o opositor de Paulo mencionado logo no início da
carta. Por intermédio de prosopografia, o autor sugere ser alguém de status
elevado e que estaria colocando a autoridade paulina em xeque.
A segunda subdivisão corresponde a 2 Cor 2:14-7:16, fragmento em que
Paulo relaciona seu ministério em larga escala à crise coríntia. Tecendo mais uma
vez uma série de elementos que o conectam ao Jesus Ressuscitado e fortalecem a
sua retórica como portador “legítimo” do falar de e sobre Jesus. Além de construir
uma série de dualidades (justiça e injustiça, despido e vestido, exterior e interior,

24
Malina e Pilch (2006: 134) apresentam uma configuração um pouco diferente. Afirmam que 2
Coríntios seria uma compilação de três cartas, sendo elas correspondentemente: Carta 1: 2 Cor 2:14-
6:13;7:2-4; Carta 2: 2 Cor 10:1-13:4; Carta 3: 2 Cor 1:-2:13;7:5-16. Argumentam ainda que haveriam
dois insertos e uma interpolação, seriam eles respectivamente: 2 Cor 8:1-24; 2 Cor 9:1-5; 2 Cor 6:14-
7:1. A justificativa dessa divisão segundo os autores se justifica pelo fato de entenderem que o que
fomentou a redação de 2 Coríntios seriam os conflitos, em primeiro lugar, entre Paulo e uma pessoa ou
um determinado grupo e, em segundo plano, entre Paulo e três partidos rivais ao apóstolo.

31
entre outros) que dialogam com a tensão estabelecida a partir de seu projeto
anti-imperialista de Reino de Deus e que se inicia a partir do ato batismal
(FURNISH, 1984: 185-186).
3ª. Parte. A segunda parte do corpo da carta (2Cor 8:1-9:15) trata da coleta
de Paulo para a Igreja em Jerusalém. O relato aparece duas vezes, a primeira vez
no capítulo oito, e o outro no capítulo seguinte, o que levou a comentaristas como
Furnish e Welborn argumentarem que esse seria mais um indicativo de uma
compilação de cartas. Brown sugere que no capítulo 8, Paulo estaria se
reportando a coleta diretamente a Corinto com menção a Macedônia. No capítulo
9, Paulo aborda a questão da coleta apenas para a Acaia. Assim sendo, essa parte
nos é interessante para refletir de que forma as comunidades judaico-cristãs
estavam em diálogo durante a vida missionária de Paulo, abrindo espaço para a
reflexão de que projeto de Reino de Deus ou quais projetos estão sendo
desenhados nesse contexto.
4ª. Parte. A terceira parte do corpo (2Cor 10:1-13:10) talvez nos seja a
central desta carta, uma vez que é Paulo, mais uma vez, viu sua autoridade
apostólica ameaçada e como resposta a tal, acabou por fazer uma descrição de
sua experiência visionária (2Cor 12:2-10). Furnish (1984: 542-543) atenta-nos
para o jogo retórico em que se constrói a narrativa da jornada mística do
apóstolo. O que segundo o mesmo estaria sinalizando que a ‘ostentação’ se
tornou necessária para que a posição de Paulo, frente à comunidade coríntia,
fosse mantida.
Furnish sublinhou ainda quanto ao uso da terceira pessoa na experiência
extática paulina. Gnilka (2006: 52) afirmou que a latência e relevância de
experiências místicas, como a de Paulo, estariam em diálogo com o ambiente
próprio das comunidades paleocristãs. Em outras palavras, Paulo poderia ser lido
como um profeta periférico que dialogou com um judaísmo-cristão onde a
experiência extática em seus diferentes níveis era central para este movimento
(SEGAL, 2010: 43-45).
Outro aspecto que aparece central nessa parte, diz respeito à existência de
outras lideranças carismáticas itinerantes, para além de Paulo (2Cor 11:23-33):
São ministros de Cristo? Como insensato, digo: muito mais eu.
Muito mais, pelas fadigas; muito mais, pelas prisões; infinitamente
mais, pelos açoites. Muitas vezes, vi-me em perigo de morte. Dos
judeus recebi cinco vezes os quarenta golpes menos um. Três vezes
fui flagelado. Uma vez, apedrejado. Três vezes naufraguei. Passei
um dia e uma noite em alto-mar. Fiz numerosas viagens. Sofri
perigos nos rios, perigos por parte dos ladrões, perigos por parte
dos meus irmãos de estirpe, perigos por parte dos gentios, perigos
na cidade, perigos no deserto, perigos no mar, perigos por parte

32
dos falsos irmãos! Mais ainda: fadigas e duros trabalhos, numerosas
vigílias, fome e sede, múltiplos jejuns, frio e nudez! E isto sem
contar o mais: a minha preocupação cotidiana, a solicitude que
tenho por todas as Igrejas! Quem fraqueja, sem que eu também me
sinta fraco? Quem cai, sem que eu também fique febril? Se é
preciso gloriar-se, de minha fraqueza é que me gloriarei. O Deus e
Pai do Senhor Jesus, que é bendito pelos séculos, sabe que não
minto. Em Damasco, o etnarca do rei Aretas guardava a cidade dos
damascenos no intuito de me prender. Mas por uma janela fizeram-
me descer em um cesto ao longo da muralha, e escapei às suas
mãos.

Crossan e Reed (2007: 110) afirmaram que esta passagem sinaliza, por
intermédio do costumeiro tom irônico de Paulo – usando as alegorias de ‘fraco’ e
‘forte’ –, o intenso debate existente nas comunidades judaico-cristãs desse
período sobre a marca ou as marcas identitárias do ethos judeu. E a circulação de
lideranças carismáticas itinerantes rivais ao projeto de Reino de Deus de Paulo.
5ª. Parte. A fórmula conclusiva (2 Cor 13:11-13) serve de exortação final de
Paulo aos coríntios.

1.2.1.3. Epístola de Paulo aos Efésios.


A epístola aos Efésios, diferentemente das anteriores, apresenta problemas
iniciais diversos, a começar pela sua autoria. Apesar de tida como uma das
principais cartas para a formação do pensamento cristão, Erasmo já no século XVI
sugeriu que o autor desta carta não fosse Paulo por conta do estilo. Em 1792, E.
Evanson, baseando-se nas contradições entre o endereço e o conteúdo do
documento corroborou a fala de Erasmo, ponderando que a carta teria sido
forjada. Mas a primeira afirmação de que a carta não se tratava de um texto
escrito por Paulo veio de De Wette, em 1826, tomando como base de
fundamentação o endereço, o estilo, as relações existentes com Colossenses e as
afirmações individuais. A repercussão ainda hoje é tensa, mas no contexto atual
80% da exegese crítica sustenta que a carta não é autêntica. Entre as
argumentações para entender essa epístola como não paulina estaria calcado nas
seguintes ponderações (BARTH, 1974: 4-6; EHRMAN, 2013: 114-115; ELLIOTT,
1998: 40-41):
(1) Efésios se distancia das cartas atestadas como de Paulo por afirmar que
a lei foi abolida (Ef 2:15), sugestão que Paulo rejeitou claramente em Rm 3:31;
(2) há uma mudança significativa também quanto ao mistério, em 1Cor 15
há uma clara alusão a algo por vir, em Efésios o mistério já fora revelado e
consumado para judeus e gentios;

33
(3) A interpretação de ressurreição derivada do batismo é alterada.
Enquanto nas paulinas constata-se uma espera para uma ‘elevação’ com o Jesus
ressuscitado (todo o capítulo 15 da primeira epístola aos coríntios ecoa esta
perspectiva), em Ef 2:5-6 a ressurreição já aparece consumada: “[...] quando
estávamos mortos em nossos delitos, nos vivificou juntamente com Cristo – pela
graça fostes salvos! – e com ele nos ressuscitou e nos fez assentar nos céus, em
Cristo Jesus [...]”;
(4) apesar de Ef 3:17 expor um resumo da teologia paulina, ela já vem
acompanhada de uma releitura de Paulo. Em outras palavras, seria uma recepção
de sua mensagem pela comunidade que conhece ou reconhece a figura de Paulo;
(5) Paulo normalmente escreve frases curtas e incisivas, enquanto que as
sentenças de Efésios são longas e complexas. Estudiosos apontaram que nas cem
sentenças de Efésios cerca de nove delas têm mais de cinquenta palavras de
extensão, o que não se verifica nas cartas autênticas. Filipenses, por exemplo,
tem 102 sentenças, com apenas uma delas com mais de cinquenta palavras;
Gálatas tem 181 sentenças, mais uma vez, com apenas uma acima de cinquenta
palavras;
(6) O livro apresenta um número incomum de palavras que não ocorre nos
outros escritos de Paulo: 166 no total, um valor bem acima quando comparado
com as demais (50% a mais que Filipenses, por exemplo, que tem
aproximadamente o mesmo tamanho).

Assim sendo, poderíamos resumir as bases das argumentações em duas


categorias: mensagem e escrita. Contudo, ainda há um terceiro elemento que torna
Efésios, em virtude do gênero, uma epístola distinta. A carta pode ser entendida
como uma homilia batismal ou sendo um rearranjo de fragmentos de uma liturgia
batismal25.
Brown (2012: 814) nos fala que há apenas duas menções diretas a rituais
batismais em Efésios (Ef 4:5 e Ef 5:26), além da presença de dois hinos ou
cânticos que remontam um ambiente batismal (Ef 1:3-14; Ef 1:20-23). No

25
Autores com base nisso, argumentaram que Efésios se tratava de uma carta circular a cristãos
recentemente batizados na região da Ásia Menor. O que levou ao debate se haveria ou não um
catolicismo primitivo no cânon grego. Entre os críticos de um catolicismo primitivo estava Harnack que
afirmou o desenvolvimento da teologia e da organização eclesial começou apenas no século II EC, sob
a influência do espírito grego, numa distorção do caráter evangélico original do cristianismo.
Käsemann, por sua vez destacou-se em defender que existe um “catolicismo primitivo” no NT, mas que
tais desdobramentos não são necessariamente normativos para o cristianismo. Para um longo debate
sobre essas duas correntes ver Brown (2012: 818-819) e Kümmel (1982:466).

34
entanto, Lars Hartman (1997: 102-103) atenua que toda a carta se configura com
hinos e pensamentos que dialogam com um ambiente batismal. Barth (2008: 6-7)
consoante a estas ideias afirmou que a carta foi forjada num ambiente com um
número considerável de ‘cristão-gentios’ e apresenta pelo menos quatorze
passagens que podem ser compreendidas como hinos ou numa fórmula hínica.
O fato é que o gênero textual de Efésios se torna de extrema relevância para
o desenvolvimento deste trabalho pela sua peculiaridade em gênero por revelar o
impacto dos banhos rituais no cotidiano das primeiras comunidades cristãs. Seria
o batismo, nesse sentido, um dos responsáveis por sustentar ou configurar a
linguagem simbólica da passagem do mito para a história.
Entretanto, a referida carta apresenta ainda mais particularidades. Entre
elas, está quanto as fortes dúvidas existentes quem seriam os endereçados. A
menção aos efésios aparece apenas em Ef 1:1: “Paulo, apóstolo de Cristo Jesus,
pela vontade de Deus, aos santos que estão em Éfeso e fiéis em Cristo Jesus”.
Contudo, em grego aparece da seguinte forma:

Pau'loz a*postoloz Cpistou` diaV qelhvmatoz qeou' toi'z a&givoiz toi'z

ou%sin ▫(e*n *Efevsw/) kaiV pistoi'z e*n Cpistw/' *Iesou'


PAULOS APOSTOLOS KHRISTOU IÊSOU DIA THELÊMATOS THEOU TOIS
AGIOIS TOIS OUSIN [EN EPHESÔ] KAI PISTOIS EN KHRISTÔ IÊSOU

Tanto na Quarta edição revisada do Novo Testamento em grego quanto a


27ª edição do Novo Testamento da Nestle-Aland apresentam os seguintes
aparatos críticos para o fragmento acima:

(a) Í2 A B2 D F G Yc (Y** ilegível) 075 0150 33 81 104 256 263 365 424* 436

459 1175 1241 1319 1573 1852 1881 1912 1862 2127 2200 2464 Biz [K L P] Lec
itar, b, d, f, g, o, r
vg sirp,h copsa,bo arm eti geo esl Ps-Inácio Crisóstomo Teodorolat;
Vitorino-Romano Ambrosiastro Jerônimo Pelágio // omitem Ì Í** B* 6 424 1739
46

Marciãoseg. Tertuliano Orígenesvid

(b) Ì
46
Í** B* 6.1739; (McionT,E cf Inscr.) ¦ txt Í2 A B2 D F G Y 0278. 33.
1881 Ï latt sy co

A partir da análise do texto em grego e de ambos os aparatos críticos o que


se constata é que “em Éfeso” não estava presente na versão mais antiga em

35
grego, assim como não consta nos códices Vaticano e Sinaítico26 e em maiúsculo
1739, que parece ter sido copiado de um texto anterior. A locução adverbial de
lugar está também ausente nos textos de Marcião, Tertuliano, Orígenes e
Gregório, o Grande. Todavia, as versões em latim, siríacas (que retornam para o
século II EC.) e na vasta maioria dos manuscritos em grego existentes a locução
se encontra presente.
Com base nisso quatro argumentos foram considerados em favor da
autenticidade destas palavras: (a) a menção de um lugar na abertura das cartas
genuinamente paulinas27; (b) a presença das palavras “que estão”, o que em
outras cartas indica o nome do local dos destinatários; (c) o prescrito “para os
efésios”, que é encontrado em todos os manuscritos desde finais do século II EC.,
ainda que certamente não tenha sido escrito pelo autor, e que contém o resultado
de uma cuidadosa pesquisa; e (d) a menção a Tíquico (Ef 6:21-22), que de
acordo com 2 Tm 4:12 esteve em Éfeso.
Contudo, Barth (208: 6-7) ponderou que apesar de todos estes argumentos,
nenhum deles foi suficientemente consistente para demonstrar a autenticidade da
locução adverbial. É mais fácil admitir que a mesma foi inserida a posteriori ou foi
omitida por copistas descuidados. A última parte da colocação de Barth gera
dúvidas uma vez que no cânon de Marcião28, por exemplo, encontramos no lugar
de “em Éfeso” as palavras “em Laodiceia”. Clabeaux (1989: 9-10) argumentando
sobre elementos de reconstituição do corpus paulino atestado por Marcião afirmou
que para este caso admitem-se duas questões. A primeira é que ao se levar em
consideração o cânon de Marcião e os demais textos que omitem ou fazem
menção a Éfeso, pode-se entender que o prólogo do texto de Marcião foi
adicionado por ele mesmo ou por seus seguidores29. Segundo ponto corresponde

26
Papyrus 46 e códices, do século IV, Vaticanus (B) e Sinaiticus (S) antes destes foram corrigidos.
27
Exceto em Rm 1:7 no códice do século IX Boeneriano (G).
28
Marcião foi uma figura de destaque ao longo do século II EC, não apenas por conta do sucesso da
difusão de sua leitura de cristianismo, mas também porque ele acabou por ser um dos primeiros a
montar um cânon. Marcião ordenou atenção em dois grandes temas: apropriação da igreja das escrituras
do judaísmo (que veio a chamar de "Antigo Testamento"), e o surgimento de um cânone de escrituras
especificamente cristãos (um 'Novo Testamento'). Seu cânone cristão tinha como carro chefe textos
paulinos, pois entendia que apenas Paulo sabia a verdade. A composição assim tinha: uma versão do
evangelho de Lucas e dez textos paulinos (Romanos, 1 Coríntios, Gálatas, 1 Tessalonicenses,
Colossenses, Filipenses, Laodicenses, 2 Coríntios, 1 Timóteo, 2 Timóteo). Ver: Gamble (2006: 195-
287) e Clabeaux (1989: 1-10).
29
Kümmel (1982: 462) pondera que o uso por Marcião do termo “em Laodiceia estaria calcado Cl 4:16,
tendo o próprio Marcião afirmado tal fundamentação. Mas o que permitiu a consagração da carta aos
efésios foi a tradição da igreja desde o fim do século II – em especial o cânon de Muratori, Irineu,
Clemente de Alexandria e Tertuliano, penetrando no texto do título antes do fim do século IV.

36
ao fato de não existir nenhuma indicação de lugar, abrindo assim um fato sem
precedentes.
Dessa forma, fica a pergunta: como sair deste impasse? Onde podemos
localizar a epístola aos Efésios? Os estudiosos da carta, em meio a todas as
questões já apresentadas, sugerem trabalhar com uma dupla dimensão: num
macrocosmo em que teríamos a compreensão que a carta foi direcionada às
igrejas da Ásia Menor. E numa perspectiva microcósmica à cidade de Éfeso. Entre
as razões apontadas para Éfeso estão: a relação entre Efésios e Colossenses, por
intermédio da conexão entre Onésimo e Tíquico, o conhecimento de Inácio sobre
a epístola e algumas semelhanças no conteúdo de Efésios à mensagem de Inácio
aos Efésios. Considera-se ainda, em alguns casos, o ambiente religioso como um
todo da região da Ásia Menor em comparação com o “clima religioso”30 – entre
eles o proto-gnosticismo, o gnosticismo e a eclesiologia pós-apostólica – exposto
na carta (BARTH, 2008: 50-51).
Quanto à datação, os estudiosos tendem a sugerir entre 70 a 170 EC. A
resposta ou as respostas para este espaço de tempo de quase cem anos se deve
há diversos elementos que levam a pensá-la em finais do século I até finais do
século II. O primeiro fator é quanto à alusão a destruição do Templo de Jerusalém
(Ef 2:14; 19:22):
Ele é nossa paz: de ambos os povos fez um só, tendo derrubado o
muro de separação e suprimido em sua carne a inimizade [...]
Portanto, já não sois estrangeiros e adventícios, mas concidadão
dos santos e membros da família de Deus. Estais edificados sobre o
fundamento dos apóstolos e dos profetas, do qual é Cristo Jesus a
pedra angular. Nele bem articulado, todo o edifício se ergue como
santuário santo, no Senhor, e vós, também, nele sois coedificados
para serdes habitação de Deus, no Espírito.

Brown (2012: 826) nos diz que a carta deve ser colocada nos anos 90 por
conta de reminiscências do excerto Ef 5:25-29 na carta escrita por Inácio, por
volta de 110, a Policarpo, bispo de Esmirna, a seis quilômetros ao norte de Éfeso.
Provavelmente, também por volta dos anos noventa, existia pelo menos uma
coleção incipiente das cartas de Paulo, da qual o escritor de Efésios pode ter-se
servido. Outras referências centrais, segundo Barth (2008: 50) seriam as
menções a primeira epístola de Pedro e a carta de Irineus.
Por fim, resta-nos apresentar as divisões da carta. Aqui diferentemente das
demais questões, há um consenso em dividi-la em quatro partes, são elas:

30
Afirmações de que o pensamento de Efésios tem semelhanças com o evangelho de João, entre eles
está J. Allan (1958), tradicionalmente associado com Éfeso, podem também favorecer Éfeso como o
lugar de composição.

37
1ª. Parte. Centra-se na fórmula introdutória (Ef 1:1-23). Trecho em que se
localizam as tensões sobre a origem da carta, já amplamente debatido. Além de
ser o primeiro momento em que aparece uma suscetível mudança na teologia
paulina, uma vez que o mistério aqui já é dado como revelado.
2ª. Parte. Corresponde à sessão indicativa do corpo (Ef 2:1-3:21). O
fragmento diz que os cristãos foram levantados e sentados juntos nos lugares
celestiais em Cristo Jesus. Os tempos passados, mencionado no mesmo, indicam
que algo já aconteceu e tem como base a queda do muro do Templo de
Jerusalém. A ênfase na presente realidade é reforçada pelo fato de que os
cristãos são descritos como tendo sido salvos, mais especificamente (Ef 2:5-8).
Este trecho também contribui para sugerir um tipo de escatologia que Paulo
pareceu lutar contra em 1Cor 4:8 e em toda a 1 Cor 15 (BROWN, 2012: 815-816;
MACDONALD, 1988: 140-141).
3ª. Parte. A seção imperativa ou parenética do corpo (Ef 4:1-6-20) seria a
penúltima parte. É chamada de seção imperativa, pois apresenta trinta e seis
verbos no imperativo que explanam aplicações e/ou funções do Reino de Deus
pensando pelo autor de Efésios. É interessante observar que há uma clara
deposição do poder nas mãos de figuras privilegiadas numa sociedade patriarcal:
o marido, o pai e o mestre. Gerando consequências importantes para determinar
a elegibilidade para a liderança e papéis no Reino de Deus proposto por este
autor. A valorização a família individual implica também em dizer que há uma
clara opção e/ou aumento das lideranças locais (ou funcionais) e uma perda do
papel das lideranças itinerantes carismáticas (MACDONALD, 1988: 160).
4ª. Parte. A última parte é a fórmula conclusiva (Ef 6:21-24) e o que há de
peculiar é a saudação a um companheiro (Tíquico, que está sendo enviado aos
receptores), o que algo raríssimo.

O exaustivo trabalho de expor aspectos distintos de cada carta girou em


torno da preocupação em deixar claro ao leitor à complexidade de se
compreender as ‘teologias batismais paulinas’, como diria Lars Hartman. Uma vez
que o que temos são apenas fragmentos que não são citados em seus contextos
como principais características do pensamento de batismo de Paulo e de seus
seguidores, mas apresentado como argumentos em discussões sobre outros
assuntos. O que não significa dizer que seja possível pensar estes batismos e
seus consequentes desdobramentos para distintos projetos de Reino de Deus.
Muito pelo contrário, este esforço revela apenas a necessidade de um amplo
diálogo com outros âmbitos do saber. Permitindo traçar paralelos com outras

38
experiências religiosas nos ambientes nos quais estas cartas circularam, com o
contexto político-social e econômico destas regiões, e com sua consequente
relação com Roma, bem como, perceber os olhares sobre grupos judaicos na
Acaia e na Ásia Menor. Partindo dessa premissa, os subtópicos a seguir tratarão
sobre o que a Arqueologia e a História podem dizer sobre a questão e por fim
concluirei com um breve balanço, problematizando o batismo a partir destes
diversos olhares.

1.2.2. A Luz da História.


Para esse sub tópico é fundamental discutir e/ou apresentar brevemente o
contexto político-social e econômico do Império Romano, deixando clara a relação
de Roma para com as suas províncias, ao longo dos séculos I e II EC. Afinal,
estamos falando de um enorme império que buscava meios para garantir a sua
unidade através da vitória e da supremacia militar e pautada ideologicamente nos
ideais da Pax e da Pietas (devoção filial, lealdade de sentimentos para aqueles a
quem o homem está ligado por natureza: aos deuses, à família e à cidade)31.
Após a vitória em Ácio, Otavio consegue reestabelecer a paz e a ordem em
Roma, obtendo o título de princeps e inaugurando uma nova fase no mundo
romano, que passou a ser designada de Idade Áurea. A consolidação desta nova
fase se deu por intermédio do funcionamento de um programa cultural que
abarcava a restauração da religião e do ideário ético-moral tradicional, os quais
foram responsáveis pela grandeza do povo romano.
A expansão para a parte oriental da área mediterrânica foi central para o
desenvolvimento desse projeto cultural. Uma vez que foi nesse momento que os

31
Um bom exemplo iconográfico que corresponde a estes vetores ideológicos são encontrados nas bases
romanas que está o Altar da Paz Romana, que segundo historiadores da arte, que era o pináculo da
escultura monumental de Roma, copiando e adaptando diversos elementos estrangeiros tomados de
esculturas helênicas e gregas; tal como o Altar dos Doze Deuses na Ágora ateniense. Nas esculturas deste
belíssimo altar, estão representadas, as imagens de Vitória e Paz, assim como, nos dois painéis
masculinos e nos outros dois femininos, localizados na parte da frente e na que fica atrás do altar, a plena
sequência augustana, a saber: a Pietas (representação de Eneias), Guerra (representação de Marte),
Vitória (personificada por Roma) e Pax (representada por alegorias que nos remetem às noções de
Abundância, Prosperidade e de Fertilidade). Era por intermédio destas construções simbólicas e do título
de principis que Augusto garantia a ideologia de um líder político restaurador e mantedor dos mais
elevados valores políticos, morais e culturais, um modelo a ser seguido por seus concidadãos.
As imagens do painel norte e sul, por sua vez, ao retratarem uma longa procissão de magistrados em
cerimônia religiosa. O implica em dizer que Augusto também era capaz de manter a ordem e a
sobrevivência dos romanos, eliminado toda e qualquer existência de disputas e rivalidades. Pois agora
cabia a Augusto que impunha cargos e funções para patrícios e plebeus. Em outras palavras, “a procissão
não representa necessariamente a celebração inaugural do altar e não tinha por finalidade figurar um
evento histórico específico, era teórica, uma reditus idealizada, que tinha como função, na comunicação
política, de reafirmar a hierarquia da sociedade imperial romana para o público” (PIRES, 2014: 121).
Para maiores detalhes ver: Zanker, 1990:160-162, Crossan e Reed, 2007:74-75 e Pires, 2014: 117-136.

39
romanos entraram em contato com o culto aos governadores, que acabou se
projetando na veneração a Dea Roma, concebida como a personificação do poder
do Estado romano e das virtudes do povo romano, e o culto ao imperador e a sua
família. Crossan e Reed (2007: 63) nos chamam atenção para a forma como a
deusa Roma era retradada (Figura 1): uma amazona grega com um dos seios
expostos, portando o capacete, as armas e o globo amazônicos. O que seria um
indicativo do caráter imperialista e militarista romano, atrelado à misericórdia, a
possibilidade de alimento e, em certo sentido, ao erotismo sedutor, sinalizados
pelo seio exposto.

Figura 1: Museu Roma, Ara Pacis, piso térreo. Molde do um relevo romano (agora em exposição no
Museu Bardo em Tunis), mostrando Dea Roma segurando uma Nike. Os originais estão em exposição no
Museu do Bardo em Tunis. Fotografia de Giovanni Dall'Orto, 30 de março de 2008. Disponível em:
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Roma,_Museo_Ara_Pacis_-_Calco_di_Roma_con_Vittoria_-
_Foto_Giovanni_Dall'Orto,_30-Mar-2008.jpg

Neste sentido, a eficácia do imperialismo romano deve ser pensada também


pelo controle e pela administração de bens escassos. Horden e Purcell (2000)
buscaram demonstrar ao longo de seu trabalho que a unidade do Mediterrâneo
advém de um tripé: conectividade, interdependência e redistribuição, tripé este que
possibilitou a formação e a manutenção de microrregiões (ou comunidades
dinâmicas centradas em portos) capazes de superar os diversos microambientes
individuais, permitindo ainda que as sociedades locais pudessem combater os riscos

40
da agricultura, complementando os produtos faltantes através de redes de
intercâmbio e de mercado mais amplo.
Estas redes e as particularidades de cada microrregião, em outras palavras,
se configurariam a partir das demandas geográficas de cada região. Nestas relações
as rotas terrestres e especialmente as marítimas teriam papel central na circulação
32
de mercadorias – há um grande destaque ao sistema de cabotagem –, mas
também na mobilidade de pessoas e ideias que estariam circulando conjuntamente
nestas rotas.
Morley (2007: 70-71) consoante a estas ideias refuta a concepção de uma
Roma temerosa ao mar ou mesmo incapaz de manter um comércio marítimo entre
os séculos I e II EC. Segundo este autor, ao falar em Império Romano – e
especificamente neste recorte temporal demarcado pelo mesmo – se faz necessário
pensar em dois limes: terrestre e marítimo. E a possibilidade da perpetuação e da
manutenção deste vasto império estaria na existência de polos ou microrregiões
que estariam interligadas entre si, estruturando uma rede.
O centro desta rede era Roma, a qual estavam ligadas as sedes
administrativas que atuavam como pontos estratégicos para a economia do vasto
Império Romano. Como no caso de Corinto que além de abrigar uma das principais
áreas portuárias da Acaia era capital da província. Assim, estes pontos estratégicos
formavam redes menores de poder e comercial interligando as regiões
circundantes; estruturando destarte um esquema de centros-periferias33. Como é
possível vislumbrar a partir dos esquemas abaixo. A Figura 2 ilustra a centralidade
de Roma e os diferentes caminhos que a ligavam aos importantes centros urbanos
existentes no império34.

32
Por cabotagem entendem-se as pequenas viagens feitas pela costeira do Mediterrâneo. Horden e
Purcell afirmam que este estas viagens garantiriam a manutenção das redes formadas entre as
microrregiões.
33
Relembramos aqui as ideias de Said (2011) onde o mesmo configura redes de poder centradas em um
polo dominador e regiões dominadas que por intermédio de mecanismos dos mais variados (entre eles a
cultura) esta relação seria perpetuada.
34
Williams (2007: 194) também chama a atenção para a formação de grandes cidades cosmopolitas,
como Corinto que abrigava indivíduos de diferentes estamentos e etnias, tanto no que diz respeito aos
citadinos como aqueles que iam à cidade atraídos pelos Jogos dos Istmos e pelos mais variados eventos
religiosos.

41
Figura 2: Rotas que interligam Roma com importantes polos ou centros administrativos do Império.
In: Orbis. The Stanford Geospatial Network Model of the Roman World. Disponível em:
http://orbis.stanford.edu/

Já no esquema abaixo (Figura 3) temos uma dimensão das redes de


comércio ou da integração econômica do Império Romano como um todo. Este
chama atenção por nos deixar claro o nível de globalização ou de conectividade ao
longo do vasto Império ultramarino, mas também por trazer dados sobre o custo da
integração. Onde o núcleo do Mediterrâneo ganha destaque por apresentar as taxas
mais baixas.

42
Figura 3: Rede de rotas existentes ao longo do Império Romano, indicando a distribuição dos custos de
condições favoráveis para a integração econômica ao longo da costa do Mediterrâneo e os baixos níveis
de conectividade entre o núcleo do Mediterrâneo e do interior da Península Ibérica e da Gália, a bacia do
Danúbio, Anatólia central e os desertos do Egito. In: Orbis. The Stanford Geospatial Network Model of
the Roman World. Disponível em: http://orbis.stanford.edu/

Wallace-Hadrill (1989) afirma que um império tão vasto, contendo diversos


grupos étnicos se valendo de um limitado corpo administrativo. Necessitava de um
elemento integrador que garantisse a unidade e minimizasse os possíveis conflitos
internos. Este elemento integrador é o que chamamos por patronato35.

O patronato é um conceito aplicável às relações políticas que atingiam todos


os níveis sociais, sejam eles verticais e/ou horizontais. Esta relação era
marcadamente caracterizada por três pontos: (a) troca recíproca de serviços e
benefícios, (b) a relação se distingue das transições comerciais de mercado, por
ser estritamente pessoal e de longa duração e, (c) é uma relação sempre desigual
entre duas partes de status (jurídico, social e econômico) iguais e/ou desiguais,
durante a qual, cada parte oferece diferentes tipos de serviços e benefícios. O
que acabava por gerar uma série de relações, por exemplo: senhor-escravo,
proprietário de terra e homens pobres e senador sênior e senador júnior.
35
É válido lembrar que este não foi o único elemento de integração. Um exemplo concreto de relações
alternativas era a que indivíduos pobres do meio rural ou das periferias urbanas se valiam do
banditismo ou formavam relações entre seus próprios familiares, o que implicava em grandes arranjos
familiares. Porém, por serem estruturações frágeis (a qualquer momento poderiam ser desfeitas) e não
patrocinadas pelo Império acabavam por quase sempre terem pouco impacto nesta sociedade. Para um
maior aprofundamento, WOOLF; GARNSEY, 1989: 153-170.

43
Desta forma, o patrono se coloca numa posição de protetor e/ou benfeitor
daquele que se tornava seu cliente. Devendo o cliente, por sua vez, alguns
serviços a seu patrono para que a relação fosse mantida. Este ‘jogo’ de serviços e
benefícios mútuos era perpetuado, à medida que o patrono estava sempre por
deter ou manipular recursos escassos (por exemplo: alimentação, terra e
melhores posições no senado).
Era natural que um patrono não tivesse apenas um cliente, mas uma rede
de potentados. Quanto maior fosse esta rede maior era o seu prestígio e poder 36.
Além disso, um cliente também poderia ser patrono de outros indivíduos. Fazendo
com suas capacidades de prestar serviços não só fossem potencializadas, bem
como a lógica de busca por prestígio e poder também fosse reproduzida
(HADRILL, 1989: 69-70).
Reparem que a partir deste processo em que um mesmo indivíduo poderia
ser cliente e patrono, o Império criava instrumentos para agregar constantemente
grupos étnicos e sociais dos mais variados. Ao inibir a formação de conflitos
buscava-se a estabilidade deste vasto império, visto que as relações sociais com
base nos laços de patronato permitia a obtenção pelos menos favorecidos de bens
e serviços. Da mesma forma, os laços de amizade alimentavam dentre a elite o
jogo político em busca de prestígio e poder.
É válido lembrar que esta simultaneidade – em que patrono também poderia
ser cliente – era limitada. Até mesmo por uma necessidade de dar forma/sentido
a este Império. O topo desta pirâmide era ocupado pelo imperador: o patrono
máximo. Tido como o verdadeiro e grande benfeitor. Responsável por permitir
que as benesses de Roma chegassem aos mais diferentes pontos.
Alcook (1993: 2-6) entende estas benesses dento de um projeto de
romanização. Ou melhor, estas benesses são frutos da romanização37. Para tal

36
Wallace-Hadrill, fala inclusive no poder de influência destes patronos na questão do voto e da aceitação
popular dos líderes locais.
37
É bom deixarmos claro que não vemos romanização tal como apresenta Alejandro Molina em seu
trabalho Orbe Romano e Imperio Global (2007) em que o processo de romanização se processa em três
fases: (1) conquista e os primeiros contatos com os nativos, (2) o processo de romanização concreto e
efetivo pela integração e assimilação por meio de diversos instrumentos, e (3) a formação com as
sociedades nativas de uma nova realidade concreta e civilizadora romano-provincial. Formando assim,
uma comunidade global cimenta a partir de numa visão mediterrânica e romano-cêntrica. Neste sentido, o
conceito de romanização exposto pelo autor seria o que ele chama de metamorfose, isto é, o Império
comporta uma heterogeneidade de culturas que tende a ser homogeneizada. Isto se dá por meio da
integração e assimilação natural dos nativos, ou seja, Roma não impôs a sua cultura, mas os próprios
nativos buscaram se tornar romanos. Este ideal de ‘ser romano’, segundo o autor, está pautado nos
mecanismos criados por Roma logo após a conquista em que se inicia o desenvolvimento e o incremento
de uma ideia de pertencimento a urbs; onde a elite local desempenha um papel fundamental por serem as
primeiras a aderirem ao processo e que, em seguida, se dá nas demais camadas.

44
projeto havia dois esquemas. O primeiro é a colônia (tal como Corinto), em que
uma cidade com uma zona rural é fundada ou refundada para abrigar legionários
veteranos e soldados dispensados do serviço militar. Sendo estas cidades criadas,
utilizadas como centros administrativos para supervisão da produção e
distribuição dos recursos locais e regionais. Além do estabelecimento de uma vida
cívica romana com o intuito de obter lealdade do povo ao poder central.
O segundo é o euergetismo (boas obras), em que os aristocratas locais
assumiam as principais responsabilidades pelas estruturas da vida cívica.
Competindo entre si, em cada cidade, para construí-las e renová-las por
intermédio do euergetismo e das benfeitorias. Assim, não era o imperador que
atuava de forma direta sobre seu vasto império, mas, as autoridades locais que
muitas vezes se valendo de suas próprias fortunas investiam em obras públicas
(tais como construções de templos) e projetos cívicos. E como retorno destes
serviços prestados a Roma os aristocratas acabavam por ser os primeiros a
receber as bênçãos romanas (CROSSAN e CREED, 2007: 173-174).

1.2.3. A Luz da Arqueologia.


Para pensar no quê a Arqueologia em diálogo com a documentação literária
pode nos proporcionar, optamos por fragmentar este tópico em duas partes:
Corinto e Éfeso romanas, com o intuito de pensar o ambiente em que se forjam
as cartas aqui em estudo.

1.2.3.1. Corinto Romana.

Entendemos por romanização os múltiplos processos de transformações socioculturais em termos de


significados e mecanismos que teve seu início com as interações entre Roma e suas províncias. Contudo,
estas interações e consequentes transformações socioculturais se deram de forma desigual, assim como
era desigual à relação entre o poder imperial dominante e os diferentes grupos sociais das comunidades
submetidas. Assim sendo, os processos de romanização devem ser entendidos à luz de uma complexa
dinâmica que compreende assimilação, ajustamento, conflito, negociação e resistência, aliada a dinâmica
de manutenção e reprodução do sistema imperial romano. Dependendo, portanto, de uma conexão entre
poder imperial e cultura, a qual passou a ser rompida a partir do século III EC, frente às crises enfrentadas
pelo Estado Romano (MENDES, 2007: 26-27).
Neste sentido nos parece interessante às considerações de Hingley sobre o imperialismo romano em seu
livro O Imperialismo Romano: novas perspectivas a partir da Bretanha (2010). Baseado nos estudos pós-
coloniais, o conceito de imperialismo ganha o sentido de uma manipulação e/ou apropriação do passado
por nações que querem legitimar seu poder e suas ações e que para isto recorrem ao passado. Como no
caso da Grã-Bretanha, que dada à pressão externa político-militar da alemã, além da legitimação em si
para validar suas posições e intenções políticas. Ou seja, o paralelo com Roma era interessante, pois de
um lado era uma justificativa que a Grã-Bretanha dava como propagadora de uma cultura superior e
portadora de novas tecnologias para suas colônias; de outro lado o paralelo era importante, pois um
passado anglo-saxônico, não era mais favorável devido à nova postura alemã. Sendo assim, Grã-Bretanha
e Roma compartilhavam um projeto moral o que tornava a primeira descendente da última.

45
De imediato caracterizamos estabelecermos a cidade de Corinto que
contextualizou as comunidades cristãs descritas nas primeira e segunda epístolas
de Paulo. A que nos propomos a falar não é a grega que Estrabão, em sua obra
Geografia, descreveu e que foi destruída pelos romanos, sob a liderança do
general Lúcio Múmio, em 146 AEC. Mas a Corinto Romana que emerge em 44 AEC
com o projeto de colonização iniciado por Julio César, no mesmo espaço onde um
dia foi a Corinto grega.
A agora chamada Colônia Laus Julia Corinthiensis, ganhou mais destaque no
Império quando se tornou capital do governo provincial da Acaia em 27 AEC. A
partir deste momento Corinto, gozando da jurisdição de colônia romana e capital
da Acaia, passou a ser uma ‘Roma em plena Grécia’ (MURPHY-O’CONNOR, 2002:
67-68). Corinto, ao longo dos séculos I e II EC, experimentava um grande boom
econômico. Era um importante polo comercial na parte oriental do Mediterrâneo.
Favorecido por sua localização geográfica detinha importantes portos entre eles o
de Cencréia e Lequeu, e era também um ponto turístico.
A Corinto Romana era, em níveis econômicos, uma cidade que agregava
muitos eixos. Cerca de vinte a quarenta por centro de sua força produtiva estava
centrada na agricultura. O resto de sua força produtiva estava voltado para os
serviços religiosos, turísticos e manufaturados. Os manufaturados se fizeram
necessários, à medida que, era de interesse da comunidade local diminuir a
importação e para poder atender com maior facilidade as demandas do comércio;
entre os produtos estavam lamparinas e os potes (ENGELS, 1990: 28-34).
Os serviços religiosos eram dados por conta das variedades de templos e
cultos existentes na cidade. Fomentavam a produção de alimentos, essências e
todo o tipo de material para atender este público. Os serviços turísticos eram
advindos muito por conta, primeiramente, dos Jogos dos Istmos e, em segundo
lugar, de eventos religiosos que poderiam atrair indivíduos de regiões
circundantes a Corinto. Nestes serviços estavam: a alimentação, a estadia
temporária e os banheiros públicos ou privados (ENGELS, 1990: 43-50).
A composição social da Corinto Romana era bastante diversificada, existiam
livres ricos e pobres e escravos. Este quadro social era resultante dos indivíduos
descendentes dos colonos romanos, os remanescentes de origem grega pós-
conquista38 e os que foram atraídos pelo potencial econômico da cidade. Murphy-

38
Cícero esteve na cidade no período de 79 – 77 AEC e constatou que a cidade não ficou
completamente deserta. Além de continuar habitada, o comércio manteve-se ativo na região
(MURPHY-O’CONNOR, 2002: 42-43).

46
O’Connor (2002: 50), por intermédio de documentação literária, nos evidencia a
presença de comunidades judaicas e povos circundantes a região de Corinto.
Pausânias em Descrição da Grécia nos traz importantes informações para o
espaço em que se deu o desenvolvimento da comunidade paleocristã, fundada
por Paulo. Mesmo o documento sendo do século II EC foi possível, por intermédio
de escavações guiadas por estas mesmas descrições, não só se reconstruir a
Corinto do século I EC, bem como determinar quais edificações apresentadas por
Pausânias são do primeiro ou segundo século EC. O mais interessante desta fonte
é que muito destes espaços e monumentos citados também foram vistos por
Paulo e estavam em constante interação com esta comunidade.
A administração coríntia seguia os mesmos moldes da romana, a saber: (a)
a assembleia dos cidadãos, (b) o conselho e (c) magistrados. Engels (1990: 70)
nos diz que a administração da cidade estava concentrada nos colonos romanos e
seus descendentes. Os gregos de forma geral não gozavam do status de cidadão.
Não tinham, inclusive, o direito ao voto o que limitava mais ainda sua participação
nesta parte organizacional da cidade.
Pausânias ainda nos dá importantes contribuições no que diz respeito ao
aspecto religioso da cidade. Nos portos, acima citados, de Cencréia e Lequeu
havia respectivamente um santuário dedicado à Deusa Afrodite e um templo
dedicado à Ísis e um santuário e uma estátua em bronze à Poseidon. Engels
(1990: 12-14) afirma a existência de santuários dos dois princippais deuses da
Corinto Grega nos portos da Corinto Romana, representam o impacto destes
cultos nestas sociedades e a continuidade de costumes gregos.
Na rota para o porto de Cencréia havia ainda outro templo e uma estátua
dedicada à Ártemis. Os demais santuários se concentravam próximo à Ágora.
Havia um santuário dedicado a todos os deuses. Na rota para o porto de Lequeu
(partindo da Ágora) havia um monumento dedicado a Hélio. Próximo ao rio Pirene
era possível visualizar a estátua de Apolo e um tributo a Heracles (MURPHY-
O’CONNOR, 2002: 6-30), como é possível ver no mapa abaixo (Figura 4).

47
Figura 4. Área do Fórum e principais templos da cidade de Corinto. Fonte: ENGELS, D. Roman Cporinth: an alternative model for the classical city. Chicago:
University of the Chicago Press, 1990.

