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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENSINO DE HISTÓRIA

ANA MARIA ANUNCIATO DE SOUZA

PÁGINAS LIBERTÁRIAS: A REPRESENTAÇÃO DO ANARQUISMO


NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA (1990-2020)

GUARULHOS
2023
ANA MARIA ANUNCIATO DE SOUZA

PÁGINAS LIBERTÁRIAS: A REPRESENTAÇÃO DO ANARQUISMO


NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA (1990-2020)

Dissertação apresentada à Banca Examinadora do


Programa de Pós-Graduação em Ensino de História,
da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade Federal de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre em Ensino
de História.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Rita de Almeida


Toledo

GUARULHOS
2023
ANA MARIA ANUNCIATO DE SOUZA

PÁGINAS LIBERTÁRIAS: A REPRESENTAÇÃO DO ANARQUISMO NOS


LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA (1990-2020)

Dissertação apresentada à Banca Examinadora


do Programa de Pós-Graduação em Ensino de
História, da Escola de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade Federal de
São Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de Mestre em Ensino de
História.

Aprovada em ____ de ____________ de ______

__________________________________________________
Profa. Dra. Maria Rita de Almeida Toledo
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

__________________________________________________
Profa. Dra. Circe Maria Fernandes Bittencourt
Universidade de São Paulo (USP)

__________________________________________________
Profa. Dra. Angela Maria Roberti Martins
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

__________________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Pianelli Godoy
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
(suplente)
Resumo

A presente dissertação tem como objetivo mapear e analisar os discursos e


representações do anarquismo produzidos pelos livros didáticos entre 1990 e 2020,
compreendendo como os ideais ácratas figuram nos conteúdos escolarizados pela
disciplina de história e quais discursos engendram, suas mudanças e permanências
à luz da conjuntura histórica, considerando a relevância das ideias libertárias para
pensar os conceitos de liberdade, antiautoritarismo, cooperativismo, apoio-mútuo e
autogestão construídos historicamente. Identificando as representações e estratégias
de apropriação dos discursos históricos não escolarizados sobre o anarquismo,
reconhecendo as formas narrativas que os comportam e sua relação dialógica com as
produções acadêmicas, considerando a circulação dos saberes no processo,
evidenciada pela intertextualidade observada nas fontes utilizadas.
Instrumentalizando os conceitos de circularidade da cultura proposto por Mikhail
Bakhtin, do reconhecimento das estratégias de apropriação e (re)figuração da história,
de Michel de Certeau e representação formulada por Roger Chartier, analisamos as
narrativas produzidas nos livros didáticos de história sobre o movimento ácrata e os
discursos que engendram. Utilizando-nos dos conceitos de representação e
apropriação, elaboramos uma análise da presença do anarquismo, suas mudanças,
permanências e descontinuidades nas narrativas históricas escolarizadas, tendo em
perspectiva seu contexto de produção e consumo.

Palavras-chaves: anarquismo, livro didático, representação, profhistória.

1
Abstract

This dissertation aims to map and analyze the discourses and representations of
anarchism produced by textbooks between 1990 and 2020, understanding how the
anarchist ideals figure in the contents schooled by the discipline of history and which
discourses they generate, their changes and permanence in the light of the conjuncture
historical, considering the relevance of libertarian ideas to think about the concepts of
freedom, anti-authoritarianism, cooperativism, mutual support and self-management
historically constructed. Identifying the representations and appropriation strategies of
non-schooled historical discourses on anarchism, recognizing the narrative forms that
comprise them and their dialogical relationship with academic productions, and
considering the circulation of knowledge in the process, evidenced by the intertextuality
observed in the sources used. Implementing the concepts of circularity of culture
proposed by Mikhail Bakhtin, the recognition of strategies of appropriation and
(re)figuration of history, by Michel de Certeau, and representation formulated by Roger
Chartier, we analyze the narratives produced in history textbooks about the acratic
movement and the discourses they engender. Using the concepts of representation
and appropriation, we elaborated an analysis of the presence of anarchism, its
changes, permanence and discontinuities in schooled historical narratives, having in
perspective its context of production and consumption.

Keywords : anarchism, textbook, representation, profhistória.

2
Agradecimentos

Agradecer é reconhecer a importância do outro em nosso caminho, é


reconhecer a importância do outro em nós, então acredito que esta lista de
agradecimentos deva retroagir a um tempo que, talvez, minha memória já tenha
perdido nas lembranças da vida. Por isso, desculpo-me se alguma ausência imerecida
se fizer presente nestas linhas, saibam que sou grata a todos que de diversas formas
contribuíram para que esta pesquisa se tornasse um desejo e depois uma realidade.
Agradeço a escola pública, na qual estudei e trabalho, à excelência e
resistência das universidades públicas nas quais me graduei e, agora, pós-graduei. A
todos os professores que cruzaram meu caminho, por acreditarem na educação como
forma de transformar a realidade, saibam que transformaram a minha. Aos meus
professores no curso de mestrado do ProfHistória na Unifesp, muito obrigada pela
gentileza, conhecimento e por tanto que me ensinaram, em especial a minha
orientadora, Maria Rita de Almeida Toledo, pela correção atenta, delicadeza ao
entender minhas angústias e limitações e por tudo que aprendi neste processo. A
Biblioteca do Livro Didático da Universidade de São Paulo e a Maria José, que
atendeu minhas demandas, sempre com muita cordialidade. As professoras Circe
Maria Fernandes Bittencourt e Ângela Maria Roberti Martins, pela participação em
minha banca de qualificação e defesa, pela leitura atenta e observações que foram
cruciais no desenvolvimento do meu trabalho.
Aos meus amigos, pelas risadas, conselhos, socorro, comidas, pela
preocupação e carinho que sempre tiveram comigo, obrigada por tornarem minha vida
essa festa estranha com gente esquisita. E sobretudo, a minha mãe Telma Anunciato
e minha avó Maria Crocci Anunuciato, que mesmo não mais estando aqui, foram e
sempre serão aquelas que amaram e fizeram da menina inquieta, que vivia no mundo
da lua, a Ana Maria que me tornei.

3
Em memória de minha mãe, Telma Anunciato,
por tornar real a possibilidade de sonhar e me ensinar a liberdade.
O amor sempre terá a luz verde de teus olhos.

...a saudade é o bem querer que carregamos nas lonjuras do tempo...

4
Como chegar à anarquia

Devemos nos apoiar na Escola, na Coletividade e


na Cultura, essas três poderosas forças às quais
poderemos recorrer sempre.

(José Antonio Emmanuel)

5
Sumário

Introdução .............................................................................................................................................7
Capítulo I: A encenação do passado e a construção do conhecimento histórico
escolarizado. .......................................................................................................................................33
O livro didático como documento histórico ..........................................................................35
A narrativa histórica escolarizada e a representação do passado. .................................38
Os anarquistas vão a universidade: circulação de pessoas e saberes .........................43
Capítulo II: A representação dos libertários entre barricadas, greves, jornais e
coquetéis molotov. ...........................................................................................................................58
O anarquismo como sujeito: categorias de representação ...............................................59
Os topos narrativos: lugar comum na escolarização do anarquismo ..........................101
Uma visão distorcida: O que é anarquismo .........................................................................126
Quem tem medo dos anarquistas? ........................................................................................132
Considerações finais......................................................................................................................142
Parte propositiva .............................................................................................................................146
Bibliografia ........................................................................................................................................158

6
Introdução

Nas páginas que seguem, abordaremos as representações do anarquismo


propostas pelos livros didáticos de história (LDH) entre 1990 e 2020, compondo um
panorama da relação entre o discurso materializado no LDH, as propostas curriculares
e os aspectos conjunturais de sua produção, buscando compreender o papel que
exercem na construção do saber histórico escolarizado sobre o movimento ácrata e
na produção de uma memória escolar sobre o anarquismo, considerando a
circularidade dos saberes entre os diferentes locais produtores do conhecimento
sobre os libertários.
Por meio da seleção e análise de um significativo conjunto de obras didáticas,
obtidas junto a Biblioteca do Livro Didático (BLD) da Universidade de São Paulo
(USP), e da elaboração de um quadro representativo da produção acadêmica de
temática anarquista nos últimos anos, buscamos compreender qual anarquismo é
difundido pela história escolarizada e quais relações estabelece com as pesquisas
universitárias. Nossa análise considerou a circulação dos saberes no processo de
escolarização do conhecimento, aproximando-se do conceito de circularidade da
cultura, proposto por Mikhail Bakhtin (1999) e da intertextualidade narrativa na
representação do passado, por meio do reconhecimento das estratégias de
apropriação e (re)figuração da história, a partir dos trabalhos de Michel de Certeau
(1998, 2000) e Roger Chartier (1991, 2002, 2011).
Utilizando-nos dos conceitos de representação e apropriação, objetivamos
construir uma análise da presença do anarquismo, suas mudanças, permanências,
descontinuidades e deslocamentos nas narrativas escolares, tendo em perspectiva a
conjuntura histórica de sua produção e consumo. Consideramos que a história
escolarizada constitui, apesar dos tensionamentos e conflitos com algumas
representações produzidas fora do ambiente escolar, parte importante da construção
da memória histórico-social e, por conseguinte, das representações dos sujeitos e
ideologias que compõem o passado apresentado nas páginas do LDH, alimentando o
imaginário social e político coletivo.
Reputando que todo discurso implica uma elaborada teia social, política e
econômica da qual somos parte, não há discurso isento ou imparcial, uma vez que as

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questões que suscitam nossas buscas e ações são formuladas a partir desta
imbrincada conexão de fios. Pesquisar sobre anarquismo e educação é, também, falar
sobre o lugar onde estou, por isso, apresentarei nas linhas desta introdução minha
jornada até aqui e as inquietações que se materializaram como o resultado desta
dissertação.
Falar sobre nossa trajetória é sempre um desafio, quando olhamos o passado
buscando perceber quais caminhos nos trouxeram ao hoje, sempre o fazemos com o
olhar de quem conhece o desenrolar da história e, portanto, utilizará esse saber “do
futuro” para recompor fatos e memórias que justifiquem nosso lugar no presente.
Parafraseando David Lowenthal (1998, p. 83) “relembrar o passado é crucial para
nosso sentido de identidade: saber o que fomos, confirma o que somos”, seja esse
passado oficializado pelos livros de história ou as lembranças contadas à mesa do
almoço. Para satisfazer esse desejo humano de pertencimento, incorro nos riscos do
labirinto da memória, mas sabedora dos meandros da lembrança, desculpo-me
antecipadamente pelas imprecisões e sentimentalismos.
Filha de mãe solteira, criada por minha mãe e avó em um bairro da zona norte
da cidade de São Paulo, fui criança entre a crise econômica da década de 1980, as
lutas e caminhos da redemocratização e o companheirismo praticado pela vizinhança
que se socorria nas dificuldades e se sentava na calçada nas noites de verão para rir
e olhar as crianças que brincavam. Com minha mãe, Telma Anunciato, descobri muito
cedo a importância do conhecimento e o inestimável valor da liberdade. Com minha
avó, Maria Crocci Anunciato, aprendi que solidariedade é justiça diante das
necessidades impostas à população por um país machista e excludente.
Em 2004 ingressei na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
(FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), cursando história no período noturno.
Beneficiada pelas políticas de permanência do aluno, fui morar no Conjunto
Residencial destinado aos estudantes. Como moradora do CRUSP, novamente me
deparei com relações marcadas pela coletividade. Já no primeiro ano de graduação
senti interesse pela pesquisa, começando minha iniciação científica e equilibrando-
me entre o trabalho e os estudos. Também era latente meu entusiasmo pela
educação, o que me levou, junto a uma amiga, a construir um projeto com objetivo de
ajudar os jovens a passarem nos vestibulares das universidades públicas, ou
8
conseguirem bolsas pelo PROUNI, foi assim que surgiu o curso popular pré-
universitário Tetris1 , uma construção horizontal, baseada na cooperação e
voluntariado. Ao término da graduação, fui aprovada nos concursos para professor da
Prefeitura Municipal e rede Estadual de São Paulo, nos quais permaneço até o
momento.
Olhar em retrospecto é sempre procurar respostas para o hoje e, talvez, estes
parágrafos de apresentação sejam minha tentativa de responder por que história? Por
que educação? Por que anarquismo? Ao afirmar que “toda reflexão metodológica se
enraíza, com efeito, numa prática histórica particular, num espaço de trabalho
específico” Roger Chartier (1991, p.178) nos diz que nossas perguntas e a forma como
buscamos respostas está intrinsicamente ligada a quem somos e de onde falamos;
sob esta perspectiva, minha trajetória se torna relevante para compreender as
escolhas que me trouxeram até o ProfHistória e a pesquisa que delineei.
A proposta de trabalho nasceu da observação dos usos do passado na
constituição de diferentes narrativas históricas produzidas no ambiente escolar,
fazendo da história campo de múltiplos discursos que concorrem na composição de
uma memória histórica-social. Contar o passado é, como bem sabemos, moldá-lo por
meio das ânsias do presente e compreender os mecanismos postos em ação na
construção do conhecimento histórico, faz-se de singular importância para
apreendermos as estruturas textuais e ideológicas que sustentam as narrativas e
discursos da história escolarizada.
As questões que suscitaram esta pesquisa surgiram da intersecção entre minha
atividade profissional e minha ação, desde a adolescência, em coletivos anarquistas.
A circulação no cenário ácrata paulista, ainda enquanto cursava o ensino médio,
mostrou-me pela primeira vez o descompasso entre a vivência dos ideais libertários e
sua figuração nas aulas de história. Parecia-me que o anarquismo dos bancos
escolares não se ligava ao anarquismo vivido e estudado em locais como o Centro de
Cultura Social de São Paulo2, não dialogava com o anarquismo da literatura e do

1 Fundado em 2013, o Curso popular pré-universitário Tetris e um projeto sem fins lucrativos que tem
a finalidade oferecer aos alunos da rede pública a oportunidade de intensificar seus estudos para as
provas de vestibulares e ENEM, almejando contribuir para seu ingresso nas universidades. Disponível
em < https://www.cputetris.com/ >. Acesso em 16/01/2022.
2 O Centro de Cultura Social de São Paulo (CCSSP) foi fundado em 1933, tendo ocupado diferentes

locais na cidade. A trajetória do CCSSP é marcada por três momentos: o primeiro vai de sua fundação
9
cinema, não era libertário e contestador como o das músicas. O anarquismo escolar
era uma planta exótica trazida pelos imigrantes europeus que, depois de uma breve
florescência em 1917, feneceu.
Anos depois, retornando à escola como educadora, o contato com outros
professores e o diálogo sobre o que e como trabalhar o passado em nossas aulas,
explicitou o quanto a história institucionalizada pelas propostas curriculares e
materializada nos conteúdos ensinados, assume o papel de verdade. Como
professora pude perceber os interesses postos nos currículos oficiais e transpostos,
em dada medida, para os materiais didáticos, os imbrincados mecanismos de
produção, circulação e consumo que os envolvem e as tensões e intencionalidades
que perpassam as representações do passado, assim como as ideologias postas nos
discursos que sustentam.
Nosso problema de pesquisa nasce da comparação entre as diferentes
representações dos movimentos e ideias anarquistas nos materiais didáticos de
história e da percepção dos distanciamentos e aproximações que estabelecem com
as narrativas não escolares, legitimando discursos por meio dos efeitos de sentido
que compõem. Considerando as particularidades da produção do conhecimento
histórico escolarizado e na perspectiva da circularidade dos saberes, intentamos
entender as escolhas, interdiscursividades, nuances, tensões e disputas de poder que
perpassam a produção do conhecimento sobre o anarquismo.
Objetivando analisar as narrativas e representações sobre os libertários, o
projeto que, inicialmente, havia se voltado somente para os livros didáticos de história,
viu-se tensionado pela necessidade de expandir o escopo de fontes, uma vez que as
narrativas propostas por autores, editoras e coleções didáticas se inscrevem na
conjuntura de produção e circulação dos saberes e sua análise apartada da
intertextualidade que lhe compõem, dar-nos-ia um quadro insuficiente para
pensarmos as dinâmicas de apropriação, escolarização e representação do passado.
Na busca de entender a relação dialógica entre os discursos, nosso trabalho passou
a abranger as dissertações e teses produzidas entre 1970 e 20203 e a obra O que é

até seu fechamento pela Ditadura Varguista em 1937; o segundo se inicia com a reabertura em 1945
e seu fechamento pela Ditadura Militar em 1969 e o terceiro tem início 1985, até os dias atuais.
3 As dissertações e teses integram a pesquisa como referencial para que possamos identificar e

qualificar os possíveis diálogos e interdiscursividades estabelecidos entre estes trabalhos, a militância


10
anarquismo da coleção Primeiros Passos, em busca de indícios da circulação de
temas, recortes e abordagens.
Inúmeras questões se colocaram à pesquisa, mas uma se fez inevitável: Por
que falar sobre anarquismo no ensino de história? Chegamos ao século XXI e os
desafios do presente têm nos mostrado a insuficiência dos sistemas políticos e
econômicos atuais, expondo as fragilidades de nossa organização social e a
premência de pensarmos alternativas à esta realidade.
Vivenciamos o afloramento de propostas e posturas políticas autoritárias, de
crescente deturpação da ideia de liberdade individual e tentativas de submissão das
instituições civis e movimentos sociais aos interesses de grupos motivados por
questões sectárias. Estamos frente a uma realidade que demonstra os riscos das
relações públicas pautadas pela religião e da personificação e manipulação do poder
político em benefício de segmentos específicos da sociedade.
A escola, assim como as demais instituições no jogo político e econômico, vê-
se engendrada pelas demandas do capital e pelas políticas públicas influenciadas por
interesses e institutos privados, impulsionando um crescente processo de
mercantilização da educação e do próprio ensino. O aumento da tecnicidade em
detrimento da reflexão teórica, coloca-nos frente a uma realidade individualista,
centrada no consumo e numa falsa meritocracia em um momento de perigoso
reavivamento de preconceitos e autoritarismos.
Deparamo-nos com a necessidade de uma relação mais consciente e coletiva
entre os sujeitos e com o meio-ambiente, com a urgência de reformular e superar o
sistema econômico capitalista e da construção de uma economia mais equitativa e
sustentável, buscando iniciativas pautadas na diminuição das posturas hierárquicas
em benefício de relações mais horizontais. Estamos diante da incontornável
necessidade de pensarmos outro mundo e precisamos de ideias para sonhá-lo.
Frente a isso, trazer as propostas anarquistas a partir de sua presença no
ensino de história se coloca como possibilidade de perceber outras formas de
organização social, econômica e política, contribuindo para a construção de novas

e a produção didática, objetivando perceber os caminhos percorridos pelas ideias e sujeitos no que
denominamos de circularidade dos saberes. Trata-se, portanto, de uma operação pontual de
instrumentalização das pesquisas, não tendo a pretensão de nos determos nas análises minuciosas
destes trabalhos.
11
chances de futuro. Conforme aponta Noam Chomsky (2011), a educação é um
importante meio para construção social que pode almejar a servidão ou a liberdade.

A educação deve, com certeza, ser um componente fundamental de


qualquer programa de transformação da sociedade. Isso é verdade
tanto se o objetivo for impor mais subordinação a autoridade, quanto
se ele for mover-se rumo aos objetivos libertários. Os programas
educacionais serão, sem dúvida, bastante diferentes, dependendo dos
objetivos buscados. Além disso, a educação é um assunto para a vida
inteira, ao menos em uma sociedade que aspire à liberdade e à justiça.
(CHOMSKY, 2011, p. 107).

O anarquismo, a despeito do significado pejorativo que lhe foi atribuído,


demarca um profícuo campo de ideias que se dispôs a pensar a realidade a partir da
interação livre entre os sujeitos. Desde sua origem até seus desdobramentos no
século XXI, as ideias libertárias têm prenunciado alternativas aos sistemas vigentes,
buscando enfatizar as ações de apoio mútuo4, as liberdades compostas5 a igualdade
de direitos, a importância da instrução racional e do desenvolvimento científico e o uso
não predatório dos recursos naturais. Portanto, pensar o anarquismo e sua relação
com o ensino de história a partir de sua representação nos livros didáticos, pareceu-
nos significativo para compreendermos o lugar destinado à liberdade como princípio
de organização social e individual e as relações do indivíduo com a coletividade e o
mundo natural que o cerca em nossa sociedade.
Para Circe Bittencourt (2003, p. 186), o ensino de história tem como finalidade
entender as transformações da sociedade e suas organizações, mas também,

4 Utilizamos o conceito de apoio mútuo sistematizado por Piotr Kropotkin (2012), como forma de
organização social que se opõem a ideia de competição, colocando as ações coletivas e as relações
de mutualismo como fatores essenciais de sobrevivência, evolução e desenvolvimento.
5 O uso do termo liberdade pode adquirir inúmeros significados, muitos deles absolutamente contrários

ao ideal ácrata, portanto consideramos necessário esclarecer seu uso neste trabalho. Nos orientamos
segundo a definição proposta por Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) e sistematizada por Silvio Gallo.
Partimos da ideia de liberdade composta, oposta a liberdade simples, vivida em isolamento. Como
afirma Proudhon “na perspectiva bárbara o máximo de liberdade equivale ao máximo de isolamento,
quando não há ninguém mais para limitar a liberdade do indivíduo. Por outro lado, do ponto de vista
social, quando liberdade e solidariedade se equivalem, o máximo de liberdade significa o máximo de
relacionamento possível com outros homens, pois nesta perspectiva as liberdades não se limitam, mas
se complementam, se auxiliam. Ao contrário da perspectiva burguesa, a liberdade de um não termina
onde começa a liberdade do outro com o outro, mas, ambas as liberdades começam juntas, e uma é
garantia da outra”. (GALLO, 2007, p.104).
12
possibilitar a formação do “homem político”, do cidadão que, por meio do
conhecimento e da reflexão, torna-se um agente de mudanças individuais e coletivas;
diante disso, e por concordarmos com a finalidade do ensino de história proposto pela
professora e pesquisadora, consideramos relevante entender como é dado a
conhecer, dentro do livro didático de história, outra possibilidade de organização da
sociedade e sua ideologia.
Observando a relação do ensino de história e sua finalidade e partindo dos
trabalhos de Alain Choppin6, pensamos o livro didático por meio das funções
documental e ideológicas propostas pelo autor, o que nos levou a colocar algumas
questões ao nosso objeto: qual passado é validado pelo ensino de história? Quem
produz estes enunciados e o que objetiva? Como essas variáveis modulam as
representações e discursos sobre os movimentos libertários para os leitores?
Ao mobilizarmos os conceitos de apropriação e representação, pensamos
quais recursos são instrumentalizados no processo de comunicação e quais
estratégias são empregadas na construção da narrativa sobre os movimentos
libertários. No intuito de compreender as estruturas, a linguagem, os recursos
comunicacionais utilizados e os discursos que postulam, deparamo-nos com as
delimitações internas da enunciação e as limitações externas que as condicionam, o
que nos colocou a premência de compreender o contexto de produção e consumo de
nossas fontes e quais dispositivos instituem sua forma (desde sua materialidade física
até sua construção verbo-imagética).
O trabalho se desenvolveu, inicialmente, com o levantamento quantitativo da
presença do anarquismo nos textos, imagens e exercícios propostos nos livros
didáticos e o número de produções acadêmicas que traziam a temática libertária. Em
um segundo momento, iniciamos a análise qualitativa dos textos e imagens
identificadas nos livros e a incursão sobre os temas abordados e os recortes presentes
nas dissertações e teses, com a finalidade de possibilitar a identificação e
entendimento da intertextualidade que pudesse vir a ser evidenciada pela leitura dos
livros didáticos. Neste processo, a significativa presença da obra O que é anarquismo,

6As questões postas por Alain Choppin (2002, 2004, 2009, 2020) nos permitem expandir o arcabouço
material de análise, problematizando fontes que tangenciam o processo de escolarização dos saberes
e influem na construção do conhecimento histórico escolar.
13
como referência bibliográfica ou indicação de leitura complementar para os
educadores, levou a sua inclusão no conjunto de fontes analisadas.
A seleção das fontes foi construída ponderando critérios temporais, autoria,
permanência no mercado editorial, presença das obras entre os livros selecionados
pelo PNLD7 e relação de circularidade dos autores principais por outras esferas de
produção do conhecimento histórico. Os documentos foram organizados
cronologicamente para o estudo das representações e construção de suas categorias
de análise, de forma a permitir um exame comparativo considerando sua
continuidade, descontinuidade e deslocamento.
Ao trabalharmos os topos narrativos, as obras serão apresentadas agrupadas
por temática, lugar comum identificado na construção da narrativa histórica
escolarizada sobre o movimento libertário e delimitador de sua presença e
representação. Por fim, as análises feitas serão avaliadas conjuntamente para
obtermos um quadro das representações ácratas que nos possibilite compreender
como e em quais momentos as ideias anarquistas se fazem presentes.
Temos consciência de que outras organizações e grupos documentais seriam
possíveis e ampliariam nossa base de análise, contudo, devido ao tempo e alcance
desse projeto, selecionamos os agrupamentos que incidem diretamente na
construção do ensino histórico. Observando os critérios e a disponibilidade do material
para pesquisa, selecionamos o conjunto abaixo:

AUTOR(ES) TÍTULO ED. ANO EDITORA


NADAI, Elza; História do Brasil da 13º 1990 Saraiva; Hamburg
NEVES, Joana
Colônia à República.
PILETTI, Claudio; História e vida 3º 1990 Ática; W. Roth
PILETTI, Nelson
da Idade Moderna à Atual
CAMPOS, História do Brasil 2º 1992 FDT; atual
Raymundo
ARENA, Bárbara
Ferreira;

7Este critério foi utilizado para as obras posteriores ao ano 2000 e seus dados foram obtidos nos
arquivos do Memorial do PNLD, organizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Disponível em <https://cchla.ufrn.br/pnld/ >. Acessado em 20 jun. 2020.
14
PEREIRA Neto, Fazendo História 4º 1992 Parma; Ao Livro
André de Farias;
A América e a Europa no Técnico
AQUINO, Rubim
Santos Leão de; século XIX
LISBOA, Ronaldo
César.

MORAES, José Caminhos das Civilizações 1993 Prol Editora Gráfica;


Geraldo Vinci de;
da pré-história aos dias atual
VAZ, Sonia Regina;
ARENA, Bárbara atuais
Ferreira

SCHMIDT, Mario Nova História Crítica do 4º 1994 Nova Geração


Furley.
Brasil
VICENTINO, História memória viva 4º 1995 Scipione; Hamburg
Claudio
Idade Moderna e
GONÇALVES Filho,
Aurélio; Contemporânea

ARRUDA, José História Integrada 4º 1997 Ática; W. Roth


Jobson de;
do fim do século XIX aos
GUIZZO, João;
ANDRADE; Bueno, dias de hoje
Joel
COTRIM, Gilberto História Global 1º 1997 Saraiva
Brasil e Geral.
SCHMIDT, Mario Nova história crítica (8ª 2000 Nova Geração;
Furley; série) Donnelley-Cochrane;
CRUZ, Eduardo da Impres
Conceição;
ALZUGARAY,
Domingo;
STEINBRUCK,
Alice;
CANOSA, Ismael;
NIGRO, Flávio;
SARAIVA, Arnaldo
SCHMIDT, Mario Nova história crítica (7ª 2000 Nova Geração;
Furley; série) Donnelley-Cochrane;
STEINBRUCK, Impres
Alice;
RODELLA, Gabriela;
NIGRO, Flávio

VICENTINO, Viver a história 1º 2003 Scipione; Globaltec


Cláudio
BOULOS Júnior, História sociedade e 3º 2006 FDT
Alfredo; cidadania (7ª série)
15
COUTO, Mozart;
GUILHERME,
Marcos;
ROSÁRIO Júnior,
Rigoberto do;
VAZ, Sonia Regina

BOULOS Júnior, História sociedade e 3º 2006 FDT


Alfredo; cidadania (8ª série)
COUTO, Mozart;
GUILHERME,
Marcos;
ROSÁRIO Júnior,
Rigoberto do;
VAZ, Sonia Regina

GRINBERG, Keila; Vontade de saber história 2009 FDT


DIAS, Adriana
(9º ano)
Machado;
PELLEGRINI,
Marco;
PIALARISSI,
Marcela;
STEIN, Alaide;
DIAZZi, Paula.

GRINBERG, Keila; Vontade de saber história 2009 FDT


DIAS, Adriana
(8º ano)
Machado;
PELLEGRINI,
Marco;
PIALARISSI,
Marcela;
STEIN, Alaide;
DIAZZi, Paula.

FARIA, Ricardo de Estudos de História 1º 2009 FDT


Moura
MIRANDA, Mônica
Liz;
CAMPOS, Helena
VAZ, Sonia ReginA;
ROSA, CÉLIA;
GUIMARÃES;
CORRÊA, Luciana
Keler M.;
DELPHIN, Getúlio;

BOULOS Júnior, História Sociedade e 2º 2012 FDT


Alfredo
Cidadania

16
BRAICK, Patrícia Estudar história 1º 2013 Moderna
Ramos;
dá origem do homem a era
MANZI, Paulo;
COSTA, Alessandro digital (8º ano)
Passos da.

BRAICK, PATRÍCIA Estudar história 1º 2013 Moderna


Ramos.
da origem do homem a era
MANZI, Paulo
CHIARELLI, Aline. digital (9º ano)
BRAICK, Patrícia Estudar história 1º 2013 Moderna
Ramos;
da origem do homem a era
MANZI, Paulo;
COSTA, Alessandro digital (8º ano) - manual do
Passos da.
professor
VICENTINO, História (3º ano do ensino 2º 2014 Editora Scipione
Cláudio;
médio)
DORIGO,
Gianpaolo.
COTRIM, Gilberto; Históriar (9º ano) 2º 2015 Editora Saraiva
RODRIGUES, Jaime
BOULOS Júnior, História sociedade e 3º 2015 FDT
Alfredo; cidadania
(8º ano)
BOULOS Júnior, História sociedade e 2º 2016 FDT
Alfredo; cidadania
CYMBALISTA, (3º ano do ensino médio)
Daniel;
BUENO, Alexandre;
ARGOZINO, Alex

BOULOS Júnior, História sociedade e 4º 2018 FDT


Alfredo; cidadania
(8º ano)
BOULOS Júnior, História sociedade e 4º 2018 FDT
Alfredo; cidadania
(9º ano)
COTRIM, Gilberto. 3º 2018 Editora Saraiva
RODRIGUES,
Jaime. Historiar - 8º ano
COTRIM, Gilberto. 3º 2018 Editora Saraiva
RODRIGUES,
Jaime. Historiar - 9º ano
PROJETO Araribá Mais (8º ano) 1º 2018 Moderna
COLETIVO
PROJETO Araribá Mais (9º ano) 1º 2018 Moderna
COLETIVO

17
BRAICK, Patrícia Estudar história 3º 2018 Moderna
Ramos;
da origem do homem a era
BARRETO, ANNA.
digital (8º ano) -
BRAICK, Patrícia Estudar história 3º 2018 Moderna
Ramos;
da origem do homem a era
BARRETO, ANNA.
digital (9º ano) -
CAMPOS, Flávio de; História: escola e 1º 2018 Moderna
CLARO, Regina;
democracia (8º ano)
DOLHNIKOFF,
Miriam.
CAMPOS, Flávio de; História: escola e 1º 2018 Moderna
CLARO, Regina;
democracia (9º ano)
DOLHNIKOFF,
Miriam.
COSTA, Túlio Caio O que é anarquismo 15º 1990 Editora Brasiliense

Cabe aqui ressaltar que dentre as obras analisadas os livros de Elsa Nadai e
Joana Neves, José Jobson de Andrade Arruda e Nelson Pilletti podem ser
considerados como fontes documentais que constituem uma “ponte” entre as
produções didáticas marcadas pela Ditadura Civil-Militar Brasileira e do período de
democratização, ao considerarmos que estes figuram entre os autores renomados já
durante a década de 1970 e circulam entre o mundo acadêmico e editorial que era
marcado por relações distintas das que vivenciamos na atualidade, como aponta
Décio Gatti Júnior (2003):

Grande parte dos autores dos livros didáticos de História produzidos


nas últimas três décadas tem um perfil bastante diferenciado daqueles
que escreviam os manuais escolares até meados dos anos sessenta.
Se antes os autores trabalhavam praticamente sozinhos, tendo a
companhia quase que exclusiva do editor, que geralmente também era
o dono da empresa, hoje em dia, os autores têm contato com editores
especializados, que fazem parte de uma enorme estrutura
organizacional e, portanto, permanecem afastados dos centros de
poder dessas empresas. (GATTI. 2003, p. 63-64).

