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GUARULHOS
2023
ANA MARIA ANUNCIATO DE SOUZA
GUARULHOS
2023
ANA MARIA ANUNCIATO DE SOUZA
__________________________________________________
Profa. Dra. Maria Rita de Almeida Toledo
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
__________________________________________________
Profa. Dra. Circe Maria Fernandes Bittencourt
Universidade de São Paulo (USP)
__________________________________________________
Profa. Dra. Angela Maria Roberti Martins
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
__________________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Pianelli Godoy
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
(suplente)
Resumo
1
Abstract
This dissertation aims to map and analyze the discourses and representations of
anarchism produced by textbooks between 1990 and 2020, understanding how the
anarchist ideals figure in the contents schooled by the discipline of history and which
discourses they generate, their changes and permanence in the light of the conjuncture
historical, considering the relevance of libertarian ideas to think about the concepts of
freedom, anti-authoritarianism, cooperativism, mutual support and self-management
historically constructed. Identifying the representations and appropriation strategies of
non-schooled historical discourses on anarchism, recognizing the narrative forms that
comprise them and their dialogical relationship with academic productions, and
considering the circulation of knowledge in the process, evidenced by the intertextuality
observed in the sources used. Implementing the concepts of circularity of culture
proposed by Mikhail Bakhtin, the recognition of strategies of appropriation and
(re)figuration of history, by Michel de Certeau, and representation formulated by Roger
Chartier, we analyze the narratives produced in history textbooks about the acratic
movement and the discourses they engender. Using the concepts of representation
and appropriation, we elaborated an analysis of the presence of anarchism, its
changes, permanence and discontinuities in schooled historical narratives, having in
perspective its context of production and consumption.
2
Agradecimentos
3
Em memória de minha mãe, Telma Anunciato,
por tornar real a possibilidade de sonhar e me ensinar a liberdade.
O amor sempre terá a luz verde de teus olhos.
4
Como chegar à anarquia
5
Sumário
Introdução .............................................................................................................................................7
Capítulo I: A encenação do passado e a construção do conhecimento histórico
escolarizado. .......................................................................................................................................33
O livro didático como documento histórico ..........................................................................35
A narrativa histórica escolarizada e a representação do passado. .................................38
Os anarquistas vão a universidade: circulação de pessoas e saberes .........................43
Capítulo II: A representação dos libertários entre barricadas, greves, jornais e
coquetéis molotov. ...........................................................................................................................58
O anarquismo como sujeito: categorias de representação ...............................................59
Os topos narrativos: lugar comum na escolarização do anarquismo ..........................101
Uma visão distorcida: O que é anarquismo .........................................................................126
Quem tem medo dos anarquistas? ........................................................................................132
Considerações finais......................................................................................................................142
Parte propositiva .............................................................................................................................146
Bibliografia ........................................................................................................................................158
6
Introdução
7
questões que suscitam nossas buscas e ações são formuladas a partir desta
imbrincada conexão de fios. Pesquisar sobre anarquismo e educação é, também, falar
sobre o lugar onde estou, por isso, apresentarei nas linhas desta introdução minha
jornada até aqui e as inquietações que se materializaram como o resultado desta
dissertação.
Falar sobre nossa trajetória é sempre um desafio, quando olhamos o passado
buscando perceber quais caminhos nos trouxeram ao hoje, sempre o fazemos com o
olhar de quem conhece o desenrolar da história e, portanto, utilizará esse saber “do
futuro” para recompor fatos e memórias que justifiquem nosso lugar no presente.
Parafraseando David Lowenthal (1998, p. 83) “relembrar o passado é crucial para
nosso sentido de identidade: saber o que fomos, confirma o que somos”, seja esse
passado oficializado pelos livros de história ou as lembranças contadas à mesa do
almoço. Para satisfazer esse desejo humano de pertencimento, incorro nos riscos do
labirinto da memória, mas sabedora dos meandros da lembrança, desculpo-me
antecipadamente pelas imprecisões e sentimentalismos.
Filha de mãe solteira, criada por minha mãe e avó em um bairro da zona norte
da cidade de São Paulo, fui criança entre a crise econômica da década de 1980, as
lutas e caminhos da redemocratização e o companheirismo praticado pela vizinhança
que se socorria nas dificuldades e se sentava na calçada nas noites de verão para rir
e olhar as crianças que brincavam. Com minha mãe, Telma Anunciato, descobri muito
cedo a importância do conhecimento e o inestimável valor da liberdade. Com minha
avó, Maria Crocci Anunciato, aprendi que solidariedade é justiça diante das
necessidades impostas à população por um país machista e excludente.
Em 2004 ingressei na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
(FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), cursando história no período noturno.
Beneficiada pelas políticas de permanência do aluno, fui morar no Conjunto
Residencial destinado aos estudantes. Como moradora do CRUSP, novamente me
deparei com relações marcadas pela coletividade. Já no primeiro ano de graduação
senti interesse pela pesquisa, começando minha iniciação científica e equilibrando-
me entre o trabalho e os estudos. Também era latente meu entusiasmo pela
educação, o que me levou, junto a uma amiga, a construir um projeto com objetivo de
ajudar os jovens a passarem nos vestibulares das universidades públicas, ou
8
conseguirem bolsas pelo PROUNI, foi assim que surgiu o curso popular pré-
universitário Tetris1 , uma construção horizontal, baseada na cooperação e
voluntariado. Ao término da graduação, fui aprovada nos concursos para professor da
Prefeitura Municipal e rede Estadual de São Paulo, nos quais permaneço até o
momento.
Olhar em retrospecto é sempre procurar respostas para o hoje e, talvez, estes
parágrafos de apresentação sejam minha tentativa de responder por que história? Por
que educação? Por que anarquismo? Ao afirmar que “toda reflexão metodológica se
enraíza, com efeito, numa prática histórica particular, num espaço de trabalho
específico” Roger Chartier (1991, p.178) nos diz que nossas perguntas e a forma como
buscamos respostas está intrinsicamente ligada a quem somos e de onde falamos;
sob esta perspectiva, minha trajetória se torna relevante para compreender as
escolhas que me trouxeram até o ProfHistória e a pesquisa que delineei.
A proposta de trabalho nasceu da observação dos usos do passado na
constituição de diferentes narrativas históricas produzidas no ambiente escolar,
fazendo da história campo de múltiplos discursos que concorrem na composição de
uma memória histórica-social. Contar o passado é, como bem sabemos, moldá-lo por
meio das ânsias do presente e compreender os mecanismos postos em ação na
construção do conhecimento histórico, faz-se de singular importância para
apreendermos as estruturas textuais e ideológicas que sustentam as narrativas e
discursos da história escolarizada.
As questões que suscitaram esta pesquisa surgiram da intersecção entre minha
atividade profissional e minha ação, desde a adolescência, em coletivos anarquistas.
A circulação no cenário ácrata paulista, ainda enquanto cursava o ensino médio,
mostrou-me pela primeira vez o descompasso entre a vivência dos ideais libertários e
sua figuração nas aulas de história. Parecia-me que o anarquismo dos bancos
escolares não se ligava ao anarquismo vivido e estudado em locais como o Centro de
Cultura Social de São Paulo2, não dialogava com o anarquismo da literatura e do
1 Fundado em 2013, o Curso popular pré-universitário Tetris e um projeto sem fins lucrativos que tem
a finalidade oferecer aos alunos da rede pública a oportunidade de intensificar seus estudos para as
provas de vestibulares e ENEM, almejando contribuir para seu ingresso nas universidades. Disponível
em < https://www.cputetris.com/ >. Acesso em 16/01/2022.
2 O Centro de Cultura Social de São Paulo (CCSSP) foi fundado em 1933, tendo ocupado diferentes
locais na cidade. A trajetória do CCSSP é marcada por três momentos: o primeiro vai de sua fundação
9
cinema, não era libertário e contestador como o das músicas. O anarquismo escolar
era uma planta exótica trazida pelos imigrantes europeus que, depois de uma breve
florescência em 1917, feneceu.
Anos depois, retornando à escola como educadora, o contato com outros
professores e o diálogo sobre o que e como trabalhar o passado em nossas aulas,
explicitou o quanto a história institucionalizada pelas propostas curriculares e
materializada nos conteúdos ensinados, assume o papel de verdade. Como
professora pude perceber os interesses postos nos currículos oficiais e transpostos,
em dada medida, para os materiais didáticos, os imbrincados mecanismos de
produção, circulação e consumo que os envolvem e as tensões e intencionalidades
que perpassam as representações do passado, assim como as ideologias postas nos
discursos que sustentam.
Nosso problema de pesquisa nasce da comparação entre as diferentes
representações dos movimentos e ideias anarquistas nos materiais didáticos de
história e da percepção dos distanciamentos e aproximações que estabelecem com
as narrativas não escolares, legitimando discursos por meio dos efeitos de sentido
que compõem. Considerando as particularidades da produção do conhecimento
histórico escolarizado e na perspectiva da circularidade dos saberes, intentamos
entender as escolhas, interdiscursividades, nuances, tensões e disputas de poder que
perpassam a produção do conhecimento sobre o anarquismo.
Objetivando analisar as narrativas e representações sobre os libertários, o
projeto que, inicialmente, havia se voltado somente para os livros didáticos de história,
viu-se tensionado pela necessidade de expandir o escopo de fontes, uma vez que as
narrativas propostas por autores, editoras e coleções didáticas se inscrevem na
conjuntura de produção e circulação dos saberes e sua análise apartada da
intertextualidade que lhe compõem, dar-nos-ia um quadro insuficiente para
pensarmos as dinâmicas de apropriação, escolarização e representação do passado.
Na busca de entender a relação dialógica entre os discursos, nosso trabalho passou
a abranger as dissertações e teses produzidas entre 1970 e 20203 e a obra O que é
até seu fechamento pela Ditadura Varguista em 1937; o segundo se inicia com a reabertura em 1945
e seu fechamento pela Ditadura Militar em 1969 e o terceiro tem início 1985, até os dias atuais.
3 As dissertações e teses integram a pesquisa como referencial para que possamos identificar e
e a produção didática, objetivando perceber os caminhos percorridos pelas ideias e sujeitos no que
denominamos de circularidade dos saberes. Trata-se, portanto, de uma operação pontual de
instrumentalização das pesquisas, não tendo a pretensão de nos determos nas análises minuciosas
destes trabalhos.
11
chances de futuro. Conforme aponta Noam Chomsky (2011), a educação é um
importante meio para construção social que pode almejar a servidão ou a liberdade.
4 Utilizamos o conceito de apoio mútuo sistematizado por Piotr Kropotkin (2012), como forma de
organização social que se opõem a ideia de competição, colocando as ações coletivas e as relações
de mutualismo como fatores essenciais de sobrevivência, evolução e desenvolvimento.
5 O uso do termo liberdade pode adquirir inúmeros significados, muitos deles absolutamente contrários
ao ideal ácrata, portanto consideramos necessário esclarecer seu uso neste trabalho. Nos orientamos
segundo a definição proposta por Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) e sistematizada por Silvio Gallo.
Partimos da ideia de liberdade composta, oposta a liberdade simples, vivida em isolamento. Como
afirma Proudhon “na perspectiva bárbara o máximo de liberdade equivale ao máximo de isolamento,
quando não há ninguém mais para limitar a liberdade do indivíduo. Por outro lado, do ponto de vista
social, quando liberdade e solidariedade se equivalem, o máximo de liberdade significa o máximo de
relacionamento possível com outros homens, pois nesta perspectiva as liberdades não se limitam, mas
se complementam, se auxiliam. Ao contrário da perspectiva burguesa, a liberdade de um não termina
onde começa a liberdade do outro com o outro, mas, ambas as liberdades começam juntas, e uma é
garantia da outra”. (GALLO, 2007, p.104).
12
possibilitar a formação do “homem político”, do cidadão que, por meio do
conhecimento e da reflexão, torna-se um agente de mudanças individuais e coletivas;
diante disso, e por concordarmos com a finalidade do ensino de história proposto pela
professora e pesquisadora, consideramos relevante entender como é dado a
conhecer, dentro do livro didático de história, outra possibilidade de organização da
sociedade e sua ideologia.
Observando a relação do ensino de história e sua finalidade e partindo dos
trabalhos de Alain Choppin6, pensamos o livro didático por meio das funções
documental e ideológicas propostas pelo autor, o que nos levou a colocar algumas
questões ao nosso objeto: qual passado é validado pelo ensino de história? Quem
produz estes enunciados e o que objetiva? Como essas variáveis modulam as
representações e discursos sobre os movimentos libertários para os leitores?
Ao mobilizarmos os conceitos de apropriação e representação, pensamos
quais recursos são instrumentalizados no processo de comunicação e quais
estratégias são empregadas na construção da narrativa sobre os movimentos
libertários. No intuito de compreender as estruturas, a linguagem, os recursos
comunicacionais utilizados e os discursos que postulam, deparamo-nos com as
delimitações internas da enunciação e as limitações externas que as condicionam, o
que nos colocou a premência de compreender o contexto de produção e consumo de
nossas fontes e quais dispositivos instituem sua forma (desde sua materialidade física
até sua construção verbo-imagética).
O trabalho se desenvolveu, inicialmente, com o levantamento quantitativo da
presença do anarquismo nos textos, imagens e exercícios propostos nos livros
didáticos e o número de produções acadêmicas que traziam a temática libertária. Em
um segundo momento, iniciamos a análise qualitativa dos textos e imagens
identificadas nos livros e a incursão sobre os temas abordados e os recortes presentes
nas dissertações e teses, com a finalidade de possibilitar a identificação e
entendimento da intertextualidade que pudesse vir a ser evidenciada pela leitura dos
livros didáticos. Neste processo, a significativa presença da obra O que é anarquismo,
6As questões postas por Alain Choppin (2002, 2004, 2009, 2020) nos permitem expandir o arcabouço
material de análise, problematizando fontes que tangenciam o processo de escolarização dos saberes
e influem na construção do conhecimento histórico escolar.
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como referência bibliográfica ou indicação de leitura complementar para os
educadores, levou a sua inclusão no conjunto de fontes analisadas.
A seleção das fontes foi construída ponderando critérios temporais, autoria,
permanência no mercado editorial, presença das obras entre os livros selecionados
pelo PNLD7 e relação de circularidade dos autores principais por outras esferas de
produção do conhecimento histórico. Os documentos foram organizados
cronologicamente para o estudo das representações e construção de suas categorias
de análise, de forma a permitir um exame comparativo considerando sua
continuidade, descontinuidade e deslocamento.
Ao trabalharmos os topos narrativos, as obras serão apresentadas agrupadas
por temática, lugar comum identificado na construção da narrativa histórica
escolarizada sobre o movimento libertário e delimitador de sua presença e
representação. Por fim, as análises feitas serão avaliadas conjuntamente para
obtermos um quadro das representações ácratas que nos possibilite compreender
como e em quais momentos as ideias anarquistas se fazem presentes.
Temos consciência de que outras organizações e grupos documentais seriam
possíveis e ampliariam nossa base de análise, contudo, devido ao tempo e alcance
desse projeto, selecionamos os agrupamentos que incidem diretamente na
construção do ensino histórico. Observando os critérios e a disponibilidade do material
para pesquisa, selecionamos o conjunto abaixo:
7Este critério foi utilizado para as obras posteriores ao ano 2000 e seus dados foram obtidos nos
arquivos do Memorial do PNLD, organizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Disponível em <https://cchla.ufrn.br/pnld/ >. Acessado em 20 jun. 2020.
14
PEREIRA Neto, Fazendo História 4º 1992 Parma; Ao Livro
André de Farias;
A América e a Europa no Técnico
AQUINO, Rubim
Santos Leão de; século XIX
LISBOA, Ronaldo
César.
16
BRAICK, Patrícia Estudar história 1º 2013 Moderna
Ramos;
dá origem do homem a era
MANZI, Paulo;
COSTA, Alessandro digital (8º ano)
Passos da.
17
BRAICK, Patrícia Estudar história 3º 2018 Moderna
Ramos;
da origem do homem a era
BARRETO, ANNA.
digital (8º ano) -
BRAICK, Patrícia Estudar história 3º 2018 Moderna
Ramos;
da origem do homem a era
BARRETO, ANNA.
digital (9º ano) -
CAMPOS, Flávio de; História: escola e 1º 2018 Moderna
CLARO, Regina;
democracia (8º ano)
DOLHNIKOFF,
Miriam.
CAMPOS, Flávio de; História: escola e 1º 2018 Moderna
CLARO, Regina;
democracia (9º ano)
DOLHNIKOFF,
Miriam.
COSTA, Túlio Caio O que é anarquismo 15º 1990 Editora Brasiliense
Cabe aqui ressaltar que dentre as obras analisadas os livros de Elsa Nadai e
Joana Neves, José Jobson de Andrade Arruda e Nelson Pilletti podem ser
considerados como fontes documentais que constituem uma “ponte” entre as
produções didáticas marcadas pela Ditadura Civil-Militar Brasileira e do período de
democratização, ao considerarmos que estes figuram entre os autores renomados já
durante a década de 1970 e circulam entre o mundo acadêmico e editorial que era
marcado por relações distintas das que vivenciamos na atualidade, como aponta
Décio Gatti Júnior (2003):
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constante das temáticas que concorrem para construção de identidades e da memória
social de uma determinada cultura e sociedade. Não se trata de buscar, em uma
perspectiva ingênua, o livro como único responsável pela memória histórico escolar e,
tão pouco, acreditar na possibilidade do “livro perfeito”, mas, entendê-lo por meio das
escolhas e discursos que comporta e seu diálogo com outras narrativas sobre o
anarquismo.
Portanto, mostrou-se preciso demarcar nosso objeto e seu suporte, assim
como definir de forma clara os conceitos que adotaremos em nosso trabalho e que
serão detalhados no capítulo I, A encenação do passado e a construção do
conhecimento histórico escolarizado, que contará com um panorama da produção
acadêmica sobre os libertários; reservando para o capítulo II, A representação dos
libertários entre barricadas, greves, jornais e coquetéis molotov, o detalhamento de
nosso processo de análise, a elaboração das categorias de representação presentes
nas fontes, as topologias narrativas e seu entendimento dentro da conjuntura histórica.