48
Na rota para Sicone havia, a direita, vindo num sentido a oeste da ágora, o
Templo Arcaico datado do século VI AEC. Segundo Murphy-O’Connor, o templo foi
reativado e ali se passou a ser um templo dedicado a Apolo em meados do século
I EC. Neste mesmo local ainda era possível localizar o santuário de Atenas, uma
estátua de Heracles, o teatro e o santuário de Zeus Capitolino. Nesta mesma rota
existia ainda o templo de Hera Acraea. Este templo não é mencionado por
Pausânias, mas para Murphy-O’Connor ele estava presente no período de Paulo.
Havia ainda diferentes monumentos espalhados pela Ágora dedicados ao
imperador e a sua família, tais como: o templo de culto imperial (a sul do pórtico)
e uma basílica (a sudoeste do pórtico), ambos destinados à prestação de cultos à
família imperial. Todos eles foram descritos por Pausânias (Descrição da Grécia
3:1) e representavam claramente a relação estabelecida entre Roma e os
coríntios.
Além disso, estes templos também possibilitavam as autoridades locais de
legitimarem o seu poder local por intermédio da celebração de festivais, jogos e
sacrifícios a César. Ou seja, havia uma operação simultânea em que estas
lideranças se reconheciam como clientes do imperador, mas também, obtinham
condições de conquistarem e perpetuarem seu poderio na região que atuavam.
Outra forma de perpetuação desses laços e reforço do poder que ocorriam em
Corinto eram os grandes jogos celebrados em honra ao imperador: os Jogos
Ístmicos. E que contou, inclusive, em algumas situações com a presença do
próprio imperador39.
Outro elemento ressaltado são as cunhagens produzidas pela própria cidade
que continham um caráter augustano. Demonstrando, segundo a autora, a
fidelidade desta colônia a Roma. Em outras palavras, o ato dos aristocratas locais
em ordenar a cunhagem ao estilo augustano evidencia a preocupação desta elite
em reconhecer seu patrono na expectativa de obter benesses do mesmo.

39
ALCOCK (1993: 16-17). Estes jogos remontam ao período pré-romano. Tinham como finalidade
garantir a unidade entre os gregos. Quanto à presença do imperador, fazemos menção à visita de
Adriano na província de Acaia no ano de 135 EC.
Não deixa de ser interessante recordar que estes jogos para além de realçar a imagem do patrono
máximo, o imperador, era um meio também de preservar a centralidade da província da Acaia.
Lembramos que Corinto era capital de uma província que em diversos aspectos cada cidade integrante
da mesma era bastante autônoma, dado a quantidade de forças que estavam presentes (ligas, senado,
império e poder local). Uma vez que entre os maiores problemas da Acaia eram justamente a
quantidade de agentes que intervinham na mesma. Segundo ela, isto seria uma resultante não só de sua
longa conquista, bem como fruto da ausência de uma maior centralização, que no caso ficou a cabo da
própria capital provincial (Alcock, 1993: 18-19).

49
O último caso apresentado pela autora são os das obras públicas. Alcook cita
casos de reformas na região do Fórum e nos banheiros públicos que foram
patrocinados por aristocratas da cidade de Corinto. Estes exemplos se tornam de
grande importância, na medida em que nos fornecem uma ideia clara do
funcionamento do patronato nesta sociedade.
Não apenas a cidade passava a estar diretamente vinculada ao império. Mas
também, os indivíduos de uma forma geral reproduziam essa lógica. Assim como
os aristocratas estavam diretamente ligados à figura do imperador, os habitantes
das cidades estavam interligadas às aristocracias locais. Como no caso citado
acima sobre festivais e grandes banquetes que eram destinados a todos
(independente do estamento social). Para muitas pessoas estas ocasiões eram as
únicas oportunidades destes comerem carne, principalmente, e outros alimentos.
E o efeito disto é que para além de reforçar a hierarquia da sociedade romana
como num todo os interligava. Uma vez que, o retorno daqueles que conseguiram
as bênçãos do império era expressa pela obediência ao patrono.
Outro aspecto sobre esta rede que atua interligando os poderes periféricos
com o poder central é a existência de um intermediador que emerge das forças
periféricas: o poder provincial. Como Corinto que em condição de capital da
província da Acaia e uma região que experimentava um verdadeiro boom
econômico em pleno século I EC acabava por deter a principal elite político-
econômica e cultural de toda a Acaia.
Através de evidências literárias e epigráficas constatou-se que as principais
famílias coríntias detinham ligações com famílias de outras partes da Acaia. O que
significa dizer que estas famílias coríntias seriam patronas de famílias
circundantes a Corinto. O que ampliava ainda mais a autoridade da capital e
fazendo com que ela exercesse este poder mediador (ALCOCK, 1993: 156).
Assim, observa-se que Corinto era uma região altamente pluralizada tanto
no nível social como em termos étnicos. Esta diversidade era expressa não só
pelo potencial econômico vivenciado pela cidade, ao longo dos séculos I e II EC,
mas também por ser um importante polo político, haja vista que conectava a
região periférica da Acaia com a capital do império e abrigava importantes portos
de ligação para o Oriente. Esta pluralidade era expressa, por exemplo, pelas
distintas formas de se prestar honras ao imperador e ao Império (CROSSAN e
REED: 2007:172).
Por fim, deveremos ressaltar que patronos de Corinto que realizavam obras
públicas e desempenhavam importantes papéis na cidade não se restringiam
apenas a homens. Murphy-O’Connor (2002: 80-83) nos apresenta dados das

50
escavações de uma equipe francesa que em 1954 encontrou um túmulo com uma
inscrição honorífica a uma mulher chamada Junia Theodora.
Suas atividades são datadas entre os anos 40 a 50 do século I EC. Por não
fazer menção ao nome do marido ou de sua família na inscrição acredita-se que
Junia Theodora era uma viúva e que atuava de forma independente. É definida
como uma benfeitora, oferecendo hospitalidade e auxílio aos necessitados. Além
disso, era influente na cidade contribuindo para a facilitação de negociações com
a administração. Para isto, teria se beneficiado de suas relações com autoridades
de Corinto.
A partir do caso de Junia Theodora percebemos que as relações de patronato
não se limitavam apenas aos homens. Mulheres de elevado estamento também
poderiam ser patronas e clientes. Atuando de forma concreta na vida política sem
romper com a lógica estrutural da sociedade na qual faziam parte. Desta maneira,
elas apenas reproduziam uma função que era possível a pessoas da mesma
condição social que a sua. O que não significa dizer que deixassem de serem
modeladas pelos padrões ou características tidas como femininas. Como é
realçado na inscrição de Junia Theodora ao afirmar que ela era uma mulher de
grande honra e modéstia (MURPHY-O’CONNOR, 2002: 83).

1.2.3.2. Éfeso Romana.


No início da Idade do Bronze existia um assentamento sobre a colina, agora
chamado de Monte Ayasoluk, entre Rio Kaÿstros para o norte e uma profunda
baía ao sul, que estavam originalmente separados por esta colina de Panayirdag
(Monte Pion). A cidade de Lidia, que é atestada na literatura, e a cidade fundada
próxima a Artemisia pelo rei Kroisos não estavam bem localizadas. Antiga
Koresso, uma arcaica colônia grega fundada sob a legendária liderança do
príncipe ático Androklos, foi provavelmente localizada na posição, sudoeste da
encosta da baía e a noroeste do promontório de Panayirdag. Outra cidade,
provavelmente Esmirna, foi recentemente descoberta na área da antiga ágora
Tetragonos, onde as escavações de Gerhard Langmannn revelaram casas que
foram usadas entre os séculos VIII e VII AEC.
Poucos traços foram encontrados na nova cidade helenística, que
Lysimachos estabeleceu por volta do ano de 290 AEC no vale entre Bülbüldag
(Lepre Akte) e Panayirdag. O curso pela cidade revela uma pequena ágora
helenística na área da antiga Ágora Tetragonos e uma estreita ligação desta com
o porto. A segunda Ágora, localizada ainda a oeste, é mencionada na inscrição e
foi provavelmente o espaço onde estava situada a grande maioria das construções

51
administrativas. O teatro foi construído a oeste da encosta de Panayirdag
(SHERRER, 2010: 3-4; MURPHY-O’CONNOR, 2008: 8-14).
Sob Augusto, Éfeso se tornou capital da província da Ásia; um pequeno
planalto foi escolhido entre Bülbüldag e Panayirdag foi escolhido como o novo
centro da cidade romana. O complexo de construções neste lugar se tornou
conhecido como Ágora do Estado; a área retangular central, com dimensões de
160 m x 58 m, poderia, no entanto, ser compreendido como um têmeno. Em
contraste na Ágora Tetragonos, não foram encontradas inscrições honrosas ou
estátuas de base e as stoas (elemento arquitetônico que consistia em um
corredor ou pórtico coberto) circundantes não contêm lojas ou cômodos. A oeste
do pórtico de entrada da área, um pequeno templo contendo de 6 a 10 colunas
que seria dedicado a César em 23 AEC, data em que Éfeso se tornou capital da
Ásia (Figura 5)40.
Friesen em seu trabalho Twice Neokoros (1993) fez um verdadeiro esforço
de refletir sobre o culto imperial em Éfeso num viés comparativo. Olhar que
permitiu vislumbrar os diferentes modos em que Roma se valeu para estabelecer
o seu poder por intermédio da religião. Friesen nos indicou que nem sempre a
implementação do culto a Augusto era autorizado. As razões para a não
permissão era a existência de uma divindade de renome. Nestes casos, o que se
verificava era um culto em conjunto.
Em Éfeso foi o caso de Artêmis e em Mileto foi numa interação com Apolo.
Outro elemento que deve ser ressaltado dessa belíssima análise é sobre os cultos
imperiais, propriamente ditos, na Ásia. Num ambiente onde o culto do koinon
(culto oferecido aos monarcas helenísticos) é importante perceber que os cultos
imperiais apresentaram semelhanças no que diz respeito ao papel assumido pelo
koinon nesses, ainda que houvesse diferenças importantes entre os mesmos.
Além disso, Friesen nos lembra de que os cultos locais estavam sujeitos a
costumes locais, enquanto que os cultos provinciais precisavam dialogar com o
que Friesen chamou de ‘tradições em Roma’41, a fim de garantir a aprovação do

40
No entanto, não temos certezas sobre a quem seria devotado estes templo. W. Alzinger identificou o
templo como sendo dedicado a Isis, sugerindo a sua construção durante o segundo triunvirato sob a
influência de Cleópatra VII. B. Andreae já acreditou ser um templo de Dionísio em honra a Marco
Antônio. P. Scherrer que entende o templo como sendo de divus Julio que Otávio teria dedicado à
assembleia dos cidadãos romanos. Suas conclusões são com base em documentação literária tal como Dio
Cássio. Ver: Scherrer, 2010: 4.
41
Por ‘tradições em Roma’ o autor entende ou nomeia toda e qualquer prática oficial de culto ao
imperador e ao império.

52
Senado e do imperador. Por estas razões, cultos provinciais na Ásia geralmente foram reservados a designação de pheós de
um imperador oficialmente divinizado, enquanto cultos locais eram menos restritivos no uso da etiqueta.

Figura 5. Geografia da cidade de Éfeso no século I EC. Obtido em: KOESTER, H. (Ed.) Ephesos, Metroplis of Asia. An Interdisciplinary Approach to it
Archaeology, Religion, and Culture. Massachusetts: Harvard University Press, 2010.

53
Éfeso foi descrita por diferentes pessoas, como o historiador Aristio, como
sendo o centro comercial mais importante na Ásia Menor, centro este anterior ao
domínio romano e que cultivava negociações com diferentes microrregiões: entre
elas Antioquia, Alexandria e Egito. Uma boa forma de rastrear essas intensas
redes comerciais está no culto de Ísis e Seráfis. Walters (2010: 283-290) nos fala
que a presença mais antiga do Egito em Éfeso em que podemos rastrear é do
século VII AEC, por intermédio da arte e da religião. Embora tenhamos inscrições
apenas da primeira metade do século III AEC atestando templos e altares a
Seráfis, Ísis, Anubis e outros deuses do panteão egípcio42. Além de relações
militares e comerciais, datadas a partir do século III AEC. No tocante ao primeiro
caso mencionado há uma série de moedas e inscrições localizadas próximas a
Biblioteca de Celso.
Em relação ao segundo, destacamos o porto do Ginásio, cuja construção foi
finalizada em 92/93 EC. Esta construção aliava-se à primeira grande reforma
urbana que Éfeso, desde a dinastia Julio-Claudiana e seguida dos Flávios e os
Antonios43. A referida reforma demandou um grande número de artesãos para
essa cidade e certamente um número elevado de migrações. Por intermédio da
existência de um catálogo de 17.000 inscrições para diferentes estrangeiros
constata-se uma diversidade de etnias, entre elas frígios, psídios, judeus e judeus
de Éfeso44. Faz-se uma estimativa que a população efésia girava em torno de
200.000 a 225.000 entre os séculos II e III EC., sendo um pouco maior quando
comparada a cidades como Antioquia, Pérgamo ou Esmirna (WHITE, 2010: 41-42;
58-60).
Além disso, a cidade foi um importante polo político e intelectual. Político,
por ser em primeiro lugar a capital da província da Ásia, mas também por
estabelecer redes de poder com as cidades circundantes. Por intermédio da
numismática e da epigrafia, é possível rastrear famílias proeminentes mantendo
relações comerciais ou mesmo de parentesco com cidades como Pérgamo e Mileto

42
Walters (2010: 285-292) diz que a introdução de cultos egípcios na Ásia Menor coincide com a
expansão do reino egípcio na região iniciado por Ptolomeu I em 309 a.EC. Para o período helenístico o
autor apresenta inscrições e relógios de água faziam referência a Ísis e a Seráfis.
43
Scherrer (2010: 11) comenta que foram as escavações realizadas entre 1991 e 1992 que
possibilitaram perceber essas intensas intervenções urbanas na cidade de Éfeso. Além das escavações,
as transformações urbanísticas são atestadas pela epigrafia e documentação literária.
44
Uma distinção que estaria demarcando a cidadania ou uma leva mais antiga de fluxo migratório
judaico. Todavia mais do que isto poderia estar sinalizando uma tensão existente entre grupos judaicos
e não judeus na Ásia Menor. Flávio Josefo, Philo e Cícero estão entre os autores que nos dão indícios
sobre a ocupação de um modo geral dos grupos judaicos (em Éfeso há registros de grupos ligados a
práticas de cura, medicina) e as tensões existentes na Ásia. Ver: Murphy-O’Connor, 2008: 78-85.

54
o que garantia a manutenção do prestígio e da permanência no poder destas
famílias em Éfeso (WHITE, 2010: 61-63; MURPHY-O’CONNOR, 2008: 190-192).
Éfeso centrava ainda a segunda maior escola de filosofia do Egeu e a Biblioteca de
Celso, o que lhe garantia o status de polo intelectual da região do Egeu.

1.3. Um Breve Balanço.


O mais antigo trabalho a trazer a preocupação nos rituais batismais
paulinos, ainda que em segundo plano, é The Influence of the Holy Spirit (1888)
de Hermann Gunkel. Dando ênfase em afirmar Paulo como um pneumático.
Admitindo que o batismo, lido como sinônimo de conversão, possibilitava a
obtenção dos dons do Espírito. Apesar da interpretação se restringir ao texto pelo
texto, é curioso perceber o papel que o Espírito e os dons advindos destes
aparecem como responsáveis pelas tensões no interior das casas-igrejas. Muito
embora, o autor diga que estas tensões indicassem uma não conexão com Deus,
mas com o mundo.
O Misticismo de Paulo, o Apóstolo (1907) de Albert Schweitzer pode ser visto
como o segundo trabalho a refletir também a questão de forma en passant. Após
buscar diversos paralelismos entre o que Schweitzer rotulou de cultura judaica e
cultura helênica, o autor destinou um breve capítulo para discutir o batismo e a
eucaristia. Contudo, apesar dos paralelismos entre culturas judaica e helênica,
Schweitzer pouco avançou em suas reflexões sobre o batismo. Declarando apenas
que é possível perceber pontos em comum com Platão, uma vez que há em Paulo
a ideia de sacrifício expiatório.
Estando fortemente atrelada a ideia de um sacramento, o autor pouco
reconheceu o impacto da possessão do Espírito nas comunidades. Admitindo que
o batismo paulino tivesse poucos paralelos com o conceito tradicional de batismo,
sendo o único ponto em comum com o ritual de João Batista a concepção de
redenção para aqueles que desejavam participar do Reino de Deus (bem-
aventurança messiânica)45. Além de observar que ao interpretar o batismo como
um morrer e viver em Cristo, Paulo estaria agregando um novo dado às
interpretações da ressurreição.

45
É interessante notar que ao fazer sua análise sobre a eucaristia o autor reconhece paralelos com os
cultos de mistério helenísticos, diferentemente do batismo onde há quase que um total silêncio sobre
isto. Mas sempre buscando, é claro, demonstrar que os diálogos não são possíveis por conta da ideia de
sacramento. O único momento ao se reportar ao batismo e perceber pontos em comum, para além do
caso de Platão citado no corpo do texto, é quanto ao batismo pelos mortos, o autor argumentou que este
conceito se tornou obsoleto, sendo apenas empregado por grupos gnósticos.

55
Após a obra de Schweitzer não houve trabalhos que buscassem seriamente
abordar os ritos batismais de forma significativa, ainda que tenha sido neste
intervalo, de quase sessenta anos, que se iniciaram discussões mais incisivas
sobre Efésios ter sido uma complicação de ritos e hinos batismais. Um dos
elementos, para a ausência de publicações sobre os rituais batismais estaria no
fato de que neste espaço de tempo os estudos sobre Paulo o desjudaizaram por
completo, somente com E. P. Sanders em Paul and Palestininan Judaism (1973)46
que temas como o batismo voltam a ser significativamente problematizados.
Uma obra contemporânea ao de Sanders foi o The secret gospel (1973) de
Morton Smith47, que acabou sendo o primeiro livro a abordar de forma direta o
tema, sendo um verdadeiro divisor de águas, nesse sentido. Promovendo um
amplo trabalho sobre o batismo nos paleocristianismos e compreendendo que o
movimento iniciado por Jesus, na verdade, instaurou um culto de mistério –
tomando como base a análise dos Papiros Mágicos Gregos (PMGs). Culto este que
derivou do movimento de João Batista, mas com o diferencial da possessão do
Espírito por parte dos iniciados em seu movimento. Para estas conclusões o autor
se apoiou em um interessante estudo sobre os escritos de Paulo. Desta forma, o
batismo paulino seria uma amalgamação entre rituais de pureza e impureza e de
ensinamentos que provinham de Jesus.
Eugene Boring em The continuing voice of Jesus (1982) nos traz dados
interessantíssimos sobre as tensões ou choques internos entre profetas
carismáticos itinerantes e uma crescente hierarquização no interior das casas-
igrejas, considerando tal como Sanders que os judaísmos de primeiro e segundo
século são plurais e estão em plena interação com o ambiente que se inserem.
Esses embates têm como matrizes os ritos batismais – ainda que o autor não
aprofunde a questão, mas deixe isso claro – e os ditos de Jesus como forma de
obtenção de poder.

46
Sanders argumentou que desde Schweitzer é perceptível esta desjudaização de Paulo, trazendo
argumentações quando se tratava do batismo como o sacramento instaurador de uma religião mística e
reformuladora da fé. A escola alemã neste sentido teve um papel de grande destaque, em especial no
período nazista. Ver nota 1 da presente Dissertação.
47
É bom lembrar que apesar do grande debate existe em torno de Smith quanto à veracidade ou não do
Evangelho Secreto de Marcos, o livro no qual fazemos menção não se dedica em sua inteireza a
descoberta. Mas apenas 1/3 do livro é voltado para tal, os outros 2/3 são dedicados a uma profunda
discussão sobre batismos, em especial ao batismo de Paulo que segundo Smith Paulo é a chave para
entender o batismo de Jesus, uma vez que há diferenças entre o batismo de Paulo e o de João Batista. Para
aqueles que tem interesse em se aprofundar no Evangelho Secreto de Marcos ler: Murgia, C.“Secret
Mark: Real or Fake?” in Longer Mark: Forgery, Interpolation; Bruce, F. "The 'Secret' Gospel of Mark,"
1974 e ainda Brown, S. Mark’s Other Gospel. Wilfrid Laurier, 2005.

56
Margaret MacDonald, ao se debruçar sobre os processos de
institucionalização nas comunidades paulinas em The Pauline Churches. A Socio-
historical Study of Institutionalization in the Pauline and Deutero-Pauline Writings
(1988), percebeu que o estudo do batismo é central. E este é o grande mérito
desta obra, ainda que Boring já apontasse indicativos da importância do batismo
nas relações de poder, foi MacDonald a primeira a explorar esta perspectiva
dentro do corpus paulino. A autora afirma que o grande problema ou dificuldade
em se problematizar o batismo se deve ao interesse dos intérpretes e/ou
estudiosos em minimizar ou ignorar os aspectos místicos de formas rituais em
comunidades primitivas e ampliando o conceito de sacramento. Ignorando a
relação entre as experiências misteriosas de culto e a formação de comunidades,
incluindo o desenvolvimento de crenças e normas. Em sua investigação, a autora
buscou traçar as conexões feitas entre o que é experimentado pelos cristãos
paulinos através da participação em formas rituais e da entrada e associação
continuada dentro da comunidade. Entendendo que a atitude de Paulo para com
os rituais está relacionada com a situação social de uma vertente judaica
engajada na construção de comunidades institucionalizadas.
Em 1990 Alan Segal lança o livro Paulo, o convertido. Esta obra é consoante
com o trabalho de Sanders e Smith, permitindo pensar a experiência mística de
Paulo dentro do misticismo judaico, bem como nos permite perceber com mais
clareza os paralelos entre os significados e simbolismos da ressurreição e/ou
viagem mística e do apocalipticismo para Paulo e suas comunidades. Muito
embora, o autor tenha se restringido a tratar das cartas autênticas.
Lars Hartman publica em 1997 a obra 'Into the Name of the Lord Jesus'
Baptism in the Early Church. Como o próprio título sugere, o autor buscou traçar
um verdadeiro mapeamento sobre os rituais batismais e os sentidos da fórmula
batismal “em nome de Jesus” nos paleocristianismos. Para Paulo o levantamento
sobre estes elementos é extenso, sendo fragmentado em cartas autênticas e o
que ele chama de ‘escola de Paulo’ (cartas deuteropaulinas). E o que Hartman
deixa claro é que dentro da ‘escola de Paulo’ há cada vez mais uma
potencialização de personagens masculinas como portadores do falar de e sobre
Jesus.
John Asthon (2000) em The religion of Paul the Apostle ao refletir se Paulo
teria ou não fundado uma religião nos traz dados sobre um apostolado e um
discipulado em torno de Paulo. Estas duas unidades em torno de Paulo que
contribuem para o desenvolvimento e propagação da teologia paulina, seja no
campo missionário, seja nas casas-igrejas paulinas.

57
John Crossan e Jonathan Reed (2004) na obra Em busca de Paulo defendem
as mesmas conclusões que Ashton. Sinalizam apenas para a configuração de
teologias distintas existentes entre as epístolas autênticas e as deuteropaulinas.
Certas passagens das paulinas, segundo os autores, apontam para um Paulo
muito mais revolucionário e igualitário. Nestas passagens o apostolado não se
restringe aos doze, pois mulheres tem o direito à participação na propagação e do
euangelion48 (boa nova) e na atuação de funções como de profetizas e diaconisas,
no interior das comunidades. Por outro lado, nas deuteropaulinas há uma
tendência a silenciar o papel destas mulheres e igualmente a limitar o apostolado
e outras funções das casas-igrejas.
O trabalho de Michael F. Hull intitulado Baptism on Account of the Dead
(1Cor 15:29) (2005) é o mais recente material sobre o assunto. Ainda que o
autor estivesse interessado em entender a citação 1Cor 15:29, este percorreu um
longo trajeto, definindo o que seria o batismo paulino e a sua relação com a
ressurreição e os diferentes significados que lhe serão atribuídos tanto nas
autênticas, quanto nas deuteropaulinas.
Todos estes trabalhos são importantíssimos para se pensar, em primeiro
lugar, o estado atual da pesquisa sobre rituais batismais e, em segundo, o que se
pode contribuir ou agregar ao estudo, partindo de uma perspectiva comparativa e
transdisciplinar. Ao longo do capítulo discutimos metodologia, fontes e
apresentamos separadamente o que pode ser dito a partir da Teologia e Ciências
da Religião, da História e da Arqueologia. Valendo-se destes diferentes olhares e
ao nos voltamos para a história da pesquisa sobre o batismo paulino, dois
elementos podem ser evocados neste primeiro capítulo: (1) o batismo dentro das
comunidades paulinas é central, havendo nuances claras entre os significados dos
rituais batismais, e (2) há poucos diálogos com o ambiente em que estas
comunidades estavam inseridas. Em outras palavras, quando o tema é trazido à
tona não há diálogos ou há poucos diálogos com o contexto em que Paulo e os
autores que escreveram em seu nome se reportavam. O que nos pode trazer
dificuldades para compreender a mudança ou as releituras sobre o batismo nas
deuteropaulinas, assim como, compreender ainda como se deu o processo de
hierarquização ou de institucionalização.
O primeiro passo para estes apontamentos talvez seja relembrarmos o
conceito de patronato. Este conceito, conforme já mencionamos, foi fundamental
para compreensão das relações entre Roma e suas províncias. Ademais,

48
A opção por euangelion se faz para que se evite a confusão com o estilo literário evangelho.

58
ressaltamos também os paralelos entre as relações de Paulo com suas igrejas e o
modelo das relações de poder entre o imperador e o povo romano. Logo podemos
pensar que Paulo não detinha um modelo de sociedade tão alternativo assim,
salvo se o compreendermos em dois níveis: o ideológico e o prático ou estrutural.
Contudo, ainda há de se fazer uma segunda pergunta: estas releituras de
Paulo podem ser entendidas como uma ruptura da proposta paulina de Reino de
Deus?
Ao invés de compreendê-las como rupturas, melhor seria lê-las como
diferentes grupos gravitando em torno de Paulo ou do nome de Paulo. Tal como
propôs J. Meier (1992) ao estudar os diferentes grupos existentes no movimento
de Jesus. Seu trabalho se torna interessante para esta questão, pois permite
vislumbrar dois aspectos: (1) entendendo o movimento paulino como um grupo
de mistério, como sugerem autores como Smith, Segal e Hartman, é possível
pensar em níveis ou estágios de conhecimento: onde aquele que se centra no
núcleo mais fechado ou mais próximo do mestre (no caso Paulo) deteria maiores
conhecimentos; (2) entendendo Paulo como um patrono e aqueles que são seus
discípulos serem vistos como seus clientes, é possível pensar em uma extensa
rede de poder e sociabilidade, na qual cada cliente de Paulo, independentemente
do grau de proximidade, pode se tornar também um patrono de outrem.
Estas questões suscitam diferentes leituras sobre Paulo e memórias de e
sobre Jesus. Além disto, se entendemos que esta extensa rede ou redes de poder
já ocorriam durante a vida missionária do apóstolo, começamos a ter indícios para
apreender a constante preocupação de Paulo em se autolegitimar e de
estabelecer hierarquias de poder por intermédio do Espírito (como apresentamos
em 1Cor 12 e 14, quando apresentávamos a carta). Mas, para que esta ideia de
círculos ou de redes de poder possa ser atestada, se faz necessário observar mais
atentamente duas outras dimensões da questão: as diferentes lideranças
existentes, bem como o que as legitima como portadoras do falar de e sobre
Jesus e os projetos ou agendas de Reino de Deus adotadas pelas mesmas. Sendo
estes os elementos a serem abordados nos capítulos que se seguem.

59
2. Os círculos de Poder. Cristianismos Paulinos como Associações
Voluntárias e Cultos de Mistério.

Carlos Ginzburg em “Os queijos e os vermes” (2006) nos fala de um curioso


moleiro, chamado Menocchio, que ele encontrou ao analisar os autos do processo
inquisitorial da pequena aldeia de Montereale nas colinas de Friuli, no período das
Reformas (Protestante e Católica). No decorrer da explanação do processo
Ginzburg nos revelou uma forte crítica da parte de Menocchio a Igreja Católica
tanto em aspectos teológicos quanto político-social.
Entre as diferentes críticas feitas por Menocchio as mais pertinentes a nós
dizem respeito às hierarquizações eclesiásticas e aos sacramentos. Suas
reprovações sobre estes pontos advêm da percepção que tanto as hierarquias
quanto os sacramentos abriam espaço para a opressão. Defendendo, por sua vez,
uma ideologia religiosa que afirmava a existência de um espírito ora chamado de
Espírito Santo, ora de Espírito de Deus. Negando o batismo, pois segundo ele todo
homem nascia abençoado por este Espírito. E afirmando ainda que todos os
sacramentos são invenções humanas.
As ideias e oposições de Menocchio, de fato, revelam o contexto político-
religioso e social em que ele viveu. Mas também trazem consigo dados
significativos que em muito dialogam com a presente Dissertação e mais
especificamente com este capítulo. (1) O primeiro deles é a percepção do moleiro
quanto ao papel dado ao batismo. Em outras palavras, se este ritual é ou não, de
fato, relevante para uma construção identitária e mais do que isto para uma
conexão com o divino. (2) E consequentemente, se esta conexão delega ou não
poder a todo aquele que mantém vínculo com o sagrado. O que é o mesmo que
perguntar se há ou não há portadores “legítimos” do falar de Jesus. O que nos
remete imediatamente a colocação de Udo Schenlle (1999: 24): “[...] Paulo só
recorre a Damasco quando se contesta seu apostolado. Em contrapartida, ele não
invoca Damasco ao desenvolver sua teologia positivamente!”.
Estes dados nos são interessantíssimos, pois nos rementem à discussão
levantada no capítulo anterior quando discutíamos quanto à relevância de uma
metodologia para a documentação paulina de forma geral e, mais
especificamente, para abordar a questão batismal. E mais ainda para propor que
a partir de Paulo já temos núcleos ou círculos de poder criados em torno dele e a
partir de seu nome, tendo como base os rituais batismais, para legitimarem uma
leitura ou uma memória de e sobre Jesus, em um primeiro momento, e, em
segundo, de e sobre Paulo.

60
Para isto, como já sinalizávamos ao longo do capítulo 1, é necessário partir
da concepção de que os cristianismos paulinos funcionavam como cultos de
mistério tal como sugeriu Morton Smith (2005). Na verdade, mais do que um
simples culto de mistério, é fundamental pensá-los também dentro de uma
categoria muito maior, que inclui inclusive os cultos de mistério. Estamos falando
das associações voluntárias que foram amplamente disseminadas por todo o
Império Romano. Entre as suas ações estava o reforço ao senso de identidade em
novos ambientes ou ainda como forma de promover e proteger interesses
econômicos particulares. Estas associações garantiam ainda certa mobilidade
social (CROSSAN e REED, 2007: 53; LIU, 2009: 4-7). E assim sendo, esta será a
nossa primeira preocupação neste capítulo, isto é, definição e aplicabilidade
destas associações voluntárias. Apontando casos gerais e exemplos mais
específicos, sinagogas e igrejas cristãs.
Num segundo momento, iremos nos deter diretamente a estrutura das
casas-igrejas paulinas. Trabalhando com a concepção de Paulo como místico para
atestar o cristianismo paulino como culto de mistério e dentro de uma categoria
maior como uma associação voluntária. Por conseguinte, abordaremos as nuances
existentes, no que se refere às lideranças e ao batismo privilegiado por cada uma,
entre as duas cartas paulinas e a deuteropaulina analisada nesta Dissertação.

2.1. Ekklēsiai e Associações Voluntárias.


Dividiremos este tópico em dois grandes fragmentos: Fenomenologia,
Historiografia e Atestação. O motivo para este desmembramento se deve ao fato
de que as associações voluntárias amalgamam aspectos políticos, socioculturais e
religiosos. Características que nos permitem traçar paralelos nas comunidades
cristãs tanto com as ekklēsiai quanto com os diversos cultos de mistérios
amplamente disseminados na Bacia Mediterrânica.
Além disto, por intermédio destes dois subtópicos será possível apontar em
quais momentos a historiografia buscou traçar ou negar possíveis comparações
entre ekklēsiai e associações voluntárias, verificando de que forma estas
aproximações foram feitas e em que sentido. A partir daí poderemos refletir o que
ainda pode ser dito e de que maneiras estes paralelos podem iluminar a
problemática da presente Dissertação.
Concluiremos este tópico com o mais relevante dado arqueológico para este
estudo: o batistério de Dura-Europos. Sua relevância se encontra pelo seu estado
de conservação e por ser o mais antigo batistério que se tem notícia, abrindo
assim, um interessante diálogo entre Arqueologia, documentação literária e

61
historiografia para se refletir sobre o imaginário simbólico das comunidades
paleocristãs e de que arquitetura e iconografia auxiliavam na estruturação e
manutenção destas comunidades.

2.1.1. Associações Voluntárias e Ekklēsiai. Algumas considerações


Fenomenológicas.
Os primeiros estudos sobre associações voluntárias (em grego thiasoi e em
latim collegia) tinham uma leitura mais esquemática de análise, o que incidiu
sobre os aspectos jurídicos das associações. Contudo, abordagens recentes com
um viés global têm refletido e alimentado uma crescente consciência acadêmica
da natureza multifuncional das associações voluntárias. Mais significativamente,
tais abordagens têm contribuído para estabelecer decisivamente as mesmas como
um elemento fundamental na compreensão das complexidades do mundo romano
no que tange à vida cívica, ao tecido urbano, à hierarquia social e ao campo do
comércio (WILSON, 1996: 1-2; LIU, 2009: 5; CROSSAN e REED, 2007: 53).
Ao contrário de estudos anteriores que abordaram o fenômeno associativo
em termos de conflito e de controle, estudos recentes tendem a olhar mais as
interações positivas destes no contexto urbano e na sociedade em geral. A base
destes estudos deriva de paralelos feitos com instituições dos períodos moderno e
contemporâneo com o termo de associações voluntárias (ligados à democracia da
liberdade, ao pluralismo), o que acabou sendo mais um elemento para corroborar
a percepção de que muitas associações refletiam e reforçavam a existência de
uma ordem social (os cultos mitraicos formaram uma casa de conformações
sociais)49, havendo uma atividade política no que diz respeito à ligação entre
patronos e associados (WILSON, 1996: 2).
Contudo, a influência política das collegia era limitada por, normalmente,
serem organizações locais. Eles foram interligadas fragilmente apenas por uma

49
O estudo prosopográfico de collegia de magistrados foi pela primeira vez tentado por Royden (1988).
Seu estudo contribuiu em muitos aspectos na compreensão dos colegiados no que diz respeito às suas
estruturas internas e filiação composição no Império precoce. Entretanto, as evidências de Royden não
provam definitivamente a sua afirmação de que havia uma diferença entre a organização interna do
colegiado profissional e os de outras categorias, em especial, o colegiado religioso.
Joshel (1992) e Bollman (1998) apresentaram dados interessantíssimos quanto ao nível da reprodução
da lógica da vida cotidiana nas associações voluntárias empregando epigrafia e arquitetura (a partir da
reconstrução de 100 locais de encontro colegiais na Itália). As conclusões chegadas foram: (1) o grande
número de scholae foi um fator importante na paisagem de cidades como Roma, Ostia, e Puteoli; (2) A
arquitetura e mobiliário dos scholae mostram muitas semelhanças com aqueles de edifícios
"funcionários", traindo os esforços do colegiado para dar suas atividades de caráter público; (3) todas
ase scholae identificados foram projetados para ambas as atividades sociais e religiosas,
independentemente de qual categorias de colégios do scholae pertencente.

62
larga rede de trabalho, e o contato foi casual e informal50. Os dois grupos que
mais pertenceram a atividade em rede, igrejas e sinagogas, foram mais
preocupadas em proteger seus privilégios ou em encorajar circunstâncias que
chegaram a caminhar suas atividades internas sem interferências. Seus
pensamentos não chegaram a derrubar a existência de um sistema político, mas
buscaram encontrar e atender as demandas de seu nicho ou público alvo.
O que não significa dizer que não houvesse uma tentativa de resistência ou
oposição ao sistema político-social romano. Se nos voltarmos ao termo grego
e*kklhsiva, veremos que ele no cânon cristão aparece de forma esmagadora no
corpus paulino, no livro de Atos dos Apóstolos e no Apocalipse de João, o
Visionário51. Termo este que inicialmente não fazia referência ao uso religioso52,
designado para aqueles que estavam sendo chamados ou convocados. Sendo o
seu sentido mais substancial tinha o de uma Assembleia Legislativa na pólis
grega, embora possa ter tido referência também a um exército (MCCREADY,
1996: 60; ELLIOTT, 2000: 23).
Na Septuaginta53, por sua vez, a palavra e*kklhsiva ocorre mais de cem vezes
e, geralmente, representa o termo hebraico qahal54 que tem a ver com
convocados a uma assembleia. Seguindo assim, o mesmo princípio do termo
originário na pólis grega, com o diferencial que aqui estas assembleias no geral
incluíam mulheres e crianças, e toda a congregação em conjunto com algum
significado religioso.
Outra característica que revela elementos políticos e religiosos nas
associações voluntárias judaico-cristãs está em fórmulas tais como ekkle'sai en qeov
patri (“a assembleia em Deus Pai”), uma designação comum entre os primeiros

50
Sabemos de uma trupe de artistas que moveram um centro a Dionísio a outros ofertando o seus
serviços. Ver: Wilson, 1996: 3.
51
Há também o emprego do termo em Mt 16:18 e Mt 18:17, fora isso há uma abstinência completa do
mesmo nos evangelhos.
52
A e*kklhsiva grega atingiu plena maturidade no século V AEC, quando eles estavam envolvidos em
decisões sobre mudanças nas leis, a nomeação de funcionários, bem como a negociação de vários
contratos e tratados. Embora e*kklhsiva abriu com orações e sacrifícios aos deuses, seu caráter e
mandato foram principalmente político e judicial, em vez de religiosa.
53
Termo dado às traduções gregas de textos encontrados originalmente em hebraico/aramaico e
utilizadas nas comunidades judaicas helenísticas. Convém observar que estes textos originalmente em
hebraico/aramaico e depois traduzidos não são necessariamente o que conhecemos hoje como Bíblia
Hebraica e nem mesmo que havia apenas uma Septuaginta circulando nas comunidades judaicas
helenísticas. A ordem fortemente diferenciada dos livros na tradução grega e o uso quase que restrito ao
Pentateuco por Fílon sugerem que a Bíblia Hebraica ou o cânon hebraico ainda estava em construção.
A chave do estudo da Septuaginta segundo autores como Maier (2005: 70; 146-147) está na patrística e
pela história dos dogmas.
54
Deve notar-se que sinagoga ocorre mais frequentemente do que e*kklhsiva como uma tradução da
qahal.

63
cristãos e que revelava uma marca identitária, ideológica e mesmo de destino
compartilhada pelos frequentadores destes ambientes. Na epístola aos Efésios,
por exemplo, a assembleia assume uma conotação similar ao ambiente cósmico
ou celestial, algo compatível à criação e mesmo a ressurreição de Jesus (Ef 3:1-
12):
Para dar agora a conhecer aos Principados e às Autoridades nas
regiões celestes, por meio da Igreja, a multiforme sabedoria de
Deus, segundo o desígnio preestabelecido desde a eternidade e
realizado em Cristo Jesus nosso Senhor, por quem ousamos nos
aproximar com toda a confiança pelo caminho da fé em Cristo.

Na primeira epístola aos Coríntios também é possível ver o uso da


assembleia para fins de expor concepções de marca identitária, ideológica e
destino. Um bom exemplo é a historieta do corpo (1Cor 12: 12-22)55, já citada no
capítulo 1 quando apresentávamos a presente documentação (1.2.1. A Luz das
Ciências das Religiões e da Teologia), que compara a assembleia a um corpo
humano e espiritual indicando que por conta de Jesus Ressuscitado todos são iguais
e que a função de cada membro é fundamental para o bom funcionamento da
comunidade. Simultaneamente, esta comunidade ao ser capaz de se autossustentar
e garantir uma “igualdade religiosa” estava consequentemente rompendo a lógica
de controle social imperial e alterando, a priori, a unidade doméstica patriarcal
(HORSLEY, 2004: 242; FIORENZA, 2004: 223; 230-231).
Em outras palavras, muito embora Paulo afirmasse que “onde está o
Espírito do Senhor, aí está a liberdade” (2Cor 3: 17), ou ainda que nas
comunidades paulinas não havia “nem escravo nem livre, nem mulher nem
homem, nem grego nem gentio” (Gl 3: 28), é notável que nem sempre era
possível a existência de uma liberdade plena ou uma liberdade em todos os
âmbitos. O que tínhamos, na verdade, era um franco processo de hierarquização
nas comunidades paulinas em meados do século I EC. E este processo de
hierarquização deve ser entendido já como um sintoma da necessidade de
adequação aos espaços privados que agora se tornavam públicos (casas que eram
adaptadas para se tornarem igrejas).
Em finais do século I e na entrada do século II EC estes embates se
reverberam a tal ponto que encontramos elementos desta tensão entre espaços
privados que se tornam públicos nas epístolas deuteropaulinas que apresentam

55
Lembramos que como deixamos claro no capítulo 1, quando discutíamos a fonte, que esta historieta
está amplamente disseminada na Bacia Mediterrânica. Contudo, quando afirmamos que a historieta do
corpo é um ótimo exemplo para pensar de que forma na primeira epístola aos Coríntios também é
possível ver o uso da assembleia para fins de marca identitária, ideológica e destino, nos referimos a
sua forma resignificada por Paulo.

64
outro tom teológico. De natureza igual em documentações literárias latinas, tal
como a carta redigida por Plínio, o Jovem, por volta do ano 111 a 113 EC, ao
imperador Trajano comentando sobre uma comunidade judaico-cristã na Bitínia56
(Plínio, Epístolas 10.96):
Em determinados dias costumavam comer antes da alvorada e
rezar responsivamente hinos a Cristo, como a um deus; obrigavam-
se por juramento, não a algum crime, mas a abstenção de roubos,
rapinas, adultérios, perjúrios e sonegação de depósitos reclamados
pelos donos. Concluído este rito, costumavam distribuir e comer seu
alimento: este, alias, era um alimento comum e inofensivo. Praticas
essas que deixaram depois do edito que promulguei, de
conformidade com vossas instruções proibindo as sociedades
secretas. Julguei bem mais interessante descobrir que classe de
sinceridade há nessas práticas: apliquei tortura a duas mulheres
escravas chamadas diaconisas.

