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CENTRO DE HUMANIDADES
CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
FORTALEZA - CEARÁ
2017
MARCELO AUGUSTO MUNIZ FIGUEIREDO
FORTALEZA - CEARÁ
2017
MARCELO AUGUSTO MUNIZ FIGUEIREDO
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________
Profª. Drª. Valéria Aparecida Alves (Orientadora)
Universidade Estadual do Ceará – UECE
_____________________________________________________
Prof. Dr. Francisco José Gomes Damasceno
Universidade Estadual do Ceará – UECE
____________________________________________________
Prof. Dr. Ricardo Jorge de Lucena Lucas
Universidade Federal do Ceará – UFC
AGRADECIMENTOS
Não se faz nada só. Nossas mãos não são suficientes para declararmos um trabalho
acadêmico como nosso. O eu tem muito de nós. De vocês, mesmo indiretamente.
Sendo eu desprovido da inspiração divina, agradeço primeiro a minha mãe, por desde
sempre ter acreditado que eu teria um bom futuro, e ter dispensado todos esses anos ao
zelar pelo meu bem estar, além de ter me ensinado o sentimento de comprometimento.
À minha irmã, que desde sempre nunca me negou nada e sempre esteve de prontidão,
seja para a criança mimada e birrenta, seja para o rapaz emburrado.
Às minhas primas Fernanda e Beatriz, pelos momentos de diversão; aos meus sobrinhos
Gabriel e Alícia, pelos abraços, beijos e pancadas (de brincadeira); ao meu amigãozão
(sic) Helder, por me considerar seu amigãozão.
Aos amigos: Isaac, pela diversão incomparável e por, não sei qual motivo, acreditar em
mim, assim como nos inspirar através de sua história; Paulo, pela paciência em escutar
minhas divagações e por suas sacadas, brincadeiras e maturidade; Haroldo, pelas
conversas e brincadeiras, e por nos ensinar o significado de simplicidade, apesar de ser
tão grandioso; ao Luan, pela sua solicitude, atenção e paciência em estar pronto a ajudar
sem olhar a quem; ao Davi, pela sua sempre feliz e divertida presença; ao Narcisio, já
amigo antes mesmo da faculdade, este nato contador de histórias; ao Léo, por contribuir
conosco com seu tão extenso conhecimento, além das garrafas divididas; ao William e
John, pelas brincadeiras, saídas e vinhos; a Sarah, por ter dividido momentos de tensão
e de alegria nessa caminhada monográfica.
Dedico também espaço aos amigos Elisson e Paulo Neto. O primeiro, por ter sido um
dos primeiros ídolos que conheci, e talvez ele nem saiba disso; uma das pessoas mais
pacientes e habilidosas que se pode conhecer, que muito bem poderia ter sido faixa
preta em qualquer coisa que quisesse. O segundo, pelos momentos de descontração
dedicados ao futebol (real e virtual), além de ser o exemplo de alguém que conquistou
seu sonho com esforço próprio (e ainda pode conquistar mais).
À professora Valéria, pela sua paciência, dedicação e estímulo a esta pesquisa.
À Larisa, que amorosamente se dedicou a mim e fez aquilo que nenhuma outra pessoa
seria capaz ou toleraria fazer. Acreditou em mim de um jeito que eu não sou capaz de
fazer.
Dedico espaço também ao meu pai, que apesar de sua pedagogia incorreta e
dispensável, acabou por me ensinar sobre disciplina.
RESUMO
Esta pesquisa analisa, parcialmente, o sutil processo de transição mental do pensamento
filosófico ideal para a pesquisa científica empírica, inserida no contexto da
industrialização britânica, através da narrativa literária proposta na obra Frankenstein,
ou o Prometeu moderno, de autoria da escritora inglesa Mary Shelley. A partir dela,
reivindicamos elementos internos (textuais) e externos (contextuais) que nos evidencia
que, com o desenvolvimento do capitalismo, através da Revolução Industrial Inglesa, o
universo científico se debruça, concisamente, sobre a pesquisa, coleta e análise empírica
de seus variados objetos de estudo, em uma época marcada pela valorização do emprego
da técnica e da realização material. Através da figura protagonista de Victor
Frankenstein, avaliamos, alegoricamente, o alvorecer de uma nova lógica de
pensamento científico, encarnada naquela personagem. Ao todo, avaliamos, também, a
importância da vida privada da autora na inspiração de sua obra, assim como nos
debruçamos, sobre a influência da mitologia (a figura de Prometeu), a percepção
artística da autora e sobre a presença da ciência em sua trajetória que, por fim,
desemboca em sua escrita.
This work partially analyzes the subtle process of mental transition from an ideal
philosophical thinking to the empirical scientific research, within the context of British
industrialization through the literary narrative proposed in the work Frankenstein; or
The Modern Prometheus, authored by the English writer Mary Shelley. From it, we
claim internal (textual) and external (contextual) elements that evidence the
development of capitalism, through the English Industrial Revolution, the scientific
universe leans, concisely, on the research, collecting and empirical analysis of its varied
study objects, at a time marked by the appreciation of the employment of the technique
and the material realization. Through the figure of the main protagonist Victor
Frankenstein, we evaluate, allegorically, the dawn of a new logic of scientific thought,
incarnated in that character. In overall, we also evaluate the influence of the author’s
private life in the inspiration of her work, when we look at the presence of mythology
(the figure of Prometheus), the artistic perception of the author and the presence of
science in her trajectory that ultimately flows into her writing.