Ainda no capítulo II, em Quem tem medo dos anarquistas? apresentaremos um
quadro sobre a representação ácrata e a relação que estabelecem com o contexto
ideológico e a forma narrativa utilizada para contar o passado escolarizado.
A divisão interna do estudo das fontes não contemplou de forma separada as
atividades propostas pelo LDH, devido ao pequeno número de exemplares
encontrados que retomavam os libertários nos exercícios, e a tendencia a
apresentarem questões que têm como objetivo a comparação entre anarquismo e
socialismo, recurso que constitui uma constante nas obras estudadas e que será
abordado no capítulo II.
Para respondermos às perguntas propostas por meio da análise das
representações presentes na produção didática sobre o anarquismo, inserimo-nos em
um debate que, como quis Walter Benjamin (2012), “escova a história a contrapelo”.
Ao garimpar na narrativa a representação daqueles que sequer se prontificaram à luta
pelo poder e assumiram com ferocidade a crítica a ideia de progresso tecnicista (de
base capitalista ou socialista) como motor do desenvolvimento humano e social,
buscamos compreender como os anarquistas, inconvenientes para a direita e para a
esquerda “vitoriosa”, têm sua memória registrada nas páginas dos livros didáticos,
delineados pelos anseios e ideologias daqueles aos quais incomodam.
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O discurso de Benjamin, que encontra eco na historiografia mundial, oportuniza
importantes críticas, abrindo, como diagnostica Jacques Le Goff (1990), frestas pelas
quais novos atores, fontes e narrativas adentram a cidadela da história, “provocando
o reconhecimento de "realidades" históricas negligenciadas por muito tempo pelos
historiadores. Junto à história política, à história econômica e social, à história cultural,
nasceu uma história das representações”. (LE GOFF. 1990, p. 11). O simbólico ganha
evidência não como reflexo da sociedade que o produziu, mas como, também ele,
instituidor desta sociedade.
No Brasil a historiografia dos vencidos e a esfera do simbólico encontra espaço
com os trabalhos dos historiadores Carlos Alberto Vesentini (1997) e Edgar De Decca
(1981), nos quais o reconhecimento dos silenciamentos nos discursos que constituem
a memória histórica, demonstram as dinâmicas e disputas de poder que se instituem
no campo da cultura escrita.
O discurso sobre o passado emerge, não como reverberação dos embates
econômicos e políticos, mas como prática instituída dentro do campo simbólico. As
representações estudadas e construídas por estas novas narrativas, tomam, como
propõe Roger Chartier, parte das dinâmicas e disputas na qual nos interessa
compreender “o modo como em diferentes lugares e momentos uma realidade social
é construída, pensada e dada a ler” (CHARTIER. 1990, p. 16) e quais discursos sobre
o passado valida.
Questionarmos onde e como o anarquismo é posto, as motivações de seu
deslocamento na narrativa histórica escolarizada, sua negação (como não criação e
ausência) e seu apagamento como teoria e ação, espelhando o progressivo
silenciamento dos trabalhadores como sujeitos históricos nas obras didáticas a partir
da década de 2010, demonstra a relevância das práticas do poder dentro da
construção dos discursos e memórias sobre o passado, colocando a história como
palco de disputa simbólica e material, na qual os vencedores “absorvem” em seu
discurso e temporalidade a voz dos vencidos, integrando-os, mas negando-lhes
historicidade como sujeitos. Segundo Carlos Alberto Vesentini:
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Partindo dos estudos acerca da construção das disciplinas escolares de André
Chervel (1977, 1990) Ivor Goodson (1997), dos trabalhos de Circe Bittencourt (1990,
1997, 2003), Selva Guimaraes Fonseca (2003, 2010) e Maria Auxiliadora Schmidt
(2012), buscamos identificar o surgimento da história como disciplina escolar em
nosso país e sua transformação como um processo de longa duração, marcado por
diferentes concepções da história como disciplina escolar e sua função social.
Ao se interrogar sobre as condições de validação de um determinado discurso
sobre a língua francesa, André Chervel (1977) depara-se com as condições concretas
e as relações de poder que autorizam a edificação da gramática normativa da língua
a ser ensinada nas instituições escolares. Identificando que os agentes das
mudanças, diferente do que se pode pensar a princípio, não estão completamente
fora do âmbito educacional, revelando a disciplina e seu conteúdo como um produto
escolar (criado para e na prática de ensino) que ultrapassa os muros da escola,
ganhando espaço e significação social, o que nos levou a refletir sobre as condições
que autorizam o discurso histórico no qual a representação do anarquismo se
consolida na narrativa e é validada pela educação escolarizada.
A construção da história como disciplina em correlação com o conceito de
código disciplinar8, tomado de Raimundo Cuesta Fernández e instrumentalizado pela
historiadora Maria Auxiliadora Schmidt (2012), permitiu-nos pensar na sistematização
e periodização da disciplina como ferramentas para compreensão das mudanças no
ensino de história. Considerando o trabalho de Schmidt (2012) e o recorte temporal
proposto em nossa pesquisa, nosso trabalho se desenvolverá no contexto de
redemocratização, que carrega consigo um intenso desejo de reestabelecer a história
como disciplina no currículo brasileiro e instrumentalizá-la como potente ferramenta
na construção da democracia e cidadania, aviltadas nos vinte e um anos de ditadura
civil-militar.
Estudar as representações do movimento libertário neste contexto, é também
buscar compreender como as aspirações políticas, sociais, econômicas e dos grupos
que representam a pesquisa histórica brasileira disputam espaços e se articulam na
8O conceito de código disciplinar apresenta aproximações com as ideias foucaultianas, podendo ser
compreendido por meio da manifestação e consolidação histórico-cultural nos discursos, conteúdos e
práticas do ensino escolarizado que interagem como práticas sociais em uma relação dialética.
22
reconstrução da disciplina de história e seus documentos norteadores. Fazendo-se
necessário entendermos os diferentes currículos e propostas curriculares construídos
a partir do processo de redemocratização do Brasil, compreendendo-os, como nos
aponta Circe Bittencourt (2008, 2021) e Michael Apple (2005, 2006), como um campo
de disputas.
Do ponto de vista sociológico, apresentado por Michael Apple (2006), o
currículo é uma disputa ideológica e de poder, na qual o questionamento sobre quais
conhecimentos devem estar no documento, deve vir acompanhado de perguntas
sobre o valor atribuído política, social e economicamente a estes saberes. Para Apple
“quer reconheçamos ou não, o currículo e as questões educacionais mais genéricas
sempre estiveram atrelados à história dos conflitos de classe, raça, sexo e religião
[...]” (APPLE. 2005, p.39).
A afirmação de Michael Apple coloca, novamente, as questões sobre o valor
atribuído as teorias e ações anarquistas pelos grupos que configuram a narrativa
histórica escolarizada e o discurso histórico-social sobre a memória deste movimento,
sua prática de enfrentamento do sistema capitalista e a influência de suas ideias na
produção artística, intelectual e política dos séculos XX e XXI, considerando que as
prescrições curriculares propostas a partir da década de 90, refletem as lutas
empreendidas pelos movimentos de redemocratização e, posteriormente, a
adequação do ensino brasileiro às demandas internacionais, representadas,
sobretudo, pelas avaliações do Banco Mundial, como significativas para a
compreensão das representações feitas pelo ensino de história.
Percebendo o currículo como local de disputa simbólica, constituído como
produto e materialização dos discursos ideológicos ora dominantes, ora conflitantes,
o compreendemos como uma “expressão do equilíbrio de forças que gravitam sobre
o sistema educativo em um dado momento” (SACRISTÁN, 2000, p. 16), sendo parte
constitutiva da realidade social na qual está inserido e para qual postula os caminhos
metodológicos e conteúdos a serem trabalhados pelos professores.
Atentando para a compreensão dos condicionantes externos que mesmo não
sendo os únicos determinantes para a construção da representação dos anarquistas
nos livros didáticos, concorrem para delimitação de nosso objeto e das disputas de
poder nas quais se insere, levando em conta que as esferas de construção dos
23
saberes social e politicamente definidos como essenciais ao ensino escolarizado e o
mercado editorial tem significativo peso no produto livro didático, buscamos conhecer
às prescrições curriculares, os currículos oficiais e os critérios de avaliação do
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), renomeado de Programa Nacional do
Livro Didático e Material Didático,
A reconstrução dos objetivos da escola em um momento de forte embate
político e luta democrática, possibilitou-nos vislumbrar na construção das propostas
curriculares desta “nova escola”, que buscava, em uma perspectiva pedagógica
crítico-social dos conteúdos, instituir um currículo para formação de cidadãos e assim
efetuar uma duradoura mudança social, a presença das ideias marxistas e a
concepção de Antônio Gramsci de intelectual orgânico que, colocadas nos debates
políticos, influenciaram a concepção educacional que surgiria como norte para a
confecção dos currículos, sobretudo nas décadas de 1980 e 1990, sugestionadas
pelas pesquisas históricas orientadas pelas lentes do materialismo histórico-dialético
e novos objetos e sujeitos, propostos pela história cultural e social.
A década de 1990 foi marcada pela preocupação com a educação e seus
resultados, de um lado condicionado às reformas liberais e, por outro, ao imperativo
de se construir um currículo que fizesse frente à herança do autoritarismo do período
ditatorial, almejava-se uma educação para formação cidadã, ao mesmo tempo em que
se buscava atender as demandas internacionais vinculadas as reformas econômicas
e acordos firmados pelo governo.
Abre-se uma disputa entre o desejo social e das organizações de ofício, como
sindicatos docentes e a ANPUH e as demandas internacionais sobre os caminhos da
educação brasileira. Se um dos lados vê no currículo a esperança de amparo a
legitimação de identidades e sujeitos e a reconstrução da democracia, solapados
pelos anos de regime ditatorial e pela história oficial, o outro busca afinar as decisões
políticas e educacionais aos ditames das exigências neoliberais, materializadas nas
orientações do Banco Mundial e demais organismos financeiros internacionais, que
veem nas políticas sociais meios de instrumentalização das políticas econômicas.
Como aponta Sheyla Moraes e Silva (2006) a educação se mostrou um campo
fecundo para as ações desejadas para a promoção e efetivação das ideias
econômicas neoliberais, afirmando-se a concepção de educação como mercadoria.
24
A disciplina de história emerge neste quadro como importante pilar na
construção das identidades sociais, produtora de uma narrativa que oficializa e
naturaliza o passado, compõem parte significativa da memória sobre os sujeitos e
lutas vividas. O discurso histórico escolar tem o poder de instituir a verdade ou negar-
lhe por meio das representações que instrumentaliza no campo do simbólico. A
reconstrução da disciplina e seus objetivos, abrangida no recorte temporal estipulado
em nossa pesquisa, foi palco de intensa disputa de representações, evidenciando o
interesse dos grupos envolvidos e as lutas de poder e apropriação sobre o passado.
Segundo Roger Chartier (1990):
25
Shilling e o geografo Francisco Capuano Scarlato como elaboradores do documento
destinado à disciplina de história e a consultoria de nomes como Circe Maria
Fernandes Bittencourt, Elias Thomé Saliba, Ilana Blaj, Modesto Florenzano e Miguel
Arroyo. Os documentos traziam novidades ao pensar o educando, também, como
produtor de conhecimento e narrativas sobre o passado, enfatizando a relevância da
história local e a adoção de uma proposta de história temática.
Sua elaboração como nos aponta Neves (2000, p.6), buscava atender as
exigências internacionais ligadas a órgãos financiadores da educação. Na leitura do
documento podemos perceber que a organização dos PCNs se apresenta, de forma
geral, como uma proposta que enfoca o exercício da cidadania e diversidade:
9 Por meio do programa ProBNCC (2018), o governo federal destinou um vultuoso recurso aos Estados
para que estes desenvolvessem seus currículos de forma a adequá-los as linhas da BNCC. Buscando
levar à efetiva implantação da Base Nacional Comum Curricular no país. Devemos consideras, contudo,
que esta nova imposição curricular denota as lutas de poder que se estabelecem dentro dos currículos
e, como aponta Ferreira (2021, p. 18), tem sua gênese nas disputas acerca da política curricular que
se desenrolam desde o governo de Fernando Henrique Cardoso (1994 -2002), das quais os PCNs não
passam ilesos, haja vista sua efetiva produção durante o período.
30
até a metade do século XX, como objeto de conhecimento: anarquismo e
protagonismo feminino. Deixando claro o sentido pontual de abordagem do
movimento anarquista e a ausência do debate entre as perspectivas de organização
social, política e econômica idealizadas pelos libertários. Cabe ainda ressaltarmos que
termos como marxismo, socialista, comunista, ou comunismo não aparecem uma
única vez no documento, sendo o socialismo científico abordado em um único ponto,
voltado ao ensino médio, apresentando Karl Marx como um dos teóricos do século
XX.
Tornou-se claro no processo de análise que de forma ainda mais pungente a
BNCC delimita a organização dos currículos, que por sua vez, delimitam os critérios
de avaliação do PNLD, incidindo diretamente sobre nosso objeto. A proposta da Base
Nacional Comum Curricular objetiva o desenvolvimento humano e econômico
delimitado pelas necessidades do neoliberalismo, centrada num forte discurso,
apoiado pelos setores empresariais, de obsolescência do sistema educacional como
o conhecemos e a necessidade de modernização, introdução no mundo digital e
tecnológico e redução dos conteúdos considerados desnecessários e ultrapassados.
Ao analisarmos os PCN constatamos a ausência da dimensão libertária como
proposta de luta e substituição do sistema capitalista e o foco na dicotomia capitalismo
versus socialismo, o que limita e subjuga a ação libertária, mas, permite o
questionamento, mesmo que por uma única perspectiva do sistema capitalista. Ao
nos debruçarmos sobre a BNCC, torna-se evidente seu viés liberal, com silenciamento
de todas as possibilidades de diferentes formas de organização da sociedade, sejam
elas anarquistas ou socialistas. A ausência destas possibilidades leva a não
problematização do sistema capitalista, reduzindo o ensino de história e das ciências
humanas ao conhecimento e adequação do sujeito ao contesto liberal.
A reorganização da educação e da disciplina de história a partir da década de
1990, evidencia o embate de representações que toma lugar na legitimação de
poderes e autoridades nos discursos materializados nas propostas curriculares e nos
livros didáticos, a impossibilidade de neutralidade impõe a narrativa histórica a disputa
simbólica como meio de construção social. Tanto para os PCN como para a BNCC,
ou para os critérios de avaliação do PNLD, a questão do poder se insere, reproduzindo
31
no LDH o discurso que obteve êxito na disputa e, terminou por oficializar sua
representação em detrimento daquela que não logrou a vitória.
32
Capítulo I: A encenação do passado e a construção do conhecimento histórico
escolarizado.
10 Compreendemos o conceito de cultura escolar a partir das proposições de Dominique Julia (2001,
p.10) “[...] um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um
conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses
comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas
(finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização).
33
dialética que se estabelece na prática do ensino, seus conteúdos e as disputas de
poder que os permeiam.
Para André Chervel (1977,1990), a instituição escolar é produtora e executora
de uma ideia de ensino e, também, das disciplinas. Ao defendê-las como produtoras
de saberes específicos e não como simples operadoras da transposição do
conhecimento científico para o contexto educacional, lançamos nosso olhar sobre a
escolarização dos conteúdos como um processo que tem sua gênese na própria
escola, com objetivos próprios que não podem ser dissociados da realidade
sociopolítica em que estão inseridos.
O ensino de história é, nesta perspectiva, uma produção social e política que
pode e se altera ao longo do tempo, assumindo recortes temporais e espaciais,
discursos e ideologias que emergem das ânsias e expectativas da sociedade e,
sobretudo, das relações de poder que a estruturam. Segundo a professora e
pesquisadora Circe Bittencourt:
34
com o passado e os objetivos do seu ensino. Trata-se, como toda produção de
conhecimento, de um objeto datado e delimitado pela conjuntura histórica e pelas
disputas de poder na qual está inserido.
Considerando que, apesar das diferentes relações travadas pelos docentes
com os livros didáticos ao longo do tempo, houve a consolidação de sua presença e
uso no ensino de história, sobretudo, devido a ação do poder público por meio do
PNLD, tornando o livro didático uma presença concreta nas escolas públicas do país,
assumindo a cada dia maior relevância como ferramenta para o trabalho docente, o
estudo das representações históricas que oferecem aos educandos se torna
importante para compreendermos o processo de apropriação, assimilação e
ressignificação feito pelo ensino.
35
instituições de ensino e sua importância econômica para o mercado editorial, fazem
dele um objeto de muitas definições e possibilidades de estudo.
O manual escolar, enquanto objeto social, ganha relevo no contexto do pós-
guerra, especialmente os da disciplina de história. Confrontados com a barbárie do
conflito bélico, intenta-se construir uma imagem menos conflituosa e discriminatória
das relações entre os povos e garantir que valores sociais considerados essenciais
circulassem por entre a população, sobretudo os jovens, em período de formação e
escolarização (CHOPPIN. 2004. BITTENCOURT. 1997, 2011).
Mas, é somente a partir da década de 1960, como aponta Circe Bittencourt
(1997, 2011), que o livro didático passa a ser entendido como documento histórico
capaz de permitir ao pesquisador, por meio das mudanças e permanências de seus
conteúdos e métodos de ensino, analisar as transformações dos projetos editoriais e
de sua dinâmica de circulação enquanto mercadoria cultural e vislumbrar as formas
pelas quais as sociedades, em diferentes conjunturas, representaram a si mesmas.
Segundo Alain Choppin:
A partir dos anos de 1960, mas sobretudo nas duas últimas décadas
do século XX, as pesquisas dedicadas à história dos manuais
escolares tiveram um crescimento considerável. Este dinamismo
corresponde, pode-se dizer, ao fenômeno de “colocar o tema na ordem
do dia”. Era paradoxal, efetivamente, que a edição escolar continuasse
a ser deixada de lado, por tanto tempo, ao se constatar a forte
presença dos livros didáticos no mundo inteiro e o peso considerável
que representa este setor na economia editorial dos séculos XIX e XX.
(CHOPPIN, 2020, p.9).