Para o trabalho com os livros didáticos, orientamo-nos pelas pesquisas de Circe


Bittencourt e Alain Choppin, abordando-os como suporte informativo que concretiza
os conteúdos históricos escolarizados, considerando o papel político dos manuais e a

18
constante das temáticas que concorrem para construção de identidades e da memória
social de uma determinada cultura e sociedade. Não se trata de buscar, em uma
perspectiva ingênua, o livro como único responsável pela memória histórico escolar e,
tão pouco, acreditar na possibilidade do “livro perfeito”, mas, entendê-lo por meio das
escolhas e discursos que comporta e seu diálogo com outras narrativas sobre o
anarquismo.
Portanto, mostrou-se preciso demarcar nosso objeto e seu suporte, assim
como definir de forma clara os conceitos que adotaremos em nosso trabalho e que
serão detalhados no capítulo I, A encenação do passado e a construção do
conhecimento histórico escolarizado, que contará com um panorama da produção
acadêmica sobre os libertários; reservando para o capítulo II, A representação dos
libertários entre barricadas, greves, jornais e coquetéis molotov, o detalhamento de
nosso processo de análise, a elaboração das categorias de representação presentes
nas fontes, as topologias narrativas e seu entendimento dentro da conjuntura histórica.
Ainda no capítulo II, em Quem tem medo dos anarquistas? apresentaremos um
quadro sobre a representação ácrata e a relação que estabelecem com o contexto
ideológico e a forma narrativa utilizada para contar o passado escolarizado.
A divisão interna do estudo das fontes não contemplou de forma separada as
atividades propostas pelo LDH, devido ao pequeno número de exemplares
encontrados que retomavam os libertários nos exercícios, e a tendencia a
apresentarem questões que têm como objetivo a comparação entre anarquismo e
socialismo, recurso que constitui uma constante nas obras estudadas e que será
abordado no capítulo II.
Para respondermos às perguntas propostas por meio da análise das
representações presentes na produção didática sobre o anarquismo, inserimo-nos em
um debate que, como quis Walter Benjamin (2012), “escova a história a contrapelo”.
Ao garimpar na narrativa a representação daqueles que sequer se prontificaram à luta
pelo poder e assumiram com ferocidade a crítica a ideia de progresso tecnicista (de
base capitalista ou socialista) como motor do desenvolvimento humano e social,
buscamos compreender como os anarquistas, inconvenientes para a direita e para a
esquerda “vitoriosa”, têm sua memória registrada nas páginas dos livros didáticos,
delineados pelos anseios e ideologias daqueles aos quais incomodam.
19
O discurso de Benjamin, que encontra eco na historiografia mundial, oportuniza
importantes críticas, abrindo, como diagnostica Jacques Le Goff (1990), frestas pelas
quais novos atores, fontes e narrativas adentram a cidadela da história, “provocando
o reconhecimento de "realidades" históricas negligenciadas por muito tempo pelos
historiadores. Junto à história política, à história econômica e social, à história cultural,
nasceu uma história das representações”. (LE GOFF. 1990, p. 11). O simbólico ganha
evidência não como reflexo da sociedade que o produziu, mas como, também ele,
instituidor desta sociedade.
No Brasil a historiografia dos vencidos e a esfera do simbólico encontra espaço
com os trabalhos dos historiadores Carlos Alberto Vesentini (1997) e Edgar De Decca
(1981), nos quais o reconhecimento dos silenciamentos nos discursos que constituem
a memória histórica, demonstram as dinâmicas e disputas de poder que se instituem
no campo da cultura escrita.
O discurso sobre o passado emerge, não como reverberação dos embates
econômicos e políticos, mas como prática instituída dentro do campo simbólico. As
representações estudadas e construídas por estas novas narrativas, tomam, como
propõe Roger Chartier, parte das dinâmicas e disputas na qual nos interessa
compreender “o modo como em diferentes lugares e momentos uma realidade social
é construída, pensada e dada a ler” (CHARTIER. 1990, p. 16) e quais discursos sobre
o passado valida.
Questionarmos onde e como o anarquismo é posto, as motivações de seu
deslocamento na narrativa histórica escolarizada, sua negação (como não criação e
ausência) e seu apagamento como teoria e ação, espelhando o progressivo
silenciamento dos trabalhadores como sujeitos históricos nas obras didáticas a partir
da década de 2010, demonstra a relevância das práticas do poder dentro da
construção dos discursos e memórias sobre o passado, colocando a história como
palco de disputa simbólica e material, na qual os vencedores “absorvem” em seu
discurso e temporalidade a voz dos vencidos, integrando-os, mas negando-lhes
historicidade como sujeitos. Segundo Carlos Alberto Vesentini:

A unificação de percepções divergentes advindas de fontes opostas,


que se chocaram, confluiu‐se ou se anularam no processo mesmo de
luta, torna‐se essencial para a possibilidade da construção da ampla
20
temporalidade característica da memória do vencedor. Aceito e
estabelecido este tempo peculiar, a sequência de fatos, temas, crise e
marco legitimador/definidor (base a permitir a organização de todo o
conjunto) torna‐se atrativa por si só, recebendo e absorvendo
quaisquer novas informações ou estudos. Estabelecem‐se núcleos
orientadores de memórias, em torno de questões, de problemas, a
atraírem as análises e a proporem revisões. Podem ser recuperados
por aquele conjunto abrangente, de modo que também se integrem
naquela ampla memória, no seu tempo (e sua cisão, em dois
momentos maiores), mesmo quando trazidos por participantes
vencidos ou descartados no conjunto do processo, por autores saídos
de grupos que efetivamente se envolveram com a história.
(VESENTINI. 1997, p. 163).

Diante da insuficiência de pensarmos as representações como uma simples


relação de oposição entre grupos distintos, ou como uma equação que pressupõe a
igualdade entre os lados para a descoberta do passado, observamos, como propõe
Carlos Alberto Vesentini, a ação de “núcleos orientadores de memória”, que em uma
análise conjuntural, tendem a constituir tradições e instituir discursos que passam a
ser tomados como naturais, portanto, verdadeiros. Fazer uma história a contrapelo,
permite-nos pensar a instituição das representações libertárias como um processo
que se desenvolveu dentro das transformações da disciplina de história em nosso
país, fazendo necessário refletirmos sobre o processo e as escolhas que incidem
sobre a escolarização dos saberes e sua materialização nas obras didáticas.
Imersos neste lugar simbólico e material da cultura escrita, que como aponta
André Chervel (1977, 1990), opera a escolarização da relação com o conhecimento e
suas práticas internas e externas a instituição escolar, tendo por finalidade compor
nosso objeto e seu suporte, fez-se indispensável conhecer o percurso da instituição
da história como disciplina em nosso país, suas propostas curriculares e sua
incidência ou não nos materiais didáticos.
A constituição da história como disciplina escolar estabelece parâmetros para
percebermos a construção de sua forma narrativa, que será essencial para
compreendermos as representações e os vetores internos que lhe atribuem sentido.
Concebendo suas transformações dentro do contexto sócio-histórico em conjunto com
as dinâmicas de (re)estruturação de sua finalidade política e social. Porque e como
ensinamos história incide diretamente no que ensinamos e nas relações de poder
intrínsecas ao processo de contar o passado, atribuindo-lhe valor no presente.

21
Partindo dos estudos acerca da construção das disciplinas escolares de André
Chervel (1977, 1990) Ivor Goodson (1997), dos trabalhos de Circe Bittencourt (1990,
1997, 2003), Selva Guimaraes Fonseca (2003, 2010) e Maria Auxiliadora Schmidt
(2012), buscamos identificar o surgimento da história como disciplina escolar em
nosso país e sua transformação como um processo de longa duração, marcado por
diferentes concepções da história como disciplina escolar e sua função social.
Ao se interrogar sobre as condições de validação de um determinado discurso
sobre a língua francesa, André Chervel (1977) depara-se com as condições concretas
e as relações de poder que autorizam a edificação da gramática normativa da língua
a ser ensinada nas instituições escolares. Identificando que os agentes das
mudanças, diferente do que se pode pensar a princípio, não estão completamente
fora do âmbito educacional, revelando a disciplina e seu conteúdo como um produto
escolar (criado para e na prática de ensino) que ultrapassa os muros da escola,
ganhando espaço e significação social, o que nos levou a refletir sobre as condições
que autorizam o discurso histórico no qual a representação do anarquismo se
consolida na narrativa e é validada pela educação escolarizada.
A construção da história como disciplina em correlação com o conceito de
código disciplinar8, tomado de Raimundo Cuesta Fernández e instrumentalizado pela
historiadora Maria Auxiliadora Schmidt (2012), permitiu-nos pensar na sistematização
e periodização da disciplina como ferramentas para compreensão das mudanças no
ensino de história. Considerando o trabalho de Schmidt (2012) e o recorte temporal
proposto em nossa pesquisa, nosso trabalho se desenvolverá no contexto de
redemocratização, que carrega consigo um intenso desejo de reestabelecer a história
como disciplina no currículo brasileiro e instrumentalizá-la como potente ferramenta
na construção da democracia e cidadania, aviltadas nos vinte e um anos de ditadura
civil-militar.
Estudar as representações do movimento libertário neste contexto, é também
buscar compreender como as aspirações políticas, sociais, econômicas e dos grupos
que representam a pesquisa histórica brasileira disputam espaços e se articulam na

8O conceito de código disciplinar apresenta aproximações com as ideias foucaultianas, podendo ser
compreendido por meio da manifestação e consolidação histórico-cultural nos discursos, conteúdos e
práticas do ensino escolarizado que interagem como práticas sociais em uma relação dialética.
22
reconstrução da disciplina de história e seus documentos norteadores. Fazendo-se
necessário entendermos os diferentes currículos e propostas curriculares construídos
a partir do processo de redemocratização do Brasil, compreendendo-os, como nos
aponta Circe Bittencourt (2008, 2021) e Michael Apple (2005, 2006), como um campo
de disputas.
Do ponto de vista sociológico, apresentado por Michael Apple (2006), o
currículo é uma disputa ideológica e de poder, na qual o questionamento sobre quais
conhecimentos devem estar no documento, deve vir acompanhado de perguntas
sobre o valor atribuído política, social e economicamente a estes saberes. Para Apple
“quer reconheçamos ou não, o currículo e as questões educacionais mais genéricas
sempre estiveram atrelados à história dos conflitos de classe, raça, sexo e religião
[...]” (APPLE. 2005, p.39).
A afirmação de Michael Apple coloca, novamente, as questões sobre o valor
atribuído as teorias e ações anarquistas pelos grupos que configuram a narrativa
histórica escolarizada e o discurso histórico-social sobre a memória deste movimento,
sua prática de enfrentamento do sistema capitalista e a influência de suas ideias na
produção artística, intelectual e política dos séculos XX e XXI, considerando que as
prescrições curriculares propostas a partir da década de 90, refletem as lutas
empreendidas pelos movimentos de redemocratização e, posteriormente, a
adequação do ensino brasileiro às demandas internacionais, representadas,
sobretudo, pelas avaliações do Banco Mundial, como significativas para a
compreensão das representações feitas pelo ensino de história.
Percebendo o currículo como local de disputa simbólica, constituído como
produto e materialização dos discursos ideológicos ora dominantes, ora conflitantes,
o compreendemos como uma “expressão do equilíbrio de forças que gravitam sobre
o sistema educativo em um dado momento” (SACRISTÁN, 2000, p. 16), sendo parte
constitutiva da realidade social na qual está inserido e para qual postula os caminhos
metodológicos e conteúdos a serem trabalhados pelos professores.
Atentando para a compreensão dos condicionantes externos que mesmo não
sendo os únicos determinantes para a construção da representação dos anarquistas
nos livros didáticos, concorrem para delimitação de nosso objeto e das disputas de
poder nas quais se insere, levando em conta que as esferas de construção dos
23
saberes social e politicamente definidos como essenciais ao ensino escolarizado e o
mercado editorial tem significativo peso no produto livro didático, buscamos conhecer
às prescrições curriculares, os currículos oficiais e os critérios de avaliação do
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), renomeado de Programa Nacional do
Livro Didático e Material Didático,
A reconstrução dos objetivos da escola em um momento de forte embate
político e luta democrática, possibilitou-nos vislumbrar na construção das propostas
curriculares desta “nova escola”, que buscava, em uma perspectiva pedagógica
crítico-social dos conteúdos, instituir um currículo para formação de cidadãos e assim
efetuar uma duradoura mudança social, a presença das ideias marxistas e a
concepção de Antônio Gramsci de intelectual orgânico que, colocadas nos debates
políticos, influenciaram a concepção educacional que surgiria como norte para a
confecção dos currículos, sobretudo nas décadas de 1980 e 1990, sugestionadas
pelas pesquisas históricas orientadas pelas lentes do materialismo histórico-dialético
e novos objetos e sujeitos, propostos pela história cultural e social.
A década de 1990 foi marcada pela preocupação com a educação e seus
resultados, de um lado condicionado às reformas liberais e, por outro, ao imperativo
de se construir um currículo que fizesse frente à herança do autoritarismo do período
ditatorial, almejava-se uma educação para formação cidadã, ao mesmo tempo em que
se buscava atender as demandas internacionais vinculadas as reformas econômicas
e acordos firmados pelo governo.
Abre-se uma disputa entre o desejo social e das organizações de ofício, como
sindicatos docentes e a ANPUH e as demandas internacionais sobre os caminhos da
educação brasileira. Se um dos lados vê no currículo a esperança de amparo a
legitimação de identidades e sujeitos e a reconstrução da democracia, solapados
pelos anos de regime ditatorial e pela história oficial, o outro busca afinar as decisões
políticas e educacionais aos ditames das exigências neoliberais, materializadas nas
orientações do Banco Mundial e demais organismos financeiros internacionais, que
veem nas políticas sociais meios de instrumentalização das políticas econômicas.
Como aponta Sheyla Moraes e Silva (2006) a educação se mostrou um campo
fecundo para as ações desejadas para a promoção e efetivação das ideias
econômicas neoliberais, afirmando-se a concepção de educação como mercadoria.
24
A disciplina de história emerge neste quadro como importante pilar na
construção das identidades sociais, produtora de uma narrativa que oficializa e
naturaliza o passado, compõem parte significativa da memória sobre os sujeitos e
lutas vividas. O discurso histórico escolar tem o poder de instituir a verdade ou negar-
lhe por meio das representações que instrumentaliza no campo do simbólico. A
reconstrução da disciplina e seus objetivos, abrangida no recorte temporal estipulado
em nossa pesquisa, foi palco de intensa disputa de representações, evidenciando o
interesse dos grupos envolvidos e as lutas de poder e apropriação sobre o passado.
Segundo Roger Chartier (1990):

As representações do mundo social assim construídas, embora


aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são
sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam.
Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos
discursos proferidos com a posição de quem o utiliza.
As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros:
produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que
tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas
menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para
os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isso esta
investigação sobre as representações supõe-nas como estando
sempre colocadas num campo de concorrências e de competições
cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. As
lutas de representações têm tanta importância como as lutas
econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo
impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores
que são os seus e o seu domínio (CHARTIER. 1990, p. 17).

Em 1993 foi organizada a Semana Nacional de Educação para Todos, sendo


elaborado o plano decenal de educação (1993 – 2003), que reforçava a necessidade
de elaboração das diretrizes educacionais e a obrigatoriedade dos Estados de
construírem propostas curriculares que orientassem a educação básica, considerando
a Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de
dezembro de 1996. Este processo levou a publicação dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN) de primeira à quarta série em 1997, de quinta a oitava em 1998 e
em 1999 o destinado ao ensino médio.
Tendo um time de renome nas ciências humanas, contou, entre outros, com a
historiadora Antônia Terra de Calazans Fernandes, a pedagoga e socióloga Flávia

25
Shilling e o geografo Francisco Capuano Scarlato como elaboradores do documento
destinado à disciplina de história e a consultoria de nomes como Circe Maria
Fernandes Bittencourt, Elias Thomé Saliba, Ilana Blaj, Modesto Florenzano e Miguel
Arroyo. Os documentos traziam novidades ao pensar o educando, também, como
produtor de conhecimento e narrativas sobre o passado, enfatizando a relevância da
história local e a adoção de uma proposta de história temática.
Sua elaboração como nos aponta Neves (2000, p.6), buscava atender as
exigências internacionais ligadas a órgãos financiadores da educação. Na leitura do
documento podemos perceber que a organização dos PCNs se apresenta, de forma
geral, como uma proposta que enfoca o exercício da cidadania e diversidade:

Cada criança ou jovem brasileiro, mesmo de locais com pouca


infraestrutura e condições socioeconômicas desfavoráveis, deve ter
acesso ao conjunto de conhecimentos socialmente elaborados e
reconhecidos como necessários para o exercício da cidadania para
deles poder usufruir. Se existem diferenças socioculturais marcantes,
que determinam diferentes necessidades de aprendizagem, existe
também aquilo que é comum a todos, que um aluno de qualquer lugar
do Brasil, do interior ou do litoral, de uma grande cidade ou da zona
rural, deve ter o direito de aprender e esse direito deve ser garantido
pelo Estado. (BRASIL, 1997, p. 28).

Conforme afirmam os autores dos PCNs, sua construção mediante os quatro


níveis de concretização curricular, permitem aos estados, municípios, escolas e, por
fim, aos docentes elaborarem currículos e planejamentos pautados nos parâmetros
curriculares federais, mas gozarem de liberdade para adequarem à realidade local e
as demandas da comunidade a qual atendem, selecionando os conteúdos e métodos
a serem empregados. Contudo, intelectuais e organizações sociais e laborais
apontaram incoerências entre a proposta e sua efetiva construção, a ausência de
professores e da comunidade escolar, de forma geral, contradiz a diretriz democrática
que propõe o documento.
Nesta perspectiva, os PCN fazem parte do conjunto de propostas que
almejavam a efetiva implementação do neoliberalismo no Brasil. Apontando para o
fato que mesmo com a intenção educativa posta no documento, (qualidade do ensino,
transformação social, consolidação da cidadania), este ainda está relacionado com o
neoliberalismo. Dentre as críticas feitas ao PCN para a disciplina de história, Neves
26
(2000, p. 75), alerta para o fato de que a Associação Nacional de História (ANPUH),
não foi convidada, enquanto entidade, para elaboração da proposta, sendo excluída,
assim como os docentes do ensino básico e os educandos.
O PCN de história busca construir um quadro do surgimento e Constituição da
disciplina no Brasil, defendendo o ensino de história como instrumento para a
construção da noção de identidade e cidadania. Os conteúdos são apresentados na
proposta por meio de eixos temáticos sugeridos para cada ciclo. Carregando como
elementos primordiais os conceitos de identidade, memória e nação, propõem uma
abordagem direcionada para a história temática, que não encontrou respaldo nas
produções didáticas e nas elaborações curriculares estaduais e municipais,
evidenciando a tradição e continuidade de uma abordagem cronológica do ensino de
história em nosso país.
Transpondo para história escolarizada os debates e mudanças de paradigmas
da historiografia e as transformações e novas perspectivas pedagógicas, trazendo
para o ensino de história um novo olhar sobre o objetivo da disciplina e a produção do
conhecimento. Sua relação teórica com as propostas da nova história é evidente, o
que trouxe a possibilidade de narrativas históricas escolares com novos sujeitos.
Mas, onde o anarquismo poderia se encaixar na proposta para os anos finais
do ensino fundamental e médio? As ideias libertárias, aparecem, tradicionalmente
apresentadas aos educandos atreladas a dois momentos, às teorias sociais e políticas
da segunda metade do século XIX e a luta dos trabalhadores por direitos nas primeiras
décadas do século XX. Tendo em vista a ênfase dada ao mundo do trabalho pelos
PCNs fomos levados a crer que a participação ácrata ganharia espaço no ensino de
história.
No documento destinado aos últimos anos do ensino fundamental, o eixo
temático História das representações e relações de poder, sugere como conteúdo
desejável as “lutas operárias, lutas sociais rurais e urbanas, lutas feministas, lutas pela
reforma agrária, movimentos populares e estudantis, lutas dos povos indígenas pela
preservação de seus territórios, movimento de consciência negra etc.” (BRASIL. 1997,
p. 69-70). Chama-nos atenção a não nomeação destas lutas, ao passo que as
“grandes lutas políticas” aparecem nomeadas como Revolução de 1930 e Revolução
Constitucionalista de 1932. Revoltas de cunho popular e trabalhista como a Greve de
27
1917, Guerra de Canudos, Contestado, Revolta da Vacina dentre outros, não
aparecem como momentos históricos nomeados, sendo englobados em lutas
operárias e lutas sociais rurais e urbanas.
O anarquismo surge somente no eixo Cidadania e Cultura no Mundo
Contemporâneo, ao sugerir o trabalho das problemáticas pertinentes à questão da
cidadania na história, no recorte mundo:

A cidadania em Atenas e em Roma; a cidadania nas comunas


medievais; os ideais iluministas e as práticas de cidadania durante a
Revolução Francesa; as práticas de cidadania a partir da
independência dos Estados Unidos; o socialismo, o anarquismo, o
comunismo, a social-democracia, o nazismo e o fascismo na Europa,
experiências históricas autoritárias na América Latina, as declarações
dos Direitos Universais do Homem e os contextos de suas
elaborações. Os direitos das mulheres, dos jovens, das crianças, das
etnias e das minorias culturais, a pobreza e a desigualdade social e
econômica no mundo. (BRASIL.1997, p. 73)

Os libertários surgem no PCN de história destinado aos anos finais do ensino


fundamental, desvinculados da luta política e econômica dentro do contexto nacional,
reforçando a ideia de estrangeirismo do pensamento anarquista, levando-nos a
inevitável comparação entre a presença das ideias do socialismo científico e as
concepções ácratas dentro do documento. O socialismo, que surge no documento 12
vezes, em diferentes momentos; cria com o anarquismo um quadro dicotômico que
valida a luta socialista e negligencia a participação e importância libertária na
construção ideológica e na ação direta. Ao analisarmos o PCN destinado ao ensino
médio, podemos perceber que o anarquismo não é citado uma única vez. O socialismo
aparece como única ideia viável a opor-se ao capitalismo, relacionando as propostas
de Marx diretamente ao movimento dos trabalhadores, reiterando a revolução
socialista enquanto conceito e as democracias (liberal, socialista, brasileira).
As orientações dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) se fizeram sentir
parcialmente nos livros didáticos de história, a abertura a outros sujeitos históricos, a
ênfase nos conceitos de memória, identidade e nação como eixos a partir dos quais
se construiria o conhecimento histórico escolarizado assumem significativa presença
nas obras analisadas a partir da década de 2000, intensificando-se na década
posterior. Todavia, esse impacto não possibilitou a multiplicidade de vozes para além
28
da estrutura narrativa que, construída por uma abordagem teórica que circula entre a
marxista e a culturalista, delimita seus agentes e condiciona, por meio das concessões
materiais na distribuição do texto, à prevalência de determinados atores históricos em
detrimento de outros. Também se faz oportuno mencionar que a transformação
estrutural proposta para o ensino de história, a abordagem por temática em
substituição à sua apresentação cronológica, não encontrou terreno fértil na educação
e, tão pouco, na produção didática.
Da mesma forma o impacto do PCN de história pode ser considerado relativo
nos processos de avaliação do PNLD, que para as coleções de história propunha em
sua seletiva de 2005 critérios como concepção de História apresentada pela obra,
ausência de erros conceituais, estereótipos e anacronismos, apresentação de
conceitos relevantes ao ensino e sua historicidade, uso de fontes históricas (não como
ilustração, mas como documento para trabalho com o educando), representações
iconográficas e ilustrações. (MEC, 2004). Critérios que se reiteram, com algumas
alterações, no decorrer das seleções realizadas pelo Ministério da Educação, mas que
ignoram a abordagem temática como critério de validação.
A continuidade dos debates e discussões sobre a organização de uma base
comum curricular para a educação nacional que se instaurou desde a promulgação
da Constituição de 1988, continua em evidência mesmo após a construção dos PCNs,
levando a formulação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Sua elaboração
foi envolta em grande polêmica, entre 2015 e 2017 foram produzidas quatro versões
do documento.
A BNCC é o resultado do Plano Nacional de educação proposto para ser
executado entre 2014 e 2024, aberta em junho de 2015 para consulta pública deixou
a disciplina de história de fora, sendo incluída apenas no final de outubro. Como parte
da área de conhecimento de ciências humanas, a disciplina de história foi o
componente que apresentou maior conflito entre a perspectiva do Estado e os anseios
dos profissionais, professores e historiadores, a respeito do que deveria ser ensinado
e como.
A versão final do documento apresenta um viés claramente patriótico,
utilizando-se amplamente de conceitos e termos centrados na história europeia já, há
muito, questionados e ultrapassados pela historiografia brasileira. Vemos uma
29
considerável diminuição na presença dos trabalhadores como sujeitos históricos, o
mundo do trabalho surge como um dos objetivos da formação do sujeito, mas, não
como campo histórico de lutas, como se faz presentes no PCN. A democracia, na
construção da BNCC, vem atrelada a presença do capitalismo, limitando a abordagem
da exploração causada por este.
A proposta curricular operada pela BNCC, diferentemente dos PCNs,
apresenta incidência nos currículos locais de forma mais efetiva9 e, por conseguinte,
na produção dos materiais didáticos e critérios avaliativos do PNLD, o que em nossa
perspectiva e como apontam os organizadores da obra BNCC de História nos estados:
o futuro do presente (2021), materializa-se como tentativa de aumentar o controle
sobre o sistema educacional, “parte de uma política curricular que se insere numa
política educacional de caráter autoritário e neoliberal” (FERREIRA. 2021, p. 17). Para
aquém de sua apresentação “moderna”, “enxuta” e “conectada” dos conteúdos e
conceitos a serem ensinados, entendemos o documento como bastante limitador e
conservador no que se refere ao ensino de história.
Com a escalada do autoritarismo e neoliberalismo no Brasil e sua relação com
a produção curricular e a reestruturação da educação nacional, a figura do trabalhador
se vê esvaziada como sujeito histórico, o que leva à um reducionismo da presença
das lutas trabalhistas e, também, sociais como elementos do processo histórico e suas
transformações. A ênfase dada anteriormente as questões econômicas, vê-se
suplantada por um recorte que privilegie as questões culturais, mas esta escolha por
uma explicação culturalista do passado se faz de forma maniqueísta e à revelia dos
estudos da história cultural, relativizando seu alcance nos descolamentos de suas
condições de produção e reprodução, limitando a compreensão da história como
processo.
A BNCC apresenta o anarquismo uma única vez, na unidade temática
destinada ao nono ano, o Nascimento da República no Brasil e os processos históricos

9 Por meio do programa ProBNCC (2018), o governo federal destinou um vultuoso recurso aos Estados
para que estes desenvolvessem seus currículos de forma a adequá-los as linhas da BNCC. Buscando
levar à efetiva implantação da Base Nacional Comum Curricular no país. Devemos consideras, contudo,
que esta nova imposição curricular denota as lutas de poder que se estabelecem dentro dos currículos
e, como aponta Ferreira (2021, p. 18), tem sua gênese nas disputas acerca da política curricular que
se desenrolam desde o governo de Fernando Henrique Cardoso (1994 -2002), das quais os PCNs não
passam ilesos, haja vista sua efetiva produção durante o período.
30
até a metade do século XX, como objeto de conhecimento: anarquismo e
protagonismo feminino. Deixando claro o sentido pontual de abordagem do
movimento anarquista e a ausência do debate entre as perspectivas de organização
social, política e econômica idealizadas pelos libertários. Cabe ainda ressaltarmos que
termos como marxismo, socialista, comunista, ou comunismo não aparecem uma
única vez no documento, sendo o socialismo científico abordado em um único ponto,
voltado ao ensino médio, apresentando Karl Marx como um dos teóricos do século
XX.
Tornou-se claro no processo de análise que de forma ainda mais pungente a
BNCC delimita a organização dos currículos, que por sua vez, delimitam os critérios
de avaliação do PNLD, incidindo diretamente sobre nosso objeto. A proposta da Base
Nacional Comum Curricular objetiva o desenvolvimento humano e econômico
delimitado pelas necessidades do neoliberalismo, centrada num forte discurso,
apoiado pelos setores empresariais, de obsolescência do sistema educacional como
o conhecemos e a necessidade de modernização, introdução no mundo digital e
tecnológico e redução dos conteúdos considerados desnecessários e ultrapassados.
Ao analisarmos os PCN constatamos a ausência da dimensão libertária como
proposta de luta e substituição do sistema capitalista e o foco na dicotomia capitalismo
versus socialismo, o que limita e subjuga a ação libertária, mas, permite o
questionamento, mesmo que por uma única perspectiva do sistema capitalista. Ao
nos debruçarmos sobre a BNCC, torna-se evidente seu viés liberal, com silenciamento
de todas as possibilidades de diferentes formas de organização da sociedade, sejam
elas anarquistas ou socialistas. A ausência destas possibilidades leva a não
problematização do sistema capitalista, reduzindo o ensino de história e das ciências
humanas ao conhecimento e adequação do sujeito ao contesto liberal.
A reorganização da educação e da disciplina de história a partir da década de
1990, evidencia o embate de representações que toma lugar na legitimação de
poderes e autoridades nos discursos materializados nas propostas curriculares e nos
livros didáticos, a impossibilidade de neutralidade impõe a narrativa histórica a disputa
simbólica como meio de construção social. Tanto para os PCN como para a BNCC,
ou para os critérios de avaliação do PNLD, a questão do poder se insere, reproduzindo

31
no LDH o discurso que obteve êxito na disputa e, terminou por oficializar sua
representação em detrimento daquela que não logrou a vitória.

Trabalhando sobre as lutas de representações, cujo objetivo é a


ordenação da própria estrutura social, a história cultural afasta-se sem
dúvida de uma dependência demasiado estrita em relação a uma
história social fadada apenas ao estudo das lutas econômicas, mas
também faz retorno útil sobre o social, já que dedica atenção às
estratégias simbólicas que determinam posições e relações e que
constroem, para cada classe, grupo ou meio, um ‘ser-percebido’
constitutivo de sua identidade.” (CHARTIER. 2002, p. 73)

32
Capítulo I: A encenação do passado e a construção do conhecimento histórico
escolarizado.

Iremos trabalhar neste capítulo referências conceituais essenciais ao


desenvolvimento da pesquisa e relações indispensáveis ao seu amadurecimento. As
questões conjunturais que incidem direta e indiretamente na produção dos livros
didáticos e os aspectos ideológicos e materiais que constituíram, ao longo do tempo,
as condições de produção das representações anarquistas dentro do ensino de
história.
Entendemos o conhecimento histórico escolarizado como uma produção
intelectual que não se reduz a transposição didática das pesquisas acadêmicas,
consistindo na construção de saberes próprios ao ensino, delineados por múltiplos
agentes que vão desde a tradição da disciplina, sua relação com a historiografia
contemporânea e a cultura escolar10, até o contexto sociopolítico, fruto da
circularidade dos saberes e circunscritos pelo estabelecimento da disciplina e seus
objetivos.
Pensar sobre a escolarização dos saberes históricos é, inevitavelmente, pensar
sobre a constituição da história como disciplina, a seleção daquilo que deve ocupar
espaço nos livros didáticos, que deve ser ensinado, reproduzido e disseminado. Como
afirma André Chervel, os “conteúdos de ensino são conhecidos como entidades sui
generis, próprio da classe escolar” (CHERVEL. 1990, p.180), marcados pela relação
que a sociedade estabelece com o ensino e a área do conhecimento em questão e
aquilo que se quer constituir socialmente como disciplinas escolares e conteúdos a
serem ensinados.
Assim, se a disciplina é o “lugar” da escolarização e produção dos
conhecimentos, estes conhecimentos, juntamente com as propostas pedagógicas e
metodológicas, constituem parte essencial do que lhe caracteriza, em uma relação

10 Compreendemos o conceito de cultura escolar a partir das proposições de Dominique Julia (2001,
p.10) “[...] um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um
conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses
comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas
(finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização).
33
dialética que se estabelece na prática do ensino, seus conteúdos e as disputas de
poder que os permeiam.
Para André Chervel (1977,1990), a instituição escolar é produtora e executora
de uma ideia de ensino e, também, das disciplinas. Ao defendê-las como produtoras
de saberes específicos e não como simples operadoras da transposição do
conhecimento científico para o contexto educacional, lançamos nosso olhar sobre a
escolarização dos conteúdos como um processo que tem sua gênese na própria
escola, com objetivos próprios que não podem ser dissociados da realidade
sociopolítica em que estão inseridos.
O ensino de história é, nesta perspectiva, uma produção social e política que
pode e se altera ao longo do tempo, assumindo recortes temporais e espaciais,
discursos e ideologias que emergem das ânsias e expectativas da sociedade e,
sobretudo, das relações de poder que a estruturam. Segundo a professora e
pesquisadora Circe Bittencourt:

O objetivo do ensino de História escolar tem sido o de entender as


organizações das sociedades em seus processos de mudanças e
permanências ao longo do tempo e, nesse processo, emerge o homem
político, o agente da transformação entendido não somente como um
indivíduo, mas também como sujeito coletivo: uma sociedade, um
Estado, uma nação, um povo. (BITTENCOURT. 2003, p. 186).

Assumimos nesta pesquisa a concepção apresentada por Circe Bittencourt,


diante da qual, se a finalidade do ensino de história é entender a ação humana, as
mudanças, descontinuidades e permanências ao longo do tempo, o conteúdo
selecionado pela disciplina almeja cumprir seu objetivo e corroborar com a construção
de identidades sociais, levando-nos a refletir sobre o passado como possibilidade de
ação no presente. Nessa perspectiva, as questões do que é representado e como no
ensino de história ganham centralidade para entendermos a relação da sociedade
com conhecimento histórico produzido no âmbito escolar e as ideologias, demandas
econômicas e políticas as quais responde
A escolarização do saber histórico opera entre o conhecimento historiográfico,
as memórias dos sujeitos e grupos sobre si mesmos, o relacionamento da sociedade

34
com o passado e os objetivos do seu ensino. Trata-se, como toda produção de
conhecimento, de um objeto datado e delimitado pela conjuntura histórica e pelas
disputas de poder na qual está inserido.
Considerando que, apesar das diferentes relações travadas pelos docentes
com os livros didáticos ao longo do tempo, houve a consolidação de sua presença e
uso no ensino de história, sobretudo, devido a ação do poder público por meio do
PNLD, tornando o livro didático uma presença concreta nas escolas públicas do país,
assumindo a cada dia maior relevância como ferramenta para o trabalho docente, o
estudo das representações históricas que oferecem aos educandos se torna
importante para compreendermos o processo de apropriação, assimilação e
ressignificação feito pelo ensino.