Por intermédio do relato de Plínio percebemos o quanto causava desconforto


a ideia de um discipulado coigual, onde mesmo mulheres escravas poderiam
desempenhar papeis proeminentes no interior das casas-igrejas. O que pode ser
entendido como uma clara inversão de poder nos ambientes urbanos, uma vez
que apesar o status jurídico e o gênero não foram elementos capazes de impedir
o desenvolvimento da função57. O que justifica também a análise de Balch, após
um extenso levantamento sobre as mulheres no mundo romano, que afirmou que
os ideais romanos acabaram por projetar uma certa crítica estereotipada dos
cultos: dionisíacos, de Ísis e judaicos, apresentados sempre como imorais e
sedutores (SHERWIN-WHITE, 1996: 708; MACDONALD, 1996: 49-52; FIORENZA,
2004: 222).
Neste sentido, se faz necessário se voltar mais atentamente a alguns
aspectos sociais que tanto as ekklēsiai quanto as associações voluntárias
comungam para melhor compreender estes jogos internos de poder de forma a
ampliar nossos olhares sobre estas questões. Começaremos apontando os
diferentes olhares ou caminhos percorridos pelos estudiosos desde meados do

56
Harnack (1908: 186-187; 210-212) nos relata que há poucos documentos sobre a difusão dos
cristianismos nesta cidade da Ásia Menor. Os dois principais documentos que remontam a Bitínia é a
primeira epístola de Pedro e o próprio documento aqui citado, a carta de Plínio. Maiores informações
sobre Bitínia provém do período de Diocleciano. Tudo o que sabemos é que Dionísio de Corinto
endereçou uma carta para Nicomédia (capital de Bitínia) por volta de 170 EC abordando sobre as
‘heresias’ de Marcião. E ainda que Orígenes esteve na região por volta do ano de 240 EC. Por
intermédio da perseguição de Diocleciano na Ásia Menor Harnack nota que Nicomédia era um local
semi-cristão, apresentando um grande número de relatos de martírios.
57
Stark (2006: 118-120) observa que a mulher cristã quando comparada com a romana acabava por
vezes por gozar de maior autonomia, pois a mulher cristã desfrutava de segurança e igualdade conjugal
bem maiores do que as de sua congênere romana. Outro aspecto estava no fato de casarem-se em idade
signitivamente avançada quando comparadas com os dados demográficos fornecidos por Keith Hopkins
que constata que a maioria dos casamentos era feitos com meninas. Além disso, as mulheres cristãs
tinham mais condições de escolher com quem contrairiam matrimônio.

65
século XIX até o momento e, por conseguinte, apresentaremos três elementos
centrais para o estudo: fronteiras, membros, ritos e iniciação.

2.1.1.1. Associações Voluntárias e Ekklēsiai. Diferentes Olhares


sobre os Aspectos Sociais.
Como dizíamos anteriormente, conexões entre associações voluntárias e as
ekklēsiai são mais interessantes e válidas quando nos voltamos para o âmbito
social, ao invés do que em qualquer relação genealógica específica. Desde
meados do século XIX alguns estudiosos buscaram traçar, de forma mais incisiva,
paralelos entre as associações e a igreja primitiva, apresentando resultados
distintos. O primeiro deles foram os pesquisadores Theodor Mommsen e Giovanni
Rossi.
Em 1843, Mommsen publicou “Concerning Roman Associations and
Sodalities”, em que lançou as bases para o estudo mais posterior do assunto. Ele
foi um dos primeiros a mostrar que grupos cristãos têm características de uma
associação voluntária. Antes de Mommsen, os estudos só tinham apontado para
as inscrições isoladas, especialmente nos debates sobre a situação jurídica das
associações.
Em 1864, o arqueólogo Giovanni Rossi lançou um interessante trabalho
intitulado “The Roman Christian Catacombs”. Nesta obra há uma intensa
investigação sobre cemitérios cristãos e a conclusão do estudo é que as
comunidades cristãs foram reconhecidas como sociedades funerárias58.
Posteriormente aos estudos acima apresentados, Ernest Renan comportou
em seu livro “The Apostles” (1866: 278-289) um capítulo sobre associações
voluntárias, abordando de que forma as associações foram restringidas pelos
imperadores. Embora o autor não apresente uma conexão direta entre os grupos
cristãos e as associações, Renan sugeriu que ambos forneciam benefícios
similares aos seus membros. E que os cristãos teriam caído sob a mesma suspeita
como as associações pelas autoridades locais (prefeitos e governadores).
Em 1876, Georg Heinrici publicou o livro “The Christian Community of
Corinth and the Greek Religious Associations”, onde comparou a igreja coríntia
com associações voluntárias, constatando, por diferentes fatores, que melhor
seria pensar a igreja coríntia como associação do que como uma sinagoga. Entre

58
Embora não haja nenhuma evidência direta para identificar o cristianismo primitivo com uma
sociedade funerária, deve-se notar 1Cor 15:29 refere-se a um batismo pelos mortos e 1Ts 4:13-5:11
apresenta a preocupação dos membros da comunidade pelos que já morreram. Hatch pensava que as
funções de bispo e de diácono tinham paralelos com a estrutura organizacional das associações
voluntárias.

66
os fatores estão: inclusão de homens, mulheres e pobres, uso da metáfora do
corpo para descrever a comunidade e o uso de termos familiares para se referir
aos membros.
Edwin Hatch em “The Organization of Early Christian Churches: Eight
Lectures, Brampton Lectures” (1881) argumentou que todos os elementos da
organização da igreja primitiva poderiam ser atribuídos às associações Greco-
romanas (por exemplo: compartilharam uma refeição comum, admissão aberta e
incluíam não só os cidadãos nascidos livres, mas também mulheres, estrangeiros,
libertos e escravos). Apresentando como principal distinção ao que Hatch chama
de caridade. Enquanto as associações foram caridosas apenas aos seus próprios
membros como uma questão de disciplina/prática, os grupos cristãos foram
estibulados em sua busca de proporcionar alívio para os pobres.
Estes trabalhos acabaram culminando num importante trabalho de Max
Radin, em 1910, intitulado “Legislation of the Greeks and Romans on
Corporations”. Nesta obra, o autor afirmou que os cristãos formaram associações
em todos os lugares, sendo impensável outra forma que não as associações como
meio de estruturação de culto estando em um mesmo patamar que outras
associações religiosas.
Desta maneira, todos os trabalhos produzidos durante o século XIX e início
do século XX59 giraram em torno da tese de que os primeiros cristãos se
organizaram a partir de associações voluntárias, que eram altamente
disseminadas na Bacia Mediterrânica e conhecidas como collegia tenuiorum ou
sociedades funerárias. Contudo, a partir de meados do século XX os estudiosos
começaram a observar que o modelo descrito por estes trabalhos era uma leitura
que visava apenas à integração e a compensação (MCCREADY, 1996: 61-62;
ASCOUGH, 1998: 82).
O primeiro trabalho a questionar de forma ambivalente a questão foi o livro
de E. Judge chamado “The Social Pattern of Christian Groups in the First Century”
(1960). Afirmando que em nível de público, os cristãos não teriam se distinguido
de outras associações não oficiais. No entanto, o autor pondera que os cristãos
careciam de uma sede para seu culto, tal como teriam os judeus.
Louis Countryman em seu artigo “Patrons and Officers in Club and Church”
(1977) publicado na Seminar Papers afirmou que as principais referências de

59
Há outros bons trabalhos produzidos nos últimos anos do século XIX e nas primeiras décadas do
século XX. No entanto nos limitamos àqueles que foram divisores de água no processo de comparação
entre associações voluntárias e comunidades cristãs. Para ver uma análise exaustiva e pormenorizada
sobre todas as publicações deste período recomendamos a leitura do belíssimo livro de Ascough (1998)
ou ainda seu artigo publicado na Journal of Early Christian Studies.

67
associação com os primeiros grupos de cristãos são: as sinagogas judaicas, o
culto mitraico e as escolas filosóficas60. Entre os pontos em comum estavam: (a)
composição restrita, mas voluntária; (b) a sua adoração de uma figura divina; (c)
refeições comuns; e (d) dependência de membros ricos para ajudar os pobres
seriam todos sugerir ao forasteiro.
Contudo, ao aprofundar a análise e correlacionar a ‘vida interna’ das igrejas
cristãs com as associações, o autor afirmou que igrejas cristãs não eram ‘típicas’
associações greco-romanos, pois apresentavam algumas diferenças profundas.
Entre elas estão:
(a) Os ricos teriam sido forçados a ajudar os pobres, porém eles não
foram honrados por fazê-lo tal como ocorria nas associações. Uma
evidência disto está no fato de existir em poucas inscrições cristãs
homenageando os patronos, em contraste com as muitas inscrições
homenageando os patronos de associação e benfeitores;
(b) As associações tinham um caráter estritamente local, estando
enraizados e norteados pela ordem social de sua cidade, sem
nenhuma autoridade externa superior ao patrono. Os grupos
cristãos, por outro lado, tiveram uma maior ligação extralocal,
tendo uma autoridade superior (ou seja, conexões por intermédio
da figura de Jesus como fundador ou "deus"), fora da congregação
local, literalmente ou na teoria.
(c) Assim como as associações o apoio financeiro das casas-igrejas
provieram de seus membros ricos61, mas ao contrário das
associações, aqueles que detinham autoridade eram os que

60
No início da década de 1970 Robert Wilken comparou associações com as escolas filosóficas,
apontando que os collegia eram associações locais raramente superior a várias centenas de membros.
Em um trabalho posterior, ele afirmou que as associações foram compostas por pessoas que viviam em
uma cidade específica e não um movimento com perspectivas regionais ou globais. O que levou
Wilken concluir que o cristianismo, por sua vez, era mais parecido com os estóicos ou epicuristas por
ultrapassar as fronteiras locais. Ele, no entanto, admitiu que em nível local e/ou de estruturação o
cristianismo estava embebido em muitos sentidos das mesmas atividades comportadas pelas distintas
associações Greco-romanas, o que o levou a concluir que o cristianismo representou uma interessante
combinação de ‘escola filosófica’ e associação voluntária.
61
É curioso observar o estudo de Liu (2009) que ao se voltar para a experiência dos membros colegiais,
constata que as honras e títulos adquiridos no microcosmo do colegiado constituíam um sistema de
"capital simbólico", que poderia ser acumulado e transmitido como herança por meio da vida colegial.
Tran pondera, porém, que os collegia representam apenas uma das redes múltiplas, em parte
complementares e sobrepostas (famílias, bairros, grupos étnicos, amigos, subdivisões cívicas, entre
outros) que os colegiados pertenciam, e que a questão da dependência econômica e social, autonomia e
solidariedade deve ser entendidas contra esta pluralidade. E assim sendo por intermédio das associações
e de seus membros, a cidade continuou a ser um marco fundamental para a construção de identidades
sociais no Império.

68
executavam cargos no interior das mesmas e não necessariamente
aqueles que proporcionavam o apoio financeiro.

Como resultado de seu estudo Countryman vislumbrou uma igreja primitiva


que era em determinados aspectos uma associação e em outros não. Os aspectos
em comum com as associações possibilitaram uma analogia social no que diz
respeito ao ingresso de novos membros e no comportamento dos novos
membros. As diferenças propiciaram o desenvolvimento em sua própria maneira,
eventualmente constituindo características próprias de identificação. Desta forma,
uma perfeita analogia entre as associações com os cristianismos caía a partir
deste trabalho por terra.
Wayne Meeks em 1983 publicou o seu influente livro “Os Primeiros Cristãos
Urbanos”. Nele Meeks apontou para uma série de semelhanças entre as
associações voluntárias e Igrejas cristãs, são elas: (1) ambas foram pequenos
grupos com intensivas interações face a face; (2) a associação foi criada para que
o associado adentrasse livremente, independentemente de algum critério de
nascimento ou algo do gênero. Embora os fatores de conexão étnica, classificação
e profissional por vezes fizessem parte da realidade das mesmas; (3) ambas
delegam um papel fundamental, na prática cotidiana dos membros, aos rituais e
atividades de culto, refeições comuns e atividades "fraternais"; (4) com base nas
regras de enterro e comemorações das associações voluntárias e as referências
como 1Ts 4:3-5:11 ou 1Cor 15:29, sugerem que ambas tinham uma preocupação
para o enterro dos mortos; (5) ambas eram dependentes da benevolência de
clientes ricos e (6) ambas parecem terem tido a aparência de uma governança
interna democrática, imitando a pólis clássica na organização, eleições e tomada
de decisão, embora nos grupos cristãos esta última foi complicada por conta do
papel delegado ao espírito carismático62.
Com base nisto, Wayne Meeks vai além e afirmou que havia dois tipos de
agrupamentos no interior dos grupos cristãos, são eles: (a) cristãos no que diz
respeito apenas a outras divindades, mas não nos demais aspectos da vida social
e (b) cristãos por ligações translocais.

62
Barton e Horsley usaram sua longa análise de uma inscrição Filadélfia (SIG3 985) para apontar
algumas semelhanças que desde o princípio o cristianismo primitivo compartilhou com grupos de culto,
chegando a uma conclusão similar ao de Meeks. Entre elas estão: (1) ambos eram compostas da adesão
"voluntária" e contou com a cooperação e hospitalidade; (2) ambos os tipos de grupos foram fundadas
por iniciativa privada e membros atraídos através da sua oferta de segurança e de salvação em um
período de incertezas sobre as instituições tradicionais; (3) no campo das diferenças está o caráter
global dos grupos cristãos, em contraste com a natureza localizada das associações. Para um maior
aprofundamento ver Ascough, 1997: 226-227.

69
A partir desta subdivisão de Meeks e embebido dos comentários Wilken63,
Ascough (1997, 1998) ponderou que por intermédio dos comerciantes de outros
cultos64 e a compreensão do cristianismo como uma das múltiplas vertentes do
judaísmo, era possível perceber que os paleocristianismos não foram uma
exceção. Muito pelo contrário, a epigrafia e a arquitetura nos revelam que
algumas associações de voluntários na Antiguidade tinham ligações translocais e
que grupos cristãos foram mais de base local do que é frequentemente assumido.
Ascough sinalizou ainda que a base primária para as associações era local, mas
que se pode argumentar que isto seria igualmente verdade para os grupos
cristãos. Congregações cristãs e associações voluntárias eram compostas por
grupos de base local com conexões translocais limitadas. A eliminação da falsa
dicotomia entre associações locais e de um pelocristianismo translocal permite

63
Wilken pondera uma dupla dinâmica entre as associações voluntárias: as que tinham um caráter
“internacional” e as locais. Sendo o cristianismo, para ele, um caso clássico de uma associação
“internacional”, cujos adeptos viveram em todo o mundo mediterrâneo e compartilharam uma confissão
religiosa e estilo de vida comum.
64
Uma investigação das evidências de associações voluntárias mostra que havia, de fato, ligações
translocais mais fortes entre algumas associações do que muitas vezes é admitido. O testemunho das
associações voluntárias é epigráfico, e assim, por natureza dispersa geograficamente e temporalmente,
mas há evidências suficientes para sugerir que muitas associações tinham um histórico de ligações
translocais que não tinham morrido pelo primeiro século da Era Comum.
O lugar mais óbvio para começar quando se investiga ligações translocais entre as associações é olhar
para os grupos de estrangeiros (pessoas de um mesmo grupo étnico que vivem em outro ambiente), já
que muitas vezes mantiveram os cultos e costumes de sua terra natal. Estes grupos nos são úteis por
duas razões: o primeiro aspecto está na quantidade de contato com sua terra natal pode iluminar nossa
discussão. Em segundo lugar, os estrangeiros eram muitas vezes os comerciantes ou artesãos, em outras
palavras, justamente aquelas pessoas que são atestadas em numerosas inscrições associação.
Um bom exemplo de culto amplamente disseminado ao longo do Império, inclusive na cidade de Éfeso,
é o culto de Ísis e Seráfis que permaneceu sob o controle dos alexandrinos e egípcios mesmo durante o
período de sua maior expansão. Estes cultos nunca formaram fortes laços cultuais e iconográficos
latinizados, mas sempre acumulados para os templos do vale do Nilo. Por exemplo, em Delos
observamos de que forma o culto a Seráfis, fundado no século III AEC por Apolônio, o Velho,
permaneceu privado e "egípcio" por mais de um século. Durante todo este tempo, o associação manteve
laços com o Egito, como testemunhado na seguinte inscrição, datada do século II AEC:
“O sacerdote Apolônio tinha gravado de acordo com o comando de deus. Nosso avô Apolônio, um
egípcio da classe sacerdotal, tendo seu deus trouxe com ele do Egito, continuou a fazer o serviço (para
seu deus), de acordo com a tradição e supostamente viveu até noventa e sete anos de idade. (IG XI /
1299 4)”.
Em Atenas, por sua vez, observamos algo análogo. A associação de Saráfis foi aberta aos atenienses,
que assumiu as funções administrativas, mas os egípcios mantiveram os aspectos religiosos. Uma
associação em Priene (Ásia Menor) estipulou que o sacerdócio ficasse a cargo de um egípcio para que
os ritos fossem realizados corretamente (I.Priene 195, cerca do ano 200 AEC).
Isto nos sugere duas coisas: que nem todos os sacerdotes dos cultos de Saráfis e de Ísis foram egípcios e
que não há, no entanto, alguma ligação com Egito. Mais significativamente, um adepto do culto de Ísis
e Sarapis foi capaz de viajar por todo o Império e ser recebido no local por um grupo de seguidores de
Ísis ou Saráfis. Para maiores detalhes ver: Ascough, 1997: 230-232 e Horden e Purcell, 2000: 400-402.

70
uma utilização mais rentável das associações voluntárias como uma analogia para
compreender a formação e organização dos grupos cristãos65.
Neste sentido, cabe olhar mais atentamente três aspectos sociais centrais
para reforçar a análise de Ascough, por serem eles os responsáveis pela marca
identitária e a unidade, são elas: fronteiras, filiação, ritos de iniciação.
Analisaremos abaixo cada um destes elementos:

1º) Filiação.
Em linhas gerais podemos apontar quatro características para o processo de
filiação e identificação:

(1) Status social multidimensional.


Os membros das casas-igrejas provieram de uma seção transversal da
maioria da sociedade Mediterrânica (1Cor 1: 26-29):
Vede, pois, quem sois, irmãos, vós que recebestes o chamado de
Deus; não há entre vós muitos sábios segundo a carne, nem muitos
poderosos, nem muitos de família prestigiosa. Mas o que é loucura
no mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios; e, o que é
fraqueza no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte;
e, o que no mundo é vil e desprezado, o que não é, Deus escolheu
para reduzir a nada o que é, a fim de que nenhuma criatura se
possa vangloriar diante de Deus.

O passo acima é central para o debate, pois foi a partir dele que se fizeram
muitas extrapolações sobre a afirmação paulina, a começar pela escola marxista
que por vezes entendeu o cristianismo originário, e mais especificamente as

65
Tomando como base os conceitos de interdependência, conectividade e redistribuição de Horden e
Purcell, fiz uma análise breve, mas com conclusões bastante similares a de Ascough para o caso dos
cristianismos paulinos. Para a experimentação me centrei em três eixos que considerei fundamentais
para compreender as relações internas e externas das comunidades paleocristãs paulinas, são elas: 1)
modelo de projeto de Reino de Deus que se propunha como alternativo ou rival ao Império Romano. Os
seguidores de Paulo independentemente de onde estivessem, desde que comungassem das ideias de
Paulo estariam fazendo parte do universo proposto pelo apóstolo. Além de que sua agenda se propõe
‘universalizante’ e com anseios de substituição do modelo vigente, o não rompimento de Paulo com o
judaísmo, em outras palavras, o cristianismo de Paulo é mais uma vertente do judaísmo, o que insere os
seguidores de Paulo numa rede ainda maior: os judeus, sejam os que estavam na região da Palestina
sejam aqueles que estavam na diáspora) Em 2 Cor 8:1-12 Paulo agradece aos ‘cristãos’ da Macedônia
pelas doações feitas aos “santos”, um indicativo de que as associações paleocristãs buscavam ajudar os
que gozavam da mesma marca identitária que a sua em outras partes do Império Romano) as viagens
missionárias, amplamente relatadas por Paulo, sejam as suas próprias ou a de outros ‘irmãos
missionários’ que, como ele, circulavam pelas comunidades (2 Cor 11: 23-33; Gl 2: 4), ou ainda o
registro de casos em que Paulo solicita hospitalidade (1Cor 4: 17; Rm 16: 1-2). Para um maior
aprofundamento ver: Cavalcanti, 2014: 47-54.

71
comunidades paulinas, como um movimento religioso exclusivamente dos
estratos mais baixos66:
A história do cristianismo primitivo tem notáveis pontos de
semelhança com o moderno movimento operário. Como este último,
o cristianismo era originalmente um movimento de pessoas
oprimidas: ela apareceu pela primeira vez como a religião de
escravos e escravos emancipados, de pessoas pobres privados de
todos os direitos, dos povos subjugados ou dispersos por Roma.
Tanto o cristianismo quanto o socialismo operário pregam a futura
salvação da escravidão e da miséria. O lugar de salvação do
Cristianismo está numa vida além, depois da morte, no céu. No
socialismo coloca-se neste mundo, em uma transformação da
sociedade. Ambos são perseguidos e iscas, seus adeptos são
desprezados e feitos de objetos de leis exclusivas, a primeira como
inimigos da espécie humana, o último como inimigos do Estado, da
religião, da família e da ordem social. E, apesar de toda a
perseguição, ou melhor, até mesmo estimulado por ela, eles forjam
vitoriosamente e irresistivelmente à frente.

A fala de Engels é reveladora, pois ignora por completo a afirmação de Paulo


de que “não há entre vós muitos”, tomando afirmação como se não houvesse
nenhum. E mais do que isto, acaba propondo ainda um comportamento, em tese,
de igualdade ou como diria Richard Horsley uma sociedade alternativa ao modelo
vigente, o que levou em muitos aspectos a diferentes autores, como vimos
anteriormente, a ponderar que as comunidades cristãs estavam causando uma
completa ruptura com as normas e práticas disseminadas na Bacia Mediterrânica.
Contudo, por intermédio do conceito de translocalidade sugerido em
primeiro lugar por Meeks e aprofundado por Ascough percebemos que o
movimento paulino deve ser estudado em camadas e que “as leis que o
perseguiam”, como nos diz Engels não foram exclusivamente para os cristãos.
Mas para todo e qualquer culto e/ou associação que não se enquadrasse aos
interesses imperialistas romanos, sendo encarados como reuniões de cunho
secreto e descontrolado e por isto mesmo eram tidas como alfobres de
imoralidade e sedição (CROSSAN e REED, 2007: 30-32; STARK, 2006: 41-42;
MEEKS, 1992: 120).
Outro aspecto que nos chama atenção é que a adesão se dava por
intermédio de uma decisão livre de se associar e não por nascimento, embora
fatores de conexão étnica, de classe e de ofício67 muitas vezes fossem

66
O primeiro autor a salientar que estava ocorrendo um radicalismo na interpretação do excerto e do
movimento paleocristão como um todo foi E. Judge (1960), assinalando que no Mediterrâneo Oriental,
era patente que os membros da aristocracia não se vinculassem a uma associação de culto local, além de
representarem uma parcela minoritária da sociedade.
67
Outro indício de que as comunidades paulinas estavam ligadas a proximidade do ofício está na
questão de Paulo e membros como Priscila e Áquila serem apontados nas cartas paulinas e por Atos dos

72
importantes como contexto para as associações. Tanto as associações quanto os
grupos paleocristãos incorporavam pessoas que se dedicavam a um ofício ou a
um ramo comercial em comum (1Cor 9: 19-23):
Ainda que livre em relação a todos, fiz-me o servo de todos, a fim
de ganhar o maior número possível. Para os judeus, fiz-me como
judeu, a fim de ganhar os judeus. Para os que estão sujeitos à Lei,
fiz-me como se estivesse sujeito à Lei – se bem que não esteja
sujeito à Lei –, para ganhar aqueles que estão sujeitos à Lei. Para
aqueles que vivem sem a Lei, fiz-me como se vivesse sem a Lei –
ainda que não vive sem a Lei de Deus, pois estou sob a lei de Cristo
–, para ganhar os que vivem sem a Lei. Para os fracos, fiz-me fraco,
a fim de ganhar os fracos. Tornei-me tudo para todos, a fim de
salvar alguns a todo custo. E, isto tudo, eu o faço por causa do
evangelho, para dele me tornar participante.

O excerto permite vislumbrar falas de autores como McCready (1996: 63)


que afirmam que os paleocristianismos atravessaram fronteiras sociais, mas
também salientou a igualdade dos membros em relação a requisitos de admissão
e manutenção de membros dentro da organização. Características comuns não só
dos grupos cristãos, mas também de associações privadas.

(2) Linguagem.
As expressões adotadas por Paulo frente aos membros de sua comunidade
sempre enfatizando laços pessoais, amor fraterno, de cumprimentos com um ósculo
santo, a preocupação com o bem-estar dos membros da comunidade e assim por
diante, ressaltam a coesão interna ou estímulo às ekklēsiai. Esta característica é
ainda mais importante quando comparadas às referências locais e/ou geográficos e
às inúmeras comunidades locais unidas em um trabalho coletivo.
Todavia, a linguagem também permite vislumbrar o tom que Paulo assume
frente aos seus seguidores e que nos permite questionar se a unidade constituída
nestas comunidades era de fato igualitária. Dois exemplos são chaves para pensar
a proposta paulina, a primeira delas está nas diferentes tentativas de Paulo em se
colocar como um portador ‘legítimo’ do falar de Jesus, como se lê abaixo (1Cor 3:
1-4):
Quanto a mim, irmãos, não vos pude falar como a homens
espirituais, mas tão-somente como a homens carnais, como a
crianças em Cristo. Dei-vos a beber leite, não alimento sólido, pois
não o podíeis suportar. Mas nem mesmo agora podeis, visto que
ainda sois carnais. Com efeito, se há entre vós invejas e rixas, não
sois carnais e não vos comportais de maneira meramente humana?
Quando alguém declara: "Eu sou de Paulo", e outro diz: "Eu sou de
Apolo", não procedeis de maneira meramente humana?

Apóstolos (18: 2-3) como artesãos, amigos e companheiros de trabalho. Para maiores detalhes ver:
Crossan e Reed, 2007: 287-288, Theissen, 1988: 75-79 e Murphy-O’Connor, 2004: 28-33.

73
Ao fazer menção à expressão criança Paulo se apresentou com
características paternalistas para com os coríntios, pois teria sido o responsável
por ter levado para eles a boa nova. Estas características remetem a atitudes
patronais, em que o patrono é aquele que possibilita condições mais favoráveis,
tem plenas condições de amparar e, de ainda proteger aquele que se coloca como
seu cliente. E por sua vez, tal como já vimos no capítulo 1, o cliente deve
obediência e lealdade para com seu patrono. Postura esta que os membros da
assembleia aparentemente não estavam tendo dado as disputas entre si devido a
sua condição social ou aos dons.
Outro exemplo coloca-se quando Paulo afirma que iria enviar Timóteo seu
“filho amado e fiel ao Senhor” (1Cor 4: 17). Era comum no mundo romano
ocorrer um pedido por parte do patrono ao cliente de hospitalitas a pessoas
conhecidas do patrono. Devendo este ser tão bem tratado como o deveria ser o
patrono. Chevitarese (2011: 123-135) ao fazer um estudo comparado entre as
cartas de Cícero e a epístola à Filemon nos dá alguns indícios, também, da
habitualidade desta recomendação e serviço.
Outro aspecto que deve ser levantado é que Timóteo era também cliente de
Paulo, primeiramente pelo modo como Paulo se refere a Timóteo. Saller (1989:
50-52), em seu estudo linguístico sobre os termos empregados na relação
patrono-cliente nos textos de Plínio, o jovem e Cornélio Rufio, percebe certa
proximidade entre os agentes a tal ponto de haver tratamentos ternos entre os
mesmos.
O segundo aspecto que reforça a ideia de Timóteo ser cliente de Paulo está
no fato dele ir a Corinto para levar as recomendações de Paulo. Demonstrando
que seu patrono tem total confiança em seu cliente. A postura preservada nessa
carta paulina nos parece análoga ao comportamento de Cícero no caso estudado
por Chevitarese. Em que alguns trechos são realçados a postura de confiança de
Cícero em seu escravo para entregar a carta ao destinatário. Isto nos faz ver que
mais uma vez Paulo em nenhum momento rompeu com a realidade a qual viveu
estando, na verdade, em pleno diálogo.
Na epístola aos Efésios este modelo patronal só é ainda mais acentuado.
Aqui vemos também o autor de Efésios enviando alguém de seu discipulado à
comunidade para reportar exortações e recomendações do apóstolo (Ef 6: 21-22),
além de endossar uma estrutura hierarquizada no interior da comunidade (Ef 3:
1-9):
Por essa razão, eu, Paulo, o prisioneiro de Cristo por amor a vós, os
gentios... Certamente sabeis da dispensação da graça de Deus que
me foi dada a vosso respeito. Por revelação me foi dado a conhecer

74
o mistério, como atrás expus sumariamente: lendo-me, podeis
compreender a percepção que tenho do mistério de Cristo. Às
gerações e aos homens do passado este Mistério não foi dado a
conhecer, como agora revelado aos seus santos apóstolos e
profetas, no Espírito: os gentios são coerdeiros, membros do
mesmo Corpo e coparticipantes da Promessa em Cristo Jesus, por
meio do evangelho. Desse evangelho me tornei ministro, pelo dom
da graça de Deus que me foi concedida pela operação do seu poder.
A mim, o menor de todos os santos, me foi dada esta graça de
anunciar aos gentios a insondável riqueza de Cristo e de pôr em luz
a dispensação do mistério oculto desde os séculos em Deus, criador
de todas as coisas [...].

A argumentação para a manutenção da autoridade paulina começa pelo uso


da expressão egocêntrica “eu, Paulo” (em grego egō). Expressando uma
autoconsciência de si como apóstolo (ou de seu ministério, como aparece acima)
e de detentor do direito ‘legítimo’ de ser porta-voz do falar de Jesus que é pouco
frequente nas epístolas autênticas, uma vez que nestas não há a alusão de que
Paulo é portador de uma qualidade individual inerente ou presumida tal como
aparece no passo acima (BARTH, 2008: 327).
Outro ponto a ser observado é a utilização de um mistério que foi apenas
revelado aos “santos apóstolos e profetas” como forma de garantir poder apenas
a alguns membros da comunidade e estes profetas e apóstolos são os
encarregados de revelar o mistério aos demais. O emprego do termo oikonomiā
(ministro) reforça o modelo de hierarquização: de um lado os clientes e de outro
o patrono, em que a cadeia estabelecida girava em torno de Deus para Cristo, de
Cristo para Paulo e de Paulo para a assembleia. Um modelo visto pelos
paleocristãos como melhor que o do Império Romano, mas que nem na prática
nem na teoria se distanciavam das relações estabelecidas entre Roma e seus
potentados (BARTH, 2008: 329-330; CROSSAN e REED, 2007: 271-272).

(3) Estrutura Familiar.


De imediato a citação abaixo:
A mudança de casas igrejas para basílicas públicas coincidiu com
uma mudança crucial em aspectos sociais e práticas religiosas no
movimento cristão. Os cristãos não foram os únicos a adaptarem e
renovarem construções privadas para cultos. Assim, devemos dar
também uma atenção especial as pinturas do largo contexto cultural
das construções e adaptações, especialmente na diápora judaica e
no mitraismo romano (White, 1990: VII).

Uma década após a crucificação de Jesus, a cultura aldeã da


Palestina tinha ficado para trás, e as cidades greco-romanas
tornaram-se o ambiente dominante do movimento cristão. (Meeks,
1983: 11)

75
Estas duas citações são bastante significativas, pois elas são úteis para
pensar sobre o elemento social básico das comunidades paleocristãs em meio
urbano: o espaço físico das reuniões. Além disso, se nos voltarmos para qualquer
texto do corpus paulino veremos com frequência o emprego da expressão he
kat’oikon (entre elas estão: 1Cor 1: 16, 1Cor 16: 15, 1Cor 16: 19, Rm 16: 5, Fm 2
e Cl 4: 15). Por intermédio do dicionário Bailly (1950: 605) sabemos que o termo
grego oikon pode se referir: a casa, a família e a casa ‘alojamento’, bem como a
uma rede social refletida em um ambiente familiar. O crescimento dos
paleocristianismos, neste sentido, pode estar diretamente relacionado ao ingresso
de famílias inteiras se tornando coletivamente parte do movimento. O que implica
em dizer que é necessário se levar em conta em nossos estudos à dimensão
familiar nos estudos das comunidades paulinas como associações voluntárias
(MEEKS, 1992: 121; MCCREACY, 1996: 64).
Para atestar assertiva acima se faz necessário problematizar a arquitetura
destes ambientes privados. Em outras palavras, para tal é eficaz se fazer as
seguintes indagações: Será possível reconstruir o tipo de ambiente doméstico em
que Paulo e seus seguidores estabeleciam as ekklesiai? A Arqueologia pode
restaurar este tecido interno das cidades romanas? E ainda, somos capazes de
traçar, por meio de vestígios arqueológicos, uma imagem do tipo de unidade social
e familiar em torno do qual os edifícios foram construídos?
Estas mesmas perguntas foram feitas por Andrew Wallace-Hadrill (2003: 4)
quando resolveu estudar as estruturas familiares à luz das estruturas internas de
Pompéia. Sua conclusão foi de que era importante postular uma densidade
significativamente maior por agregado familiar do que se costumou pensar e que o
modelo que se deve ter em mente não é de uma domus romana como uma unidade
unifamiliar, mas o de uma grande casa que comporta pais, filhos, escravos e outros
membros ligados à família central, por relações que podem variar de
relacionamento e dependência para arrendamento comercial.
Estas afirmações de Hadrill conjuntamente com as citações de abertura do
presente subtópico nos fazem pensar que há dois momentos distintos na história
arquitetônica do movimento cristão (entre os séculos I a IV EC): de um lado as
casas-igrejas do período paulino, do outro, a basílica da época de Constantino68.

68
O mecenato adotado pelo imperador Constantino e sua mãe Helena Augusta contribuiu e muito para
a proliferação do edifício monumental das unidades religiosas, tanto em Roma como em Jerusalém.
Além de adotar a nova construção eles também apoiaram a restauração e renovação de edifícios
existentes em estilo basilical. Esta monumentalização sob a égide de Constantino oferece ao historiador
um marco para muitas facetas do desenvolvimento no início do cristianismo. A basílica cristã tomou o
seu lugar ao lado da arquitetura monumental pública do Estado. Ao mesmo tempo, não se pode deixar

76
Um marca o período originário e de identidade fluida. O outro, uma idade de
emergência de uma religião de Estado. Os próprios pontos de referência
apresentam poucos problemas de reconhecimento na superfície. Embora seus
contrastes sejam facilmente identificáveis, é por meio de um refinamento e
sofisticação histórica que se observa que estes marcos demonstram momentos
simbólicos em um processo mais gradual de mudança. O problema que se coloca é
a reconstituição mais detalhada das linhas sutis de desenvolvimento, bem como o
processo de mudança nas variáveis social e histórica, que para nós já é suscetível
entre os séculos I e II EC (WHITE, 1990: 3-4; HADRILL, 2003: 6-7).
Tanto o processo quanto o período de tempo de desenvolvimento, a partir
de casa-igreja para basílica, são cruciais para a compreensão da história dos
paleocristianismos. Foi o período de formação e cristalização da maioria dos
aspectos de culto, teologia, ética e organização, durante o qual o movimento
cristão chegou a ter a sua forma e identidade reconhecível. Em outras palavras, foi
o período em que o cristianismo deixou de ser uma vertente do judaísmo, para se
tornar uma nova religião. Buscando concomitantemente singularizar uma vertente
em meio a tantas existentes desde o princípio, ou melhor, um esforço de
autodefinição. Mudanças fundamentais na natureza e definição de assembleia
cristã, portanto, são de mais importância do que uma análise isolada do
desenvolvimento da arquitetura. Eles estão inextricavelmente ligados a todos os
aspectos da prática cristã, precisamente porque a montagem e adoração estavam
no centro da experiência religiosa, bem como a expansão social do movimento
(HUMPHRIES, 2008: 89-90; STRINGER, 2005: 28-29).
Contudo, esta preocupação ainda é pouco explorada pelos historiadores de
forma geral, sendo um trabalho feito quase que em sua totalidade por historiadores
da arte, que por sua vez também não exploram o âmbito transdisciplinar, deixando
algumas questões sociológicas de lado. O primeiro pesquisador a se preocupar com
esta questão foi Giovanni de Rossi69, citado quando apresentávamos uma breve
revisão historiográfica sobre as associações voluntárias e as assembleias
paleocristãs, que estimulou a arqueologia cristã em meio ao século XIX por
intermédio do estudo de arte e arquitetura romana.

de notar as enormes diferenças com o movimento cristão marcado pelas mudanças da arquitetura do
século IV a partir do período das origens (WHITE, 1990: 3-4; HADRILL, 2003: 6-7).
69
Grande parte do material para esta discussão veio das crescentes descobertas arqueológicas em Roma
e no Oriente Médio durante os séculos XVIII e XIX. Neoclassicismo e estética pós-renascentista foram
amparados pelo surgimento da escola romana de início de arqueologia cristã, especialmente associado
com o nome de Giovanni Batista de Rossi. Esse período trouxe exploração inicial de ambas as
catacumbas e níveis subterrâneos de igrejas e catedrais.

77
Harnack foi outro importante pesquisador nesse campo, publicando no final
da primeira década do século XX a obra “The Mission and Expansion of Christianity
in the First Three Centuries”. Este livro é considerado ainda hoje um relevante e
exaustivo estudo sobre arquitetura cristã, sendo o primeiro a fazer um intenso
diálogo entre história e teologia. Apresentando fortes indícios sobre de que forma a
arquitetura das igrejas paleocristãs contribuíram para mudanças teológicas e
comportamentais destes grupos.
O contexto pós-Primeira Guerra Mundial contribuiu muito para os avanços no
campo da arqueologia cristã, pois foi a partir deste momento que pesquisadores
passaram a se voltar para o subterrâneo das igrejas romanas. O projeto liderado
por Richard Krautheimer visava vislumbrar e refletir sobre as diferentes camadas
estratigráficas, rastreando desde o mais antigo estrato de construção pré-cristã
para a construção e reconstrução de basílicas medievais em estilos sucessivos.
Entretanto, a mais importante e relevante descoberta arqueológica que abriu
a possibilidade de se pensar o impacto da arquitetura no movimento cristão só viria
com as escavações iniciadas entre os anos de 1921-1922 na cidade de Dura-
Europos, pela expedição arqueológica conjunta da Universidade de Yale e da
Academia Francesa de Letras, onde se encontrou, em 1931, uma interessante
evidência para a forma física de um edifício e sua renovação para o uso cristão
(HUMPHRIES, 2008: 91).
A cidade encontra-se localizada na atual Síria e foi fundada pelos selêucidas,
na fronteira com o rio Eufrates, tendo se tornado posteriormente uma cidade
romana. Durante os três primeiros séculos de sua existência, Dura-Europos cresceu
para ser um grande centro regional urbano, comportando comércio e administração
regional para as ricas terras agrícolas da Mesopotâmia do outro lado do rio, os
assentamentos menores ao longo do Eufrates e as comunidades pastorais da
estepe circundante. Comportando ainda diferentes templos, o que fomentava uma
alta circularidade de pessoas e alimentos. Sendo empregada como um importante
forte no período romano (Figura 6).

78
p

Figura 6: A cidadela e a casa escavação com vista para o rio Eufrates e Mesopotâmia além. Chama
atenção o seu entorno estrutural. Obtido em: http://www.le.ac.uk/ar/stj/dura.htm#shape

As medidas da cidade cerca de um quilômetro do norte para as ravinas do


sul, e é de até 700 metros das falésias do rio para a parede "deserta", uma área de
mais de 50 hectares. Uma extensa necrópole de túmulos bem elaborados
espalhados sobre a planície, a oeste da cidade. Fora do Portão Palmira havia um
enorme depósito de lixo. Dentro das muralhas, muitos dos mais importantes
vestígios arqueológicos visíveis pertencem às últimas décadas de Dura-Europos. A
cidade tornou-se cada vez mais dominada pela presença do exército romano, que
teve ao longo de muitos edifícios e toda a parte norte da cidade como um
acantonamento guarnição, enquanto sua economia aparentemente foi prejudicada
por constantes guerras e o rompimento do comércio a descida do rio em território
persa. No entanto, paradoxalmente, com os recém-chegados das províncias

79
romanas, a rica mistura cultural da vida na cidade foi ficando cada vez mais
cosmopolita (Figura 7).

Figura 7: Dura-Europos, com vista para o rio Eufrates (canto superior direito). Disponível em:
http://www.le.ac.uk/ar/stj/dura.htm#late

Em 1931 os arqueólogos escavaram a mais antiga construção cristã datada


por volta do ano 231-232 EC, período em que a edificação foi remodelada para uso

80
cristão70. Foi encontrada ainda uma casa de culto ao deus persa Mitra e uma
sinagoga decorada pesadamente, o que levou aos estudiosos a repensarem sobre
os pressupostos tradicionais das origens e do desenvolvimento da sinagoga e da
diáspora judaica. Em todos estes casos o que se verificou que anteriormente eram
casas e que passaram por adaptações para se tornarem ambientes de culto71.
Significativamente, em todos os três casos encontrados em Dura-Europos a
renovação inicial para o uso religioso não fez nada para que se retirasse o caráter
doméstico básico do prédio existente. Conforme é possível ver nas Figuras 8 e 9,
apenas o ambiente 4 sofreu maiores intervenções (sendo fragmentado em dois
novos cômodos).
Neste sentido, Dura-Europos nos permite examinar: os diferentes elementos
que compõem o edifício, a interpretar o seu desenvolvimento a partir de casa
privada à igreja, a entender as atitudes dos cristãos de Dura-Europos para iniciação
e os sentidos dados aos textos a partir dos assuntos escolhidos para o ciclo de
afrescos no batistério72 e ainda a especular quanto ao perfil social da comunidade
que utilizou o edifício. Ainda que a construção cristã não tenha sido utilizada como
residência depois de sua reforma (HUMPHRIES, 2008: 92-94; WHITE, 1990: 102-
14; WHITE, 1997: 10-12).
Além disso, ao colocar em paralelo a casa-igreja cristã com a sinagoga, o
templo de Mitra e a arquitetura da divindade Gaddē Palmyrene poderemos ver a
casa-igreja cristã não só em termos de sua singularidade, como uma igreja pré-
constantiniana bem preservada, mas também que os cristãos locais seguiram uma
estrutura pré-existente de remodelação para atender suas necessidades. Ou
melhor, os cristãos de Dura-Europos seguiram um procedimento de adaptação
arquitetônica já exercido por outros grupos religiosos na cidade. Assim, tornando-
se uma igreja em um sentido mais formal. Não se pode, portanto, ser empurrado
para trás como um exemplo ou modelo das igrejas domésticas do século I EC.
Assim, essas descobertas exigem nova avaliação no âmbito do desenvolvimento
local de interesse da igreja casa para a basílica e sugerem que não podemos olhar

70
A datação se deu por intermédio de uma camada de gesso encontrada onde especificava o ano de 544
da era selêucida. Ver: Humphries, 2008: 92 e White, 1990: 132.
71
Curiosamente estratos de ocupação cristã encontrados sob a basílica de São Clemente também
indicaram que o edifício foi imediatamente ao lado de uma casa que tinha um pequeno estabelecimento
mitraico instalado no piso térreo.
72
Como veremos mais adiante em Dura-Europos encontra-se também o mais antigo batistério que se
tem notícia.

81
para a evidência cristã de forma isolada do uso religioso da arquitetura privada no
ambiente cultural romano73.

Figura 8: Plantas Baixas da Casa em Dura-Europos sinalizando os estágios anterior e posterior a


reforma. Fonte: WHITE, L. The Social Origins of Christian Architecture. Building God’s House in
the Roman World: Architectural Adaptations among Pagans, Jews and Christians (Vol 1).
Valley Forge: Trinity Press International, 1990.