Por ser uma mercadoria de consumo tida, muitas vezes, como de menor
significância literária, o livro didático se perde no dia a dia das instituições de ensino.
No Brasil, há poucas décadas foram construídas metodologias e locais dispostos a
guardá-los como documentos históricos, disponibilizando-os para consultas e
pesquisas, dentre os acervos e base de dados brasileiras, destacamos, por sua
importância e pioneirismo, o banco de dados LIVRES e a Biblioteca do Livro Didático
da Universidade de São Paulo, que nos possibilitou empreender esta pesquisa.
Como fonte documental, sobretudo, nas áreas de história da educação e
disciplinas escolares, mas também, para a história cultural, o livro didático atrai um
36
significativo número de pesquisadores que têm se dedicado a analisar as múltiplas
dinâmicas que envolvem este objeto. Segundo Kênia Moreira:
11 Para Mikhail Bakhtin, segundo Bezerra (2005) os textos monológicos seriam o modelo em que
predomina o autoritarismo e acabamento, ao passo que os textos polifônicos predominariam a realidade
em formação, a inconclusibilidade e o dialogismo.
41
Trazendo o texto para o plano de análise do discurso, evidenciamos a
necessidade de considerar como os saberes (escolares e acadêmicos) se articulam
na produção do socialmente aceitável, como ocorre sua apropriação como aponta
Chartier (2002, p.160), e como estes saberes constroem uma visão sobre os
libertários, percorrendo as táticas que se instituem em uma temporalidade e espaço
específicos (CERTEAU. 2008, p. 40).
A produção discursiva, fruto de uma enunciação que determina e é determinada
pelas relações de poder que a antecedem e transpassam a produção do livro didático,
consolida-se na unidade de seu objeto e como este é trazido do plano da narrativa
para o do discurso. Forma, modo e discurso são articulados na produção de uma
imagem daquilo de que se fala, determinando a permanência ou impermanência de
conceitos e ideias, construção de identidades e saberes visíveis sobre o sujeito.
As narrativas comportam os discursos que condicionam as representações,
dão-lhes organicidade e veracidade dentro do passado descrito no livro didático. Cabe
aqui compreendermos que uma mesma narrativa pode comportar diferentes
representações de fatos e sujeitos, mas, todas concorrendo para uma interpretação
da leitura que evidencia as estratégias e dinâmicas que constituem um todo de
sentido, determinado pelas relações de poder que se efetivam no mundo simbólico,
considerando que as representações, em nenhum de seus níveis, serão a teoria,
pessoa ou fato histórico ali representado (CHARTIER, 2011).
Tomamos as representações circunscritas à forma narrativa como produtos da
sociedade, com a qual estabelece uma relação dialética, postas nos livros didáticos
de história, reportam ao real, sendo, como afirma Roger Chartier (2011), realidades
em si mesmas, compostas socialmente, condicionantes e condicionadas pela
conjuntura histórica. Assim sendo, a concepção de anarquismo proposta no ensino
de história conforma a ideia de anarquismo posta pela sociedade e ao mesmo tempo
é estabelecida por ela, sem esquecermos, contudo, que toda representação tem em
si um destinatário e finalidade própria.
42
Sempre a representação das práticas tem razões, códigos, finalidades
e destinatários particulares. Identificá-los é uma condição obrigatória
para entender as situações ou práticas que são o objeto da
representação. (CHARTIER. 2011, p. 84).
160
140
120
100
80
Esse aumento do interesse pelo movimento libertário seguiu uma linha que
ainda hoje tende a delimitar o campo de pesquisa, desencadeada pelo surgimento dos
primeiros cursos de pós-graduação nas universidades do sudeste que concentraram
as produções até 1990, década dos primeiros trabalhos defendidos em universidades
das regiões sul e nordeste. Este recorte geográfico da presença dos cursos de
mestrado e doutorado acabou por privilegiar o estudo das ações anarquistas do
Sudeste, polo de maior concentração de dissertações e teses, conforme podemos
visualizar no gráfico abaixo:
Sul
Sudeste
Norte
Nordeste
Centro-oeste
0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80%
45
A concentração das pesquisas nas regiões sudeste e proporcionalmente na
região sul, reflete nos objetos e recortes temporais que, com poucas exceções,
mantém uma abordagem circunscrita a estas áreas geográficas, escolha que se
reitera na produção do conhecimento histórico escolarizado e na memória social sobre
os anarquistas.
A fim de entendermos as características dos trabalhos acadêmicos e sua
relação dialógica com as produções escolares, iremos dedicar maior atenção às
pesquisas da região sudeste, por ser a de maior representatividade no volume e
recorte temático. Dentre as instituições que abrigaram a maior quantidade de
pesquisas, destacam-se a Universidade de São Paulo, Universidade Estadual de
Campinas e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como podemos observar
no gráfico abaixo:
46
Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP; a fundação do ASMOB (Archivio Storico
Del Movimento Operaio Brasiliano) na Itália em 1978, por exilados políticos brasileiros,
responsável pela guarda dos arquivos do ex-militante anarquista e membro fundador
do PCB, Astrojildo Pereira. Em 1994 os documentos foram repatriados e entregues
para UNESP, passando a compor o acervo do Centro de Documentação e Memória;
e a reorganização do Centro de Cultura Social de São Paulo que possui um conjunto
significativo de materiais sobre o movimento anarquista.
As pesquisas históricas sobre o anarquismo no Brasil podem ser separadas,
conforme aponta Viana (2002), em três agrupamentos distintos: entre 1950 e 1960,
momento de produção de memórias como as de Everardo Dias, Astrojildo Pereira e
Octávio Brandão. Os relatos, sobretudo dos ex-militantes anarquistas, levam
a construção de uma ideia de anarquismo como reflexo de uma industrialização tardia
e insuficiente, justificando sua presença nas primeiras décadas do século XX como
uma ideologia menor e desvalorizando sua ação12.
A década de setenta inaugura uma nova perspectiva nas pesquisas, marcadas
pela forte presença da abordagem sociológica e herdeira das produções militantes,
reforça a origem imigrante da classe operária e sua espacialização entre São Paulo e
Rio de Janeiro, eixo que se cristaliza como definidor da regionalização das relações
sociais nos estudos da formação da classe operária e, por conseguinte, das ideologias
que compõem seu processo histórico.
Esses estudos buscam enfatizar a origem imigrante dos trabalhadores
anarquistas e seu pressuposto despreparo para pensar as relações econômicas e
políticas, caracterizando os operários da Primeira República como estrangeiros assim
como sua ideologia, que só alcançam ascensão e destaque devido à baixa qualidade
da industrialização nacional e de uma classe operária deficiente, fruto de um processo
ainda não consolidado de inserção no capitalismo industrial, pré-requisito, na
perspectiva teórico-ideológica marxista, para organização do operariado. Portanto, se
não há ainda as condições necessárias ao surgimento da classe trabalhadora
12Os trabalhos memorialísticos desde período acabam por servir de escopo aos estudos da construção
da identidade da classe operária brasileira. Ressaltando que alguns deles, como Astrojildo Pereira e
Octavio Brandão farão parte da fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1922 e, seguindo
uma prática ideológica comum do partido, buscaram diminuir e se distanciar dos ideais ácratas,
constituindo uma crítica sectária aos libertários.
47
enquanto agente da revolução, as lutas desse período são frutos da agitação
espontânea e desorganizada dos sujeitos históricos.
Partindo da perspectiva de Georges Haupt, Viana (2002, p. 55) conclui que
ocorre com as produções dos anos setenta o mesmo que com as tentativas de
identificação e construção da classe operária pelos ex-militantes anarquistas
fundadores do PCB: ocultação e manipulação do passado em uma luta ideológica pela
memória histórica. Excluindo ou limitando as contribuições que não possam ser
explicadas a partir do modelo de organização hierárquica e centralizada e que não
caibam na estrutura narrativo-explicativa da história, minimizando o papel dos sujeitos
históricos que se mobilizavam sob diversas correntes teórico-ideológicas que
coexistiam no período13. A ação destes trabalhadores, excluídos do corpo social e
político, definida como débil e violenta, seria transformada com o desenvolvimento da
indústria14
Para Daniel Aarão Reis Filho (1997), estes trabalhos dão preferência a contar a
história pelo olhar comunista, mostrando uma tentativa de silenciamento das
contribuições libertárias, permitidas somente em ações pontuais, esvaziando do caráter
social sua militância, sobretudo, fora do contexto direto do sindicalismo revolucionário.
históricos escolarizados, principalmente as obras produzidas até a década de 1990, nas quais podemos
vislumbrar indícios das estratégias de apropriação deste “modelo estigmatizador” dos anarquistas nas
páginas escolares, que será mais bem detalhada no decorrer da pesquisa.
48
A crítica a essa vertente de análise, denominada por Kazumi Munakata (1982,
p.4) de “Sociologia do Trabalho”, toma forma na década de 1980 juntamente com
novas abordagens teóricas e metodológicas nos estudos históricos, promovendo uma
reavaliação da classe operária e a renovação dos trabalhos acadêmicos.
Para Kazumi Munakata, as análises baseadas na sociologia do trabalho podem
ser consideradas reducionistas, porque entendem as determinações estruturais como
diapasão para a compreensão dos diversos aspectos da composição da classe
operária, que leva a separação do trabalhador de sua própria história. Em sua análise,
Munakata propõe que as transformações da classe trabalhadora não derivam
mecanicamente das transformações estruturais, mas são resultado de múltiplas
variáveis nas quais “as relações de produção não antecedem uma sociedade, mas
constituem as relações de produção em e de uma sociedade” (MUNAKATA. 1984,
p.4).
As transformações na historiografia brasileira que marcaram as décadas de
1980 e 1990, com a emergencia da história cultural enfatizando grupos antes
silenciados, é tributaria, entre outros, aos esforços dos historiadores e professores
Edgar Salvadori de Decca e Carlos Alberto Vesentine, que inauguram a década de 80
com pesquisas e publicações que trazem uma nova perspectiva de análise e
construção da narrativa histórica, abrindo espaço para a história dos esquecidos, a
história dos vencidos, dando voz a novos sujeitos históricos. Cabe ressaltar que Edgar
de Decca também figura como orientador em teses e dissertações que trabalham o
anarquismo, como a pesquisa de Margareth Rago.
A partir da década de 1980, os trabalhos sobre o movimento libertário entram
em um novo momento, os anarquistas e suas ideias são observados sob novas
perspectivas na historiografia nacional. O impacto das contribuições teóricas de
Edward. P. Thompson e Michael Foucault faz surgir novos objetos e abordagens
conceituais que passam a compor as pesquisas e impulsionam, sob o signo da
reavaliação, a reabilitação do anarquismo na produção acadêmica.
Para Viana (2002, p. 66), as mudanças epistemológicas e metodológicas da
pesquisa historiográfica brasileira que, afastando-se das sínteses nacionais/regionais,
coloca sob os holofotes narrativas de grupos específicos, operacionaliza a
49
fragmentação dos estudos sobre a classe operária e possibilita a insurgência de outros
atores.
Destacamos dentre os trabalhos efetuados na década de 1980, as teses de
Miriam Lifchitz Moreira Leite, Caminhos de Maria Lacerda de Moura: contribuição a
história do feminismo no Brasil15 e de Flávio Venâncio Luizetto16, Presença do
anarquismo no Brasil: um estudo dos episódios literários e educacionais, defendidas
em 1983 e 1984 na Universidade de São Paulo (USP) e as dissertações de Margareth
Rago, Sem fé, sem lei, sem rei: liberalismo e experiência anarquista na República e
de Regina Horta Duarte, A imagem rebelde: a trajetória libertária de Avelino Foscolo,
ambas produzidas na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) em 1984 e
1988, respectivamente.
Os quatro autores abrem uma nova perspectiva na abordagem dos anarquistas
pela história, articulando-se à novas formas de construção de seus objetos que lhes
permite deslindar as particularidades de uma história que ultrapassa o movimento
operário, mesmo quando ainda versa sobre ele, constroem um panorama do
anarquismo como ideologia constituinte do ser social de grupos e sujeitos históricos,
enfatizando suas vivências e resistências, a ideia de experiência se mostra central,
tensionando a naturalização entre as relações de produção, a estrutura social e a
cultura. Como aponta Alysson Viana (2002, p. 80), a presença dos libertários, em sua
maioria, dá-se atrelada ao movimento operário, há, contudo, uma diferenciação da
abordagem dos trabalhadores efetuadas nas décadas anteriores, abrindo-se um novo
leque de perspectivas, apoiado, como já mencionamos, nas mudanças teórico-
metodológicas da pesquisa histórica e nas nuances da História Cultural.
Os anos noventa marcam o crescimento dos trabalhos sobre o anarquismo,
intensificando a multiplicidade de enfoques iniciada na década anterior e que se
perpetuará pelas próximas. Propostas de análise em novas áreas do conhecimento
15 A obra de Miriam Lifchitz Moreira Leite teve boa recepção nos meios militantes, levando à exposição
e debate de seu trabalho no Centro de Cultura Social de São Paulo em 1985, conforme podemos
verificar na programação divulgada em um dos boletins de 1985. Disponível em:
<http://ccssp.com.br/arquivos/boletins/boletim1985_02.pdf >.
16 Assim como Miriam Lifchitz Moreira Leite, Flávio Venancio Luizetto também foi presente nas ações
17 A importante relação dos libertários com a educação ainda é um ponto raramente explorado pelo
conhecimento histórico escolarizado, assim como, de forma geral, a luta pelo direito a educação e os
interesses imbricados nos processos políticos e sociais que modularam e modulam a escolarização no
Brasil são negligenciados pelo ensino de história.
18 Ao pensarmos o anarquismo representado no ensino de história, e em dada medida, também na
produção acadêmica, percebemos que ainda existe uma supremacia dos recortes temporais que
privilegiam o movimento trabalhista do começo do século XX e geográficos que enfoquem as práticas
centradas nas regiões sul e sudeste, as ações e organizações difundidas por outras regiões, como
propõem o trabalho de Paganotto, permanecem silenciadas.
51
Os trabalhos da década de 1990, ao relacionarem-se epistemologicamente
com as linhas de pesquisa de História das Mentalidades e da História Cultural, abrem
caminho para projetos voltados para a circulação das ideias e práticas anarquistas,
assim como novas perspectivas sobre o movimento operário e sua relação com as
propostas libertárias. Militantes como Emma Goldman, Fábio Luz, José Oiticica e
Jaime Cubero tornam-se objetos de estudo e suas trajetórias servem de caminho para
a refiguração do passado ácrata.
Concentrando mais de 60% dos trabalhos identificados em nossa pesquisa, os
anos 2000 mostram um movimento crescente e bastante significativo de estudos
sobre o anarquismo, a consolidação de linhas de pesquisas ligadas a Nova História
Cultural e seus desdobramentos fazem emergir novos olhares sobre o movimento
ácrata, estudos com enfoque nas representações sociais e no movimento libertário, a
circulação de ideias e sujeitos passam a integrar o conjunto de temáticas abordadas.
Dentre eles selecionamos as pesquisas de Angela Maria Roberti Martins,
“Cancioneiro Libertário”: das ideias às representações. Uma análise do anarquismo
na perspectiva do gênero, mestrado defendido na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) em 2000 e sua tese de doutorado, Pelas páginas libertárias:
anarquismo, imagens e representações, desenvolvido na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP) em 2006. Ambos trazem uma abordagem voltada
para a Nova História Cultural; incorporando o conceito de representação como prática
social em sua análise, apresenta uma nova perspectiva às pesquisas sobre o
anarquismo.
Também destacamos os trabalhos de Alexandre Ribeiro Samís, Clevelândia
do Norte: anarquismo, repressão e exílio interno no Brasil, mestrado obtido junto a
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) em 2000 e de Edilza Joana Oliveira
Fontes, Preferem-se portugueses(as)": trabalho, cultura e movimento social em Belém
do Pará (1885-1914), doutorado defendido em 2000 na Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP). Ambos os trabalhos abordam direta ou indiretamente o
movimento operário do começo do século XX, porém, trazem novos recortes e
documentação. Samis nos apresenta o campo penal de Clevelândia do Norte no
interior do Amapá e a repressão aos trabalhadores e presos políticos, dentre os quais,
os anarquistas. Fontes, por sua vez, traz dois pontos pouco estudados até aquele
52
momento, a presença de anarquistas de origem portuguesa e sua participação
nos movimentos sociais no norte do país.
A partir de 2010, nota-se a intensificação de propostas que buscam pensar o
anarquismo e suas relações internacionais, em pesquisas que têm como objeto a
trajetória e itinerância de militantes libertários, as trocas teóricas com a circulação de
ideias, cartas e publicações em diferentes jornais e periódicos, marcam um novo
momento na produção historiográfica sobre os libertários. Dentre os trabalhos que se
voltam para o internacionalismo e a circulação de ideias nos meios ácratas,
destacamos a dissertação de Rafael Viana da Silva, Um anarquismo latino-americano:
estudo comparativo e transnacional das experiências na Argentina, Brasil e Uruguai
(1959- 1985), produzida na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ),
em 2018.
Por fim, não poderíamos deixar de mencionar as pesquisas desenvolvidas no
âmbito do ProfHistória: A Colônia Cecília enquanto elemento de análise para a
compreensão da história local a partir do jornal Gazeta de Palmeira: Um recorte dos
anos 1990-1991/2003/2015-2016 de Rafael de Castro Mehret, produzida na
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) em 2018 e Entre a memória e o
esquecimento: um percurso sobre o anarquismo no Rio de Janeiro de Henrique Sa
Amaral, defendida em 2020 na UERJ. Assim como em nosso trabalho, os autores se
propõem a pensar a presença do anarquismo no ensino de história. Mehret,
trabalhando com o conceito de história local, traz a questão da apropriação dos
marcos de memória pelo turismo, o discurso presente no jornal Gazeta de Palmeira e
suas possibilidades de uso em sala de aula. Já Amaral nos oferece uma proposta de
experienciar a cidade em um “tour” pelos lugares de memória do movimento
anarquista, como forma de recuperação histórica do passado esquecido pelo ensino.