O livro didático como documento histórico

Definir teoricamente o suporte de nosso objeto de pesquisa permite que


compreendamos a importância social que possui, a relevância de sua presença na
formação cultural e educacional das crianças e jovens e sua construção como objeto
histórico. Reconhecer o percurso que permitiu instituir sua historicidade e as
possibilidades de seu uso como documento, permite-nos maior clareza no
estabelecimento da relação de nosso objeto e seu suporte.
Como afirmou Alain Choppin (2004), Circe Bittencourt (1997, 2011) e Egil Børre
Johnsen (1996), o livro didático é um objeto complexo, idealizado e desenvolvido
conjuntamente com o processo de escolarização das sociedades, desde Comenius
no século XVII, tem ocupado papel de destaque na educação, sua importância política,
social, econômica e didática é inegável. Os ritmos e caminhos trilhados desde a
produção, seleção e usos na educação são intrincados, dada sua multiplicidade e os
muitos atores e interesses envolvidos no processo.
Para Egil Børre Johnsen (1996, p.23) “resulta difícil indicar con exactitud el lugar
que ocupa el libro de texto em la literatura, debido en buena medida a que pode ser
nuestro producto literário más complejo”. Sua presença e uso cotidiano nas

35
instituições de ensino e sua importância econômica para o mercado editorial, fazem
dele um objeto de muitas definições e possibilidades de estudo.
O manual escolar, enquanto objeto social, ganha relevo no contexto do pós-
guerra, especialmente os da disciplina de história. Confrontados com a barbárie do
conflito bélico, intenta-se construir uma imagem menos conflituosa e discriminatória
das relações entre os povos e garantir que valores sociais considerados essenciais
circulassem por entre a população, sobretudo os jovens, em período de formação e
escolarização (CHOPPIN. 2004. BITTENCOURT. 1997, 2011).
Mas, é somente a partir da década de 1960, como aponta Circe Bittencourt
(1997, 2011), que o livro didático passa a ser entendido como documento histórico
capaz de permitir ao pesquisador, por meio das mudanças e permanências de seus
conteúdos e métodos de ensino, analisar as transformações dos projetos editoriais e
de sua dinâmica de circulação enquanto mercadoria cultural e vislumbrar as formas
pelas quais as sociedades, em diferentes conjunturas, representaram a si mesmas.
Segundo Alain Choppin:

A partir dos anos de 1960, mas sobretudo nas duas últimas décadas
do século XX, as pesquisas dedicadas à história dos manuais
escolares tiveram um crescimento considerável. Este dinamismo
corresponde, pode-se dizer, ao fenômeno de “colocar o tema na ordem
do dia”. Era paradoxal, efetivamente, que a edição escolar continuasse
a ser deixada de lado, por tanto tempo, ao se constatar a forte
presença dos livros didáticos no mundo inteiro e o peso considerável
que representa este setor na economia editorial dos séculos XIX e XX.
(CHOPPIN, 2020, p.9).

Por ser uma mercadoria de consumo tida, muitas vezes, como de menor
significância literária, o livro didático se perde no dia a dia das instituições de ensino.
No Brasil, há poucas décadas foram construídas metodologias e locais dispostos a
guardá-los como documentos históricos, disponibilizando-os para consultas e
pesquisas, dentre os acervos e base de dados brasileiras, destacamos, por sua
importância e pioneirismo, o banco de dados LIVRES e a Biblioteca do Livro Didático
da Universidade de São Paulo, que nos possibilitou empreender esta pesquisa.
Como fonte documental, sobretudo, nas áreas de história da educação e
disciplinas escolares, mas também, para a história cultural, o livro didático atrai um

36
significativo número de pesquisadores que têm se dedicado a analisar as múltiplas
dinâmicas que envolvem este objeto. Segundo Kênia Moreira:

Essa perspectiva se insere nas mudanças ancoradas nas inovações


paradigmáticas a partir da década de 1970, que determinaram a
transformação no modo de entender a história e desenvolver sua
pesquisa científica, conduzida, segundo princípios metodológicos
profundamente renovados (LE GOFF, 2003), dentre outros. Tais
mudanças paradigmáticas ocasionaram transformações na produção
das pesquisas em história da educação, a partir das contribuições da
Nova História Cultural, com a inserção de novas categorias de análise,
tais como: representação, apropriação, cultura escolar, dentre outras
(CATANI; FARIA FILHO; 2002; FARIA FILHO et al., 2004).
(MOREIRA, 2017, p. 888).

Dentro da escola o livro didático insere-se na cultura escolar, compondo-a,


como apontam José Cássio Másculo (2008, p.11) e Kazumi Munakata (2016, p. 123),
o que faz do livro didático uma interessante fonte para compreendermos os
conhecimentos que se desejam ensinar as novas gerações e as formas de
transmissão que assumem, mediados pela relação ética e ideológica da sociedade
que o produziu e seus usos dentro do contexto escolar. Componente da cultura
material e do processo de escolarização da sociedade, simboliza a expansão do
ensino formal em quase todos os países do mundo. Para Kazumi Munakata:

O livro didático é, em primeiro lugar, o portador dos saberes escolares,


um dos componentes explícitos da cultura escolar. De modo geral o
livro didático é a transcrição do que era ensinado, ou que deveria ser
ensinado, em cada momento da história da escolarização”.
(MUNAKATA, 2016, p. 123).

Suporte do conteúdo histórico escolarizado e de um sistema de valores que


evidenciam as ideias e preceitos disseminados em um determinado período, assim
como os silenciamentos e conflitos identitários e de representatividade na formação
abstrata de uma identidade nacional, assumindo um significado mais próximo de um
quadro do passado que seja condicente com as memórias e expectativas da
sociedade que o produz. Conforme afirma Alain Choppin:

[...] a imagem da sociedade apresentada pelos livros didáticos


corresponde a uma reconstrução que obedece a motivações diversas,
37
segundo época e local, e possui como característica comum
apresentar a sociedade mais do modo como aqueles que, em um
sentido amplo, conceberam o livro didático gostaria que ela fosse, do
que como ela realmente é. (CHOPPIN, 2004, p. 557).

Sua presença na formação cultural da sociedade e sua complexidade


viabilizam o estudo dos símbolos e valores circulantes em determinado período,
reiterando, como demonstra Alain Choppin (2002, p.14), sua relevância enquanto
realidade material inscrita na esfera do simbólico e sua importância enquanto sistema
de transmissão de valores, justificando a escolha em estudar o livro didático e seu
valor ideológico pelo seu acesso e circulação.

Essa opção ocorre porque, levando-se em conta a população


efetivamente escolarizada ou escolarizável, são esses livros que
tiveram maior difusão e que, portanto, são considerados como os mais
influentes e mais importantes na formação das mentalidades, ainda
mais porque são destinados aos mais jovens. (CHOPPIN, 2004, p.
557).

As mudanças na produção das obras e a busca por novos recursos


tecnológicos também apresentam impacto sobre nosso objeto, a adoção de livros mais
coloridos e a implementação de diferentes dispositivos gráficos exercem importante
papel na materialidade de nosso suporte, determinando escolhas editoriais que
comportam as representações, por sua vez, atendendo à condicionantes externas que
vão desde a constituição do ensino de história como disciplina e o espaço que lhe é
destinado dentro da divisão de aulas nas instituições escolares, até seus objetivos de
ensino, as prescrições curriculares, e os critérios de avaliação que determinam
significativa parcela da venda deste produto editorial.

A narrativa histórica escolarizada e a representação do passado.

Toda história, acadêmica ou escolar, torna-se concreta no espaço da narrativa,


é por meio dela que pesquisadores e professores refiguram o passado e o dotam de
significado, como aponta Paul Ricouer (1997) é por meio da narrativa que o tempo se
torna acessível para experiência humana, instrumentalizando-o em uma relação
dialética com o presente, criamos o entre lugar do tempo histórico e assumimos o
38
papel de enunciador deste tempo. O trabalho do historiador pertence ao mundo das
narrativas, narramos o passado de forma torná-lo cognoscível, articulando seus
fragmentos e dando-lhe sentido no presente e, assim como na narrativa ficcional,
estabelecemos um modelo para contarmos e darmos significado a este passado.
Partindo dos estudos de Algirdes Julien Greimas (1966), compreendemos que
a narrativa assume sentido na oposição binária que se repete no programa narrativo,
constituindo um “modelo de narrar”, também identificado nas análises de Roland
Barthes (1960) ao apontar a possibilidade de uma estrutura que se repetiria e
configuraria uma forma tomada como “padrão” para se contar uma história. Ainda que
o objeto de análise de ambos os teóricos tenha sido a literatura, podemos observar
na narrativa histórica similaridades com a ficcional, trata-se do uso dos mesmos
recursos discursivos para estabelecer os sentidos do texto, sejam eles sincrônicos ou
diacrônicos, significando o narrado de forma a torná-lo assimilável ao leitor.
O passado é, por essência, diferente do presente e a narrativa como produção
de conhecimento deve encontrar caminhos para fazer um inventário destas
diferenças. Trata-se de demarcar os signos que compõem a enunciação,
organizando-os de forma a construir um todo de sentido que permita ao interlocutor
identificar o discurso que se consolida na dinâmica do texto. Esta perspectiva,
contudo, ultrapassa a esfera da história, colocando-nos no que há de mais humano
na tentativa de organizar o mundo ao seu redor e sua existência nele, o relato daquilo
que se viveu, sonhou ou criou.
A narrativa histórica, diferente da ficcional, tem um referente real, o que lhe
permite a construção de um gênero específico, mas, assim como as ficcionais, opera
segundo um modelo que delineia os caminhos do narrado, interconectando o tempo
histórico e a narrativa na construção de sentido do fazer historiográfico, no qual o
“tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo;
em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da
experiência temporal” (RICOUER. 1994, p. 15). Trazer o relato do passado é
organizar a experiência humana no tempo e conferir pertencimento aos sujeitos no
presente.
Concebendo em nossas análises a narrativa como forma, conforme proposto
por Lawrence Stone (2013, p. 10), “[...] um modo de escrita histórica, mas um modo
39
que afeta conteúdo e método e em contrapartida, deixa-se afetar por eles” e
ampliando essa ideia de construção do conhecimento histórico para o ensino,
percebemos que, assim como para o historiador em seu ofício, também para o
professor, a narrativa constitui a base sobre a qual se engendrará o discurso que dá
vida às figurações da história nas aulas e aproxima os educandos do conhecimento,
constituindo-se parte do discurso sobre o passado.
Para entendermos a narrativa é essencial observar o que se conta, mas
também como se conta, a história e o discurso que se articulam, considerando que a
forma tem um impacto direto no conteúdo que é apresentado e em como este é
representado. Tais especificidades, que não podem ser ignoradas, mobilizam os
saberes da disciplina, da ciência histórica e, também, os saberes pedagógicos e da
docência. Para Ana Maria Monteiro:

Na história escolar percebe-se, assim, que a estrutura narrativa pode


ser reconhecida em uma dupla dimensão: como estrutura discursiva
de expressão do conhecimento histórico e como estrutura de
sustentação da construção didática que tem uma finalidade própria.
(MONTEIRO. 2007, p. 130).

Essa dupla dimensão nos permite vislumbrar as possibilidades de narração do


passado que “encaixam” nos topos narrativos postos pelo modelo estrutural
construído ao longo dos anos pelos livros didáticos de história e consolidado como
forma comum de se contar o passado no ensino de história. Limitando a multiplicidade
discursiva e condicionando estas “outras vozes” a orbitarem a narrativa principal,
presentes, mas não indispensáveis a compreensão do passado que se quer contar.
As obras analisadas apresentam uma proposta de história linear, ainda
bastante vinculada aos “grandes marcos” dos processos de transformação política e
social em uma perspectiva curricular integrada. A referência, questionada em alguns
momentos, ainda é a histórica ocidental europeia.
As escolhas e a distribuição espacial da obra constituem programas narrativos
que sugerem ao interlocutor caminhos de leitura e conferem sentido ao conjunto
verbo-imagético do texto didático. Segundo José Cássio Másculo (2008, p. 19) “o
resultado gráfico desta transformação de textos em livros expressa a intervenção de
seus produtores, (MUNAKATA, 1997), criando protocolos de leitura (CHARTIER,
40
1994) que tentam conduzir os leitores”. Estas trilhas deixadas criam percursos que
podem enfatizar ou minimizar a presença de determinados sujeitos e narrativas.
As escolhas de diagramação, imagens e os múltiplos dispositivos gráficos que
operacionalizam a transformação de textos em livros, incidem diretamente na
estrutura narrativa que nos propusemos a estudar, sendo composta, quase
invariavelmente, por um texto base, acrescido por textos ramificados, geralmente em
boxes marcados pela mudança de cor e letra, conformando um padrão de
“informações suplementares” ao longo da obra, além de mapas, fragmentos e fac-
símiles de documentos diversos, imagens e, na última década, indicações de blogs,
sites, qr codes e complementos digitais dos mais variados.
Estes textos diversos que orbitam a narrativa base, nem sempre concorrem
para consolidar o discurso proposto pelo texto oficial, muitas vezes compõem
discursos desconectados que tem por finalidade atender as demandas e exigências
dos sistemas avaliativos, sobretudo do PNLD, podendo ser considerados ou excluídos
da leitura do capítulo sem alterar o entendimento da sequência narrativa principal.
Consideramos que as obras apresentam uma acentuada tendencia ao
monologismo11, restando às “ramificações” da narrativa principal, os complementos
verbo-visuais e atividades propostas trazerem a possibilidade de dialogismo,
constituindo uma trama intertextual que, contudo, como já mencionado, podem não
dialogar de forma explícita com a narrativa principal, podendo ser suprimidos pelo
leitor, ou desarticulados do conteúdo e, consequentemente, descontextualizados do
restante do tema/período estudado.
Trata-se de uma relação de poder entre os textos que se articulam de forma a
subordinar o passado “menor” ao passado de relevância para a compreensão da
história, a tensão entre as narrativas propostas evidencia o jogo de forças que
envolvem seus agentes diretos (escritores, diagramadores, editores) e indiretos
(prescrições curriculares, avaliadores, mercado consumidor) e as ideologias que
perpassa os discursos e respondem ao contexto histórico e social de produção.

11 Para Mikhail Bakhtin, segundo Bezerra (2005) os textos monológicos seriam o modelo em que
predomina o autoritarismo e acabamento, ao passo que os textos polifônicos predominariam a realidade
em formação, a inconclusibilidade e o dialogismo.
41
Trazendo o texto para o plano de análise do discurso, evidenciamos a
necessidade de considerar como os saberes (escolares e acadêmicos) se articulam
na produção do socialmente aceitável, como ocorre sua apropriação como aponta
Chartier (2002, p.160), e como estes saberes constroem uma visão sobre os
libertários, percorrendo as táticas que se instituem em uma temporalidade e espaço
específicos (CERTEAU. 2008, p. 40).
A produção discursiva, fruto de uma enunciação que determina e é determinada
pelas relações de poder que a antecedem e transpassam a produção do livro didático,
consolida-se na unidade de seu objeto e como este é trazido do plano da narrativa
para o do discurso. Forma, modo e discurso são articulados na produção de uma
imagem daquilo de que se fala, determinando a permanência ou impermanência de
conceitos e ideias, construção de identidades e saberes visíveis sobre o sujeito.
As narrativas comportam os discursos que condicionam as representações,
dão-lhes organicidade e veracidade dentro do passado descrito no livro didático. Cabe
aqui compreendermos que uma mesma narrativa pode comportar diferentes
representações de fatos e sujeitos, mas, todas concorrendo para uma interpretação
da leitura que evidencia as estratégias e dinâmicas que constituem um todo de
sentido, determinado pelas relações de poder que se efetivam no mundo simbólico,
considerando que as representações, em nenhum de seus níveis, serão a teoria,
pessoa ou fato histórico ali representado (CHARTIER, 2011).
Tomamos as representações circunscritas à forma narrativa como produtos da
sociedade, com a qual estabelece uma relação dialética, postas nos livros didáticos
de história, reportam ao real, sendo, como afirma Roger Chartier (2011), realidades
em si mesmas, compostas socialmente, condicionantes e condicionadas pela
conjuntura histórica. Assim sendo, a concepção de anarquismo proposta no ensino
de história conforma a ideia de anarquismo posta pela sociedade e ao mesmo tempo
é estabelecida por ela, sem esquecermos, contudo, que toda representação tem em
si um destinatário e finalidade própria.

[...] não existe história possível se não se articulam as representações


das práticas e as práticas da representação. Ou seja, qualquer fonte
documental que for mobilizada para qualquer tipo de história nunca
terá uma relação imediata e transparente com as práticas que designa.

42
Sempre a representação das práticas tem razões, códigos, finalidades
e destinatários particulares. Identificá-los é uma condição obrigatória
para entender as situações ou práticas que são o objeto da
representação. (CHARTIER. 2011, p. 84).

Trabalhar as representações dentro da narrativa histórica escolarizada coloca


o problema de compreender seus limites e o temido flerte com a literatura, fazendo-
nos retomar Paul Ricouer, mediado pelo olhar de Roger Chartier (2011, p. 24), para
quem as representações são objetos e operações do fazer historiográfico, produtos
sociais em si mesmos. Portanto, as representações dos libertários expostas nas
páginas dos livros didáticos de história, elaboradas na dinâmica de apropriação de
uma determinada visão sobre o movimento ácrata e sua (re)figuração na criação de
um novo produto cultural, pensado para leitores diferentes do público das pesquisas
tomadas como referentes, são em si constructos simbólicos que evidenciam as
disputas e ideologias que perpassam a validação e construção do passado.

Os anarquistas vão a universidade: circulação de pessoas e saberes

Ao propormos pensar a representação dos libertários no ensino de história e a


circularidade dos saberes na constituição do conhecimento escolar, tornou-se
imperativo entender a sua presença na pesquisa acadêmica como possibilidade de
investigação das relações estabelecidas entre o anarquismo na historiografia e na
narrativa histórica escolarizada. Portanto, este levantamento e análise têm como
objetivo respaldar o estudo das apropriações feitas pelos materiais didáticos e
paradidáticos, não tendo o intento de apresentar um quadro totalizante das pesquisas
acadêmicas.
Ao idear nosso recorte para o levantamento das teses e dissertações,
delimitamos nosso período de trabalho a partir de 1970, o que se justifica ao
considerarmos o desenvolvimento dos cursos de pós-graduação no país,
consolidados em 1965 através do Parecer Sucupira do Conselho Federal de
Educação e da Reforma Universitária de 1968.
Mediante a pesquisa por palavras chaves nos bancos de teses e dissertações
da CAPES, USP, UNICAMP, UNESP, UFF, UFRJ, UFRRJ, UNIRIO, UERJ
43
UNESP, PUC, UFMG, UFBA, UFC, UFPE, UFRGS, UFSC, UFPR e UEPG,
encontramos um total de trezentos e vinte e seis trabalhos produzidos entre o final da
década de 1970 e 2021 que traziam o anarquismo como objeto de estudo em
diferentes áreas do conhecimento.
O crescimento do interesse pelo tema pode ser compreendido ao observarmos
as mudanças conjunturais das últimas décadas, a partir do ressurgimento de ideias e
princípios anarquistas revisitados por movimentos artísticos e sociais e, também,
pelas mudanças políticas de ordem mundial que, de certa forma, impulsionaram sua
“redescoberta” pelas ciências humanas. Para Alysson Bruno Viana, a retomada do
interesse pelos estudos libertários está ligada diretamente as mudanças
sociopolíticas.

O novo folego do anarquismo e do movimento ácrata em si,


observável, sobretudo, a partir do fim dos anos sessenta, em que a
emergência dos movimentos contraculturais, pacifistas e as críticas a
burocracia do Leste Europeu, bem como a chamada modernidade,
constituíram eventos de grande relevância” (VIANA, 2002, p.21).

Se no contexto mundial o anarquismo ganha folego na década de 1960 com


grupos diversos que, mesmo não se identificando como anárquicos, trazem ideias
fulcrais à ideologia libertária, no Brasil, os anos 60 são marcados pelo cerceamento
da liberdade nas mãos da Ditadura Civil-Militar e o desmantelamento dos grupos
políticos e ideológicos que se opunham a ela, adiando sua “redescoberta” pela
pesquisa acadêmica, que se dará anos depois, com visível aumento a partir de 1980,
o que dialoga com o contexto interno das lutas pela redemocratização e a influência
das mudanças de paradigmas na história.
Considerando o período de regulamentação dos programas de pós-graduação
no país, percebemos que os anarquistas nunca estiveram ausentes da academia,
obviamente o interesse pelos estudos ácratas não representou e, talvez ainda hoje
não represente, um grande volume se comparado a temáticas que orbitam outras
teorias contemporâneas ao anarquismo, mas o interesse por recuperar seu passado
tem se mostrado cada vez maior, podemos perceber uma trajetória ascendente nas
pesquisas, conforme nos mostra o gráfico abaixo:
44
Trabalhos produzidos por décadas
180

160

140

120

100

80

1970 1980 1990 2000 2010 2020

Esse aumento do interesse pelo movimento libertário seguiu uma linha que
ainda hoje tende a delimitar o campo de pesquisa, desencadeada pelo surgimento dos
primeiros cursos de pós-graduação nas universidades do sudeste que concentraram
as produções até 1990, década dos primeiros trabalhos defendidos em universidades
das regiões sul e nordeste. Este recorte geográfico da presença dos cursos de
mestrado e doutorado acabou por privilegiar o estudo das ações anarquistas do
Sudeste, polo de maior concentração de dissertações e teses, conforme podemos
visualizar no gráfico abaixo:

Trabalhos Produzidos por Região

Sul
Sudeste

Norte
Nordeste
Centro-oeste
0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80%

45
A concentração das pesquisas nas regiões sudeste e proporcionalmente na
região sul, reflete nos objetos e recortes temporais que, com poucas exceções,
mantém uma abordagem circunscrita a estas áreas geográficas, escolha que se
reitera na produção do conhecimento histórico escolarizado e na memória social sobre
os anarquistas.
A fim de entendermos as características dos trabalhos acadêmicos e sua
relação dialógica com as produções escolares, iremos dedicar maior atenção às
pesquisas da região sudeste, por ser a de maior representatividade no volume e
recorte temático. Dentre as instituições que abrigaram a maior quantidade de
pesquisas, destacam-se a Universidade de São Paulo, Universidade Estadual de
Campinas e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como podemos observar
no gráfico abaixo:

O aumento das pesquisas a partir da década de 1980 e sua concentração por


regiões e instituições como demonstram os gráficos, dialogam com o contexto de
acesso a documentação, formação de grupos de estudo e pesquisa sobre a história
dos libertários e, não menos importante, as novas perspectivas da produção
historiográfica.
Foram bastante significativos para o movimento de recuperação do passado
ácrata, a criação do Arquivo Edgard Leuenroth em 1974, com o recebimento dos
documentos reunidos por este militante anarquista durante sua vida pelo Instituto de

46
Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP; a fundação do ASMOB (Archivio Storico
Del Movimento Operaio Brasiliano) na Itália em 1978, por exilados políticos brasileiros,
responsável pela guarda dos arquivos do ex-militante anarquista e membro fundador
do PCB, Astrojildo Pereira. Em 1994 os documentos foram repatriados e entregues
para UNESP, passando a compor o acervo do Centro de Documentação e Memória;
e a reorganização do Centro de Cultura Social de São Paulo que possui um conjunto
significativo de materiais sobre o movimento anarquista.
As pesquisas históricas sobre o anarquismo no Brasil podem ser separadas,
conforme aponta Viana (2002), em três agrupamentos distintos: entre 1950 e 1960,
momento de produção de memórias como as de Everardo Dias, Astrojildo Pereira e
Octávio Brandão. Os relatos, sobretudo dos ex-militantes anarquistas, levam
a construção de uma ideia de anarquismo como reflexo de uma industrialização tardia
e insuficiente, justificando sua presença nas primeiras décadas do século XX como
uma ideologia menor e desvalorizando sua ação12.
A década de setenta inaugura uma nova perspectiva nas pesquisas, marcadas
pela forte presença da abordagem sociológica e herdeira das produções militantes,
reforça a origem imigrante da classe operária e sua espacialização entre São Paulo e
Rio de Janeiro, eixo que se cristaliza como definidor da regionalização das relações
sociais nos estudos da formação da classe operária e, por conseguinte, das ideologias
que compõem seu processo histórico.
Esses estudos buscam enfatizar a origem imigrante dos trabalhadores
anarquistas e seu pressuposto despreparo para pensar as relações econômicas e
políticas, caracterizando os operários da Primeira República como estrangeiros assim
como sua ideologia, que só alcançam ascensão e destaque devido à baixa qualidade
da industrialização nacional e de uma classe operária deficiente, fruto de um processo
ainda não consolidado de inserção no capitalismo industrial, pré-requisito, na
perspectiva teórico-ideológica marxista, para organização do operariado. Portanto, se
não há ainda as condições necessárias ao surgimento da classe trabalhadora

12Os trabalhos memorialísticos desde período acabam por servir de escopo aos estudos da construção
da identidade da classe operária brasileira. Ressaltando que alguns deles, como Astrojildo Pereira e
Octavio Brandão farão parte da fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1922 e, seguindo
uma prática ideológica comum do partido, buscaram diminuir e se distanciar dos ideais ácratas,
constituindo uma crítica sectária aos libertários.
47
enquanto agente da revolução, as lutas desse período são frutos da agitação
espontânea e desorganizada dos sujeitos históricos.
Partindo da perspectiva de Georges Haupt, Viana (2002, p. 55) conclui que
ocorre com as produções dos anos setenta o mesmo que com as tentativas de
identificação e construção da classe operária pelos ex-militantes anarquistas
fundadores do PCB: ocultação e manipulação do passado em uma luta ideológica pela
memória histórica. Excluindo ou limitando as contribuições que não possam ser
explicadas a partir do modelo de organização hierárquica e centralizada e que não
caibam na estrutura narrativo-explicativa da história, minimizando o papel dos sujeitos
históricos que se mobilizavam sob diversas correntes teórico-ideológicas que
coexistiam no período13. A ação destes trabalhadores, excluídos do corpo social e
político, definida como débil e violenta, seria transformada com o desenvolvimento da
indústria14
Para Daniel Aarão Reis Filho (1997), estes trabalhos dão preferência a contar a
história pelo olhar comunista, mostrando uma tentativa de silenciamento das
contribuições libertárias, permitidas somente em ações pontuais, esvaziando do caráter
social sua militância, sobretudo, fora do contexto direto do sindicalismo revolucionário.

A rigor, um balanço desta historiografia aponta para uma preferência


muito clara em relação a história do Partido Comunista Brasileiro
(PCB) e dos comunistas em geral; também os anarquistas foram muito
contemplados e têm sido até hoje, embora menos. Sobretudo nos
anos 70, houve uma série de estudos importantes de resgate da
trajetória e da participação dos anarquistas, do movimento anarquista
do Brasil. Mas de uma forma geral, tanto em termo das autobiografias,
dos testemunhos, como em termos dos estudos acadêmicos, há uma
preferência muito destacada pela trajetória do Partido Comunista e
das organizações comunistas anexas ou decorrentes de cismas ou
dissidências do próprio Partido Comunista. (REIS FILHO, 1997, p.22)

13 O período da Primeira República vê na formação da classe operária a ação de diversos


agrupamentos, contendo grupos de viés anarquistas, sindicalista revolucionário, católica e reformistas
coexistem neste momento.
14 Ao nos depararmos com essa abordagem, somos imediatamente remetidos à produção dos saberes

históricos escolarizados, principalmente as obras produzidas até a década de 1990, nas quais podemos
vislumbrar indícios das estratégias de apropriação deste “modelo estigmatizador” dos anarquistas nas
páginas escolares, que será mais bem detalhada no decorrer da pesquisa.
48
A crítica a essa vertente de análise, denominada por Kazumi Munakata (1982,
p.4) de “Sociologia do Trabalho”, toma forma na década de 1980 juntamente com
novas abordagens teóricas e metodológicas nos estudos históricos, promovendo uma
reavaliação da classe operária e a renovação dos trabalhos acadêmicos.
Para Kazumi Munakata, as análises baseadas na sociologia do trabalho podem
ser consideradas reducionistas, porque entendem as determinações estruturais como
diapasão para a compreensão dos diversos aspectos da composição da classe
operária, que leva a separação do trabalhador de sua própria história. Em sua análise,
Munakata propõe que as transformações da classe trabalhadora não derivam
mecanicamente das transformações estruturais, mas são resultado de múltiplas
variáveis nas quais “as relações de produção não antecedem uma sociedade, mas
constituem as relações de produção em e de uma sociedade” (MUNAKATA. 1984,
p.4).
As transformações na historiografia brasileira que marcaram as décadas de
1980 e 1990, com a emergencia da história cultural enfatizando grupos antes
silenciados, é tributaria, entre outros, aos esforços dos historiadores e professores
Edgar Salvadori de Decca e Carlos Alberto Vesentine, que inauguram a década de 80
com pesquisas e publicações que trazem uma nova perspectiva de análise e
construção da narrativa histórica, abrindo espaço para a história dos esquecidos, a
história dos vencidos, dando voz a novos sujeitos históricos. Cabe ressaltar que Edgar
de Decca também figura como orientador em teses e dissertações que trabalham o
anarquismo, como a pesquisa de Margareth Rago.
A partir da década de 1980, os trabalhos sobre o movimento libertário entram
em um novo momento, os anarquistas e suas ideias são observados sob novas
perspectivas na historiografia nacional. O impacto das contribuições teóricas de
Edward. P. Thompson e Michael Foucault faz surgir novos objetos e abordagens
conceituais que passam a compor as pesquisas e impulsionam, sob o signo da
reavaliação, a reabilitação do anarquismo na produção acadêmica.
Para Viana (2002, p. 66), as mudanças epistemológicas e metodológicas da
pesquisa historiográfica brasileira que, afastando-se das sínteses nacionais/regionais,
coloca sob os holofotes narrativas de grupos específicos, operacionaliza a

49
fragmentação dos estudos sobre a classe operária e possibilita a insurgência de outros
atores.
Destacamos dentre os trabalhos efetuados na década de 1980, as teses de
Miriam Lifchitz Moreira Leite, Caminhos de Maria Lacerda de Moura: contribuição a
história do feminismo no Brasil15 e de Flávio Venâncio Luizetto16, Presença do
anarquismo no Brasil: um estudo dos episódios literários e educacionais, defendidas
em 1983 e 1984 na Universidade de São Paulo (USP) e as dissertações de Margareth
Rago, Sem fé, sem lei, sem rei: liberalismo e experiência anarquista na República e
de Regina Horta Duarte, A imagem rebelde: a trajetória libertária de Avelino Foscolo,
ambas produzidas na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) em 1984 e
1988, respectivamente.
Os quatro autores abrem uma nova perspectiva na abordagem dos anarquistas
pela história, articulando-se à novas formas de construção de seus objetos que lhes
permite deslindar as particularidades de uma história que ultrapassa o movimento
operário, mesmo quando ainda versa sobre ele, constroem um panorama do
anarquismo como ideologia constituinte do ser social de grupos e sujeitos históricos,
enfatizando suas vivências e resistências, a ideia de experiência se mostra central,
tensionando a naturalização entre as relações de produção, a estrutura social e a
cultura. Como aponta Alysson Viana (2002, p. 80), a presença dos libertários, em sua
maioria, dá-se atrelada ao movimento operário, há, contudo, uma diferenciação da
abordagem dos trabalhadores efetuadas nas décadas anteriores, abrindo-se um novo
leque de perspectivas, apoiado, como já mencionamos, nas mudanças teórico-
metodológicas da pesquisa histórica e nas nuances da História Cultural.
Os anos noventa marcam o crescimento dos trabalhos sobre o anarquismo,
intensificando a multiplicidade de enfoques iniciada na década anterior e que se
perpetuará pelas próximas. Propostas de análise em novas áreas do conhecimento

15 A obra de Miriam Lifchitz Moreira Leite teve boa recepção nos meios militantes, levando à exposição
e debate de seu trabalho no Centro de Cultura Social de São Paulo em 1985, conforme podemos
verificar na programação divulgada em um dos boletins de 1985. Disponível em:
<http://ccssp.com.br/arquivos/boletins/boletim1985_02.pdf >.
16 Assim como Miriam Lifchitz Moreira Leite, Flávio Venancio Luizetto também foi presente nas ações

e debates sobre o anarquismo no CCSSP, conforme podemos verificar na programação divulgada em


um dos boletins de 1985, na qual vê-se o encontro dele e Jaime Cubero para um debate sobre o
“Anarquismo hoje no Mundo. Disponível em: <
http://ccssp.com.br/arquivos/boletins/boletim1985_01.pdf >.
50
buscam reconstruir o passado libertário e reavaliar os contextos em que se insere, a
Educação ao lado da História e Ciências Sociais concentram a maioria das pesquisas.
A questão das escolas e pedagogia libertária ganha força e diversos
pesquisadores passam a se dedicar a elaboração de um panorama histórico-
educacional desta faceta do movimento ácrata. Dentre estes trabalhos, selecionamos
três pesquisas da Faculdade de Educação da UNICAMP, os trabalhos de Silvio
Donizetti de Oliveira Gallo, Educação anarquista: por uma pedagogia do risco,
mestrado defendido em 1990, sua tese de doutorado, Autoridade e a construção da
liberdade: o paradigma anarquista em educação, concluída três anos depois e a
dissertação de José Damiro de Moraes, A Trajetória Educacional Anarquista na
Primeira República: das Escolas aos Centros de Cultura Social de 1999, por trazerem
o conceito e a preocupação dos anarquistas com a educação e, em especial a
pesquisa de mestrado de José Damiro de Moraes que, para além da escola formal,
se ocupa de outros lugares de vivência17 e educação anarquista.
Na área de história, destacamos as pesquisas de Edilene Terezinha Toledo, O
Amigo do povo: grupos de afinidade e a propaganda anarquista em São Paulo nos
primeiros anos deste século, mestrado concluído em 1993, na Unicamp, e o de Waldir
Paganotto, Imprensa Alternativa e o anarquismo: “O Inimigo do Rei” (1977-1988)
defendida em 1997, na UNESP.
Partindo da imprensa libertária como documento histórico, ambos buscam, por
meio da análise atenta das fontes, compreender as relações de produção e
circularidade das ideias estampadas nas páginas dos periódicos. Na pesquisa de
Paganotto, ao trabalhar com o jornal O Inimigo do Rei, propõe-se uma alteração
espaço- temporal importante para compreendermos outras realidades do movimento
anarquista18, nos dois trabalhos percebemos a vinculação com as ideias da Nova
História.