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 6
2 MARY WOLLSTONECRAFT GODWIN SHELLEY ............................................. 13
2.1 HERANÇAS LITERÁRIAS: UMA FAMÍLIA DE RENOME ...................................... 16
2.2 ROMÂNTICOS ............................................................................................................... 21
2.3 OS QUATRO LIBERTINOS: UM CASAL DE ROMÂNTICOS E UMA DUPLA DE
EXCÊNTRICOS ............................................................................................................. 28
1 INTRODUÇÃO
A pesquisa ora desenvolvida se debruça sobre uma parcial análise do desenvolvimento
científico europeu, em específico na Inglaterra, nos primeiros trinta anos do século XIX.
Parcial, pois analisa uma das faces da evolução técnico-científica decorrente da Revolução
Industrial Britânica, que, junto a Revolução Francesa (1789-1799), estabelecem novos moldes
sociais, políticos, econômicos e culturais. Na esteira do processo de industrialização, percebe-
se também uma modificação nas realizações técnicas, impulsionadas, também, por uma nova
mentalidade intelectual, que propõe, através de métodos teórico-práticos, produções materiais
que buscam dinamizar, acelerar e incrementar as engrenagens que dão funcionamento ao meio
social (a produção, a organização do tempo e do espaço, a análise demográfica, a agilidade
das relações – meios de transporte, de comunicação, etc.).
Nesse contexto de constate avanço e modificação do espaço social, observadores reais
– e fictícios – deixaram expostas suas percepções, análises, críticas e sensações acerca do
mundo novo. Além da intelectualidade, que buscava entender a nova dinâmica que afetava o
cotidiano de milhares de pessoas, poetas, romancistas e prosadores de forma geral, através da
sensibilidade e subjetividade da obra literária ficcional, registraram interpretações sobre a
realidade que se estabeleceu. As abordagens variam: da obra crítica, que em tom de denúncia
expôs as mazelas que se instalaram no novo sistema, até às obras que trataram sobre o
relacionamento cotidiano dos pares sociais (também profundamente modificado), a literatura
de ficção se fez presente em todo o período de ascensão do modo de produção capitalista, que
encontrou seu ápice no século XIX; e em seu fim, já era uma realidade global.
Dentre as várias obras de destaque que marcaram a época e que, ainda, hoje são
referências tanto literárias quanto reflexivas, destacamos, para este trabalho, o livro
Frankenstein, ou o Prometeu moderno, de autoria da inglesa Mary Shelley, escritora clássica
da literatura ocidental. Publicada pela primeira vez em 1818, passando por duas reedições em
1823 e 18311, a obra máxima de Mary traça a trajetória de um jovem estudante suíço, Victor
Frankenstein, que dedica sua vida a uma grande realização científica: a produção da vida.
Atenta às transformações da sua época e convivendo com um círculo fraterno bastante
observador da contemporaneidade de até então, Mary Shelley, muito jovem, apresenta em sua
1
Esta é a versão concisa e base para inúmeras traduções. A edição traduzida que utilizamos é oriunda
diretamente desta publicação de 1831. A versão de 1818, conforme nossa averiguação, encontra-se disponível
em inglês. A de 1823 não conseguimos localizar.
7
escrita valores fundamentais dos novos horizontes científicos que se instalavam: a valorização
do empirismo; o zelo pelo método, pela organização e pela coleta de informações/matéria-
prima; a dedicação disciplinada e ferrenha; a especialização aliada a interdisciplinaridade; o
impacto social; o retorno pessoal. Mais impactante ainda, Mary Shelley faz um contraponto
pertinente e atemporal, mas que ainda assim pode ser revolucionado: o pensamento juvenil,
“grandioso” e eufórico; a maturidade reflexiva, “trabalhadora” e pragmática.
A personagem Victor Frankenstein, duplo protagonista de seu tempo, seja como ficção
ou como retrato de uma época, passa por duas fases que irão moldar seu cientificismo: ainda
jovem, até seus 17 anos, é um garoto ávido por conhecimento, conhecimento este já não mais
apto para a realidade do século XIX, considerado fantasioso e irrealizável (ainda que base
filosófica para a ciência moderna); após aquela idade, ao adentrar na universidade, apesar de
pragmático, o saber que lhe é exposto torna-se mais digno de sua atenção, pois realizável e
cabível às suas capacidades. O Victor jovem conhecia sonhos fantásticos de mentes oníricas;
o Victor adulto entra em contato com promessas palpáveis de homens práticos. Se antes de
sua inserção acadêmica, Frankenstein maravilhava-se com a promessa da vida eterna de
alquimistas de outrora, agora ele trabalhará duro para aprender os métodos de cientistas
modernos. Contudo, o toque sutil de Mary Shelley não permitirá que a obra caia em taciturna
transição: se a era revolucionária europeia possuía horizontes ilimitados e buscava alcançar
grandes realizações materiais, Victor Frankenstein, metaforicamente, não se contentará com o
básico, com o simples. Seu fazer científico é revolucionário, e a revolução é identificada com
a juventude.
O processo de industrialização proporcionou o menor estreitamento entre jovens e
velhas mentes: na própria literatura, afirma Hobsbawm (2014), não alcançar o sucesso antes
dos 30 anos é sinal de fracasso. O crescimento industrial e técnico também repercutiu na
mudança das relações sociais, na constituição da nova moral e novos valores. A valorização
do indivíduo jovem como interventor social, especialmente no campo das artes e da ciência
foi valorizada. Na economia, fortunas foram feitas antes da meia-idade (por volta dos
cinquenta anos), e a inserção no espaço político não se restringiu mais a uma camada de
senhores aristocratas arcaicos.