Os trabalhos mencionados representam as múltiplas abordagens e temáticas
contempladas pela pesquisa histórica sobre o anarquismo e contribuem para a
construção de um panorama das produções acadêmicas. Tal procedimento se faz
necessário para que possamos consolidar e qualificar nosso corpus documental, com
a finalidade de analisar as relações de apropriação dos saberes e sua circularidade.
Os anarquistas vão à universidade e não apenas como objetos de pesquisa,
mas, como sujeitos na construção da memória e da historiografia sobre os
53
movimentos ácratas. A já conhecida preocupação com a instrução de seus militantes,
acabou por impulsionar um grande número de coletivos que se ocupam de grupos de
estudo das ideias anarquistas e, também, de sua atualização e relação concreta com
o mundo contemporâneo, prática que tem levado um número considerável de
libertários a buscarem o ingresso em instituições de ensino e pesquisa, para, partindo
de sua vivência no universo ácrata e do conhecimento adquirido no mundo acadêmico,
reescrever a história do anarquismo.
Ao nos debruçarmos sobre a produção acadêmica, podemos perceber a
intersecção entre as diferentes instâncias de conhecimento. A ocupação destes
espaços pelos sujeitos que transitam entre os coletivos, a militância e pelas
universidades, sobretudo nas últimas duas décadas, pode ser considerada como um
dos fatores do significativo aumento das pesquisas e diversidade temática, os
libertários passam a ocupar espaço nas universidades falando sobre a história
anarquista e as experiências que haviam sido esquecidas pela historiografia.
A circulação de conhecimentos se dá pela circulação de pessoas, mas também
por eventos e materiais que nascem dos coletivos e ocupam espaços para além dos
círculos ácratas, como colóquios, traduções e publicações de editoras libertárias de
textos clássicos, pesquisas, memórias e relatos produzidos por anarquistas e
estudiosos do anarquismo. Provavelmente, todos nós que já desejamos ler os autores
tradicionais do movimento libertário, deparamo-nos com o trabalho de tradução de
Plínio Augusto Coêlho, militante, tradutor e escritor libertário.
A ação de editoras anarquista está presente ao longo da história dos
movimentos e ideias ácratas, traduzindo e publicando textos sobre o anarquismo e
outros, que sejam considerados pertinentes a ideia que anima estes
empreendimentos. Podemos elencar muitas editoras que circulam entre os meios
militantes e acadêmicos, como a Editora Achimé, responsável pela publicação da
História do Anarquismo no Brasil, Vol. 2 e a Editora Entremares, responsável pela
publicação do vol. 3.
Diversos pesquisadores como Ângela Maria Roberti Martins e Margareth Rago
tiveram artigos ou entrevistas publicadas em jornais/revistas/sites anarquistas, muitos
trabalhos acadêmicos foram publicados por editoras libertárias. Pesquisas de
54
mestrado e doutorado foram divulgadas por sites anarquistas19, grupos de estudos
das práticas libertárias se formaram dentro das universidades que, por vezes, acolhem
eventos gestados fora do ambiente acadêmico20.
Diante desta inter-relação entre a universidade e a militância, consideramos
necessário refletir sobre a circulação de conhecimentos e sujeitos percebendo a
intersecção entre as instâncias de conhecimento com a ocupação destes espaços por
sujeitos que transitam por ambos, companheiros como Rodrigo Rosa da Silva,
atualmente professor colaborador na Universidade Estadual do Paraná , militante ativo
dos debates e da construção do anarquismo, um dos idealizadores da Feira
Anarquista de São Paulo e membro da banda punk Ordinária Hit; a professora e
pesquisadora Patrícia Lessa dos Santos, docente na Universidade Estadual de
Maringá; Alexandre Ribeiro Samis pesquisador e professor aposentado do Colégio
Pedro II; Ingrid Ladeira e Bruno Benevides, idealizadores da série de podcast
Militantes Libertárias e Libertários, disponível no História Presente e da série de
entrevistas Conversas Libertárias, transmitidas pelo canal Aqui se faz História no
Youtube, ligados ao Laboratório de Pesquisa e Práticas de Ensino (LPPE) da UERJ e
ao Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Anarquismo e Cultura Libertária (NEPAN).
Como mencionado, muitos anarquistas optam, além de sua ação e circulação
na produção cultural militante, por participarem ativamente nos programas de
graduação e pós-graduação das universidades, professores e pesquisadores
dedicados ao tema, são, em grande parte, também ligados a ideologia ácrata, como
percebemos pela proliferação de grupos de estudo dentro das instituições formais de
ensino dedicados a pesquisa libertária.
19 A Biblioteca Terra Livre, assim como outros coletivos têm se dedicado a divulgação das pesquisas e
produções anarquistas, disponibilizando-as virtualmente. Disponível em
https://bibliotecaterralivre.noblogs.org/biblioteca-virtual/teses/ . Acessado em 20 jan. 2022.
20 22 Dentre os grupos de estudo sobre anarquismo podemos citar o Grupo de Estudos de Anarquismo
da UFF, o Nu-Sol ligado à PUC-SP e o GEPA (Grupo de Estudo e Pesquisa Anarquista) na UNICAMP,
valendo ressaltar a presença já característica do ST sobre Anarquismo nos Simpósios da Anpuh. Como
exemplos desta imbricada circulação e ocupação dos espaços, citamos o Colóquio Internacional Mikhail
Bakunin e AIT, organizado em São Paulo, no ano de 2014, pela Biblioteca Terra Livre e sediado na
Universidade de São Paulo e, o Colóquio Internacional Piotr Kropotkin, realizado pela Faculdade de
filosofia letras e ciências humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) em 2021.
Disponíveis em: https://coloquiobakuninait.wordpress.com/ < http://www.fflch.usp.br/8194>. Acessado
em 20 jan. 2022
55
Para exemplificarmos a circularidade dos saberes e pessoas, traremos,
brevemente, a importante relação da militância anarquista, sua produção cultural e os
meios acadêmicos; utilizaremos o histórico da Feira Anarquista de São Paulo21.
Iniciada em 2006, por iniciativa do coletivo Biblioteca Terra Livre, a Feira Anarquista
de São Paulo, está em sua décima segunda edição (com um hiato de cinco anos entre
a primeira e a segunda), trazendo em sua programação temáticas que vemos refletir
as pesquisas acadêmicas.
Assuntos como a Guerra Civil Espanhola, a CNT, educação e imprensa
anarquista e o movimento Ocuppy, marcam as três primeiras edições (2006, 2011,
2012); a mulheres e a literatura anarquista começam a ganhar maior espaço de 2013
em diante, assim como outras questões como o internacionalismo, a circulação de
ideias e pessoas, o cinema, objetos e recortes que se vem refletidos e refletem a
circularidade dos saberes que marca a produção acadêmica e militante, incidindo, de
certa forma, na produção do saber histórico escolarizado.
As editoras anarquistas, que constituem um inestimável braço da ação ácrata
e da divulgação de suas ideias, sempre presentes nas Feiras Anarquistas de São
Paulo e outros encontros similares pelo país e mundo, são responsáveis por parte
significativa da publicação dos trabalhos dedicados aos libertários, traduções,
pesquisas e projetos de livros coletivos são acolhidos por estas editoras, divulgados
por meios virtuais e em momentos de encontro de pessoas e ideias, como um elixir
para a sobrevivência da liberdade. Trata-se de uma realidade intercambiável entre a
formalidade das universidades e a descontração e troca de experiência destes
encontros, abertos a todos que desejem participar.
Esta permeabilidade que marca a circulação entre a rua e a academia, parece-
nos representativa dos caminhos pelos quais se dão a circulação do conhecimento
histórico e da memória do movimento ácrata, corroborando nossa hipótese de
circularidade dos saberes que se fará presente na produção didática que toma como
referência as pesquisas acadêmicas e as delimitações das prescrições curriculares e
parâmetros avaliativos.
21
É possível conhecer o histórico das feiras organizadas, assim como sua programação através do
site. https://feiranarquistasp.wordpress.com/
56
A “reabilitação” do anarquismo, tanto acadêmica como nas ruas, demonstra a
importância de suas ideias no desenvolvimento da sociedade contemporânea, desde
movimento sociais até produções artísticas e teóricas, como aponta Margareth Rago
(2015) ao pensar as possíveis relações entre o anarquismo e o pensamento de Michel
Foucault, mostrando-nos que se tornaria incompleta a representação da sociedade
contemporânea sem pensarmos a presença do anarquismo e suas ramificações.
Assumindo que o estudo das “representações” considera que as estruturas do
mundo social não são dadas a priori, mas historicamente construídas, pensar a
relação entre o saber histórico acadêmico e o escolarizado, problematizando as
representações forjadas nas narrativas escolares por meio das práticas de
apropriação, é lidar “com a problemática do mundo como representação, moldado
através das séries de discursos que o apreendem e o estruturam.” (CHARTIER, 1990,
p. 23) e que se interconectam na dinâmica de apropriação e significação dos saberes
e suas representações.
57
Capítulo II: A representação dos libertários entre barricadas, greves, jornais e
coquetéis molotov.
58
para o professor do livro O que é anarquismo, quinto livro da coleção Primeiros
Passos, publicado na década de 1980 e que será analisado em Uma visão distorcida:
o que é o anarquismo.
Consideramos importante não nos abstermos de relacionar um significativo
conjunto de ausências temáticas: as tentativas de organização de sociedades
anarquistas como a Colônia Cecília, o Território Livre Ucraniano, a Freetown
Christiania, ou a Região Autônoma de Shinmin; as ações voltadas à constituição de
instituições escolares (que surge de forma bastante pontual), a Guerra Civil
Espanhola (que nas poucas vezes em que foi representada nos livros didáticos,
excluiu a presença anarquista de sua narrativa) e a organização da CNT-FAI, a
importância da participação ácrata em contextos como a Revolução Russa, a
denúncia da irracionalidade da guerra e defesa do pacifismo, a inegável influência
libertária em correntes artísticas de contracultura, o movimento beat e movimentos
de contestação e resistência contemporâneos como, Maio de 68, Movimento Ocuppy,
Movimento Zapatista, a Revolução de Rojava etc. Tal invisibilidade aponta para um
processo de apagamento do anarquismo como ideologia presente na sociedade,
condicionando-o à “peça de museu”, deslocada da realidade contemporânea, como
aponta Marcio Luiz Carreri (2008).
59
didáticos no Brasil, identificando quais editoras ganharam maior relevo neste nicho de
mercado e as permanências e rupturas por meio da presença reiterada de alguns
autores e coleções ao longo do tempo.
A partir de uma análise semiológica e semiótica do texto e buscando
compreender as estruturas narrativas que delimitam as estratégias discursivas
empreendidas pelos autores22, foram identificados quatro tipos de representações dos
anarquistas23:
22 Ao utilizarmos o termo autores, não excluímos do processo de produção do material didático outros
sujeitos que contribuem e determinam a forma dada às informações. A confecção destes impressos é
um trabalho de múltiplas mãos, do escritor ao editor, passando pelos responsáveis pela seleção de
imagens, atividades, diagramação e outros, todos agentes da construção do discurso apresentado pela
obra.
23 A elaboração destas categorias de análise tomou como critério os processos e observações da
semiótica discursiva proposta por Algirdas Julien Greimas (1966, 2008) amplamente estudas por Diana
Luz Pessoa de Barros (2001, 2008), José Luiz Fiorin (2004, 2013) e Eric Landowski (2002) e o conceito
de representação e seus usos proposto por Roger Chartier (1991, 2002, 2011).
60
• Representação inexplícita: trata-se das representações que
constituem uma narrativa paralela ao texto principal, caracterizando-se pela presença
imagética do anarquismo, mas com a ausência de identificação e/ou nomeação das
imagens, constituindo outro discurso acerca do movimento libertário. Por não estar
explícita a ligação entre imagem e sujeito (anarquismo), considerando o público-alvo
do material didático, produz-se uma representação descontextualizada e “invisível”
sobre os libertários.
62
Figura 1. NADAI, Elza. NEVES, Joana. História do Brasil da colônia a República. 1990, 13ª edição. p. 210.
63
A obra estrutura uma narrativa onde o anarquismo se vê representado de forma
inexplícita e não valorativa, condicionando seu reconhecimento à conhecimentos
prévios do leitor e a mediação do educador, ou a sua nomeação sem maiores
explicações. Há, também, uma acentuada tendencia a evidenciar a relação entre o
socialismo e a organização dos trabalhadores, por meio de notas de rodapé. O único
momento em que o anarquismo é nomeado na obra deixa em suspenso suas ideias e
associa-o ao estrangeirismo.
65
Figura2. PILLETI, Cláudino; PILLETI. Nelson. História e Vida, vol. 4. 1990, 3ª edição. p.67
66
Assim como na obra de Elza Nadai e Joana Neves, a representação inexplícita
presente no livro de Claudino e Nelson Pilleti coloca o reconhecimento do sujeito
anarquismo dependente do conhecimento prévio do leitor (professores e alunos),
sendo, somente mediante esse saber anterior que pode ou não existir, que seria
possível qualificá-lo como agente de ação na narrativa. Ambas as obras optam por
condicionar a ação dos trabalhadores ao marxismo, excluindo completamente os
libertários, como a obra de Cláudio e Nelson Pilleti, ou não lhes atribuindo nenhum
tipo de valor, como o livro de Elza Nadai e Joana Neves.
As representações inexplícitas são uma constante na narrativa didática sobre
o anarquismo nos livros didáticos, constituindo um padrão contínuo ao longo do
tempo, que incide sobre o uso de imagens, mas também, sobre a exclusão da
participação anarquista em momentos históricos nos quais sua presença foi
significativa, como à Comuna de Paris, o Massacre de Chicago e a Guerra Civil
Espanhola, que nas poucas obras em que foram abordadas, tiveram a ação ácrata
obliterada.
A obra História do Brasil, publicada em 1992 pela editora FDT-Atual, 2ª edição,
apresentando como principal autor Raymundo Campos, formado em ciências sociais,
professor e um dos fundadores do colégio Equipe, na capital paulista, designa o
anarquismo em dois momentos: no capítulo 16, O desenvolvimento capitalista no
século XIX e no capítulo 23, Economia e sociedade na República Velha. No primeiro
momento os autores apresentam o anarquismo entre as correntes teóricas do século
XIX, fazendo-o em comparação ao socialismo, condicionando-o a posição inferior a
este em seus aspectos teóricos.
No capítulo 23, os autores constituem um programa narrativo que desvincula
as ideias libertárias da regência de um enunciado de ação ou estado, empreendendo
um novo percurso narrativo, no qual o anarquismo, inicialmente, toma a posição de
qualificador do sujeito “organização dos trabalhadores” e orientador teórico de suas
ações.
67
individuais, visando a criação de fundos para doenças enterros,
aposentadorias e manutenção de escolas. (CAMPOS. 1992, p. 180).
24O corrente mutualista do anarquismo tem como base o associativismo e o cooperativismo, apoiando-
se na associação de indivíduos livres para garantir as condições de produção sem exploração. As
primeiras organizações anarquistas surgem-na Europa no século XIX sob a influência do mutualismo,
que tem como um de seus mais destacados teóricos Pierre-Joseph Proudhon.
68
negociações, a greve chegou ao fim. Os operários obtiveram: aumento
de 20%, a promessa de fiscalização dos preços, a Liberdade para os
presos e não punição dos grevistas.
Fortalecido pela vitória, o movimento operário cresceu ainda mais nos
dois anos seguintes, atingiu outras cidades, mas terminou entrando
em descenso no início da década de 1920. Tal declínio foi gerado por
um aumento da repressão e pela falta de organização mais eficiente
da classe operária que, segundo alguns historiadores resulta da
liderança dos anarquistas. (CAMPOS. 1992, p. 181).
69
Figura 3 MOARES, José Geraldo Vinci de. Caminhos das Civilizações. 1993.
70
No primeiro parágrafo, o autor apresenta as motivações do uso da expressão
libertário para identificar os anarquistas, seguindo com a origem do termo anarquismo.
Apresenta as disputas da Internacional, sobretudo da Segunda, inicialmente
atribuindo aos sociais-democratas e marxistas ortodoxos a cisão e, posteriormente, a
ação dos anarquistas. Traz na coluna a direita as imagens de Mikhail Bakunin e Piotr
Kropotkin (mencionados como líderes teóricos) e retoma o marxismo no último
parágrafo do texto, também menciona o surgimento do anarcossindicalismo e do
socialismo cristão como vertentes de menor importância.
Percebemos a construção de uma representação valorativa positiva do
movimento ácrata. Concedendo a estes assumirem a enunciação do discurso sobre
si mesmos, como ideologia que se opõem ao cerceamento da liberdade (em sentido
amplo), a exploração capitalista e ao poder exercido sobre os homens, figurativizada
pelas ideias de ideologia, religião, classe social, partido político, propriedade privada
e Estado.
No capítulo 30, A expansão do universo urbano e industrial, vemos a
elaboração de um quadro que ambiciona retratar a ação popular como viés de
transformação a partir do século XIX, traçando uma diferença entre as manifestações
organizadas (vinculadas a ação dos trabalhadores orientadas pelas trade-unions e o
movimento cartista), ou espontâneas como a Comuna de Paris. Enfoca o processo de
êxodo rural que marca a Europa no período, colocando a atração pelas cidades como
a atração pelo lugar onde acontecia o progresso, menciona a ascensão da cultura
escrita, por intermédio da ampliação da circulação de obras e textos literários,
tomando como modelo a França.
Ao trabalhar a Comuna de Paris, o autor marca a presença dos socialistas: “Foi
organizado um comitê composto por trabalhadores, socialistas, artesãos, lojistas, etc,
para governar a cidade.” (MORAES. 1993, 270). Em um primeiro momento podemos
ler o termo socialistas como abrangente das correntes de pensamento do socialismo
utópico, científico, cristão e anarquista, apresentados desta forma na introdução do
capítulo 29, porém, o desenvolvimento dado à narrativa acaba por individualizar essas
teorias, que chegam ao capítulo seguinte independentes entre si, levando a não
associação de todas ao epíteto, o que na construção semântica exclui os anarquistas
do processo histórico.