73
Um problema análogo de contextualização é apresentado pelos edifícios eclesiásticos, variando em
data a partir do quinto século nas regiões de planalto da Síria. Os restos espetaculares, como os do
mosteiro de Qal'at Si'man construído em torno do pilar sobre o qual o monge St Simeon Stylites
despendeu por muitos anos. Ver: Humphries, 2008: 92 e White, 1997: 140.

82
Figura 9: Plantas Isométrica, sentido AA’ (Horizontal), da Casa em Dura-Europos sinalizando os estágios
anterior e posterior a reforma. Fonte: WHITE, L. The Social Origins of Christian Architecture.
Building God’s House in the Roman World: Architectural Adaptations among Pagans, Jews and
Christians (Vol 1). Valley Forge: Trinity Press International, 1990.

(4) Atividades educacionais.


Por intermédio de evidências textuais e arqueológicas, apresentadas no
subtópico acima ficou claro que os grupos cristãos se reuniam em ambientes
domésticos. Uma adaptação da casa para o culto, não implicava apenas em
mudanças estruturais, mas também na forma como o grupo iria se relacionar entre
si na prática cotidiana da assembleia, bem como fora desta. Para isto, os membros
das comunidades paulinas foram estimulados a atividades educacionais.

83
Estas atividades estão intimamente ligadas à tensão que as casas-igrejas
estabeleceram entre público e privado, uma vez que, os cristãos eram inseridos em
uma rede de relacionamentos já existentes ou sobrepostos a ela. Estes
relacionamentos poderiam abarcar tanto níveis internos (parentesco, clientela, e
subordinação) quantos externos (laços de amizade e ligações decorrentes da
ocupação). O ambiente da casa implica em um local de encontro, privacidade,
intimidade e estabilidade de lugar. Entrementes, ao abrigar os cultos cristãos estes
ambientes abriram espaço para o surgimento de rivalidades entre diferentes grupos
(1Cor 1-4).
O espaço propiciou ainda alguns conflitos no exercício do poder e na
interpretação das funções da comunidade. A estruturação da casa era hierárquica e
o pensamento político e moral encaravam a estrutura das funções superiores e
inferiores como sendo básica para o bem-estar de toda a sociedade (MEEKS, 1992:
123).
Contudo, por intermédio das cartas autênticas e vestígios arqueológicos
podemos perceber que as comunidades cristãs se constituíram, num primeiro
momento, como uma sociedade de coiguais. Ou melhor, abriram espaço para que
mulheres e escravos passassem a desempenhar papeis de destaque dentro destas
comunidades, aspectos que por vezes incomodaram as sociedades locais, como no
caso de Plínio, o Jovem que relatou o seu desconforto ao imperador de ver duas
escravas exercendo a função de diaconisas.
Peter Lampe (2003: 77) por intermédio da aplicação de princípios da
psicanálise sobre a tensão estabelecida entre realidade construtiva,
intersubjetividade e contexto mental, observa que as comunidades cristãs paulinas
ao abolirem diferenças entre escravos e livres, homens e mulheres, acabou por
mudar o paradigma social mediterrânico. Nas igrejas domésticas e nas interações
dos cristãos entre si, tais diferenças mundanas são consideradas irrelevantes, de
modo que um seja igual ao outro. Isto é o que se entende por "todos vocês são
um" (εις). Vocês são todos juntos uma única e mesma; nada o diferencia.
O batismo (e a existência pós-batismal) de Paulo, neste sentido, se refere à
compreensão cristã da realidade que o iniciado passa a compor, uma vez que todo
o batizado, independentemente de sua condição terrena, passa a ter a garantia da
mesma proximidade com Cristo. Todavia, esta proximidade com o Jesus
Ressuscitado e o novo contexto social não significou o fim da realidade ‘mundana’
(ou helenística romana) que os membros viviam ao percorrerem as ruas ou
mercados da cidade. Fora do ambiente das casas-igrejas eles trabalharam como
escravos, viveram conforme a sociedade da época ditava as normas de

84
comportamento para homens e mulheres e foram influenciados por seus passados
étnico-religiosos.
Em outras palavras, estas diferenças não foram abolidas. Mas levaram os
cristãos a viverem em duas realidades, muito por conta da escatologia iminente
(1Cor 7), Paulo parece ter optado por incentivar que os membros das assembleias
continuassem a desempenhar as mesmas funções que realizavam antes de serem
batizados. Quando eles estavam vivendo suas vidas cotidianas "de fora" das igrejas
domésticas no mundo romano como escravos, mulheres ou mestres, a máxima
igualdade do contexto cristão era meramente um contexto mental (LAMPE, 2003:
78-80).
Este duplo contexto social no qual a comunidade estava inserida provocou
tensões internas levando a mediações entre as casas-igrejas e o ambiente externo,
o que acabou acarretando também em adaptações ou em reproduções de
determinadas lógicas da realidade romana no interior das casas-igrejas, abrindo
espaço, em primeiro lugar, para uma estrutura hierarquizada pautada nos dons do
Espírito (1Cor 12: 28-30):
E aqueles que Deus estabeleceu na Igreja são, em primeiro lugar,
apóstolos; em segundo lugar, profetas; em terceiro lugar,
doutores... Vêm, a seguir, os dons dos milagres, das curas, da
assistência, do governo e o de falar diversas línguas. Porventura,
são todos apóstolos? Todos profetas? Todos doutores? Todos
realizam milagres? Todos têm o dom de curas? Todos falam
línguas? Todos as interpretam?

Esta hierarquização advinda dos dons do Espírito pode ser entendida


também como um reflexo do ambiente em esta comunidade estava inserida: uma
sociedade patriarcal e altamente hierarquizada. As mulheres enquanto líderes
comunitárias também se inseriam neste contexto. Sua autoridade poderia provir
pelos dons do espírito ou por ser uma benfeitora, sendo exemplos disto Cloé e
Febe. Tendo ambas condições financeiras suficientes para patrocinar, enviar
indivíduos para manter Paulo informado dos acontecimentos na comunidade e de
oferecem suas casas para reuniões, e devendo Paulo a respectiva honra a estas
mulheres (MATTILA, 1996: 278-279; MACDONALD, 1999: 200-202, 207-209).
Sharon Mattila (1996: 267-269) valendo-se de indícios arqueológicos, dados
literários e inscrições observa que há uma diferença grande entre sinagogas no
período pré-70 para o pós-70, referindo como marco de transformação a queda do
Templo de Jerusalém. Uma transformação acompanhada também nas casas-
igrejas, uma vez que o Templo era um marco de identidade étnico-religioso. As
diferenças perpassam, segundo ela, no âmbito litúrgico e arquitetônico. Uma

85
mudança não brusca, mas gradativa e que teria sido acirrada no contexto da queda
do Templo, colocando tanto as sinagogas quanto as casas-igrejas num mesmo
padrão no que se refere ao entendimento de público ou de uso público do espaço. O
que implicou em políticas educacionais em que mulheres, escravos e crianças se
comportassem como se estivessem em um ambiente público. Uma vez que, tanto a
sinagoga quanto a casa-igreja foram cada vez mais compreendidos como espaços
públicos e destinados ao uso público. E a reforma interna destes espaços é,
segundo Mattila, apenas mais um indício disto.
A partir disto, Mattila (1996: 278) pondera ainda que por intermédio da
leitura das cartas autênticas não há razão supor um entrelaçamento livre de
homens e mulheres em encontros de igrejas domésticas. Sua base de
argumentação se encontra no fato de que Paulo insistia em respeitar valores
típicos de uma sociedade pautada na honra e na vergonha, o que significa dizer
que a sentença “não há homens nem mulheres, escravos nem livres, judeus nem
gentios”, estava sujeita também as normas de conduta e comportamento em
ambientes públicos, uma vez que as casas-igrejas, de forma gradativa, deixavam
de serem vistas como ambientes privados para ambientes públicos.
Paralelamente às tensões entre espaço público e privado e ao significado da
queda do Templo, devemos acrescentar a proximidade do segundo século da Era
Comum. Alguns críticos ao movimento, entre eles Plínio, o Jovem, já citado
anteriormente, e Celso que afirmaram que o cristianismo seria um movimento
que motivava os adeptos a se voltarem contra os chefes de família e aqueles em
posições de autoridade legítima, encorajando a insubordinação dentro do grupo
familiar (MACDONALD, 1996: 110-111).
Estes três elementos, ao que parece, acabaram produzindo um ambiente no
interior das comunidades de maior hierarquização, em que as mulheres deveriam
ficar caladas (1Cor 14:33-36):
Pois Deus não é um Deus de desordem, mas de paz. Como acontece
em todas as Igrejas dos santos, estejam caladas as mulheres nas
assembléias, pois não lhes é permitido tomar a palavra. Devem ficar
submissas, como diz também a Lei. Se desejam instruir-se sobre
algum ponto, interroguem os maridos em casa; não é conveniente
que uma mulher fale nas assembleias.

Fitzmyer (2008: 530) nos fala que há uma ampla aceitação de que os
versículos acima são interpolações no texto paulino, decorrente do mesmo meio
que produziu epístolas como primeira carta a Timóteo, apresentando inclusive
mesmo vocabulário. Neste sentido, já é um reflexo de um processo de

86
institucionalização da igreja paleocristã em finais do século I a início do século II
EC74.
Horsley (1998: 188-189), por sua vez, nos lembra que este passo busca
invadir o argumento do capítulo 14, que compara profecia e línguas. Eles também
interrompem a conclusão do argumento nos capítulos 12 a 14, os quais
possibilitam a atuação das mulheres nesta comunidade por meio das
manifestações do Espírito. O autor afirma ainda que os versículos se assemelham
a várias expressões não paulinas.
Sendo neste sentido, um contexto similar ao de composição da carta aos
efésios que estabelece a relação patriarcal como o principal código doméstico para
esta comunidade, sempre associando as lideranças masculinas a Cristo e a Igreja,
aos submissos que estão personificados nas mulheres, crianças e escravos. Da
mesma forma, aqui aparece um forte apelo para que a imoralidade sexual e toda
a impureza associada à vida anterior ao ingresso ao grupo, estimulando sempre
serem “imitadores de Deus, como filhos amados” (Ef 5:1) (MACDONALD, 1988:
111).
Este quadro nos leva a pensar nas interessantes conclusões de Peristiany
(1971: 139-144) ao estudar uma aldeia cipriota de montanha. O primeiro deles é
quanto às três categorias sociais com as quais o grego se identifica: a família, a
comunidade de origem e a nação. Além disso, ele aponta para a fluidez da
identidade. O simples fato de um indivíduo estar envolvido em relações
comerciais com estrangeiros que não o favorecesse a comunidade local ou de não
seguir a religião ortodoxa, fazia com que o indivíduo se tornasse um estrangeiro.
Por fim, o autor nos diz que há três figuras centrais no interior da aldeia cipriota:
o padre, o chefe e o professor. São aqueles que se supõe descenderem pelo lado
paterno e materno de famílias conhecidas e respeitadas. Para, além disso, devem
conter nobreza, generosidade, comando e outros elementos associados à honra.
Neste sentido, a epístola aos Efésios e a interpolação na primeira carta aos
coríntios que recomenda, que as mulheres deveriam ficar caladas nas assembleias
(1Cor 14:33-36), podem ser um sintoma conjunto, fruto de um movimento que
procurava dar respostas ao que ocorreu em Jerusalém e que ao mesmo tempo se

74
Segundo o aparato crítico tanto na 4ª revisão revisada quanto na 27ª edição do Novo Testamento,
apontam que o primeiro manuscrito a trazer incorporado no texto os versículos 1Cor 14: 33-36
acrescido é o Codex Fuldensis, datado do século VI EC, que aparece como uma nota a margem no
Codex Vaticanus.

87
vê passível de críticas por indivíduos como Celso e Plínio, o Jovem, buscando
modificações em seus rituais de iniciação e manutenção75.
2º) Ritos de Iniciação.
Clifford Geertz (1989: 82), ao analisar a religião, o ritual e os símbolos, fez
um interessante comentário a respeito do ritual, ou comportamento sagrado, em
que este é entendido como a via para tornar as concepções religiosas corretas,
válidas:
É em alguma espécie de forma cerimonial — ainda que essa forma
nada mais seja que a recitação de um mito, a consulta a um oráculo
ou a decoração de um túmulo — que as disposições e motivações
induzidas pelos símbolos sagrados nos homens e as concepções
gerais da ordem da existência que eles formulam para os homens
se encontram e se reforçam umas às outras. Num ritual, o mundo
vivido e o mundo imaginado fundem-se sob a mediação de um
único conjunto de formas simbólicas, tornando-se um mundo único
e produzindo aquela transformação idiossincrática no sentido de
realidade [...]

A fala de Geertz dialoga com o que apresentamos até aqui sobre atividades
educacionais, mas também abre espaço para refletir o papel que os rituais
desempenharam nas casas-igrejas paulinas. Meeks (1992: 213-224) afirma que
havia vários rituais76, destacando-se o batismo e a participação numa refeição

75
É interessante notar este projeto patriarcal presente na documentação de Efésios e que circulava pela
Ásia Menor não era unânime. Concorrente a ele, tínhamos o culto a Tecla, considerada uma discípula e
colega de Paulo. Tendo tornado-se, provavelmente, a figura feminina e 'mártir' (primeiro mártir do sexo
feminino da igreja primitiva) mais célebre entre os cristãos na Antiguidade tardia. Ela foi reconhecida
por seu exemplo de castidade, e honrada como uma apóstola. O exemplo de Tecla foi associado com a
piedade das mulheres em particular, com as questões de empoderamento e do ministério das mulheres.
Por causa dos costumes sociais patriarcais, as associações cristãs emprestaram um ar de controvérsia e
agressividade para com a sua santidade. O afresco bizantino, descoberto em 1906 pelo Instituto
Arqueológico da Áustria, que contém Tecla e Paulo lado a lado numa postura de ensino apresenta Tecla
com os olhos vazados e mãos riscadas. Uma clara indicação do desconforto gerado pela pintura colocar
Tecla no mesmo nível que Paulo (CROSSAN e REED, 2007: 10-11; DAVIS, 2001: 50).
A fama de Tecla pode ser rastreada bastante cedo em registros escritos, a começar pelo menos no
século II EC com os Atos de Paulo e Tecla. Este trabalho serviu de base para as lendas biográficas
posteriores sobre Tecla, e pelas muitas referências a ela em tratados ascéticos e histórias de milagres da
antiguidade tardia. Tecla também se tornou um tema popular para artistas cristãos: a imagem dela é
pintado nas paredes, estampada em frascos de barro e lâmpadas de óleo, gravado em cruzes de bronze,
os pentes de madeira e relevos em pedra, gravado em medalhões de vidro de ouro, e até mesmo tecido
em uma cortina de têxtil. Pelos séculos IV e V EC, a devoção a Tecla foi generalizada no mundo
mediterrâneo. Da Gália (França moderna) à Palestina, escritores e artistas exaltaram-na como uma
virgem e mártir exemplar.
Neste sentido se insere o belíssimo trabalho de Stephen Davis (2001) que buscou reconstruir o
culto de Tecla. Abarcando o conjunto de práticas sociais (tais como o ascetismo, a peregrinação, o
sepultamento), instituições (como igrejas, santuários mártir, mosteiros), e artefatos materiais (por
exemplo: textos, relíquias, lembranças sagrados, entre outros) que marcaram a vida de devotos reais nas
regiões da Ásia Menor e do Egito.
76
Entre os outros rituais citados por Meeks (1992: 213-224) estão: (a) a reunião regular de grupo em
templo e local familiares. Duas frases reforçam o cunho comunitário da reunião, a saber: en ekklesia
(em synerchomenon hymon en ekklesia) expresso em 1Cor 11:18 e epi to auto (synerchomenon...

88
comum, por serem estes os dois ritos essenciais de passagem para um novo
membro da comunidade se juntar ao movimento de Jesus. Sobre o batismo
Meeks (1992: 224-228) propõe este ritual representava três fases em um
processo de reorientação social que incluiu: a separação, transição e reagregação.
O ritual foi especial porque o iniciado entrava numa comunidade que não
compartilhava a mesma visão de mundo como a sociedade em geral. O autor
lembra ainda que o fato do batismo poder ser realizado como sepultamento
simbólico com Cristo (2Cor 5: 16-17) isso poderia estar sugerindo uma imersão
completa na água77.
A cultura material nos evidencia o quão importante era para as comunidades
paleocristãs o ritual batismal. O exemplo mais antigo existente de arquitetura
batismal é parte do edifício cristão em Dura-Europos. O quarto-batistério foi
levado para os Estados Unidos e reconstruído na Universidade Yale (Figura 10). O
quarto localizado ao norte da casa foi transformado em um salão batismal,
contendo uma fonte retangular em sua extremidade oeste, com medições (1.6x
1x1) m. Tendo sido colocada em um nicho coberto por um arco.
Este arranjo tem semelhanças com o arco recesso (arcosolium) ao longo de
um sarcófago em uma catacumba romana. Nesta instância a fonte substituiu o
túmulo retangular ou sarcófago. Ambos os cofre do arco e do teto da sala são
pintados com estrelas brancas em um campo azul. O arco em si tem uma faixa
decorativa de romãs, uvas e trigo. A luneta sob o arco mostra uma imagem de
um pastor com as suas ovelhas e ainda Adão e Eva em ambos os lados uma
árvore. Uma serpente desliza pelo chão entre eles.
Os registros das pinturas das outras paredes (sul, norte e leste) foram em
grande parte destruídos, mas as cenas restantes foram identificadas. Na parede
sul, temos a mulher samaritana no poço e Davi e Golias. Na parede norte está
Jesus curando o paralítico, andando sobre a água, e acalmando a tempestade e,
abaixo destas iconografias, vemos três mulheres78 transportando tochas em
direção a uma estrutura retangular com um telhado pontiagudo, com as estrelas
a cada canto.

synerchomenon) situado em 1Cor 11:20. Reuniões estas destinadas a alimentação comunitária e a


leitura das cartas redigidas por Paulo; (b) a coleta para auxiliar aos demais membros não apenas da
comunidade local, mas de outras partes expressando assim a marca identitária (1Cor 16: 2; 2Cor 8: 16-
24); (c) hinos, salmos e odes espirituais (Ef 1: 3-14; 2Cor 1: 3-7; Ef 5:19).
77
Eliade (2010: 153-154) nos alerta quanto ao papel da água nas religiões e experiências religiosas
como um todo. Sendo sempre interpretada como um elemento responsável pela pureza, renascimento
post-mortem por rituais funerários sendo comparada a rituais lunares.
78
Os estudiosos discordam sobre se esta pintura mostra três mulheres a chegar ao túmulo vazio na
manhã de Páscoa (cf. Marcos 16: 1), ou (em alternativa) três das cinco virgens prudentes se
aproximando da casa do noivo (cf. Mt 25: 1-13).

89
Figura 10: Batistério, Dura Europos, leste da Síria, ca. 240. Foto: Yale University Art Gallery, Dura-
Europos Collection. Fonte: JENSEN, R. Living Water. Images, Symbols, and Settings of Early
Christian Baptism. Boston: Brill, 2011.

A parede sul da sala tinha duas portas e uma abertura para um pátio central
e outro em um quarto ocidental que pode ter servido como um espaço privado
para a preparação dos candidatos ao batismo. Esta sala de ligação levou para o
que tem sido assumido como sendo um espaço conjunto para a comunidade na
parte sul da casa (JENSEN, 2011: 182-183).
Os dois dados mais relevantes que o batistério em Dura-Europos nos traz é
que: (1) o batismo era originalmente um ritual administrado em um lugar com
água corrente/nascente. Um bom exemplo disto está no relato do batismo de
Jesus ou ainda o batismo de um etíope registrado em Atos dos Apóstolos (At 8).
Entretanto, a existência de um batistério em pleno século terceiro, demonstra que
já na metade do século III EC o rito começou a ser ministrado no interior de
casas, com um designer especial. Esta mudança fomentou também a existência
de piscinas domésticas ou mesmo a utilização de banheiros (seja público seja
privado). A própria expressão batistério (em latim baptisterium) implica em uma
piscina ou uma vasilha grande (JENSEN, 2011: 179-180). E (2) quanto à

90
produção iconográfica79, que reforçam o ambiente que entende o batismo como:
purificação, renascimento, santificação e vida após-morte. Ao mesmo tempo a
configuração da iconografia batismal, nos permite ver como os cristãos acionaram
eventos e personagens neo e veterotestamentárias de forma a atribuir novos
significados, dando realidade ao mito por intermédio da prática cotidiana dos
membros.
Quando comparado à cultura material com a documentação literária
paleocristã fica claro que o batismo pode ser entendido não como um ato
preparatório, mas como o rito central para transformação ou de passagem do
mundo exterior que é 'imundo' para uma comunidade que foi "lavada" e
"santificada". Uma conceituação distinta com o batismo de João Batista que foi
um rito em muitos aspectos análogos as narrativas veterotestamentárias, exceto
pelo fato de que o ritual visava retirar o pecado, por intermédio de uma
instituição divina, e não as impurezas (SMITH, 2006: 99; HARTMAN, 1997: 10).
O próprio Morton Smith (2006: 98-99) observou, a partir da historieta do
corpo (1Cor 12:12-23), que o batismo de Paulo era o caminho para a unificação
com Jesus, concebido por Paulo como o Espírito. Estabelecendo, em outras
palavras, uma relação entre Jesus por intermédio da possessão do Espírito. O
espírito vive no interior do batizado e age através dele80. Assim, o corpo de cada
um possuía um "membro" do corpo de Cristo.

79
As primeiras representações pictóricas de batismo apareceram na catacumbas romanas. Estas pinturas
de parede subterrâneas pertencem a um limitado repertório de imagens que sobreviveram
principalmente por serem em local subterrâneo, escapando assim de demolições causadas por reformas
urbanas. No entanto, a sua definição sepulcral contribuiu não só para a sobrevivência destas pinturas,
mas também para a sua seleção e conteúdo. Embora os estudiosos suponham que os cristãos
produziram arte não fúnebre desde muito cedo (sendo a maior parte perdida), a ocorrência destas cenas
num contexto de enterro sugere que tinham alguma relação especial com as crenças cristãs sobre a
morte ou a vida após a morte.
Uma descrição de batismo é especialmente apropriada para um túmulo, porque o batismo serve
tanto como o ritual cristão de associação, como para significar a passagem do antigo para novo estágio,
decretando morte espiritual do indivíduo e seu renascimento. Além disso, o batismo é o meio pelo qual
um membro reivindica a promessa de salvação em sua vida após a morte. Cenas de batismo na
catacumba geralmente incluem certos detalhes distintivos, a saber: um jovem nu ou a criança em pé na
ou sob uma corrente de água, tendo um homem vestido com a mão direita sobre a cabeça do jovem, e
uma pomba que paira acima de ambas as figuras. Às vezes árvores ou rochas indicam um letreiro,
slogan. As variações são relativamente mínimas; alterações no vestuário de quem batiza ou da pomba
nem sempre é aparente. Ocasionalmente, um terceiro está ao lado de quem batiza (JENSEN, 2011: 5).
80
Mais conscientemente, o Espírito fala através do possuído fazendo barulhos incompreensíveis.
Sintoma que, segundo Smith, pode ser comparado à esquizofrenia. Lewis (1971: 221-253) buscou
analisar a possessão e o êxtase de diferentes culturas com o material descrito e analisado pelos
psiquiatras. A conclusão apontada é: (1) o xamã ou aquele que está em estado de possessão é um
psicótico controlado; (2) a sociedade abre espaço para estes indivíduos, pois eles são parte integrante do
sistema total e ideias e suposições religiosas para aquela sociedade e (3) os cultos de possessão
periférica representam uma resposta de não aceitação ao padrão de normalidade vigente, buscando
outras realidades como forma de escapismos.

91
Contudo, mesmo o batismo paulino deve ser problematizado. Uma vez que
assim como observamos releituras do ritual de João Batista para Paulo, teremos
também distinções do batismo de Paulo para o ritual que está registrando nas
pseudoepigráficas. Em outras palavras, ao harmonizar as cartas autênticas com
as que são atribuídas a Paulo corre-se o risco de ter uma leitura de modo a
homogeneizar os sentidos atribuídos ao ritual.
É verdade, que em ambos os casos o ritual batismal significa ser possuído
por um Espírito. No entanto, enquanto nas autênticas os dons do Espírito se
manifestam em todos, como demonstrou Smith com a historieta do corpo, a
lógica parece não proceder quando nos voltamos para a epístola aos Efésios (Ef 4:
11-13):
E ele é que “concedeu” a uns ser apóstolos, a outros profetas, a
outros evangelistas, a outros pastores e doutores, para aperfeiçoar
os santos em vista do ministério, para a edificação do Corpo de
Cristo, até que alcancemos todos nós a unidade da fé e do pleno
conhecimento do Filho de Deus, o estado do Homem Perfeito, a
medida da estatura da plenitude de Cristo.

O fragmento acima é lido como parte de um credo81 que reforça, entre


outros assuntos, uma unidade por intermédio da hierarquização dos dons. Os que
estão nos mais elevados estamentos da pirâmide social são os detentores do
mistério que “[...] foi agora revelado aos seus santos e profetas, no Espírito” (Ef
3: 5), sendo estes os responsáveis por garantir que os demais obtenham “o
conhecimento do Filho de Deus” (BARTH, 2008: 428).
Assim, diferentemente da primeira epístola aos Coríntios, em que todos
tinham o imediato acesso corpo de Cristo ou a dons do Espírito, aqui o acesso ao
corpo compreende unicamente a submissão à estrutura ministerial. Sendo este o
significado do banho ritual para as lideranças que compuseram a carta aos
Efésios, isto é, um batismo que implicava na obtenção dos dons do Espírito por
qualquer membro não era tido para estas lideranças como um “legítimo” batismo
(Ef 4:5).

3º) Fronteiras.
Talvez um dos elementos mais difíceis de estabelecer nos paleocristianismos
são as fronteiras ou os limites entre judaísmo, cristianismo e o ambiente helênico.
Neste caso, melhor seria compreendermos este contexto tal como aponta Sahlins
(1985: 179):

81
Barth (2008: 464-468) sugere que todo o capítulo 4 da carta aos Efésios seria um credo de forma a
reforçar determinados aspectos e regimentos do convívio e manutenção da assembleia.

92
[...] A cultura funciona como uma síntese de estabilidade e
mudança, de passado e presente, de diacronia e sincronia. Toda
mudança prática também é uma reprodução cultural. Por exemplo,
a chefia havaiana, enquanto incorpora identidades e meios
materiais estrangeiros, reproduz o status cósmico do chefe como
um ser celestial vindo de Kahiki.

O que é o mesmo que dizer que “o período helenístico caracterizou-se pelo


encontro de inúmeras culturas disseminadas na Bacia Mediterrânica e além dela,
sob a égide do helenismo” (CHEVITARESE e CORNELLI, 2003: 12). E que este
encontro fomentou a necessidade de uma constante negociação, admitindo trocas
até um certo limite de forma a garantir a sobrevivência e a continuidade de suas
práticas culturais e religiosas, incluindo aí a possibilidade de um maior ou menor
reconhecimento dos indivíduos com seus grupos étnicos, sociais, religiosos e
econômicos.
Outro elemento importante a ser ressaltado a partir da fala de Sahlins está
no fato de que a cultura é estruturação da realidade atual em termos do passado.
Em outras palavras, o passado que é remontado pelas comunidades judaico-
cristãs não é um elemento estático, mas está em constante transformação. Como
elucidamos no caso do batistério em Dura-Europos, em que personagens como
Davi e Golias são trazidas para o contexto de um ritual batismal cristão em meio
ao terceiro século da Era Comum.
Falando ainda no batismo, o próprio ritual nas comunidades paulinas passou
por diferentes releituras atribuindo usos e abusos do passado de forma a justificar
o contexto destas casas-igrejas. Nas cartas autênticas, vemos Paulo empregando
o batismo com duas conotações:
1º) batismo passa a estar no mesmo patamar da circuncisão, torna-se
uma circuncisão espiritual (1Cor 7: 17-19; 2Cor 5: 16-17):
Ademais, viva cada um segundo a condição que o Senhor lhe
assinalou em partilha e na qual ele se encontrava quando Deus o
chamou. É a regra que estabeleço para todas as Igrejas. Foi alguém
chamado à fé quando circunciso? Não procure dissimular a sua
circuncisão. Foi alguém chamado incircunciso chamado à fé? Não se
faça circuncidar. A circuncisão nada é, e a incircuncisão nada é. O
que vale, é a observância dos mandamentos de Deus.

Por isto, doravante a ninguém conhecemos segundo a carne.


Também se conhecemos Cristo segundo a carne, agora já não o
conhecemos assim. Se alguém está em Cristo, é nova criatura.
Passaram-se as coisas antigas; eis que se fez realidade nova.

Os excertos acima estão mergulhados na proposta das assembleias paulinas


de transcendência das relações tradicionais, que giravam em torno dos aspectos

93
étnico e socioeconômico, por intermédio do rito batismal. O primeiro caso parece
demonstrar que a vida em comunidade só estaria garantida caso o membro
estivesse atento aos “mandamentos de Deus”, a forma como se processou o
ingresso para Paulo é irrelevante: seja por circuncisão seja por batismo, ambos os
casos asseguravam o ingresso.
A supervalorização de Paulo do espiritual frente ao carnal sinaliza também
uma radicalização dos limites entre o judaísmo e o mundo politeísta. Segundo
Furnish (1984: 331-332) a sentença se assemelha à ênfase dada à irrelevância de
divisões de gênero, jurídica e étnica na epístola aos Gálatas (Gl 3: 27). Significa
também o impacto de Cristo e do ritual batismal nesta comunidade: “eis que se fez
realidade nova”. Em outras palavras, o rito de iniciação é tão impactante na vida do
membro que o remete a uma concepção de mundo que já se faz presente e só é
possível por intermédio deste rito que implica num processo de morte e
ressurreição, tonando-se assim uma “nova criatura”.

2º) garantia de identidade judaica (1Cor 10: 1-4):


Não quero que ignoreis, irmãos, que os nossos pais estiveram todos
sob a nuvem, todos atravessaram o mãe e, na nuvem e no mar,
todos foram batizados em Moisés. Todos comeram o mesmo
alimento espiritual, e todos beberam a mesma bebida espiritual,
pois bebiam de uma rocha espiritual que acompanhava, e essa
rocha era Cristo.

A comparação estabelecida entre os judeus do período de Moisés com a


assembleia cristã coríntia é o claro indicativo de uma continuidade identitária por
intermédio do batismo: assim como Moisés garantiu o acesso ao grupo por meio
do batismo, os cristãos coríntios também o fazer por meio do mesmo rito. Desta
maneira, Paulo cria a ilusão que o ritual era utilizado com a mesma finalidade
desde Moisés.
Na passagem há ainda uma relação estabelecida com o segundo ritual de
grande importância para as comunidades judaico-cristãs: a eucaristia. Colocar
ambos os rituais, batismo e eucaristia, como elementos estáticos desde a época
de Moises acaba por reforçar a fala de Sahlins, de que “toda mudança prática
também é uma reprodução cultural”. Isto é, ao se alterar os empregos e sentidos
dos dois principais rituais para as assembleias paleocristãs, Paulo estava de
alguma maneira buscando dar continuidade ao judaísmo e para isso, ele se
apropria do passado para justificar suas ações.
Entretanto, na carta aos Éfesios já temos uma outra realidade. Apesar do
autor da carta reconhecer o batismo como uma circuncisão espiritual e como o

94
meio de acesso “às alianças da Promessa” (Ef 2: 12), este não concorda com a
concepção de que o batismo é capaz de superar distinções jurídicas, identitárias e
de gênero (Ef 2: 18): “Por meio dele, nós, judeus e gentios, num só Espírito,
temos acesso ao Pai”.
Em outras palavras, todos poderiam se tornar membros das casas-igrejas
paulinas. Mas cientes de que o homem é a personificação de Cristo e a mulher da
Igreja e por conta disto deveria ser submissa ao homem (escravos e crianças
também entram na categoria igreja). As categorias de “gentios” e de “judeus”
estariam preservadas, bem como a de “livre” e de “escravo”. O que implica dizer
que a mesma desigualdade no “mundo” se faz presente entre os “santos”, com o
diferencial de que a superioridade de uns se faz por meio da coexistência da força
ou do poder com o de Cristo (SAMPLEY, 1971: 125).

2.2. Ekklēsiai e Cultos de Mistério.


Até o presentemente momento buscamos traçar paralelos sócio-
antropológicos entre associações voluntárias e as assembleias cristãs. Contudo,
determinados fenômenos do comportamento religioso e formas de experiência
religiosa e que estão diretamente ligados ao objeto central da presente
Dissertação, os rituais batismais, que ainda não foram abordados.
Referimo-nos aos cultos de mistério, amplamente disseminados pela Bacia
Mediterrânica e Mar Egeu, sendo derivados etnologicamente de antigas cerimônias
de iniciação e que tiveram o seu início nos mitos que revelam um “substrato
agrário”, isto é, tematizam a semeadura e a colheita, e explicam os mistérios
como magia ligada à vegetação, com o intuito de influenciar a fertilidade da terra.
Entre os principais cultos estão: os mistérios de Elêusis que é possível datá-
lo do século VII AEC até os séculos IV – V EC e a partir do século III AEC com o
impacto da cultura oriental temos uma difusão de cultos de Cibele e Átis da Ásia
Menor, Ísis do Egito e Mitra da Pérsia. Todos estes cultos revelam entre outros
aspectos certa insatisfação com o culto público, busca por outras formas culturais
domésticas, crítica aos deuses em geral ou no estabelecimento da filosofia como
forma de vida82.
Na região do Mar Egeu e mais especificamente em Éfeso destaca-se o culto
a Ártemis que pode ser mapeado sequencialmente por mais de 500 anos. Podendo
ser interpretado funcionalmente como pertencente a um subconjunto de rituais

82
O culto ao imperador também tomou contornos de um culto de mistério. Klauck (1996: 78-79) nos
apresenta uma inscrição em Éfeso do ano de 88/89 EC que cita mistérios e iniciados em conexão com
Deméter e aos deuses augustos.

95
conhecido como ritos de passagem, mas também a ritos de troca, de aflição ou
políticos, dependendo da situação83 (ROGERS, 2012: 12-14; 250). Um bom
exemplo dos diferentes empregos que o culto de Artemis assumiu pode ser
identificado por meio da inscrição abaixo (IE 1023)84:

1 ἐπὶ πρυτάνεως Τ(ίτου) Φλαουίου Φρήτορος Σκύμνου


κουρῆτες εὐσεβεῖς φιλοσέβαστοι·
Τι(βέριος) Κλαύ(διος) Κλαυδίου Μενάνδρου ἀσιάρχου υἱὸς Πρωρόσιος Φρητο-
φριανός· Τ(ίτος) Φλά(ουιος) Διονύσιος Σαβεινιανὸς θεολόγος· Λ(ούκιος)
Μάνλιος
5 Κορβούλων· Αὐλαῖος Διονυσίου· Ἄρατος (Ἀράτου) τοῦ Ἀπολλωνίου
βουλευταί·
Ἀρτεμίδωρος Παυσανίου Ἀρτεμᾶς. vacat ἱερουργοί·
Πό(πλιος) Κορνήλιος Ἀρίστων ἱεροσκόπος, Μουνδίκιος ἱεροφάντης, βουλευταί·
Ἐπικράτης ἱεροκῆρυξ· Τρύφων ἀκροβάτης ἐπὶ θυμιάτρου· Τρόφιμος
σπονδαύλης.

83
Neste sentido, Rogers (2012: 285-286) nos lembra que é central identificar quem autorizou, executou
e comemorou os cultos de Ártemis. Para isto se faz necessário uma abordagem que compreenda o ritual
e centre-o na agência dos rituais de estrutura e na tensão criativa estabelecida entre tradição, inovação
na construção e execução dos rituais em si. "Performance" ou "práxis" são modelos de postular o ritual
de forma a entender que o ritual não molda as pessoas. Em vez disso, as pessoas constroem ou lutam
para construir rituais para moldar o seu mundo. Fundamental para quase todos esses esforços é um
apelo a uma ordem mais autoritária que se presume estar por trás do presente.
Entendo assim que a fabricação e/ou reconstrução dos rituais é uma atividade central daqueles que estão
envolvidos na tomada de história, muitas vezes baseada em um apelo à tradição. Os rituais criados por
aqueles que estão fazendo a história geralmente não constroem a comunidade simplesmente por
expressar sentimentos de harmonia coletiva. Mas, eles fazem isso através da canalização de conflito,
com foco queixas, socializando os participantes em mais códigos de abraço de comportamento
simbólico, negociando as relações de poder, e, em última instância, forjando imagens pela qual os
participantes podem pensar-se como uma unidade. As celebrações, por isso, eram locais e ocasiões de
ambos contestação e "communitas" e, acima de tudo, a realização de uma nova narrativa histórica.
84
Engelmann, 1980: 100. Referência epigráfica obtida em:
http://noapplet.epigraphy.packhum.org/text/248184?bookid=490&location=1689
O prytanis T(itus) Flavius Phretor Skymnos anuncia os piedosos kouretes: o asiarca Tibério Claudios
Claudiou Menándron da casa pretoriana Prorósios, o teólogo Tito Claudio Dionúsios Sabeiniaós,
L(oúkios) Málios Korboúlon, Aulaios Dionusíon, o senador Haratos (Aratou), o sacerdote de bacatino
Artemidoros Pausaniou Artemas, o inspetor Pó(plios) Kornélios Apíston, o hierofante Moundikios,
senador, o arauto Epikrates, o acrobate de thymiatrou Trúfon e o flautista Trófimos.

96
Figura 11: Inscrição (Die Inschriften von Ephesos IV 1023) datada logo depois 104 AEC, o ano do
beneficiamento C. Vibius Salutaris, quando a polis expandiu os rituais que teve lugar no momento do
festival geral. O prytanis e três dos seis kouretes listados na inscrição eram cidadãos romanos. Como
era frequentemente o caso, dois de Kouretes de Ártemis também foram relacionados às prytanis.
Obtido em: ROGERS, G. The Mysteries of Artemis Ephesos. Cult, Polis, and Change in the
Graeco-Roman World. New Haven: Yale University Press, 2012.

Conforme sugere a inscrição acima, vemos os usos e abusos do culto de


Ártemis nas disputas de poder entre determinados grupos da cidade de Éfeso
(três dos seis kouretes e o prytanis listados eram cidadãos romanos) de forma
que propiciou a expansão dos rituais na mesma, de forma a tentar expressar uma
harmonia coletiva.

A escola de História das Religiões (1880-1930) foi uma das primeiras, se não
a primeira, a manifestar a convicção de que para interpretar os documentos do
cânon cristão era necessário dar maior ênfase aos pressupostos helênicos contidos
nestes textos. Reconhecendo aspectos em comum com outras religiões,
elementos que até então eram consideras e tidas como criações cristãs.
Eles constataram que o termo musthvrion85 é atestado 28 vezes no cânon
cristão, sempre remetendo a um contexto apocalíptico. Com base nisso, voltaram-
se para o estudo dos chamados cultos de mistério, que eram expressões religiosas
que ocorriam em oposição aos cultos públicos ou mesmo aos cultos domésticos e

85
A expressão deriva da palavra grega musthvria (derivado da palavra muvein que significa iniciar)
empregado por alguns autores na Antiguidade para se reportar determinadas formas religiosas. Temos
referências ao termo musthvrion como metáfora de questões filosóficas.

97
citadinos não ocultos. Eram constituídos por um pequeno círculo de membros, os
chamados iniciados. A iniciação poderia se dar de uma única vez ou em diferentes
estágios, indo do grau de consagração mais baixo até o mais elevado. Os ritos
variavam consideravelmente nos detalhes, assim como as condições de admissão
e a estrutura da preparação.
Os elementos descritos acima levaram aos membros da escola de História
das Religiões a afirmarem que os cultos de mistério helenísticos (entre eles
estavam os mistérios de Elêusis e os cultos de Ísis e Mitra) tiveram papel decisivo
em dois aspectos (JOHNSON, 2008: 705; KLAUCK, 1995: 164):
(1) Os rituais de iniciação e manutenção dos membros nas assembleias
cristãs derivavam dos ritos existentes nos cultos de mistério, que continuam
períodos de instrução, ritos de purificação, procissões, e ênfase no segredo. Assim
sendo, os rituais cristãos não teriam nenhuma relação com a mensagem de Jesus
ou com o judaísmo palestino, mas eram o resultado de um processo de
helenização, avaliado por eles como uma apostasia em relação a proposta inicial de
Jesus;
(2) O mito da morte e do renascimento de uma divindade no centro do culto
influenciou de modo especial a imagem de Jesus, que assumiu um caráter mítico
nos paleocristianismos.

Apesar desses aspectos estarem norteados por conceitos e pressupostos


como uma forte concepção sacramental dos ritos e a conotação da superioridade do
cristianismo, capaz de aplicar uma releitura salvífica nos elementos pertencentes à
realidade helênica, isto é, acabavam por vezes retirando os cultos de seus
contextos de forma a apontar sempre com formas religiosas pré-cristãs. Não se
pode negar o mérito da escola de História das Religiões por ser a pioneira em
demonstrar que o movimento pós-Jesus interagiu constantemente ao seu
ambiente, sofrendo pequenas mudanças de acordo com a realidade vivenciada em
cada cidade em que foi implantado.
Entretanto, foi guiado pelas observações feitas pelos estudiosos da Escola de
História das Religiões que W. Burkert em 1987 publicou um importante trabalho
neste campo, chamado “Ancient Mystery Cults”. Nesta obra Burkert dissipou vários
estereótipos acadêmicos produzidos sobre mistério cultos, entre eles: a noção de
"atrasado", algo provindo do Oriente no que diz respeito a sua origem e estilo e que
eles eram religiões de "salvação" no sentido cristão depois da concepção. Burkert
mostrou de forma convincente que, de fato, os cultos de mistério apresentam
vestígios desde o sexto século AEC. Em outras palavras, que eles não eram como

98
alguns estudiosos têm assumido como tendo sido apenas um fenômeno do período,
após a conquista de Alexandre do império persa ou das conquistas romanas das
monarquias macedônicas.
Burkert (1987: 50) também argumentou que os mistérios gregos não devem
ser vistos como predestinado a se mover para o Cristianismo, sustentando
especialmente que a exceção notável e importante dos iniciados nos mistérios de
Elêusis e dos grupos cristãos está no fato de que os iniciados nos cultos de mistério
tinham certeza da morte ou o que vinha depois da morte. Fazendo assim uma forte
crítica aos estudiosos da Escola de História das Religiões que tendiam a cristianizar
os cultos helenísticos.
Contudo, Morton Smith (1973) quase uma década antes apresentou uma
análise semelhante à de Burkert no que diz respeito ao aspecto de cristianização
dos cultos de mistério, sejam eles pertencentes ao meio judaico-cristão ou não.
Segundo Smith os Evangelhos de Mateus e Lucas identificaram o mistério com as
explicações sobre as parábolas dadas por Jesus e rapidamente modificam o sentido
existente no Evangelho de Marcos que entendia o mistério como algo que já havia
sido dado aos discípulos. E o fato de que eles já terem recebido os tornaram
diferentes “dos de fora” e aptos para ouvir as explicações.
O Evangelho Secreto de Marcos, neste sentido, acaba sendo útil para
evidenciar que forma se processava e o que era o mistério (SMITH, 2005: 78):
E saindo da tumba eles entraram na casa do jovem, pois ele era
rico. Seis dias depois, Jesus disse-lhe o que fazer, e à noite o jovem
vem a ele, usando um pano de linho sobre seu corpo nu. E ele
permaneceu com ele naquela noite, pois Jesus ensinou-lhe o
mistério do reino de Deus.