A realização crucial das duas revoluções [– inglesa e francesa –] foi, assim, o fato de
que elas abriram carreiras para o talento ou, pelo menos, para a energia, a
sagacidade, o trabalho duro e a ganância. Não para todas as carreiras nem até os
últimos degraus superiores do escalão, exceto talvez nos Estados Unidos. E, ainda
assim, como eram extraordinárias as oportunidades, como estava afastado do século
XIX o estático ideal hierárquico do passado! (HOBSBAWM, 2014, p. 298).
8
A obra Frankenstein, ou o Prometeu moderno hoje faz parte do panteão das grandes
produções literárias. Apesar de já ter sido contestada, criticada e até mesmo ignorada durante
certo tempo (inclusive no círculo acadêmico)2, este clássico britânico, ainda, ocupa o
imaginário contemporâneo, mesmo que seja de forma esvaziada, quando apenas nos
lembramos do nome Frankenstein e a ele relacionamos partes emendadas ou produções
artificiais. Ou, mais comumente, quando associamos o nome a figura de um monstro alto e
forte, de cabeça chata, com cicatrizes, pinos de metal e uma postura que mescla o grotesco
com o bobo. Esta imagem é fruto das intepretações cinematográficas, cujo primeiro grande
marco é Frankenstein, de 1931, dirigido por James Whale e produzido pela Universal
Studios.3 A partir de então, a indústria cultural não parou mais de reproduzir essa versão,
talvez não distorcida, mas diferenciada da narrativa original do livro – segundo ressalta
Hitchcock (2010), nem mesmo era intenção dos elaboradores da versão fílmica realizar uma
adaptação o mais próximo da versão literária.4
Logo, desde sua primeira publicação em 18185, até os dias atuais, o simbolismo
cultural que Frankenstein carrega tornou-se meio que de domínio público da sociedade,
2
“Os cientistas podiam estar prontos a considerar o romance de Mary Shelley para se orientar, mas a maioria dos
que praticavam o estudo da literatura inglesa profissionalmente teria escarnecido da ideia no início da década de
1970. Para eles, Frankenstein mal valia a pena ler, que dirá estudar como uma obra de arte ou um ponto de
referência moral. Nos departamentos de inglês da época, em ambos os lados do Atlântico, nem Mary Shelley
nem seu romance eram admitidos no cânone da grande literatura. Ela não podia ser comparada em calibre ou
importância, acreditavam eles, com escritores como William Wordsworth, Samuel Taylor Coleridge, John Keats,
Lord Byron ou até mesmo seu marido, Percy Bysshe Shelley. Para os acadêmicos da época, Frankenstein era
estritamente um romance pulp, ou seja, mal escrito e concebido com a intenção de chocar as pessoas [...]”
(HITCHCOCK, 2010, p. 291-292).
3
Cf. HITCHCOCK, 2010, p. 127-204. Outras obras como Frankenstein: mito e filosofia (1991) de Jean-Jacques
Lecercle, Em busca de Frankenstein (1998) de Radu Florescu e O mosaico de Frankenstein (1999) de Ana
Claudia Giassone também tratam sobre o papel do cinema na adaptação e construção imagética das personagens
de Frankenstein. Contudo, Susan T. Hitchcock apresenta um volume maior de informações e reflexões em
língua portuguesa para o leitor ou a leitora que queira se debruçar sobre Frankenstein adaptado, não apenas ao
cinema, mas a variadas mídias (a obra abrange, além das adaptações fílmicas, a produção de caricaturas,
desenhos animados, peças teatrais, canções, séries televisivas, revistas em quadrinhos e até mesmo adaptações
para a própria literatura ficcional, entre outros – não necessariamente apresentados nesta ordem).
4
Sobre a caracterização da versão cinematográfica do monstro de Frankenstein, Cf. NASR, Constantine. He
Who Made Monsters: The Life And Art Of Jack Pierce. [Documentário]. Direção de Constantine Nasr. USA,
2008. Vídeo online, 25h01min. color. son. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xa04zz15eQs.
Acesso em 31 de jan. de 2016.
5
A obra possuiu três edições, que, creio eu, não seria ousadia falar em três versões. A primeira, de 1818, possui
três volumes e um prefácio; a segunda, de 1823, possui dois volumes e algumas alterações na narrativa; a
terceira e última versão, de 1831, é volume único e possui tanto alterações como acréscimos (cinco capítulos
iniciais), além de um prefácio autobiográfico da autora, que trata acerca do processo produtivo da obra. Boa
parte dessas alterações discursivas se deve às várias críticas que a obra sofreu por parte de indivíduos
14
principalmente para aqueles que estão vinculados ao universo artístico. A obra nublou sua
autora, fato não único na literatura6. O seu esvaziamento permite que muitas pessoas sejam
capazes de falar sobre Frankenstein; contudo, uma boa parte não conhece a história original,
muito menos sua origem (HITCHCOCK, 2010). A verdade é que Frankenstein, ou o
Prometeu moderno7 possui uma história original, um local de criação, um recorte temporal
específico e uma autora em particular: iniciado em 1816, em terras suíças, finalizado um ano
depois e publicado em 1818, sob a autoria de uma jovem inglesa chamada Mary
Wollstonecraft Godwin Shelley, mais conhecida por Mary Shelley.
Contudo, indiferente do que fora feito com sua obra, em 1831 Mary Shelley escrevia
estas palavras sobre o futuro de sua cria: “E agora, mais uma vez, peço a minha criatura
hedionda que siga seu caminho e prospere” (SHELLEY, 2013, p.31). Apesar de ainda em
vida ter convivido com a repercussão (tanto favorável como contrária) de seu livro, mal
poderia imaginar Mary que, hediondamente, sua criatura criadora seguiria um caminho
próprio e próspero, e o reflexo disto é que, neste exato momento, apresento uma pesquisa
dedicada a analisá-la, parte por parte.