71
Flanando entre a construção de uma representação valorativa positiva no
capítulo 29 e de sua presença inexplícita no capítulo 30, José Geraldo Vinci de
Moraes, apresenta uma narrativa que, mesmo possibilitando ao anarquismo uma
visibilidade que não o condiciona diretamente a sua comparação ao socialismo, limita-
se a ação dos trabalhadores, não sendo reconhecido em outros momentos,
reforçando uma estrutura narrativa que coloca o movimento libertário condicionado ao
universo do trabalho.
A obra História memória viva (1995) de Cláudio Vicentino, bacharel em ciências
sociais e professor de história em cursos pré-vestibulares e ensino médio, abre o
capítulo 10, A Revolução Industrial e o pensamento europeu do século XIX com uma
interessante ilustração de Bakunin (fig.4).
73
Visualmente a distribuição espacial destinada a cada uma das ideologias
abordadas marca uma simplificação excessiva das ideias libertárias frente às outras
teorias (fig. 5), sendo assim definida: “A corrente teórica que, entre outras coisas,
defende a destruição de toda forma de opressão, como Estado, a propriedade privada
e a família. Entre os seus principais representantes temos Mikhail Bakunin, Leon
Tolstói e Piotr Kropotkin” (VICENTINO. 1995, p. 121).
O anarquismo será retomado nas questões propostas, reforçando o
entendimento de “suas características” com a pergunta: O que defendia o
anarquismo? (VICENTINO. 1995, p. 121), para a qual, a única resposta possível,
segundo as informações oferecidas pelo texto, é a destruição daquilo que se
denomina “todas as formas de opressão”, definidas como “Estado, propriedade
privada e família”.
Podemos observar a construção de um discurso que sustenta uma
representação valorativa negativa, onde a grande defesa dos libertários é da
“destruição”, não havendo nenhum tipo de criação pensada pelas lentes ácratas.
Diferindo dos percursos gerativos de sentido que desqualificam o anarquismo em
relação ao socialismo científico, no texto de Cláudio Vicentino observamos, ao nível
discursivo, a limitação dos objetivos anarquistas à destruição, condicionando seu
entendimento ao lugar comum de anarquia como bagunça, violência e demolição das
instituições sociais.
A associação dos libertários à bagunça, falta de ordem, ausência de liderança,
violência, a negação pelos anarquistas das instituições sociais colocadas nos textos
como a família, a religião, o Estado e as forças armadas, constitui-se como discurso
em muitas obras analisadas, mesmo trilhando programas narrativos distintos, os
aspectos semânticos e lexicais levam à um conjunto gerativo de sentido que
condiciona à construção de uma representação valorativa negativa dos ácratas no
material didático.
No livro assinado por Gilberto Cotrim, historiador, filosofo, advogado e ex-
presidente da Associação Brasileira dos Autores de Livros Educativos (ABRALE),
História Global, Brasil e Geral – volume único, produzido em 1997. O anarquismo
surge na obra, somente ligado a ação dos trabalhadores na Primeira República,
estando ausente no capítulo 32, intitulado, Revolução Industrial, as teorias sociais e
74
econômicas do século XIX, que apresenta ao leitor o liberalismo, o socialismo utópico,
cristão e científico. Assim como outras obras do período, o autor apresenta Pierre-
Joseph Proudhon como socialista utópico (fig.6). Sendo destinado um espaço
considerável para a exposição das ideias marxistas, com a definição de conceitos
como dialética, mais-valia, modo de produção e luta de classes.
Figura 6 COTRIM, Gilberto. História Global, Brasil e Geral. 1997, 1ª edição. p. 240
75
Ao nominar o anarquismo no capítulo 47, Brasil – República Velha, no item
Lutas operárias, o faz de forma pontual: “Surgiram, então, os primeiros sindicatos e
organizações operárias para lutar pelos direitos trabalhistas. Entre os primeiros
movimentos operários destaca-se o anarquismo” (COTRIM, 1997, p. 377), destinando
uma pequena explicação sobre sua origem e teoria em um box (Definindo Conceitos)
a margem direita da página (fig. 7).
Podemos considerar uma representação valorativa positiva, ao atribuir ao
sujeito anarquismo participação nos primeiros movimentos operários, contudo, a
narrativa estrutura-se de modo a perfazer, no nível discursivo, uma representação não
valorativa do movimento ácrata.
76
Na página 377, observamos a imagem recorrente do cortejo fúnebre do
militante anarquista Martinez (fig. 7), mas, como veremos em outras obras, o
anarquismo surge aqui como definidor do sujeito sapateiro, não lhe sendo atribuído
valor positivo ou negativo. Assim como parte significativa das fontes analisadas, a
obra de Gilberto Cotrim oferece ao leitor uma consistente abordagem do marxismo
como teoria e pressuposto para organização dos trabalhadores e delega ao
anarquismo poucas linhas, sequer mencionando seus teóricos de forma correta.
As narrativas históricas oferecidas pelos livros didáticos produzidos na década
de 1990 apontam para a recorrência da construção de representações que demarcam
a relação do anarquismo ao estrangeirismo e sua suplantação pelo socialismo devido
à falta de capacidade organizativa do movimento operário, oferecem ao leitor uma
visão delimitada pela concepção de insuficiência organizacional nos primeiros
momentos da luta dos trabalhadores, que somente após um processo sistematizado
de industrialização e a organização política por meio do partido, logrará algum êxito.
Trata-se, como podemos perceber, de uma questão estrutural, mas também
ideológica, que coloca os anarquistas no processo histórico de forma periférica.
Conforme afirma Kazumi Munakata a questão ideológica nas obras didáticas
não pode ser simplificada à uma equação maniqueísta, onde podemos ou devemos
associar que:
77
consciente, determina uma posição e uma representação do anarquismo que dialoga
com a ideia disseminada socialmente e é, majoritariamente, negativa.
As obras publicadas a partir de 2000, sobretudo da segunda metade da década,
apresentam um significativo aumento no número de imagens e uso de cores em seu
interior, mudanças gráficas que se farão sentir em todas as coleções e que
consideramos como um dos efeitos das avaliações do PNLD, que passam a
contemplar as disciplinas de história e geografia a partir de 1997.
O uso destes recursos leva a possibilidade de construção de novos arranjos
narrativos no interior da obra, como identificou José Cássio Másculo (2008), ao se
deparar com processo semelhante de inovação gráfica na coleção didática de Sérgio
Buarque de Hollanda em 1970, a presença de fotografias e o recurso da colorização,
que na época eram uma novidade trazida pela obra, se intensificam no decorrer das
décadas, como pudemos perceber na análise das fontes selecionadas, e ganham
cada vez mais espaço nas páginas dos livros didáticos. Assim como o uso das
imagens e cores relatadas por Másculo (2008) que aproximava a obra de Sérgio
Buarque à diagramação das revistas da época, os livros didáticos das décadas de
2000 e 2010 trarão uma diagramação de página que busca assemelhá-los aos
suportes informatizados e páginas da internet.
A coleção Nova história crítica de Mario Schmidt, professor, escritor e
enxadrista, apresenta oscilação entre a representação valorativa negativa e a
representação valorativa positiva, mantendo essa característica nas edições de 1994
e 2000. Elencamos para análise neste momento, o livro destinado à 8ª série do ensino
fundamental, por considerarmos que constitui programa narrativo que permite ao
anarquismo, ao nível do discurso, assumir a posição de sujeito da enunciação.
A introdução da obra é destinada a revisão dos temas estudados no ano
anterior. Na página 17 (fig. 8) observamos a retomada das doutrinas sociais do século
XIX, colocando em local de destaque a ilustração de Marx e Engels na tipografia,
mesma imagem apresentada na obra destinada a 7ª série. No texto, Marx e Engels
são lembrados como os “mais destacados socialistas do século XIX” (SHIMITD.
2000b, p. 17), ganhando relevância o julgamento que fazem de outros socialistas:
“Eles acusaram os outros socialistas de serem “utópicos”, ou seja, de não
78
conseguirem mostrar como se poderia destruir o capitalismo e construir uma nova
sociedade.” (SHIMITD. 2000b, p. 17).
O anarquismo surge no penúltimo parágrafo, trazendo o nome de Mikhail
Bakunin como seu principal defensor, a escolha vocabular marca a diferença entre os
destacados socialistas (Marx e Engels) e o principal defensor (Bakunin), retomando
um senso comum de fragilidade ou inexistência de um corpo teórico para as ideias
libertárias. Fragilidade que se configurará como lugar comum na construção da
narrativa do anarquismo oposicionista frente ao sujeito socialismo científico.
79
No conteúdo já destinado a 8ª série, o anarquismo surge no início do capítulo
4, Rebeliões na República Velha, com a presença de uma imagem que traz a legenda
“ilustração anarquista de 1924. A revolução social dos trabalhadores derrota a
opressão do capitalismo” (SCHMIDT. 2000b, p.73) (fig. 9), não há referência de onde
a imagem foi retirada.
80
Na sequência, os libertários são retomados na página 79, quando o autor
apresenta o movimento operário:
Mário Schmidt ainda traz na página seguinte uma fotografia de Elvira Boni, e
um quadro no qual se propõe explicar o anarquismo, buscando contextualizar a ação
ácrata descrita no texto principal (fig. 10). A narrativa composta nos leva a perceber a
prevalência, neste capítulo, de uma visão positiva do anarquismo, considerando seu
percurso gerativo de sentido. No nível da narrativa, o anarquismo é sujeito do fazer e,
também, responsável pela mudança de estado do grupo que representa (os
trabalhadores), estabelecendo-se, no nível discursivo, como sujeito do enunciado,
sustentando uma representação valorativa positiva dos libertários.
81
Figura 10 SCHMIDT, Mário. Nova história crítica. 2000, 8ª série, p. 80
82
Ao dar início aos itens Comunistas no Brasil, Schmidt traz os anarquistas como
alvo da crítica marxista:
84
Figura 11. GRINBER, Keila. DIAS, Adriana Machado. PELLEGRINI, Marcos. Vontade de saber história. 8º ano,
2009, p.95.
85
O mesmo recurso de diagramação foi utilizado no volume destinado ao 9º ano
do ensino fundamental, no capítulo 2, Segunda Revolução Industrial, no subitem,
Alternativas para organização da sociedade (fig. 12).
86
Ao abordar a teoria anarquista, os autores apontam para o seu caráter de
negação do Estado, da religião e da propriedade privada e para a prática da
autogestão. No volume destinado ao 9º ano, não há menção de nenhum intelectual
anarquista e o box é dividido com a explicação sobre a teoria Positivista. A narrativa
verbo-visual sugestiona uma relação de inferioridade, como na análise anterior, em
uma construção hierárquica das teorias apresentadas, levando a um discurso que
premedita a subalternidade do movimento ácrata, configurando uma representação
valorativa negativa.
Os recursos de diagramação, como explorados por José Cássio Másculo
(2008), apontam para a dinamização das práticas de leitura, considerando-se sua
força estruturante na obra e sua intensão prescritiva de prática de leitura específica,
direcionada para um leitor imaginário, mas também conectar as narrativas a outros
elementos da obra, propondo um teor e significado para o texto25. Ao optar pela
mudança da letra nos boxes, intensifica-se a marca visual entre a narrativa principal e
o conteúdo oferecido nesses recursos, constituindo uma hierarquia discursiva que
determina a posição dos sujeitos históricos apresentados.
O livro Estudos de História, publicado pela editora FDT em 2009, conta como
autores principais Eduardo de Moura Faria, bacharel e licenciado em história, com
pós-graduação em ciências humanas, Mônica Liz Miranda, professora universitária
com ênfase na área de Teoria e Metodologia da História, Ensino de História, História
da Ciência e Helena Guimarães Campos, graduada em história e especialista em
História da América Latina; em sua 1ª edição oferece ao leitor uma abordagem ampla
do anarquismo e suas correntes, buscando sistematizá-las.
O capítulo 3, intitulado Os socialismos e o movimento operário, abrange, sobre
a égide dos socialismos, o socialismo utópico, anarquismo, marxismo e a social-
democracia. Na explicação sobre o anarquismo (fig.13), os autores constituem uma
narrativa que, a exemplo da maioria das obras analisadas, toma como referência as
semelhanças e diferenças desse com o marxismo, não há menção alguma à imagem
a esquerda, que traz a legenda:
25
Podemos considerar dentre os dispositivos gráficos que concorrem para a construção do sentido da
leitura a instituição dos boxes, as escolhas tipográficas, e as imagens selecionadas e a distribuição dos
textos e imagens na página, como componentes indispensáveis à composição do discurso proposto
pela obra.
87
Um anarquista russo morre ao manipular explosivos para fabricar uma
bomba, em São Petersburgo, Rússia. Uma ala dos anarquistas buscou
atingir seus objetivos por meio da violência, inclusive do assassinato
de autoridades. (FARIA; MIRANDA; CAMPOS. 2009, p. 376).
Figura 13 FARIA, Ricardo de Moura. MIRANDA, Monica Liz. CAMPOS, Helena Guimarães. Estudar história. 2009, p.
376
88
Os autores desenvolvem na sequência um quadro de correntes divididas por
nacionalidade, citando o anarquismo coletivista de Bakunin, o comunismo anarquista
em Kropotkin, o anarco-individualismo de Max Stirner e o anarcossindicalismo que
atribuem a Proudhon. Finalizando a abordagem sobre os libertários com um excerto
de Malatesta e a indicação de uma pesquisa sobre este militante.
A parte do texto destinada a explorar, junto ao educando as ideias anarquistas,
vem ilustrada pela capa do Le Petit Parisiense de março de 1905, suscitando, em um
primeiro momento, uma representação valorativa negativa, ligada a violência.
Contudo, ao expandirmos a leitura para todo o corpo textual, é notável que essa
representação não alcança o sentido posto pela narrativa, que na pendularidade entre
as representações positivas e negativas, produz um discurso que tende a enfatizar a
representação valorativa positiva do movimento libertário.
As obras analisadas flertam com o discurso presente nas produções da década
anterior e com ideias ainda bastante arraigadas sobre o anarquismo como falho para
organização da massa operária. Mesmo buscando novos recortes e abordagens,
apresentam um traço de continuidade com as representações constituídas na década
anterior, que gradativamente perderão espaço nas produções dos anos seguintes,
com a sistemática retirada da classe trabalhadora como sujeito histórico e, com esses,
os anarquistas.
A exceção pode ser pontuada na obra de Schmidt, que ao dialogar com uma
produção historiográfica mais recente e assumir um discurso baseado na perspectiva
da história dos vencidos, apresenta-nos uma configuração da memória histórico
escolar sobre o anarquismo que traz sua intensa produção cultural, preocupação com
a propaganda anarquista e instrução de seus militantes. É notável seu diálogo com
trabalhos como de Silvio Donizete de Oliveira Gallo (1990), ao apresentar as escolas
anarquistas e afirmar que “Os anarquistas preferiram suas próprias escolas”
(SCHMIDT. 2000b, p. 80). Para Gallo:
26A mesma informação é apresentada nas obras para o ensino fundamental e médio, contudo, somente
na destinada ao 3º ano do ensino médio é que o autor irá incluir a origem dos dados apresentados,
como tendo sido obtidos na obra do historiador Boris Fausto, mas não há citação de qual obra se trata.
90
e comunismo (fig. 14), assumindo o lugar do anarquismo oposicionista, bastante
presente na qualificação do movimento libertário na obra e na construção de uma
representação valorativa negativa dos anarquistas.
91
O anarquismo surgiu na segunda metade do século XIX. Seus
principais teóricos foram Pierre Joseph Proudhon (1809-1865) e
Louise Michel (1930-1905), na França, Mikhail Bakunin (1814-1876) e
Piotr Kropotkin (1842-1921), na Rússia; Errico Malatesta (1853-1932),
na Itália; e Emma Goldman (1869-1940), nos Estados Unidos. Os
anarquistas assim como os socialistas científicos, faziam a crítica a
exploração promovida pelo sistema capitalista, mas apontavam o
Estado e os regimes de governo como causa de todos os males da
sociedade.
O anarquismo, portanto, não propunha um governo dos trabalhadores,
eles defendiam uma sociedade fundada na livre associação dos
indivíduos sem instituições como partidos políticos, Parlamento,
polícia, prefeitura, presidência, tribunais e exércitos. Abolido qualquer
tipo de poder político e hierárquico, os indivíduos estariam livres para
viver com base na cooperação e na propriedade coletiva dos bens.
(BARRETO. BRAICK. 2018a, p. 194).
92
texto, trazendo para dentro do discurso outras vozes: Mikhail Bakunin e Emma
Goldman, o primeiro utilizando um trecho de seus escritos e, Goldman na fotografia
selecionada para compor a narrativa (fig. 15). O conjunto verbo-visual apresentado
por Barreto e Braick constitui importante representação valorativa positiva, que se
consolida no discurso que perpassa a abordagem do anarquismo na obra
Figura 15 BARRETO, Anna. BRAICK, Patrícia Ramos. Estudar história: das origens do homem a era
digital. 2018, 8º ano, p. 194
93
O fragmento da obra de Bakunin transcrito no livro, busca qualificar o termo
liberdade, levando-o além da acepção trivial, pontuando a impossibilidade de a
liberdade proposta pelo anarquismo ser alcançada por meio da “liberdade formal”,
qualificada pelo teórico como “o privilégio de uns poucos sobre a escravidão de todos”
(BAKUNIN. 2006, p. 76)
96
O mesmo expediente que instaura a representação inexplícita, com a imagem
do jornal anarquista A Plebe (fig. 16), é utilizado no Capítulo 12 Democratização do
Brasil, ao trazerem a fotografia da torcida do St. Pauli (fig. 17), time alemão conhecido
por sua ação de combate ao nazifascismo, preconceitos e descriminações de forma
ampla, com forte influência da ideologia e presença anarquista e da antifa do Atlético
Ferroviário de Fortaleza, grupo que faz parte de um movimento surgido entre
militantes de esquerda, sobretudo, anarquistas ligados a torcidas de diferentes times
de futebol do país, abertamente contrários ao autoritarismo, à mercantilização do
futebol moderno e a presença fascista entre times e torcidas. Excluindo a origem e
presença anarquista de todos eles, a obra de Campos, Claro e Dolhnikoff, constitui
uma narrativa sobreposta à narrativa principal, na qual os libertários estão incluídos
no processo histórico valorizado pela obra, mas não são nomeados, permanecendo
ausentes como sujeitos.