17 A importante relação dos libertários com a educação ainda é um ponto raramente explorado pelo
conhecimento histórico escolarizado, assim como, de forma geral, a luta pelo direito a educação e os
interesses imbricados nos processos políticos e sociais que modularam e modulam a escolarização no
Brasil são negligenciados pelo ensino de história.
18 Ao pensarmos o anarquismo representado no ensino de história, e em dada medida, também na

produção acadêmica, percebemos que ainda existe uma supremacia dos recortes temporais que
privilegiam o movimento trabalhista do começo do século XX e geográficos que enfoquem as práticas
centradas nas regiões sul e sudeste, as ações e organizações difundidas por outras regiões, como
propõem o trabalho de Paganotto, permanecem silenciadas.
51
Os trabalhos da década de 1990, ao relacionarem-se epistemologicamente
com as linhas de pesquisa de História das Mentalidades e da História Cultural, abrem
caminho para projetos voltados para a circulação das ideias e práticas anarquistas,
assim como novas perspectivas sobre o movimento operário e sua relação com as
propostas libertárias. Militantes como Emma Goldman, Fábio Luz, José Oiticica e
Jaime Cubero tornam-se objetos de estudo e suas trajetórias servem de caminho para
a refiguração do passado ácrata.
Concentrando mais de 60% dos trabalhos identificados em nossa pesquisa, os
anos 2000 mostram um movimento crescente e bastante significativo de estudos
sobre o anarquismo, a consolidação de linhas de pesquisas ligadas a Nova História
Cultural e seus desdobramentos fazem emergir novos olhares sobre o movimento
ácrata, estudos com enfoque nas representações sociais e no movimento libertário, a
circulação de ideias e sujeitos passam a integrar o conjunto de temáticas abordadas.
Dentre eles selecionamos as pesquisas de Angela Maria Roberti Martins,
“Cancioneiro Libertário”: das ideias às representações. Uma análise do anarquismo
na perspectiva do gênero, mestrado defendido na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) em 2000 e sua tese de doutorado, Pelas páginas libertárias:
anarquismo, imagens e representações, desenvolvido na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP) em 2006. Ambos trazem uma abordagem voltada
para a Nova História Cultural; incorporando o conceito de representação como prática
social em sua análise, apresenta uma nova perspectiva às pesquisas sobre o
anarquismo.
Também destacamos os trabalhos de Alexandre Ribeiro Samís, Clevelândia
do Norte: anarquismo, repressão e exílio interno no Brasil, mestrado obtido junto a
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) em 2000 e de Edilza Joana Oliveira
Fontes, Preferem-se portugueses(as)": trabalho, cultura e movimento social em Belém
do Pará (1885-1914), doutorado defendido em 2000 na Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP). Ambos os trabalhos abordam direta ou indiretamente o
movimento operário do começo do século XX, porém, trazem novos recortes e
documentação. Samis nos apresenta o campo penal de Clevelândia do Norte no
interior do Amapá e a repressão aos trabalhadores e presos políticos, dentre os quais,
os anarquistas. Fontes, por sua vez, traz dois pontos pouco estudados até aquele
52
momento, a presença de anarquistas de origem portuguesa e sua participação
nos movimentos sociais no norte do país.
A partir de 2010, nota-se a intensificação de propostas que buscam pensar o
anarquismo e suas relações internacionais, em pesquisas que têm como objeto a
trajetória e itinerância de militantes libertários, as trocas teóricas com a circulação de
ideias, cartas e publicações em diferentes jornais e periódicos, marcam um novo
momento na produção historiográfica sobre os libertários. Dentre os trabalhos que se
voltam para o internacionalismo e a circulação de ideias nos meios ácratas,
destacamos a dissertação de Rafael Viana da Silva, Um anarquismo latino-americano:
estudo comparativo e transnacional das experiências na Argentina, Brasil e Uruguai
(1959- 1985), produzida na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ),
em 2018.
Por fim, não poderíamos deixar de mencionar as pesquisas desenvolvidas no
âmbito do ProfHistória: A Colônia Cecília enquanto elemento de análise para a
compreensão da história local a partir do jornal Gazeta de Palmeira: Um recorte dos
anos 1990-1991/2003/2015-2016 de Rafael de Castro Mehret, produzida na
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) em 2018 e Entre a memória e o
esquecimento: um percurso sobre o anarquismo no Rio de Janeiro de Henrique Sa
Amaral, defendida em 2020 na UERJ. Assim como em nosso trabalho, os autores se
propõem a pensar a presença do anarquismo no ensino de história. Mehret,
trabalhando com o conceito de história local, traz a questão da apropriação dos
marcos de memória pelo turismo, o discurso presente no jornal Gazeta de Palmeira e
suas possibilidades de uso em sala de aula. Já Amaral nos oferece uma proposta de
experienciar a cidade em um “tour” pelos lugares de memória do movimento
anarquista, como forma de recuperação histórica do passado esquecido pelo ensino.
Os trabalhos mencionados representam as múltiplas abordagens e temáticas
contempladas pela pesquisa histórica sobre o anarquismo e contribuem para a
construção de um panorama das produções acadêmicas. Tal procedimento se faz
necessário para que possamos consolidar e qualificar nosso corpus documental, com
a finalidade de analisar as relações de apropriação dos saberes e sua circularidade.
Os anarquistas vão à universidade e não apenas como objetos de pesquisa,
mas, como sujeitos na construção da memória e da historiografia sobre os
53
movimentos ácratas. A já conhecida preocupação com a instrução de seus militantes,
acabou por impulsionar um grande número de coletivos que se ocupam de grupos de
estudo das ideias anarquistas e, também, de sua atualização e relação concreta com
o mundo contemporâneo, prática que tem levado um número considerável de
libertários a buscarem o ingresso em instituições de ensino e pesquisa, para, partindo
de sua vivência no universo ácrata e do conhecimento adquirido no mundo acadêmico,
reescrever a história do anarquismo.
Ao nos debruçarmos sobre a produção acadêmica, podemos perceber a
intersecção entre as diferentes instâncias de conhecimento. A ocupação destes
espaços pelos sujeitos que transitam entre os coletivos, a militância e pelas
universidades, sobretudo nas últimas duas décadas, pode ser considerada como um
dos fatores do significativo aumento das pesquisas e diversidade temática, os
libertários passam a ocupar espaço nas universidades falando sobre a história
anarquista e as experiências que haviam sido esquecidas pela historiografia.
A circulação de conhecimentos se dá pela circulação de pessoas, mas também
por eventos e materiais que nascem dos coletivos e ocupam espaços para além dos
círculos ácratas, como colóquios, traduções e publicações de editoras libertárias de
textos clássicos, pesquisas, memórias e relatos produzidos por anarquistas e
estudiosos do anarquismo. Provavelmente, todos nós que já desejamos ler os autores
tradicionais do movimento libertário, deparamo-nos com o trabalho de tradução de
Plínio Augusto Coêlho, militante, tradutor e escritor libertário.
A ação de editoras anarquista está presente ao longo da história dos
movimentos e ideias ácratas, traduzindo e publicando textos sobre o anarquismo e
outros, que sejam considerados pertinentes a ideia que anima estes
empreendimentos. Podemos elencar muitas editoras que circulam entre os meios
militantes e acadêmicos, como a Editora Achimé, responsável pela publicação da
História do Anarquismo no Brasil, Vol. 2 e a Editora Entremares, responsável pela
publicação do vol. 3.
Diversos pesquisadores como Ângela Maria Roberti Martins e Margareth Rago
tiveram artigos ou entrevistas publicadas em jornais/revistas/sites anarquistas, muitos
trabalhos acadêmicos foram publicados por editoras libertárias. Pesquisas de

54
mestrado e doutorado foram divulgadas por sites anarquistas19, grupos de estudos
das práticas libertárias se formaram dentro das universidades que, por vezes, acolhem
eventos gestados fora do ambiente acadêmico20.
Diante desta inter-relação entre a universidade e a militância, consideramos
necessário refletir sobre a circulação de conhecimentos e sujeitos percebendo a
intersecção entre as instâncias de conhecimento com a ocupação destes espaços por
sujeitos que transitam por ambos, companheiros como Rodrigo Rosa da Silva,
atualmente professor colaborador na Universidade Estadual do Paraná , militante ativo
dos debates e da construção do anarquismo, um dos idealizadores da Feira
Anarquista de São Paulo e membro da banda punk Ordinária Hit; a professora e
pesquisadora Patrícia Lessa dos Santos, docente na Universidade Estadual de
Maringá; Alexandre Ribeiro Samis pesquisador e professor aposentado do Colégio
Pedro II; Ingrid Ladeira e Bruno Benevides, idealizadores da série de podcast
Militantes Libertárias e Libertários, disponível no História Presente e da série de
entrevistas Conversas Libertárias, transmitidas pelo canal Aqui se faz História no
Youtube, ligados ao Laboratório de Pesquisa e Práticas de Ensino (LPPE) da UERJ e
ao Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Anarquismo e Cultura Libertária (NEPAN).
Como mencionado, muitos anarquistas optam, além de sua ação e circulação
na produção cultural militante, por participarem ativamente nos programas de
graduação e pós-graduação das universidades, professores e pesquisadores
dedicados ao tema, são, em grande parte, também ligados a ideologia ácrata, como
percebemos pela proliferação de grupos de estudo dentro das instituições formais de
ensino dedicados a pesquisa libertária.

19 A Biblioteca Terra Livre, assim como outros coletivos têm se dedicado a divulgação das pesquisas e
produções anarquistas, disponibilizando-as virtualmente. Disponível em
https://bibliotecaterralivre.noblogs.org/biblioteca-virtual/teses/ . Acessado em 20 jan. 2022.
20 22 Dentre os grupos de estudo sobre anarquismo podemos citar o Grupo de Estudos de Anarquismo

da UFF, o Nu-Sol ligado à PUC-SP e o GEPA (Grupo de Estudo e Pesquisa Anarquista) na UNICAMP,
valendo ressaltar a presença já característica do ST sobre Anarquismo nos Simpósios da Anpuh. Como
exemplos desta imbricada circulação e ocupação dos espaços, citamos o Colóquio Internacional Mikhail
Bakunin e AIT, organizado em São Paulo, no ano de 2014, pela Biblioteca Terra Livre e sediado na
Universidade de São Paulo e, o Colóquio Internacional Piotr Kropotkin, realizado pela Faculdade de
filosofia letras e ciências humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) em 2021.
Disponíveis em: https://coloquiobakuninait.wordpress.com/ < http://www.fflch.usp.br/8194>. Acessado
em 20 jan. 2022
55
Para exemplificarmos a circularidade dos saberes e pessoas, traremos,
brevemente, a importante relação da militância anarquista, sua produção cultural e os
meios acadêmicos; utilizaremos o histórico da Feira Anarquista de São Paulo21.
Iniciada em 2006, por iniciativa do coletivo Biblioteca Terra Livre, a Feira Anarquista
de São Paulo, está em sua décima segunda edição (com um hiato de cinco anos entre
a primeira e a segunda), trazendo em sua programação temáticas que vemos refletir
as pesquisas acadêmicas.
Assuntos como a Guerra Civil Espanhola, a CNT, educação e imprensa
anarquista e o movimento Ocuppy, marcam as três primeiras edições (2006, 2011,
2012); a mulheres e a literatura anarquista começam a ganhar maior espaço de 2013
em diante, assim como outras questões como o internacionalismo, a circulação de
ideias e pessoas, o cinema, objetos e recortes que se vem refletidos e refletem a
circularidade dos saberes que marca a produção acadêmica e militante, incidindo, de
certa forma, na produção do saber histórico escolarizado.
As editoras anarquistas, que constituem um inestimável braço da ação ácrata
e da divulgação de suas ideias, sempre presentes nas Feiras Anarquistas de São
Paulo e outros encontros similares pelo país e mundo, são responsáveis por parte
significativa da publicação dos trabalhos dedicados aos libertários, traduções,
pesquisas e projetos de livros coletivos são acolhidos por estas editoras, divulgados
por meios virtuais e em momentos de encontro de pessoas e ideias, como um elixir
para a sobrevivência da liberdade. Trata-se de uma realidade intercambiável entre a
formalidade das universidades e a descontração e troca de experiência destes
encontros, abertos a todos que desejem participar.
Esta permeabilidade que marca a circulação entre a rua e a academia, parece-
nos representativa dos caminhos pelos quais se dão a circulação do conhecimento
histórico e da memória do movimento ácrata, corroborando nossa hipótese de
circularidade dos saberes que se fará presente na produção didática que toma como
referência as pesquisas acadêmicas e as delimitações das prescrições curriculares e
parâmetros avaliativos.

21
É possível conhecer o histórico das feiras organizadas, assim como sua programação através do
site. https://feiranarquistasp.wordpress.com/
56
A “reabilitação” do anarquismo, tanto acadêmica como nas ruas, demonstra a
importância de suas ideias no desenvolvimento da sociedade contemporânea, desde
movimento sociais até produções artísticas e teóricas, como aponta Margareth Rago
(2015) ao pensar as possíveis relações entre o anarquismo e o pensamento de Michel
Foucault, mostrando-nos que se tornaria incompleta a representação da sociedade
contemporânea sem pensarmos a presença do anarquismo e suas ramificações.
Assumindo que o estudo das “representações” considera que as estruturas do
mundo social não são dadas a priori, mas historicamente construídas, pensar a
relação entre o saber histórico acadêmico e o escolarizado, problematizando as
representações forjadas nas narrativas escolares por meio das práticas de
apropriação, é lidar “com a problemática do mundo como representação, moldado
através das séries de discursos que o apreendem e o estruturam.” (CHARTIER, 1990,
p. 23) e que se interconectam na dinâmica de apropriação e significação dos saberes
e suas representações.

57
Capítulo II: A representação dos libertários entre barricadas, greves, jornais e
coquetéis molotov.

Iremos apresentar neste capítulo as representações do anarquismo nos livros


didáticos publicados entre 1990 e 2020, as obras selecionadas se constituem na
intersecção do processo de apropriação e ressignificação dos conteúdos e conceitos
da historiografia e das transformações da concepção de escola, currículo e finalidade
do ensino de história das últimas quatro décadas, marcados pelos debates do
contexto de redemocratização e, por conseguinte, da reavaliação e redirecionamento
da disciplina, materializados nas prescrições curriculares e no alinhamento das
políticas públicas educacionais com os interesses internacionais.
As representações estão divididas em quatro categorias analíticas,
considerando seu impacto e desenvolvimento no programa narrativo: representações
não valorativas, valorativas positivas, valorativas negativas e inexplícitas, que serão
detalhadas e exemplificadas no decorrer do capítulo e constituem a base de análise
desta pesquisa. Também serão observados os topos narrativos recorrentes nos
discursos presentes no LDH sobre o movimento e ideologia ácrata: Teorias políticas
e sociais do século XIX (o anarquismo oposicionista), Organizações e movimento
operário nos séculos XIX e XX (o anarquismo como influenciador estrangeiro) e
Personagens anarquistas (a personificação do anarquismo). Dentre as obras
analisadas, poucas apresentaram os libertários e o movimento anarquista como
sujeito histórico em outros arranjos e temporalidades, sendo considerados como
exceções que serão mencionadas no decorrer da dissertação, mas que não
configuram o padrão discursivo recorrente e, portanto, contribuem de forma mais
discreta para a construção de uma ideia de anarquismo no ensino de história.
Identificamos um conjunto de recursos verbo-visuais comuns ao se tratar dos
ácratas nos livros didáticos, dentre os quais a presença de fac-símiles de jornais
anarquistas, nem sempre identificados como tais, compõem parte significativa do
conjunto imagético presente nas obras, assim como o símbolo do A estilizado dentro
do círculo e imagens retratando os teóricos Mikhail Bakunin e Pierre Joseph-
Proudhon, este nem sempre ligado ao anarquismo, sendo muitas vezes associado ao
socialismo utópico. Também é recorrente a presença nas bibliografias e/ou indicação

58
para o professor do livro O que é anarquismo, quinto livro da coleção Primeiros
Passos, publicado na década de 1980 e que será analisado em Uma visão distorcida:
o que é o anarquismo.
Consideramos importante não nos abstermos de relacionar um significativo
conjunto de ausências temáticas: as tentativas de organização de sociedades
anarquistas como a Colônia Cecília, o Território Livre Ucraniano, a Freetown
Christiania, ou a Região Autônoma de Shinmin; as ações voltadas à constituição de
instituições escolares (que surge de forma bastante pontual), a Guerra Civil
Espanhola (que nas poucas vezes em que foi representada nos livros didáticos,
excluiu a presença anarquista de sua narrativa) e a organização da CNT-FAI, a
importância da participação ácrata em contextos como a Revolução Russa, a
denúncia da irracionalidade da guerra e defesa do pacifismo, a inegável influência
libertária em correntes artísticas de contracultura, o movimento beat e movimentos
de contestação e resistência contemporâneos como, Maio de 68, Movimento Ocuppy,
Movimento Zapatista, a Revolução de Rojava etc. Tal invisibilidade aponta para um
processo de apagamento do anarquismo como ideologia presente na sociedade,
condicionando-o à “peça de museu”, deslocada da realidade contemporânea, como
aponta Marcio Luiz Carreri (2008).

O anarquismo como sujeito: categorias de representação

Ao propormos pensar a representação do anarquismo no ensino de história por


meio da análise dos livros didáticos, em uma relação de apropriação e circularidade
dos saberes, vimo-nos impelidos a construir um recorte temporal que nos permitisse
contemplar as permanências e mudanças em um quadro conjuntural de
democratização do ensino e das políticas de investimento e acesso do educando ao
livro didático, as mudanças sociopolíticas e as delimitações dos modelos teóricos
adotados para figurar o passado no presente.
Partindo da leitura dos trabalhos de Circe Bitencourt (1990, 1997, 2004, 2008),
Kazumi Munakata (2003, 2012, 2016), Kênia Moreira (2012, 2017), José Cássio
Másculo (2008) e do acervo da Biblioteca do Livro Didático da Universidade de São
Paulo, pudemos compreender algumas matizes da produção e circulação dos livros

59
didáticos no Brasil, identificando quais editoras ganharam maior relevo neste nicho de
mercado e as permanências e rupturas por meio da presença reiterada de alguns
autores e coleções ao longo do tempo.
A partir de uma análise semiológica e semiótica do texto e buscando
compreender as estruturas narrativas que delimitam as estratégias discursivas
empreendidas pelos autores22, foram identificados quatro tipos de representações dos
anarquistas23:

• Representação não valorativa: o anarquismo não figura como sujeito


de ação (não se aproximando, nem distanciando dos objetos de valor postos no
discurso), ocupando-se, no percurso gerativo de sentido, da adjetivação de sujeitos
e/ou períodos, não constituindo valor positivo ou negativo sobre o movimento
libertário.

• Representação valorativa positiva: o anarquismo se coloca como


sujeito de ação em conjunção com os objetos de valor postos no discurso.
Constituindo-se, neste tipo de representação, a positivação das ideias e lutas
anarquistas.

• Representação valorativa negativa: o anarquismo se coloca como


sujeito de ação, contudo, tende a se dissociar dos objetos de valor postos no programa
narrativo. Tendo sua ação representada como dispositivo de distanciamento destes
objetos, contrária à aquisição/aproximação dos valores positivos, produzindo-se uma
representação que atribui valor negativo ao movimento ácrata.

22 Ao utilizarmos o termo autores, não excluímos do processo de produção do material didático outros
sujeitos que contribuem e determinam a forma dada às informações. A confecção destes impressos é
um trabalho de múltiplas mãos, do escritor ao editor, passando pelos responsáveis pela seleção de
imagens, atividades, diagramação e outros, todos agentes da construção do discurso apresentado pela
obra.
23 A elaboração destas categorias de análise tomou como critério os processos e observações da

semiótica discursiva proposta por Algirdas Julien Greimas (1966, 2008) amplamente estudas por Diana
Luz Pessoa de Barros (2001, 2008), José Luiz Fiorin (2004, 2013) e Eric Landowski (2002) e o conceito
de representação e seus usos proposto por Roger Chartier (1991, 2002, 2011).
60
• Representação inexplícita: trata-se das representações que
constituem uma narrativa paralela ao texto principal, caracterizando-se pela presença
imagética do anarquismo, mas com a ausência de identificação e/ou nomeação das
imagens, constituindo outro discurso acerca do movimento libertário. Por não estar
explícita a ligação entre imagem e sujeito (anarquismo), considerando o público-alvo
do material didático, produz-se uma representação descontextualizada e “invisível”
sobre os libertários.

No percurso de construção das categorias que serão instrumentalizadas na


pesquisa, utilizamos procedimentos da semiótica discursiva, partindo da análise das
oposições semânticas presentes no texto, perpassando a organização das estruturas
narrativas e, por fim, a análise do discurso constituído pelo texto verbo-visual. Com
intuito de explicitar o processo de elaboração das categorias e análise,
apresentaremos exemplos dos estudos dos percursos gerativos de sentido, a fim de
construir um panorama que possa nos dar indícios das mudanças e permanências na
representação do movimento libertário.
Tomando como base para a análise os trabalhos de Roger Chartier, pensamos
as representações como construções simbólicas e materiais, delineadas pela
constituição moral, ideológica e visão de mundo daqueles que as produzem e
consomem, identificando os recursos instrumentalizados pela edição escolar,
mapeando as apropriações, relações dialógicas e os programas narrativos que
sustentam.
Iniciaremos com a análise da obra História do Brasil da colônia a República,
publicado em 1990, em sua 13ª edição pela editora Saraiva, de autoria de Elza Nadai
que foi professora universitária e pesquisadora, amplamente reconhecida, sobretudo,
no campo de ensino de história e Joana Neves, também professora universitária, com
significativa participação em importantes escolas experimentais brasileiras, como o
Colégio Estadual Oswaldo Aranha em São Paulo e o Ginásio Vocacional Embaixador
Macedo Soares, na cidade de Barretos/SP.
Observamos na obra uma abordagem na qual o anarquismo aparece de forma
periférica, como representação inexplícita e não valorativa. No tópico Proletariado
Urbano, vemos a ênfase no surgimento do processo de industrialização e, também,
61
na imigração europeia como significativo fator de constituição da classe operária
brasileira. Cabe ressaltar que neste momento, após a descrição das condições de
trabalho dos operários e a inibição de articulação e agremiações de trabalhadores,
Elza Nadai e Joana Neves enfatizam que, apesar da proibição legal, estes
trabalhadores se organizaram “chegando mesmo ao nível de organizações partidárias
ligadas ao movimento operário” (NADAI. NEVES. 1990, p. 209), a nota de rodapé
vinculada a este parágrafo coloca o Partido Comunista, fundado em 1922 e o Bloco
Operário e Camponês, fundado em 1927 como exemplos destas organizações.
O texto conduz em sua linha expositiva a atribuição da organização do
movimento operário aos partidos de viés comunista, ignorando a presença e
importante articulação de outros agrupamentos.

Apesar da violência da repressão – a questão social era considerada


caso de polícia – o movimento operário, se bem que praticamente
restrito ao Rio de Janeiro e São Paulo, deu origem a organizações
como entidades sociais, sindicatos e partidos políticos, o principal
deles o Partido Comunista Brasileiro – PCB, fundado em 1922, que
procurava organizar a luta dos trabalhadores. (NADAI. NEVES. 1990,
p. 211).

Oferecendo-nos uma visão do processo de industrialização que enfatiza a


imigração como fator de entrada das ideologias socialista e anarquista, as autoras
tratam de forma secundária a questão libertária. Ao trabalhar o movimento operário
na Primeira República, uma das poucas imagens incluídas na obra é um fac-símile do
jornal A Plebe (fig.1), periódico anarquista fundado em São Paulo por Edgard
Leuenroth e Fábio Luz em 1917 e publicado, com algumas interrupções, até 1951.
Contudo, a legenda informa, somente, tratar-se de um jornal operário, elidindo a
presença nominal do movimento anarquista como sujeito histórico.

62
Figura 1. NADAI, Elza. NEVES, Joana. História do Brasil da colônia a República. 1990, 13ª edição. p. 210.

63
A obra estrutura uma narrativa onde o anarquismo se vê representado de forma
inexplícita e não valorativa, condicionando seu reconhecimento à conhecimentos
prévios do leitor e a mediação do educador, ou a sua nomeação sem maiores
explicações. Há, também, uma acentuada tendencia a evidenciar a relação entre o
socialismo e a organização dos trabalhadores, por meio de notas de rodapé. O único
momento em que o anarquismo é nomeado na obra deixa em suspenso suas ideias e
associa-o ao estrangeirismo.

O movimento operário brasileiro, nessa primeira fase republicana, foi


organizado a partir de entidades e correntes político-ideológicas que
procuraram articular os trabalhadores e dar organicidade às suas
lutas. Destacam-se, nesse sentido, os anarquistas, os anarco-
sindicalistas e os socialistas, representados, principalmente, por
trabalhadores estrangeiros, notadamente italianos e espanhóis que
haviam se concentrado nos centros urbanos do Sul do país. (NADAI.
NEVES. 1999, p. 210-211).

Como Leitura Complementar aos estudos sobre a Proclamação e Primeira


República, as autoras trazem um excerto da obra Triste fim de Policarpo Quaresma
de Lima Barreto:

Policarpo era um patriota, monarquista conservador, foi um ardoroso


defensor do governo (forte) de Floriano, a favor do qual engajou-se na
luta da Armada rebelada. Acabou preso, condenado e executado.
Teve um triste fim. [...].
Logo aos 18 anos quis fazer-se militar; mas a junta de saúde julgou-o
incapaz. Desgostou-se, sofreu, mas não maldisse a Pátria. O
Ministério era liberal, ele se fez conservador e continuou mais do que
nunca a amar a “terra quem o viu nascer”. Impossibilitado de evoluir-
se sob os dourados do Exército, procurou a administração e dos seus
ramos escolheu o militar.
Era onde estava bem. No meio de soldados, de canhões, de
veteranos, de papelada inçada de quilos de pólvora, de nomes de fuzis
e termos técnicos de artilharia, aspirava diariamente aquele hálito de
guerra, de bravura, de vitória, de triunfo que é bem o hálito da Pátria.
(BARRETO, Lima in NADAI; NEVES. 1990, p. 192).

No trecho retirado da obra publicada em 1915, podemos perceber a fina ironia


com a qual o autor expõe o patriotismo, o fetiche pelo militarismo, pela violência da
guerra e à sociedade burguesa. Ao construir um jogo de palavras que denotam o
64
escárnio ao patriota, monarquista, defensor de um governo forte (republicano),
condenado e morto por seu “amor à pátria”, conseguimos perceber a presença de
suas convicções libertárias, mas a ligação entre o escritor e as ideias ácratas
permanece elidida. A apresentação de Lima Barreto nos livros didáticos e, também,
em um significativo número de trabalhos acadêmicos que buscam analisar sua vida e
obra, excluem suas contribuições em periódicos anarquistas e sua aproximação dos
ideais libertários.
Ainda entre as produções da década de 1990, apresentaremos a análise do
livro História e Vida, volume 4 de 1990, 3ª edição, de Cláudino Pilleti, professor
universitário, filosofo e pedagogo e Nelson Pilleti, professor universitário, historiador e
pedagogo. Na obra não pudemos identificar a nomeação do anarquismo nenhuma
vez. Contudo, no capítulo 11, intitulado O capitalismo se expande, após construir um
quadro histórico que parte das invasões dos continentes africano e asiático no
contexto do Neocolonialismo e da expansão da industrialização, levando a exploração
dos territórios e trabalhadores, aborda a luta da classe operária no item 5 Os
trabalhadores vão à luta.
Ao apresentar as ações dos trabalhadores contra a opressão e exploração
capitalista, o anarquismo não é mencionado textualmente, porém, o Massacre de
Chicago é retratado em um box (fig. 2), como exemplo da perseguição aos
trabalhadores, não sendo incluído no texto a origem libertária de seus participantes,
constituindo uma representação inexplícita. O dispositivo gráfico colocado na parte
superior da página, acima do tópico Socialismo, uma luz para os trabalhadores, leva
a uma relação visual da ação em Chicago à preponderância das ideias socialistas,
que ganhará evidência nas páginas seguintes, contando com uma imagem e pequena
biografia de Karl Marx, definição teórica do socialismo científico e sua implantação
concreta em alguns países.

65
Figura2. PILLETI, Cláudino; PILLETI. Nelson. História e Vida, vol. 4. 1990, 3ª edição. p.67

66
Assim como na obra de Elza Nadai e Joana Neves, a representação inexplícita
presente no livro de Claudino e Nelson Pilleti coloca o reconhecimento do sujeito
anarquismo dependente do conhecimento prévio do leitor (professores e alunos),
sendo, somente mediante esse saber anterior que pode ou não existir, que seria
possível qualificá-lo como agente de ação na narrativa. Ambas as obras optam por
condicionar a ação dos trabalhadores ao marxismo, excluindo completamente os
libertários, como a obra de Cláudio e Nelson Pilleti, ou não lhes atribuindo nenhum
tipo de valor, como o livro de Elza Nadai e Joana Neves.
As representações inexplícitas são uma constante na narrativa didática sobre
o anarquismo nos livros didáticos, constituindo um padrão contínuo ao longo do
tempo, que incide sobre o uso de imagens, mas também, sobre a exclusão da
participação anarquista em momentos históricos nos quais sua presença foi
significativa, como à Comuna de Paris, o Massacre de Chicago e a Guerra Civil
Espanhola, que nas poucas obras em que foram abordadas, tiveram a ação ácrata
obliterada.
A obra História do Brasil, publicada em 1992 pela editora FDT-Atual, 2ª edição,
apresentando como principal autor Raymundo Campos, formado em ciências sociais,
professor e um dos fundadores do colégio Equipe, na capital paulista, designa o
anarquismo em dois momentos: no capítulo 16, O desenvolvimento capitalista no
século XIX e no capítulo 23, Economia e sociedade na República Velha. No primeiro
momento os autores apresentam o anarquismo entre as correntes teóricas do século
XIX, fazendo-o em comparação ao socialismo, condicionando-o a posição inferior a
este em seus aspectos teóricos.
No capítulo 23, os autores constituem um programa narrativo que desvincula
as ideias libertárias da regência de um enunciado de ação ou estado, empreendendo
um novo percurso narrativo, no qual o anarquismo, inicialmente, toma a posição de
qualificador do sujeito “organização dos trabalhadores” e orientador teórico de suas
ações.

As primeiras organizações dos trabalhadores sofreram forte influência


anarquista e caracterizavam-se pelo mutualismo. Tratava-se de
associações de ajuda mútua, mantidas com parcas contribuições

67
individuais, visando a criação de fundos para doenças enterros,
aposentadorias e manutenção de escolas. (CAMPOS. 1992, p. 180).

Ao trazer de forma nominal o mutualismo24 como parte da influência ácrata


sobre os trabalhadores, o autor aborda um importante conceito dentro das teorias
libertárias, permitindo que tal influência opere um fazer (criação de fundos para a
assistência do trabalhador) que pode vir a promover a mudança de estado para o
sujeito de desamparado à amparado pelas associações de apoio mútuo, configurando
uma representação valorativa positiva dos anarquistas.
Na sequência do texto, observamos o anarquismo assumir o papel de sujeito
no programa narrativo:

Na República velha, o anarquismo criou uma cultura da classe


operária, veiculada nos inúmeros jornais aparecidos no período. Os
anarquistas caracterizavam se pela oposição radical ao Estado, a
religião e a propriedade privada, três instituições fundamentais no
sistema capitalista da época. (CAMPOS. 1992, p. 180).

Atribuindo-lhe a ação de “criar uma cultura de classe” que ocupa o papel de


antagonista ao sistema capitalista por meio de sua oposição ao “Estado, religião e a
propriedade privada”, estabelece relação propositiva (criar) dentro do movimento dos
trabalhadores e opositiva (oposição radical) frente a opressão gerada pelo sistema
capitalista.
Ao trabalhar a Greve de 1917, Raymundo Campos novamente admite o
anarquismo como sujeito no enunciado de fazer, desencadeando a mudança no
enunciado de estado, com o crescimento (valoração positiva) e posterior declínio do
movimento operário, atribuindo à uma “falta de organização” das lideranças
anarquistas (valoração negativa).

Dada a força do movimento, liderado pelos anarquistas, as classes


dominantes, depois de usarem em larga escala repressão, trataram de
chegar a um acordo com os operários. Estabeleceu-se um Comitê de
conciliação integrado por jornalistas da grande imprensa e, através de

24O corrente mutualista do anarquismo tem como base o associativismo e o cooperativismo, apoiando-
se na associação de indivíduos livres para garantir as condições de produção sem exploração. As
primeiras organizações anarquistas surgem-na Europa no século XIX sob a influência do mutualismo,
que tem como um de seus mais destacados teóricos Pierre-Joseph Proudhon.
68
negociações, a greve chegou ao fim. Os operários obtiveram: aumento
de 20%, a promessa de fiscalização dos preços, a Liberdade para os
presos e não punição dos grevistas.
Fortalecido pela vitória, o movimento operário cresceu ainda mais nos
dois anos seguintes, atingiu outras cidades, mas terminou entrando
em descenso no início da década de 1920. Tal declínio foi gerado por
um aumento da repressão e pela falta de organização mais eficiente
da classe operária que, segundo alguns historiadores resulta da
liderança dos anarquistas. (CAMPOS. 1992, p. 181).