Com base no passo acima percebemos que o mistério foi algo "ensinado"
pela noite para um discípulo que veio "após seis dias", "vestindo um pano de linho
sobre o seu corpo nu". Assim os indícios nudez, lençol de linho e seis dias de
preparação sinalizam que o mistério foi um batismo86. Isto é interessante, pois
demonstra que os banhos rituais paleocristãos passaram por releituras desde as
primeiras gerações de seguidores de Jesus. Logo, podem ser enquadrados num tipo
de leitura que incluía o querigma e uma dimensão de hierarquização no interior
destes grupos, caso contrário este ritual não teria o status de “verdadeiro” ou
“único”.

86
Smith (2005: 79) chama atenção sobre o uso do verbo “ensinar”, segundo ele, estranha ao contexto.
Pois, no mundo antigo, os ritos de mistério, como o batismo, eram geralmente dito ser "dado" aos
iniciados. Talvez o Evangelho secreto tivesse originalmente o sentido de “dar”, mas alguns copistas
influenciados por suas memórias dos Evangelhos de Mateus e Lucas podem ter mudado para "ensinar".

99
Estes elementos implicam também na seguinte indagação: Nos judaísmos
era comum a realização de cultos secretos?
Smith (2005: 82) afirma que o judaísmo foi um foco importante de cultos de
mistério. Seus centros oficiais, até o ano 70 EC, eram dois templos: um em
Jerusalém e o outro no Egito. Nestes só o sumo sacerdote podia entrar na sala
central e só os sacerdotes hereditários poderiam se aproximar dela. Além disto,
temos as questões das práticas de pureza e impureza que impediam de um judeu
tocar um gentio ou as suas roupas, além de ir a casa e consumir os alimentos
gentílicos. Ou ainda a descrição da circuncisão e da ceia pascal. Estas condutas
levaram em muitos dos casos ao judaísmo ser classificado como uma “religião de
mistério”.
Contudo estas práticas ou normas não eram unânimes, elas estavam ligadas
a compreensão de cada grupo sobre sua religiosidade. O que fomentou a formação
de grupos, casas, escolas e refeições fechadas “aos de fora” que poderiam ser
judeus que seguiam outra interpretação dos rituais de pureza e impureza. Além
disso, por intermédio de comunidade como Qumran ou mesmo ao nos voltarmos
para os Evangelhos é possível perceber a adoção destes grupos a ideias
revolucionárias e/ou mágicas. O que poderia ser mais um elemento para o
estabelecimento de práticas secretas (SMITH, 2005: 83-84; VERMES, 1997: 95-
96).
Isto nos leva a pensar que os cristianismos paulinos não fugiram desta
realidade. Muito pelo contrário, estas comunidades a partir de diferentes demandas
internas e externas vão criar e recriar suas normas de conduta e interpretação do
ritual batismal. Além disto, devemos lembrar que no batismo paulino a iniciação se
dá por intermédio da possessão do Espírito pelo iniciado. Possessão esta que há
claros diálogos com o material mágico.
Assim sendo, para pensar os cristianismos paulinos como cultos de mistério
é fundamental antes questionarmos se Paulo pode ser lido ou não como um místico
ou um mago, e, por conseguinte, perguntar quais seriam os paralelos que nos
permitem ler o batismo paulino como uma prática mágica.

2.2.1.1. Paulo um místico?


A pergunta que abre este subtópico já foi feita inúmeras vezes por
diferentes pesquisadores e certamente, essa não representará a última vez. O
primeiro foi Hermann Gunkel (1973 (1888): 190) que entendeu o Espírito como um
agente na construção das relações comunitárias e o motivador das tensões entre os

100
membros. Além disso, Gunkel pondera que por conta do Espírito Paulo teria
estabelecido uma religião de pneumáticos.
A fala de Gunkel abriu espaço para aproximações de Paulo e de seus
seguidores com as escolas filosóficas e com os cultos de mistério helenísticos.
Os primeiros foram Adolf Deissmann e Albert Schweitzer, sendo Schweitzer o
primeiro a cunhar a expressão de “Paulo, o místico”. Os aspectos ressaltados para
tal afirmação, e que ainda hoje são válidos, foram:

1) Glossolalia.
Na primeira epístola aos Coríntios (1Cor 14) vemos Paulo não apenas se
reconhecendo como um glossolálico, mas fazendo críticas ao interesse que este
Espírito vinha despertado na comunidade coríntia. Mas por que Paulo estaria se
incomodando com isto? E que implicações teriam neste dom?87
Estas perguntas foram feitas por Aline Mendonça (2009) e de imediato a
autora nos reponde que a glossolalia foi vista por Paulo como um elemento
perigoso e necessitado de controle por permitir a possibilidade de inversão da
estrutura de poder. Em outras palavras, o processo de possessão do Espírito
implicava não só em fazer parte da comunidade, mas também em se tornar um
“legítimo” portador do falar de e sobre Jesus, rompendo assim com as lógicas
organizacionais.
O que levou Paulo a, em primeiro lugar, se colocar como um glossolálico e,
em segundo, fazendo crescer o dom da profecia. Estas ações estavam apenas lhe
garantido o status de apóstolo, mas também como uma forma de garantir a
importância da sabedoria ou do conhecimento advindo dos ditos de Jesus. Tais
ditos foram transmitidos pelos profetas, mestres e apóstolos88 (ASHTON, 2000:
209; BORING, 1982: 60).

87
É curiosa a análise harmoniosa de Nogueira (2003: 59-63) entre os eventos relatos em Atos dos
Apóstolos e na primeira Epístola aos Coríntios, uma vez que nos parece mais duas práticas distintas, tal
como apontou Chevitarese (2011: 72-75) conhecidas pelos cristãos: xenoglassia e glossolalia. Enquanto
a primeira expressa línguas como grego e latim, a segunda apresenta a total ausência de um idioma
natural. Além disso, o glossolálico não lança mão de técnicas ou instruções, pois não há lembranças em
estado de memória.
88
Não deixe de ser intrigante a forma como Weber (2010: 53) descreveu o processo de obtenção dos
dons do Espírito e que em muito pode nos auxiliar para compreender o batismo como um ato mágico e
as construções argumentativas paulinas para organizar estes dons:
“O bruxo foi o antecessor histórico do profeta, tanto do profeta exemplar como do profeta emissário e
salvador. Geralmente, o profeta e o salvador tem-se legitimado mediante a posse de um carisma
mágico. Não obstante, para eles, esse não foi um instrumento de consolidação do reconhecimento da
significação exemplar, a missão ou a qualidade redentora de suas personalidades, assim como o meio
de recrutamento dos adeptos. Pois o essencial do mandamento da profecia ou do salvador consiste na
apologia de um estilo de vida para a obtenção de um valor sagrado”.

101
Boring (1982: 61-62), influenciado por autores como J. Jeremias, pondera
que a profecia paulina era diretamente associada ao aprendizado de
“conhecimentos de todos os mistérios e de toda a ciência” (1Cor 13:2) por meio
daquele que batiza o iniciante. O que significa dizer que por mais que Paulo
reconheça que cada um tem um dom este dom deve estar condicionado a uma
lógica comportamental para a sobrevivência da comunidade, o que explicaria
assim o emprego da historieta do corpo (1Cor 12: 14-22).
Outro elemento que reforça este aspecto comportamental por conta da
glossolalia está no emprego do verbo o*ukodomei'n (edificar/doutrinar) expresso em
diferentes momentos apontando que a autoridade paulina é frágil e depende
diretamente do controle e demonstração de ser um portador de todos os dons do
Espírito (ASHTON, 2008: 208).

2) Curandeirismo Carismático.
Este aspecto compreende aos sinais de apostolicidade paulina (2Cor 12:
12): “Os sinais que distinguem o apóstolo realizaram-se entre vós: paciência a
toda prova, sinais milagrosos, prodigiosos e atos portentosos” (em grego este
último trecho ficaria: "σημεία, τέρατα, δυναμεῖς”). Estes elementos em
ambiente judaico-cristão, segundo Schweitzer, sinalizam atos carismáticos de
cura e exorcismo.
Frankfurter (2002: 171-172) pondera que a ênfase na expulsão de demônios
reflete uma cosmologia ou percepção cristã de mundo que se centra na polaridade
“bem” e “mal” ou “eleitos” e “mundo”. Demonstrando de que forma a divindade
cristã era maior que as politeístas. Ao mesmo tempo o curandeiro carismático era
responsável por conduzir o curado ou o exorcizado a uma realidade
completamente distinta do contexto social do curado.
A cura e o exorcismo exerciam um papel de grande destaque na Bacia
Mediterrânica. Um bom exemplo deste papel pode ser percebido ao no voltarmos
para os Papiros Mágicos Gregos (PMGs), datados entre os séculos II AEC a V EC.
São compostos por uma série de fórmulas, rituais e mágicas, semelhante a um
manual de magia com diferentes finalidades: simpatias para ligar e desligar,
encantamentos para conseguir ligar a si a uma mulher ou a um homem,
adivinhação, curas e exorcismos, rituais para obter um demônio assistente, entre
outros. Havendo uma longa sessão ensinando amuletos, hinos e rituais destinados
a curas das mais diversas (entre elas febre, inflamação de garganta) e o
exorcismo. Mais interessante ainda é o deus que é invocado em diferentes
ocasiões é iaô, o deus dos judeus. Há diversos testemunhos disto encontrados em

102
vasos aramaicos e na literatura judaica (CHEVITARESE e CORNELLI, 2003: 68-
69).
Outro aspecto diz respeito ao padrão socioeconômico e identitário destas
comunidades. Como já evidenciamos neste capítulo e no interior, as comunidades
paulinas se centraram em casas-igrejas em meio urbano. A composição
socioeconômica da grande maioria dos membros provinha de classes mais baixas,
camadas estas em que por vezes eram periféricas as atividades religiosas de
outros cultos e mesmo de sinagogas.
Além de membros provindos de baixos estamentos, as assembleias paulinas
também eram compostas por indivíduos que podemos chamar de “tementes a
Deus” ou “adoradores de Deus” (theosebeis), eram gentios que admiravam a
cultura judaica, participavam dos ofícios religiosos nas sinagogas e
representavam importante resistência contra movimentos antissemitas localizados
em diferentes pontos ao longo do império. Contudo, não tinham a identidade
judaica reconhecida pelos judeus prosélitos e de nascimento, estando também
assim à margem de determinados predicativos inerentes apenas aos judeus
(CROSSAN e REED, 2007: 9).
Estes “tementes a deus” formam um quadro interessante na composição dos
grupos judaicos, uma vez que são conhecedores das leis, normas e práticas
judaicas e atuantes nas sinagogas. Entre suas atuações estavam como
benfeitores, ofertando suas casas e financiando obras, reformas e lideranças
itinerantes carismáticas. Um bom exemplo disto está na edificação judaica de
Afrodisia, datada por volta do ano 200 EC e escavada em 1976 (Figura 12).

103
Figura 12: Fragmento da face b na inscrição da sinagoga com os nomes de judeus, na parte sup erior,
e de “adoradores de Deus”, na parte inferior. Obtido em: CROSSAN, J. e REED, J. Em Busca de
Paulo: Como o apóstolo de Jesus opôs o Reino de Deus ao Império Romano. São Paulo:
Paulinas, 2007.

Na inscrição contida na coluna de mármore é possível identificar 12689


nomes de indivíduos que organizaram e financiaram a construção. A face a
enumera 19 nomes de membros do “decanato” ou liderança do projeto. Destes 14
são nomes judaicos, 3 de prosélitos e 2 dos que se chamavam “adoradores de
Deus”. Estando estes 5 últimos intercalados entre os 14 primeiros. A face b exibe
uma lista com 55 nomes separados especialmente e com clareza de uma lista de
52 nomes, os primeiros são judeus e os outros pagãos. Estes últimos estão
prefaciados com a frase: “e tais são os adoradores de Deus”. Esta é a mais longa
inscrição judaica da Antiguidade e sinaliza a existência da estreita atuação entre
judeus (sejam eles prosélitos ou não) e simpatizantes (CROSSAN e REED, 2007:
31-33; FINE, 2005: 87).
A separação presente na face b é não apenas um claro indício do ponto de
vista da cultura material do impacto dos “tementes a Deus” no meio judaico, bem
como sinaliza o entendimento destes membros nas comunidades judaicas: apesar
de atuantes, estavam à margem no que diz respeito à atuação litúrgica e a
identidade. O que implica dizer que figuras como a de Paulo soavam interessantes
a estes indivíduos, pois, Paulo os inseriu plenamente nesta comunidade por
intermédio de seu batismo, sendo agora capaz de exercer funções como de
profeta, curandeiro, mestre, entre outros.
Em outras palavras, quando Paulo se coloca como portador de carismas
advindos do Espírito e que este Espírito é acessível a todos, inclusive os seus
benefícios, ele acaba “democratizando” funções e benefícios antes inacessíveis ou

89
É interessante observar a presença de uma mulher entre os nomes listados. Chamada Jael, ela é
Descrita como patrona. Para maiores detalhes ver Crossan e Reed, 2007: 33.

104
escassos. Paulo para as camadas mais baixas e para os “tementes a Deus” era
um verdadeiro paradigma para as experiências de iniciados gentílicos e não
abastados. Em contrapartida, Paulo tinha o seu status social de apóstolo ou
curandeiro carismático garantido, visto que o reconhecimento e/ou procura por
seus dons, suas curas e os seus talentos lhe garantia, no sentido de um prestígio
sobrenatural com o qual alguém é dotado aos olhos dos outros, um status social.

3) Experiência Extática.
A experiência de Damasco90 é central para a compreensão de Paulo como
um místico marginal. Sem ela Paulo não poderia reclamar o título de apóstolo e
nem as comunidades que se valeram de seu nome não poderiam gozar de
autoridade. Como nos diz Segal (2010: 47-48), o evento de Damasco se tornou
um paradigma para as comunidades cristãs paulinas.
Nas cartas autênticas há sete menções diretas, sem contar as indiretas, a
experiência extática. Contudo, uma delas nos chama atenção (2Cor 12: 1-4):
É preciso gloriar-se? Por certo, não convém. Todavia mencionarei as
visões e revelações do Senhor. Conheço um homem em Cristo que,
há quatorze anos, foi arrebatado ao terceiro céu – se em seu corpo,
não sei: se fora do corpo, não sei; Deus o sabe! E sei que esse
homem – se no corpo ou fora do corpo, não sei; Deus o sabe! – foi
arrebatado até o paraíso e ouviu palavras inefáveis, que não é lícito
ao homem repetir. No tocante a esse homem, eu me gloriarei; mas
no tocante a mim, só me gloriarei das minhas fraquezas. Se
quisesse gloriar-me, não seria louco, pois só diria a verdade.

90
Para muitos estudiosos temos uma clara indicação do lugar da experiência extática na Segunda
Epístola aos Coríntios (2Cor 11: 32-33). O outro indício do local seria na Epístola aos Gálatas (Gl 1:
17-18), mas já não com tanta nitidez quanto à primeira. Paulo não apenas dá indícios do local, mas
também a existência de adversários na cidade o que fomentou a sua fuga. Considera-se que nesta fala
de Paulo, na carta aos coríntios, uma interpolação no que diz respeito aos perigos relatados pelo
apóstolo. A suspeita de interpolação é bem embasada e é datada antes mesmo do século XIX. A
principal argumentação está justamente na segunda principal sugestão do local da experiência fornecida
por Paulo, à carta aos Gálatas,onde Paulo relatou que retornou da Arábia para Damasco.
Quando confrontamos a Segunda Epístola aos Coríntios com as narrativas de conversão em Atos dos
Apóstolos substanciais semelhanças e diferenças emergem e a partir delas somos capazes de sustentar
que: (1) Paulo indica que a ameaça era do etnarca do rei Aretas IV e não dos judeus e (2) a ameaça era
apenas de prisão, não de ser morte. A causa que motivou Paulo ter sido procurado por um funcionário
do rei não nos é indicado, embora pudesse ter sido por causa de algum incidente. O fato é que em Atos
dos Apóstolos dá mais atenção à ameaça e à sua gravidade da questão. Já em Segunda Coríntios é a
fuga que recebe maior notoriedade, uma vez que ela foi vista como um ato de covardia perante os
membros da assembleia coríntia. Para maiores detalhes ver Furnish, 1984: 540-542 e Cavalcanti, 2014:
33-40.

105
O passo acima tem a sua notoriedade por ser o único momento em que
Paulo dá detalhes sobre como teria sido o evento mais significativo que deu início
a sua trajetória apostólica91. Contudo algumas observações devem ser feitas:
(a) O relato de experiência visionária aparece dentro de um contexto de
competição entre Paulo e seus adversários, os chamados por ele, em seu
costumeiro tom de sarcasmo, de “eminentes apóstolos” (2Cor 12: 11b). E não é
por acaso que Paulo diz: “se é preciso gloriar-se, de minha fraqueza é que me
gloriarei” (2Cor 11:30)92. Em outras palavras, Paulo constantemente se vale de
seus dons carismáticos para se colocar como um “legítimo” portador do falar de e
sobre Jesus, contudo ele tem dificuldades em reconhecer estas mesmas
habilidades em seus opositores, por evidentemente ameaçarem o seu prestígio
(SEGAL, 2010: 71 e WELBORN, 2011: 50).
(b) A narrativa é dada em terceira pessoa e não em primeira, o que pode
estar sinalizando que:
(1) por conta do contexto Paulo se vale de modéstia, além de argumentar
que os dons carismáticos não podem ser sinônimos de comprovação da fé, uma
vez que o seu reconhecimento como apóstolo advém de um ambiente externo
(SEGAL, 2010: 72);
(2) Paulo pode estar revelando informações secretas, fruto de uma
autotranscendência. O arrebatamento até o paraíso pode ser pensado como um
diálogo com a literatura apocalíptica judaica, mais especificamente com os cultos
de mistério helenísticos. Significativamente, há pouco em comum com outros
relatos de viagens no ambiente judaico, como ponderam autores como Jonas

91
Apesar de a narrativa ser dada em terceira pessoa, há um claro consenso de que Paulo estaria
narrando a sua experiência extática, pelos seguintes aspectos: 1) Paulo indubitavelmente fala sobre si
mesmo, sem especificar que mudou de assunto (2Cor 12: 7-10), 2) Paulo é capaz de traçar diferenças
entre o seu eu "natural" e seu eu "pneumático", e que era o último, não o primeiro, que viajara para o
Paraíso e 3) é possível rastrear paralelos de experiências extáticas narradas em terceira pessoa, como
nos rituais litúrgicos a divindade persa Mitra (FURNISH, 1984: 543).
92
Este aspecto da fraqueza também pode ser pensado a partir das considerações feitas por Asthon
(2000: 33) sobre os três estágios da vida de um xamã: 1) a vida anterior, 2) o chamado e as experiências
que o acompanham (usualmente envolvendo transe ou êxtase) e a carreira (onde a pessoa se torna uma
autoridade por controlar o espírito, mas também é frequentemente atormentado).
Estes três elementos podem ser perfeitamente apropriados para explicar Paulo, ainda mais
quando se traz a tona outra dimensão da sua experiência extática. Falamos diretamente da revelação ou
experiência visionária, citada em diferentes momentos pelo apóstolo (1Cor 9: 1 e 1Cor 15: 7) e que
acarretou no seu mandato de evangelização. É interessante notar que a revelação de forma geral vem
acompanhada de dores, perturbações ou quaisquer outras sequelas decorrentes da experiência
visionária. Em Paulo a situação não foi diferente, como é possível ler (2Cor 12: 7-9): “Já que essas
revelações eram extraordinárias, para eu não me encher de soberba foi-me dado um aguilhão na carne –
um anjo de Satanás para me espancar – a fim de que não me encha de soberba. A esse respeito três
vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Respondeu-me, porém: “Basta-te a minha graça, pois é
na fraqueza que na força manifesta todo o seu poder”. Por conseguinte, com todo o ânimo prefiro
gloriar-me das minhas fraquezas, para que pouse sobre mim a força de Cristo”.

106
Machado (2005: 175-178) ao remontar paralelos entre Paulo e misticismo da
merkavah93. Na narrativa, Paulo concentra sua descrição exclusivamente no
caráter “palavras inefáveis que não podem ser repetidas” do evento. Não há
menção a faculdade de ver, algo presente nos oráculos concedidos aos profetas
de Israel e mesmo nas narrativas de conversão de Paulo expressas em Atos dos
Apóstolos. Um dado que nos parece curioso, pois o ouvir não é fator determinante
na experiência extática. Na verdade, ela é compreendida como um som
culturalmente interpretado como sendo uma comunicação com o sagrado
(CAVALCANTI, 2014: 39-40). Assim sendo, poderíamos dizer que Paulo usou de
um artifício para manter o segredo guardado. E por que disto? A resposta talvez
esteja em aspectos aqui já levantados. O primeiro ponto é que nem todos os
membros da assembleia coríntia foram iniciados por Paulo, o próprio reconheceu
isto na primeira epístola aos coríntios (1Cor 1: 15-16). E em segundo, a narrativa
se processa em um momento que Paulo busca diminuir os seus rivais.
(c) Paulo não deixa claro se foi levado ou não de corpo ao Paraíso. Alguém
poderia supor (com base em 1 Cor 15: 35-50) que uma viagem sem corpo teria
sido inconcebível para Paulo, como era, teoricamente, para qualquer pessoa cuja
antropologia era essencialmente judaica. Contudo, devemos lembrar que estamos
falando de comunidades em meio a Bacia Mediterrânica e ao Mar Egeu, ou seja,
judaísmos helenísticos. E isto implica dizer que a forma como Paulo buscou
descrever sua experiência extática dialoga com o meio em que ele se insere. Em
outras palavras, para as comunidades paulinas era cabível um arrebatamento
com ou sem o corpo sem alterar a importância do evento94.

93
Concordamos que a experiência extática acompanha o místico por toda a sua vida. Ou seja, não é um
evento único, mas é algo que comumente se repete. O interessante aqui seria pensar a experiência
extática de Paulo a luz do conceito de iluminação de William James (1994: 37-38). Por iluminação
James define o processo de ver e experimentar outra dimensão ou realidade (que vem acompanhada de
luz, imagens e sons) o que motiva uma mudança radical de percepção de mundo. A experiência não é
única mais continuada, uma vez que o indivíduo é introduzido em um contexto completamente distinto
do seu meio social.
94
Outra leitura advém de Schmithals que acredita que Paulo está lidando com adversários gnósticos. E
a sua opção por não deixar claro se foi ou não de corpo tinha a finalidade de desconsiderá-los. Para
mais detalhes ver: Furnish (1984: 545).
É interessante ainda perceber como estas questões de arrebatamento, seja de corpo ou não, são
preservadas em sociedades campesinas europeias em finais da Idade Média. Um bom exemplo disto nos
é relatado por Carlo Ginzburg em “Os andarilhos do bem” (2010). Ginzburg comenta que em finais do
século XVI a meados do século XVII se formou um conjunto de crenças populares que aos poucos por
pressões bastante precisas foram assimiladas por feitiçaria. Os bernandanti eram bruxos locais que
transcendiam para rivalizar com espíritos do mal para manter a produção agrícola.

107
2.3. Considerações Parciais. Lideranças Itinerantes Carismáticas
versus Lideranças Comunitárias.
Todos os elementos apontados no subtópico anterior são centrais não
apenas para entender Paulo como um místico, mas também para compreender
que o seu ritual batismal se tratava de uma prática mágica de união com Jesus
por intermédio de uma morte e ressurreição que possibilitava aos iniciados
adquirirem tributos como: exorcismo, mesmo exorcismo à distância, comando à
distância de espíritos e o poder de ordenar-lhes sobre, dando seu poder aos
discípulos sobre os demônios, curas milagrosas de condições histéricas, incluindo
febre, paralisia, hemorragia, surdez, cegueira, perda da fala, ressuscitar mortos,
entre tantas outros. Este ritual mágico além de denotar estes dons, permitia
ainda que o iniciado se libertasse das leis e normas judaicas (o que impedia de
terem acesso à identidade judaica), além de poderem adquirir a habilidade de
ascender ao Paraíso.
Estes causaram tensões e debates entre aqueles que atribuíam outros
sentidos ao batismo ou que vinham problemas na “democratização” excessiva
causada pelo mesmo. E ao que parece isto foi agravado após a queda do Templo,
momento este em que se insere a Epístola aos Efésios.
Na epístola aos Efésios há três passagens (Ef 3: 5, Ef 4: 11 e Ef 2:20) que
demonstram claramente que lideranças do tipo carismáticas (apóstolos, profetas,
curandeiros, entre outros) já não detêm maior notoriedade. As lideranças
carismáticas, segundo o autor da epístola aos Efésios, apresentam o seu papel de
destaque no processo do movimento que se desencadeou de Jesus. Tendo sido eles
os que receberam o mistério e que coube a eles a transmissão aos judeus e
gentios. Entretanto, as lideranças contemporâneas ao contexto da redação da carta
eram as lideranças comunitárias (pastores, mestres, entre outros) que teriam
recebido instruções das lideranças carismáticas, mas, qual o porquê disto?
Berger e Luckmann (2001: 46-52) salientaram que o processo de
institucionalização é precedido do processo do hábito que ocorre quando uma ação
é repetida com frequência a tal ponto que se torna um padrão que pode ser
reproduzida com uma economia de esforço, e que é apreendida como sendo um
padrão. Em outras palavras, o hábito refere-se à atividade do indivíduo, entendida
como algo inerente a um grupo ou a sua sociedade. Neste sentido, a
institucionalização pode ser percebida a partir da interação entre duas pessoas,
mas é com a introdução de um terceiro que o caráter da relação é alterado
consideravelmente. Antes da introdução do terceiro as relações eram mutáveis,
agora ficam cristalizados.

108
Estas considerações são muito interessantes, pois podemos projetá-las para
as assembleias paulinas. Paulo ao batizar alguns dos membros das suas
assembleias estava de alguma forma estabelecendo relações desiguais, ainda que
bastante fluidas. Uma vez que em tese havia a possibilidade, por conta da
possessão do Espírito, de todos virem a se tornar apóstolos, mestres, curandeiros,
entre outros. Sendo assim, uma desigualdade ou hierarquização que tenderia a ser
temporária ou que ao menos possibilitaria uma fácil mudança de status.
Contudo, as constantes tensões entre Paulo com outras lideranças
carismáticas e mesmo aqueles que eram “sábios ou abastados” acabaram por
estabelecer tensões nestas relações e possibilidade de mudança de condição social.
Estas tensões se mantiveram presente para aqueles que reivindicavam o nome de
Paulo como forma de garantir a sua notoriedade. Não bastasse isto, a queda do
Templo, que fomentou reinterpretações sobre o eixo de culto e marcas identitárias,
e críticas do meio externo que as comunidades judaico-cristãs eram grupos
formados por camadas mais baixas e por “supertitio” conduziram a algumas
lideranças a repensar a sua manutenção enquanto culto.
Em meio a estas releituras de práticas ritualistas, identitárias e relações
entre membros das assembleias e o ambiente externo o que se observa é uma
preocupação cada vez maior em privilegiar normas e práticas hierarquizantes,
desiguais e excludentes, havendo pouco espaço para lideranças carismáticas, aliás,
seu papel estava centrado e preservado nas primeiras gerações que viveram ou
sucederam Jesus, sendo as lideranças comunitárias as “legítimas” herdeiras das
lideranças carismáticas de outrora.
Mas para construir e disseminar este imaginário era antes necessário rever o
projeto de Reino de Deus que estava em curso e qual o projeto seria estimulado
por estas lideranças para se colocarem como portadoras do falar de Jesus e Paulo.
Esta é a última dimensão por nós entendia dos rituais batismais e será ela a
abordada no capítulo a seguir.

109
3. ‘Em Cristo’. Agendas de Reino de Deus versus a Propaganda Imperial.

Antes de qualquer coisa, segue a citação:


Tu filho alado do benigno Maia, mudando de forma, assumes a terra
a figura humana, pronto para ser chamado de César; poderás
retornar depois aos céus, mas por muito tempo terás prazer em
habitar entre o povo de Quirino; que nenhuma tempestade
inoportuna te afaste de nós, agastado com nossos pecados. Que,
em vez disso, te agrades com os gloriosos triunfos, tendo o nome
de Pater e Princeps; não permitirás que os medos ataquem sem
punição; enquanto és nosso líder, Ó César (Horácio, Ode 3:41-52).

Se retirássemos as palavras em itálico do fragmento acima, inclusive a


referência, e perguntássemos a um leitor desavisado a quem se reporta o mesmo,
certamente ele nos diria que é Jesus e poderia ainda atribuir a algum texto
canônico. Mas conforme nos indicam estas mesmas palavras o texto de Horácio se
refere a Augusto e não a Jesus.
No contexto em questão, Horácio escreve com o intuito de reforçar um
ambiente político-cultural pautado na concepção de que Augusto estava
refundando Roma e suas ‘tradições’. Assim sendo, era central construir a imagem
de uma figura divina, no caso de Augusto e de seu pai adotivo César, e exaltar o
passado mítico de Roma. Como nos diz Lowrie (2007: 80-82), ainda que César
não fosse o foco, é Júlio César que será retratado em grande parte como forma de
fortalecer os dois referidos aspectos e o meio pelo qual foi possível vir àquele que
seria não apenas o salvador de Roma, mas o que seria capaz de evitar a guerra, a
fome e as pestes entre os povos conquistados: Otávio Augusto. Em outras
palavras, a teogonia romana culminava com leitura de um deus na terra, salvador
cósmico e senhor do tempo que era referendado por meio de suas conquistas
militares e as justificativas astrológicas.
Estes dados são interessantíssimos, pois Jesus também veio ao mundo com
o intuito de resolver o caos político-econômico, religioso e social em que os judeus
da Palestina, num primeiro momento, e da diáspora, num segundo, estavam
mergulhados. Assim sendo, Jesus na primeira metade do século I EC instaurou um
movimento ou uma nova realidade pautada em três aspectos: comensalidade,
justiça e igualdade. Um projeto que dialogava com um ambiente em que o ritmo
de empobrecimento se ampliava por conta de perda de terra dos pequenos e
médios camponeses para os grandes proprietários, bem como por conta dos altos
tributos devidos às elites locais e ao Império Romano. Além de ser uma sociedade
extremamente hierarquizada.

110
Neste sentido, os filhos de deus95 emergiram num contexto de caos e
instauraram uma nova realidade: o primeiro inaugurou a Idade Áurea de Roma e
o segundo o Reino de Deus. Outro ponto convergente entre eles é que o acesso às
benesses de seus reinos, ou império no caso de Augusto, promoviam uma
profunda conexão entre eles, os filhos de deus, com os demais membros desta
ordem social.
É claro que há distinções entre Jesus e Augusto. O nazareno propunha um
modelo totalmente alternativo ao programa imperial iniciado por Augusto. Em
contrapeso, o Jesus ressuscitado, de Paulo e seus seguidores, pareciam cada vez
mais dialogar com o programa augustano. Mas em que sentido? Quais as
demandas internas e externas para esta maior ou menor convergência de
agendas político-religiosas?
Para refletir sobre estas questões neste último capítulo será central, em
primeiro lugar, apontar a importância de um programa político-religioso, tanto no
Império Romano, quanto no movimento de Jesus. Objetivamos apresentar de que
forma foram processados, bem como se estruturou a concepção de instauração de
uma nova realidade. Parece-nos, também, importante refletir até que ponto estes
programas de fato eram reformadores e/ou sinalizavam uma ruptura com o
ambiente em que se inseriam.
Num segundo momento, vamos fazer uma análise comparativa e
pormenorizada desta agenda político-religiosa, compreendendo as seguintes
categorias: mulheres, crianças, escravos e identidades. Todos estes aspectos
serão lidos a luz dos banhos rituais, no caso das comunidades paleocristãs, e dos
festivais e cultos ao imperador de forma geral, sendo possível assim observar de
que forma as redes de poder, estabelecidas entres estas diferentes configurações
de sociedade, usam e abusam dos mecanismos político-religiosos para manterem
o seu status e o ambiente por eles instaurado.
Assim sendo, o passado, seja ele inventado ou real, será uma constante em
nossos apontamentos neste último capítulo. Uma vez que a chave do sucesso
destes discursos, que perpassa em cada tópico acima listado, é a produção do
tempo vivido em termos do passado.

95
É interessante notar que em toda literatura antiga apenas Jesus e Augusto receberam o título/epíteto
“filho de deus”. O que não significa dizer que não havia outros relatos de personagens com nascimentos
miraculosos e que vinham a terra para resolver o caos em que a mesma se encontrava. Um bom
exemplo disso é Apolônio de Tiana que viveu na segunda metade do século I EC e tem diversos
paralelos com a vida de Jesus ou mesmo Alexandre, o Grande. Ver: Ehrman, 2014: 23-30.

111
3.1. Augusto e a Nova Ordem Mundial. A (Re)Construção do Culto
Imperial como Mantedor dos Novos Tempos.
Klauck (1996: 56-76) realizou um extenso mapeamento do culto dos
imperadores entre os séculos I e II EC. Começando pelo levantamento do culto a
Júlio César e se estendendo até Trajano, o autor atentou-nos, com base no
historiador alexandrino Apiano, século II EC, para o fato de ser uma prática
romana conceder a todo detentor de cargo imperial honras divinas após a sua
morte. Para Júlio César, por exemplo, foi feito uma ampla campanha por Augusto,
como organização de jogos e a utilização de um cometa, tal como Suetônio
registra em Divus Julis, permanecendo doravante como um modelo padrão para
deificação dos imperadores.
A política de construção do culto a Júlio César estava também ligada à
rivalidade com Marco Antônio, o outro pretendente a herdeiro de César, que cada
vez mais assumia o modelo helenístico de realeza divina ao elevar a sua posição
como o novo Dionísio-Osíris (ao lado de Cleópatra que figurava Afrodite-Ísis). Mas
também ao tom pessimista que envolvia Roma, mesmo depois da vitória em Ácio
a população ainda se encontrava impactada com o ambiente de guerra civil e
todos os problemas econômico-sociais e religiosos que ela gerou. Assim, se
afirmar como o único filho adotivo do deus Júlio Cesar e filho do deus Apolo eram
essenciais para Otávio (ZANKER, 1988: 101-102).
Neste sentido, Otávio Augusto deu início a uma ampla propaganda imagética
que comportava a arquitetura, as esculturas e uma ampla circulação de moedas96
cunhadas com personagens míticas do panteão romano no reverso que sempre

96
Pensar no poder das imagens para a Antiguidade é decisivo, uma vez que estamos falando de uma
sociedade em que em sua grande maioria são de iletrados. A partir de Citroni, Pires (2012: 60) nos
informa que em Roma durante a República Tardia e o Principado de Augusto, cerca de 15% da
população sabia ler e escrever. Quando pensado em todo o território sob domínio romano a taxa cai
para 10%. Pires atenua, porém que estas estimativas devem ser relativizadas, uma vez que, a escrita e a
alfabetização tornava-se um pré-requisito para a obtenção de melhores condições de vida e adentrar ao
círculo mais interno, mesmo nas províncias.
Apesar disso, o autor lembra que ler e/ou escrever não era um sinônimo de que o indivíduo era capaz de
compreender o texto, afunilando ainda mais o número de leitores. Tornando este grupo seleto composto
em sua grande maioria por intelectuais da época, os especialistas, os ávidos por letras, não eram todos
com tempo e disposição para esmiuçar as inúmeras alusões, os diversos recursos verbais e outros
elementos complexos. Ou seja, “os leitores preferenciais muitas vezes eram o círculo de amizade do
autor, característica demonstrada através de dedicatórias e referencias pessoais nas obras”.
Outro agravante para esta sociedade como essencialmente visual, se dava o fato de que a vasta maioria
dos habitantes do império não falava as duas línguas que regiam o mundo romano (o grego no Oriente e
o latim no Ocidente). As artes visuais, desta forma, forneciam um instrumento de comunicação eficaz e
direto, de forma que, as imagens construíam uma unidade simbólica que conseguia unir povos dos mais
variados dando-lhes uma hierarquia baseada em um ser supra-humano. A relação entre imagética e
poder era tão dinâmica a ponto de que mesmo um imperador poderia sofre degradações violentas após a
sua morte por parte dos seus súditos (damnatio memoriae).

112
estabeleciam uma associação com o retrato do anverso, dando continuidade,
assim, a elementos centrais para a identidade romana: tradição, culto e
linguagem (WOOLF, 2001: 314).
Esta combinação imagética existente entre o anverso e o reverso das
moedas contribuía para a construção de uma qualidade positiva (deificações de
ideias e valores abstratos) de César e Otávio Augusto, entre elas estavam: a Paz,
a Vitória, a Fortuna, a Virtude (geralmente ligada ao aspecto militar do império), a
Clemência, a Justiça e a Piedade.

Figura13: Denário de prata – c. 17 AEC. Anv. CAESAR AVGSTVS. Cabeça laureada de Augusto à
direita. Rer. DIVVS IVLIVS. Cometa com oito raios e cauda. 1.9 cm – 3.5 gr. Museu Histórico Nacional,
Rio de Janeiro. BMC I, nº 357; KENT nº 144. Obtido em: GODOY, S. e FERREIRA, J. Catálogo da
Exposição Retratos e Propaganda. Faces de Roma. Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, s/d:
62.

A imagem acima (Figura 13) retrata um denário de prata datado por volta
do ano 17 AEC cunhada na Espanha retratando Augusto como imortal e divino. No
anverso temos um Augusto laureado com feições finais. A coroa de louro é chave
nesta representação por ser um tributo de Apolo e um símbolo reconhecido
durante a República. No reverso temos a interpretação de Augusto do
aparecimento de um cometa em 17 AEC. De acordo com Plínio o Velho, Augusto
declarou publicamente que a estrela simbolizava a aceitação de César entre os
demais deuses e isto foi reconhecido por todos ao verem o cometa.
Este cometa foi central para os Jogos Seculares97, pois foi mais uma
argumentação de que por intermédio de Augusto o povo romano estava sendo
conduzido à Idade Áurea. Idade esta mediada pelas reformas augustanas que
compreendiam uma renovação na religião, dos costumes, da virtus e da honra do
povo romano. Tendo como o seu ápice a promulgação das leis augustanas sobre
(re)casamento e adultério em 18 AEC (CROSSAN e REED, 2007: 96-99, 121, 241,

97
Ocorrido no final do triênio (19-17 AEC) visava à celebração da nova fase de Roma por três dias e
três noites com ritos religiosos e jogos teatrais, seguido de mais uma semana de entretenimento
(ZANKER, 1988: 35-36; CROSSAN e REED, 2007: 93).

113
245 ; KLAUCK, 1996: 62). O que garantiu a Augusto o título de “pater patriae”
como é possível perceber na moeda abaixo (Figura 14).

Figura 14: Denário de prata – 2 AEC – 11 EC. Anv. CAESAR AVGVSTVS DIVI F PATER PATRIAE Cabeça
de Augusto à direita laureada. Rev. C L CAESARES AVGVSTI F COS DESIG PRINC IVVENT. Caio e Lúcio
Cesar togados e velados, de pé, de frente com escudos sobrepostos e lanças cruzadas ao centro. No
campo, acima, o simpulum e o lituus. 1.9 cm – 3.8 gr. Brown University, Coleção Harkness. RIC, I, nº
207; Giard, nº 1651. Obtido em: GODOY, S. e FERREIRA, J. Catálogo da Exposição Retratos e
Propaganda. Faces de Roma. Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, s/d: 75.

No Anverso Augusto mais uma vez aparece com a cabeça laureada e na


inscrição é citado como o filho de César, além de patriarca pai, como já
mencionado. No Reverso temos Caio e Lúcio César, filhos de Júlia e Agripa,
usando toga-virilis e entre eles há escudos e lanças, uma clara sinalização de que
cada membro da família imperial foi e era determinante para que Roma entrasse e
se mantivesse na Idade Áurea, cabendo aos mesmos o protetorado sobre o povo
romano. Uma vez que os julio-claudianos estariam prontos para garantir e zelar
pela paz militar.
Outra figura central para apresentar o papel de protetorado ocupado pela
família imperial era Lívia, esposa de Augusto (Figura 15), que dá continuidade a
indicação do estabelecimento do poder dinástico como elemento decisivo para a
glória de Roma. Em Lívia, bem como os demais integrantes, encarnavam-se
também aspectos divinos, sendo associada à Juno (quando está sentada), à Ceres
(ao portar espigas de milho) e à própria personificação da Paz e da Justiça
(geralmente segurando um ramo e um cetro).

114
Figura 15: Denário de prata – 2 AEC. Anv. CAESAR AVGVSTVS DIVI F PATER PATRIAE Cabeça de
Augusto à direita laureada. Rev. PONTIF MAXIM. Ceres oo Pax, provavelmente com os traços de Lívia,
segurando cetro e espigas de trigo. 1.87 cm – 3.7 gr. Museu de Valores do Banco Central, Brasília CI,
nº 223. Obtido em: GODOY, S. e FERREIRA, J. Catálogo da Exposição Retratos e Propaganda.
Faces de Roma. Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, s/d: 76.