97
Figura 18 CAMPOS.; CLARO.; DOLHNIKOFF. História, escola. p. 275
98
Por meio da análise de nossos documentos e suas transformações, podemos
constatar a permanência de uma estrutura narrativa básica na construção do passado
escolarizado que divide espaço com mudanças na produção visual da obra, levando
a diferentes possibilidades de interações entre as narrativas principais e adjacentes,
com o uso cada vez maior de dispositivos gráficos como boxes que figuram como
consenso na distribuição dos textos verbo-imagéticos para o enquadramento dos
anarquistas e de outras tantas temáticas que orbitam o texto base dos livros didáticos.
As inovações tecnológicas e demandas contemporâneas de adequação do texto em
suporte impresso à um layout que o aproxime do suporte eletrônico, constituem, cada
vez mais, estruturas narrativas desagregadas do texto base que delineiam narrativas
sobrepostas à principal, “hiperlinks” que podem ou não ser acessados na prática da
leitura.
As pressões sociais de grupos identitários e as transformações acadêmicas na
produção historiográfica colocaram às obras didáticas a necessidade de contemplar o
dialogismo e a diversidade de vozes no interior de sua narrativa, contudo, a forma de
“ampliar o passado”, comumente apresentadas nas obras, é a construção de
discursos paralelos, por meio do uso de dispositivos gráficos que condicionam a leitura
e entendimento destas multiculturalidades a uma galeria de curiosidades, que podem
ou não ser acessados pelo leitor, sem prejuízo na compreensão da proposta
discursiva da obra.
A análise das obras mostrou a continuidade da sobreposição de
representações no nível básico de análise, mas, ao nível da narrativa, na construção
dos percursos gerativos de sentido, as representações valorativas negativas dos
anarquistas acabaram se sobressaindo, instituindo ao nível do discurso uma visão que
sustenta a permanência da ideia de desorganização, destruição e desarticulação do
movimento anarquista.
Compondo o maior grupo identificado nos livros didáticos que constroem um
quadro do movimento libertário de forma a diminuir sua relevância, ora colocando-o
como sujeito em disjunção do(s) objeto(s) valor(es) postos no texto, ora por opções
semânticas que atribuem ao sujeito anarquismo qualidades negativas. Apresentam
padrões semelhantes no percurso gerativo de sentido, recorrendo a estruturas
narrativas que se repetem, levando-nos a um discurso que submete o entendimento
99
sobre os libertários à sua relação com o marxismo, instaurando um “anarquismo débil”,
incapaz de garantir a organicidade de seus quadros e a estrutura para organização,
sobretudo, do movimento dos trabalhadores.
Buscando apreender os referenciais postos na mobilização de sentido das
representações do anarquismo como um processo que constrói narrativas a partir de
conhecimentos dados anteriormente, recorremos ao conceito de apropriação de
Certeau, no qual a representação dos ácratas identificadas passa a ser entendida
como a “criação de frases próprias com um vocabulário e uma sintaxe recebidos” que
“instaura um presente relativo a um momento e estabelece um contrato com o outro
(o interlocutor) numa rede de lugares e de relações” (CERTEAU. 1998, p. 40).
O anarquismo nos livros didáticos de história, sua representação e o discurso
que comporta, podem ser entendidos por meio da relação dialética que estabelece
com o imaginário social, político e com as produções acadêmicas. Atentando para que
estas representações são elaboradas na dinâmica de apropriação de uma
determinada visão sobre o movimento libertário e sua (re)figuração na criação de outro
produto cultural, pensado para leitores diferentes do público das pesquisas e trabalhos
tomados como referenciais. Para Michel de Certeau:
100
mas de “como contar”, quais ações permeiam a possibilidade de construção destas
representações e quais lugares ocupam, tradicionalmente, no ensino de história.
101
e os demais para a apresentação do socialismo utópico, o marxismo e positivismo, o
anarquismo está ausente (fig. 19).
102
Nas páginas subsequentes teremos, inicialmente, um acréscimo as questões
propostas aos educandos, a apresentação do socialismo utópico em uma abordagem
bastante ampla dos socialistas ingleses, trazendo as ideias de Robert Owen, Charles
Fourier e demarcando, no final do texto, o fracasso destas propostas. A próxima teoria
a ser apresentada é o socialismo científico, momento no qual podemos ver um box
reforçando a ideia de ação/trabalho empreendido por Marx e Engels e uma imagem
de Proudhon (fig.20), sem nenhum tipo de apresentação deste pensador anarquista,
além de uma menção da crítica feita por Karl Marx a ele, chamando-o de pequeno-
burguês.
Figura 20. SCHMIDT, Mário. Nova história crítica. 2000, 7ª série p. 203.
103
O anarquismo surge na parte final do capítulo, ocupando aproximadamente
uma coluna e meia de texto. Mikhail Bakunin ocupa a posição central no final da
página, sentado em uma cadeira de espaldar alto, assemelhando-se a um trono,
diagramado de forma a construir uma linha em oposição à ilustração da gravura do
confronto entre os trabalhadores franceses e a polícia, além da oposição posta pela
narrativa de Marx e Engels (em ação) na tipografia (fig. 20) e Bakunin em inação,
sentado (fig.21).
104
O texto utiliza o recurso da comparação com o socialismo científico para
qualificar a ideologia anarquista, já na primeira linha os socialistas são convocados
como parâmetro: “os socialistas não foram os únicos a abominar o capitalismo”
(SCHMIDT. 2000a, p. 208). Continuando a descrição sobre o movimento anarquista,
observamos que o autor intercala parágrafos nos quais traz informações sobre o
anarquismo e parágrafos nos quais constrói sua perspectiva atrelada ao marxismo.
“É anarquista por definição, aquele que não quer ser o oprimido nem
o opressor, aquele que quer o máximo de bem-estar, o máximo de
105
liberdade, o maior desenvolvimento possível de todos os seres
humanos.” (Malatesta, anarquista italiano, 1899).
“O Estado nada mais é do que uma máquina para uma classe social
oprimir a outra.” (Engels, 1891).
106
Figura 22 BRAICK, Patrícia Ramos. Estudar história das origens do homem a era digital. 2013, 8º ano, p.
209.
107
Na página subsequente, insere um box com a sugestão do filme Sacco e
Vanzetti (fig. 23), contando com a fotografia de uma das cenas da obra do diretor
Giuliano Montaldo:
Figura 23 BRAICK, Patrícia Ramos. Estudar história das origens do homem a era digital. 2013, 8º ano p. 210.
108
Figura 24 (BRAICK, Patrícia Ramos. Estudar história das
origens do homem a era digital. 2013, 8º ano, p. 213).
Cabe ressaltar que o quadro feito por Coubert é utilizado com frequência para
representação imagética de Proudhon (muitas vezes como socialista utópico), e
recortado (enfatizando apenas sua face). Não localizamos nenhuma obra que
trouxesse menção a proximidade do teórico anarquista e o pintor, que, contudo, foi
bastante impactante para Coubert, relatada em cartas para seus pais, e retratada por
alguns estudiosos de sua vida e arte. Consideramos esta representação específica
como inexplícita, uma vez que não estabelece relação direta com o restante da
narrativa, mas, não a qualificamos como o modelo de representação preponderante
na obra de Braick.
A coleção ainda conta com manual do professor, no qual apresenta algumas
instruções para trabalhar com o filme Sacco e Vanzetti, sugerido no material didático.
Dentre as sugestões de trabalho, algumas chamam a atenção pelos trechos propostos
e suas formas de análise:
109
Percebemos que parte considerável dos programas narrativos presentes nos
livros didáticos privilegiam as representações do anarquismo em oposição ao
socialismo científico, produzindo a construção de uma dissimetria de valores
irreversível, mesmo que as obras apresentem, em alguns momentos da narrativa, uma
representação valorativa positiva do anarquismo, o condicionamento de sua
mobilidade e significância ao outro (socialismo científico), leva o leitor, educando que
na grande maioria vê o anarquismo pela primeira vez nas páginas do livro de história,
a formulação de uma visão contraditória e de menor significado social. Como aponta
Eric Landowski:
110
Movimento operário nos séculos XIX e XX
(o anarquismo como influenciador estrangeiro)
Um tema comum nas narrativas presentes nos livros didáticos de história sobre
os libertários são os movimentos operários do século XIX e XX, instaurando o topo
narrativo do anarquismo como influenciador estrangeiro, predominantemente nas
primeiras décadas do século XX. Compondo a maioria das narrativas e
representações encontradas nas fontes analisadas, a luta dos trabalhadores constitui-
se como importante recorte para a configuração do passado anarquista, o
anarcossindicalismo e ações como a Greve de 1917 costumam ser abordadas nas
obras didáticas.
Iremos iniciar a análise deste topo narrativo utilizando as obras História
sociedade e cidadania para a 8ª série/ 9º ano publicadas em 2007, 2012, 2018 e para
o 3º ano do ensino médio, publicado em 2016.
Ao abordar o movimento operário no livro destinado à 8ª série (9º ano), traz no
primeiro parágrafo uma breve contextualização das condições de vida e exploração
da classe trabalhadora, para em seguida falar sobre as ideologias que permeavam o
movimento de luta operária.
111
Figura 25 BOULOS, Alfredo. História sociedade e cidadania. 8ª série. 2006, p. 79.
112
A publicação de 2012 traz à mesma divisão de capítulos e texto, havendo
somente a alteração da imagem do enterro de Martinez, ao passo que na obra de
2018 vemos algumas mudanças tanto na divisão de capítulos como no texto. O
movimento operário passa a figurar no capítulo 2, Primeira República, dominação e
resistência, no subitem Contestação e dinâmica da vida cultural na Primeira
República.
A parte textual destaca o caráter estrangeiro dos operários, sobretudo em São
Paulo e por conseguinte, do próprio movimento operário paulista. “Em 1920, em São
Paulo, 51% dos operários eram estrangeiros, enquanto no Rio de Janeiro estes
somavam 35%; a maioria do operariado era formada de italianos, portugueses e
espanhóis” (BOULOS. 2018b, p. 34). O estrangeirismo das ideologias operárias se
consolida textualmente, ao afirmar que “esses ideais entraram no Brasil com os
imigrantes europeus”. (BOULOS. 2018b, p. 34). Utilizando-se do recurso visual,
complementa essa ideia por meio de uma fotografia (fig. 26) que ocupa lugar de
destaque na página, a legenda chama a atenção para as feições e vestimentas dos
trabalhadores, caracterizando-os como imigrantes.
Ao descrever a ideologia anarquista, o autor, reitera a importância da imprensa,
citando os jornais O Libertário, Terra Livre, A voz do trabalhador e A Plebe, apresenta
a “[...] “greve geral revolucionária”, que poria fim ao Estado e ao capitalismo”
(BOULOS. 2018, p. 34), como objetivo maior dos anarquistas. Edgard Leuenroth,
Everardo Dias e José Oiticica são indicados como líderes do movimento. Cabe
ressaltar, entretanto, que dos três anarquistas apresentados, somente Everardo Dias
não era brasileiro, tendo chegado ao Brasil aos dois anos de idade, contrapondo a
premissa de estrangeirismo do movimento ácrata que permeia a obra.
113
Figura 26 BOULO, Alfredo. História sociedade e cidadania. 2018, 9º ano, p. 34.
114
Os livros da coleção que foram analisados oferecem um panorama bastante
parecido entre si, explorando o caráter estrangeiro dos trabalhadores, sobretudo de
São Paulo, onde, segundo o autor, há uma maior ênfase no movimento anarquista,
constituindo uma representação que desvincula o movimento ácrata dos
trabalhadores nacionais, retomando a narrativa de “planta exótica”.
Na obra História Integrada do fim do século XIX aos Dias atuais, volume 4,
destinado ao público da 8ª série, publicado em 1997 pela Editora Ática que tem como
principal autor o professor universitário, José Jobson Arruda, o anarquismo surge na
Unidade III, Capítulo 9: Transformações na sociedade brasileira: a cidade e o campo.
Ao falar do movimento feminista nascente apresenta a participação de Maria
Lacerda de Moura; e ao tratar do movimento operário, no capítulo 10: Conflitos
políticos externos e internos, coloca os libertários no texto de abertura como
organizadores dos sindicatos e das lutas trabalhistas.
A obra oferece ao leitor uma narrativa que contempla a relevância da presença
anarquista na organização dos sindicatos que passam as mãos socialistas após
1920, considerando como motivadores do esvaziamento do movimento o aumento
das perseguições e deportações dos ácratas depois da Greve de 1917, somado aos
impactos mundiais da Revolução Russa.
No desenvolvimento do item: História do movimento operário, indica a forte
presença imigrante como base dos sindicatos anarquistas, demarcando o anarquismo
como influenciador estrangeiro; retoma o Primeiro Congresso operário como fruto da
ação e organização ácrata, dá considerável ênfase aos jornais libertários, trazendo
imagens e referenciando textualmente o Amigo do Povo, La Battaglia e A Plebe,
menciona rapidamente Luigi Damiani e Edgard Leuenroth, frisa a concepção pacifista
que assumem durante o conflito da Primeira Guerra Mundial, por considerá-la como
uma guerra de capitalistas, também enfatiza o caráter anticlerical do movimento
anarquista e a importância e ação no campo cultural e educacional:
115
Os anarquistas procuraram também construir escolas próprias, para
educar as crianças e aos adultos operários, conforme sua maneira de
pensar. (ARRUDA. 1997, p. 56).
116
condicionado ao papel de estrangeiro: “Um papel muito destacado foi desempenhado
pelos anarquistas. Foram os imigrantes italianos e espanhóis que trouxeram essas
ideias” (SCHMIDT. 1994, p. 143).
Também reforça a ideia de distanciamento dos anarquistas dos interesses
políticos, trazendo a “apatia” política como dado permanente do movimento ácrata:
“Os anarquistas consideram que a luta política é burguesa. Por isso não votam, não
têm partidos políticos e pouco se importam se é esse ou aquele que está governando”.
(SCHMIDT. 1994, p. 143).
Ao abordar a Greve de 1917, opera o deslocamento do eixo Rio-São Paulo,
mais comum nas obras estudadas, mencionando manifestações em Salvador, Porto
Alegre e Recife. Ao ampliar o recorte sobre o movimento operário, assinala que a
minoria dos trabalhadores era anarquista, sendo que, a maior parte deles não se
ligavam às ideologias do período.
117
estratégia narrativa utilizada ao descrever as ideologias do século XIX e estrutura
comum na maioria das obras analisadas.
Podemos constatar na maioria das coleções didáticas analisadas a limitação
espacial aos acontecimentos de São Paulo e, eventualmente, no Rio de Janeiro,
refletindo as pesquisas acadêmicas, onde o foco se concentra em sua ação no
Sudeste. Cabe ressaltar que na obra de Alfredo Boulos Júnior, esse recorte é ainda
mais restrito, vinculando os anarquistas, majoritariamente, à São Paulo. O
anarcossindicalismo é uma das ideologias libertárias que mais vezes é retratada nos
livros didáticos, contudo, raramente explicado para além de sua nomeação e ação
ligada à Greve de 1917 ou a produção de jornais operários, sendo suprimido pela
formação do PCB.
Percebemos que as ideias e ações ácratas estão restritas, com algumas
exceções, ao seu caráter imigrante (mesmo quando os anarquistas mencionados são
brasileiros), sua ação espacialmente delimitada à região Sudeste e sua finitude no
passado, conformam-no como “produto estrangeiro” que exerce influência no
desenvolvimento da classe trabalhadora, mas que possui uma pressuposta
inapetência para a organização, por isso suplantado pelo socialismo com a criação do
PCB. Trata-se da edificação de um lugar comum na representação dos libertários que
converge para uma ideia de inadequação e ausência de ordem.
Personagens libertários
(a personificação do anarquismo)
Entre as histórias contadas nas páginas dos livros didáticos, alguns nomes
tornam-se comuns e outros surgem pontualmente, talvez por inclinação ideológica ou
poética dos autores, talvez por marcarem um lugar específico na proposta narrativa
elaborada para o material. Por diversas vezes são apenas nomes ou ilustrações
enfeitando as páginas, usados para atribuir uma feição à ideologia ali representada e
cumprir seu papel de erigir uma liderança para os acontecimentos históricos sob a
égide do anarquismo. Ocupando, assim, um importante locus na forma amplamente
utilizada pela narrativa no ensino de história, o de comando e por que não dizer,
hierarquia, na ação dos sujeitos no passado.
118
Nas estruturas narrativas presentes nos livros didáticos de história sobre o
anarquismo, talvez a que tenha sofrido mais mudanças sejam os arranjos entre forma
e conteúdo que dão visibilidade aos “personagens” ácratas. Nas últimas duas décadas
o significativo aumento dos recursos visuais nas obras possibilitou um crescente
número de fotografias e pinturas retratando os libertários, contudo, nem sempre
concedendo-lhes seu lugar de direito entre os anarquistas. A figura de Pierre-Joseph
Proudhon é retratada frequentemente nas publicações da década de 1990, como
representante do socialismo utópico, posição que paulatinamente foi sendo alterada
nas décadas subsequente, para que assumisse seu merecido lugar como um dos mais
importantes teóricos libertários; ou Lima Barreto que em nenhum momento tem sua
relação com as ideias anarquistas incluída em legendas e minibiografias. Também é
notório o aumento de figuras femininas, o que nas obras mais recentes acaba por
condizer com o proposto pela BNCC em seus objetos de aprendizagem.
Para compreendermos os caminhos assumidos pelo topos na narrativa, é
necessário pensar qual a função destes sujeitos, quantas ausências carregam e quais
discursos possibilitam. Personagens como Mikhail Bakunin, Pierre-Joseph Proudhon
são figuras frequentes nos discursos sobre o anarquismo. Pietr Kropotkin figura tanto
na parte textual como imagética e Errico Malatesta surge nos textos e como autor de
documentos (fragmentos) utilizados em atividades ou boxes informativos. Uma das
imagens mais vinculadas de Proudhon pelos materiais didáticos é o quadro de 1853
feito por Gustav Coubert, que estabeleceu relações com as ideias anarquistas e nutria
grande admiração pelo teórico.