Destarte, o capítulo inicial fora dividido em três tópicos de ênfase cronológica, mas
que de forma nenhuma se resume apenas a esse critério. Com o objetivo de discutir quem foi
a autora, primeiramente, trataremos dos antepassados de Mary Shelley, seus pais William
Godwin e Mary Wollstonecraft, dando vazão a importância destes não apenas na formação da
jovem filha, mas também nas vidas pregressas de cada um, tendo em vistas serem importantes
nomes da intelectualidade inglesa, como veremos mais detalhadamente. Logo em seguida,
daremos vez a relação entre Mary e seu companheiro intelectual e amoroso, Percy Shelley,
com um breve levantamento biográfico daquele e seu posterior encontro com a escritora. Por
fim, iremos então nos deter sobre os primeiros passos para a confecção de Frankenstein,
quando Percy e Mary conhecem seus dois amigos literários, Lord Byron e John Polidori, e
assim dão início a trocas afetivas, intelectuais e, principalmente, literárias.
Portanto, comecemos! Comecemos despedaçando essa justaposição de sobrenomes,
Wollstonecraft, Godwin e Shelley, possuidores de uma rica história literária que influenciou
ferrenhamente insatisfeitos com a abordagem da autora acerca de alguns temas “polêmicos” – Hitchcock (2010),
por exemplo, nos fala de “acusações de incesto” como um daqueles.
6
Como o caso de Sherlock Holmes, por exemplo, que levou inúmeras pessoas a acreditarem em sua existência,
fazendo-o, durante um bom tempo, mais famoso que seu próprio autor, o escocês Sir Arthur Conan Dolye.
7
Frankenstein, em itálico, será aqui sempre utilizado para se referir ou a obra literária ou a outras adaptações
midiáticas, que, quando necessário, serão devidamente referenciadas em seus campos artísticos para que o leitor
e a leitora não se confundam.
15
nas vivências e nos escritos da britânica Mary, esta mulher que, com apenas 21 anos de idade,
publicava não apenas seu primeiro livro, mas também sua maior obra prima.
16
[...] Ainda jovem, ela procurou refúgio no túmulo tranquilo de sua mãe no
Cemitério de St. Pancras, em Londres, para se entregar às suas fantasias. Mais tarde,
ela se encontrava ali com Shelley, onde os amantes liam um para o outro os livros de
Mary Wollstonecraft, talvez entregues a jogos de imaginação até que a madrugada
os interrompia (FLORESCU, 1998, p. 31).
O cemitério, local visto por alguns como lúgubre e macabro, para Mary era o único
espaço que a permitia ficar próxima de sua raiz. Por esse motivo, frequentar o túmulo de sua
mãe ia além da mera atividade de recordação (ou a produção de um sentimento de recordação,
a visto ser ainda uma recém-nascida quando da morte de sua mãe), mas também se tornara um
hábito da necessidade de encontrar ali o elo materno de vivência. Mary Wollstonecraft,
mesmo sem querer, fora de profunda importância no desenvolvimento de sua filha, legando a
ela não apenas a “dádiva da vida”, mas uma herança intelectual importante, cuja filha não
falhara em honrar em sua memória.
Mas, afinal, quem seria essa mulher, Mary Wollstonecraft, afirmada acima como
figura intelectualmente “importante”? Que herança, aliás, fora essa deixada por ela a filha? E,
principalmente, como a conquistou? Busquemos solucionar estas questões.
Mary Wollstonecraft Godwin (1759-1797) fora uma intelectual britânica importante.
Ela é considerada umas das primeiras feministas da história (GIASSONE, 1999; LECERCLE,
1991), sendo escritora de vários “romances e tratados, incluindo A reivindicação dos direitos
da mulher, o primeiro tratado feminista de todos os tempos” (HITCHCOCK, 2010, p. 30-31).
Este livro “foi considerado revolucionário quando apareceu em 1792, e tornou Mary
17
Wollstonecraft famosa, especialmente nos círculos liberais” (FLORESCU, 1998, p. 33). Sua
inclinação pelo pensamento progressista e transformador a levou até bem distante de sua terra:
simpatizante dos anos revolucionários que transcorriam na França do século XVIII, Mary para
lá viajou buscando presenciar pessoalmente os fatos que se desenrolavam.
[...] Mary Wollstonecraft partiu para Paris em novembro de 1792: logo, ela
se encontrava lá em fevereiro de 1793, quando a Inglaterra declarou guerra e a
situação dos ingleses em Paris ficou precária;8 ela ainda estava lá em outubro do
mesmo ano quando o Comitê de Salvação Pública ordenou a captura de todos os
cidadãos britânicos: só escapou à prisão porque estava refugiada fora da cidade, em
Neuilly. Ela ficaria na França, residindo principalmente no Havre, até 1795. Em
outras palavras, ela passou lá o período da Revolução mais perigoso para os
estrangeiros (LECERLE, 1991, p. 63-64).
8
Sobre o conflito anglo-francês: “Desde 1792, a França estava em guerra com a Primeira Coalizão [– aliança
entre países contrarrevolucionários liderados pela Inglaterra –] de seus inimigos, empenhados em reverter a onda
revolucionária que parecia ameaçar toda a Europa e em restabelecer o status quo ante na França. Na visão de
Thomas Carlyle [intelectual inglês], a morte de Luís XVI na guilhotina ‘dividiu todos os amigos; e, no exterior,
uniu todos os inimigos’; por outro lado, segundo Friedrich Engels e outros, não fosse o efeito estimulante da
intervenção estrangeira, a revolução poderia ter acabado sufocada no próprio vômito” (HORNE, 2013, p. 13).