O percurso gerativo de sentido termina por retomar a associação do


anarquismo à ausência de organização (liderança), mesmo construindo uma
representação valorativa positiva, termina por constituir um quadro geral no qual a
representação ácrata recai na impossibilidade de se constituir, no discurso do material
didático, como teoria apta a organizar a luta dos trabalhadores, denotando a
dificuldade de adequação das propostas e ações anarquistas à forma narrativa
instituída como padrão para “contar o passado” nos livros escolares.
A incapacidade de liderança, presente de diversas formas nas fontes
analisadas, liga-se a não aceitação por parte dos anarquistas da construção
hierárquica desta liderança na figura de personagens proeminentes (líderes) ou
agremiações partidárias que assumam, na estrutura imposta pelo modelo narrativo, a
função de dirigir a ação dos sujeitos coletivos (trabalhadores).
A obra Caminhos das Civilizações traz como principal autor o professor
universitário José Geraldo Vinci de Moraes, destinado ao público do segundo grau
(atual ensino médio), foi publicado em 1993 pela Editora Atual. O capítulo 29 da obra
é dedicado As ideias políticas na Europa do século XIX, dividido em Introdução,
Liberalismo, Socialismo e Anarquismo. O autor abre o tópico sobre socialismo
colocando sob a égide do pensamento socialista as teorias do socialismo utópico,
científico, cristão e anarquista. O texto é dividido em duas colunas e tanto ao abordar
o socialismo científico como ao tratar do anarquismo, traz na diagramação da página
a fotografia de dois teóricos ao lado esquerdo – Mikhail Bakunin e Piotr Kropotkin (fig.
3).

69
Figura 3 MOARES, José Geraldo Vinci de. Caminhos das Civilizações. 1993.

70
No primeiro parágrafo, o autor apresenta as motivações do uso da expressão
libertário para identificar os anarquistas, seguindo com a origem do termo anarquismo.
Apresenta as disputas da Internacional, sobretudo da Segunda, inicialmente
atribuindo aos sociais-democratas e marxistas ortodoxos a cisão e, posteriormente, a
ação dos anarquistas. Traz na coluna a direita as imagens de Mikhail Bakunin e Piotr
Kropotkin (mencionados como líderes teóricos) e retoma o marxismo no último
parágrafo do texto, também menciona o surgimento do anarcossindicalismo e do
socialismo cristão como vertentes de menor importância.
Percebemos a construção de uma representação valorativa positiva do
movimento ácrata. Concedendo a estes assumirem a enunciação do discurso sobre
si mesmos, como ideologia que se opõem ao cerceamento da liberdade (em sentido
amplo), a exploração capitalista e ao poder exercido sobre os homens, figurativizada
pelas ideias de ideologia, religião, classe social, partido político, propriedade privada
e Estado.
No capítulo 30, A expansão do universo urbano e industrial, vemos a
elaboração de um quadro que ambiciona retratar a ação popular como viés de
transformação a partir do século XIX, traçando uma diferença entre as manifestações
organizadas (vinculadas a ação dos trabalhadores orientadas pelas trade-unions e o
movimento cartista), ou espontâneas como a Comuna de Paris. Enfoca o processo de
êxodo rural que marca a Europa no período, colocando a atração pelas cidades como
a atração pelo lugar onde acontecia o progresso, menciona a ascensão da cultura
escrita, por intermédio da ampliação da circulação de obras e textos literários,
tomando como modelo a França.
Ao trabalhar a Comuna de Paris, o autor marca a presença dos socialistas: “Foi
organizado um comitê composto por trabalhadores, socialistas, artesãos, lojistas, etc,
para governar a cidade.” (MORAES. 1993, 270). Em um primeiro momento podemos
ler o termo socialistas como abrangente das correntes de pensamento do socialismo
utópico, científico, cristão e anarquista, apresentados desta forma na introdução do
capítulo 29, porém, o desenvolvimento dado à narrativa acaba por individualizar essas
teorias, que chegam ao capítulo seguinte independentes entre si, levando a não
associação de todas ao epíteto, o que na construção semântica exclui os anarquistas
do processo histórico.
71
Flanando entre a construção de uma representação valorativa positiva no
capítulo 29 e de sua presença inexplícita no capítulo 30, José Geraldo Vinci de
Moraes, apresenta uma narrativa que, mesmo possibilitando ao anarquismo uma
visibilidade que não o condiciona diretamente a sua comparação ao socialismo, limita-
se a ação dos trabalhadores, não sendo reconhecido em outros momentos,
reforçando uma estrutura narrativa que coloca o movimento libertário condicionado ao
universo do trabalho.
A obra História memória viva (1995) de Cláudio Vicentino, bacharel em ciências
sociais e professor de história em cursos pré-vestibulares e ensino médio, abre o
capítulo 10, A Revolução Industrial e o pensamento europeu do século XIX com uma
interessante ilustração de Bakunin (fig.4).

Figura 4 VICENTINO, Cláudio. História memória viva. 1995, p. 117

A obra exibe uma escolha de diagramação que inclui a figura do anarquista no


centro do quadro, com uma coloração mais intensa que os demais recortes (imagens
72
que trazem a ideia de ação e movimento), apresentando uma dinâmica imagética que
nos leva a associar a figura do libertário à ação, uma exceção a representação
iconográfica usual dada a este militante; levando-nos, em um primeiro momento, a
inferir uma opção por qualificar o anarquismo como prática, ligado às manifestações
e lutas sociais. Porém, esta primeira presença positiva é substituída por um programa
narrativo que estabelece, no plano semântico e sintáxico uma representação
valorativa negativa do anarquismo.

Figura 5 VICENTINO, Cláudio. História memória viva. 1995.

73
Visualmente a distribuição espacial destinada a cada uma das ideologias
abordadas marca uma simplificação excessiva das ideias libertárias frente às outras
teorias (fig. 5), sendo assim definida: “A corrente teórica que, entre outras coisas,
defende a destruição de toda forma de opressão, como Estado, a propriedade privada
e a família. Entre os seus principais representantes temos Mikhail Bakunin, Leon
Tolstói e Piotr Kropotkin” (VICENTINO. 1995, p. 121).
O anarquismo será retomado nas questões propostas, reforçando o
entendimento de “suas características” com a pergunta: O que defendia o
anarquismo? (VICENTINO. 1995, p. 121), para a qual, a única resposta possível,
segundo as informações oferecidas pelo texto, é a destruição daquilo que se
denomina “todas as formas de opressão”, definidas como “Estado, propriedade
privada e família”.
Podemos observar a construção de um discurso que sustenta uma
representação valorativa negativa, onde a grande defesa dos libertários é da
“destruição”, não havendo nenhum tipo de criação pensada pelas lentes ácratas.
Diferindo dos percursos gerativos de sentido que desqualificam o anarquismo em
relação ao socialismo científico, no texto de Cláudio Vicentino observamos, ao nível
discursivo, a limitação dos objetivos anarquistas à destruição, condicionando seu
entendimento ao lugar comum de anarquia como bagunça, violência e demolição das
instituições sociais.
A associação dos libertários à bagunça, falta de ordem, ausência de liderança,
violência, a negação pelos anarquistas das instituições sociais colocadas nos textos
como a família, a religião, o Estado e as forças armadas, constitui-se como discurso
em muitas obras analisadas, mesmo trilhando programas narrativos distintos, os
aspectos semânticos e lexicais levam à um conjunto gerativo de sentido que
condiciona à construção de uma representação valorativa negativa dos ácratas no
material didático.
No livro assinado por Gilberto Cotrim, historiador, filosofo, advogado e ex-
presidente da Associação Brasileira dos Autores de Livros Educativos (ABRALE),
História Global, Brasil e Geral – volume único, produzido em 1997. O anarquismo
surge na obra, somente ligado a ação dos trabalhadores na Primeira República,
estando ausente no capítulo 32, intitulado, Revolução Industrial, as teorias sociais e
74
econômicas do século XIX, que apresenta ao leitor o liberalismo, o socialismo utópico,
cristão e científico. Assim como outras obras do período, o autor apresenta Pierre-
Joseph Proudhon como socialista utópico (fig.6). Sendo destinado um espaço
considerável para a exposição das ideias marxistas, com a definição de conceitos
como dialética, mais-valia, modo de produção e luta de classes.

Figura 6 COTRIM, Gilberto. História Global, Brasil e Geral. 1997, 1ª edição. p. 240

75
Ao nominar o anarquismo no capítulo 47, Brasil – República Velha, no item
Lutas operárias, o faz de forma pontual: “Surgiram, então, os primeiros sindicatos e
organizações operárias para lutar pelos direitos trabalhistas. Entre os primeiros
movimentos operários destaca-se o anarquismo” (COTRIM, 1997, p. 377), destinando
uma pequena explicação sobre sua origem e teoria em um box (Definindo Conceitos)
a margem direita da página (fig. 7).
Podemos considerar uma representação valorativa positiva, ao atribuir ao
sujeito anarquismo participação nos primeiros movimentos operários, contudo, a
narrativa estrutura-se de modo a perfazer, no nível discursivo, uma representação não
valorativa do movimento ácrata.

Figura 7 COTRIM, Gilberto. História Global, Brasil e Geral. 1997, 1ª


edição. p. 377

76
Na página 377, observamos a imagem recorrente do cortejo fúnebre do
militante anarquista Martinez (fig. 7), mas, como veremos em outras obras, o
anarquismo surge aqui como definidor do sujeito sapateiro, não lhe sendo atribuído
valor positivo ou negativo. Assim como parte significativa das fontes analisadas, a
obra de Gilberto Cotrim oferece ao leitor uma consistente abordagem do marxismo
como teoria e pressuposto para organização dos trabalhadores e delega ao
anarquismo poucas linhas, sequer mencionando seus teóricos de forma correta.
As narrativas históricas oferecidas pelos livros didáticos produzidos na década
de 1990 apontam para a recorrência da construção de representações que demarcam
a relação do anarquismo ao estrangeirismo e sua suplantação pelo socialismo devido
à falta de capacidade organizativa do movimento operário, oferecem ao leitor uma
visão delimitada pela concepção de insuficiência organizacional nos primeiros
momentos da luta dos trabalhadores, que somente após um processo sistematizado
de industrialização e a organização política por meio do partido, logrará algum êxito.
Trata-se, como podemos perceber, de uma questão estrutural, mas também
ideológica, que coloca os anarquistas no processo histórico de forma periférica.
Conforme afirma Kazumi Munakata a questão ideológica nas obras didáticas
não pode ser simplificada à uma equação maniqueísta, onde podemos ou devemos
associar que:

à má intenção ou a falsa consciência do autor que se flagra por trás


de uma frase sutilmente construída num livro mal produzido, ou,
inversamente, maquiavelicamente bem-produzido [...] determine o
entendimento da ideologia da obra, uma vez que essa se apresenta
para além das possíveis falhas teóricas e conceituais, encontrando-se
no livro didático como aspecto estruturante. (MUNAKATA, 2003, p.
137).

Ao afirmarmos que a construção do anarquismo de forma periférica nos livros


didáticos analisados se dá, também, por uma questão ideológica que se apresenta
como estruturante da ideia de narrativa histórica contida na obra, apontamos para a
constatação de que ao propor um programa narrativo que minimiza a ação libertária
em diferentes momentos, há uma escolha que, mesmo não completamente

77
consciente, determina uma posição e uma representação do anarquismo que dialoga
com a ideia disseminada socialmente e é, majoritariamente, negativa.
As obras publicadas a partir de 2000, sobretudo da segunda metade da década,
apresentam um significativo aumento no número de imagens e uso de cores em seu
interior, mudanças gráficas que se farão sentir em todas as coleções e que
consideramos como um dos efeitos das avaliações do PNLD, que passam a
contemplar as disciplinas de história e geografia a partir de 1997.
O uso destes recursos leva a possibilidade de construção de novos arranjos
narrativos no interior da obra, como identificou José Cássio Másculo (2008), ao se
deparar com processo semelhante de inovação gráfica na coleção didática de Sérgio
Buarque de Hollanda em 1970, a presença de fotografias e o recurso da colorização,
que na época eram uma novidade trazida pela obra, se intensificam no decorrer das
décadas, como pudemos perceber na análise das fontes selecionadas, e ganham
cada vez mais espaço nas páginas dos livros didáticos. Assim como o uso das
imagens e cores relatadas por Másculo (2008) que aproximava a obra de Sérgio
Buarque à diagramação das revistas da época, os livros didáticos das décadas de
2000 e 2010 trarão uma diagramação de página que busca assemelhá-los aos
suportes informatizados e páginas da internet.
A coleção Nova história crítica de Mario Schmidt, professor, escritor e
enxadrista, apresenta oscilação entre a representação valorativa negativa e a
representação valorativa positiva, mantendo essa característica nas edições de 1994
e 2000. Elencamos para análise neste momento, o livro destinado à 8ª série do ensino
fundamental, por considerarmos que constitui programa narrativo que permite ao
anarquismo, ao nível do discurso, assumir a posição de sujeito da enunciação.
A introdução da obra é destinada a revisão dos temas estudados no ano
anterior. Na página 17 (fig. 8) observamos a retomada das doutrinas sociais do século
XIX, colocando em local de destaque a ilustração de Marx e Engels na tipografia,
mesma imagem apresentada na obra destinada a 7ª série. No texto, Marx e Engels
são lembrados como os “mais destacados socialistas do século XIX” (SHIMITD.
2000b, p. 17), ganhando relevância o julgamento que fazem de outros socialistas:
“Eles acusaram os outros socialistas de serem “utópicos”, ou seja, de não

78
conseguirem mostrar como se poderia destruir o capitalismo e construir uma nova
sociedade.” (SHIMITD. 2000b, p. 17).
O anarquismo surge no penúltimo parágrafo, trazendo o nome de Mikhail
Bakunin como seu principal defensor, a escolha vocabular marca a diferença entre os
destacados socialistas (Marx e Engels) e o principal defensor (Bakunin), retomando
um senso comum de fragilidade ou inexistência de um corpo teórico para as ideias
libertárias. Fragilidade que se configurará como lugar comum na construção da
narrativa do anarquismo oposicionista frente ao sujeito socialismo científico.

Figura 8 SCHMIDT, Mário. Nova história crítica. 2000, 8ª série, p. 17

79
No conteúdo já destinado a 8ª série, o anarquismo surge no início do capítulo
4, Rebeliões na República Velha, com a presença de uma imagem que traz a legenda
“ilustração anarquista de 1924. A revolução social dos trabalhadores derrota a
opressão do capitalismo” (SCHMIDT. 2000b, p.73) (fig. 9), não há referência de onde
a imagem foi retirada.

Figura 9. SCHMIDT, Mário Fürley. 2000b, p. 73)

80
Na sequência, os libertários são retomados na página 79, quando o autor
apresenta o movimento operário:

O anarquismo foi muito importante no Brasil nos trinta primeiros anos


do século XX. Os anarquistas organizaram os primeiros sindicatos e
as primeiras greves do Brasil. Por isso, eram especialmente visados
pela polícia.
Os anarquistas brasileiros não lutavam apenas através dos sindicatos.
Eles também contribuíram para formar uma cultura operária bastante
crítica. Foram os primeiros a defender a alimentação “natural”, a
questionar a necessidade de mulheres se casarem virgens e de
obedecer ao marido. Havia teatros anarquistas onde se
representavam peças alegres e com crítica social. Escreviam seus
próprios jornais porque não acreditavam na “imprensa burguesa” (os
grandes jornais), que, para eles, mentiam sobre o movimento operário.
Os anarquistas preferiram suas próprias escolas. Primeiro, porque
quase não havia escolas para os filhos dos trabalhadores. Na
República Velha, aprender a ler e escrever era quase um luxo.
Segundo, porque os anarquistas não confiavam na escola burguesa
(a escola tradicional), que, para eles, só servia para transformar as
pessoas em “carneiros submissos” ao governo e aos patrões. Dá para
entender o motivo dos anarquistas também serem chamados de
libertários. (SCHMIDT. 2000b, p. 79-80)

Mário Schmidt ainda traz na página seguinte uma fotografia de Elvira Boni, e
um quadro no qual se propõe explicar o anarquismo, buscando contextualizar a ação
ácrata descrita no texto principal (fig. 10). A narrativa composta nos leva a perceber a
prevalência, neste capítulo, de uma visão positiva do anarquismo, considerando seu
percurso gerativo de sentido. No nível da narrativa, o anarquismo é sujeito do fazer e,
também, responsável pela mudança de estado do grupo que representa (os
trabalhadores), estabelecendo-se, no nível discursivo, como sujeito do enunciado,
sustentando uma representação valorativa positiva dos libertários.

81
Figura 10 SCHMIDT, Mário. Nova história crítica. 2000, 8ª série, p. 80

82
Ao dar início aos itens Comunistas no Brasil, Schmidt traz os anarquistas como
alvo da crítica marxista:

Os marxistas diziam que os anarquistas eram bem-intencionados na


luta contra o capital, mas que na prática faziam o que a burguesia
desejava: afastar os trabalhadores da luta política. Para os seguidores
de Marx e Lênin, a principal arma de luta da classe trabalhadora é o
partido político. Mas um partido diferente, que se dedique a educar
politicamente o trabalhador e organizar suas lutas econômicas e
políticas. Um partido que dirija as ações revolucionárias socialistas.
Foi dentro deste espírito que na cidade fluminense de Niterói (1922),
foi fundado o Partido Comunista do Brasil (PCB), entre os fundadores
operários, artesões, intelectuais e alguns ex-anarquistas. (SCHMIDT.
2000b, p. 81).

Utilizando-se da crítica marxista-leninista ao anarquismo, estabelece seu


distanciamento da possibilidade de organização dos trabalhadores, alocando-o em
um campo de boas intensões, mas ingenuidade ao fazer de suas ações condições
que satisfazem os “desejos da burguesia”. Atribuindo aos anarquistas os
qualificadores que determinam sua boa-intensão (carregada de ingenuidade) e
ineficiência na luta contra a exploração dos trabalhadores pela burguesia, constituindo
uma representação valorativa negativa dos libertários e condicionando a falta de
organização e liderança seu insucesso como ideologia capaz de coordenar a luta
contra o capital.
Nas atividades propostas o autor utiliza um excerto da obra As ideias socialistas
no Brasil, de Leandro Konder, no qual apresenta o crescimento dos “convertidos” ao
leninismo: “em março de 1923, havia 73 militantes convertidos ao leninismo em todo
o Brasil, dispostos a fundar o novo partido. A maioria provinha do anarquismo. (...)”
(SCHMIDT. 2000b, p. 85), e uma das questões propostas retoma o anarquismo, mas
de forma tangencial. “Qual a principal classe social que os anarquistas e socialistas
queriam influenciar?” (SCHMIDT. 2000b, p. 85).
Percebemos na construção narrativa a oscilação entre as representações
valorativas positivas e negativas, contudo, considerando que a obra traz como
premissa dar voz a novos sujeitos históricos, os trabalhadores, apresentando a ação
política destes como principal arma para a luta contra a exploração capitalista, o
anarquismo, enquanto sujeito, é apartado do objeto de valor proposto no nível
83
narrativo, concretizando um discurso no qual figura como relevante, bem-
intencionado, mas ingênuo e ineficiente para a conjunção do sujeito trabalhadores ao
objeto de valor (luta contra a exploração e conquista da liberdade econômica e
política).
Na coleção Vontade de Saber História (2009) de Keila Grinberg, historiadora e
professora universitária; Adriana Machado Dias, bacharel e licenciada em história e
Marcos Pelegrini, graduado em história, podemos depreender a diminuição da
relevância histórica e teórica das ideias libertárias na construção da ambivalência
entre socialismo e anarquismo.
No capítulo 6, do livro destinado ao 8º ano do ensino fundamental, a Revolução
Industrial, ao trazer o item As ideias e o trabalho. Intelectuais do século XIX
propuseram alternativas para a organização da sociedade (fig. 11), vemos a presença
de Karl Marx e Pierre-Joseph Proudhon, contudo, a organização gráfica da página
demarca a importância do socialismo científico, trabalhado no texto principal e a
abordagem secundária dada ao anarquismo ao colocar sua explicação dentro de um
box, operando a separação das narrativas destinadas a explicar e qualificar as teorias.
Ao apresentar o anarquismo, no texto de introdução do dispositivo gráfico, o faz
em relação à Marx, “Assim como Marx, outros intelectuais da época propuseram
alternativas para a construção de uma sociedade mais justa. Os anarquistas, por
exemplo, defendiam profundas mudanças políticas, econômicas e sociais.”
(GRINBER.; DIAS.; PELLEGRINI. 2009a, p.95). O trecho que se propõem a explicar
o anarquismo vem ilustrado pela figura de Proudhon, mas este não é citado no texto,
sendo mencionado somente na legenda da ilustração.
Visualmente vemos a criação de uma hierarquia de valores entre os intelectuais
do século XIX que se propuseram a pensar em alternativas para organização social,
como prevê o subtítulo do texto, compondo um percurso gerativo de sentido negativo
para as ideias libertárias. A parte textual sobre o anarquismo não constitui, em si, uma
representação negativa, contudo, a presença da relação hierárquica
socialismo/anarquismo termina por conduzir, no nível do discurso, à uma
representação valorativa negativa do anarquismo.

84
Figura 11. GRINBER, Keila. DIAS, Adriana Machado. PELLEGRINI, Marcos. Vontade de saber história. 8º ano,
2009, p.95.

85
O mesmo recurso de diagramação foi utilizado no volume destinado ao 9º ano
do ensino fundamental, no capítulo 2, Segunda Revolução Industrial, no subitem,
Alternativas para organização da sociedade (fig. 12).

Figura 12 GRINBER, Keila. DIAS, Adriana Machado. PELLEGRINI, Marcos. Vontade de


saber história. 9º ano, 2009, p.37

86
Ao abordar a teoria anarquista, os autores apontam para o seu caráter de
negação do Estado, da religião e da propriedade privada e para a prática da
autogestão. No volume destinado ao 9º ano, não há menção de nenhum intelectual
anarquista e o box é dividido com a explicação sobre a teoria Positivista. A narrativa
verbo-visual sugestiona uma relação de inferioridade, como na análise anterior, em
uma construção hierárquica das teorias apresentadas, levando a um discurso que
premedita a subalternidade do movimento ácrata, configurando uma representação
valorativa negativa.
Os recursos de diagramação, como explorados por José Cássio Másculo
(2008), apontam para a dinamização das práticas de leitura, considerando-se sua
força estruturante na obra e sua intensão prescritiva de prática de leitura específica,
direcionada para um leitor imaginário, mas também conectar as narrativas a outros
elementos da obra, propondo um teor e significado para o texto25. Ao optar pela
mudança da letra nos boxes, intensifica-se a marca visual entre a narrativa principal e
o conteúdo oferecido nesses recursos, constituindo uma hierarquia discursiva que
determina a posição dos sujeitos históricos apresentados.
O livro Estudos de História, publicado pela editora FDT em 2009, conta como
autores principais Eduardo de Moura Faria, bacharel e licenciado em história, com
pós-graduação em ciências humanas, Mônica Liz Miranda, professora universitária
com ênfase na área de Teoria e Metodologia da História, Ensino de História, História
da Ciência e Helena Guimarães Campos, graduada em história e especialista em
História da América Latina; em sua 1ª edição oferece ao leitor uma abordagem ampla
do anarquismo e suas correntes, buscando sistematizá-las.
O capítulo 3, intitulado Os socialismos e o movimento operário, abrange, sobre
a égide dos socialismos, o socialismo utópico, anarquismo, marxismo e a social-
democracia. Na explicação sobre o anarquismo (fig.13), os autores constituem uma
narrativa que, a exemplo da maioria das obras analisadas, toma como referência as
semelhanças e diferenças desse com o marxismo, não há menção alguma à imagem
a esquerda, que traz a legenda:

25
Podemos considerar dentre os dispositivos gráficos que concorrem para a construção do sentido da
leitura a instituição dos boxes, as escolhas tipográficas, e as imagens selecionadas e a distribuição dos
textos e imagens na página, como componentes indispensáveis à composição do discurso proposto
pela obra.
87
Um anarquista russo morre ao manipular explosivos para fabricar uma
bomba, em São Petersburgo, Rússia. Uma ala dos anarquistas buscou
atingir seus objetivos por meio da violência, inclusive do assassinato
de autoridades. (FARIA; MIRANDA; CAMPOS. 2009, p. 376).

Constituindo um percurso narrativo apartado do texto principal, chamando a


atenção para a violência do movimento, a imagem configura a ligação do anarquismo
ao terrorismo (termo presente em algumas obras analisadas como qualificador do
movimento libertário), porém o desenvolvimento do programa narrativo constrói uma
abordagem na qual essa primeira qualificação dos ácratas não se sustenta.

Figura 13 FARIA, Ricardo de Moura. MIRANDA, Monica Liz. CAMPOS, Helena Guimarães. Estudar história. 2009, p.
376

88
Os autores desenvolvem na sequência um quadro de correntes divididas por
nacionalidade, citando o anarquismo coletivista de Bakunin, o comunismo anarquista
em Kropotkin, o anarco-individualismo de Max Stirner e o anarcossindicalismo que
atribuem a Proudhon. Finalizando a abordagem sobre os libertários com um excerto
de Malatesta e a indicação de uma pesquisa sobre este militante.
A parte do texto destinada a explorar, junto ao educando as ideias anarquistas,
vem ilustrada pela capa do Le Petit Parisiense de março de 1905, suscitando, em um
primeiro momento, uma representação valorativa negativa, ligada a violência.
Contudo, ao expandirmos a leitura para todo o corpo textual, é notável que essa
representação não alcança o sentido posto pela narrativa, que na pendularidade entre
as representações positivas e negativas, produz um discurso que tende a enfatizar a
representação valorativa positiva do movimento libertário.
As obras analisadas flertam com o discurso presente nas produções da década
anterior e com ideias ainda bastante arraigadas sobre o anarquismo como falho para
organização da massa operária. Mesmo buscando novos recortes e abordagens,
apresentam um traço de continuidade com as representações constituídas na década
anterior, que gradativamente perderão espaço nas produções dos anos seguintes,
com a sistemática retirada da classe trabalhadora como sujeito histórico e, com esses,
os anarquistas.
A exceção pode ser pontuada na obra de Schmidt, que ao dialogar com uma
produção historiográfica mais recente e assumir um discurso baseado na perspectiva
da história dos vencidos, apresenta-nos uma configuração da memória histórico
escolar sobre o anarquismo que traz sua intensa produção cultural, preocupação com
a propaganda anarquista e instrução de seus militantes. É notável seu diálogo com
trabalhos como de Silvio Donizete de Oliveira Gallo (1990), ao apresentar as escolas
anarquistas e afirmar que “Os anarquistas preferiram suas próprias escolas”
(SCHMIDT. 2000b, p. 80). Para Gallo:

No bojo do movimento socialista, o anarquismo também trouxe as


suas propostas ao campo educacional. A perspectiva anarquista,
entretanto, diferenciou se radicalmente das demais teorias
educacionais socialistas, que de modo geral ou exigiam do Estado
burguês uma reforma educacional que beneficiasse o proletariado, ou
então propunha um táticas de trabalho revolucionário dentro do próprio
89
sistema escolar burguês, levando o há uma gradual transformação. O
projeto anarquista, coerente com a ideia de que o proletariado deve
conquistar ele próprio a sua liberdade, com princípio proudhoniano de
que a emancipação dos trabalhadores só pode ser obra deles
mesmos, criticou implacavelmente a perspectiva ideológica de
reprodução social da educação oferecida pela burguesia enquanto
classe dominante, rejeitando sumariamente qualquer proposta de
educação oferecida pelo governo, ou que devesse, mesmo que em
última instância ser mantida pelo Estado. (GALLO. 1990, p. 109).

O deslocamento do topos narrativo operado por Mário Schmidt e seu diálogo


com as pesquisas historiográficas da década de 1990, permitem a abertura de novas
representações, que mesmo não constituindo no nível discursivo uma representação
predominantemente valorativa positiva do movimento libertário, tensiona a
representação clássica e valorativa negativa, também presentes na obra.
A coleção História sociedade e cidadania (2016) aponta como principal autor
Alfredo Boulos Júnior, doutor em educação, mestre em História Social e ex-assessor
da Diretoria Técnica da Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE), do
governo do Estado de São Paulo, utilizaremos neste momento o livro destinado ao 3º
ano do ensino médio.
A obra comporta uma divisão por capítulos bastante parecida com a obra para
o 9º ano do ensino fundamental. O capítulo 3, Primeira República, dominação e
resistência, inclui o movimento operário e dois subitens: Greve de 1917 e Comunistas
e Anarquistas. Partindo das dificuldades dos trabalhadores e da massiva presença de
imigrantes no corpo operário, evidenciada pelo uso de dados estatísticos que se
repetem nas obras destinadas ao ensino fundamental26, imprimi ao movimento
operário e, sobretudo ao movimento paulista que é identificado pelo autor ao
anarquismo, o caráter de estrangeiro. Ao apresentar o Congresso operário de 1906,
traz Edgard Leuenroth, Luiz Magrassi e Alfredo Vasquez como importantes
influenciadores.
O subitem Comunistas e Anarquistas aborda na maior parte do texto a
influência da Revolução Russa no operariado brasileiro e a fundação do Partido
Comunista Brasileiro (PCB), apresentando um quadro de diferenças entre anarquismo

26A mesma informação é apresentada nas obras para o ensino fundamental e médio, contudo, somente
na destinada ao 3º ano do ensino médio é que o autor irá incluir a origem dos dados apresentados,
como tendo sido obtidos na obra do historiador Boris Fausto, mas não há citação de qual obra se trata.
90
e comunismo (fig. 14), assumindo o lugar do anarquismo oposicionista, bastante
presente na qualificação do movimento libertário na obra e na construção de uma
representação valorativa negativa dos anarquistas.

Figura 14. BOULO, Alfredo. História sociedade e cidadania. 3º ano/


ensino médio. 2016, p. 34

Percebemos a premência do não como qualificador do movimento libertário na


obra de Boulos, de forma implícita, utilizando-se do termo “contrário”, expressa tudo
aquilo que o anarquismo não quer/concorda, permanecendo ausente da narrativa
aquilo que o anarquismo almeja/concorda. Criando-se um quadro no qual os
comunistas (positivamente) defendem, participam e valorizam, ao passo que os
ácratas (negativamente) se opõem.
Ao analisarmos a coleção Estudar história: das origens do homem a era digital
(2018) de Anna Barreto (Ana Cristina Figueiredo), professora de história e Patrícia
Ramos Braick, graduada em história e mestre em ciências sociais, observamos que
as ideias libertárias e seus protagonistas ganham visibilidade e assumem o papel de
sujeito da ação, em conformidade com os objetos de valor postos na narrativa.
No volume para o 8º ano do ensino fundamental, foi destinado espaço para
explicação sobre “o que é o anarquismo”:

91
O anarquismo surgiu na segunda metade do século XIX. Seus
principais teóricos foram Pierre Joseph Proudhon (1809-1865) e
Louise Michel (1930-1905), na França, Mikhail Bakunin (1814-1876) e
Piotr Kropotkin (1842-1921), na Rússia; Errico Malatesta (1853-1932),
na Itália; e Emma Goldman (1869-1940), nos Estados Unidos. Os
anarquistas assim como os socialistas científicos, faziam a crítica a
exploração promovida pelo sistema capitalista, mas apontavam o
Estado e os regimes de governo como causa de todos os males da
sociedade.
O anarquismo, portanto, não propunha um governo dos trabalhadores,
eles defendiam uma sociedade fundada na livre associação dos
indivíduos sem instituições como partidos políticos, Parlamento,
polícia, prefeitura, presidência, tribunais e exércitos. Abolido qualquer
tipo de poder político e hierárquico, os indivíduos estariam livres para
viver com base na cooperação e na propriedade coletiva dos bens.
(BARRETO. BRAICK. 2018a, p. 194).

Podemos perceber a construção de uma oposição no nível fundamental:


a u t o n o m i a vs. exploração, concebendo que a liberdade, compreendida pelo
anarquismo e exposta no texto didático, advém da autonomia dos sujeitos que, de livre
vontade, se organizam em sociedades, pautadas na cooperação entre os indivíduos.

exploração ----------------- não exploração ------------------ autonomia


(disfórica) (não disfórica) (eufórica)
não liberdade não liberdade liberdade
capitalismo socialismo anarquismo
gov. atual gov. do trabalhador livre associação

Partindo da oposição semântica, percebemos a circulação de valores entre os


sujeitos e por ação destes no nível narrativo. A narrativa apresenta o processo de
transformação do valor liberdade pela ação dos sujeitos socialismo e anarquismo,
oferecendo-nos a construção de um quadro valorativo positivo dos libertários que
acessam o objeto de valor posto em circulação no texto.
Em nível discursivo, vemos a transformação da oposição inicial (exploração vs.
autonomia) em tema (defesa/luta pela liberdade) que se desenvolve no conjunto do

92
texto, trazendo para dentro do discurso outras vozes: Mikhail Bakunin e Emma
Goldman, o primeiro utilizando um trecho de seus escritos e, Goldman na fotografia
selecionada para compor a narrativa (fig. 15). O conjunto verbo-visual apresentado
por Barreto e Braick constitui importante representação valorativa positiva, que se
consolida no discurso que perpassa a abordagem do anarquismo na obra

Figura 15 BARRETO, Anna. BRAICK, Patrícia Ramos. Estudar história: das origens do homem a era
digital. 2018, 8º ano, p. 194

93
O fragmento da obra de Bakunin transcrito no livro, busca qualificar o termo
liberdade, levando-o além da acepção trivial, pontuando a impossibilidade de a
liberdade proposta pelo anarquismo ser alcançada por meio da “liberdade formal”,
qualificada pelo teórico como “o privilégio de uns poucos sobre a escravidão de todos”
(BAKUNIN. 2006, p. 76)

Sou um amante[...] da liberdade, considerando que ela é o único meio


em cujo seio podem se desenvolver e crescer a inteligência, a
dignidade e a Felicidade dos homens; não dessa liberdade formal,
outorgada, medida e regulamentada pelo Estado, [...] que na realidade
não representa nunca nada mais do que o privilégio de uns poucos
fundado sobre a escravidão de todos[...].
Sou um partidário convicto da igualdade econômica e social [...]. Mas,
partidário incondicional da liberdade, essa condição primordial da
humanidade, penso que a igualdade deve se estabelecer no mundo
pela organização espontânea do trabalho e da propriedade coletiva
das associações produtoras livremente organizadas e federadas em
comunas [...], mas não pela ação suprema e tutelar do Estado.
Este é o ponto que separa antes de mais nada os [anarquistas] dos
comunistas [...] que defendem a iniciativa absoluta do Estado.
(BAKUNIN. In BARRETO; BRAICK. 2018a, p. 194).