Outros personagens se fazem presentes, normalmente utilizados como
simples complemento para demarcar, de algum modo, a presença de lideranças,
centralidades e hierarquia (locus essenciais na forma narrativa apresentada pelos
materiais didáticos). Vemos citações à Leon Tolstói, Everardo Dias, José Oiticica, Luis
Magrassi, Alfredo Vasquez, Max Stiner, Luigui Damiani, Edgard Leuenroth, Errico
Malatesta, Mota Assunção, Nicolla Sacco e Bartolomeo Vanzetti, na maioria das
vezes, instrumentalizados para compor a personificação das ideias na figura de um
ou mais nomes que representem papel de liderança.
119
Na obra destinada ao 9º ano do ensino fundamental, Estudar História das
origens do homem a era digital (2018), vemos a presença pouco comum de Astrojildo
Pereira (fig. 28) e a menção da relação entre os anarquistas e a Revolução Russa
como complemento para o professor. Os livros da coleção em sua 3ª edição passam
a contar com a escritora e também professora de história, Anna Barreto.
Figura 27 BRAICK, Patrícia Ramos. BARRETO. Anna. Estudar História das origens do homem a
era digital. 2018, 9º ano, p. 32
120
Voltada aos educadores, a nota de rodapé, Sobre a Imagem, fala do jornal
Spartacus, explicando a origem de seu nome e, argumentando que para muitos
anarquistas e socialistas brasileiros não existia uma clara compreensão sobre o que
seria o anarquismo e o socialismo, utilizando-se da imagem e fala atribuída a Astrojildo
Pereira, para corroborar seu posicionamento.
121
Figura 28 COTRIM, Gilberto. RODRIGUES, Jaime. Historiar. 9º ano. 2015, p. 105
122
A presença de mulheres anarquistas nas páginas dos livros didáticos da
década de 1990 é bastante discreta, sendo restrito no material analisado a uma breve
citação feita por Mário Schmidt à Elvira Boni, algumas poucas menções à Louise
Michel nas raras citações sobre à Comuna de Paris, sendo, na maioria das vezes
elidida sua origem anarquista e a Maria Lacerda de Moura.
Na segunda metade da década de 2010, vemos o aumento da presença
feminina nas páginas que se dedicam ao movimento ácrata, o que entendemos como
resultado do objeto de aprendizagem “Anarquismo e protagonismo feminino” proposto
pela BNCC para o 9º ano do ensino fundamental e do expressivo aumento de
pesquisas acadêmicas, grupos de estudo e rodas de conversa sobre as mulheres
libertárias dentro dos coletivos ácratas, estabelecendo uma importante relação
dialógica entre as diferentes esferas produtoras de conhecimento e memória sobre os
libertários.
Nomes como Emma Goldman, Isabel Cerruti, Matilde Magrassi e Isa Rute
passam a ser citados pelos textos, assim como Rosa Musitano e Maria Angelina
Soares. Cabe ressaltar, entretanto, que se trata ainda de um aumento discreto,
presente em obras como o Projeto Araribá Mais (2018) e Estudar História (2018),
escritas ou organizadas por mulheres. Exemplo disto é a presença de Maria Lacerda
de Moura na obra destinada aos nonos anos e de Emma Goldman (fig. 29), em
posição de destaque, discursando para a massa de trabalhadores, na edição voltada
para o 8º ano do ensino fundamental da coleção Estudar História.
123
Figura 29 BRAICK, Patrícia Ramos. BARRETO. Anna. Estudar
História das origens do homem a era digital. 8º ano. 2018, p. 194.
Observamos na obra coletiva Araribá Mais (2018) a anarquista Lucy Parsons
(fig. 30), qualificando sua ação e ideias dentro do movimento anarquista
estadunidense. Assim como Armando Gomes, trazem um importante destaque para
representatividade do anarquismo negro, tema que dá seus primeiros passos na
pesquisa acadêmica e ainda está ausente dos debates propostos nos materiais
didáticos.
124
Estes militantes anarquistas surgem nos livros didáticos em momentos que
também se tornam alvo de maior interesse academico e temas de estudo e discussão
em coletivos como a Biblioteca Terra Livre e o Centro de Cultura Social, corroborando
nossa observação de circularidade dos saberes entre os grupos que se dedicam a
estudar e viver o anarquismo, sua participação nos meios militantes, universitários e,
por consequencia, na produção dos materiais didáticos.
27Fundada em 1943 pelo historiador Caio Prado Júnior, pelos escritores Monteiro Lobato e Maria José
Dupré e Artur Neves, é reconhecida como uma das mais tradicionais editoras brasileiras. Foi
responsável pela publicação de várias coleções de bastante sucesso editorial, dentre elas a coleção
Primeiros Passos, Tudo é História e Encanto Radical.
126
Vendeu mais de 2,5 milhões de exemplares só nos cinco primeiros anos. Composta
por livros em brochura, no formato de bolso (11,5 cm x 16 cm), foi pensada como uma
mercadoria de baixo custo, voltada para atender ao público jovem.
O livro O que é anarquismo foi o quinto título lançado pela coleção em 1980,
escrito por Caio Túlio Costa, jornalista que à época trabalhava no jornal Leia Livros,
fundado por Caio Graco Prado. O exemplar que analisamos foi publicado em 1990,
trata- se da 15ª edição, não havendo informações sobre revisão e atualização do texto
ao longo do tempo.
É inegável a importância e impacto dos títulos da coleção Primeiros Passos, de
caráter propedêutico e custo acessível, teve significativa presença na formação
intelectual dos jovens das décadas de 1980 e 1990, e seus ecos ainda podem ser
observados na representação anarquista proposta nas páginas das coleções
didáticas, colocando a leitura atenta deste material como necessária para
alcançarmos os objetivos da pesquisa.
Como proposta para o público jovem (em fase de escolarização ou não), mesmo
não direcionado ao ensino fundamental, circulou no ambiente escolar, fazendo parte
do acervo das salas de leituras e bibliotecas de muitas unidades, sendo ainda figura
comum nas bibliografias dos materiais voltados para uso escolar, indicação para
aprofundamento dos educadores e, como pudemos perceber na leitura da obra,
bastante influente na ideia de anarquismo que figura nos livros didáticos de história e
facilmente encontrados para aquisição e, não raro, em formato PDF de acesso na
internet.
Entre as práticas de leitura, a circulação do material, sua apropriação e uso,
podemos encontrar pontos de convergência no acesso e inserção da obra nas
escolas, justificando seu uso como fonte para compreender as possibilidades de
representação do anarquismo no ensino de história. Tendo em vista que muitos
docentes em atividade (professores e escritores de material didático), foram leitores
da coleção Primeiros Passos.
127
A capa do livro foi criada pelo artista plástico Guto Lacaz, seguindo a linha de
uma série de capas que marcaram as edições da coleção, nas quais o centro é
ocupado por uma cadeira que tem sobre si uma representação do tema abordado. No
caso do anarquismo a cadeira está parcialmente coberta pela bandeira negra e tem
no centro seu símbolo mais conhecido. Assumindo o lugar de um sujeito que conta
sobre si, a anarquia toma assento em uma conversa com o leitor.
129
antes nem depois dele mesmo.” (COSTA. 1990, p. 54). Novamente o percurso
gerativo de sentido afasta o anarquismo, enquanto prática, dos objetos de valor
(evolutivo e positivo) e coloca a figura de Kropotkin como sujeito que tem sua ação
(desesperada) frustrada pela prática libertária concreta.
Dentre os teóricos, o que recebe maior atenção é Bakunin, criando-se uma
representação que flutua entre a inteligência ingênua e generosa e, a impotência e
incompetência arrogante.
130
Para além dos aspectos formais da obra, podemos identificar a aproximação da
corrente teórico-marxista no texto de Caio Túlio Costa, aspecto que lhe coloca como
tributário de seu tempo, buscando produzir um discurso sobre o movimento libertário
partindo da ideia de liderança e centralização das lutas econômicas e políticas,
reforçando um importante aspecto sobre a representação pretendida para o
anarquismo e os anarquistas, intensificando uma tentativa de cisão entre estes, por
mais paradoxal que possa parecer.
O anarquismo e suas múltiplas correntes, como teoria, tende a ser revestido
de valor positivo, ao passo que os libertários e suas ações no mundo concreto são
qualificados com valor negativo. Apesar do aparente contraste entre os discursos
sobre os anarquistas e o anarquismo, eles dialogam e têm a mesma finalidade, o
interesse de resguardar a memória de um “anarquismo moral e não violento” portador
de conceitos universalmente positivos, mas ingênuo, sem organização e liderança
para se concretizar como projeto.
Percebemos indícios que, para além do discurso amplificado pelo fim da
Ditadura Militar Brasileira e as lutas pela redemocratização e pluralidade que marcam
o período de produção da obra, o material que se propõem abordar uma importante
teoria política e social, produzido como parte de uma coleção audaciosa, que traz
temas como socialismo, comunismo e sindicalismo em seus três primeiros volumes,
relega os anarquistas a uma posição imatura e o anarquismo a uma teoria “romântica”
de igualdade e solidariedade, sem estrutura e organicidade suficiente para produzir
efeitos duráveis. Para Costa, os militantes anarquistas que ainda existem, teimam em
existir na atualidade e o anarquismo é um belo sonho de igualitarismo e comunitarismo
de alguns rebeldes passionais (COSTA. 1990, p. 66).
131
Quem tem medo dos anarquistas?
Poderíamos ler nas páginas dos periódicos franceses do século XIX o pavor às
ideias e ações de Ravanchol, mas é pouco provável que encontrássemos horror às
propostas de Proudhon. Certamente, os jornais brasileiros do início do século XX
externavam a desconfiança do poder público com os libertários, tomando o partido do
primeiro, mas, não cremos que vociferassem contra iniciativas como a Universidade
Popular de Ensino28
Do anarquismo cristão de Tolstói, às ideias libertárias de Bakunin; da luta
feminista de Maria Lacerda de Moura, a literatura de Lima Barreto e Ursula K. Le Guin;
das universidades às aulas de história nas escolas, o anarquismo é representado ora
alimentando, ora desmistificando esse “medo”. Uma rápida olhada nos dicionários
escolares da língua portuguesa, Aurélio e Caldas Aulete, nos forneceu duas definições
para o substantivo anarquismo:
Uma leitura corriqueira nos diria que ambos informam a mesma coisa, trata-se
de uma teoria que se opõem à autoridade e ao Estado, mas essa semelhança entre os
textos é parcialmente correta. Uma análise semântica atenta, levar-nos-ia a perceber
que uma coloca o anarquismo como a teoria que rejeita o que está posto em nossa
sociedade (autoridade e Estado); a outra, por sua vez, descreve-o como a teoria que
considera (avalia) e propõe uma nova alternativa a essa realidade.
28A Universidade Popular de ensino, fundada na cidade do Rio de Janeiro em 1904, visava atender os
operários e seus filhos, contanto com a participação ativa de intelectuais como Rocha Pombo e Martins
Fontes, que mesmo não se colocando como libertários, mantinham afinidades e interesses comuns
com estes.
132
A incursão por estas linhas mostra a urgência de estranharmos o comum,
desnaturalizando e problematizando a “pretensão de verdade” que o acompanha para
adentrarmos nos interesses, ideologias, organização, produção e divulgação dos
saberes escolarizados como enunciados que comportam estratégias e disputas de
poder que condicionam como e o que contamos do passado.
Os interesses de certos grupos têm o poder de direcionar aquilo que deve ser
preservado, publicizado ou obliterado, determinando quais informações e saberes
devem ser dados ao conhecimento amplo e quais devem ser mantidos privados ou
esquecidos, ecoando as regras e formas de contar o passado em cada período. Como
aponta Chartier (1990), toda representação está colocada em um campo de disputas,
hierarquizando valores e condutas e estabelecendo modos de coesão, como
representação do real, nem a coisa em si e nem seu reflexo, mas uma construção
social da esfera do simbólico.
O poder das representações como postulado por Roger Chartier (2002) e Pierre
Bourdieu (2006), apresenta-se como uma elaboração da realidade que é aceita ou
rechaçada no jogo de interesses conflitantes, em uma conjuntura sócio-histórica
específica. Portanto é preciso reconhecer de onde se fala, de qual grupo se origina a
narrativa que se propõem e a representação que carrega, compondo discursos que,
dialeticamente, são produzidos e produzem realidades e identidades sociais.
O que se diz sobre a história e como se diz é, neste sentido, mutável, tanto
quanto ao que se deseja eternizar, quanto a forma narrativa que, por sua vez, também
constitui um delimitador para o que se conta. Como aponta Margareth Rago ao
analisar o impacto dos trabalhos de Foucault na produção historiográfica:
133
Assim como na historiografia, nos discursos constituídos pelo ensino de
história, observamos as disputas que se instituem em sua construção, não como
reflexo das dimensões social, econômica e política, mas como local onde os
enunciados e discursos conferem aos “vencedores” a posse da verdade sobre o
passado, a permissão para negociar com os “vencidos” e, dentro da construção do
conhecimento histórico escolarizado nas páginas dos livros didáticos, autorizar
narrativas que tragam o outro, mas, sob a sombra do vencedor, configurando
programas narrativos menores dentro da estrutura dominante e moduladora do
discurso.
Portanto, pensar dialogicamente os saberes escolares produzidos sobre os
libertários, coloca a necessidade de compreender a ideia de conhecimento constituída
pela sociedade ocidental, sua relação com a cultura escrita e a forma narrativa que
sustenta as representações de mundo presentes no discurso histórico, considerando
que “as ideias são socialmente “situadas” e formadas por visões de mundo ou “estilo
de pensamento.” (BURKE. 2003, p.14). Neste sentido, as representações, são a
forma intelectual e simbólica de construção do mundo, fruto dos interesses e posição
social dos grupos que as formulam, não há neutralidade nas representações uma vez
que elas constituem necessidades concretas e sociais, as quais atribuem sentido e
significado.
Frente a isso, retomamos a pergunta que abre nossa seção: quem tem medo
dos anarquistas? Esses terríveis homens e mulheres sem Deus, sem pátria e sem
família, como foram representados pelo ensino de história e na memória social,
colocando em xeque todas as garantias sociais materializadas nas instituições que
dão sentido, dentro da história escolarizada, a marcha da humanidade.
Ao analisarmos as escolhas semânticas dos autores em um número
considerável de obras analisadas, percebemos a constituição de um lugar narrativo
no qual o anarquismo é em função do marxismo, construindo, na oposição entre estes,
sua historicidade escolarizada no ensino do passado. Apresentaremos, abaixo, um
quadro comparativo dos verbos de ação recorrentes nas narrativas sobre anarquistas
e socialistas.
134
Anarquismo Socialismo
Influenciar Organizar
Eliminar Influenciar
Negar Transformar
Destruir Defender
Organizar Tomar
Defender Valorizar
Tomar Construir
Educar Unir
Contrapor Analisar
136
destruição do poder, dos múltiplos poderes que constituem as
relações sociais e de gênero, entendendo a possibilidade de organizar
diferentes mundos e de viver libertariamente, sem hierarquias e sem a
dominação de homens/mulheres por outros homens/mulheres.
(RAGO. In CARRERI. 2008, p. XVI)
137
preenchido por cada um dos personagens que se erguem nas páginas dos livros
didáticos. Assim como nas narrativas clássicas que perduram desde Aristóteles e
tornam a trama contada (mais facilmente) compreensível, da sucessão linear de fatos,
aos pontos de tensão, fratura e construção de personagens, todas elas assumem um
importante papel na construção da narrativa (ficcional ou histórica).
Guardada as diferenças entre a ficção e o conhecimento histórico, a base sobre
a qual a história é contada nos livros didáticos tende a limitar a presença de um
passado que não cumpra todos os papéis delimitados pela estrutura, incidindo não
somente na forma de “narrar os libertários”, mas de muitos outros passados que não
apresentam “personagens” e “talhe” para cumprir satisfatoriamente cada um dos
lugares demarcados para a construção da narrativa.
Observemos que na estrutura narrativa que marca a produção didática das
décadas de 1990 e parte de 2000, os libertários são representados, majoritariamente,
ocupando os topos narrativos Movimento operário nos séculos XIX e XX e, em menor
volume, Teorias políticas e sociais do século XX, trazendo um maior número de
representações não valorativas e valorativas negativas do movimento anarquista,
solidificando uma prática discursiva que encontra eco nas representações propostas
pelo livro O que é anarquismo, no qual os discursos acerca das ideias e personagens
libertários são construídos em um estrutura que pressupõem a valorização da ação
mediada pela centralização na figura da liderança, mesmo ao trabalhar questões
coletivas. A necessidade de um líder (nominal) para contar os processos históricos a
partir da perspectiva e ação deste, constitui um modelo hierárquico pela qual a
narrativa se dá a conhecer ao leitor idealizado.
Esta estrutura exclui os libertários, levando-os a ocupar um lugar periférico na
narrativa principal, autorizado e, de certa forma, absorvido pelo discurso do vencedor,
construindo um modelo bastante presente nos discursos do período que configura
uma imagem de desorganizado, imaturo (já que a maturidade dos trabalhadores só
se dá com sua suplantação), destrutivo e não gerador (ao estabelecer a cultura do
não em relação as ideias ácratas). Levando-nos a outra importante característica das
representações libertárias, sua subordinação e validação ao socialismo/comunismo,
construindo, por meio da oposição semântica entre estes, uma estrutura hierárquica
138
na qual o anarquismo vê-se como agente da negativa, ao passo que o socialismo se
configura como agente criador e organizador.
Pressupondo a existência de uma força centralizadora nos processos
históricos: greves, revoluções, movimentos populares, avanços científicos etc., todos,
se fazem possíveis dentro da estrutura imposta pela forma narrativa, apresentados a
partir de sua concretização na ação de grupos determinados (escolas
artísticas/filosóficas, indivíduos corajosos/iluminados, mártires, partidos políticos).
Toda ação que surge como espontânea, sem lideranças aparentes ou hierarquias, é
automaticamente condicionada aos “antecedentes” de algo maior que apresentará
todas as características necessárias para satisfazer a narrativa histórica. A
espontaneidade, na representação dos anarquistas, é atribuída à falta de organização
para ação, assim como todas as outras formas sociais que não correspondem a
estrutura narrativa padrão.