9
Além de sua viagem a França, Mary também passou por outras nações europeias, como os escandinavos
Suécia, Dinamarca e Noruega, o que resultou no livro Letters Written during a Short Residence in Sweden,
Norway, and Denmark, um “dos seus melhores escritos, e era um dos livros prediletos de Mary Shelley”
(FLORESCU, 1998, p. 34).
18
E a afeição de William Godwin não parou por aí. Sobre o desenrolar da sua relação
com Mary, ele nos diz:
A inclinação que cultivamos um pelo outro era daquele gênero que sempre
concebi como o mais puro e refinado amor. Cresceu no mesmo ritmo em nosso
espírito. Seria impossível dizer quem de nós chegou primeiro e quem veio depois.
Um de nós não avançou um só passo, que percebesse, que o outro já não tivesse
avançado antes. Não tenho consciência de uma das partes ter sido agente, e a outra
paciente, de uma ser o predador e a outra a presa, nesse encontro. Quando, no curso
natural das coisas, veio a revelação, nada havia enfim que revelar de parte a parte...
Foi amizade que se fez amor (GODWIN apud FLORESCU, 1998, p. 35).
Contudo, essas carinhosas palavras não são o suficiente para esconder uma
personalidade ardente, assim como o intelecto tão crítico quanto de sua esposa. William
Godwin também marcou seu tempo.
William Godwin (1756-1836) é irremediavelmente tratado como um dos mais
importantes pensadores ingleses, e não há nenhuma hesitação em afirmar que o mesmo é um
dos mais efervescentes (FLORESCU, 1998; GIASSONE, 1999; HITCHCOCK, 2010;
LECERCLE, 1991). Sua obra dividia opiniões: poderia ser tanto um homem admirável como
também desprezível (FLORESCU, 1998; GIASSONE, 1999). Contudo, é inegável seu talento
e grande capacidade intelectual em seu tempo. As obras aqui utilizadas para a abordagem da
vida pessoal de Mary Shelley e seus entes queridos endossam seu prestígio, o que torna
desafiador selecionar os trechos mais marcantes sobre sua personalidade e intelecto. Contudo,
o esforço vale a pena.
Giassone afirma ser Godwin:
E lembra:
10
Letters Written during a Short Residence in Sweden, Norway, and Denmark.
19
Segundo Hitchcock, fora com essa mesma obra, traduzida como “Inquérito acerca da
justiça política, um tomo de filosofia política, [que Godwin] prendeu a imaginação do público
tão intensamente” [...] (2010, p. 31). Lecercle endossa a importância da obra de Godwin que,
além de ser “um dos grandes textos da filosofia política inglesa”, é a obra que apresenta “a
primeira formulação do anarquismo filosófico” (1991, p. 16). Contudo, apesar destas
afirmações, é Florescu quem nos dá maiores informações sobre a figura de Godwin. Segundo
o autor:
11
Principal obra de sua esposa, Mary W., já citada, em português.
20
Mary Shelley, aos seus 34 anos, refere-se aos seus pais. E continua: “Quando criança, eu
rabiscava; e meu passatempo favorito, durante as horas que me eram dadas ao divertimento,
era ‘escrever histórias’” (SHELLEY, 2013, p. 25-26). “O pai até publicou um poema rimado
espirituoso que ela escrevera aos 10 anos de idade, caçoando de um inglês que fingia
conhecer a França” (HITCHCOCK, 2010, p. 31).
Apesar de não sentir nenhuma atração pelos posicionamentos políticos e filosóficos de
seus pais (mas também não renegá-los) (LECERCLE, 1991, p. 60), a obra-prima de Mary
Shelley experimenta e propõe uma efervescência de sentimentos de desafio, de conflitos
contra a ordem vigente; a meta de Victor Frankenstein, sua personagem, pode, no mínimo, ser
chamada de revolucionária. Apesar de ser uma “conformista”, segundo afirma Lecercle
(1991)12, Frankenstein expõe, a priori, um ir além de. É a tragédia, e apenas a tragédia que faz
seu protagonista tentar frear os acontecimentos que se desenrolam.
Contudo, no “mundo real”, Mary Shelley experimentou relativo sucesso, ao ponto de
poder ter o privilégio de afirmar “Fiquei famosa!” (HITCHCOCK, 2010, p. 91). Pouco mais
de um século depois, ela definitivamente entraria para o rol das grandes personalidades
literárias e honraria suas origens intelectuais.
Não sou, na verdade, um bom juiz da personalidade de Mary. Creio que ela nada
tem das coisas comumente chamadas de vício, e que ela tem um talento
considerável... Estou ansioso para que ela floresça... como uma filósofa, ainda que
cínica. Isso aumentaria a força e a riqueza da sua personalidade... Gostaria, também,
que ela pudesse ser estimulada a tornar-se industriosa. Ela tem às vezes grande
perseverança, mas em alguns casos também carece de um estímulo (GODWIN apud
FLORESCU, 1998, p. 39).13
12
“Ela diz isto [...]: respeito os que querem mudar o mundo, mas não partilho suas ideias, pois meu
temperamento não me leva aos extremos, e fora dos que me são próximos, jamais gostei dos liberais, ainda que
nada tenha dito contra eles” (LECERCLE, 1991, p. 60).