Neste sentido, por meio das moedas percebemos como política e religião
romanas estavam intimamente ligadas e como elas contribuíam na disseminação
destas ideias. Além disso, as moedas imperiais traziam uma constante alusão ao
período republicano. Remontando à restauração de valores republicanos nos
reinados do imperador. Em outras palavras, este projeto cultural instaurado com o
Principado se valeu do passado para informar o presente podendo ser considerado
circular em sua essência. Assim como, ao se valer do passado, os indivíduos
seletivamente o apropriavam e o reinventavam (HINGLEY, 2010: 20; PIRES,
2012: 59).
De forma que é possível afirmar uma estrondosa transformação no cenário
romano a partir de Augusto perpassando nos níveis: macro, meso e
microcósmico, atingindo desde o imaginário político, a aparência externa de toda
a cidade romana e até mesmo nos pormenores, tal como na decoração de
interiores e móveis, em roupas e, como vimos, em moedas. É impressionante
como cada tipo de comunicação visual estava, em seus mínimos detalhes, voltada
para a nova ordem político-social, em que cada indivíduo era por meio do mundo
das imagens informado não só sobre a nova ordem, mas também sobre o seu
papel social para a manutenção desta macroestrutura no cotidiano dos diferentes
espaços públicos e privados. Por isto também era decisivo para a consolidação da
mensagem augustana por todo o império o estabelecimento dos cultos imperiais.
O mapeamento feito por Klauck, mencionado no início deste subtópico,
denuncia não apenas uma constante preocupação romana frente às categorias
“romano” e “nativo”98, enquanto construções na memória popular local, bem como

98
Ao colocar as categorias romano e nativo entre aspas e afirmá-los como construções na memória
popular local, estamos indo de encontro com a teoria de memória coletiva de Maurice Halbwachs
(1991: 8), que definiu memória coletiva como: “Memória coletiva é o processo social de reconstrução

115
um choque com os interesses das elites locais em ampliar seu poder se valendo
do uso de símbolos materiais nativos para naturalizar o conceito de “romano”,
tornando estes elementos menos conflitivos.
Neste sentido, elementos de culto adentravam a cultura nativa sempre de
forma conciliatória, ou ao menos aparentemente. No capítulo 1, quando
apresentamos dados da cultura material sobre Corinto e Éfeso Romanas, foi
possível vislumbrar a existência de templos e imagens direcionados ao Império e
à família imperial, bem como a ocorrência de cultos conciliados entre o imperador
e a divindade local.
Chamamos em especial atenção para o culto de Ártemis, culto que tem suas
bases por volta do terceiro século antes da Era Comum99 e sob o domínio romano
foi compreendido como um dos principais traços identitários da comunidade efésia
e de toda a região da Ásia Menor. Uma vez que a conquista da Ásia Menor e o
estabelecimento de relações amistosas com as lideranças locais em Éfeso esteve
diretamente ligada ao templo de Ártemis, principal templo da região, e, é claro, ao
seu culto.
O impacto desta atuação conjunta entre a família imperial e Ártemis é
perceptível quando pensamos o culto imperial em Éfeso de forma isolada. Das
escavações feitas pela escola austríaca foram apenas encontradas treze inscrições
voltadas ao culto imperial, tendo um maior predomínio para o período de
Domiciano.
Crossan e Reed (2007: 226-228) nos relatam uma série de reformas e
ampliações urbanas, desde Augusto, patrocinadas por membros de famílias
proeminentes de Éfeso, tal como o expatriado romano C. Sextilius Pollio – no caso
em específico eram para a edificação de inúmeros balneários. C. Sextilius Pollio
sempre dedicava a Augusto, a Tibério e a Ártemis. Sendo assim, uma clara
tentativa de aproximação entre as lideranças imperiais à divindade local que
agora estava integrada ao panteão romano e como consequência disto, seu povo
também era agraciado com os benefícios das bênçãos romanas.

do passado vivido e experimentado por um determinado grupo, comunidade ou sociedade. Este passado
vivido é distinto da história, a qual se refere mais a fatos e eventos registrados, como dados e feitos,
independentemente destes terem sido sentidos e experimentados por alguém.”
99
Rogers (2012: 259-262), pondera que do ponto de vista da cultura material é sob o período
helenístico que o culto a Ártemis ganha características próprias locais, tanto no que diz respeito à
criação de cultos de mistério quanto na representação iconográfica da deusa. Em especial por assumir
alguns tributos orientais, que divergiam da forma mais generalizada de representação. A Ártemis de
Éfeso que estava diretamente ligada à prosperidade tinha uma pose mais rígida e matronal, com
ornamentos na cabeça, colares, saia justa com decorações de animais e, mais caracteristicamente, com
diversas protuberâncias que lembravam seios, do busto até a cintura.

116
Outro exemplo imagético que evidencia esta política de diálogo entre a
divindade efésia e a família imperial são as inúmeras moedas cunhadas. A fim de
identificação da prática apresentamos dois modelos iconográficos presentes na
série de moedas batidas em Éfeso. A primeira delas (Figura 16) é um denário de
prata em honra ao imperador Hadriano que não aparece laureado e porta barba 100
(anverso) em conjunto com a deusa Ártemis ou Diana efésia101, que é
iconograficamente representada como uma matrona caçadora102.

Figura 16: Denário de prata – 128 EC – 138 EC. Anv. HADRIANVS AVGVSTVS PP Cabeça nua de
Hadriano à direita. Rev. DIANA EPHESIA. Artemis ao centro e veados ao lado. Obtido em:
http://www.coinworld.com/insights/coins-show-cult-goddess-diana-of-ephesus--whose-temple-was-
one-o.html#

A segunda (Figura 17), em bronze, também em honra de Hadriano e é


datada mais ou menos do mesmo período que a anterior. Esta já traz um
Hadriano laureado dando continuidade, assim, às representações imagéticas de
Augusto. No reverso temos o templo de Ártemis com a deusa ao centro. A
representação iconográfica do templo é decisiva para a associação entre Roma e
Éfeso, pois o mesmo templo que era compreendido como a morada da deusa
matrona e que escravos que sofriam maus tratos poderiam encontrar asilo lá ou
serem alforriados, em contexto de dominação romana ele também poderia ser
entendido como a casa dos deuses augustos (CROSSAN e REED, 2007: 227;
MURPHY-O’CONNOR, 2008: 30).

100
Esta representação imagética dialoga com o contexto de sua cunhagem onde o imperador hadriano
busca um maior diálogo com a cultura helenística e na sutil mudança do traçado, no que diz respeito na
execução do cabelo, e suavidade e sensualidade na execução do corpo. Ver: GODOY e FERREIRA,
S/d: 43.
101
Nas cunhagens e mesmo nas diferentes menções romanas a Ártemis, a mesma é associada, por
vezes, a divindade romana Diana.
102
Há casos em que Ártemis não é iconograficamente representada, mas aparecem apenas veados, tal
como os que estão ao lado da deusa na Figura 16. Sendo assim, uma segunda forma de sugerir o acordo
divino entre Roma e Éfeso.

117
Figura 17: Em bronze. 117 EC -138 EC. Anv. [AV]KAITPA - A∆PIAANOCЄB Busto de Hadriano laureado
à direita. Rev. ЄΦЄ – CIΩN Templo, em quatro colunas, de Ártemis (estátua ao centro). Diâmetro:
22,5 milímetros. Peso: 5,13 gm. Obtido em: FRIESEN, S. Twice Neokoros: Ephesus, Asia, and the
Cult of the Flavian Imperial Family. Leiden: E. J. Brill, 1993;
http://www.mfa.org/collections/object/coin-of-ephesus-with-bust-of-hadrian-259925.

Friesen (1993: 35-40) observa que esta concepção tem seu apogeu com
Domiciano que assume uma dupla dimensão: um culto local e regional (Ásia
Menor). Assim, com a família imperial Éfeso passaria a ser mais proeminente nas
assembleias provinciais, teria mais direito a favor imperial, seus cidadãos ricos
teriam maiores acessos a cargos mais ilustres, delegações de várias cidades
fariam viagens anuais para seus festivais e novas fontes de receita se tornariam
disponíveis. Em outras palavras, por intermédio do “casamento” entre os
augustos e Ártemis, Éfeso ganhou gradativamente a proeminência necessária
para se tornar a mais importante cidade de toda a Ásia Menor, inserindo-se e
aprofundando, desta maneira, ainda mais a estruturação social estabelecida entre
Roma e suas províncias, num primeiro momento, e num segundo entre as capitais
provinciais e as demais cidades.
Apresentando de outra forma, o Principado instaurou um tipo de organização
social que englobava os subgrupos constituintes dentro da sociedade mais ampla,
bem como os padrões de interação entre os subgrupos ou pessoas. Esta mesma
organização social tinha suas bases em uma ideologia imperial capaz de produzir
valores que retratavam e se tornavam os mecanismos necessários para o acesso
aos novos tempos, a Idade Áurea. O que não significa dizer que estes
mecanismos eram estáticos, muito pelo contrário, em cada ambiente eles
estavam suscetíveis a transformações e negociações tanto para aqueles que
aderem as práticas quanto aqueles que são entendidos, em primeira instancia,
como os formuladores da ideologia imperial.

118
3.2. Do Movimento Político-social do Nazareno ao Jesus
Ressuscitado de Paulo. Releituras Paulinas sobre o Projeto de Reino de
Deus.
Após a morte de Herodes Magno, este declarado rei da Judeia pelo Senado
romano, a região da Palestina entrou em uma maciça rebelião político-social. Para
conter a comoção era necessário acionar forças auxiliares quando ocorriam
distúrbios locais, uma vez que não havia legiões estacionadas no estado judaico,
ou acionava-se o legado sírio e suas legiões para que o poder imperial fosse
restabelecido quando ocorresse alguma reação de maior proporção.
Roma buscou adotar medidas distintas para manter a ordem: a primeira foi
à instalação dos filhos de Herodes no poder (Antipas na Galileia e Arquelau na
Judeia e Samaria). Ao perceber a ineficiência do último, Roma acabou por adotar
um sistema que adotava o domínio “direto” e o “indireto”. A autoridade suprema
caberia a um governador romano, residente na Cesareia Marítima, e assuntos
domésticos judaicos ficariam aos cuidados da aristocracia sacerdotal. Apesar disto
o ambiente instável se manteve e deu brecha para a formação de uma série de
movimentos de resistência, violenta e não violenta, do tipo profético e messiânico.
Estes movimentos também estavam ancorados na crescente crise econômica
que a região da Palestina se encontrava. Em especial a crescente pressão
econômica sobre o campesinato que contava com altas taxas e tributos e pela
participação numa vida econômica de crescente monetarização. Como
consequência houve um maior aumento do endividamento, perda e
desapropriação de terras levando a uma reestruturação social, em que a terra
estava cada vez mais concentrada nas mãos da aristocracia nativa e os
camponeses se tornavam meeiros, diaristas ou à margem das relações
socioeconômicas (HORSLEY, 2010: 10; FREYNE, 2008: 40-41).
Dentro deste quadro endêmico surgiram personagens como Judas, ao norte,
na Galileia, Simão, a leste, em Pereia, além do Jordão, e Atronges, ao sul, na
Judeia. Mas também emergiram indivíduos como João, cognominado o Batista103,
e Jesus. Todos eles apresentando uma dimensão para a solução do caos que a
Palestina Romana vivenciava, neste sentido, todos de caráter local ou regional.
Buscando instaurar uma nova ordem política, buscando uma nova base estrutural
de autoridade social e uma definição de identidade cultural. É por isto mesmo que
estes movimentos apresentaram-se como apocalípticos, pois apenas com o

103
Sobre uma interessante análise do movimento de João Batista ver: ALMEIDA, V. As Víboras e o
Machado: Um líder popular chamado João e cognominado o Batista (I EC). Monografia. Rio de Janeiro:
UFRJ/IH, 2012.

119
advento iminente do deus judeu o poder romano seria destruído (CROSSAN,
1995: 30-31; 60). É claro, que é possível perceber profundas diferenças entre
João Batista e Jesus. Entre elas está a concepção de reinos, enquanto o primeiro
anunciava um reino por vir, o segundo entendia que o reino já se processava.
Assim, podemos colocar Roma e a Palestina Romana lado a lado no que diz
respeito a um momento de tensão e instabilidade, ambas necessitadas de um
personagem capaz de reunir tributos suficientes para contornar a situação. Para
Roma foi Otávio o concorrente vitorioso, para a Palestina Romana, segundo a
literatura judaico-cristã, foi Jesus o filho do carpinteiro de nascimento miraculoso.
A agenda política de Jesus estava ancorada em três grandes eixos:
comensalidade aberta, igualdade e justiça. Elementos completamente contrários
às reformas político-social e econômica de Otávio. Uma vez que, o príncipe
romano propôs o acesso aos bens de consumo de forma hierarquizada e deixava
bem demarcado o papel e função social de cada indivíduo nesta sociedade.
Em outras palavras, enquanto no programa de Jesus haveria uma forte
integração entre os membros sem fazer distinção social e com fácil acesso a
produção. No modelo de Otávio a sociedade romana estava mais ou menos
dividida em dois grandes grupos, conforme nos indica Gerhard Lenski (189-296):
a primeira compreendia os governantes que giravam em torno de 1% da
população e que detinham pelo menos metade das terras, os sacerdotes que
detinham cerca de 15% das propriedades, os arrendatários (iam de generais a
burocratas especializados) e os mercadores (parcela que por vezes provinha de
camadas mais baixas, mas que poderiam conseguir considerável riqueza e poder
político). O segundo grupo era composto por camponeses (que em muitos casos
sobreviviam da produção de substância, já que cerca de 2/3 de sua produção
eram destinadas a venda), os artesãos (que correspondiam a 5% da população e
apresentavam maior status quando comparado aos camponeses), por fim
estavam os degradados (previam origem, ocupação ou mesmo condições ditas
como rejeitadas) e os dispensáveis (em torno de 10% da população que iam de
mendigos e foras da lei até ladrões, trabalhadores diaristas e escravos).
Não bastasse isto, Jesus também incomodava as autoridades do Templo de
Jerusalém. O motivo do incomodo centrava-se no fato de que Jesus tratava das
enfermidades sem curar a doença, atuando como um mantedor alternativo dos
limites de um modelo subversivo para os procedimentos estabelecidos por sua
sociedade. Toda vez que Jesus tratava alguém ou expulsava demônios, ele não
apenas apontava um caminho alternativo para reintegração do sujeito, como

120
também rompia ou demonstrava resistência ao sistema imperial que detinha o
monopólio da cura ao controlar o Templo.
Destarte, todas as medidas e propostas de Reino de Deus do Nazareno
sugeririam uma afronta direta ao Templo e ao modelo de dominação romana,
Jesus era um inimigo de Roma e por isto mesmo teve uma vergonhosa morte
cruz. Servindo de exemplo a todos os seus seguidores e patrocinadores das
consequências de uma afronta a Roma. Mas a cruz não representou apenas a
morte de Jesus, era também o significado simbólico de que não havia nenhum
outro tipo de sociedade possível ao não ser a estabelecida por Otávio Augusto.
Um ato e discurso tão impactantes que acabaram se tornando um elemento
a ser respondido, já nas primeiras décadas após o ocorrido, por aqueles que
acreditaram nos ensinamentos e palavras de Jesus e que buscaram dar
seguimento ao seu movimento, buscando por intermédio de técnicas de
memorização transmitir e registrar os conhecimentos de e sobre Jesus. Um bom
exemplo para corroborar esta preocupação dos primeiros seguidores de Jesus são
os escritos autênticos de Paulo que vão em certa medida, em primeiro lugar, fazer
uma interpolação quanto à morte de cruz. Se originariamente simbolizava a
vergonha e o terror, agora assumiria o contexto de vitória sobre o Império. Sem a
morte e a ressurreição de Jesus, segundo Paulo, não haveria salvação. E por este
motivo era central que a atmosfera das casas-igrejas estivessem permeadas pela
constante consideração de que Jesus havia morrido (ELLIOTT, 2004: 168-169).
Outro elemento decisivo neste contexto pós-Jesus, foi de reler o seu
programa de reino, ou melhor, as indagações feitas por seus seguidores foram:
como colocar em prática uma proposta tão radical instaurada por Jesus em nossa
realidade? E quem estaria à frente na condução da aplicação do Reino de Deus?
Estas perguntas de imediato demonstram o pouco cuidado que os primeiros
cristãos tiveram com o Jesus que viveu e andou pela Galileia, mas nos ajudam
também a perceber o reconhecimento de certa incapacidade por parte de seus
seguidores em dar continuidade em sua inteireza ao reino.
Nesta conjuntura Paulo compreende que o reino realmente estava
instaurado por conta da morte e ressurreição de Jesus, mas o reino vivia em
coexistência com a ordem imperial até o retorno do Jesus Ressuscitado (1Cor 15:
24-28):
A seguir haverá o fim, quando ele entregar o reino a Deus Pai,
depois de ter destruído todo o Principado, toda a Autoridade, todo
Poder. Pois é preciso que ele reine, até que tenha posto todos os
seus inimigos debaixo dos seus pés. O último inimigo a ser
destruído será a Morte, pois tudo ele pôs debaixo dos pés dele. Mas
quando ele disser: “Tudo está submetido”, evidentemente excluir-

121
se-á aquele que tudo lhe submeteu. E quando todas as coisas
tiverem sido submetidas, então o próprio Filho se submeterá àquele
que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo em todos.

Fitzmyer (2008: 571-572) e Horsley (1998: 204-206) ponderam que a


parousia mencionada por Paulo alude ao tempo presente, uma vez que ela está
em direta contrapartida a ideia de consumação final (ei*'ta toV tevloz). Ou melhor,
com a ressurreição de Jesus o reino foi instaurado e seu objetivo último é
entregar o reinado a “Deus Pai”, após a destruição de “todo o Principado, toda a
Autoridade, todo Poder”. Estas categorias mencionadas por Paulo, segundo os
autores, devem ser lidas como associações diretas a instituições políticas imperiais
que são correspondentes a morte e que detêm um poder sobre-humano.
Outro ponto tocante da citação acima é a rivalidade construída por Paulo
entre o Cristo e Augusto no que diz respeito a quem seria o verdadeiro “senhor do
tempo”. Augusto era tido como o senhor do tempo, pois seu nascimento
miraculoso (era, na verdade, filho de Apolo) e filiação divina (filho adotivo do deus
César) eram elementos presentes ou previstos pela teogonia romana de que um
filho de deus conduziria Roma aos novos tempos. Um nascimento que foi capaz de
alterar as lógicas temporais, um exemplo material disto estava na construção de
um gigantesco horologium (relógio de sol), como é possível vê sua reconstrução
abaixo (Figura 18).

Figura 18: Reconstrução do horologium (relógio de sol), a sombra do obelisco indicava o Altar da Paz
Augustana no dia do aniversário de Augusto. Obtido em: PIRES, T. Arte e Poder: a Propaganda
Política no Principado como Campo de Experimentação Comparativa. Dissertação. Rio de
Janeiro: UFRJ/IH, 2012.

O relógio contava com um obelisco de quase 100 pés (30 metros) de altura,
extraído do Egito104, e que projetava a sua sombra sobre a praça pavimentada de
travertino com marcas das horas do dia, dos meses e das estações. Na ponta do
obelisco havia um globo de bronze, projetando a sombra para indicar o calendário

104
Pires (2012: 31) lembra que o obelisco continha uma inscrição que anunciava a subordinação do
Egito ao controle do governante. O que foi lido pelo mesmo como uma maneira definitiva de se
estabelecer o poder militar como a garantia de paz ao Império.

122
religioso e cívico. No dia 23 de setembro, data do equinócio de inverno e do
aniversário de Augusto, a sombra do obelisco atingia o centro do Ara Pacis. O
calendário e o globo eram a indicação de que Augusto era o senhor do tempo e do
mundo e o sucesso desta concepção pode ser facilmente atestada com a adoção
do calendário pelo proconsul da Ásia, baseado no aniversário do princeps
(CROSSAN e REED, 2007: 102; PIRES, 2012: 31).
Contudo como o passo acima (1Cor 15: 24-28) evidencia há outro “senhor
do tempo” e este é Jesus ressuscitado que atestou, segundo Paulo, ser o
verdadeiro filho de Deus e “senhor do tempo” ao morrer e ressuscitar e trazer ao
mundo uma esperança salvífica àqueles tidos como degradados e dispensáveis. A
garantia para estes indivíduos estaria respaudada no Espírito, elemento
conjuntamente com a concessão de morte e ressurreição determinante no modelo
paulino de reino. O processo de salvação teria se iniciado no passado, passava no
presente na direção da futura consumação. Desta forma, a ação do Espírito era a
certeza de que Cristo para além de filho de Deus era também o senhor do tempo
(CROSSAN e REED, 2007: 162-163; 224).
Outra clara alusão da rivalidade assumida entre Augusto e o Jesus
ressuscitado está no emprego de termos tais como ekklēsia (assembleia) e archē
(reinado), que são conceitos próprios de um ambiente helênico e adotado pelos
dois modelos de sociedade. Outro ponto diz respeito ao emprego do termo senhor
por Paulo, que era destinado também ao imperador. Esta oposição declarada na
sociedade alternativa é o que Elliott (2004: 183) chamou de mensagem
imperialista da cruz. O autor previlegia a cruz, por entender que toda a
mistagogia paulina perpassa no âmbito da cruz. Em outras palavras, a cruz é a
alegoria máxima o que sintetiza todo o programa paulino, seja ele quando se
refere a uma clara contestação ao Império seja quando ele lança os princípios que
constituem esta teologia.
O projeto de Reino de Deus tinha como principal pilar de sustentação a
defesa de uma sociedade igualitária, justa e pacífica por meio de alianças ou
integrações entre os cristãos. A igualdade é levada tão a sério a ponto de que os
limites entre a identidade judaica ficarem mais flexíveis, como vimos no capítulo
2, e homens e mulheres poderem gozar das mesmas funções. No que diz respeito,
as alianças e integrações entre os cristãos era central as coletas feitas para auxílio
de membros espalhados em outras zonas do Império (2Cor 8: 1-12) ou mesmo o
forte estímulo para que os membros das comunidades não buscassem resolver
suas divergências em tribunais dos “injustos” (1Cor 6: 1-3). Assim, era
fundamental também a atuação e a cooperação do “corpo espiritual” (seguidores

123
de Jesus) frente à disseminação do movimento e oposição ao poder sobre-
humano imperial.
Em outras palavras, o Reino de Deus do Jesus ressuscitado de Paulo,
implicava numa independência e autonomia das casas-igrejas com relação ao
“mundo” (Império Romano). A consequência disto é que Paulo indicava que as
divergências e carestias existentes nas comunidades deveriam ser resolvidas
entre eles mesmos. Esta independência também era uma forma concreta, ao ver
de Paulo, do distanciamento entre o império e suas comunidades. Além disso, é
neste contexto que a liberdade era instaurada, uma liberdade sem violência e que
ao mesmo tempo buscava se distanciar de tudo aquilo que aprisionava.
Por isto mesmo era cobrado um comportamento justo dos seguidores do
Jesus ressuscitado (1Cor 6: 7-10):
De qualquer modo, já é para vós uma falta entre a existência de
litígios entre vós. Por que não preferis, antes, padecer uma
injustiça? Por que não deixais, antes, defraudar? Entretanto, ao
contrário, sois vós que cometeis injustiça e defraudais – e isto
contra vossos irmãos! Então não sabeis que os injustos não
herdarão o Reino de Deus? Não vos iludais! Nem os devassos, nem
os idólatras, nem os adúlteros, nem os depravados, nem as pessoas
de costumes infames, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os
bêbados, nem os injuriosos herdarão o Reino de Deus.

A passagem acima deixa claro que a comunidade de Corinto deveria ter um


comportamento social completamente distinto, pois o Reino de Deus era apenas
para aqueles que eram justos. Horsley (2004: 243) diz que desta forma esta
teologia defendia uma comunidade de “santos” e que era por definição
diametralmente oposta ao “mundo” (Império Romano). Em que o nível de
santidade era ditado a partir do comportamento, das relações sócio-éticas e da
manutenção da justiça. Assim, nos termos de Horsley, tínhamos uma sociedade
alternativa ao modelo romano.
Esta sociedade alternativa só deveria apenas se subordinar a “Cabeça
espiritual” (Jesus ressuscitado), uma vez que sem o advento do Cristo, tais coisas
não seriam possíveis. Mas há de se indagar se em nível de função todos eram
vistos com o mesmo peso. Apresentando de outra forma, se todos eram
igualmente vistos ou se haveria alguma proeminência. Já vimos de alguma
maneira, ao longo da presente Dissertação, que um dos elementos centrais a
pergunta aqui proferida é o batismo. Pois, é a partir do Espírito que se forja a
identidade ‘cristã’ e também é dele que se advém o dom de curar, profetizar, ser
um glossolálico, entre outros.

124
Entrementes, se analisamos também que este mesmo Espírito era o
responsável pela desigualdade entre os membros ao delegar cargos mais ou
menos prestigiosos (1Cor 12: 28-30), veremos que o Espírito que une é o mesmo
que separa.
O Cristo de Paulo também parece ter estabelecido, segundo o próprio
apóstolo, outro critério de desigualdade e este estava correlacionado à experiência
visionária de ver Jesus (1Cor 15: 4-8):
Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras.
Apareceu a Cefas, e depois aos doze. Em seguida, apareceu a mais
de quinhentos irmãos de uma vez, a maioria dos quais ainda vive,
enquanto alguns já adormeceram. Posteriormente, apareceu a
Tiago, e, depois, a todos os apóstolos. Em último lugar, apareceu
também a mim como a um abortivo.

Em outras palavras, a apostolicidade se tornava o cargo mais importante


neste contexto e apenas àqueles que diziam terem visto o Cristo – ou melhor,
eram testemunhas oculares da instituição do reino – podiam usar o título de
apóstolo. Este dado é deveras interessante, pois nos informa que já nas primeiras
gerações que sucederam Jesus havia um descompasso entre os que lembravam e
aqueles que estavam autorizados a lembrar de e sobre Jesus. Assim, os
cristianismos originários iniciaram um processo de eclosão do movimento
originário de Jesus. E era decisivo o olhar que se tinha ou se construía em torno
do Jesus ressuscitado. Melhor dizendo, se o Cristo estaria mais ou menos próximo
das ideias do Nazareno que circulou pela Palestina na primeira metade do século I
EC.
Outro sintoma destas reconstruções do Jesus ressuscitado e o seu reino
encontra-se na epístola aos Efésios. Cristo nesta circunstância não assume mais o
papel daquele que irá destruir os Principados e Autoridades, mas é
condescendente com os mesmos, isto é, Cristo agora revela “o mistério oculto” de
Deus aos Principados e Autoridades, tornando-os co-participantes do reino de
Deus (Ef 3: 9-12):
[...] e de por em luz a dispensação do mistério oculto desde os
séculos em Deus, criador de todas as coisas, para dar conhecer aos
Principados e às Autoridades nas regiões celestes, por meio da
Igreja, a multiforme sabedoria de Deus, segundo o desígnio
preestabelecido desde a eternidade e realizado em Cristo nosso
Senhor, por quem ousamos nos aproximar com toda confiança pelo
caminho da fé em Cristo.

Kümmel (2003: 460; 471) sugere a ideia de um universalismo de Cristo


igualando os cristãos-gentios aos judeus-cristãos, com base na remoção da
separação entre Israel e os gentios mediante um ato conciliador de Cristo. E o

125
mistério oculto, seria justamente a possibilidade do ingresso de gentios e judeus
nas comunidades paleocristãs paulinas.
No capítulo anterior fizemos uma ampla explanção entre comunidades
cristãs com associações voluntárias e com cultos de mistério. Uma das conclusões
obtidas é que o batismo era decivo para o estabelecimento de uma nova realidade
que estava sujeita as demandas daqueles que se entendiam como os “legitimos”
portadores do falar de Jesus, bem como da conjectura de seu tempo.
Admitindo isto, tendemos a concordar com Kümmel que na epístola aos
efésios o reino de Deus preserva as categorias “judeus” e “gentios”, ao invés de
criar uma identidade judaica mais fluida. A resposta para a preservação das
categorias talvez esteja em dois pontos:

1º) A queda do Templo que simbolizava a inexistência de um centro cultual


que possibilitasse a conexão entre o divino e o terreno, um tipo de simbologia
decisiva na região do Crescente Fértil e de toda a Bacia Mediterrânica a partir do
período helenístico. O Templo de Jerusalém funcionava, assim, como o lugar do
culto oficial simbolicamente falando105. Enquanto que as sinagonas estabelecidas
ao longo do Império Romano operavam como locais de culto ou salas de reunião
reconhecidas pelo Templo, mas que não gozavam do mesmo status jurídico e
significativo da instituição central (LUNDQUIST, 2008: 133). É claro que, estas
mesmas sinagogas serão decisivas para a reestruturação da memória, da
identidade e da lógicas de culto judaica pós-70, mas uma reestruturação que
pensava a partir do impacto do fim de sua base ou fundamento distintivo e
representativo.
Neste sentido a observação de Kümmel de que há um universalismo pode
ser pensada para além de um mecanismo de agregar os “gentios” a comunidade.
Uma vez que, em alguma medida, como vimos no capítulo anterior, estes
indivíduos já eram atuantes como mantedores, participantes e financiadores das
sinagogas e com o modelo do Paulo Histórico a integração só intensificada. O
universalismo, proposto por Kümmel, deve ser visto também como um
mecanismo de rever as lógicas comportamentais e organizacionais das sinagogas
ou casas de culto, visto que, cada uma delas agora passava a desempenhar o
papel de vínculo entre o sagrado e o terreno e não mais como sendo unicamente

105
Lundquist (2008: 134) atenua ainda que o templo por contemplar cultos sacrificiais e estritos apenas
aos sacerdotes acabava por deter mecanismos que o tornavam superior à sinagoga que detinha cargos
funcionais podendo ser obtido mais facilmente por indivíduos que normalmente não seriam nomeados
sacerdotes no templo.

126
o espaço para que os judeus distantes do templo e sem condições de ir até ele
pudessem realizar suas práticas e costumes.
2º) As lideranças locais detinham uma compreensão distinta do reino de
Deus não dentro dos moldes do Nazareno ou mesmo, no que diz respeito ao nível
das ideias, do Paulo Histórico. Esta segunda afirmação está diretamente ligada a
anterior, pois se estas lideranças estão mudando ou apresentando uma leitura
distinta a de Jesus e Paulo é por certo que estão recebendo ou detêm memórias
destas personagens que devem ser assimiladas a partir de seu tempo e espaço.
Ou seja, nos referimos as lideranças de casas de culto que pensam o Reino de
Deus a partir de uma identidade em construção que leva em conta onde esta casa
está inserida e as relações estabelecidas entre judeus e o império a nível global e
regional.

Neste sentido, Barth (2008: 170-171) observa que o Cristo da epístola aos
Efésios é o que compreende a dimensão da vitória e do reino que se entende
como uma monarquia absoluta e que garante uma relativa igualdade do príncipe
subjugado frente ao monarca. Em outros termos, um reino que não elimina os
seus oponentes, independentemente de quem sejam, mas que os conserva de
forma submissa. Uma estrutura deveras similar a romana que mantém a sua
governabilidade por intermédio de acordos entre autoridades locais, reconhecendo
o seu poder local em troca da fidelidade. Uma constatação que parece ir de
encontro com o passo abaixo (Ef 1: 18-23):
Que ilumine os olhos dos vossos corações para saberdes qual é a
esperança que o seu chamado encerra, qual é a riqueza da glória da
sua herança entre os santos e qual é a extraordinária grandeza do
seu poder para nós, os que cremos, conforme a ação do seu poder
eficaz, que ele fez operar em Cristo, de entre ressuscitando-o de
entre os mortos e fazendo-o assentar à sua direita dos céus, muito
acima de qualquer Principado e Autoridade e Poder e Soberania e de
todo nomem que se pode nomear não só neste século, mas também
no vindouro. Tudo ele pôs, acima de tudo, como Cabeça da Igreja,
que é o seu Corpo: a plenitude daquele que plenifica tudo em tudo.

Mas o leitor pode nos indagar se o autor da epístola aos Efésios está de fato
dialogando com a estrutura romana ou tão somente com a mesma. Neste sentido,
se faz necessário acionar as três principais correntes de leitura da documentação
que compreendem que a carta toma como base um tipo de linguagem
disseminada, a saber:

127
1º) Defesa de que os termos acima estão vinculados ao campo gnóstico.
A base da argumentação é que o gnosticismo do tipo Valentiniano fala de
até trinta "eras" que expressam e constituem a "plenitude" de um perfeito pré-
existente senhor de todas as eras. Também é feita a referência aos
"governantes", um corpo de seres celestiais, por vezes identificadas como o
zodíaco ou os planetas que determinam o destino do homem com um punho de
ferro. Embora Paulo fale em Efésios de um "governante do ambiente" e "senhores
deste mundo de trevas" (Ef 2: 2 e Ef 6: 12), em Efésios 1: 21 ele não usa as
expressões técnicas "eras" e "regras". Portanto, há uma ausência de provas que
comprovem que para a teoria de que ele está usando termos gnósticos é válida.

2º) Em vez de ideias gnósticas, o vocabulário de Paulo pode refletir a


deificação dos potentados políticos.
O Paulo da epístola ao Efésios se insere dentro de um contexto ou tendência
helenística que atribuía titulações divinas para os seus governantes. Os termos
usados para descrever os poderes em Efésios 1:21 frequentemente denotam
governantes políticos na literatura jurídica, financeira e filosófica, podendo ainda o
poder militar também ser significativo. Em Romanos 13: 1-7 Paulo descreve o
estado romano com um dos termos usados em Efésios e Colossenses para os
principados e potentados. Por isso, é possível que o autor de Efésios, ao se inserir
neste ambiente, queira chamar o Cristo Ressuscitado, o Grande Rei acima de
todos os reis humanos praticados na terra. Mesmo quando ele menciona a morada
celestial das competências e chama-lhes as forças espirituais, ele pode ter
pensado especificamente em seus representantes na terra.

3º) O Paulo de Efésios ao adotar o termo “poderes” está tentando retomar a


uma literatura própria do cânon Hebraico (mais especificamente, a suas últimas
porções apocalípticas).
Esta linha defende que a linguagem adotada na carta aos Efésios é própria
de um ambiente apocalíptico judaico intertestamentário e rabínico. O próprio
corpus paulino, segundo esta linha, permite uma descrição das funções e
dimensões que seus hospedeiros combinados cumpririam:
(1) Alguns deles são identificados com política (judaica ou gentílica),
financeira, jurídica, eclesiástico, tribal, potentados que dominam a terra entre
outros. Assim a terminologia de Paulo parece reproduzir em grego a nomenclatura
ocasional veterotestamentária dos governantes e juízes.

128
(2) Alguns termos paulinos estão ligados tão intimamente com referências à
morte e a vida, presente e futuro que parecem denotar determinantes naturais,
biológicos ou históricos da vida humana.
(3) Os "títulos" mencionados em Efésios 1: 21 podem muito bem incluir
formas tais como de endereço e nome próprio que se tornaram títulos. Além
disso, tais títulos como imperador, salvador, benfeitor e o pai da pátria pertencem
a este contexto.
(4) Por último, se os "elementos do mundo" pertencem à companhia desses
poderes em tudo, em seguida, estão também previstas tradições, doutrinas e
práticas que dizem respeito à aplicação do direito na religião e na vida privada
(BARTH, 2008: 171-175).

Para resumir, das assertivas mencionadas acima, a que mais concordamos é


com a segunda, por ser ela que traz um sentido de disputa política e insere a
carta em seu ambiente redacional, ou melhor, o texto passa a ser compreendido
dentro de uma herança cultural compartilhada. Muito embora, em certa medida
também seja possível trabalhar com a terceira possibilidade. O problema da
terceira leitura sobre potentados e principados estaria no esforço em enquadrar o
corpus paulino a um tipo de judaísmo singular e como vimos no primeiro capítulo,
e de certa forma também discutido no segundo, melhor seria entender o judaísmo
ou judaísmos existentes neste corpus como frutos de interações culturais e não
uma tradução ocasional da documentação veterotestamentária.
O mais provável é que o que Paulo de Efésios compreenda por principado e
potestades a partir de uma combinação entre duas dimensões. Em outros termos,
há o reconhecimento de estruturas de poder terrenas, mas elas estão submetidas
ao verdadeiro senhor do tempo que estabeleceu a sua estrutura de poder “nas
regiões celestes”, tal como vimos em Efésios 3: 18-23. Com isto, o Paulo desta
epístola não detem mais a tensão terrena entre dois reinos, pois estes reinos
coexistem de forma pacífica, dado que estão em planos distintos.

3.3. Um grupo de “Loucos, Desonrados e Estúpidos, e Somente para


Escravos, Mulheres e Criancinhas”? Discutindo um Pouco mais sobre as
Agendas de Reino de Deus.
Nos tópicos anteriores enquanto discutíamos sobre os contextos de
surgimento de figuras como Jesus e Otávio, e suas consequentes propostas de
(re)estruturação da sociedade, abordamos de forma geral ou citamos apenas
alguns elementos como mulheres, escravos, crianças e etnias que são elementos

129
decisivos para se estabelecer uma maior ou menor aproximação entre os
senhores do tempo Augusto e Jesus Cristo. Sendo agora o momento adequado
para problematizarmos de forma mais detalhada cada um destes grupos, uma vez
que já pontuamos o batismo como o forjador de uma nova realidade e como o
ambiente é decisivo para formação desta realidade ou realidades.
Assim, em alguma medida, estamos também retomando a discussão do
capítulo anterior, quando frisávamos a relevância de se estudar a estrutura
familiar, uma vez que as reuniões e rituais de iniciação e manutenção destas
realidades se davam em esferas inicialmente privadas e que paulatinamente se
tornaram públicas.
Contudo, aqui não pensamos na dimensão de uma sociologia do espaço,
mas como os agentes e/ou grupos acima listados são pensados em cada
programa de reino/império. Neste sentido, não é mera coincidência a opção pela
escolha da frase de Celso como parte do título deste tópico, pois em poucas
palavras o mesmo chamou a atenção para o ambiente, já esmiuçado no capítulo
II, e os agentes que circulavam e/ou mantinham o movimento judaico-cristão, a
ser cada um deles trabalhados abaixo. Em outras palavras, na avaliação do
intelectual romano do século II, a família estava no cerne do crescimento de um
novo movimento.
Por fim, antes de adentrarmos propriamente dito as temáticas, é importante
ponderar que grande parte, se não todos os grupos aqui a serem abordados, são
frutos de um olhar mais recente por parte dos pesquisadores. Tanto no campo
dos Estudos Clássicos quanto nos Paleocristianismos106 passou a abranger uma
maioria tradicionalmente excluída das narrativas e interesses dos historiadores.
Em outras palavras, só é possível discutir escravos, mulheres, crianças e outros
grupos até então a margem, por conta de uma forte tendência, de quarenta anos
para cá, em repensar questões metodológicas significativas para os problemas,
demandas e perguntas existentes no tempo presente.

106
No caso dos paleocristianismos foi por volta dos anos de 1960, em um primeiro momento,
preocupado em trazer Paulo para dentro do Judaísmo. Tendo como grande marco deste processo o já
mencionado em diferentes momentos o trabalho de E. P. Sanders (1973). E em segundo, uma leva de
estudiosos permeados de leituras pós-coloniais e feministas que reclamam a necessidade de uma virada
sobre os estudos paulinos, bem como a formulação de uma metodologia ou metodologias capaz(es) de
dar respostas as inúmeras perguntas que o seu tempo colocava sob o movimento cristão.
Neste sentido, foi carro chefe a chamada Nova Perspectiva que por intermédio de um olhar
transdisciplinar lançou os seguintes desafios: (a) compreender melhor Paulo e a igreja primitiva, (b)
reconciliar erudição bíblica contemporânea com a Teologia, (c) construir uma base comum entre
católicos e protestantes, (d) melhorar o diálogo entre cristãos e judeus e (e) concretizar um fundamento
teológico para a justiça social. Para um maior detalhamento sobre esta questão e um aprofundamento da
ótima feminista sobre os estudos paulinos. Ver: Cavalcanti (2014) Mulheres em Paulo. Observações
metodológicas e um breve balanço historiográfico.

130
3.3.1. Mulheres.
No processo de crescimento ou criação de novos núcleos translocais dos
paleocristianismos as mulheres tiveram um papel de destaque. MacDonald (2003:
159-160) partindo das falas de Celso preservadas no documento “Origines contra
Celso” e do trabalho de Rodney Stark argumenta que a base para perceber o
papel das mulheres está na compreensão da menor estrutura social do mundo
antigo: famílias extensas. E consequentemente o estudo deve perpassar pela
dimensão de orientação ou compreensão de lógica social que conectava estes
indivíduos: o patriarcalismo.
Estas bases são tão determinantes que autores como Gerd Theissen (1982:
107-108) afirmara que a sobrevivência do cristianismo estava calçada na tese do
“patriarcalismo do amor”. A base de sua afirmação advém na interpretação das
categorias “fortes” e “fracos” (1Cor 1:27; 2Cor 12: 7-9) que seriam constituidoras
de um ethos social e religioso nas comunidades cristãs helenísticas capazes de
fomentar um conservadorismo moderado. O que levou a uma concessão social,
em que o respeito e o amor eram impostos aos “fracos” por aqueles que eram
socialmente mais “fortes”.
Em outros termos, a principal função do “patriarcalismo do amor” seria
integrar membros de diferentes estratos de forma eficaz, sendo a base para a
formação de uma instituição sólida e duradoura. Assim, para Theissen a relação
estabelecida entre os “fracos” e os “fortes” resolveu os problemas de organização
e preparou o cristianismo para receber as grandes massas. Ela ainda se tornou
significativa para a sociedade como um todo, proporcionando uma "solução
realista" para o problema de integração social.
Contudo, tendemos a concordar com Elisabeth Fiorenza (1983: 50) ao
afirmar que ao fazer tais assertivas Gerd Theissen ignorou todo o processo de
construção histórica dos textos, bem como a autoria dos mesmos. Theissen
acabou por abrir mão de um modelo teórico-metodológico apropriado para pensar
os textos dentro de seus contextos e lugar de vida.
Além disso, Fiorenza nos lembra que em diferentes momentos ao longo do
movimento paulino é possível rastrear mulheres atuantes e se estas foram
silenciadas paulatinamente dentro de um processo de institucionalização das
casas-igrejas isso se deve ao emprego da linguagem androcêntrica, em que as
mulheres eram apenas mencionadas para sinalizar um comportamento

131
inadequado para as lideranças masculinas, tal como o excerto que afirma que as
mulheres devem ficar caladas nas assembleias (1Cor 14: 33-36)107.
Assim sendo, para entender como as mulheres são assimiladas dentro das
propostas de Reino de Deus devemos ter em mente não um olhar teleológico tal
como o de Theissen, mas um olhar crítico e preocupado com o ambiente em que
cada carta emergiu. Neste sentido, é relevante num primeiro momento mapear a
menção de mulheres ao longo da documentação autêntica e na deuteropaulina e
quais as políticas sócio-sexuais que são apresentadas nas mesmas.
Ao longo das sete cartas autênticas (1Coríntios, 2Coríntios, Romanos,
Filemon, Gálatas, 1Tessalonicenses e Filipenses) há a menção de sete mulheres, a
saber: Febe (Rm 16: 1-2), Junia (Rm 16: 7), Cloé (1Cor 1: 11), Prisca (1Cor 16:
9; Rm 16: 3-5), Evódia e Síntique (Fp 4: 2-3), e Ápia (Fm 2); para além do fato
de na carta aos Romanos (Rm 16: 1-15) serem citadas mais sete mulheres, para
além de Prisca, Junia108 e Febe: Maria, Julia, Trifena, Trifosa, Pérside, a irmã de
Nireu e a mãe de Rufus.
A forma como a maioria destas mulheres é apresentada não apenas ilustra o
papel de proeminência das mesmas, mas também nos ajuda a pensar que o
processo de manutenção e propagação do movimento estava pautado em um
projeto missionário em pares. Além do mais, todo o texto empregou o verbo
kopiaō (realização de trabalho difícil) para designar atividades apostólicas. Mesmo
verbo empregado duas vezes por Paulo para referir a si mesmo em Gálatas 4: 11
e 1Coríntios 15: 10, além de ser usado mais quatro vezes na carta aos Romanos
exclusivamente para mulheres: Maria, Trifena, Trifosa e Pérside (MACDONALD,
1999: 207; CROSSAN e REED, 2007: 113-114).