Buscando operar os efeitos de sentido postos nos livros didáticos de história,
compreendemos que as representações instituem sujeitos, forjando narrativas que
assumem, na perspectiva do ensino, a pretensão de verdade. Os discursos instituem
“objetivos históricos assim como sujeitos que emergem aqui como efeitos das
construções discursivas, ao invés de serem tomados como pontos de partida para a
explicação das práticas sociais” (RAGO, 2015, p. 40), nos embates de poder que
tomam lugar dentro da narrativa.
O anarquismo não se enquadrava na finalidade do ensino de história, não
correspondia aos arranjos narrativos, não podia ser domesticado para caber no lugar
social e político que lhe foi determinado e nos últimos dez anos, vemos, inclusive a
dissolução destes lugares, dos topos narrativos que ainda permitiam a representação
anárquica dentro dos livros didáticos de história.
Se há algumas décadas ainda podíamos apontar a “vitória política dos
marxistas e comunistas sobre todas as esquerdas no mundo ocidental” (RAGO. In
CARRERI. 2008, p. XVI), como ponto de inflexão para a presença como
representação valorativa positiva dos ácratas dentro da história escolarizada, hoje,
vemos a “derrota” das esquerdas e a ascensão de um “liberalismo autoritário” como
limitador das lutas populares e trabalhistas, das ideias e tentativas de outras formas
139
de relações econômicas, políticas e sociais, que são preteridas como “ultrapassadas”
e substituídas por um recorte culturalista bastante enviesado e distorcido.
Então, na disputa de representações que se configura na construção da
memória do anarquismo, coloca-se, como uma provocação ao leitor, novamente a
questão: quem tem medo dos anarquistas?
As representações identificadas e analisadas nas obras didáticas nos levaram
a perceber que todos temem aquilo que o anarquismo significa em essência,
sobretudo aqueles que se apresentaram para a disputa do poder. Não é novidade
dizer que a liberdade assusta, tampouco, a responsabilidade direta por seus atos e
escolhas, que advém do exercício da liberdade. Por outro lado, a construção de uma
visão de anarquismo que feneceu no passado, não fincando raízes no presente e não
podendo ser entendido como possibilidade de futuro, deixa a violência, a desordem,
a ânsia de destruição (figuras comuns nas representações do anarquismo) como
passado, morto e enterrado. Há pouquíssimas representações de um anarquismo que
ultrapassou a década de 1920, portanto, não amedronta um presente que se configura
a cada dia mais veloz e imediatista.
Os libertários ocupam, na narrativa histórica escolarizada, modestos parágrafos
que se intercalam entre sua ação dentre os trabalhadores e suas diferenças com o
socialismo científico; foram representados como desorganizados, violentos,
estrangeiros, mas também, mesmo que em poucas obras ou de forma inexplícita,
como produtores de uma cultura que visava a instrução e emancipação e como
questionadores da organização social e familiar burguesa, como figura de linguagem
e adjetivo. Circulam entre as pesquisas acadêmicas, mesmo que ainda em um número
relativamente pequeno, quando comparadas ao volume de trabalhos que se dedicam
à outras teorias.
A análise conduzida em nossa pesquisa, mostrou-nos a constante presença
dos anarquistas nos materiais didáticos, mas o valor relativo que lhes é atribuído, ou
sua representação inexplícita (bastante numerosa) demonstra a impossibilidade de
recontar o passado (para aqueles que nutrem um sentimento de responsabilidade
nesta reconstrução) à revelia da ação ácrata, contudo, tal relevância nos processos
históricos, não garantiu que lhes fosse dado a enunciação de seu discurso. O
anarquismo surge como estrangeirismo, estanque, fadado à morte após 1917, apático
140
frente a necessidade de organização da luta operária, débil politicamente, em um
quadro limitado à ação partidária.
Mas, nos subterrâneos, nas narrativas compostas por representações
inexplícitas onde não seria possível negar-lhes a presença, em sobreposições,
imagens, lá está a anarquia: fazendo, inspirando, influenciando. Negar-lhe a posição
de sujeito do enunciado sobre si, não faz com que se possa roubar sua historicidade.
O anarquismo, em suas diferentes apropriações teóricas, à revelia da imagem ligada
a desordem e violência que tenha se firmado no senso comum, configurou-se como
importante ideologia e prática na formação cultural e social dos últimos duzentos anos,
como nos questiona o sociólogo e anarquista argentino, Christian Ferrer:
141
Considerações finais
29
Podemos elencar como exemplos desta circulação o Cursinho Livre da Norte e o Curso Pré-
universitário Tetris.
142
obras destinadas ao ensino fundamental e médio, como mencionado na análise da
coleção História Sociedade e Cidadania.
Em nossas fontes o termo anarquismo e seus correlatos
(anarquistas/libertários) foram citados explicitamente 148 vezes, considerando
legendas, orientações para os docentes, apresentação do BNCC para os livros mais
recentes e atividades e exercícios propostos. Destas, parte exerceu a função de
adjetivo, como qualificador do sujeito citado, fosse ele o Sapateiro Martinez, os
imigrantes italianos e espanhóis ou periódicos como Terra Livre ou A Plebe.
Pouquíssimas atividades retomaram o anarquismo nas páginas dos livros didáticos e
as que o fizeram optaram por reforçar a perspectiva de qualificação do anarquismo
em oposição ao socialismo, atrelando sua existência em função deste.
Existe uma ausência de indicações bibliográficas sobre anarquismo nas
referências apresentadas nos materiais didáticos, com exceção à obra O que é
anarquismo que figurou em um considerável número de livros didáticos, contudo, nem
sempre entre as referências de produção, em alguns casos como indicação para os
docentes. Obra que foi analisada e apresentada no capítulo II em Uma visão
distorcida: O que é anarquismo, no qual pudemos perceber o recorte e a abordagem
dada aos libertários e suas ideias.
Diante deste quadro da presença e ausências do anarquismo nos livros
didáticos de história alguns padrões se mostraram recorrentes na estrutura utilizada
para contar o passado anarquista, desenhando alguns topos narrativos que se
consolidaram ao longo das décadas como local de presença ácrata na história
escolarizada:
Teorias políticas do século XIX, na qual a oposição entre anarquistas e
socialistas/marxistas/comunistas assume a função de qualificar as ideias anarquistas,
dada em relação à suas diferenças, entendidas como “deficiências” das ideias
libertárias frente as outras teorias. Identificamos um processo de diminuição e
descontinuidade deste topo narrativo nas obras publicados a partir da segunda
metade da década de 2010, o que nos mostra a mudança de objetos postos na
narrativa pelos currículos e livros didáticos.
O Movimento operário dos séculos XIX e XX, institui no Brasil a presença de
um anarquismo que é, majoritariamente, ligado à figura dos imigrantes, levando a
143
construção de uma narrativa que coloca, ao nível do discurso um anarquismo exótico
e “não adaptado”, insuficiente para promover a organização da massa operária
brasileira, por isso substituído pelo comunismo, estabelecendo um modelo que
apresenta continuidade em todo período estudado.
Por fim, a presença de Personagens Libertários como representantes dos
ideais ácratas se fez sentir em quase todas as obras analisadas, havendo uma ruptura
no padrão representativo a partir da segunda metade da década de 2010, com um
aumento, ainda modesto, de figuras femininas retratadas, não apenas como parte do
texto verbal, mas, por meio do uso de imagens, enfatizando a ação feminista dentro
das ideias libertárias.
Devemos pontuar, contudo, que algumas destas narrativas se deram com a
instrumentalização de representações inexplícitas, o que tornava seu entendimento
dependente de conhecimentos prévios que podem ou não existir. Observamos a
incidência de um considerável número de representações inexplícitas e não
valorativas, evidenciando a presença e importância do anarquismo no processo
histórico, mas, negando-lhe materialidade e a posição de sujeito do discurso.
Dentre as representações mais identificadas nas obras e que exerceram maior
impacto no percurso gerativo de sentido, temos representações valorativas negativas,
configurando, ao nível do discurso uma representação do anarquismo calcada na
“cultura do não”, onde os ácratas são colocados como incapazes de
produzir/criar/organizar, qualificados por aquilo que não desejam, não concordam, não
aceitam. Característica, também, muito presente na obra O que é anarquismo, que
busca colocar um anarquismo passional e impotente, incapaz de constituir uma base
teórica sólida. Tal ideia é apoiada pelo distanciamento que opera ao tratar de figuras
como Piotr Kropotkin, a quem atribui valores positivos, mas o distancia do movimento
anarquista “na prática”.
Percebemos algumas permanências na forma narrativa e, sobretudo, na
construção do discurso sobre o anarquismo como “matéria estrangeira”, inapta a
organização e, de certa maneira, pueril. Concorrendo para a construção de uma
memória dos libertários que não abre espaço para o conhecimento e diálogo com suas
propostas e ideias, colocando-os como peças imóveis e distantes do presente,
atrelados, na maioria das vezes, somente ao mundo do trabalho e nas duas primeiras
144
décadas do século XX, não sendo mencionado ao retratar a ação dos trabalhadores
em outros momentos.
A representação ácrata ligado ao universo do trabalho, fez-nos perceber uma
significativa diminuição do sujeito trabalhadores nas obras didáticas a partir de 2010,
levando a descontinuidade de importantes narrativas nas quais os trabalhadores
assumem o papel de sujeito, diminuindo a importância das relações econômicas na
condução do processo histórico. Com o decréscimo da presença dos trabalhadores
nos livros didáticos, o anarquismo passa a ocupar ainda menos espaço na narrativa.
Diante disso, consideramos que o movimento libertário vem, gradativamente,
deixando de ser representado nas obras, onde sua presença tende a se tornar pontual
e, portanto, pouco explicativa em relação a sua visão de sociedade. Parafraseando
Christian Ferrer “O que restará da palavra “anarquistas” num dicionário do futuro?
Uma nota de rodapé, a definição conceitual de uma seita de conspiradores, o
cardiograma que registrou as oscilações históricas de uma ideia extrema, a silhueta
de um animal extinto?” (FERRER. 2004, p. 157). Talvez muito pouco daquilo que
entendemos hoje, nós, historiadores e militantes, talvez muito daquilo que preconizou
o senso comum, talvez nada além de um rosto sem nome ou um nome sem voz.
145
Parte propositiva
146
Por meio do uso dos jornais A Plebe (1917-1951); A Lanterna (1901-1935), O
Combate (1914)30 e O Libertário (1960-1964), importantes veículos de circulação das
ideias anarquistas, propomos um recorte temático que evidencie a produção
intelectual feminina e a crítica política e social elaborada por estas mulheres
libertárias. Com a análise do periódico Inimigo do Rei (1977-1988) buscamos perceber
a crítica anarquista à Ditadura Militar Brasileira e ao movimento de abertura guiada
pelo grupo no poder. Em ambas as abordagens almejamos traçar um recorte histórico-
temporal que possa apresentar aos educandos a continuidade da produção e
propaganda anarquista no Brasil e, com o uso do jornal baiano, ampliar as vozes
anarquistas além da região sudeste.
É possível encontrar um significativo acervo digitalizado pela Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), de periódicos anarquistas na
coleção o Canto Libertário (1906-1995)31 e no acervo digital do Arquivo Edgard
Leuenroth32 da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) permitindo ao
docente efetuar recortes temáticos, periodização e regionalização bastante amplos.
O trabalho com os periódicos anarquistas foi pensado a partir dos
procedimentos e abordagens sugeridos por Tânia Regina de Luca (2018) e seguiu as
seguintes etapas:
a) Construção de uma série com os materiais selecionados;
b) Identificação e localização do material selecionado em seu contexto de
produção e grupo responsável;
c) Dados de circulação (se houver);
d) Identificação dos principais colaboradores;
e) Identificação do público-alvo;
f) Análise do material conforme temática selecionada.
30 Conforme aponta Edgar De Decca, o jornal anarquista O Combate circulou na cidade de São Paulo
a partir de 1914 e durante a década de 1920, porém, não temos a data exata do fim de sua edição.
31 Disponível em < https://bibdig.biblioteca.unesp.br/communities/2deadbb4-1bb6-4a46-a801-
825b37e5ea39>. Acessado em 03 jul. 2023.
32 Disponível em < https://ael.ifch.unicamp.br/ael-digital >. Acessado em 03 jul. 2023.
147
Mulheres anarquistas nas páginas libertárias
As figuras femininas têm ganhado alguns espaços nas páginas dos livros
didáticos ao longo das décadas, contudo, sua presença ainda diz pouco sobre a
inestimável participação e ação das mulheres no anarquismo, nomes como Maria
Lacerda de Moura e Emma Goldman são os que figuraram um maior número de
vezes, mesmo assim, de forma discreta.
As mulheres estiveram e estão presentes no movimento anarquista em suas
múltiplas formas: na organização dos trabalhadores, nas artes, nas manifestações
políticas e econômicas, na produção intelectual, contudo, nas obras analisadas as
figuras femininas surgem como complemento, um “bônus” oferecido ao leitor.
Momentos de significativa importância da ação das mulheres, como as tecelãs na
Greve de 1917 são obliterados; assim como suas produções teóricas.
33Excertoretirado da tese de doutorado de Fernanda Grigolin Moraes (2020). In: GRIGOLIN, F. Sou
aquela mulher do canto esquerdo do quadro. A história das mulheres anarquistas como narrativa
encarnada. 2020. 236f. Tese (Doutorado em Artes Visuais) – Instituto de Artes, Universidade de
Campinas, Campinas, 2020.
149
projeto da lei de Defesa Nacional, levando-nos a construir um arco de ação anarquista
para além de 1917, como agente de crítica política e social, na voz de uma mulher34.
Maria Angelina Soares (1901-1985), uma das irmãs Soares35, teve expressiva
ação nos meios libertários, contribuindo com periódicos e na organização do
movimento operário. Com sua irmã Maria Antonia Soares, atuou na criação de grupos
de mulheres como o Centro Feminino de Jovens Idealistas, como aponta Fernanda
Grigolin Moraes (2020). Presa em 1917 por difundir ideias anarquistas, sofreu
constantes perseguições nos anos posteriores, levando a família a mudar de São
Paulo para a cidade do Rio de Janeiro, as irmãs passaram então a atuar no cenário
anarquista carioca. O excerto abaixo foi retirado de um artigo escrito por Maria
Angelina Soares e publicado no jornal A Plebe em 1917.
militantes anarquistas que viveram na cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século XX, eram
irmãs de Primitivo Raimundo Soares, que atendia pelo pseudônimo de Florentino de Carvalho,
conhecido militante anarquista. Foram colaboradoras constantes dos periódicos anarquistas e tiveram
significativa ação nos meios libertários.
150
apoio que lhe vai faltando de parte do elemento masculino, e a mulher,
sem perceber o jogo, fica com isso, elevada e satisfeita36
A crítica operada por Maria Angelina Soares sobre as lutas pelo sufrágio
feminino, mostra a consciência de utilização deste como ferramenta de manipulação
aos olhos desejosos dos grupos políticos e a falsa ilusão de representatividade que
tal “benefício” confere à mulher. Argumentos que se repetirão em outras publicações
e textos, marcando a postura ácrata em relação à participação política e o processo
eleitoral.
Objetivando construir um arco temporal que permita aos educandos
identificarem a presença anarquista ao longo das décadas, traremos o periódico O
Libertário de 1960, com a publicação de uma crônica de Federica Monteseny (1905-
1994), escritora e militante anarquista espanhola.
Ao abordar a importância dos estudantes como protagonistas dos movimentos
populares e de revolta, Federica Monteseny aponta um relevante fator dos
movimentos de contestação e da presença anarquista no decorrer da década de 1960.
Citando a participação deste nos movimentos que levaram a queda das ditaduras
cubana e coreana, coloca na “juventude estudantil, intelectual e obrera” as esperanças
de se solapar a herança dos regimes fascistas que marcaram as décadas anteriores.
Para Monteseny:
36 SOARES, Maria Angelina. “Voto feminino”. O Grito Operário. São Paulo. 17/01/1920. Ano1.
Disponível em < https://www.ufrgs.br/nphdigital/hemeroteca/o-grito-operario-
2/?order=ASC&orderby=date&perpage=12&taxquery%5B0%5D%5Btaxonomy%5D=tnc_tax_3684&ta
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source_list=term&ref=%2Fnphdigital%2Fsubcolecao%2Fo-grito-operario-sp%2F >. Acessado em 03
jul. 2023.
37 MONTESENY, Federica. Os Estudantes. O Libertário. São Paulo. Ano 1, nº1. 1960. Disponível em <
https://bibdig.biblioteca.unesp.br/server/api/core/bitstreams/4e3bb1ed-30ed-4e6d-8250-
1a5de94b7c63/content > Acessado em 04 jul. 2023.
151
Figura 34 O Libertário. 1960, ano 1, nº 1, p. 2
152
A Ditadura pelas lentes anarquistas
A crítica ao Regime militar foi uma constante das páginas do Inimigo do Rei38,
trazendo-nos a possibilidade de observar por uma perspectiva não explorada nas
obras didáticas a experiência libertária deste período.
Em sua décima edição, o periódico aborda o décimo sexto aniversário do golpe
de 1964, expondo que se trata de um golpe, e não uma revolução, como o designava
o poder e a imprensa burguesa.
154
No exemplar nº 16 de 1982, novamente vemos a crítica ao governo de João
Figueiredo e a “democracia galopante” que é implementada pelo processo de abertura
política que, na visão libertária, não passa de uma grande farsa, expondo as
contradições do discurso e das ações do governo.
155
de sujeitos e ideias, e o internacionalismo que marca a prática anarquista ao longo
das décadas.
Mulheres anarquistas:
LEITE, Mirian L. Moreira. A outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São
Paulo. Ática, 1984.
MORAES, Fernanda Grigolin Moraes (2020). Sou aquela mulher do canto esquerdo
do quadro. A história das mulheres anarquistas como narrativa encarnada. 2020. 236f.
Tese (Doutorado em Artes Visuais) – Instituto de Artes, Universidade de Campinas,
Campinas, 2020.
156
Periódico Inimigo do Rei:
157
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