13
O texto de Godwin é de 1812; Mary possuía então 14/15 anos.
21
2.2 ROMÂNTICOS
Entre 1789 e 1848, floresceu na Europa um importante movimento literário que fora
impactado e ao mesmo tempo impactou seu tempo. Essa determinação temporal é de
proposição do historiador britânico Hobsbawm, que em seu capítulo “As artes” da obra: A
Era das Revoluções, expõe e argumenta como “as revoluções” tocaram na subjetividade de
vários artistas do Velho Mundo, de escritores a pintores, de desenhistas a arquitetos. Dentre
os importantes movimentos surgidos, Hobsbawm (2014) destaca o valor do Romantismo na
literatura. “A primeira coisa que surpreende a qualquer um que tente analisar o
desenvolvimento das artes neste período de revolução dupla14 é seu extraordinário
florescimento” (HOBSBAWM, 2014, p. 392). Há, portanto, um “excepcional
desenvolvimento de certas artes e gêneros. A literatura, por exemplo, e dentro dela o
romance” (HOBSBAWM, 2014, p. 394). Esse período proposto pelo autor, que por sinal
contempla o recorte temporal e espacial desta pesquisa, é, sugestivamente, o período dos
românticos. Sua força estética, intelectual e social fora marcante sobre a sociedade europeia.
Não à toa: “Neste período, sem dúvida, os artistas eram diretamente inspirados e envolvidos
pelos assuntos públicos” (HOBSBAWM, 2014, p. 395). Contudo, o título deste tópico não
deve iludir sobre o que aqui será tratado.
Não se pretende aqui falar sobre o movimento, sobre seu desenvolvimento e sua
repercussão. O título, na verdade, diz muito além do que uma exposição de partícipes de um
movimento literário: românticos não apenas pelo seu “modelo” literário “escolhido”, mas
românticos pela relação estabelecida entre dois grandes nomes da literatura inglesa, britânica
e universal. Além da influência familiar, fora importante na vida e na obra de Mary Shelley a
presença de seu par amoroso e intelectual, Percy Shelley, um dos baluartes da poesia
europeia. Se seus pais já há muito deixavam de “herança literária” para a jovem Mary, Percy
fora importante para incentivar, orientar e lapidar o talento de sua companheira. Fora de
importância fundamental tanto interna quanto externamente na produção de Mary.
Contudo, antes de entendermos como Percy contribuíra na carreira de sua
companheira, se faz necessário evidenciar quem fora este homem, quais suas realizações e
como elas o fizeram se tornar um famoso literato.
Percy Bysshe Shelley (1792-1822) fora um peculiar indivíduo que cedo já conquistava
respeito e credibilidade no mundo das letras. Com apenas 24 anos de idade, já era um escritor
famoso (HOBSBAWM, 2014, p. 401). Sua ascendência era relativamente privilegiada; filho
14
Revolução Industrial Inglesa e Revolução Francesa.
22
de um baronete, Timothy Shelley, Percy possuía as condições mínimas que poderiam lhe
possibilitar uma carreira estável e promissora no universo da política (HITCHCOCK, 2010, p.
32). Contudo, não era este o propósito do jovem rapaz, que se enveredou por caminhos, à
vista da época, “tortuosos”:
Desde cedo, porém, Percy deixava claro que não preencheria tais expectativas.
Frequentara Oxford, mas fora sumariamente expulso no segundo trimestre por
publicar um panfleto provando, como dizia no título, A necessidade do ateísmo.
Dois depois, em 1813, publicara – novamente à própria custa – um “poema
filosófico” dedicado à jovem esposa, Harriet. A opinião dela era de que Rainha Mab
“não deveria ser publicado sob o sofrimento da morte, porque é excessivamente
contra tudo o que é estabelecido”.15 [...] Com 2.305 linhas de versos não rimados
seguidos por notas de rodapé explicativas que mais do que dobravam o número de
páginas, Rainha Mab era um empreendimento presunçoso para um homem de
apenas 20 anos de idade. Seu conteúdo diz muito sobre o jovem Percy Bysshe
Shelley, cuja imaginação contrapunha fadas-rainhas a órbitas planetárias, fantasia
imaginativa a fato científico (HITHCOCK, 2010, p. 32-32).
Sua ousadia literária nada mais era do que um reflexo de suas grandes paixões: a
liberdade, a poesia, o ateísmo (HITCHCOCK, 2010, p. 24). Além de bradar em suas letras
estas suas paixões, Percy possuía outros hábitos: como afirma Florescu, a alimentação do
poeta era inteiramente vegetariana, além de consumir muito chá (1998, p. 42). Fora também
preocupado com a “liberação da mulher”, assim como “acreditava no amor livre”
(FLORESCU, 1998, p. 42). “Shelley estava sempre defendendo boas causas, muitas delas
revolucionárias no seu tempo, e na Irlanda ele promoveu, mais tarde, o nacionalismo irlandês”
(FLORESCU, 1998, p. 42).
Florescu, ainda, nos dá mais outras informações vívidas de Percy:
Percy Bysshe era um homem jovem, alto e ossudo, mas de aparência frágil,
que talvez parecesse menor por seu curvo. Tinha bastos cabelos castanhos
ondulados, grandes olhos azuis luminosos e pele rosada. Seus gestos eram abruptos,
às vezes até violentos, e sua voz era irritantemente aguda. De temperamento
delicado e gentil, podia exaltar-se de repente. Seu trajar era em geral descuidado,
mas sua presença, de acordo com seu amigo mais próximo, Thomas Jefferson Hogg,
era “extremamente poderosa”. Suas feições “transmitiam uma animação, um fogo
interior, um entusiasmo, uma inteligência vívida e sobrenatural que nunca havia
encontrado antes em outro semblante”.