Ao trazer as vozes de Goldman e Bakunin, a obra permite uma construção do


anarquismo como teoria e prática, produzindo uma representação valorativa positiva
dos libertários no contexto de apresentação das teorias sociais e políticas no século
XIX para o 8º ano do ensino fundamental, relacionando-se com a produção
historiográfica dos anos 2000, ao dar voz a figuras femininas e considerar a questão
de gênero dentro da narrativa, cabendo ressaltar que a correlação estabelecida entre
o anarquismo e o feminismo também atende à proposição do objeto de conhecimento
da BNCC, citado anteriormente.
A coleção História, escola e democracia (2018), de autoria de Regina Claro,
mestre em história social e escritora e dos professores universitários Mirian Dolhnikoff
e Flávio de Campos, apresenta-nos um modelo de construção que consideramos
recorrente na instauração da representação valorativa negativa dos libertários na
história escolarizada.
94
As experiencias políticas dos imigrantes na Europa contribuíram para
a organização da luta de classes no Brasil. Os operários organizaram
vários sindicatos e publicaram diversos jornais. Em 1906, o primeiro
Congresso Operário d e c l a r a v a c o m o p r i n c i p a l reivindicação
do movimento a jornada máxima de oito horas de trabalho por dia.

Entre 1917 e 1920 ocorreram mais de cem greves em São Paulo e


sessenta no Rio de Janeiro. Um ruidoso movimento operário,
fortemente influenciado pelas ideias anarquistas ocupava as ruas
destas grandes cidades com suas manifestações e greves”
(CAMPOS; CLARO; DOLHNIKOFF. 2018b, p. 80).

Podemos identificar, na leitura do texto, a oposição base ordem vs. desordem,


na qual a experiência dos imigrantes e a organização da classe trabalhadora leva a
luta por direitos e a desorganização dos anarquistas atrapalha, gerando incomodo.

ORDEM ------------------------- NÃO ORDEM ------------------------ DESORDEM


(eufórica) (não eufórica) (disfórica)
sindicalistas imigrantes anarquistas
organização exp. política ocupação ruidosa.

No nível narrativo o sujeito trabalhador tem ação transformadora, colocando-


se em junção com os valores necessários à organização e luta de classe, já o sujeito
anarquismo não é colocado dentro do conjunto dos trabalhadores enquanto agentes
organizados, sendo associado as greves como “ocupações ruidosas nas grandes
cidades”, ficando em disjunção dos valores necessários a luta, constituindo uma
representação valorativa negativa do movimento ácrata.
O discurso reforça a ligação dos libertários à representação como desordem,
desvinculando-os de sua participação agregadora e organizadora dos movimentos
operários na primeira metade do século XX. No decorrer do capítulo as “mais de cem
greves” são retomadas, como sugestão de aprofundamento para os docentes, mas,
assumindo valor positivo e sendo associadas à influência da Revolução Russa,
excluindo-se a participação anarquista diante da valorização da ação grevista.
Percebemos na obra a significativa valorização da ação dos trabalhadores e
dos sindicatos, mas tal qualificação positiva não abarca os anarquistas que são
95
separados (pela ação desorganizada), no programa narrativo, da mobilização e ordem
necessárias e predicativas de êxito do movimento operário, levando a representação
valorativa negativa do movimento anarquista
Podemos observar na obra de Campos, Claro e Dolhnikoff (2018b) para o 9º
ano, que ao utilizarem as imagens do jornal A Plebe, conhecido periódico anarquista
publicado por Fábio Luz e Edgard Leuenroth entre 1917 e 1951 e do cortejo fúnebre
do sapateiro Martinez (fig.16), não incluindo suas origens anarquistas e, por meio da
diagramação da página, associando o jornal à Greve de 1917, na qual as ideologias
anarquistas ou anarco-sindicalista sequer foram mencionadas e a fotografia do cortejo
fúnebre do militante libertário à fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), nega
ao anarquismo a posição de sujeito na narrativa principal proposta pelo material.

Figura 16 CAMPOS.; CLAR.; DOLHNIKOFF. História, escola e democracia. 9º


ano. 2018, p. 81

96
O mesmo expediente que instaura a representação inexplícita, com a imagem
do jornal anarquista A Plebe (fig. 16), é utilizado no Capítulo 12 Democratização do
Brasil, ao trazerem a fotografia da torcida do St. Pauli (fig. 17), time alemão conhecido
por sua ação de combate ao nazifascismo, preconceitos e descriminações de forma
ampla, com forte influência da ideologia e presença anarquista e da antifa do Atlético
Ferroviário de Fortaleza, grupo que faz parte de um movimento surgido entre
militantes de esquerda, sobretudo, anarquistas ligados a torcidas de diferentes times
de futebol do país, abertamente contrários ao autoritarismo, à mercantilização do
futebol moderno e a presença fascista entre times e torcidas. Excluindo a origem e
presença anarquista de todos eles, a obra de Campos, Claro e Dolhnikoff, constitui
uma narrativa sobreposta à narrativa principal, na qual os libertários estão incluídos
no processo histórico valorizado pela obra, mas não são nomeados, permanecendo
ausentes como sujeitos.

Figura 17 CAMPOS.; CLARO.; DOLHNIKOFF. História, escola.


p. 274.

97
Figura 18 CAMPOS.; CLARO.; DOLHNIKOFF. História, escola. p. 275

98
Por meio da análise de nossos documentos e suas transformações, podemos
constatar a permanência de uma estrutura narrativa básica na construção do passado
escolarizado que divide espaço com mudanças na produção visual da obra, levando
a diferentes possibilidades de interações entre as narrativas principais e adjacentes,
com o uso cada vez maior de dispositivos gráficos como boxes que figuram como
consenso na distribuição dos textos verbo-imagéticos para o enquadramento dos
anarquistas e de outras tantas temáticas que orbitam o texto base dos livros didáticos.
As inovações tecnológicas e demandas contemporâneas de adequação do texto em
suporte impresso à um layout que o aproxime do suporte eletrônico, constituem, cada
vez mais, estruturas narrativas desagregadas do texto base que delineiam narrativas
sobrepostas à principal, “hiperlinks” que podem ou não ser acessados na prática da
leitura.
As pressões sociais de grupos identitários e as transformações acadêmicas na
produção historiográfica colocaram às obras didáticas a necessidade de contemplar o
dialogismo e a diversidade de vozes no interior de sua narrativa, contudo, a forma de
“ampliar o passado”, comumente apresentadas nas obras, é a construção de
discursos paralelos, por meio do uso de dispositivos gráficos que condicionam a leitura
e entendimento destas multiculturalidades a uma galeria de curiosidades, que podem
ou não ser acessados pelo leitor, sem prejuízo na compreensão da proposta
discursiva da obra.
A análise das obras mostrou a continuidade da sobreposição de
representações no nível básico de análise, mas, ao nível da narrativa, na construção
dos percursos gerativos de sentido, as representações valorativas negativas dos
anarquistas acabaram se sobressaindo, instituindo ao nível do discurso uma visão que
sustenta a permanência da ideia de desorganização, destruição e desarticulação do
movimento anarquista.
Compondo o maior grupo identificado nos livros didáticos que constroem um
quadro do movimento libertário de forma a diminuir sua relevância, ora colocando-o
como sujeito em disjunção do(s) objeto(s) valor(es) postos no texto, ora por opções
semânticas que atribuem ao sujeito anarquismo qualidades negativas. Apresentam
padrões semelhantes no percurso gerativo de sentido, recorrendo a estruturas
narrativas que se repetem, levando-nos a um discurso que submete o entendimento
99
sobre os libertários à sua relação com o marxismo, instaurando um “anarquismo débil”,
incapaz de garantir a organicidade de seus quadros e a estrutura para organização,
sobretudo, do movimento dos trabalhadores.
Buscando apreender os referenciais postos na mobilização de sentido das
representações do anarquismo como um processo que constrói narrativas a partir de
conhecimentos dados anteriormente, recorremos ao conceito de apropriação de
Certeau, no qual a representação dos ácratas identificadas passa a ser entendida
como a “criação de frases próprias com um vocabulário e uma sintaxe recebidos” que
“instaura um presente relativo a um momento e estabelece um contrato com o outro
(o interlocutor) numa rede de lugares e de relações” (CERTEAU. 1998, p. 40).
O anarquismo nos livros didáticos de história, sua representação e o discurso
que comporta, podem ser entendidos por meio da relação dialética que estabelece
com o imaginário social, político e com as produções acadêmicas. Atentando para que
estas representações são elaboradas na dinâmica de apropriação de uma
determinada visão sobre o movimento libertário e sua (re)figuração na criação de outro
produto cultural, pensado para leitores diferentes do público das pesquisas e trabalhos
tomados como referenciais. Para Michel de Certeau:

A presença e a circulação de uma representação (ensinada como


código da promoção socioeconômica por pregadores, por educadores
ou por vulgarizadores), não indica de modo algum o que ela é para
seus usuários. É ainda necessário analisar sua manipulação, pelos
praticantes que não a fabricam. Só então é que se pode apreciar a
diferença ou semelhança entre a produção da imagem e a produção
secundária que se esconde nos processos de sua utilização
(CERTEAU. 1998, p. 40).

As categorias de representação identificadas se consolidam na estrutura


apresentadas nos topos narrativos, incidindo diretamente na elaboração de uma
história escolarizada sobre o movimento libertário e sua ação ou inação em terras
brasileiras, favorecendo uma “memória social”, tensionada pelas questões de poder e
pelas ideologias dos grupos que as constituem e articulam. Como propõe Paul Ricouer
(1997), o sentido do texto se dá na relação de dependências das estruturas internas
e o que está externo a ele, trata-se, não somente “do que contar” nos livros didáticos,

100
mas de “como contar”, quais ações permeiam a possibilidade de construção destas
representações e quais lugares ocupam, tradicionalmente, no ensino de história.

Os topos narrativos: lugar comum na escolarização do anarquismo

Teorias políticas e sociais do século XIX


(o anarquismo oposicionista)

No recorte das Teorias políticas e sociais do século XIX, podemos perceber


que a abordagem das ideias anarquistas surge como parte do corpo de doutrinas que
se opunham ao capitalismo, estando, quase que invariavelmente, subposta ao
socialismo científico e muitas vezes explicada por meio de suas diferenças e
semelhanças com esse. Constitui-se um topo narrativo que contempla o anarquismo
como oposicionista, incidindo em sua resistência ao sistema capitalista e a oposição
ao socialismo científico e comunismo, estratégia narrativa constante em sua
qualificação nos livros didáticos. Os libertários assumem, neste sentido, a ação de
opor-se ao Estado, família, religião, propriedade privada etc., como característica
principal, responsável por modular sua representação ao nível do discurso.
A Coleção didática Nova História Crítica de Mario Furley Schmidt se propõe a
dar voz aos trabalhadores, importantes sujeitos históricos da narrativa construída nas
obras, destinadas ao ensino fundamental (primeiro-grau) e médio (segundo-grau). Em
uma leitura atenta, observamos que os livros têm como recorte as revoluções
populares e burguesas para a 7ª série e relações de trabalho e tecnologia para a 8ª
série, alinhando-se ao proposto pelo PCN.
Os trabalhadores são os sujeitos históricos privilegiados no recorte dado pelo
autor, evidenciando a inclinação da obra para uma abordagem que recupere as
histórias dos sujeitos coletivos, pautando-se no materialismo histórico-dialético. Na
página de abertura do capítulo 14 do livro destinado à 7ª série do ensino fundamental,
são apresentadas as teorias que ganharão espaço no interior do capítulo, junto à
reprodução da obra O Quarto Estado de Giuseppe Volpedo, contendo quatro
pequenos textos, sendo um destinado a propor questões para reflexão dos educandos

101
e os demais para a apresentação do socialismo utópico, o marxismo e positivismo, o
anarquismo está ausente (fig. 19).

Figura 19 SCHMIDT, Mário. Nova história crítica. 2000, 7ª série.

102
Nas páginas subsequentes teremos, inicialmente, um acréscimo as questões
propostas aos educandos, a apresentação do socialismo utópico em uma abordagem
bastante ampla dos socialistas ingleses, trazendo as ideias de Robert Owen, Charles
Fourier e demarcando, no final do texto, o fracasso destas propostas. A próxima teoria
a ser apresentada é o socialismo científico, momento no qual podemos ver um box
reforçando a ideia de ação/trabalho empreendido por Marx e Engels e uma imagem
de Proudhon (fig.20), sem nenhum tipo de apresentação deste pensador anarquista,
além de uma menção da crítica feita por Karl Marx a ele, chamando-o de pequeno-
burguês.

Figura 20. SCHMIDT, Mário. Nova história crítica. 2000, 7ª série p. 203.

103
O anarquismo surge na parte final do capítulo, ocupando aproximadamente
uma coluna e meia de texto. Mikhail Bakunin ocupa a posição central no final da
página, sentado em uma cadeira de espaldar alto, assemelhando-se a um trono,
diagramado de forma a construir uma linha em oposição à ilustração da gravura do
confronto entre os trabalhadores franceses e a polícia, além da oposição posta pela
narrativa de Marx e Engels (em ação) na tipografia (fig. 20) e Bakunin em inação,
sentado (fig.21).

Figura 21SCHMIDT, Mário. Nova história crítica. 2000, 7ª série p. 208

104
O texto utiliza o recurso da comparação com o socialismo científico para
qualificar a ideologia anarquista, já na primeira linha os socialistas são convocados
como parâmetro: “os socialistas não foram os únicos a abominar o capitalismo”
(SCHMIDT. 2000a, p. 208). Continuando a descrição sobre o movimento anarquista,
observamos que o autor intercala parágrafos nos quais traz informações sobre o
anarquismo e parágrafos nos quais constrói sua perspectiva atrelada ao marxismo.

O ideal anarquista é parecido com o do marxismo: ambos concordam


que só pode haver justiça em uma sociedade que todos sejam livres e
iguais. Isso significa o fim da propriedade privada capitalista e a
criação de uma sociedade em que todos cooperem. Entretanto
existem diferenças importantes entre os marxistas e anarquistas.
[...]

Os marxistas por sua vez até concordam que na futura sociedade


comunista não haveria Estado e todos seriam absolutamente livres.
Mas isso só seria possível em um futuro bem distante, porque entre o
capitalismo e o futuro comunismo deveria existir um uma sociedade
intermediaria que poderia ser chamada de socialista.
[...]

Outra diferença importante: os anarquistas não têm partido político,


nem participam de eleições. Os marxistas criticam essa atitude porque
consideram a participação política muito importante para os
trabalhadores. (SCHMIDT. 2000a, p. 208-209).

Os três excertos demonstram uma das estratégias narrativas mais


comuns nas obras didáticas estudadas, o condicionamento e, em dada medida, a
subordinação do anarquismo ao socialismo científico, nestas construções a ideologia
libertária é em oposição, aproximação ou distanciamento das ideias marxistas, sendo
que a explicação que a envolve é em função do outro, negando-lhe a sua
independência teórica e historicidade.
Nos exercícios de revisão que compõem cada um dos capítulos da obra,
veremos novamente o entendimento (aquilo que deve ser fixado pelo educando) sobre
o anarquismo, subordinado a sua relação com o socialismo científico.

“É anarquista por definição, aquele que não quer ser o oprimido nem
o opressor, aquele que quer o máximo de bem-estar, o máximo de

105
liberdade, o maior desenvolvimento possível de todos os seres
humanos.” (Malatesta, anarquista italiano, 1899).

“A exploração é o corpo visível do Estado é a alma do regime burguês.”


(Bakunin, anarquista russo, 1871).

“O Estado nada mais é do que uma máquina para uma classe social
oprimir a outra.” (Engels, 1891).

Mostre as semelhanças e diferenças entre o anarquismo e o


socialismo científico. (SCHMITD. 2000, p. 219).

É desejável saber sobre o anarquismo o que o aproxima ou afasta do


socialismo, descartando-se a relevância de compreender as ideias ácratas por si, para
só depois, compreender a relação que pode ser estabelecida entre estas duas
correntes de pensamento. Existe um jogo de representações que, ao mesmo tempo
que constrói uma visão ampla do movimento anarquista, trazendo diferentes teóricos
e elementos para sua compreensão, o que poderíamos observar como uma
representação valorativa positiva, condiciona toda sua teoria e perspectiva de
sociedade ao que propõem o marxismo, subordinando-o a este, que na construção
verbal e imagética ganha destaque, levando-nos a uma representação valorativa
negativa ao suprimir o protagonismo das ideias libertárias.
O livro Estudar história. Das origens do homem a era digital (2013), voltado
para o público do 8º ano do ensino fundamental, apresenta o anarquismo no capítulo
12, intitulado As lutas operárias e as novas teorias políticas. Podemos ver uma rápida
explicação sobre o anarquismo, seguido pela apresentação das aproximações e
distanciamentos deste com o marxismo, constituindo um texto que privilegia o topos
narrativo do anarquismo oposicionista dentro do recorte das Teorias políticas e sociais
do século XIX. Finalizando com uma proposta de atividade utilizando-se de um excerto
de Mikhail Bakunin e no final da página, uma fotografia de manifestantes anarquistas
contemporâneos, na cidade de Berna, Suíça (fig.22).

106
Figura 22 BRAICK, Patrícia Ramos. Estudar história das origens do homem a era digital. 2013, 8º ano, p.
209.

107
Na página subsequente, insere um box com a sugestão do filme Sacco e
Vanzetti (fig. 23), contando com a fotografia de uma das cenas da obra do diretor
Giuliano Montaldo:

Figura 23 BRAICK, Patrícia Ramos. Estudar história das origens do homem a era digital. 2013, 8º ano p. 210.

Na sequência é proposto um diálogo sobre a arte realista e utilizado como


ilustração o quadro feito por Gustave Coubert de Proudhon e suas filhas (fig. 24), sem,
contudo, mencionar sua filiação ao anarquismo:

108
Figura 24 (BRAICK, Patrícia Ramos. Estudar história das
origens do homem a era digital. 2013, 8º ano, p. 213).
Cabe ressaltar que o quadro feito por Coubert é utilizado com frequência para
representação imagética de Proudhon (muitas vezes como socialista utópico), e
recortado (enfatizando apenas sua face). Não localizamos nenhuma obra que
trouxesse menção a proximidade do teórico anarquista e o pintor, que, contudo, foi
bastante impactante para Coubert, relatada em cartas para seus pais, e retratada por
alguns estudiosos de sua vida e arte. Consideramos esta representação específica
como inexplícita, uma vez que não estabelece relação direta com o restante da
narrativa, mas, não a qualificamos como o modelo de representação preponderante
na obra de Braick.
A coleção ainda conta com manual do professor, no qual apresenta algumas
instruções para trabalhar com o filme Sacco e Vanzetti, sugerido no material didático.
Dentre as sugestões de trabalho, algumas chamam a atenção pelos trechos propostos
e suas formas de análise:

Trecho 2 (dos 00:17:18 min aos 00:20:57min): Os amigos Nicola


Sacco e Bartolomeo Vanzetti são denunciados como anarquistas.
Conduzidos a delegacia, são interrogados e acusados de um crime de
assalto seguido de morte. (BRAICK, 2013, p. 334)

É recomendado ao professor que oriente os alunos para identificar alguns


pontos da obra dentre eles o assassinato de um anarquista na sede da polícia de
Boston e as ideias defendidas por Bartolomeu Vanzetti:

[...] ele considera que durante sua vida combateu a exploração, do


homem pelo homem. Que seus únicos crimes seriam o fato de ser
anarquista e italiano. E finalmente que tanto ele como seu amigo
seriam lembrados no futuro, enquanto os membros do tribunal seriam
esquecidos. (BRAICK, 2013, p. 334-335).

A proposta narrativa da coleção Estudar história das origens do homem a era


digital, busca abarcar tanto a parte verbal como imagética em uma mesma
interpretação, elaborando uma representação das teorias do século XIX que lhes
garanta independência, ao mesmo tempo que as correlacione. Logrando um percurso
gerativo de sentido que possibilite a construção de uma representação valorativa
positiva no discurso perpetrado sobre o movimento libertário.

109
Percebemos que parte considerável dos programas narrativos presentes nos
livros didáticos privilegiam as representações do anarquismo em oposição ao
socialismo científico, produzindo a construção de uma dissimetria de valores
irreversível, mesmo que as obras apresentem, em alguns momentos da narrativa, uma
representação valorativa positiva do anarquismo, o condicionamento de sua
mobilidade e significância ao outro (socialismo científico), leva o leitor, educando que
na grande maioria vê o anarquismo pela primeira vez nas páginas do livro de história,
a formulação de uma visão contraditória e de menor significado social. Como aponta
Eric Landowski:

As posições respectivas certamente fazem mais que se interdefinir e


se intercambiar como um jogo de soma zero. Intuitivamente, sente-se
que há “alguma coisa” - de que será preciso tentar dar conta - que vem
se imiscuir a maneira de uma fatalidade nessa bela ordem racional e
que falseia de vez o jogo, ali instalando a dissimetria e a não-
reversibilidade. (LANDOWSKI. 2002, p. 45).

Este intercambiar de sentidos, no qual o anarquismo é apresentado e explicado


em função do socialismo científico, corrobora para a construção social de uma
identidade ácrata descolada daquela erigida pelos teóricos e militantes do movimento,
mas que mantém laços com as produções de sentido das análises produzidas sobre
o anarquismo nas décadas de 1970 e 1980, como abordado por Allyson Viana (2002)
e Daniel Aarão Reis Filho (1997).
A narrativa proposta por Patrícia Ramos Braick (2018) marca um contraponto
ao modelo preponderante, permitindo ao anarquismo assumir seu papel na luta
anticapitalista e antiautoritária como sujeito, preservando sua historicidade e
importância enquanto prática e influência em diversas áreas. Ocupando, no discurso
instituído pela obra, o lugar do anarquismo oposicionista, mas o fazendo em uma
perspectiva que permita sua valorização como sujeito histórico.
Podemos ver ecos, sobretudo nos livros didáticos produzidos nas últimas duas
décadas, da presença, mesmo que discreta, de trabalhos acadêmicos influenciados
pelas pesquisas de Edgar de Deca e Carlos Alberto Vicentini, estabelecendo
apropriações temáticas, como a perseguição política aos anarquistas e a questão de
gênero através do aumento de mulheres anarquistas nas obras.

110
Movimento operário nos séculos XIX e XX
(o anarquismo como influenciador estrangeiro)

Um tema comum nas narrativas presentes nos livros didáticos de história sobre
os libertários são os movimentos operários do século XIX e XX, instaurando o topo
narrativo do anarquismo como influenciador estrangeiro, predominantemente nas
primeiras décadas do século XX. Compondo a maioria das narrativas e
representações encontradas nas fontes analisadas, a luta dos trabalhadores constitui-
se como importante recorte para a configuração do passado anarquista, o
anarcossindicalismo e ações como a Greve de 1917 costumam ser abordadas nas
obras didáticas.
Iremos iniciar a análise deste topo narrativo utilizando as obras História
sociedade e cidadania para a 8ª série/ 9º ano publicadas em 2007, 2012, 2018 e para
o 3º ano do ensino médio, publicado em 2016.
Ao abordar o movimento operário no livro destinado à 8ª série (9º ano), traz no
primeiro parágrafo uma breve contextualização das condições de vida e exploração
da classe trabalhadora, para em seguida falar sobre as ideologias que permeavam o
movimento de luta operária.

As doutrinas com maior penetração no movimento operário foram o


socialismo e o anarquismo. Os socialistas fundaram vários partidos
políticos, como o Partido Operário criado em 1908, na cidade do Rio
de Janeiro. Eles lutavam por reformas, como a jornada de 8 horas, e
desejavam conquistá-la sobretudo através das eleições.
Já o anarquismo foi predominante em São Paulo. Os militantes
anarquistas eram contrários à existência do Estado e negavam-se a
participar do processo eleitoral, defendendo a tomada de poder pelos
operários por meio da greve geral revolucionária. (BOULOS. 2006b, p.
78).

No item A luta pelas 8 horas, o autor traz o Congresso Operário mencionando


sua organização pelos militantes anarquistas Edgard Leuenroth e Mota Assunção,
além de títulos de jornais anarquistas. Ao abordar a Greve de 1917, não apresenta
nenhuma vinculação desta ao anarquismo no texto verbal, havendo, contudo, a
menção do sapateiro Martinez e a fotografia de seu cortejo fúnebre (fig. 25).

111
Figura 25 BOULOS, Alfredo. História sociedade e cidadania. 8ª série. 2006, p. 79.

112
A publicação de 2012 traz à mesma divisão de capítulos e texto, havendo
somente a alteração da imagem do enterro de Martinez, ao passo que na obra de
2018 vemos algumas mudanças tanto na divisão de capítulos como no texto. O
movimento operário passa a figurar no capítulo 2, Primeira República, dominação e
resistência, no subitem Contestação e dinâmica da vida cultural na Primeira
República.
A parte textual destaca o caráter estrangeiro dos operários, sobretudo em São
Paulo e por conseguinte, do próprio movimento operário paulista. “Em 1920, em São
Paulo, 51% dos operários eram estrangeiros, enquanto no Rio de Janeiro estes
somavam 35%; a maioria do operariado era formada de italianos, portugueses e
espanhóis” (BOULOS. 2018b, p. 34). O estrangeirismo das ideologias operárias se
consolida textualmente, ao afirmar que “esses ideais entraram no Brasil com os
imigrantes europeus”. (BOULOS. 2018b, p. 34). Utilizando-se do recurso visual,
complementa essa ideia por meio de uma fotografia (fig. 26) que ocupa lugar de
destaque na página, a legenda chama a atenção para as feições e vestimentas dos
trabalhadores, caracterizando-os como imigrantes.
Ao descrever a ideologia anarquista, o autor, reitera a importância da imprensa,
citando os jornais O Libertário, Terra Livre, A voz do trabalhador e A Plebe, apresenta
a “[...] “greve geral revolucionária”, que poria fim ao Estado e ao capitalismo”
(BOULOS. 2018, p. 34), como objetivo maior dos anarquistas. Edgard Leuenroth,
Everardo Dias e José Oiticica são indicados como líderes do movimento. Cabe
ressaltar, entretanto, que dos três anarquistas apresentados, somente Everardo Dias
não era brasileiro, tendo chegado ao Brasil aos dois anos de idade, contrapondo a
premissa de estrangeirismo do movimento ácrata que permeia a obra.

113
Figura 26 BOULO, Alfredo. História sociedade e cidadania. 2018, 9º ano, p. 34.

114
Os livros da coleção que foram analisados oferecem um panorama bastante
parecido entre si, explorando o caráter estrangeiro dos trabalhadores, sobretudo de
São Paulo, onde, segundo o autor, há uma maior ênfase no movimento anarquista,
constituindo uma representação que desvincula o movimento ácrata dos
trabalhadores nacionais, retomando a narrativa de “planta exótica”.
Na obra História Integrada do fim do século XIX aos Dias atuais, volume 4,
destinado ao público da 8ª série, publicado em 1997 pela Editora Ática que tem como
principal autor o professor universitário, José Jobson Arruda, o anarquismo surge na
Unidade III, Capítulo 9: Transformações na sociedade brasileira: a cidade e o campo.
Ao falar do movimento feminista nascente apresenta a participação de Maria
Lacerda de Moura; e ao tratar do movimento operário, no capítulo 10: Conflitos
políticos externos e internos, coloca os libertários no texto de abertura como
organizadores dos sindicatos e das lutas trabalhistas.
A obra oferece ao leitor uma narrativa que contempla a relevância da presença
anarquista na organização dos sindicatos que passam as mãos socialistas após
1920, considerando como motivadores do esvaziamento do movimento o aumento
das perseguições e deportações dos ácratas depois da Greve de 1917, somado aos
impactos mundiais da Revolução Russa.
No desenvolvimento do item: História do movimento operário, indica a forte
presença imigrante como base dos sindicatos anarquistas, demarcando o anarquismo
como influenciador estrangeiro; retoma o Primeiro Congresso operário como fruto da
ação e organização ácrata, dá considerável ênfase aos jornais libertários, trazendo
imagens e referenciando textualmente o Amigo do Povo, La Battaglia e A Plebe,
menciona rapidamente Luigi Damiani e Edgard Leuenroth, frisa a concepção pacifista
que assumem durante o conflito da Primeira Guerra Mundial, por considerá-la como
uma guerra de capitalistas, também enfatiza o caráter anticlerical do movimento
anarquista e a importância e ação no campo cultural e educacional:

Os sindicatos anarquistas também organizavam espetáculos de teatro


e redigiam poesias de cunho social, que eram apresentadas em festas
e reuniões comemorativas, como o 1º de Maio, Dia Internacional do
Trabalho.

115
Os anarquistas procuraram também construir escolas próprias, para
educar as crianças e aos adultos operários, conforme sua maneira de
pensar. (ARRUDA. 1997, p. 56).

Ao abordar a Greve de 1917, José Jobson Arruda enfatiza a preponderância


do anarquismo em sua liderança e organização, sinalizando, também, para seu
declínio após a Revolução Russa. No subitem Repercussões do movimento grevista,
faz-se presente um significativo quadro das ações do anarcossindicalismo para além
da Greve de 1917, como a greve dos barqueiros no Rio de Janeiro (1918) e ações e
comícios em Porto Alegre e na região Nordeste. Finaliza o texto falando sobre a
propaganda contra os “estrangeiros terroristas” e a prisão, deportação ou envio para
o Amapá, não há a citação textual da colônia penal de Clevelândia do Norte.
Abordagens e sujeitos colocados por Arruda indicam a construção de relações
temáticas com a produção acadêmica. Ao validar a ação de Maria Lacerda de Moura
dentro da luta feminista e anarquista, trazendo a Liga de Emancipação Intelectual da
Mulher, fundada por ela e Berta Lutz, dialoga com pesquisas que propõem novos
recortes e abordagens como o doutorado de Miriam Lifchitz Moreira Leite, defendido
em 1983, Caminhos de Maria Lacerda de Moura: contribuição a história do feminismo
no Brasil.
Podemos perceber no recorte de Jobson José Arruda, a construção de uma
narrativa que tensiona a relação entre o socialismo científico e o anarquismo, mas que
garante a ambos a possibilidade de enunciação no plano do discurso, erigido uma
representação valorativa positiva do movimento anarquista e de seus militantes.
O livro História Crítica (1994) de Mário Furley Schmidt para o segundo grau,
exibe como parte do capítulo 18, A República Velha, item As lutas operárias, a
descrição da situação dos trabalhadores no Brasil, constituindo uma narrativa que
retoma o aspecto de “estrangeiro” desta classe social nas primeiras décadas do século
XX, reiterando um padrão de representação do operariado como fruto da imigração,
lugar comum na produção historiográfica e sociológica da década de 1970, o que
desqualifica seu caráter nacional e desconsidera suas lutas e desdobramentos como
uma prática dos brasileiros.
A obra organiza uma linha narrativa que sustenta como objeto central a luta dos
trabalhadores, colocando em destaque, neste primeiro momento, o anarquismo,

116
condicionado ao papel de estrangeiro: “Um papel muito destacado foi desempenhado
pelos anarquistas. Foram os imigrantes italianos e espanhóis que trouxeram essas
ideias” (SCHMIDT. 1994, p. 143).
Também reforça a ideia de distanciamento dos anarquistas dos interesses
políticos, trazendo a “apatia” política como dado permanente do movimento ácrata:
“Os anarquistas consideram que a luta política é burguesa. Por isso não votam, não
têm partidos políticos e pouco se importam se é esse ou aquele que está governando”.
(SCHMIDT. 1994, p. 143).
Ao abordar a Greve de 1917, opera o deslocamento do eixo Rio-São Paulo,
mais comum nas obras estudadas, mencionando manifestações em Salvador, Porto
Alegre e Recife. Ao ampliar o recorte sobre o movimento operário, assinala que a
minoria dos trabalhadores era anarquista, sendo que, a maior parte deles não se
ligavam às ideologias do período.

Na realidade, uma grande parte dos trabalhadores não era anarquista.


Muitos se submetiam aos patrões. A Igreja Católica, na época, era
muito conservadora e procurava ensinar aos fiéis que eles deveriam
aceitar tudo com resignação, pois essa seria a vontade de Deus. Dá
para entender, então, porque os anarquistas gostavam de dizer que “a
Humanidade só será livre no dia em que o último burguês for
enforcado com as tripas do último padre”. (SCHMIDT. 1994, p. 144).

Na sequência do texto busca qualificar a ideologia anarquista, partindo do


significado do termo anarquia, enfatizando não se tratar de bagunça, mas da ausência
de poder, oferece um rápido vislumbre de conceitos caros aos libertários como
autogoverno e anticapitalismo, traz o interesse e desenvolvimento de iniciativas
ligadas a educação e cultura, a preocupação com a alimentação, feminismo e
sexualidade. Sobre as ações de coerção dos trabalhadores e militantes, menciona o
impacto da lei Adolfo Gordo (1908) e, assim como na obra de José Jobson Arruda,
Schmidt aborda o “Campo de concentração da Amazonia”, destinado aos presos
políticos.
O anarquismo é retomado nos exercícios de revisão, mas, por meio da
comparação entre as ideias libertárias e comunistas (marxistas), reforçando a
compreensão do anarquismo em comparação com o socialismo científico, mesma

117
estratégia narrativa utilizada ao descrever as ideologias do século XIX e estrutura
comum na maioria das obras analisadas.
Podemos constatar na maioria das coleções didáticas analisadas a limitação
espacial aos acontecimentos de São Paulo e, eventualmente, no Rio de Janeiro,
refletindo as pesquisas acadêmicas, onde o foco se concentra em sua ação no
Sudeste. Cabe ressaltar que na obra de Alfredo Boulos Júnior, esse recorte é ainda
mais restrito, vinculando os anarquistas, majoritariamente, à São Paulo. O
anarcossindicalismo é uma das ideologias libertárias que mais vezes é retratada nos
livros didáticos, contudo, raramente explicado para além de sua nomeação e ação
ligada à Greve de 1917 ou a produção de jornais operários, sendo suprimido pela
formação do PCB.
Percebemos que as ideias e ações ácratas estão restritas, com algumas
exceções, ao seu caráter imigrante (mesmo quando os anarquistas mencionados são
brasileiros), sua ação espacialmente delimitada à região Sudeste e sua finitude no
passado, conformam-no como “produto estrangeiro” que exerce influência no
desenvolvimento da classe trabalhadora, mas que possui uma pressuposta
inapetência para a organização, por isso suplantado pelo socialismo com a criação do
PCB. Trata-se da edificação de um lugar comum na representação dos libertários que
converge para uma ideia de inadequação e ausência de ordem.