107
Em meu artigo já mencionado na nota 103, apresento as principais teses sobre o referido excerto e
proponho uma alternativa à luz da Arqueologia, a saber:
(1) O excerto não é paulino, sua composição provém de um período posterior. Provavelmente em uma
fase de acirramento entre lideranças itinerantes e lideranças locais. Lideranças locais e
predominantemente masculinas não toleravam a possibilidade de mulheres obterem cargos funcionais
por intermédio do Espírito, uma vez que estariam se igualando aos mesmos que garantiam o seu
prestígio e função por intermédio de colaborações em reformas e cedendo ambientes de sua casa para
os cultos.
(2) Casas-sinagogas ou casas-igrejas ganham maior destaque, pós-queda do Templo (WHITE, 1996:
59). Assim sendo, há certa possibilidade de datar temporalmente este passo. De forma a entendê-lo
como fruto de comunidades judaico-cristãs que buscavam reestruturar suas marcas e identidades
étnicas. Além de estarem muito impactadas com o imaginário da Revolta Judaica ocorrida em
Jerusalém. Assim sendo, algumas lideranças masculinas optam por se distanciar do discurso radical
paulino e se decidem por dialogar com costumes e formas de organização patriarcais.
108
É válido lembrar que por muito tempo Junia foi identificada como homem pelos comentaristas. Seu
nome em grego é grafado no acusativo Junian. Por conta disso, passou a ser apontado como masculino.
Argumentando-se que Junian era o caso acusativo do nome masculino Junia(nu)s. Entretanto, há mais
de 250 casos na Antiguidade do emprego do nome Júnia para mulheres e nunca o uso da mesma forma
como abreviação para Junianus. Ver: Crossan e Reed, 2007: 114; MacDonald, 1999: 210.

132
Esta aparente igualdade entre casais missionários também acabou
respondendo nas interpretações de Paulo no que diz respeito ao casamento,
celibato e formas de atuação no interior das casas-igrejas. O capítulo 7 da
primeira epístola aos Coríntios é destinado a evidenciar uma igualdade entre
homens e mulheres, seja no casamento ou no celibato. Muito embora, Paulo
transpareça optar o celibato, sem que isso signifique que as mulheres estariam
em desigualdade caso optassem por um dos estados civis.
MacDonald (1996: 129-130) pondera que a preocupação de Paulo em inserir
lógicas das práticas sexuais estabelecidas e ainda fazer considerações sobre qual
seria o seu estado civil ideal tem relação direta com uma forma encontrada pelo
apóstolo de aprofundar suas críticas à realidade social vigente. Ou melhor, o
casamento é lido como um dos grandes símbolos de um protesto social. E sendo
este, por vezes, um dos elementos que determinará a reação da sociedade de
uma modo geral como tolerante ou hostil.
Por isto não é de se estranhar que a todo o momento ao longo do capítulo 7
da primeira carta aos Coríntios, Paulo cria elementos/comportamentos que ele
atribui ao “mundo” ou aos “eleitos”. Um exemplo disto é a questão da imoralidade
(πορνέια), entendida como uma ameaça para a vida dos solteiros, aqueles que
não possuem o dom especial de celibato e que podem levar a práticas como o
incesto, também mencionada em momento anterior pelo apóstolo na mesma
carta (1Cor 5: 1): “um dentre vós vive com a mulher do seu pai”.
Assim, parece que um dos efeitos do ensinamento de Paulo em 1Coríntios 7
é para por em prática as características de isolamento de prescrições de
endogamia. Um sistema de união entre os membros, no qual é proibido o
divórcio, é um meio de conter a imoralidade (1Cor 7: 1-7; 1Cor 9: 39). Embora
seja impossível ter certeza, é provável que, quando Paulo instrui as viúvas para
se casarem de novo "somente no Senhor", ele quer dizer que os novos
casamentos (casamentos realizados após a entrada na igreja e em contraste com
aqueles em vista, em 1Cor 7: 12-16) devem ocorrer entre os membros (1Cor 7:
39).
Por fim, chamamos a atenção a duas mulheres em específico: Febe e Cloé.
Ambas destoam das demais, pois não são enquadradas no modelo de atuações
missionárias em pares. Cloé é unicamente mencionada logo no início da primeira
epístola aos Coríntios, tendo sido graças a indivíduos de sua casa que Paulo ficou
sabendo das tensões e rivalidades ocorrentes na comunidade (1Cor 1: 11).
MacDonald (1999: 200-201) argumenta que a expressão “membros da casa
de Cloé” seria um indício do status dessa mulher na sociedade e comunidade

133
coríntia. O termo “membros da casa de” deve ser compreendido dentro da lógica
de família extensa. Assim sendo, pode estar se referindo a um escravo ou um
liberto ou trabalhadores dependentes. A autora nos diz que apesar de não
podermos afirmar se ela fazia parte como membro efetivo da assembleia, ela
certamente foi uma mulher de certa importância (provavelmente era uma
patrocinadora de viagens e/ou abrigava em sua casa reuniões). Caso contrário,
Paulo não teria levado em consideração as informações dadas pelo membro de
sua casa, nem muito menos escrito a carta sem antes averiguar.
Outra mulher aqui ressaltada é Febe, pois é chamada de protastis e
diakonos (Rm 16: 1-2), termos estes que acabam por torná-la o dado mais
significativo da atuação das mulheres em Paulo, pois nela se encontram o papel
de benfeitora e de liderança local. Ou melhor, num momento em que os
cristianismos urbanos estavam dependentes das lideranças locais e itinerantes o
que se observa são mulheres assumindo funções coiguais nas casas-igrejas e
como grandes patrocinadoras deste movimento (CASTELLI, 1999: 221-223;
MACDONALD, 1999: 208-209).
Além disto, a partir de Febe é possível traçar paralelos com outras mulheres
na Bacia Mediterrânica que tiveram uma atuação semelhante e que foram
reconhecidas também como benfeitoras, tal como Junia Theodora de Corinto.
Murphy-O’Connor em seu livro “St Paul’s Corinth: Texts and Archaeology” (2002)
nos apresenta dados das escavações de uma equipe francesa que em 1954
encontrou um túmulo com uma inscrição honorífica a uma mulher chamada Junia
Theodora.
Suas atividades são datas entre os anos 40 a 50 do século I EC. Por não
fazer menção ao nome do marido ou de sua família na inscrição acredita-se que
Junia Theodora era uma viúva e que atuava de forma independente. Ela é
definida como uma benfeitora, oferecendo hospitalidade e auxílio aos
necessitados, além de ser bastante influente na cidade, contribuindo para a
facilitação de negociações com a administração. Para isto, teria se beneficiado de
suas relações com autoridades de Corinto.
A partir dos casos de Junia Theodora e Febe percebemos que as relações de
patronagem eram essenciais para a manutenção das estruturas sociais mesmo
num ambiente como o das comunidades paulinas que se propunham a se
tornarem sociedades alternativas. Neste sentido, poderíamos dizer que, num
primeiro momento, Paulo neste aspecto não rompeu com a lógica estrutural da
sociedade mediterrânica. De fato, ele não rompeu, mas agregou novos dados ao
possibilitar uma relação entre homens e mulheres mais igualitária nas práticas

134
missionárias e na possibilidade de que uma mulher pudesse obter dons do
Espírito. Ainda que estas mulheres que obtinham o direto de ocuparem posições
prestigiosas por meio do Espírito também estivessem sujeitas às práticas
comportamentais, uma vez que estamos falando de um ambiente de uso público.
Nos referimentos mais especificamente a discussão do cobrir ou não a
cabeça para profetizar (1Cor 11: 4-10):
Todo homem que ore ou profetize de cabelos longos, desonra sua
cabeça. Mas toda mulher que ore ou profetize com a cabeça
descoberta, desonra sua cabeça; é o mesmo que ter a cabeça
raspada. Se a mulher não se cobre, mande cortar os cabelos! Mas,
se é vergonhoso para a mulher ter os cabelos cortados ou raspados,
cubra a cabeça! Quanto ao homem, não deve cobrir a cabeça,
porque ele é a imagem e glória de Deus; mas a mulher é a glória do
homem. Pois o homem não foi tirado da mulher, mas a mulher do
homem. E o homem não foi criado para a mulher, mas a mulher
para o homem. É por isso que a mulher deve disciplinar seu cabelo,
por causa dos anjos.

A maioria dos especialistas entende que a citação acima é paulina, mas que
deve ser entendida dentro de um contexto da comunidade coríntia que buscava
desafiar a desigualdade e afirmar de forma dramática a igualdade: os homens e
mulheres haviam invertido o modo de cobrir a cabeça na oração, de maneira que
os homens teriam a cabeça descoberta, mas nãos as mulheres. Paulo, por sua vez
para responder a esta ação recorre à ideia de que os códigos de vestimenta e
padrões sobre o uso de véu não deveriam ser abandonados, ainda que homens e
mulheres fossem iguais em Cristo. Em outras palavras, o ritual batismal abolia
apenas as diferenças hierárquicas e de subordinação, mas não as diferenças entre
homens e mulheres configuradas socialmente pelos costumes (CROSSAN e REED,
2007: 112-113)109.
Neste sentido, as mulheres ocupam um papel de grande destaque no Reino
de Deus expresso nas duas cartas aos Coríntios. Papel este que vai desde
financiadoras até atuantes nas casas-igrejas, podendo inclusive profetizar para
toda uma assembleia, desde que cumprissem os códigos de vestuário.
Contudo, o Reino de Deus expresso na epístola aos Efésios já não é tão
favorável a uma ‘emancipação’ feminina. Muito pelo contrário, nesta carta há uma
clara opção por uma sociedade de desiguais, tanto no apostolado quanto na
família. Ou seja, é a opção por uma hierarquia tanto do tipo vertical (casais, pais,
proprietários) quanto horizontal (marido/esposa, pais/filhos, senhores/escravos).

109
Há autores que defendem ainda que as mulheres cristãs de Corinto estavam seguindo uma prática de
cultos circundantes a comunidade e por isto Paulo se viu obrigado a intervir se valendo de uma conexão
com o divino para a permanência de práticas e padrões de vestuário. Ver: Fitzmeyer, 2008: 405-406.

135
No caso específico das mulheres é possível perceber no passo abaixo (Ef 5: 22-
32):
As mulheres estejam sujeitas aos seus maridos, como ao Senhor,
porque o homem é cabeça da mulher, como Cristo é cabeça da
Igreja e o salvador do Corpo. Como a Igreja está sujeita a Cristo,
estejam em tudo sujeitas aos seus maridos. E vós, maridos, amai
as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por
ela, a fim de purificá-la com o banho a água e santificá-la pela
palavra, para apresentar a si mesmo a Igreja, gloriosa, sem
mancha nem ruga, ou coisa semelhante, mas santa e irrepreensível.
Assim também os maridos devem amar as suas próprias mulheres,
como a seus próprios corpos. Quem ama a sua mulher ama-se a si
mesmo, pois ninguém jamais quis mal à sua própria carne, antes
alimenta-a e dela cuida, como também faz Cristo com a Igreja,
porque somos membros do seu Corpo. Por isso deixará o homem o
seu pai e a sua mãe e se ligará à sua mulher, e serão ambos uma
só carne. É grande este mistério: refiro-me à relação entre Cristo e
sua Igreja. Em resumo, cada um de vós ama a sua mulher como a
si mesmo e a mulher respeite o seu marido.

Como é possível perceber o texto parece menos preocupado com a


obediência das mulheres aos maridos do que a respeito do amor dos maridos por
suas mulheres. Uma vez que pareça mais fácil a obediência das mesmas do que o
auto-sacrifício dos maridos. E para tal recorre a três grupos de materiais
tradicionais: (1) A um hino cristológico anterior chamado “o amor de Cristo”
(expresso nos versículos 25 a 27) composto provavelmente em um meio judaico-
cristão. (2) A uma referência ao texto de Gênesis. (3) A presença de fragmentos
de ditos proverbiais de origem judaica ou gentílica (BARTH, 2011: 652; CROSSAN
e REED, 2007: 115).
Chamamos atenção, porém ao elemento dois que faz menção de um amor
de Cristo estabelecido com a Igreja e que é usado como paralelo entre o homem
e mulher. Esta relação Cristo-Igreja pode ser facilmente comparada com outros
casos difundidos na Bacia Mediterrânica. Barth (2011: 659) nos lembra que o
amor de Cristo toma o lugar dos amores de Zeus e Osíris, enquanto que a Igreja
obediente substitui Hera, a guardiã da moral, e Ísis. Mas podemos também fazer
a correspondência Cristo para Augusto, assim como Igreja está para Lívia. Uma
vez que Lívia se sobressai como a mãe dedicada e a esposa honrosa, portando a
beleza de Vênus e o caráter de Juno, como cantara Ovídio. Ou mesmo como
vimos num esquema imagético presente em uma das moedas apresentadas no
tópico anterior (Figura 15).
Outro bom exemplo de como Lívia foi empregada como um modelo de
mulher-esposa está no Ara Pacis (Figura 19):

136
Figura 19: Procissão em um sacrifício religioso, com ênfase na Domus augustae. O painel representa a
Domus Augustae em uma ordem decrescente de proximidade e relacionamento com o princeps,
conforme descrito nas RGDA. Na direita com o véu na cabeça e ao lado do clérigo com os fasces vemos
Agripa. A mulher ao seu lado representa Lívia, esposa de Augusto, e atrás dela vemos Tibério. A criança
entre eles pode ser apontada como Gaius caesar (VÁRHELYI, S. 2010: 80). Antonia menor está atrás de
Tibério e segura Germanicus pela mão, Drusus a acompanha. Este é o único que veste trajes militares e
Gaius e Germanicus65 vestem trajes dos participantes dos lusus Troiae (como Iulo usa no painel de
Enéias na ficha n 099). A representação das crianças simboliza a importância da preservação da família
e da hereditariedade para a vida pública. O caráter familiar deste painel humaniza a obra, a aproxima da
população ordinária que vislumbrava o monumento e, de certa forma, ensinava a população como se
portar em um rito religioso: as crianças são acalmadas por seus pais e uma mulher (atrás de Julia) leva
a mão à boca pedindo silêncio, pois era um momento de gravitas. Correlacionamos a ficha à variável de
análise Número 1 - Caracterização da figura do herói, por demonstrar submissão e respeito aos deuses,
representando pelo ideal da pietas. E também à variável de análise Número 3 - Mos Maiorum, por
demonstrar um rito religioso concernente com a religião do Estado romano e respeitando as tradições
dos antepassados. Obtido em: PIRES, T. Arte e Poder: a Propaganda Política no Principado como
Campo de Experimentação Comparativa. Dissertação. Rio de Janeiro: UFRJ/IH, 2012.

Na figura acima fica claro a tríade assumida por Lívia em contexto de pietas:
maternidade, a castidade, a fidelidade. Elementos estes que deveriam estar
presentes em toda a mulher romana de forma a manter o equilíbrio doméstico e
social. Outro elemento curioso que fica claro ao nos voltarmos ao Ara Pacis é que
a mulher ao se submeter ao marido está, na verdade, assimilando e se inserindo
em uma realidade social em que também é uma realidade cósmica. Isto é, Lívia
incorpora uma norma que é terrena, mas também é divina. Uma postura que
também parece presente na dualidade Cristo-Igreja, uma vez que o homem é o
Cristo e a mulher é a Igreja.
Em outras palavras, ao fazer esta correspondência o que se percebe é que
as alegorias duais Cristo-Igreja e Augusto-Lívia servem como prática pedagógica
de uma prática que visa se tornar normativa. Além de evidenciar que o modelo de
família e apostolado assumido na carta aos Efésios está muito mais próximo da

137
estrutura idealizada por Roma do que buscando romper com a mesma, como
aparece nas cartas autênticas.
É curioso ainda observar como essas simbologias estão intimamente
interligadas com o ritual batismal (Ef 5: 26), o que significa dizer que para além
do fato da estruturação hierárquica se constituir a partir do divino, o que já
tornaria um elemento para anulação de críticas, ainda há o aspecto do ingresso à
comunidade por meio do batismo que instaura esta realidade normativa, na qual
as mulheres são submissas aos seus maridos.

3.3.2. Crianças.
Desde Júlio César é perceptível à preocupação de Roma com o fator de
fertilidade, promulgando leis de forma a estimular o crescimento populacional.
Augusto mesmo, no ano 9 AEC, decretou uma lei que conferia preferências
políticas aos homens que procriassem três ou quatro filhos e impôs sanções
políticas e financeiras a casais sem filhos, mulheres solteiras com idade superior a
trinta anos e a homens solteiros acima dos vinte e cinco anos.
Estas leis demonstravam ou simbolizavam preocupação de Roma com a
posterioridade, ou melhor, representavam a importância da preservação da
família e da hereditariedade para a vida pública. E talvez seja por isso que o friso
oriental do Ara Pacis (Figura 19) contenha também a presença de crianças em
meio à ilustração de membros da família imperial num ato litúrgico. Uma delas se
agarra na toga do pai, enquanto a outra é silenciada por um ancião. E ainda
temos uma criança que se prende a dois dedos de sua mãe.
Apesar do estabelecimento de leis e da utilização imagética para disseminar
a importância das crianças como aqueles responsáveis pela perpetuação da
realidade vigente, isto não significou altas taxas de natalidade. Pelo que Tácito
transparece o que prevaleceu foi o interesse por poucos filhos e de preferência
homens110, de forma a evitar a partilha entre muitos herdeiros ou favorecer a
condição mínima de sobrevivência a família. O resultado disto foi uma escassez
demográfica por volta do século II EC, antes do início da grande primeira peste
(STARK, 2006: 132; 137).
Os primeiros grupos cristãos, por sua vez, parecem ter dado pouca atenção
à ideia de uma perpetuação. O próprio Paulo, como já comentamos no subtópico
anterior, admitiu que melhor fosse o celibato, tal como ele seguia (1Cor 7: 1-7).

110
Há um interesse trabalho sobre o impacto do infanticídio feminino e práticas abortivas em Roma e,
consequentemente, os tipos de enterramentos dados para crianças que morriam prematuramente. Ver:
Rawson, 2003: 277-297.

138
Uma das possíveis explicações para isto está na concepção de uma mentalidade
apocalíptica, isto é, que o fim dos tempos era próximo e a preocupação central
não seria a procriação/renovação do grupo, mas a adesão de novos indivíduos ao
grupo dos “eleitos”.
Ainda assim, Paulo na primeira carta aos Coríntios deixa escapar uma
preocupação dos membros sobre as crianças nascidas da união entre cristãos e
não cristãos, como é possível ler abaixo (1Cor 7: 12-14):
Aos outros digo eu não o Senhor: se algum irmão tem esposa não
cristã e esta consente em habitar com ele, não a repudie. E, se
alguma mulher tem marido não cristão e este consente em habitar
com ela, não o repudie. Pois o marido não cristão é santificado pela
esposa, e a esposa não cristã é santificado pelo marido cristão. Se
não fosse assim, os vossos filhos seriam impuros, quando na
realidade são santos.

Neste passo fica claro que há liberdade para os cristãos de manterem


casamentos mistos e que a criança nascida da união sempre terá a “santidade”
garantida. Isto é, a identidade cristã era perpetuada tanto pelo homem quanto
pela mulher, uma vez que, um dos pais é membro da comunidade cristã e a
criança consequentemente também passa a pertencê-la (FITZMYER, 2008: 301;
HORSLEY, 1998: 99-100). O que também significa dizer que tal como Augusto,
Paulo entendia a importância de introduzir as crianças desde os seus primeiros
anos a lógica social estabelecida, pois, por mais que no caso paulino houvesse a
concepção de uma ideia apocalíptica, os membros aparentavam demonstrar
alguma preocupação com a sua hereditariedade no Reino de Deus.
Entrementes, se a discussão sobre filhos e hereditariedade ocupava um
plano secundário, quiçá terciário nas cartas autênticas, nas disputadas, ao que
parece, a questão ganha maior notoriedade. Um fator, neste sentido, que deve
ser compreendido dentro do contexto de composição das mesmas.
Isto é, em primeiro lugar estamos falando de comunidades que cada vez
mais passam a usar ambientes primariamente privados que sofrem adaptações
para se tornarem públicos. E em segundo lugar, estamos tratando, falando mais
especificamente da carta aos Efésios, de um Reino de Deus que admite a
coexistência de outros reinos e que não está impactado com um fim dos tempos
iminente. Assim sendo, não é de se estranhar uma maior preocupação em delegar
as funções de cada membro nestas comunidades. No caso dos filhos o autor de
Efésios diz que (Ef 6: 1-4):
Filhos, obedecei aos vossos pais, no Senhor, pois isso é justo. Honra
a teu pai e a tua mãe – é o primeiro mandamento da promessa –
para seres felizes e teres longa vida sobre a terra. E vós, pais, não

139
deis a vossos filhos motivo de revolta contra vós, mas educai-os
com correções e advertências que se inspiram no Senhor.

O presente passo pondera a partir de uma argumentação de caráter


teológico (“o mandamento da promessa”) a postura que os filhos devem ter
perante os seus pais. E os pais devem atuar segundo uma disciplina divina, pois
“se inspiram no Senhor”. Esta correlação é curiosa, pois estabelece uma clara
associação com a estrutura patriarcal das sociedades mediterrânicas em que
determinava que o patria potestas era o responsável por todos os membros da
família e os bens. Assim, ele foi considerado responsável pelo comportamento dos
seus membros. O castigo aplicado pelo chefe da família pelos delitos cometidos
pelos filhos reflete na instauração de estrutura jurídica que determina que o filho
sempre ficará refém ou sob a tutela do pai, tornando-se livre dele apenas pela
morte ou emancipação111 (WILLIAMS, 2007: 60-61).

3.3.3. Escravos.
A gema de Augusto, datada por volta do ano 10 AEC, (Figura 20) revela dois
aspectos do Império Romano. O primeiro deles já amplamente abordado: a
teogonia imperial, responsável por instaurar e perpetuar uma era de estabilidade
e prosperidade em Roma.
Esta ideia está sendo projetada na parte superior em que é possível
visualizar Augusto, personificando Júpiter, entronizado ao lado Roma. Seu olhar é
direcionado para Tibério que parece estar descendo a partir de um carro dirigido
por Vitória. O lituus na mão de Augusto indica, portanto, que a vitória de Tibério
foi conquistada sob os auspícios de Augusto. O jovem Germânio está armado ao
lado de Roma, pronto para a próxima campanha. Os dois príncipes são emissários
do governante universal, sua invencibilidade é transferida para eles como uma
entidade discreta. Acima da cabeça de Augusto, o Capricórnio brilha contra um
disco e uma estrela sinalizando a predestinação mítica e cósmica. Para, além
disto, vemos divindades, como o Oceano, que estão coroando Augusto.
Na parte inferior da gema é possível ver o impacto do poder das armas
romanas para a confirmação da ordem mundial divinamente ordenada. Na parte
esquerda da cena vemos soldados romanos erguendo uma trophaion e o
escorpião, signo do zodíaco de Tibério, é visível em um dos escudos. A referência
é provavelmente a vitória sobre os ilíricos, não muito tempo depois da aniquilação

111
A emancipação logicamente refere-se unicamente aos homens. as mulheres, dentro desta
estruturação, estavam sempre sujeitas ao domínio.

140
das legiões de Varo na Floresta de Teutoburgo. À direita temos duas
personificações arrastadas recalcitrantes, bárbaros germânicos talvez para a
vitória monumental. A mulher carregando lanças provavelmente simboliza tropas
espanholas e o homem um trácio. Esta cena faz alusão às futuras vitórias de
Tibério no Norte (ZANKER, 1988: 230-231).

Figura 20: Gema de Augusto. Augusto entronizado, como Júpiter, ao lado de Roma. Ele detém o lituus
como símbolo de alto comando militar, para os príncipes antes dele guerras salariais sob suas ordens.
Atrás do trono, personificações da Paz e da Terra. Abaixo, os soldados romanos e personificações de
auxiliares com bárbaros subjugados. Disponível em: ZANKER, P. The Power of Images in the Age of
Augustus. Michigan: University of Michigan Press, 1988.

141
Esta parte inferior é muito impactante, em especial por ilustrar indivíduos
subjugados que podem ser lidos sob dois vieses:

(1) A consumação da predestinação de Roma de ser um grande império


estava intimamente ligada a sua supremacia bélica. E por isto mesmo a
necessidade de Roma de construir arquétipos visuais para retratar os diferentes
povos conquistados. Crossan e Reed (2007: 245-246) ao falar do Sebastion
relembram que foi encontrado uma galeria com cinquenta estátuas de ‘nações’
conquistadas personificadas, esculpidas com vestes e caracterizações autóctones,
com identificação presente no pedestal. Entre as recuperadas estavam estatuas
judaicas, egípcias, cipriota e cretences, esta seleção fornecia narrativas visuais da
extensão do império augustano.

(2) O poderio do Império Romano dependia de sua capacidade em ampliar


seus domínios e obtenção de mão de obra para as zonas rurais e urbanas. As
lógicas organizacionais e sociais com a guerra foram impulsionadas, em especial
entre o quarto e o terceiro século quando houve alterações na economia agrícola
e nas formas de trabalho que vigoravam no campo, o que fomentou uma maior
migração de camponeses falidos, particularmente após as guerras contra a Sicília
e contra a Gália, em finais do período republicano (PIRES, 2012: 43).
Este fluxo populacional tanto de livres quanto de escravos foi pensado como
base para o projeto imperialista que operava deslocando a mão de obra livre para
outras regiões e setores ao longo do império ou obtendo escravos de guerra para
um aumento de uma mão de obra mais barata para a atuação em zonas rurais e
urbanas. Neste sentido, era eficaz o uso da arte como disseminador na Bacia
Mediterrânica de ideias de cidadania e de escravidão, os vetores principais da
identidade romana e cultura romano-helenística, antes entendida como um capital
cultural concentrado nas mãos dos ricos, que se tornou um meio de socialização
dos novos romanos e de criação de uma cultura da elite imperial (WOOLF, 2005:
122).

Assim, a parte inferior da Gema de Augusto funcionava como um dispositivo


imagético para reforçar a ideia da supremacia de Roma via vitórias militares e
também de demonstrar a importância da escravidão e conquistas dos territórios
dominados para a manutenção do poderio romano.
Contudo, o cenário da dominação e da escravidão não estava apenas
configurado no âmbito da guerra. Como ponderamos brevemente no ponto dois, o

142
emprego da mão de obra perpassava diferentes âmbitos da sociedade,
Representando inclusive uma porcentagem considerável, em que a estimativa
feita é de 35% a 40% da população total na península itálica. Os escravos
poderiam se encontrados em mercados, casas, cargos administrativos,
prostituição, portadores de cartas para solicitação de hospitalidade, atuação em
atividades domésticas das mais variadas, paedagogi (acompanhantes de jovens
mestres pelas ruas para formação escolar), cozinheiros, arquitetos, gladiadores,
entre outros. (WILLIAMS, 2007: 111-112; GLANCY, 2002: 39-40).
Neste sentido, sabendo que o cristianismo paulino foi um fenômeno urbano
e que as reuniões ocorriam em casas não é de se estranhar a presença destes
personagens sendo mencionados ou retratos nas cartas paulinas, podendo estes
escravos vir a se tornarem cristãos. Assim, há de se pensar em que medida estes
escravos que passam a gozarem da identidade cristã são compreendidos nos
Reinos de Deus. Em outras palavras, o questionamento aqui feito é se a crítica de
Elliott (1998: 48-58) sobre uma leitura distorcida de uma ética conservadora
paulina sobre a temática é ou não adequada e que estaria ancorada nos seguintes
aspectos:

1º) Problemas de tradução e interpretação em 1Cor 7:17-24.


O autor afirma que há uma generalização sobre a afirmação de Paulo de que
os membros das assembleias deveriam permanecer em seus papeis sociais.
Segundo o autor a expressão em grego mallon chrèsai pode ser pensada em dois
sentidos: “por todos os meios aproveita” ou “antes faça bom uso”. E a escolha
pela tradução depende do contexto assumido para o excerto.
Além disto, todas as traduções para a palavra klèsis também tem
representado um problema, pois significaria literalmente “chamado” e vem sendo
traduzida como “estado”, “a vida... atribuída”, “condição”, “posição na vida” ou
“situação”, expressões que não dão conta do verdadeiro sentido da palavra. Elliott
(1998: 49-50) afirma ainda que o anacronismo existente não se perpetua em
outros momentos em que o verbo é usado com o mesmo sentido no corpus
paulino, apenas no referido passo ocorre isto.

2º) Desconexão entre a passagem 1Cor 7:17-24 e todo o capítulo 7 da carta


de primeira Coríntios.
Todo o capítulo sete da primeira carta aos Coríntios é marcado por
suscesíveis concessões feitas por Paulo a diferentes eventos da vida humana,
inclusive a questão do celibato e do matrimônio. Seria estranho pensar que

143
apenas no final do capítulo, Paulo tomaria uma postura conservadora. A
afirmação é reforçada com a presença de partículas adversativas em todo o texto,
inclusive no excerto referente aos escravos e que em cada vez que são
empregadas assumiriam o seguinte comportamento: (a) estabelecimento de uma
regra geral que expressa à preferência de Paulo, depois (b) há a apresentação de
um caso excepcional, marcado com uma frase como “mas se...”, pela qual (c) é
permitida que a discrepância da regra geral não seja censurável e por fim (d) é
dada uma justificativa para a concessão feita.

3º) O impacto de uma tradição luterana pautada na leitura das


pseudoepigráficas.
Martinho Lutero ao buscar alargar a ideia de vocação cristã acabou
constituindo uma tradição em que harmonizava o capítulo sete da primeira
epístola aos coríntios com as cartas pseudoepigráficas, tendendo afirmar que no
quesito escravidão os textos atribuídos a Paulo só ampliaram o seu tom
conservador, por conta de um perigo crescente de radicalismo das comunidades
que estava levando até as últimas consequências a ideia de um igualitarismo por
intermédio do Espírito.

Das cartas consideradas autênticas dois momentos são decisivos para


pensar o tema escravidão. O primeiro deles é o alvo de crítica de Neil Elliott e o
segundo é a pequena epístola destinada a Filemon e que é portada pelo escravo
Onésimo. Deter-nos-emos na análise da passagem presente na primeira carta aos
coríntios, uma vez que esta faz parte do corpus documental que a presente
Dissertação se dedica. Assim sendo, expressamos abaixo o referido passo (1Cor
7: 20-23):
Permaneça cada um na condição em que se encontrava quando foi
chamado por Deus. Eras escravo quando foste chamado? Não te
preocupes com isto. Ao contrário, ainda que te pudesses tornar
livre, procura antes tirar proveito da tua condição de escravo. Pois
aquele que era escravo quando chamado no Senhor, é liberto do
Senhor. Da mesma forma, aquele que era livre quando foi
chamado, é escravo de Cristo. Alguém pagou alto preço pelo vosso
resgate; não vos torneis escravos dos homens.

A leitura da passagem permite fazer algumas considerações. A primeira


delas é que Paulo estaria incitando a permanência da condição em que se foi
encontrado previamente, pois a libertação provém do Senhor. Assim como quem
é liberto se torna “escravo de Cristo”.

144
Fitzmyer (2008: 305-306) pondera que a identidade cristã foi tida como o
elemento mais importante da realidade pós-batismal e defendida por Paulo em
todas as comunidades fundadas ou mantidas em contato pelo mesmo. De forma
que a etnia, a questão social e o estatuto legal ficassem em segundo plano, tendo
como princípio máximo para suas comunidades a ideia expressa no capítulo doze
da primeira epístola aos coríntios (1Cor 12: 13): “Pois fomos todos batizados num
só Espírito para ser um só corpo, judeus e gregos, escravos e livres, todos
bebemos de um só Espírito”.
Além disso, Fitzmyer aponta que a questão de ser escravo de Cristo e não
do homem tem relação com fato que muitos escravos prestavam atividades
sexuais para os seus senhores o que sob a identidade cristã implicou
determinados problemas de ordem comportamental. Uma vez que Paulo no
capítulo cinco até o sete da primeira carta aos coríntios faz duras críticas sobre a
prostituição e a prática sexual fora do casamento, afirmando que aquele que o
pratica não poderia comungar de uma identidade cristã plena. O que é o mesmo
que dizer que os escravos estariam em desvantagem para viverem e atuarem nas
casas-igrejas, uma vez que não eram responsáveis pelos seus próprios corpos
(GLANCY, 2002: 50).
Neste sentido o batismo para o escravo foi pensado em bases distintas para
um indivíduo livre. E a razão para isto centra-se no iminente confronto entre
Paulo e os proprietários. Para evitar o confronto, Paulo cria um discurso retórico
abrindo espaço para que os proprietários cristãos tivessem maior visibilidade que
os membros escravizados. O que também pode explicar porque Paulo diz ter
recebido informações de membros da casa de Cloé (1Cor 1: 11), ao invés de
informar quem exatamente foi até ele relatar sobre os confrontos entre os
membros da assembleia de Corinto.
Outro ponto a ser levantado é a questão da alforria. Todo o liberto mantinha
alguma relação com o seu antigo mestre, geralmente chamado de patrono. O que
implica dizer que Paulo, ao afirmar que melhor seria ser escravo de Cristo, ele
está trabalhando com o sistema de patronato próprio da sociedade romana que
delegava direito absoluto para o chefe da família sobre os escravos. Mas também
pode estar trabalhando com uma postura dos escravos comum a época, nos
referimos aos escravos sagrados. Temos alguns relatos de escravos que recorriam
a templos para obtenção de alforria ou em caso de maus tratos tentavam asilo e
se tornavam servos dos deuses, ótimos exemplos disto advêm do templo de
Artêmis de Éfeso (CROSSAN e REED, 2007: 226; ROGERS, 2012: 241).

145
Estes dados fazem voltar à colocação de Elliott que afirmou que é incoerente
pensar a postura de Paulo quanto aos escravos como conservadora. É inegável o
levantamento feito por Elliott, bem como sua crítica literária. Contudo, o autor
absteve-se de olhar o ambiente em que a comunidade coríntia estava inserida,
além de ponderar quem era os que cediam suas casas para as reuniões e eram os
benfeitores de Paulo. Em outras palavras, Paulo previu que escravos e livres eram
iguais enquanto marca identitária, mas não avançou quanto um total rompimento
da lógica escravocrata.
Neste sentido, o que vemos é que essa postura de Paulo abriu espaço para
um maior acirramento para as normas de conduta entre proprietários e seus
escravos no interior das comunidades, como parece indicar a epístola aos Efésios
(Ef 6: 5-9):
Servos, obedecei, com temor e tremor, em simplicidade de coração,
a vossos senhores nesta vida, como a Cristo; servindo-os, não
quando vigiados, para agradar a homens, mas como servos de
Cristo, que põem a alma em atender à vontade de Deus. Tende boa
vontade em servi-los, como ao Senhor e não como a homens,
sabendo que todo aquele que fizer o bem receberá o mesmo para
com eles, sem ameaças, sabendo que o Senhor deles e vosso está
nos céus e que ele não faz acepção de pessoas.

Assim o que fica perceptível é que na comunidade efésia está ocorrendo uma
clara aplicação do direito romano, que defendia que o chefe da família detinha o
poder absoluto sobre seus escravos. A diferença aqui é que o poder de propriedade
provém de um direito divino, uma vez que o servir ao mestre é como servir a Cristo
(BARTH, 2011: 757; WILLIAMS, 2007: 112).

3.3.4. Judeus e Gentios.


A Gema de Augusto (Figura 20) na parte inferior nos permitiu falar sobre a
temática escravidão, como ponderamos no subtópico anterior. Entrementes, há
um assunto maior que a imagem nos permite problematizar: integração dos
povos conquistados e a identidade romana. Já ponderamos que nas reformas
augustanas foi central uma revisão e produção de elementos que garantissem o
imaginário da identidade romana, sendo o recurso das artes fundamental para
essa construção.
Contudo, dentro desse projeto também havia o programa de integração dos
povos conquistados nessa atmosfera romana configurada a partir de Augusto. A
este programa chamamos de romanização, e é por isso mesmo que não devemos
entender as categorias “romano”, “nativo” entre outras como estanques. Mas tal
como pondera Hingley (2010: 82):

146
(...) as ideias de romano e nativo, de elite e não elite e de
incorporação e resistência caem por terra, pelo menos, em certa
medida, num império global que recria a si mesmo por meio de
compromissos locais. O Império Romano torna-se uma série por
demais variável de grupos locais, mantidos juntos, de forma rude,
pelas forças direcionais de integração que formavam um todo
organizado que sobreviveu por vários séculos. A heterogeneidade
torna-se uma força que ata a estabilidade imperial – uma
ferramenta destinada à criação de uma ordem imperial perpétua .

E sendo o Império Romano fruto de acordos entre Roma e grupos locais, era
determinante, em primeiro lugar, trazer para o panteão romano a(s) divindade(s)
de maior(es) notoriedade(s) da região. Um belíssimo exemplo disso foi
apresentado neste capítulo por intermédio das moedas que foi possível ver de que
forma a família imperial dialogava com a principal divindade da região de Éfeso, a
conexão entre Roma e Éfeso por meio do culto era tão intensa que passava a
ideia de uma união matrimonial.
Mas não foi apenas dessa forma que Roma disseminava seu poderio nas
regiões conquistadas. Foi decisiva também a criação ou restauração das urbs, foi
a vida urbana que proporcionava a coesão ao longo do império. E a partir disto é
possível pensar em três etapas no processo de romanização, a saber:

1º) Estradas e portos.


Com finalidades práticas e ideológicas, as estradas eram usadas,
primariamente, e construídas pelos legionários. O comércio e à comunicação
também se valeu desses mecanismos de integração entre as cidades do império e
a capital.
O sistema rodoviário ligava-se aos portos, muitos deles construídos e
renovados com técnicas que empregavam concreto hidráulico (mistura de areia
vulcânica capaz de escorrer com alta velocidade por esquadrias divididas em
seções e flutuar sobre o mar), inventado no período. Surgiram portos e cais, e
com isso Roma se tornou independente das baías naturais e das grandes cidades
antigas da costa. Redesenhava-se o mapa do Mediterrâneo com centros nodais
para servir a seus interesses, às legiões em suas excursões às periferias, à
importação de produtos dos mais variados provindos do Oriente.
Em outras palavras, por intermédio da integração do sistema rodoviário e
portuário mesmo as regiões mais remotas dos Apeninos, nos Balcãs ou da
fronteira alemã estavam em constante contato, conseguindo importar e exportar
seus produtos e mesmo a terem o direito de selecionar que alimentos iriam inserir

147
ou não em suas dietas (CROSSAN e REED, 2007: 174-175; MORLEY, 2007: 94-
95).

2º) Estátuas e templos.


Diz respeito ao culto ao imperador, mas também a todo o conjunto de
elementos reais e abstratos que constituíam a teologia imperial romana. Tema
central do presente capítulo e também foi trabalhado de forma esparsa nos
capítulos anteriores. É importante frisar que elementos imagéticos e textuais
foram produzidos pela família imperial, pelos grupos locais e por aqueles que
almejavam alguma ascensão social como meio de integração ao império. O que é
o mesmo que dizer que o impacto da produção cultual e cultural de Roma sob os
povos conquistados também advém do interesse direto destes grupos em
manterem e obterem poder por intermédio de um diálogo com Roma e esta
teologia imperial.
Assim sendo, o culto imperial foi uma eficaz forma adotada por Roma para
perceber as formas de domínio, sem a necessidade de uma ação constante do uso
militar, bem como padrões de heterogeneidade na definição de identidade cultural
romana (HINGLEY, 2010: 83; MENDES, 2007: 5-6).

3º) Aquedutos e banhos.


Por fim, a terceira fase do processo de urbanização romana discernível nos
relatório arqueológicos diz respeito à proliferação de meios de recreação e
entretenimento, principalmente na intensificação dos banhos públicos no Oriente
e em áreas remotas. Os balneários construídos em larga escala desenvolveram-se
ao longo de toda a dinastia julio-claudiana e obteve-se o seu clímax no início do
século II EC, empregando argamassa e tetos abobadados. O uso da cerâmica de
hipocausto possibilitou a criação de sistemas subterrâneos de aquecimento com
circulação de água por meio dos canos de argila instalados no interior das
paredes.
Os banhos tinham baixo custo e serviam como higienização da população.
Tinham piscinas quentes, frias e mornas, bibliotecas, salas de leitura, quarto para
massagens e exercícios, barbeiros e depiladores. Tornando-se assim importantes
centros de sociabilidade em centros urbanos. E sendo ainda talvez o maior ou um
dos maiores impactos do domínio romano sobre o império como um todo, pois a
engenharia e a arquitetura (inclua-se nesta lista a rede de água e esgoto que, por
vezes, era inexistente ou precária em determinadas regiões) necessárias para a
instalação desses balneários são resultados da centralidade e estabilidade

148
proporcionada por Roma. Ou melhor, a unidade política trouxe consigo um grau
de convergência notável nas práticas cotidianas, enquanto a cidade de Roma foi o
lugar onde a variedade coexistia e a unidade do império foi celebrada,
reconciliada e reciclada (CROSSAN e REED, 2007: 176-177; MORLEY, 2007: 94).
Neste sentido, o que vemos é a tendência a uma globalização que entende
que o ideal é um modelo romano que sofre pequenas mudanças em cada região.
Ou melhor, a postura de Roma para a integração dos povos conquistados é o
direito a diversidade, mas visando a unidade no imaginário em constante
(re)construção da alegoria “romano”. Perante a estes padrões e práticas culturais
globais, demonstrados pelos elementos brevemente descritos acima, temos os
Reinos de Deus em curso, que também entenderam a necessidade de dar
respostas aos diferentes povos existentes nas assembleias.
Nas duas cartas endereças aos cristãos de coríntios é possível perceber o
tipo de encaminhamento que Paulo deu a questão da diversidade e unidade
estava pautada em alguns conceitos. O primeiro deles é a de um passado como
entre judeus e gentios (1Cor 10: 1-4):
Não quero que ignoreis, irmãos, que os nossos pais estiveram todos
sob a nuvem, todos atravessaram o mar e, na nuvem e no mar,
todos foram batizados em Moisés. Todos comeram o mesmo
alimento espiritual, e todos beberam a mesma bebida espiritual,
pois bebiam de uma rocha espiritual que acompanhava, e essa
rocha era Cristo.

No capítulo 2 ponderamos que estabelecer claros paralelos entre os rituais


praticados entre os membros das assembleias de Corinto com os judeus do tempo
de Moisés é um marco de continuidade e de identidade construída. Em outras
palavras, não haveria distinção entre um indivíduo que nasceu ou se tornou judeu
por proselitismo e aquele que apenas se batizou, pois todos comungam de um
mesmo passado. Neste sentido, Paulo visa um Reino de Deus que entende que há
uma enorme diversidade, mas os rituais tornam aqueles inicialmente diferentes
em iguais.
Um processo em termos diferente do estabelecido pelo Império Romano,
que apesar de trabalhar com o de conceito “romano” como o evento norteador
das diversas etnias, a identidade romana não estava acessível a todos. Já na
primeira epístola aos coríntios, o ritual batismal possibilita o acesso a todos,
independentemente da etnia alcançar o status de “cristão” ou de um “judeu-
cristão”, uma vez que o cristianismo é um dos diversos judaísmos em curso neste
momento.

149
E o elemento que garantia essa igualdade identitária estava no fato de que
com o batismo o indivíduo era levado a uma nova realidade (2Cor 5: 17-18):
Se alguém está em Cristo, é nova criatura. Passaram-se as coisas
antigas; eis que se fez realidade nova. Tudo isto vem de Deus, que
nos reconciliou consigo por Cristo e nos confiou o ministério da
reconciliação.