[...]
Com apenas 22 anos, ele já era poeta e autor, assim como conversador
brilhante, que deixava sua audiência geralmente deslumbrada. Era um leitor voraz e
podia conversar sobre uma imensa variedade de assuntos, como os valores estéticos
da Antiga Grécia, as virtudes da República Romana, o humanismo do
Renascimento, o Século das Luzes e da Razão, o libertarismo e o igualitarismo do
Contrato Social de Rousseau refundidos nos modelos de Godwin, a poesia de
15
Mary, contudo, possuía uma percepção bem diferente sobre a obra: “‘Este é um livro sagrado pra mim’”
(HITCHCOCK, 2010, p. 33).
23
16
William Wordsworth (1770-1850) e Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), importantes nomes da primeira
geração do Romantismo inglês. Para mais informações sobre o romantismo, ver Hobsbawm, 2014, p. 391-426.
17
Vale lembrar que o pai de Mary, William Godwin, também pode em muito ter contribuído. Afinal, William
Godwin dedicava um estudo a “tópicos tais como necromancia, alquimia, rosacrucianismo, Alberto Magno,
Cornélio Agrippa, Paracelso, astrologia e feitiçaria [...]” (FLORESCU, 1998, p. 36). Vemos novamente aparecer
os termos “alquimia” e “Paracelso”, assim como temos agora “Alberto Magno” e “Cornélio Agrippa”, outras
figuras importantes no enredo de Frankenstein.
24
A partir de então, Percy rapidamente abdicaria de sua vida habitual para ficar junto de
Mary, em um amor reciprocamente correspondido. Mary declara com fervor esse amor em
anotações feitas na obra Rainha Mab, presente de Percy a ela:
“Este livro é sagrado para mim e como ninguém mais no mundo o verá,
posso escrever nele o que eu quiser – e assim escrevo –, que eu amo o autor muito
mais do que sei expressar, e que partilho com ele o mais caro e único amor – por
esse amor nos temos prometidos um ao outro, embora eu possa ainda não ser sua, já
não posso nunca ser de outro. Mas sou vossa, exclusivamente vossa,
Essa forte paixão logo levara os dois a fugir pela Europa, ainda no mesmo ano em que
se conheceram (FLORESCU, 1998, p. 47). Um grande desafio para Mary, ainda jovem e
dependente do pai; para Percy, um ousado ato social, tendo em vista ser casado, ter filhos e
uma ascendência respeitável.
Percy explicava seu comportamento de acordo com uma filosofia de amor livre. “O
amor”, escreveria ele, “difere do ouro e do barro: / O que divide não subtrai”. As
suas paixões – Mary, liberdade, poesia, ateísmo – significavam mais para ele do que
a responsabilidade por uma família alienada e terrena (HITCHCOCK, 2010, p. 24).
25
Essa “fuga”, “viagem” ou até mesmo “sequestro” segundo considerava o pai de Mary
Shelley (HITCHCOCK, 2010, p. 25), custou caro aos dois: o pai de Percy “sentiu-se
enfurecido mais pela vergonha sobre a família do que por qualquer outra coisa e bloqueou
perversamente o acesso do filho a qualquer herança”; William Godwin, já não mais tão
popular como “autor radical”, aproveitou-se da situação e “transformou o sequestro da filha e
da enteada18 por Percy, como o considerava, em uma oportunidade para um tipo cavalheiresco
de chantagem” (HITCHCOCK, 2010, p. 25). Contudo, o evento mais trágico viria a ser o
suicídio de ex-esposa de Percy:
No fim das contas, a morte de Harriet serviu para fortalecer ainda mais os laços do
casal aventureiro: 20 dias depois, a 30 de dezembro, Percy e Mary se casaram. Entre 1814 e
1816, o casal já passara por uma séria de infortúnios e momentos de tristeza. A própria Mary
já havia engravidado pelo menos duas vezes, e nas duas vezes as crianças não sobreviveram.19
Agora, vivendo sobre a condição oficial de casal, os dois precisavam buscar uma
melhor condição de vida para dar sustento a si e a prole (William – ainda não falecido – e os
filhos de Percy). É justamente em 1816 que Mary inicia a escrita de Frankenstein,
profundamente influenciada e “tocada” pela presença de Percy.
18
Junto com Percy e Mary, viajara também Claire Clairmont, filha da segunda companheira de Godwin.
19
O primeiro filho do casal, William, nascera em janeiro de 1816. Contudo, a criança sequer chegara a fase
adulta. Apenas Percy Florence Shelley, segundo filho do casal, sobrevivera por mais tempo (nascera em 1819 e
morrera em 1889).
26
O esforço de Mary para “enriquecer suas ideias” é de fato notável. Entre suas leituras,
podemos destacar: Ensaio sobre o entendimento humano, de John Locke; Vidas de nobres
gregos e romanos, de Plutarco; Pamela, de Samuel Richardson20; The Old Familiar Faces, de
Charles Lamb; The Vicar Of Wakefield, de Olivier Goldsmith; Childe Harold’s Pilgrimage,
de Lord Byron; Mont Blanc e On mutability, de Percy Shelley21; Caleb Williams e St. Leo, de
seu pai William Godwin; The Monk, de Matthew Gregory Lewis; Mysteries Of Udolpho e The
Italian, de Ann Radcliffe; Castle Of Otranto, de Horace Walpole; Wieland, or the
Transformation e Edgar Huntley, de Charles Brockden Brown; Dreams e La Nouvelle
Heloïse, de Jean-Jacques Rousseau; Le Peré de Famille e Lettre su ler Sourds-Muets, de
Diderot; Traité de Sensations, de Condillac; Historie Naturel, de Buffon.22 Poderíamos, ainda,
incluir:
Com seu intelecto enriquecido, Mary dava início a escrita de Frankenstein, com seu
marido encarregado de avaliar e apontar que caminhos a jovem deveria seguir em sua
empreitada.