Personagens libertários
(a personificação do anarquismo)

Entre as histórias contadas nas páginas dos livros didáticos, alguns nomes
tornam-se comuns e outros surgem pontualmente, talvez por inclinação ideológica ou
poética dos autores, talvez por marcarem um lugar específico na proposta narrativa
elaborada para o material. Por diversas vezes são apenas nomes ou ilustrações
enfeitando as páginas, usados para atribuir uma feição à ideologia ali representada e
cumprir seu papel de erigir uma liderança para os acontecimentos históricos sob a
égide do anarquismo. Ocupando, assim, um importante locus na forma amplamente
utilizada pela narrativa no ensino de história, o de comando e por que não dizer,
hierarquia, na ação dos sujeitos no passado.
118
Nas estruturas narrativas presentes nos livros didáticos de história sobre o
anarquismo, talvez a que tenha sofrido mais mudanças sejam os arranjos entre forma
e conteúdo que dão visibilidade aos “personagens” ácratas. Nas últimas duas décadas
o significativo aumento dos recursos visuais nas obras possibilitou um crescente
número de fotografias e pinturas retratando os libertários, contudo, nem sempre
concedendo-lhes seu lugar de direito entre os anarquistas. A figura de Pierre-Joseph
Proudhon é retratada frequentemente nas publicações da década de 1990, como
representante do socialismo utópico, posição que paulatinamente foi sendo alterada
nas décadas subsequente, para que assumisse seu merecido lugar como um dos mais
importantes teóricos libertários; ou Lima Barreto que em nenhum momento tem sua
relação com as ideias anarquistas incluída em legendas e minibiografias. Também é
notório o aumento de figuras femininas, o que nas obras mais recentes acaba por
condizer com o proposto pela BNCC em seus objetos de aprendizagem.
Para compreendermos os caminhos assumidos pelo topos na narrativa, é
necessário pensar qual a função destes sujeitos, quantas ausências carregam e quais
discursos possibilitam. Personagens como Mikhail Bakunin, Pierre-Joseph Proudhon
são figuras frequentes nos discursos sobre o anarquismo. Pietr Kropotkin figura tanto
na parte textual como imagética e Errico Malatesta surge nos textos e como autor de
documentos (fragmentos) utilizados em atividades ou boxes informativos. Uma das
imagens mais vinculadas de Proudhon pelos materiais didáticos é o quadro de 1853
feito por Gustav Coubert, que estabeleceu relações com as ideias anarquistas e nutria
grande admiração pelo teórico.
Outros personagens se fazem presentes, normalmente utilizados como
simples complemento para demarcar, de algum modo, a presença de lideranças,
centralidades e hierarquia (locus essenciais na forma narrativa apresentada pelos
materiais didáticos). Vemos citações à Leon Tolstói, Everardo Dias, José Oiticica, Luis
Magrassi, Alfredo Vasquez, Max Stiner, Luigui Damiani, Edgard Leuenroth, Errico
Malatesta, Mota Assunção, Nicolla Sacco e Bartolomeo Vanzetti, na maioria das
vezes, instrumentalizados para compor a personificação das ideias na figura de um
ou mais nomes que representem papel de liderança.

119
Na obra destinada ao 9º ano do ensino fundamental, Estudar História das
origens do homem a era digital (2018), vemos a presença pouco comum de Astrojildo
Pereira (fig. 28) e a menção da relação entre os anarquistas e a Revolução Russa
como complemento para o professor. Os livros da coleção em sua 3ª edição passam
a contar com a escritora e também professora de história, Anna Barreto.

Figura 27 BRAICK, Patrícia Ramos. BARRETO. Anna. Estudar História das origens do homem a
era digital. 2018, 9º ano, p. 32

120
Voltada aos educadores, a nota de rodapé, Sobre a Imagem, fala do jornal
Spartacus, explicando a origem de seu nome e, argumentando que para muitos
anarquistas e socialistas brasileiros não existia uma clara compreensão sobre o que
seria o anarquismo e o socialismo, utilizando-se da imagem e fala atribuída a Astrojildo
Pereira, para corroborar seu posicionamento.

O jornal Spartacus recebeu esse nome em homenagem à Liga


Espartaquista, movimento de orientação comunista na Alemanha
liderado por Rosa Luxemburgo. Vários dos anarquistas e socialistas
brasileiros não tinham muita clareza das diferenças entre as teorias
sociais. Astrojildo Pereira, futuro fundador do PCB, por exemplo,
chegou a celebrar o sucesso da Revolução Bolchevique, em 1917,
dizendo que ela “abriu caminho para o anarquismo”. (BRAICK;
BARRETO. 2018, p. 32).

A atribuição de características, como “pouco esclarecidos” e, até mesmo,


condicionando o anarquismo a “paixão” e não ao uso da razão, configurou-se como
lugar comum nas abordagens voltadas para o ensino de história, herdeira da visão
sociológica da década de 1970 que condicionavam a ascensão das ideias libertárias
em terras brasileiras à imigração e a uma industrialização incipiente, o que não
possibilitaria a formação de uma classe operária esclarecida e organizada.
Há uma tendencia a seleção de personagens estrangeiros para compor a face
do anarquismo, levando a um silenciamento como ideologia presente e significativa
entre os operários e intelectuais brasileiros que, quando estampam as páginas dos
livros didáticos, são, por vezes, apresentados sem a menção de sua filiação ao
movimento anarquista, configurando um processo de representação inexplícita, a
exemplo da obra Historiar (2015) de Gilberto Cotrim e Jaime Rodrigues, trazem uma
imagem do anarquista e fundador da Liga Humanitária dos Homens de Cor, Armando
Gomes, sem incluir a ideologia ácrata em sua descrição (fig. 28).

121
Figura 28 COTRIM, Gilberto. RODRIGUES, Jaime. Historiar. 9º ano. 2015, p. 105

122
A presença de mulheres anarquistas nas páginas dos livros didáticos da
década de 1990 é bastante discreta, sendo restrito no material analisado a uma breve
citação feita por Mário Schmidt à Elvira Boni, algumas poucas menções à Louise
Michel nas raras citações sobre à Comuna de Paris, sendo, na maioria das vezes
elidida sua origem anarquista e a Maria Lacerda de Moura.
Na segunda metade da década de 2010, vemos o aumento da presença
feminina nas páginas que se dedicam ao movimento ácrata, o que entendemos como
resultado do objeto de aprendizagem “Anarquismo e protagonismo feminino” proposto
pela BNCC para o 9º ano do ensino fundamental e do expressivo aumento de
pesquisas acadêmicas, grupos de estudo e rodas de conversa sobre as mulheres
libertárias dentro dos coletivos ácratas, estabelecendo uma importante relação
dialógica entre as diferentes esferas produtoras de conhecimento e memória sobre os
libertários.
Nomes como Emma Goldman, Isabel Cerruti, Matilde Magrassi e Isa Rute
passam a ser citados pelos textos, assim como Rosa Musitano e Maria Angelina
Soares. Cabe ressaltar, entretanto, que se trata ainda de um aumento discreto,
presente em obras como o Projeto Araribá Mais (2018) e Estudar História (2018),
escritas ou organizadas por mulheres. Exemplo disto é a presença de Maria Lacerda
de Moura na obra destinada aos nonos anos e de Emma Goldman (fig. 29), em
posição de destaque, discursando para a massa de trabalhadores, na edição voltada
para o 8º ano do ensino fundamental da coleção Estudar História.

123
Figura 29 BRAICK, Patrícia Ramos. BARRETO. Anna. Estudar
História das origens do homem a era digital. 8º ano. 2018, p. 194.
Observamos na obra coletiva Araribá Mais (2018) a anarquista Lucy Parsons
(fig. 30), qualificando sua ação e ideias dentro do movimento anarquista
estadunidense. Assim como Armando Gomes, trazem um importante destaque para
representatividade do anarquismo negro, tema que dá seus primeiros passos na
pesquisa acadêmica e ainda está ausente dos debates propostos nos materiais
didáticos.

Figura 30 Araribá Mais. 9º ano, 2018, p. 153.

124
Estes militantes anarquistas surgem nos livros didáticos em momentos que
também se tornam alvo de maior interesse academico e temas de estudo e discussão
em coletivos como a Biblioteca Terra Livre e o Centro de Cultura Social, corroborando
nossa observação de circularidade dos saberes entre os grupos que se dedicam a
estudar e viver o anarquismo, sua participação nos meios militantes, universitários e,
por consequencia, na produção dos materiais didáticos.

Associação Internacional dos trabalhadores (AIT)

É necessário incluir a Associação Internacional dos Trabalhadores neste


conjunto, mesmo diante da não constituição de um topo narrativo que possamos
considerar “desenvolvido” pelos materiais didáticos, contudo percebemos sua
introdução como parte das lutas e articulação operária e sua tentativa de
internacionalização, sendo presente o anarquismo (de forma periférica) como parte
deste movimento, que tende a privilegiar a participação marxista.
Notamos, entretanto, a diminuição de seu desenvolvimento dentro dos
materiais produzidos nos últimos cinco anos, ecoando o progressivo silenciamento
das teorias sociais e econômicas que propõem uma nova possibilidade de
organização das sociedades e da ação dos trabalhadores, bastante presentes nas
obras produzidas nas décadas e 1900 e 2000 e em visível declínio a partir da segunda
metade da década de 2010. Possível reflexo do avanço da abordagem culturalista da
história nos livros didáticos, talvez fruto de uma mudança política e socioeconômica
contemporânea, demarcando novos regimes de historicidades e sujeitos históricos, já
que toda história, como bem nos alertou Lucien Febvre (1953) não é a lembrança do
passado, mas sua reconstrução e interpretação a partir do presente.

O anarquismo pontilhado no livro didático

Para além dos lugares comuns erigidos na narrativa para a representação


anarquista, algumas presenças, na maioria das vezes de forma única, portanto, não
formuladora de um padrão recorrente nas narrativas, não passaram despercebidas.
Tais intervenções pontuais sobre o anarquismo, mas que certamente ocorrem com
125
outros sujeitos históricos, configuram uma “personalidade das obras”, como um ponto
de fuga nas fórmulas que se repetem na produção destes materiais.
Dentre este pontilhado chamou-nos a atenção a relação estabelecida entre as
ideias anarquistas e movimentos de revolta, cultura e emancipação. Observamos no
livro História, escola e democracia (2018) para o 9º ano do ensino fundamental, o uso
nominal do anarquismo como ideologia presente entre os operários ao abordar os
antecedentes da Revolução Mexicana (p.179), a cultura hippie (p. 220). A obra Araribá
Mais (2018), para o 8º ano do ensino fundamental, pontua a relação da tática black-
blocs e os anarquistas (fig. 23). A preocupação dos anarquistas com a educação, a
importância da cultura e sua verve artística aparecem na obra Nova História Crítica
(2000) para os 8º anos (p. 80).

Uma visão distorcida: O que é anarquismo

Para adentrarmos na análise das representações do anarquismo no livro O que


é anarquismo, faz-se essencial compreender um pouco melhor as dinâmicas e
estratégias da produção editorial e a organização interna da coleção Primeiros Passos,
os caminhos ideológicos e metodológicos que se articulam para formação de seu
público (leitor/consumidor). Como salienta Maria Rita de Almeida Toledo:

As coleções de livros são compreendidas como modalidades


específicas de impresso, que carrega em sua materialidade dupla
estratégia de intervenção cultural: a intervenção editorial, que, por
meio da reorganização dos textos, objetiva a ampliação do mercado
do livro; a intervenção no campo da cultura, que é fruto da seleção e
adaptação do conjunto de textos e autores, assim como da prescrição
de seus usos em um programa para a formação do leitor destinatário
da coleção. (TOLEDO. 2008, p. 139-140).

A coleção Primeiros Passos da editora Brasiliense27 conhecida nacionalmente


pelos títulos sempre compostos pelo “O que é”, foi lançada no mercado por Caio Graco
Prado, então presidente da editora e Luiz Schwarcz, editor responsável, em 1980.

27Fundada em 1943 pelo historiador Caio Prado Júnior, pelos escritores Monteiro Lobato e Maria José
Dupré e Artur Neves, é reconhecida como uma das mais tradicionais editoras brasileiras. Foi
responsável pela publicação de várias coleções de bastante sucesso editorial, dentre elas a coleção
Primeiros Passos, Tudo é História e Encanto Radical.
126
Vendeu mais de 2,5 milhões de exemplares só nos cinco primeiros anos. Composta
por livros em brochura, no formato de bolso (11,5 cm x 16 cm), foi pensada como uma
mercadoria de baixo custo, voltada para atender ao público jovem.
O livro O que é anarquismo foi o quinto título lançado pela coleção em 1980,
escrito por Caio Túlio Costa, jornalista que à época trabalhava no jornal Leia Livros,
fundado por Caio Graco Prado. O exemplar que analisamos foi publicado em 1990,
trata- se da 15ª edição, não havendo informações sobre revisão e atualização do texto
ao longo do tempo.
É inegável a importância e impacto dos títulos da coleção Primeiros Passos, de
caráter propedêutico e custo acessível, teve significativa presença na formação
intelectual dos jovens das décadas de 1980 e 1990, e seus ecos ainda podem ser
observados na representação anarquista proposta nas páginas das coleções
didáticas, colocando a leitura atenta deste material como necessária para
alcançarmos os objetivos da pesquisa.
Como proposta para o público jovem (em fase de escolarização ou não), mesmo
não direcionado ao ensino fundamental, circulou no ambiente escolar, fazendo parte
do acervo das salas de leituras e bibliotecas de muitas unidades, sendo ainda figura
comum nas bibliografias dos materiais voltados para uso escolar, indicação para
aprofundamento dos educadores e, como pudemos perceber na leitura da obra,
bastante influente na ideia de anarquismo que figura nos livros didáticos de história e
facilmente encontrados para aquisição e, não raro, em formato PDF de acesso na
internet.
Entre as práticas de leitura, a circulação do material, sua apropriação e uso,
podemos encontrar pontos de convergência no acesso e inserção da obra nas
escolas, justificando seu uso como fonte para compreender as possibilidades de
representação do anarquismo no ensino de história. Tendo em vista que muitos
docentes em atividade (professores e escritores de material didático), foram leitores
da coleção Primeiros Passos.

127
A capa do livro foi criada pelo artista plástico Guto Lacaz, seguindo a linha de
uma série de capas que marcaram as edições da coleção, nas quais o centro é
ocupado por uma cadeira que tem sobre si uma representação do tema abordado. No
caso do anarquismo a cadeira está parcialmente coberta pela bandeira negra e tem
no centro seu símbolo mais conhecido. Assumindo o lugar de um sujeito que conta
sobre si, a anarquia toma assento em uma conversa com o leitor.

Figura 31 (COSTA. 1990)

A quarta capa vem com um texto de apresentação:

“No sentido comum, a anarquia sempre foi sinônimo de caos, bagunça,


desordem. Porém, essa ideia está bem distante do sentido da palavra
grega anarchos, que define o princípio do não-governo, da não-
autoridade. Muitas foram as correntes políticas que lutaram em defesa
dessa ideia. Narrando a história dessas lutas, na Europa e na América,
da vida de seus principais articuladores e da repressão às suas
atividades. (COSTA. 1990)

Percebemos que o caminho escolhido para apresentação do anarquismo,


inicia-se com adjetivação negativa (caos, bagunça, desordem), mesmo trazendo a
premissa de senso comum, e seguindo na busca da gênese da palavra anarquia,
positivando-a na Antiga Grécia (utilizando o recurso da negação - não-governo, não-
autoridade), constitui, em um primeiro momento, o distanciamento da anarquia
contemporânea dos aspectos valorizados pelo enunciado.
A obra é dividida em quatro capítulos, mais introdução e bibliografia, sob os
títulos A Ingênua Lucidez, Os Ingovernáveis, O Internacionalismo e A parte Maldita,
128
momento no qual irá falar sobre a presença do movimento libertário na Rússia, França,
Itália, Espanha e Américas. As escolhas semânticas do autor seguem o padrão da
apresentação, o uso de adjetivos como ingênua, maldita e ingovernável adquirem,
como título dos textos, um sentido desqualificador do sujeito anarquismo.
Caio Túlio Costa busca fazer na primeira parte um panorama geral, trabalhando
os sentidos da palavra anarquia e apontando para uma reconstituição histórica que,
segundo o autor tem sido negada pela historiografia.

No sentido comum, a anarquia sempre foi o caos, a desordem. A


palavra transformou-se em sinônimo de bagunça e os cronistas e
historiadores de hoje jamais lograram repor o significado veraz de um
passado glorioso e, no mínimo, construtivo. Por paradoxal que pareça,
anarquia não é bagunça, muito menos desordem. (COSTA. 1990, p.
11)

Na sequência do texto, o autor segue argumentando sobre a imagem negativa


dos libertários, atribui aos anarquistas, ou melhor, a ausência destes no poder a causa
destas representações, “[...] não há dúvida, foram os próprios anarquistas a colaborar
para a imagem que se faz deles; como nunca quiseram tomar o poder, é óbvio que
jamais iriam fazer de suas representações as imagens oficiais na mente dos homens”
(COSTA. 1990, p. 11). Ao fazer essa observação, dialoga diretamente com a hipótese
de inadequação da anarquia a forma da narrativa histórica instituída tanto por uma
historiografia positivista, como marxista.
No capítulo, Os ingovernáveis, é elencado uma série de teóricos e militantes
anarquistas, oferecendo ao leitor um breve histórico de suas ideias e
posicionamentos, Godwin, Tolstói, Stiner, Malatesta, Proudhon, Kropotkin, Bakunin e
Emma Goldman, única figura feminina a ganhar notoriedade no livro.
Os textos biográficos são repletos de informações e buscam representar os
personagens de forma, ora a aproximá-los dos “anarquistas comuns”, ora afastá-los,
o que frequentemente ocorre com teorias que, na perspectiva do autor, são não
destrutivas, a exemplo de Piotr Kropotkin e suas contribuições anarco-comunistas:
“entretanto, sua desesperada tentativa de dar ao anarquismo um caráter evolutivo e
positivo não encontraria respaldo maior na própria história da ação anárquica, nem

129
antes nem depois dele mesmo.” (COSTA. 1990, p. 54). Novamente o percurso
gerativo de sentido afasta o anarquismo, enquanto prática, dos objetos de valor
(evolutivo e positivo) e coloca a figura de Kropotkin como sujeito que tem sua ação
(desesperada) frustrada pela prática libertária concreta.
Dentre os teóricos, o que recebe maior atenção é Bakunin, criando-se uma
representação que flutua entre a inteligência ingênua e generosa e, a impotência e
incompetência arrogante.

Os detratores, amigos e estudiosos de sua vida são unanimes em


considerarem- no inteligente, culto, ingênuo, espontâneo, impotente
sexual, eloquente, generoso, astuto, arrogante, leal, imprudente. [...]
Nunca teve uma ideia original; falhou como escritor, pois jamais deixou
um livro pronto. (COSTA. 1990, p. 39-40).

O terceiro capítulo, O Internacionalismo, inicia-se pela enumeração das


“aparições” do anarco-sindicalismo em manifestações na década de 1970, e depois
se dedica a ação anarquista na Internacional e a querela entre libertários e
comunistas, guiando a narrativa pelo desentendimento entre Mikael Bakunin e Karl
Marx.
Em seu último capítulo, A parte maldita, Costa se detém nas ações e práticas
anarquistas disseminadas por vários países, entre eles o Brasil. Faz menção ao
trabalho do historiador anarquista Edgar Rodrigues, rapidamente nos fala da Colônia
Cecília fundada por Giovanni Rossi no Paraná, a participação do anarquismo no
movimento operário e a Greve de 1917 e finaliza dizendo que “com o golpe de 1964
o que existia de anarquismo praticamente acabou” (COSTA. 1990, p. 118). Por fim,
traz uma caricatura de Lima Barreto, a quem não cita no texto

Figura 32 COSTA. 1980, p. 119.

130
Para além dos aspectos formais da obra, podemos identificar a aproximação da
corrente teórico-marxista no texto de Caio Túlio Costa, aspecto que lhe coloca como
tributário de seu tempo, buscando produzir um discurso sobre o movimento libertário
partindo da ideia de liderança e centralização das lutas econômicas e políticas,
reforçando um importante aspecto sobre a representação pretendida para o
anarquismo e os anarquistas, intensificando uma tentativa de cisão entre estes, por
mais paradoxal que possa parecer.
O anarquismo e suas múltiplas correntes, como teoria, tende a ser revestido
de valor positivo, ao passo que os libertários e suas ações no mundo concreto são
qualificados com valor negativo. Apesar do aparente contraste entre os discursos
sobre os anarquistas e o anarquismo, eles dialogam e têm a mesma finalidade, o
interesse de resguardar a memória de um “anarquismo moral e não violento” portador
de conceitos universalmente positivos, mas ingênuo, sem organização e liderança
para se concretizar como projeto.
Percebemos indícios que, para além do discurso amplificado pelo fim da
Ditadura Militar Brasileira e as lutas pela redemocratização e pluralidade que marcam
o período de produção da obra, o material que se propõem abordar uma importante
teoria política e social, produzido como parte de uma coleção audaciosa, que traz
temas como socialismo, comunismo e sindicalismo em seus três primeiros volumes,
relega os anarquistas a uma posição imatura e o anarquismo a uma teoria “romântica”
de igualdade e solidariedade, sem estrutura e organicidade suficiente para produzir
efeitos duráveis. Para Costa, os militantes anarquistas que ainda existem, teimam em
existir na atualidade e o anarquismo é um belo sonho de igualitarismo e comunitarismo
de alguns rebeldes passionais (COSTA. 1990, p. 66).

131
Quem tem medo dos anarquistas?

Poderíamos ler nas páginas dos periódicos franceses do século XIX o pavor às
ideias e ações de Ravanchol, mas é pouco provável que encontrássemos horror às
propostas de Proudhon. Certamente, os jornais brasileiros do início do século XX
externavam a desconfiança do poder público com os libertários, tomando o partido do
primeiro, mas, não cremos que vociferassem contra iniciativas como a Universidade
Popular de Ensino28
Do anarquismo cristão de Tolstói, às ideias libertárias de Bakunin; da luta
feminista de Maria Lacerda de Moura, a literatura de Lima Barreto e Ursula K. Le Guin;
das universidades às aulas de história nas escolas, o anarquismo é representado ora
alimentando, ora desmistificando esse “medo”. Uma rápida olhada nos dicionários
escolares da língua portuguesa, Aurélio e Caldas Aulete, nos forneceu duas definições
para o substantivo anarquismo:

“Teoria política que rejeita o governo e a autoridade do estado” (Minidicionário


contemporâneo da língua portuguesa. Caldas Aulete, 2004)

“Teoria que considera a autoridade um mal e preconiza a substituição do


Estado pela cooperação de grupos associados” (Minidicionário da língua portuguesa
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, 2002).

Uma leitura corriqueira nos diria que ambos informam a mesma coisa, trata-se
de uma teoria que se opõem à autoridade e ao Estado, mas essa semelhança entre os
textos é parcialmente correta. Uma análise semântica atenta, levar-nos-ia a perceber
que uma coloca o anarquismo como a teoria que rejeita o que está posto em nossa
sociedade (autoridade e Estado); a outra, por sua vez, descreve-o como a teoria que
considera (avalia) e propõe uma nova alternativa a essa realidade.

28A Universidade Popular de ensino, fundada na cidade do Rio de Janeiro em 1904, visava atender os
operários e seus filhos, contanto com a participação ativa de intelectuais como Rocha Pombo e Martins
Fontes, que mesmo não se colocando como libertários, mantinham afinidades e interesses comuns
com estes.
132
A incursão por estas linhas mostra a urgência de estranharmos o comum,
desnaturalizando e problematizando a “pretensão de verdade” que o acompanha para
adentrarmos nos interesses, ideologias, organização, produção e divulgação dos
saberes escolarizados como enunciados que comportam estratégias e disputas de
poder que condicionam como e o que contamos do passado.
Os interesses de certos grupos têm o poder de direcionar aquilo que deve ser
preservado, publicizado ou obliterado, determinando quais informações e saberes
devem ser dados ao conhecimento amplo e quais devem ser mantidos privados ou
esquecidos, ecoando as regras e formas de contar o passado em cada período. Como
aponta Chartier (1990), toda representação está colocada em um campo de disputas,
hierarquizando valores e condutas e estabelecendo modos de coesão, como
representação do real, nem a coisa em si e nem seu reflexo, mas uma construção
social da esfera do simbólico.
O poder das representações como postulado por Roger Chartier (2002) e Pierre
Bourdieu (2006), apresenta-se como uma elaboração da realidade que é aceita ou
rechaçada no jogo de interesses conflitantes, em uma conjuntura sócio-histórica
específica. Portanto é preciso reconhecer de onde se fala, de qual grupo se origina a
narrativa que se propõem e a representação que carrega, compondo discursos que,
dialeticamente, são produzidos e produzem realidades e identidades sociais.
O que se diz sobre a história e como se diz é, neste sentido, mutável, tanto
quanto ao que se deseja eternizar, quanto a forma narrativa que, por sua vez, também
constitui um delimitador para o que se conta. Como aponta Margareth Rago ao
analisar o impacto dos trabalhos de Foucault na produção historiográfica:

A história será, então, pensada como um campo de relações de força,


do qual o historiador tentará aprender o diagrama, percebendo como
se constituem jogos de poder. Daí, uma nova concepção de poder e
das relações que se estabelecem entre poder e saber. Não mais o
poder jurídico, em sua face visível e repressiva, mas o poder positivo,
invisível, molecular, atuando em todos os pontos do social,
constituindo redes de relações das quais ninguém escapa. Não mais
um saber neutro, a ciência, que diria a verdade, mas um conjunto de
enunciados que entram no jogo do verdadeiro e do falso. (RAGO,
2015, p. 46).

133
Assim como na historiografia, nos discursos constituídos pelo ensino de
história, observamos as disputas que se instituem em sua construção, não como
reflexo das dimensões social, econômica e política, mas como local onde os
enunciados e discursos conferem aos “vencedores” a posse da verdade sobre o
passado, a permissão para negociar com os “vencidos” e, dentro da construção do
conhecimento histórico escolarizado nas páginas dos livros didáticos, autorizar
narrativas que tragam o outro, mas, sob a sombra do vencedor, configurando
programas narrativos menores dentro da estrutura dominante e moduladora do
discurso.
Portanto, pensar dialogicamente os saberes escolares produzidos sobre os
libertários, coloca a necessidade de compreender a ideia de conhecimento constituída
pela sociedade ocidental, sua relação com a cultura escrita e a forma narrativa que
sustenta as representações de mundo presentes no discurso histórico, considerando
que “as ideias são socialmente “situadas” e formadas por visões de mundo ou “estilo
de pensamento.” (BURKE. 2003, p.14). Neste sentido, as representações, são a
forma intelectual e simbólica de construção do mundo, fruto dos interesses e posição
social dos grupos que as formulam, não há neutralidade nas representações uma vez
que elas constituem necessidades concretas e sociais, as quais atribuem sentido e
significado.
Frente a isso, retomamos a pergunta que abre nossa seção: quem tem medo
dos anarquistas? Esses terríveis homens e mulheres sem Deus, sem pátria e sem
família, como foram representados pelo ensino de história e na memória social,
colocando em xeque todas as garantias sociais materializadas nas instituições que
dão sentido, dentro da história escolarizada, a marcha da humanidade.
Ao analisarmos as escolhas semânticas dos autores em um número
considerável de obras analisadas, percebemos a constituição de um lugar narrativo
no qual o anarquismo é em função do marxismo, construindo, na oposição entre estes,
sua historicidade escolarizada no ensino do passado. Apresentaremos, abaixo, um
quadro comparativo dos verbos de ação recorrentes nas narrativas sobre anarquistas
e socialistas.

134
Anarquismo Socialismo
Influenciar Organizar
Eliminar Influenciar
Negar Transformar
Destruir Defender
Organizar Tomar
Defender Valorizar
Tomar Construir
Educar Unir
Contrapor Analisar

Ao observarmos comparativamente as ações que são atribuídas às duas


correntes ideológicas, percebemos que uma assume o lugar de propositor de uma
nova realidade possível, ao passo que a outra é associada, em sua maioria, a ações
negativas/destrutivas, instituindo-se referencias pragmáticas sobre os sujeitos e suas
ações na narrativa histórica escolarizada que operacionaliza, no campo do discurso,
representações socialmente validadas pelo ensino de história e parte significativa da
construção da memória histórica sobre os libertários.
A história é, antes de tudo, uma fórmula cultural, um modelo pelo qual os
homens se relacionam com o passado e selecionam eventos e sujeitos a serem
“eternizados” pelos desígnios de Clio, uma forma de escrita um discurso construído e
construtor do social.

Portanto, os eventos históricos não existem como dados naturais, bem


articulados entre si, obedientes às leis históricas e esperando para
serem revelados pelo historiador bem munido. Um evento só ganha
historicidade na trama em que o historiador concatena-lo, e esta
operação só poderá ser feita através de conceitos também eles
históricos. (RAGO, 2015, p. 42).

Se toda representação tem, como aponta Chartier (2011, p. 16), “razões,


códigos, finalidades e destinatários particulares”, para compreendermos as
representações postas nos livros didáticos de história, precisamos entender quais os
códigos e razões as modulam, voltando nossa atenção para o que há “lá fora”.
135
Chegamos, então, à questão ideológica como modulador das representações ácratas,
posto que as construções simbólicas no ensino de história se efetivam dentro da
disputa, também ideológica, pela memória.
Recuperamos a citação de Caio Túlio Costa, usada anteriormente: “[...] foram
os próprios anarquistas a colaborar para a imagem que se faz deles; como nunca
quiseram tomar o poder, é óbvio que jamais iriam fazer de suas representações as
imagens oficiais nas mentes dos homens” (COSTA. 1990, p. 11). A questão do poder,
da indiferença com a qual os anarquistas viam a “tomada do poder político” recai sobre
eles como “culpa”, uma vez que a sociedade foi e ainda é articulada em torno desta
disputa (objeto da crítica anarquista) e a narrativa histórica e as representações que
produzem não são imunes a essa luta.
O ensino de história, assim como a produção historiográfica brasileira,
adentrou, a partir da década de 1980, na problematização do passado sob um viés
marxista, pautando-se na construção da história sob a perspectiva do materialismo
histórico-dialético. Passávamos pelas lutas de redemocratização e pela inerente
necessidade de recolocar o poder nas mãos da sociedade civil. Trazer recortes e
personagens para o ensino de história que fortalecessem essa perspectiva era um
desejo e uma necessidade. Vimos a substituição gradativa das representações de
poder nos livros didáticos, dos reis e generais, para os revolucionários e suas
lideranças.
O anarquismo não compactuava com a ideologia dominante anteriormente e,
tão pouco, com a nova, que disputava o controle da narrativa histórica. Não havia
espaço (e ainda não há) para os libertários, uma vez que estes propunham outras
relações (econômicas, políticas e sociais) que não se adequavam às ideologias
vencedoras, culpados por perderem uma guerra para a qual nem sequer haviam se
apresentado. Conforme aponta Margareth Rago:

[...] as propostas lançadas pelos anarquistas, que se definiam


nitidamente como anti-hierárquicas, e descentralizadoras, não
participavam do “pacto-fundador”, do ideário republicano moderno e
resultaram em forte oposição política aos que acreditaram na
centralização do poder e na “ditadura do proletariado”. Não será
demasiado lembrar, tantas vezes quanto necessário, que os
anarquistas lutam e lutaram, não pela conquista do Estado, mas pela

136
destruição do poder, dos múltiplos poderes que constituem as
relações sociais e de gênero, entendendo a possibilidade de organizar
diferentes mundos e de viver libertariamente, sem hierarquias e sem a
dominação de homens/mulheres por outros homens/mulheres.
(RAGO. In CARRERI. 2008, p. XVI)

O amplo uso do recurso da comparação entre marxismo/comunismo/leninismo


e o anarquismo para explicar e qualificar o segundo, deixa claro a hierarquização
imposta pelo texto às representações feitas, levando o anarquismo a assumir um
papel inferior e periférico dentro das teorias sociais e políticas que se opõem ao
capitalismo, muitas vezes como produto estrangeiro (qualidade amplamente atrelada
à ideologia libertaria); carente de organização e centralidade, é caracterizado como
insuficiente para a luta dos trabalhadores, que conscientes disso, abandonam o
estrangeirismo e a “infância do movimento operário” e constroem-se como
personagens ativos e combatentes ao adensarem as fileiras socialistas.
Tomando as representações, como construções sociais e históricas, produtos
da articulação que os sujeitos (individuais ou coletivos) mantém com o mundo social,
representamos o “nosso recorte” da coisa representada, e este recorte se faz imerso
nas práticas sociais e relações de poder em que estamos inseridos.