Victor Furnish (1984: 314-315) observa que os elementos “nova criatura” e


“realidade nova” estão associados a um apocalipticismo judaico que detém claros
paralelos com escritos de Qumram, Esdras e 1 Enoque. Ao usar um recurso
perfectível dentro de uma vasta literatura judaica Paulo, segundo Funish, estaria
buscando elementos ou categorias dentro de uma herança compartilhada judaica
de inserir todo aquele que não fosse primariamente um judeu ou que não pudesse
gozar de uma identidade judaica no seu sentido pleno, tal como os judeus
prosélitos.
Neste contexto é chave a ideia de “ministério da reconciliação”, uma vez que
é ela que assume a gerência ou possibilita a agência do Espírito no batizado e o
reporta a uma realidade de tensão entre dois mundos: o Império Romano e o
Reino de Deus, até o momento do retorno de Jesus (FURNISH, 1984: 334-335).
Em outras palavras, a igualdade e o acesso a todos a uma mesma
identidade se torna possível a qualquer indivíduo por intermédio de uma ação
conjunta do batismo e da ciência de que ao ser batizado o judeu-cristão passou a
pertencer a toda uma rede de ritos, normas e tradições já existentes no tempo de
Moisés, e a certeza do batizado de que ele está inserido plenamente em toda esta
realidade está associado diretamente ao “ministério da reconciliação”.
Contudo, o tom dado pelo autor da carta de efésios para se distanciar das
cartas anteriormente mencionadas (Ef 2: 14-19):
Ele é nossa paz: de ambos os povos fez um só, tendo derrubado o
muro da separação e suprimido em sua carne a inimizade – a Lei
dos mandamentos expressa em preceitos – a fim de criar em si
mesmo um só Homem Novo, estabelecendo a paz, e de reconciliar a
ambos com Deus em um só corpo, por meio da cruz, na qual ele
matou a inimizade. Assim, ele veio e anunciou paz a vós que
estáveis longe e paz aos que estavam perto, pois, por meio dele,
nós judeus e gentios num só Espírito, temos acesso ao Pai.
Portanto, já não sois estrangeiros e adventícios, mas concidadãos
dos santos e membros da família de Deus.

O templo de Jerusalém aqui é apresentado como o elemento real e simbólico


que separava judeus e gentios, fomentando “a inimizade”. A sua queda
representou a instauração da paz por intermédio de Jesus ressuscitado. Em
outras palavras, o templo é lido como o lugar da desigualdade, da tirania e do

150
caos e a ordem foi reestabelecida por Cristo que é entendido pelo autor como um
ato de criação que é o “Homem Novo” (BARTH, 2008: 308-309).
Esse “Homem Novo” pode ser num primeiro momento entendido como um
similar da alegoria “nova criatura”, apresenta na segunda carta aos coríntios.
Uma vez que ambas as categorias são possíveis pelo patrono Jesus Ressuscitado
e inserem o indivíduo por meio do ritual batismal em uma nova realidade. A
distinção entre ambas começa com a realidade que é posta por meio das
mesmas. Como vimos, todos da comunidade coríntia tem acesso de igual forma a
identidade judaica, mas os cristãos da assembleia de Éfeso não, sua identidade
originária está preservada. Em outras palavras, enquanto “cristão” todo o
membro é “concidadão dos santos e membros da família de Deus”, mas ele
continua sendo claramente um judeu ou um gentio e isto é reconhecido pela
comunidade e não anulado. O autor da carta aos efésios, neste sentido, parece
dialogar com lógicas identitárias do Império Romano quando preserva a ideia de
categorias e de estrutura global em meio à diversidade.

3.4. Um Breve Balanço Conclusivo.


Estamos chegando ao fim do último capítulo da presente Dissertação, mas
antes de encerrá-lo gostaríamos de considerar esta lúcida fala de Bruno Latour em
seu livro “Jamais formos modernos”:
“Por falta de opções, nos autodenominamos sociólogos,
historiadores, economistas, cientistas políticos, filósofos,
antropólogos. Mas, a estas disciplinas veneráveis, acrescentamos
sempre o genitivo: das ciências e das técnicas. Science studies é a
palavra inglesa; ou ainda este vocabulário por demasiado pesado:
“Ciências, técnicas, sociedade”. Qualquer que seja a etiqueta, a
questão é sempre a de reatar o nó gódio atravessando, tantas
vezes quantas forem necessárias, o corte que separa os
conhecimentos exatos e o exercício do poder, digamos a natureza e
a cultura. Nós mesmos somos híbridos, instalados precariamente no
interior das instituições científicas, meio engenheiros, meio
filósofos, um terço instruídos sem que o desejássemos; optamos
por descrever as tramas onde quer que estas nos levem. Nosso
meio de transporte é a noção de tradução ou de rede. Mais flexível
que a noção de sistema, mais histórica que a de estrutura, mais
empírica que a de complexidade, a rede é o fio de Ariadne destas
histórias confusas” (Latour, 1994: 9).

A presente colocação de Latour parte de suas inquietações ao ler notícias de


jornal e refletir sobre sua própria formação. A genialidade de suas percepções não
está no fato dele perceber que o conhecimento é transdisciplinar, mas de perceber
que apesar de estarmos vinculados a categorias primariamente estanques a todo
o momento estamos sendo bombardeados de ideias, informações e culturas que

151
nos levam a dar respostas constantes sobre quem somos, quem queremos ser e a
que passado iremos nos reportar para dar sentido a identidade construída e
reconstruída.
Esta ideia se fez presente ao longo de todo este capítulo, uma vez que ao
apresentar três propostas de organização político-social tivemos que estabelecer
um diálogo, ou melhor, vislumbrar uma rede intensa entre elas e com outros
personagens e eventos que lhes eram contemporâneos.
E talvez este seja o ponto alto do presente capítulo e que encerra a ideia dos
capítulos anteriores. Isto é, o Império Romano a partir de Augusto e suas
conquistas instaurou uma nova realidade para Roma e seus domínios. No entanto,
os romanos e os povos dominados apresentaram respostas e forjaram novas
realidades frente ao choque cultural que eram levadas em seu cotidiano. Para os
grupos cristãos paulinos o batismo sem dúvida alguma foi a evento norteador
para a construção destas respostas diárias.

152
Conclusão.

A ideia da presente Dissertação nasceu de um rápido diálogo entre meu


orientador André Chevitarese e eu, em meados de 2012, após uma atenta leitura
aos primeiros versículos da carta de primeira coríntios em que Paulo afirma não
ter batizado ninguém da comunidade para evitar que ocorressem intrigas entre os
membros. A curiosidade foi num primeiro momento deixada de lado já que o
tema central do trabalho monográfico era algo mais simples, porém não menos
importante.
Ao retomar a ideia em 2013 com o intuito de acessar o curso de pós-
graduação, já estava ciente da necessidade de se estabelecer um profundo
diálogo com as lógicas estruturais romanas e toda uma herança cultural
compartilhada no Mediterrâneo. Visto que estes grupos cristãos atuavam,
interagiam e viviam a partir destes vetores. Entretanto, outro campo de interesse
surgiu: uma análise mais pormenorizada do corpus paulino de forma a pensar se
haveria uma unidade ou não ritualista, bem como uma unidade no quesito
impacto do ritual batismal.
Foi neste sentido, que constituiu o primeiro capítulo. Ou melhor, em
primeiro lugar ponderamos a importância de um trabalho transdisciplinar para se
pensar a pluralidade de ideias existentes nos textos atribuídos a Paulo e que se
encontram no cânon cristão e dentro desta diversidade como responder aos
significados distintos dados ao batismo.
O segundo capítulo foi o que podemos chamar de uma grande
experimentação para melhor encarar as comunidades paulinas. Em primeiro lugar
pensando-as como mais uma dentre as várias associações voluntárias
disseminadas ao longo do vasto Império Romano. Indicando quais os problemas
de pensá-la desta forma e quais seriam os ganhos reais com a adesão do conceito
para a realidade das assembleias cristãs. O que nos demandou também repensar
o próprio conceito de associação voluntária, pois como vimos, a comparação aqui
proposta é feita desde meados do século XIX, mas que vem sofrendo constantes
revisões por conta das descobertas arqueológicas e de um maior estreitamento
entre as ciências humanas.
Entre as descobertas foi decisiva a casa-igreja de Dura Europos e a própria
cidadela em si. Sem Dura Europos não poderíamos pensar em reformas
arquitetônicas feitas em casas por diferentes grupos religiosos para atender as
demandas de seus ritos, nem mesmo pensar que já no terceiro século da Era

153
Comum nós teríamos rituais batismais sendo feitos no interior de casas e não em
rios ou lugares com água corrente.
Entrementes, o grande diferencial desta descoberta está na leitura que pode
ser feita sobre a mudança significativa que há entre os cristãos de Corinto e os de
Éfeso no que diz respeito ao acesso ao sagrado e as normas de conduta e
sociabilidade. Assim sendo, um elemento que nos ajuda a repensar sobre as
hierarquias e um leve processo de institucionalização já em finais do século I, se
consideramos a epístola aos efésios como uma documentação datada entre finais
de século I EC a início do século II EC.
Para reforçar a experimentação de comunidades cristãs paulinas como
associação voluntária foi também indispensável problematizarmos o lugar do
misticismo paulino em seu batismo. A conclusão chegada foi que para Paulo o
evento de Damasco é decisivo e está totalmente permeado em seu batismo,
contudo a experiência visionária para os membros já é vista pelo próprio apóstolo
como um problema. Dado que ela é necessária para adentrar a uma nova
realidade, mas ela não necessariamente permite que todos gozem dos mesmos
dons do Espírito.
O último capítulo foi o lugar em que talvez melhor tenhamos provocado um
intenso diálogo entre os programas de Reinos de Deus e o imperial. A urgência
em fazê-lo a nosso ver foi por conta de darmos voz aos diferentes agentes que
circulavam por estas propostas. Se estes programas coexistiram e um deles saiu
vencedor é porque houve, em primeiro lugar, uma demanda por sua formação e,
em segundo, porque em um dado momento estes programas entraram em
conflito. E em meio ao conflito se produz ou reverbera questões ou ações de
convencimento ou silenciamento de determinados termos, grupos e direitos. Por
isto mesmo começamos o capítulo tratando as propostas de uma forma geral e
depois abrimos uma breve discussão sobre os principais grupos existentes ou que
podemos falar a partir do que a documentação nos permite.
A conclusão que podemos chegar ao fim é que sem o batismo é um tanto
custoso pensar o impacto do Jesus ressuscitado sobre os grupos cristãos paulinos.
O que consequentemente explica a importância dada às lideranças que
produziram os textos aqui empregados para as resignificações dos signos,
símbolos e ideias diretamente ligadas ao ritual batismal. Bem como, vislumbrar
como os usos do batismo foram decisivos para uma fase pós-queda do Templo de
Jerusalém. Um evento que permeou diferentes comunidades cristãs e que
demandou uma profunda reflexão de suas lideranças para a sobrevivência de seus
grupos.

154
Por fim, gostaríamos de ponderar que o esforço aqui feito foi de tentar
chamar atenção para um ritual amplamente praticado e de extrema relevância
para os cristãos paulinos, mas que até então tem sido pouco olhado ou visto de
forma mais decidida pelos cientistas sociais. Em outras palavras, muito já se disse
e pesquisou sobre o ritual batismal no seu sentido mais amplo, entretanto pouco
ainda foi feito para o batismo dos grupos paulinos.
E é neste sentido que esperamos que o trabalho seja uma singela
contribuição. Sabemos que muitas ideias foram deixadas ao longo do percurso da
realização da obra, ideias que podem ser retomadas em outro momento, e como
foi custoso deixá-las. Todavia, o abandono das mesmas não significa um trabalho
mal feito ou menor, mas um primeiro experimento realizado sobre a temática.

155
Referências Bibliográficas
Fontes.
1. Documentação Imagética e Cartográfica.
• Figura 1: Museu Roma, Ara Pacis, piso térreo. Molde de um relevo romano (agora
em exposição no Museu Bardo em Tunis), mostrando Dea Roma segurando
uma Nike. Os originais estão em exposição no Museu do Bardo em Tunis.
Fotografia de Giovanni Dall'Orto, 30 de março de 2008. Disponível em:
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Roma,_Museo_Ara_Pacis_-
_Calco_di_Roma_con_Vittoria_-_Foto_Giovanni_Dall'Orto,_30-Mar-2008.jpg
• Figura 2: Rotas que interligam Roma com importantes polos ou centros
administrativos do império. In: Orbis. The Stanford Geospatial Network Model
of the Roman World. Disponível em: http://orbis.stanford.edu/
• Figura 3: Rede de rotas existentes ao longo do Império Romano, indicando a
distribuição dos custos de condições favoráveis para a integração econômica ao
longo da costa do Mediterrâneo e os baixos níveis de conectividade entre o
núcleo do Mediterrâneo e do interior da Península Ibérica e da Gália, a bacia do
Danúbio, Anatólia central e os desertos do Egito. In: Orbis. The Stanford
Geospatial Network Model of the Roman World. Disponível em:
http://orbis.stanford.edu/
• Figura 4: Área do Fórum e principais templos da cidade de Corinto. Fonte:
ENGELS, D. Roman Corinth: an alternative model for the classical city.
Chicago: University of the Chicago Press, 1990.
• Figura 5: Geografia da cidade de Éfeso no século I EC. Obtido em: KOESTER, H.
(Ed.) Ephesos, Metroplis of Asia. An Interdisciplinary Approach to it
Archaeology, Religion, and Culture. Massachusetts: Harvard University
Press, 2010.
• Figura 6: A cidadela e a casa escavação com vista para o rio Eufrates e
Mesopotâmia além. Chama atenção o seu entrono estrutural. Obtido em:
http://www.le.ac.uk/ar/stj/dura.htm#shape
• Figura 7: Dura-Europos, com vista para o rio Eufrates (canto superior direito).
Disponível em: http://www.le.ac.uk/ar/stj/dura.htm#late
• Figura 8: Plantas Baixas da Casa em Dura-Europos sinalizando os estágios
anterior e posterior a reforma. Fonte: WHITE, L. The Social Origins of
Christian Architecture. Building God’s House in the Roman World:
Architectural Adaptations among Pagans, Jews and Christians (Vol 1).
Valley Forge: Trinity Press International, 1990.

156
• Figura 9: Plantas Isométrica, sentido AA’ (Horizontal), da Casa em Dura-Europos
sinalizando os estágios anterior e posterior a reforma. Fonte: WHITE, L. The
Social Origins of Christian Architecture. Building God’s House in the
Roman World: Architectural Adaptations among Pagans, Jews and
Christians (Vol 1). Valley Forge: Trinity Press International, 1990.
• Figura 10: Batistério, Dura Europos, leste da Síria, ca. 240. Foto: Yale University
Art Gallery, Dura-Europos Collection. Fonte: JENSEN, R. Living Water.
Images, Symbols, and Settings of Early Christian Baptism. Boston: Brill,
2011.
• Figura 11: Inscrição (Die Inschriften von Ephesos IV 1023) datada logo depois
104 AEC, o ano do beneficiamento C. Vibius Salutaris, quando os polis
expandiu os rituais que teve lugar no momento do festival geral. O prytanis e
três das seis Kouretes listados na inscrição eram cidadãos romanos. Como era
frequentemente o caso, dois de Kouretes de Ártemis também foram
relacionados às prytanis. Obtido em: ROGERS, G. The Mysteries of Artemis
Ephesos. Cult, Polis, and Change in the Graeco-Roman World. New
Haven: Yale University Press, 2012.
• Figura 12: Fragmento da face b na inscrição da sinagoga com os nomes de
judeus, na parte superior, e de “adoradores de Deus”, na parte inferior. Obtido
em: CROSSAN, J. e REED, J. Em Busca de Paulo: Como o apóstolo de
Jesus opôs o Reino de Deus ao Império Romano. São Paulo: Paulinas,
2007.
• Figura 13: Denário de prata – c. 17 AEC. Anv. CAESAR AVGSTVS. Cabeça
laureada de Augusto à direita. Rer. DIVVS IVLIVS. Cometa com oito raios e
cauda. 1.9 cm – 3.5 gr. Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro. BMC I, nº
357; KENT nº 144. Obtido em: GODOY, S. e FERREIRA, J. Catálogo da
Exposição Retratos e Propaganda. Faces de Roma. Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro, s/d: 62.
• Figura 14: Denário de prata – 2 AEC – 11 EC. Anv. CAESAR AVGVSTVS DIVI F
PATER PATRIAE Cabeça de Augusto à direita laureada. Rev. C L CAESARES
AVGVSTI F COS DESIG PRINC IVVENT. Caio e Lúcio Cesar togados e velados,
de pé, de frente com escudos sobrepostos e lanças cruzadas ao centro. No
campo, acima, o “simpulum” e o “lituus”. 1.9 cm – 3.8 gr. Brown University,
Coleção Harkness. RIC, I, nº 207; Giard, nº 1651. Obtido em: GODOY, S. e
FERREIRA, J. Catálogo da Exposição Retratos e Propaganda. Faces de
Roma. Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, s/d: 75

157
• Figura 15: Denário de prata – 2 AEC. Anv. CAESAR AVGVSTVS DIVI F PATER
PATRIAE Cabeça de Augusto à direita laureada. Rev. PONTIF MAXIM. Ceres oo
Pax, provavelmente com os traços de Lívia, segurando cetro e espigas de trigo.
1.87 cm – 3.7 gr. Museu de Valores do Banco Central, Brasília CI, nº 223.
Obtido em: GODOY, S. e FERREIRA, J. Catálogo da Exposição Retratos e
Propaganda. Faces de Roma. Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, s/d:
76.
• Figura 16: Denário de prata – 128 EC – 138 EC. Anv. HADRIANVS AVGVSTVS PP
Cabeça nua de Hadriano à direita. Rev. DIANA EPHESIA. Artemis ao centro e
veados ao lado. Obtido em: http://www.coinworld.com/insights/coins-show-
cult-goddess-diana-of-ephesus--whose-temple-was-one-o.html#
● Figura 17: Em bronze. 117 EC -138 EC. Anv. [AV]KAITPA - A∆PIAANOCЄB Busto
de Hadriano laureado à direita. Rev. ЄΦЄ – CIΩN Templo em quatro colunas de
Ártemis (estátua ao centro). Diâmetro: 22,5 milímetros. Peso: 5,13 gm. Obtido
em: FRIESEN, S. Twice Neokoros: Ephesus, Asia, and the Cult of the
Flavian Imperial Family. Leiden: E. J. Brill, 1993;
http://www.mfa.org/collections/object/coin-of-ephesus-with-bust-of-hadrian-
259925.
● Figura 18: Reconstrução do horologium (relógio de sol), a sombra do obelsico
indicava o Altar da Paz Augustana no dia do aniversário de Augusto. Obtido
em: PIRES, T. Arte e Poder: a Propaganda Política no Principado como
Campo de Experimentação Comparativa. Dissertação. Rio de Janeiro:
UFRJ/IH, 2012.
● Figura 19: Procissão em um sacrifício religioso, com ênfase na Domus augustae.O
painel representa a Domus Augustae em uma ordem decrescente de
proximidade e relacionamento com o princeps, conforme descrito nas RGDA.
Na direita com o véu na cabeça e ao lado do clérigo com os fasces vemos
Agripa. A mulher ao seu lado representa Lívia, esposa de Augusto, e atrás dela
vemos Tibério. A criança entre eles pode ser apontada como Gaius caesar
(VÁRHELYI, S. 2010: 80). Antonia menor está atrás de Tibério e segura
Germanicus pela mão, Drusus a acompanha. Este é o único que veste trajes
militares e Gaius e Germanicus65 vestem trajes dos participantes dos lusus
Troiae (como Iulo usa no painel de Enéias na ficha n 099). A representação das
crianças simboliza a importância da preservação da família e da
hereditariedade para a vida pública. O caráter familiar deste painel humaniza a
obra, a aproxima da população ordinária que vislumbrava o monumento e, de
certa forma, ensinava a população como se portar em um rito religioso: as

158
crianças são acalmadas por seus pais e uma mulher (atrás de Julia) leva a mão
à boca pedindo silêncio, pois era um momento de gravitas. Correlacionamos a
ficha à variável de análise Número 1 - Caracterização da figura do herói, por
demonstrar submissão e respeito aos deuses, representando pelo ideal da
pietas. E também à variável de análise Número 3 - Mos Maiorum, por
demonstrar um rito religioso concernente com a religião do Estado romano e
respeitando as tradições dos antepassados. Obtido em: PIRES, T. Arte e
Poder: a Propaganda Política no Principado como Campo de
Experimentação Comparativa. Dissertação. Rio de Janeiro: UFRJ/IH, 2012.
● Figura 20: Gema de Augusto. Augustus entronizado, como Júpiter, ao lado de
Roma. Ele detém o lituus como símbolo de alto comando militar, para os
príncipes antes dele guerras salariais sob suas ordens. Atrás do trono,
personificações da Paz e da Terra. Abaixo, os soldados romanos e
personificações de auxiliares com bárbaros subjugados. Disponível em:
ZANKER, P. The Power of Images in the Age of Augustus. Michigan:
University of Michigan Press, 1988.

2. Documentação Literária.
BÍBLIA. Novo Testamento. 1 Coríntios. Português. Bíblia de Jerusalém. Nova
Edição, Revista e Revisada, São Paulo: Paulus, 2002.
BÍBLIA. Novo Testamento. 2 Coríntios. Português. Bíblia de Jerusalém. Nova
Edição, Revista e Revisada, São Paulo: Paulus, 2002.
BÍBLIA. Novo Testamento. Efésios. Português. Bíblia de Jerusalém. Nova Edição,
Revista e Revisada, São Paulo: Paulus, 2002.
HORÁCIO. ODES. Livro III.
NOVO TESTAMENTO. PROS EFESOYS. Grego. The Greek New Testament. ALAND,
Kurt, et alli. London: United Bible Society, 1966 (1ª edição), 1968 (2ª edição),
1975 (3ª edição) e 1983, 2001 (4ª edição). Cap. 1, vv. 1. (UBS)
NOVO TESTAMENTO. PROS EFESOYS. Grego. Novum Testamentum Graece,
NESTLE-ALAND. Edited by Barbara et Kurt Aland, Johannes Karavidopoulos,
Carlo M. Martini, Bruce Metzger. Editione Vicesima septima revisa. Stuttgart:
Deutsche Bibelgesellschaft, 1995. Cap. 1, vv. 1 (NESTLE-ALAND).
THE LETTERS OF PLINY. BETTENSON, H. (Ed.) Documents the Christian Church.
New York: Oxford University Press, 1943 (1ª edição), 1963 (2ª edição), 1999
(3ª edição) e 2011 (4ª edição).

3. Trabalhos Teóricos.

159
BERGER, P. e LUCLMANN, T. La Construcción Social de la Realidad. Buenos
Aires: Amorrortu Editores, 2001.
DETIENNE, M. Comparar o Incomparável. Aparecida: Letras e Ideias, 2004.
GEERTZ, C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos
e Científicos Editora S.A., 1989.
GINZBURG, C. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
GINZBURG, C. Os Andarilhos do Bem. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HADRILL, A. Patronage in Roman society: from republic to empire. In: HADRILL, A.
(Ed.) Patronage in Ancient Society. New York: Routledge, 1989.
HALBWACHS, M. Fragmentos da la Memoria Colectiva. Seleção e tradução. Miguel
Angel Aguilar D. (texto em espanhol). Universidad Autónoma Meropolitana-
Iztapalapa Licenciatura em Psicologia Social. Publicado originalmente em
Revista de Cultura Psicológica, Año 1, Número 1, México, UNAM- Faculdad
de psicologia, 1991.
JAMES, W. Las Variedades de la Experiencia Religiosa. Madrid: Ediciones
Península, 1994.
LATOUR, B. Jamais Fomos Modernos. São Paulo: Editora 34, 1994.
LEWIS, I. Êxtase Religioso. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971.
PERISTIANY, J. Honra e Vergonha: Valores das Sociedades Mediterrânicas.
2ª edição. Tradução de José Cutileiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbékian,
1971.
SAID, E. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SAHLINS, M. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
TURNER, V. O processo Ritual. Estrutura e Antiestrutura. São Paulo: Vozes,
2013.
VEYNE, P. O Inventário das Diferenças: História e Sociologia. São Paulo:
Brasiliense, 1983.

4. Dicionários, Manuais e Comentários.


BAYLLI, A. Dictionnaire Grec-Français. Paris: Hachette, 1950.
BARTH, M. Ephesians 1-3. A New Translation with Introduction and
Commentary. New Haven: Yale University Press, 2008.
BARTH, M. Ephesians 4-6. A New Translation with Introduction and
Commentary. New Haven: Yale University Press, 2008.
BROWN, R. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2012.
FITZMYER, J. First Corinthians. A New Translation with Introduction and
Commentary. New Haven: Yale University Press, 2008.

160
FURNISH, V. Second Corinthians. A New Translation with Introduction and
Commentary. New Haven: Yale University Press, 1984.
HORSLEY, R. 1 Corinthians. Nashville: Abingdon Press, 1998.
KOESTER, H. Introdução ao Novo Testamento: história e literatura do
cristianismo primitivo (vol.2). São Paulo: Paulus, 2005.
KÜMMEL, W. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2003.
MALINA, B. e PILCH, J. Social-Science on the Commentary on Letters of Paul.
Minneapolis: Fortress Press, 2006.

5. Trabalhos Específicos.
ADAMS, E. e HORREL, D. (Ed.) Christianity at Corinth. The quest for the
Pauline Church. Louisville: Westminster John Knox Press, 2004.
ALCOCK, S. Graecia Capta: the landscapes of Roman Greece. New York:
Cambridge University Press, 1993.
ALLAN, J. The ‘in Christ’ Formula in Epesians, NTS 5 (1958-1959).
ALMEIDA, V. As Víboras e o Machado: Um líder popular chamado João e
cognominado o Batista (I EC). Monografia. Rio de Janeiro: UFRJ/IH, 2012.
ASCOUGH, R. Translocal Relationships among Voluntary Associations and Early
Christianity. In: Journal of Early Christian Studies 5 (1997): 223-241.
ASCOUGH, R. What are They Saying about the Formation of Pauline
Churches? Mahwah: Paulist Press, 1998.
ASHTON, J. The Religion of Paul the Apostle. London: Yale University Press,
2000.
BORING, M. The Continuing Voice of Jesus: Christian Prophecy and the
Gospel Tradition. Lousville: John Nox Press, 1982.
BORG, M. e CROSSAN, J. First Paul: Reclaiming the Radical Visionary Behind
the Church’s Conservative Icon. New York: HarperOne, 2009.
BURKERT, W. Ancient Mystery Cults. Massachusetts: Harvard University Press,
1987.
CASTELLI, E. “Paul on Women and Gender”. In: KRAEMER, R. e D’ANGELO, M.
Women and Christian Origins. New York, Oxford Univerty Press, 1999.
CAVALCANTI, J. “Há, portanto, muitos membros, mas um só corpo”: uma breve
análise sobre o programa paulino de Reino de Deus. In: Revista Jesus
Histórico e suas Recepções, VI, 10, Rio de Janeiro, 2013.
CAVALCANTI, J. As refeições sagradas: o programa paulino de Reino de Deus em
oposição ao projeto imperial. In: Revista Nearco, Ano VII, Número I, Rio de
Janeiro, 2014.

161
CAVALCANTI, J. As Conversões de Paulo: Uma Breve Análise Comparativa entre as
Telas de Caravaggio e as Narrativas de Conversão em Atos. IN: Revista
Nearco, Ano VII, Número II, Rio de Janeiro, 2014.
CAVALCANTI, J. Mulheres em Paulo. Observações metodológicas e um breve
balanço historiográfico. In: Fatos e Versões, 2014 (Prelo).
CHEVITARESE, A. e CORNELLI, G. Judaísmo, cristianismo, helenismo. Ensaios
sobre interações culturais no Mediterrâneo antigo. Itu: Ottoni Editora,
2003.
CHEVITARESE, A. Cristianismos. Questões e Debates Metodológicos. Rio de
Janeiro: Kline, 2011.
CLABEAUX, J. A Lost Edition of the Letters of Paul. A Ressessment of the
Text of the Pauline Corpus Attested by Marcion. The Catholic Biblical
Association of America: Washignton, 1989.
CROSSAN, J. O Jesus Histórico. A Vida de um Camponês Judeu do
Mediterrâneo. Rio Janeiro: Imago, 1994.
CROSSAN, J. Jesus. Uma Biografia Revolucionária. São Paulo: Paulinas, 1995.
CROSSAN, J. O Nascimento do Cristianismo. São Paulo: Paulinas, 1998.
CROSSAN, J. e REED, J. Em Busca de Paulo: Como o apóstolo de Jesus opôs o
Reino de Deus ao Império Romano. São Paulo: Paulinas, 2007.
DAVIS, S. The Cult of Saint Thecla. A Tradition of Women’s Piety in late
Antiquity. New York: Oxford University Press, 2001.
DEISSMANN, A. Light from the Ancient East. Grand Rapids: Baker Book House,
(1908) 1978.
EHRMAN, B. Quem Escreveu a Bíblia? Por que os Autores da Bíblia Não São
Quem Pensamos Que São. Rio de Janeiro: Agir, 2013.
EHRMAN, B. Como Jesus se Tornou Deus. São Paulo: LeYa, 2014.
ELIADE, M. Tratado de História das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
ELLIOTT, N. Libertando Paulo. A Justiça de Deus e a Política do Apóstolo.
São Paulo: Paulus, 1998.
ELLIOTT, N. A Mensagem Antiimperialista da Cruz. In: HORSLEY, R. (ed) Paulo e o
Império. Religião e Poder na Sociedade Imperial Romana. São Paulo:
Paulus, 2004.
ENGELS, D. Roman Corinth: an Alternative Model for the Classical City.
Chicago: University of the Chicago Press, 1990.
ENGELS, F. The History of Early Christianity. In: MARX, K. e ENGELS, F. Marx and
Engels on Religion. Moscow: Progress Publication, 1957. Disponível em:
https://www.marxists.org/archive/marx/works/subject/religion/

162
FINE, S (Ed). Jews, Christians and Polytheists in Ancient Synagogue.
Cultural Interaction During the Greco-Roman Period. London: Routledge,
2005.
FIORENZA, E. In Memory of Her: A Feminist Theological Reconstruction of
Christian Origins. Crossroads: New York, 1983.
FIORENZA, E. A Práxis do Discipulado Co-Igual. In: HORSLEY, R. Paulo e o
Império. Religião e Poder na Sociedade Imperial Romana. São Paulo:
Paulus, 2004.
FRANKFURTHER, D. Dynamics of Ritual Expertise in Antiquity and Beyond: Towards
a New Taxonomy of “Magicans”. In: MIRECKI, P. e MEYER, M. (Ed) Magic and
Ritual in Ancient World. Boston: Brill, 2002.
FREYNE, S. Galilee and Judaea in the First Century. In: MITCHELL, M. e YOUNG, F.
The Cambridge History of Christinity. Volume 1: Origins to Constantine.
New York: Cambridge University Press, 2008.
FRIESEN, S. Twice Neokoros: Ephesus, Asia, and the Cult of the Flavian
Imperial Family. Leiden: E. J. Brill, 1993.
FUNARI, P. e VASCONCELLOS, P. Paulo de Tarso. Um Apóstolo para as Nações.
São Paulo: Paulus, 2013.
GAMBLE, H. Marcion and the ‘canon’. In: MITCHELL, M. e YOUNG, F. The
Cambridge History of Christinity. Volume 1: Origins to Constantine.
New York: Cambridge University Press, 2008.
GERDMAR, A. Roots of Theological Anti-Semitism. Leiden: Brill, 2009.
GLANCY, J. Slavery in Early Christianity. New York: Oxford University Press,
2002.
GNILKA, J. Pedro e Roma: a Figura de Pedro nos Dois Primeiros Séculos. São
Paulo: Paulinas, 2006.
GOODMAN, M. Jews, Greeks and Romans. In: GOODMAN, M. (Ed.) Jews in
Graeco-Roman World. New York: Oxford University Press, 1998.
GOULDER, M. Sofiva in 1 Corinthians. In: ADAMS, E. e HORREL, D. (Ed.)
Christianity at Corinth. The quest for the Pauline Church. Louisville:
Westminster John Knox Press, 2004.
GUNKEL, H. The Influence of the Holy Spirit. The Popular View of the
Apostolic Age and the Teaching of the Apostle Paul. Philadelphia: Fortress
Press, 6ª. Ed, 1979 (1888).
HADRILL, A. Domus and Insulae in Rome: Families and Housefuls. In: BALCH, D. e
OSIEK, C. (Ed.) Early Christian Families in Context. An Interdisciplinary
Dialogue. Michigan: William B. Eerdmans Publishing Company, 2003.

163
HARNACK, A. The Mission and Expansion of Christianity in the First Three
Centuries. London: Williams and Norgate, 1908.
HARTMAN, L. 'Into the Name of the Lord Jesus' Baptism in the Early Church.
Edinburgh: T&T Clark, 1997.
HARVEY, S. e HUNTER, D. (Ed.) Early Christian Studies. New York: Oxford
University Press, 2008.
HINGLEY, R. O Imperialismo Romano: Novas Perspectivas a partir da
Bretanha. São Paulo: Annablume, 2010.
HORDEN, P. e PURCELL, N. The Corrupting Sea. New Jersey: Wiley-Blackwell,
2000.
HORSLEY, R. 1 Coríntios: Estudo de Caso da Assembleia de Paulo como Sociedade
Alternativa. In: HORSLEY, R. Paulo e o Império. Religião e Poder na
Sociedade Imperial Romana. São Paulo: Paulus, 2004.
HORSLEY, R. Wisdom and spiritual transcendence at Corinth. Studies in First
Corinthians. Eugene: Cascade Books, 2008.
HORSLEY, R. Jesus e a Espiral de Violência. Resistência Judaica Popular na
Palestina Romana. São Paulo: Paulus, 2010.
HULL, F. Baptism on Account of the Dead (1 Cor 15:29). An Act of Faith in
the Resurrection. Society of Biblical Literature: Atlanta, 2005.
HUMPHRIES, M. Material Evidence (1): Archaeology. In: HARVEY, S. e HUNTER, D.
(Ed.) Early Christian Studies. New York: Oxford University Press, 2008.
JENSEN, R. Living Water. Images, Symbols, and Settings of Early Christian
Baptism. Boston: Brill, 2011.
JOHNSON, M. Christian Iniciation. In: HARVEY, S. e HUNTER, D. (Ed.) Early
Christian Studies. New York: Oxford University Press, 2008.
JUDGE, E. The Social Pattern of Christian Groups in the First Century: Some
Prolegomena to the Study of New Testament Ideas of Social
Obligation. London: Tyndale, 1960.
KÄSEMANN, E. Perspectives on Paul. London: SCM, 1971.
KLAUCK, H. O Entorno Religioso do Cristianismo Primitivo I. São Paulo:
Loyola, 1995.
KLAUCK, H. O Entorno Religioso do Cristianismo Primitivo II. São Paulo:
Loyola, 1996.
KREISSIG, H. Zur Socialen Zusammensetzung der Frühchristlichen Gemeinden im
Ersten Jahrhundert u.Z. In: Eirene 6:91-100, 1967.

164
KOESTER, H (ed). Ephesos, Metropolis of Asia. An Interdisciplinary Approach
to it Archaeology, Religion, and Culture. Massachusetts: Harvard
University Press, 2010.
LAMPE, P. The Linguage of Equality in Early Christian House Churches: A
Constructivist. In: BALCH, D. e OSIEK, C. (Ed.) Early Christian Families in
Context. An Interdisciplinary Dialogue. Michigan: William B. Eerdmans
Publishing Company, 2003.
LENSKI, G. Power and Privilege. A Theory of Social Stratification. New York:
McGraw-Hill, 1996.
LIU, J. Collegia Centonariorium. The Guilds of Textile Dealers in Roman
West. Leinden: Brill, 2009.
LOWRIE, M. Horace and Augustus. In: HARRISON, S (Ed). The Cambridge
Companion to Horace. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
LUNDQUIST, J. The Temple of Jerusalem. Past, Present, and Future. London:
Praeger Publishers, 2008.
MACCREADY, W. Ekklēsia and Voluntary Associations. In: KLOPPENBORG, J. e
WILSON, S. (Eds.) Voluntary Associations in the Graeco-Roman World.
New York: Routledge, 1996.
MACDONALD, M. The Pauline Churches. A Socio-historical Study of
Institutionalization in the Pauline and Deutero-Pauline Writings. New
York. Cambridge University Press, 1988.
MACDONALD, M. Early Christian Women and Pagan Opinion: The Power of
the Hysterical Woman. New York: Cambridge University Press, 1996.
MACDONALD, M. Reading Real Women Through the Undisputed Letters of Paul. In:
MACDONALD, M. e D’ANGELO, M. Women and Christian Origins. New York:
Oxford Univerty Press, 1999.
MACDONALD, M. Was Celsus Right? The Role the Women in the Expansion of Early
Christianity. In: BALCH, D. e OSIEK, C. (Ed.) Early Christian Families in
Context. An Interdisciplinary Dialogue. Michigan: William B. Eerdmans
Publishing Company, 2003.
MACHADO, J. Paulo, o Visionário. Visões e Revelações Extáticas como Paradigmas
da Religião Paulina. In: NOGUEIRA, P. (Ed) Religião de Visionários.
Apocalíptica e Misticismo no Cristianismo Primitivo. São Paulo: Loyola,
2005.
MAIER, J. Entre os Dois Testamentos. História Religião na Época do Segundo
Templo. São Paulo: Loyola, 2005.

165
MATTILA, S. Where Women Sat in Ancient Synagogues. The Archaeological
Evidence in Context. In: KLOPPENBORG, J. e WILSON, S. (Eds.) Voluntary
Associations in the Graeco-Roman World. New York: Routledge, 1996.
MEEKS, W. Os Primeiros Cristãos Urbanos: o Mundo Social do Apóstolo
Paulo. São Paulo: Paulinas, 1992.
MEGGIT, J. The Social Status of Erastus (Rom. 16:23). In: ADAMS, E. e HORREL,
D. (Ed.) Christianity at Corinth. The Quest for the Pauline Church.
Louisville: Westminster John Knox Press, 2004.
MEIER, J. Um Judeu Marginal. Repensando o Jesus Histórico (vol. 3, livro 1).
Rio de Janeiro: Imago, 1992.
MENDES, N. Império e Romanização: “Estratégias”, Dominação e Colapso. In:
Brathair 7 (1), 2007.
MENDONÇA, A. Glossolalia: Dialogando com o Divino, Discursando com o
Poder. Dissertação. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2009.
MOLINA, A. Orbe Romano e Imperio Global. La Romanización desde Augusto
a Caracalla. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 2007.
MORIN, E. Jesus e as Estruturas de seu Tempo. São Paulo: Paulinas, 1988.
MORLEY, N. Trade in the Classic Antiquity. New York: Cambridge University
Press, 2007.
MUNCK, J. The Church without Factions: Studies in I Corinthians 1-4. In: ADAMS,
E. e HORREL, D. (Ed.) Christianity at Corinth. The Quest for the Pauline
Church. Louisville: Westminster John Knox Press, 2004.
MURPHY-O’CONNOR, J. St Paul’s Corinth: Texts and Archaeology. Good News
Studies 6; Wilmington, DE: Glazier, 1983; 2nd revised and expanded edition,
1992; 3rd revised and expanded edition, 2002.
MURPHY-O’CONNOR, J. Paulo: Biografia Crítica. São Paulo: Loyola, 2004.
MURPHY-O’CONNOR, J. St Paul’s Ephesus Texts and Archaeology. Good News
Studies 6; Wilmington, DE: Glazier, 1983; 2nd revised and expanded edition,
1992; 3rd revised and expanded edition, 2008.
PAGELS, E. The Gnostic Paul. Gnostic exegesis of the Pauline letters.
Philadelphia: Fortress Press, 1992.
PIRES, T. Arte e Poder: a Propaganda Política no Principado como Campo de
Experimentação Comparativa. Dissertação. Rio de Janeiro: UFRJ/IH, 2012.
PIRES, T. Propaganda Política no Principado Augustano: as Artes como Forma de
Discurso (27 a.C.– 14 d.C.). In: Revista Plêthos 4, Niterói, Edição 1, 2014.
RAMSON, B. Death, Burial, and Commemoration of Children in Roman Italy. In:
BALCH, D. e OSIEK, C. (Ed.) Early Christian Families in Context. An

166
Interdisciplinary Dialogue. Michigan: William B. Eerdmans Publishing
Company, 2003.
ROGERS, G. The Mysteries of Artemis Ephesos. Cult, Polis, and Change in
the Graeco-Roman World. New Haven: Yale University Press, 2012.
SALLER, R. Patronage in Roman Society: from Republic to Empire. In: HADRILL, W.
(Ed.) Patronage in Ancient Society. New York: Routledge, 1989.
SAMPLEY, J. “And the Two Shall Become one Flesh”. A Study of Traditions in
Ephesians 5: 21-33. Cambridge: Cambridge University Press, 1971.
SANDERS, E. Paul and Palestininan Judaism. Minneapolis: Fortrees Press, 1973.
SCHERRER, P. The city of Ephesos from the Roman period to Late Antiquity. In:
KOESTER, H. Ephesos, Metropolis of Asia. An Interdisciplinary Approach
to it Archaeology, Religion, and Culture. Massachusetts: Harvard
University Press, 2010.
SCHNELLE, U. A Evolução do Pensamento Paulino. São Paulo: Loyola, 1999.
SCHWEITZER, A. O Misticismo de Paulo, o Apóstolo. São Paulo: Fonte Editorial,
2006.
SEGAL, A. Paulo, o Convertido: Apostolado e Apostasia de Saulo o Fariseu.
São Paulo: Paulus, 2010.
SHERWIN-WHITE, A. The Letters of Pliny. A Historical and Social
Commentary. Oxford: Clarendon Press, 1966.
SMITH, M. The Secret Gospel: The Discovery and Interpretation of the
Secret Gospel According to Mark. Dawn Horse Press; 3th edition, 2005.
STARK, R. O Crescimento do Cristianismo. São Paulo: Paulinas, 2006.
STRINGER, M. A Sociological History of Christian Worship. Cambridge:
Cambridge University Press, 2005.
THEISSEN, G. The Social Setting of Pauline Christianity: Essay on Corinth.
Oregon: Fortress Press, 1988.
VERMES, G. Os Manuscritos do Mar Morto. São Paulo: Mercuryo, 1997.
WALTERS, J. Egyptian religions in Ephesos. In: KOESTER, H. Ephesos, Metropolis
of Asia. An Interdisciplinary Approach to it Archaeology, Religion, and
Culture. Massachusetts: Harvard University Press, 2010.
WEBER, M. Sociologia das Religiões. São Paulo: Ícone, 2010.
WELBORN, L. An end to Enmity: Paul and the “wrongdoer” of Second
Corinthians. De Gruyter: Boston, 2011.
WILLIAMS, D. Paul’s metaphors. Massachusetts: Hendrickson Publishers, 2007.

167
WOOLF, G. and GARNSEY, P. Patronage of the rural poor in the Roman world. In:
HADRILL, W. (Ed.) Patronage in Ancient Society. New York: Routledge,
1989.
WOOLF, G. “Inventing Empire in the Ancient Rome”. In.: ALCOCK, S. (Eds).
Empires: Perspectives from Archeology and History. Cambridge:
Cambridge University Press, 2001.
ZANKER, P. The Power of Images in the Age of Augustus. Michigan: University
of Michigan Press, 1988.

168

Você também pode gostar