Ou seja, qualquer fonte documental que for mobilizada para qualquer


tipo de história nunca terá uma relação imediata e transparente com
as práticas que designa. Sempre a representação das práticas tem
razões, códigos, finalidades e destinatários particulares. Identificá-los
é uma condição obrigatória para entender as situações ou práticas que
são o objeto da representação. (CHARTIER. 2011, p. 16)

Compreendendo as representações como práticas em si, que são constituídas


tendo como referencial um destinatário particular, em nosso caso um conjunto de
destinatários que compõem uma escala de uso, desde os avaliadores das obras do
PNLD, os professores na “escolha” do livro a ser adquirido e por fim o aluno,
consumidor final e para quem a obra é, em teoria, idealizada; coloca, além da questão
ideológica, a forma narrativa como moduladora das representações.
Como já explicitado neste trabalho, toda história contada o é dentro de uma
forma determinada, um modelo narrativo que se reproduz, acomodando em si os
percursos de rainhas e reis, Estados, revoluções etc., demarcando o locus a ser

137
preenchido por cada um dos personagens que se erguem nas páginas dos livros
didáticos. Assim como nas narrativas clássicas que perduram desde Aristóteles e
tornam a trama contada (mais facilmente) compreensível, da sucessão linear de fatos,
aos pontos de tensão, fratura e construção de personagens, todas elas assumem um
importante papel na construção da narrativa (ficcional ou histórica).
Guardada as diferenças entre a ficção e o conhecimento histórico, a base sobre
a qual a história é contada nos livros didáticos tende a limitar a presença de um
passado que não cumpra todos os papéis delimitados pela estrutura, incidindo não
somente na forma de “narrar os libertários”, mas de muitos outros passados que não
apresentam “personagens” e “talhe” para cumprir satisfatoriamente cada um dos
lugares demarcados para a construção da narrativa.
Observemos que na estrutura narrativa que marca a produção didática das
décadas de 1990 e parte de 2000, os libertários são representados, majoritariamente,
ocupando os topos narrativos Movimento operário nos séculos XIX e XX e, em menor
volume, Teorias políticas e sociais do século XX, trazendo um maior número de
representações não valorativas e valorativas negativas do movimento anarquista,
solidificando uma prática discursiva que encontra eco nas representações propostas
pelo livro O que é anarquismo, no qual os discursos acerca das ideias e personagens
libertários são construídos em um estrutura que pressupõem a valorização da ação
mediada pela centralização na figura da liderança, mesmo ao trabalhar questões
coletivas. A necessidade de um líder (nominal) para contar os processos históricos a
partir da perspectiva e ação deste, constitui um modelo hierárquico pela qual a
narrativa se dá a conhecer ao leitor idealizado.
Esta estrutura exclui os libertários, levando-os a ocupar um lugar periférico na
narrativa principal, autorizado e, de certa forma, absorvido pelo discurso do vencedor,
construindo um modelo bastante presente nos discursos do período que configura
uma imagem de desorganizado, imaturo (já que a maturidade dos trabalhadores só
se dá com sua suplantação), destrutivo e não gerador (ao estabelecer a cultura do
não em relação as ideias ácratas). Levando-nos a outra importante característica das
representações libertárias, sua subordinação e validação ao socialismo/comunismo,
construindo, por meio da oposição semântica entre estes, uma estrutura hierárquica

138
na qual o anarquismo vê-se como agente da negativa, ao passo que o socialismo se
configura como agente criador e organizador.
Pressupondo a existência de uma força centralizadora nos processos
históricos: greves, revoluções, movimentos populares, avanços científicos etc., todos,
se fazem possíveis dentro da estrutura imposta pela forma narrativa, apresentados a
partir de sua concretização na ação de grupos determinados (escolas
artísticas/filosóficas, indivíduos corajosos/iluminados, mártires, partidos políticos).
Toda ação que surge como espontânea, sem lideranças aparentes ou hierarquias, é
automaticamente condicionada aos “antecedentes” de algo maior que apresentará
todas as características necessárias para satisfazer a narrativa histórica. A
espontaneidade, na representação dos anarquistas, é atribuída à falta de organização
para ação, assim como todas as outras formas sociais que não correspondem a
estrutura narrativa padrão.
Buscando operar os efeitos de sentido postos nos livros didáticos de história,
compreendemos que as representações instituem sujeitos, forjando narrativas que
assumem, na perspectiva do ensino, a pretensão de verdade. Os discursos instituem
“objetivos históricos assim como sujeitos que emergem aqui como efeitos das
construções discursivas, ao invés de serem tomados como pontos de partida para a
explicação das práticas sociais” (RAGO, 2015, p. 40), nos embates de poder que
tomam lugar dentro da narrativa.
O anarquismo não se enquadrava na finalidade do ensino de história, não
correspondia aos arranjos narrativos, não podia ser domesticado para caber no lugar
social e político que lhe foi determinado e nos últimos dez anos, vemos, inclusive a
dissolução destes lugares, dos topos narrativos que ainda permitiam a representação
anárquica dentro dos livros didáticos de história.
Se há algumas décadas ainda podíamos apontar a “vitória política dos
marxistas e comunistas sobre todas as esquerdas no mundo ocidental” (RAGO. In
CARRERI. 2008, p. XVI), como ponto de inflexão para a presença como
representação valorativa positiva dos ácratas dentro da história escolarizada, hoje,
vemos a “derrota” das esquerdas e a ascensão de um “liberalismo autoritário” como
limitador das lutas populares e trabalhistas, das ideias e tentativas de outras formas

139
de relações econômicas, políticas e sociais, que são preteridas como “ultrapassadas”
e substituídas por um recorte culturalista bastante enviesado e distorcido.
Então, na disputa de representações que se configura na construção da
memória do anarquismo, coloca-se, como uma provocação ao leitor, novamente a
questão: quem tem medo dos anarquistas?
As representações identificadas e analisadas nas obras didáticas nos levaram
a perceber que todos temem aquilo que o anarquismo significa em essência,
sobretudo aqueles que se apresentaram para a disputa do poder. Não é novidade
dizer que a liberdade assusta, tampouco, a responsabilidade direta por seus atos e
escolhas, que advém do exercício da liberdade. Por outro lado, a construção de uma
visão de anarquismo que feneceu no passado, não fincando raízes no presente e não
podendo ser entendido como possibilidade de futuro, deixa a violência, a desordem,
a ânsia de destruição (figuras comuns nas representações do anarquismo) como
passado, morto e enterrado. Há pouquíssimas representações de um anarquismo que
ultrapassou a década de 1920, portanto, não amedronta um presente que se configura
a cada dia mais veloz e imediatista.
Os libertários ocupam, na narrativa histórica escolarizada, modestos parágrafos
que se intercalam entre sua ação dentre os trabalhadores e suas diferenças com o
socialismo científico; foram representados como desorganizados, violentos,
estrangeiros, mas também, mesmo que em poucas obras ou de forma inexplícita,
como produtores de uma cultura que visava a instrução e emancipação e como
questionadores da organização social e familiar burguesa, como figura de linguagem
e adjetivo. Circulam entre as pesquisas acadêmicas, mesmo que ainda em um número
relativamente pequeno, quando comparadas ao volume de trabalhos que se dedicam
à outras teorias.
A análise conduzida em nossa pesquisa, mostrou-nos a constante presença
dos anarquistas nos materiais didáticos, mas o valor relativo que lhes é atribuído, ou
sua representação inexplícita (bastante numerosa) demonstra a impossibilidade de
recontar o passado (para aqueles que nutrem um sentimento de responsabilidade
nesta reconstrução) à revelia da ação ácrata, contudo, tal relevância nos processos
históricos, não garantiu que lhes fosse dado a enunciação de seu discurso. O
anarquismo surge como estrangeirismo, estanque, fadado à morte após 1917, apático
140
frente a necessidade de organização da luta operária, débil politicamente, em um
quadro limitado à ação partidária.
Mas, nos subterrâneos, nas narrativas compostas por representações
inexplícitas onde não seria possível negar-lhes a presença, em sobreposições,
imagens, lá está a anarquia: fazendo, inspirando, influenciando. Negar-lhe a posição
de sujeito do enunciado sobre si, não faz com que se possa roubar sua historicidade.
O anarquismo, em suas diferentes apropriações teóricas, à revelia da imagem ligada
a desordem e violência que tenha se firmado no senso comum, configurou-se como
importante ideologia e prática na formação cultural e social dos últimos duzentos anos,
como nos questiona o sociólogo e anarquista argentino, Christian Ferrer:

[...] o que haveria acontecido se não tivesse existido anarquistas?


Haveria aparecido outro grupo equivalente em seu lugar? A questão
da hierarquia e do poder autocrático ficaria sem ser teorizada e sem
impugnação? Ou teriam sido problemas apresentados de maneiras
mais suaves, em boca de pensadores liberais e de fugitivos da
doutrina marxista? A história da dissidência seria diferente de como a
relembramos? Toda a tensão política da modernidade teria sido
condensada no embate de forças entre o liberalismo e o socialismo?
À elaboração dos ensaios libertários de Tolstói, Orwel, Camus ou
Chomsky, teria sido suprimido um antecedente importante ou um
interlocutor imaginário? O projeto teórico de Michel Foucault seria
facetado tal como o conhecemos? Seria discutida a questão do poder
em Foucault da maneira incômoda e veemente como se tem feito nas
últimas três décadas? Mais ainda, certas liberdades, ou melhor, certo
grau de apetência por liberdades radicais, alcançadas ou por alcançar,
teria sido posto em movimento? (FERRER. 2004, p. 158)

141
Considerações finais

Ao longo da pesquisa, buscamos construir um panorama que tornasse possível


identificar e compreender as representações anarquistas e a existência de uma
relação dialógica entre o passado narrado nos livros didáticos e as pesquisas
acadêmicas, considerando a circularidade de pessoas e saberes entre o movimento
anarquista e a produção historiográfica.
Pudemos perceber que tanto a esfera da militância como a da pesquisa
universitária estabelecem intenso contato, com a participação de sujeitos e o
compartilhamento de temáticas, sobretudo a partir da década de 1980, tornando-se
evidente a continuidade do interesse do movimento libertário na produção e
divulgação do conhecimento, por meio de editoras, grupos de estudo, palestras e
cursos pré-vestibulares29 de base anarquista. A incidência desta circulação de
saberes na produção didática se faz sentir lenta e pontualmente, com abordagens que
buscam, para além da fórmula narrativa padrão, operar, dentro do discurso didático,
outros matizes do movimento libertário, apoiado na intertextualidade que perpassa o
livro didático.
Dentre os livros analisados, foram utilizados 9 títulos publicados na década de
1990, do quais 4 eram destinados ao ensino colegial (atual ensino médio); 7 referentes
à década de 2000, sendo dois deles para o público do ensino médio (segundo grau)
e 18 à década de 2010, dos quais 3 livros eram destinados ao ensino médio. O
significativo aumento do número de livros após 2010, justifica-se diante do
considerável aumento da abrangência do acesso ao livro didático para os ensinos
fundamentais e médios através do PNLD que ao longo do tempo tornou-se cada vez
mais presente e importante dentro das instituições de ensino. A diminuição percentual
de livros didáticos destinados ao ensino médio se deu devido a constatação, durante
a seleção das fontes que integrariam o conjunto a ser analisado, de que na maioria
das coleções didáticas as alterações entre a forma de apresentação do anarquismo
nas obras são mínimas, muitas vezes ocorrendo a repetição de textos e imagens das

29
Podemos elencar como exemplos desta circulação o Cursinho Livre da Norte e o Curso Pré-
universitário Tetris.
142
obras destinadas ao ensino fundamental e médio, como mencionado na análise da
coleção História Sociedade e Cidadania.
Em nossas fontes o termo anarquismo e seus correlatos
(anarquistas/libertários) foram citados explicitamente 148 vezes, considerando
legendas, orientações para os docentes, apresentação do BNCC para os livros mais
recentes e atividades e exercícios propostos. Destas, parte exerceu a função de
adjetivo, como qualificador do sujeito citado, fosse ele o Sapateiro Martinez, os
imigrantes italianos e espanhóis ou periódicos como Terra Livre ou A Plebe.
Pouquíssimas atividades retomaram o anarquismo nas páginas dos livros didáticos e
as que o fizeram optaram por reforçar a perspectiva de qualificação do anarquismo
em oposição ao socialismo, atrelando sua existência em função deste.
Existe uma ausência de indicações bibliográficas sobre anarquismo nas
referências apresentadas nos materiais didáticos, com exceção à obra O que é
anarquismo que figurou em um considerável número de livros didáticos, contudo, nem
sempre entre as referências de produção, em alguns casos como indicação para os
docentes. Obra que foi analisada e apresentada no capítulo II em Uma visão
distorcida: O que é anarquismo, no qual pudemos perceber o recorte e a abordagem
dada aos libertários e suas ideias.
Diante deste quadro da presença e ausências do anarquismo nos livros
didáticos de história alguns padrões se mostraram recorrentes na estrutura utilizada
para contar o passado anarquista, desenhando alguns topos narrativos que se
consolidaram ao longo das décadas como local de presença ácrata na história
escolarizada:
Teorias políticas do século XIX, na qual a oposição entre anarquistas e
socialistas/marxistas/comunistas assume a função de qualificar as ideias anarquistas,
dada em relação à suas diferenças, entendidas como “deficiências” das ideias
libertárias frente as outras teorias. Identificamos um processo de diminuição e
descontinuidade deste topo narrativo nas obras publicados a partir da segunda
metade da década de 2010, o que nos mostra a mudança de objetos postos na
narrativa pelos currículos e livros didáticos.
O Movimento operário dos séculos XIX e XX, institui no Brasil a presença de
um anarquismo que é, majoritariamente, ligado à figura dos imigrantes, levando a
143
construção de uma narrativa que coloca, ao nível do discurso um anarquismo exótico
e “não adaptado”, insuficiente para promover a organização da massa operária
brasileira, por isso substituído pelo comunismo, estabelecendo um modelo que
apresenta continuidade em todo período estudado.
Por fim, a presença de Personagens Libertários como representantes dos
ideais ácratas se fez sentir em quase todas as obras analisadas, havendo uma ruptura
no padrão representativo a partir da segunda metade da década de 2010, com um
aumento, ainda modesto, de figuras femininas retratadas, não apenas como parte do
texto verbal, mas, por meio do uso de imagens, enfatizando a ação feminista dentro
das ideias libertárias.
Devemos pontuar, contudo, que algumas destas narrativas se deram com a
instrumentalização de representações inexplícitas, o que tornava seu entendimento
dependente de conhecimentos prévios que podem ou não existir. Observamos a
incidência de um considerável número de representações inexplícitas e não
valorativas, evidenciando a presença e importância do anarquismo no processo
histórico, mas, negando-lhe materialidade e a posição de sujeito do discurso.
Dentre as representações mais identificadas nas obras e que exerceram maior
impacto no percurso gerativo de sentido, temos representações valorativas negativas,
configurando, ao nível do discurso uma representação do anarquismo calcada na
“cultura do não”, onde os ácratas são colocados como incapazes de
produzir/criar/organizar, qualificados por aquilo que não desejam, não concordam, não
aceitam. Característica, também, muito presente na obra O que é anarquismo, que
busca colocar um anarquismo passional e impotente, incapaz de constituir uma base
teórica sólida. Tal ideia é apoiada pelo distanciamento que opera ao tratar de figuras
como Piotr Kropotkin, a quem atribui valores positivos, mas o distancia do movimento
anarquista “na prática”.
Percebemos algumas permanências na forma narrativa e, sobretudo, na
construção do discurso sobre o anarquismo como “matéria estrangeira”, inapta a
organização e, de certa maneira, pueril. Concorrendo para a construção de uma
memória dos libertários que não abre espaço para o conhecimento e diálogo com suas
propostas e ideias, colocando-os como peças imóveis e distantes do presente,
atrelados, na maioria das vezes, somente ao mundo do trabalho e nas duas primeiras
144
décadas do século XX, não sendo mencionado ao retratar a ação dos trabalhadores
em outros momentos.
A representação ácrata ligado ao universo do trabalho, fez-nos perceber uma
significativa diminuição do sujeito trabalhadores nas obras didáticas a partir de 2010,
levando a descontinuidade de importantes narrativas nas quais os trabalhadores
assumem o papel de sujeito, diminuindo a importância das relações econômicas na
condução do processo histórico. Com o decréscimo da presença dos trabalhadores
nos livros didáticos, o anarquismo passa a ocupar ainda menos espaço na narrativa.
Diante disso, consideramos que o movimento libertário vem, gradativamente,
deixando de ser representado nas obras, onde sua presença tende a se tornar pontual
e, portanto, pouco explicativa em relação a sua visão de sociedade. Parafraseando
Christian Ferrer “O que restará da palavra “anarquistas” num dicionário do futuro?
Uma nota de rodapé, a definição conceitual de uma seita de conspiradores, o
cardiograma que registrou as oscilações históricas de uma ideia extrema, a silhueta
de um animal extinto?” (FERRER. 2004, p. 157). Talvez muito pouco daquilo que
entendemos hoje, nós, historiadores e militantes, talvez muito daquilo que preconizou
o senso comum, talvez nada além de um rosto sem nome ou um nome sem voz.

145
Parte propositiva

Apresentamos como parte propositiva o uso da imprensa libertária como


complemento e contraponto às abordagens postas nos livros didáticos, buscando
elaborar outras representações do anarquismo que possibilitem a construção de uma
memória histórico escolar que não esteja limitada a nascer no final do século XIX e
morrer com a formação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1922.
Nossa proposta prática se justifica ao considerarmos que, na perspectiva da
produção didática os anarquistas figuram na construção da memória histórica como
“vencidos”, tanto para um passado neoliberal, quanto para um passado que flerta com
o marxismo, resultando em uma narrativa histórica sobre os libertários a partir da
perspectiva de sua absorção pelo discurso vencedor, como presença e ausência
simultaneamente. Dar-lhes voz por meio da análise de textos completos ou excertos
publicados nos periódicos anarquistas, propõem uma possiblidade de permitir aos
ácratas falarem por si mesmos.
Partindo destas reflexões, propomos retomar o movimento ácrata recontando
sua trajetória e modelando uma “nova presença” que possa permitir diferentes
representações na memória histórica escolar, instrumentalizando outros referenciais
além de sua ação entre os trabalhadores da Primeira República e as greves que
marcaram o período. Nas linhas abaixo, apresentaremos duas sugestões e caminhos
de acesso para a ideação de uma outra história do anarquismo no ensino de história,
assim como indicações de leituras e fontes que possam contribuir para a reescrita
escolar do passado libertário.
Trazer os periódicos libertários como forma de elaboração de uma outra
memória histórica sobre o anarquismo pode parecer redundante, considerando a
extensiva menção e presença de fac-símiles do jornal A Plebe nos materiais
analisados. Contudo, sua utilização não vai além do nome e, algumas vezes, sua
origem libertária, representando a imprensa anarquista que não alcança espaço nos
livros didáticos para além das primeiras décadas do século XX e permanece
geograficamente limitada ao eixo Rio-São Paulo.

146
Por meio do uso dos jornais A Plebe (1917-1951); A Lanterna (1901-1935), O
Combate (1914)30 e O Libertário (1960-1964), importantes veículos de circulação das
ideias anarquistas, propomos um recorte temático que evidencie a produção
intelectual feminina e a crítica política e social elaborada por estas mulheres
libertárias. Com a análise do periódico Inimigo do Rei (1977-1988) buscamos perceber
a crítica anarquista à Ditadura Militar Brasileira e ao movimento de abertura guiada
pelo grupo no poder. Em ambas as abordagens almejamos traçar um recorte histórico-
temporal que possa apresentar aos educandos a continuidade da produção e
propaganda anarquista no Brasil e, com o uso do jornal baiano, ampliar as vozes
anarquistas além da região sudeste.
É possível encontrar um significativo acervo digitalizado pela Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), de periódicos anarquistas na
coleção o Canto Libertário (1906-1995)31 e no acervo digital do Arquivo Edgard
Leuenroth32 da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) permitindo ao
docente efetuar recortes temáticos, periodização e regionalização bastante amplos.
O trabalho com os periódicos anarquistas foi pensado a partir dos
procedimentos e abordagens sugeridos por Tânia Regina de Luca (2018) e seguiu as
seguintes etapas:
a) Construção de uma série com os materiais selecionados;
b) Identificação e localização do material selecionado em seu contexto de
produção e grupo responsável;
c) Dados de circulação (se houver);
d) Identificação dos principais colaboradores;
e) Identificação do público-alvo;
f) Análise do material conforme temática selecionada.

30 Conforme aponta Edgar De Decca, o jornal anarquista O Combate circulou na cidade de São Paulo
a partir de 1914 e durante a década de 1920, porém, não temos a data exata do fim de sua edição.
31 Disponível em < https://bibdig.biblioteca.unesp.br/communities/2deadbb4-1bb6-4a46-a801-
825b37e5ea39>. Acessado em 03 jul. 2023.
32 Disponível em < https://ael.ifch.unicamp.br/ael-digital >. Acessado em 03 jul. 2023.

147
Mulheres anarquistas nas páginas libertárias
As figuras femininas têm ganhado alguns espaços nas páginas dos livros
didáticos ao longo das décadas, contudo, sua presença ainda diz pouco sobre a
inestimável participação e ação das mulheres no anarquismo, nomes como Maria
Lacerda de Moura e Emma Goldman são os que figuraram um maior número de
vezes, mesmo assim, de forma discreta.
As mulheres estiveram e estão presentes no movimento anarquista em suas
múltiplas formas: na organização dos trabalhadores, nas artes, nas manifestações
políticas e econômicas, na produção intelectual, contudo, nas obras analisadas as
figuras femininas surgem como complemento, um “bônus” oferecido ao leitor.
Momentos de significativa importância da ação das mulheres, como as tecelãs na
Greve de 1917 são obliterados; assim como suas produções teóricas.

O que falam as mulheres nas páginas dos jornais libertários?

Maria Lacerda de Moura (1987-1945), militante ativa do movimento anarquista,


presente em diversas publicações ácratas da época e editora da revista Renascença.
Abaixo, alguns trechos do texto “Sandino”, publicado em 16 de janeiro de 1929 no
periódico O Combate:

Só agora aparece a carta de Sandino a Washington Luís.


Ainda mesmo que a visita de Hoover não constituísse sério empecilho
a que esse notável documento fosse publicado, outras considerações
impediriam a Washington Luís a publicação desse apelo enviado por
Sandino aos governadores dos países latino-americanos.
E a maior dessas razões é Washington ser presidente do Brasil…
A segunda grande razão é a imbecilidade e a covardia dos nossos
dirigentes, para os quais “a questão social é mera questão de polícia”,
para os quais – “depois de mim, o dilúvio”, para quem a vida se resume
na pantomima política o mini “Tro-ló-ló” ou num “cabaret” dos “dubs”
dos políticos, coronéis elegantes.
Que ingenuidade santa a de Sandino ao dirigir apelos desses a
políticos como Washington Luís, a políticos como quaisquer dos
nossos políticos.
A linguagem de Sandino, as suas aspirações de liberdade nunca serão
ouvidas pelos homens dos governos.
O governo é a reação, é o princípio de autoridade contra o princípio de
liberdade. Isso, para mim, é tão claro que não chego a compreender
como grandes consciências ainda esperam algo dos governos.
148
Sandino só pode ser ouvido pelo grande sacrificado que é o povo,
representado por individualidades como Romain Rolland, Einstein,
Ugarte, Barbusse, Ingenieros, Palacios ou a União Latino-Americana
contra todos os Imperialismos: o Imperialismo da opereta tragicômico
de Mussolini, ou o Imperialismo colonizador à inglesa ou o
Imperialismo azinhavrado a Tio Sam. [...]
Que é feito da soberania do Panamá, de Cuba, Costa Rica, Haiti,
Nicarágua e S. Domingos? – Colônias do imperialismo yankee,
vendidas pelos respectivos governos aos banqueiros de Wall Street,
de que Hoover é representante, Hoover a quem Washington Luís
louvou a filantropia.
[...]
A solução para os problemas da voracidade imperialista norte-
americana não é a força armada dos latino-americanos, força ridícula
– que os armamentos e o capital para os adquirir só podem ser
fornecidos pelos Estados Unidos. Fomos vendidos à cupidez yankee
pela imbecilidade e cupidez e covardia dos nossos governos. E a
solução não está na força das armas a nós cedidas pela generosidade
yankee dos armamentistas filantropos, rezadores da Bíblia; a solução
é, justamente, a resistência passiva, a suprema-resistência à força
armada e ao dólar – pelas ideias-forças contra a opressão e a tirania.
No Norte, na Amazônia, operários brasileiros recusam-se a trabalhar
aos impérios de Ford. Essa é a solução: a não cooperação, a
resistência passiva ao jugo de ferro do explorador norte-americano.
Cada consciência despertada, cada indivíduo com a noção viva da
dignidade humana de uma força contra a invasão imperialista do dólar.
É o “boycott”… aos males ou canais de infiltração: Associação Cristã
de Moços, Associação Cristã Feminina, Rotary Club, cinema
americano, colégios protestantes, publicações etc. etc. etc. Difícil?
Quase impossível? Mas é o único meio, é a única solução, se
queremos ser livres. Toda essa filantropia e essas organizações
religiosas ou sociais fazem parte do plano de infiltração imperialista.33

O excerto nos mostra a possibilidade de dar visibilidade as ideias e ações


libertárias como elemento de crítica à política nacional e internacional, com menção
ao avanço militar e fascista. Trazendo referências à Augusto César Sandino,
Washington Luís, Mussolini e o Imperialismo estadunidense, possibilita não só trazer
a representação das mulheres anarquistas, mas sua produção intelectual e a
construção de pontes entre as críticas apresentadas há quase cem anos atrás e o
hoje.
Em 1935, podemos ler o texto de Maria Lacerda de Moura, publicado no
periódico A Lanterna, sobre o discurso do líder integralista Plínio Salgado acerca do

33Excertoretirado da tese de doutorado de Fernanda Grigolin Moraes (2020). In: GRIGOLIN, F. Sou
aquela mulher do canto esquerdo do quadro. A história das mulheres anarquistas como narrativa
encarnada. 2020. 236f. Tese (Doutorado em Artes Visuais) – Instituto de Artes, Universidade de
Campinas, Campinas, 2020.
149
projeto da lei de Defesa Nacional, levando-nos a construir um arco de ação anarquista
para além de 1917, como agente de crítica política e social, na voz de uma mulher34.

Figura 33 A Lanterna 1935

Maria Angelina Soares (1901-1985), uma das irmãs Soares35, teve expressiva
ação nos meios libertários, contribuindo com periódicos e na organização do
movimento operário. Com sua irmã Maria Antonia Soares, atuou na criação de grupos
de mulheres como o Centro Feminino de Jovens Idealistas, como aponta Fernanda
Grigolin Moraes (2020). Presa em 1917 por difundir ideias anarquistas, sofreu
constantes perseguições nos anos posteriores, levando a família a mudar de São
Paulo para a cidade do Rio de Janeiro, as irmãs passaram então a atuar no cenário
anarquista carioca. O excerto abaixo foi retirado de um artigo escrito por Maria
Angelina Soares e publicado no jornal A Plebe em 1917.

Fala-se muito, nestes tempos em reivindicar para mulher o direito de


voto. Corações femininos palpitam de entusiasmo e esperança ante a
perspectiva de tal conquista, na ilusão de nela encontrarem a
felicidade por que há muito suspiram. Os feministas de ambos os
sexos se agitam reclamando-a com veemência e governos “paternais”,
que têm inteligência suficiente pra ver longe, considerando-a,
espontaneamente, com o intuito de recuperarem no elemento feminino

34 Periódico A Lanterna (1935). Disponível em:


https://bibdig.biblioteca.unesp.br/server/api/core/bitstreams/3621d4c3-eb90-4ad9-8b32-
0cdf627182a6/content > Acessado em 03 jul. 2023.
35 As irmãos Soares: Maria Angelina Soares, Maria Antonia Soares, Matilde Soares e Pilar Soares foram

militantes anarquistas que viveram na cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século XX, eram
irmãs de Primitivo Raimundo Soares, que atendia pelo pseudônimo de Florentino de Carvalho,
conhecido militante anarquista. Foram colaboradoras constantes dos periódicos anarquistas e tiveram
significativa ação nos meios libertários.
150
apoio que lhe vai faltando de parte do elemento masculino, e a mulher,
sem perceber o jogo, fica com isso, elevada e satisfeita36

A crítica operada por Maria Angelina Soares sobre as lutas pelo sufrágio
feminino, mostra a consciência de utilização deste como ferramenta de manipulação
aos olhos desejosos dos grupos políticos e a falsa ilusão de representatividade que
tal “benefício” confere à mulher. Argumentos que se repetirão em outras publicações
e textos, marcando a postura ácrata em relação à participação política e o processo
eleitoral.
Objetivando construir um arco temporal que permita aos educandos
identificarem a presença anarquista ao longo das décadas, traremos o periódico O
Libertário de 1960, com a publicação de uma crônica de Federica Monteseny (1905-
1994), escritora e militante anarquista espanhola.
Ao abordar a importância dos estudantes como protagonistas dos movimentos
populares e de revolta, Federica Monteseny aponta um relevante fator dos
movimentos de contestação e da presença anarquista no decorrer da década de 1960.
Citando a participação deste nos movimentos que levaram a queda das ditaduras
cubana e coreana, coloca na “juventude estudantil, intelectual e obrera” as esperanças
de se solapar a herança dos regimes fascistas que marcaram as décadas anteriores.
Para Monteseny:

Do horror de uma década infernal na qual naufragaram todos os


valores humanos; de um estercorário de vícios e paixões
desenfreadas que deram vida a essas monstruosas aberrações que
se chamam nazismo e fascismo, teria sido, quiçá, uma boa colheita de
jovens esclarecidos. Porque esta moçada que hoje tem vinte anos, foi
engendrada em plena guerra, em plena loucura, em pleno extermínio
de povos inteiros. São os filhos da noite.
É justo, é normal, é natural que se encaminhem irresistivelmente para
luz.37

36 SOARES, Maria Angelina. “Voto feminino”. O Grito Operário. São Paulo. 17/01/1920. Ano1.
Disponível em < https://www.ufrgs.br/nphdigital/hemeroteca/o-grito-operario-
2/?order=ASC&orderby=date&perpage=12&taxquery%5B0%5D%5Btaxonomy%5D=tnc_tax_3684&ta
xquery%5B0%5D%5Bterms%5D%5B0%5D=940&taxquery%5B0%5D%5Bcompare%5D=IN&pos=1&
source_list=term&ref=%2Fnphdigital%2Fsubcolecao%2Fo-grito-operario-sp%2F >. Acessado em 03
jul. 2023.
37 MONTESENY, Federica. Os Estudantes. O Libertário. São Paulo. Ano 1, nº1. 1960. Disponível em <

https://bibdig.biblioteca.unesp.br/server/api/core/bitstreams/4e3bb1ed-30ed-4e6d-8250-
1a5de94b7c63/content > Acessado em 04 jul. 2023.
151
Figura 34 O Libertário. 1960, ano 1, nº 1, p. 2

A crítica a Ditadura Civil-Militar no Brasil

Ainda dentro da perspectiva de ampliação do arco temporal da presença e ação


anarquista e expandindo geograficamente nosso recorte, propomos o uso do jornal
Inimigo do Rei (1977-1988) periódico baiano de viés anarquista, ligado à estudantes
da Universidade Federal da Bahia (UFBA), editado e distribuído durante o período que
marca o fim da Ditadura Militar e a abertura política, traz, além do bom-humor
característico do periódico e da abordagem de assuntos do universo estudantil e
trabalhista, uma crítica mordaz ao regime ditatorial.

152
A Ditadura pelas lentes anarquistas

A crítica ao Regime militar foi uma constante das páginas do Inimigo do Rei38,
trazendo-nos a possibilidade de observar por uma perspectiva não explorada nas
obras didáticas a experiência libertária deste período.
Em sua décima edição, o periódico aborda o décimo sexto aniversário do golpe
de 1964, expondo que se trata de um golpe, e não uma revolução, como o designava
o poder e a imprensa burguesa.

Figura 35 Inimigo do Rei. 1980, nº 10, p. 2

A edição nº 14 de 1981 traz um texto que aborda a explosão da bomba no


Riocentro durante as comemorações do Primeiro de Maio. Por meio de uma escrita
irônica o periódico libertário busca contextualizar o falso atentado e sua investigação.

38Os exemplares digitalizados do periódico Inimigo do Rei se encontram disponíveis no endereço


<https://bibdig.biblioteca.unesp.br/collections/7d82f239-f947-422c-8215-6f85ae286f21 >. Acessado
em 03 jul. 2023.
153
Figura 36 Inimigo do Rei. 1981, nº 14, p. 2

154
No exemplar nº 16 de 1982, novamente vemos a crítica ao governo de João
Figueiredo e a “democracia galopante” que é implementada pelo processo de abertura
política que, na visão libertária, não passa de uma grande farsa, expondo as
contradições do discurso e das ações do governo.

Figura 37 Inimigo do Rei. 1982, nº 16, p. 7

Nossa proposta de prática tem como intensão despertar no leitor a curiosidade


e, talvez, o desejo de reescrever a história libertária escolarizada em nosso país, sob
uma nova perspectiva, na qual sua existência e ação não seja dada a entender
somente por meio daquilo que “não quer” ou de suas diferenças com outras teorias.
Ao mostrar práticas anarquistas que vão além da organização e luta dos
trabalhadores, configurando maneiras de vivenciar e agir no mundo e que, diferente
do que possa se pensar e à revelia do que é dado a conhecer nos livros didáticos de
história, seguem vivos e ativos, abrimos novas possibilidades de recontarmos o
anarquismo no Brasil e, também, além de nossas fronteiras, considerando a circulação

155
de sujeitos e ideias, e o internacionalismo que marca a prática anarquista ao longo
das décadas.

Obras indicadas para ampliação das temáticas abordadas:

Mulheres anarquistas:

LEITE, Mirian L. Moreira. A outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São
Paulo. Ática, 1984.

MORAES, Fernanda Grigolin Moraes (2020). Sou aquela mulher do canto esquerdo
do quadro. A história das mulheres anarquistas como narrativa encarnada. 2020. 236f.
Tese (Doutorado em Artes Visuais) – Instituto de Artes, Universidade de Campinas,
Campinas, 2020.

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POLÍTICA DE UMA JOVEM ANARQUISTA (1898 1922). 2023. 219f. Dissertação
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