20
HITCHCOCK, 2010, p. 54-56; p. 69.
21
Cf. SHELLEY, 2013.
22
FLORESCU, 1998, p. 153-157.
23
Essa gama de leituras de Mary nos atesta uma variedade de abordagens que alimentava o intelecto da autora:
filosofia, história, prosa e poesia. Um misto íntimo de assuntos que discutem temas da realidade e da ficção,
intimidade esta tão importante para a elaboração de Frankenstein, e que nos atesta uma “espantosa erudição,
ainda que esta fosse, em alguns sentidos, acompanhada da imaturidade adolescente da autora” (GIASSONE,
1999, p. 44).
27
24
Como veremos no próximo capítulo, Mary, Percy e Prometeu convergem profundamente.
28
1816 foi um ano ímpar na trajetória de Frankenstein: pois, marcou o seu início. Escrito
na Suíça, terra natal de Jean-Jacques Rousseau, a obra-prima de Mary Shelley carrega em sua
história os nomes de grandes literatos ingleses. Além das influências de Percy, já apontadas
acima, Frankenstein, também, é devedor da presença do controverso Lord Byron (1788-1824)
De ascendência aristocrática, George Gordon, o Lord Byron, fora um importante poeta
da segunda geração do romantismo inglês, ao lado de Percy. Aliás, Percy e Byron foram
grandes amigos, que se conheceram na Suíça e conviveram por algum tempo numa pequena
vila chamada de Diodati.
Assim como Percy, Lord Byron, no quesito controvérsias, não perdia em nada para seu
companheiro. Saíra de Londres rumo à Genebra por conta de rumores sobre sua
personalidade. Sua própria esposa chegou a solicitar uma consulta de Byron a um médico para
avaliar sua saúde mental: dado como “são”, sua então companheira Annabella Milbanke
concluiu que seu marido só poderia ser “imoral” e “perigoso”. 25 Ora, se as atitudes
“inadequadas” de Byron não podiam ser explicadas pela ciência, então este homem só podia
ser perverso por consciência: dentre as acusações sociais que sofrera, Byron fora apontado
como incestuoso e sodomita; nesse ínterim, Annabella já havia solicitado a separação.26
Sua herança nobiliárquica se deu aos dez anos de idade, quando tomou posse da
propriedade de sua família após a morte de seu tio-avô George Noel Gordon.27 No entanto,
pouco Byron tinha do que se orgulhar de seus “privilégios de nobreza”: o “patrimônio
hereditário incluía dívidas e má fama por parte de pai, e a mãe enfrentara dificuldades para
sustentá-lo sozinho” (HITCKCOCK, 2010, p. 31). Sua principal obra poética é A
peregrinação de Childe Harold (1812), tornando-o famoso e bem-sucedido literariamente na
Inglaterra.28
Polêmicos e controversos, Lord Byron e Percy Shelley fazem parte do panteão dos
grandes escritores ingleses. Influenciados por sua época, esses dois amigos viveram
intensamente suas emoções tanto no plano real quanto fictício. Influenciados pelas atmosferas
revolucionárias do século XVIII, suas produções possuem profundas inspirações em assuntos
25
HITCHCOCK, 2010, p. 27.
26
HITCHCOCK, 2010, p. 27.
27
HITCHCOCK, 2010, p. 31.
28
HITCHCOCK, 2010, p. 31-32.
29
socialmente debatidos.29 “Se fôssemos resumir as relações entre o artista e a sociedade nesta
época em uma só frase, poderíamos dizer que a Revolução Francesa inspirava-o com seu
exemplo, [...] a revolução industrial com seu horror” (HOBSBAWM, 2014, p. 395). Byron e
Percy, assim como outros escritores, não tinham apenas o compromisso com a arte, mas o
compromisso com questões políticas, sociais e culturais. A arte se fazia via de expressão das
subjetividades desses criadores. E o mais curioso é a validade intelectual que essas obras
obtinham: para além da narrativa crítica de pensadores sociais, as narrativas simbólicas e
metafóricas da poesia e da literatura de ficção alçavam seu espaço como legítimas escrituras
reflexivas, com valor analítico (em alguns casos) tal qual um tratado político ou social:
Como bem fica claro acima, essa escrita poética que às vezes se faz mais clara do que
a crítica dos cientistas é uma das características do Romantismo, movimento literário que se
fez contundente principalmente na Inglaterra, França e Alemanha.30 Como já dito, Byron e
Percy fazem parte da segunda geração desse movimento, nos quais muitos de seus problemas
e valores irão influenciar a escrita de Mary Shelley. No entanto, definir o Romantismo é um
desafio um tanto complexo. Em apenas uma página de seu A era das revoluções Hobsbawm
apresenta quatro perspectivas de “mentes românticas” diferentes, cada uma com uma
concepção singular. Contudo, o que podemos inferir é que a escrita romântica se faz através
de uma calorosa expressão sentimental, onde emoções literárias se confundem com emoções
de literatos. O movimento romântico, em síntese, deixa:
[...] evidente o que ele combatia: o meio termo. Qualquer que seja seu conteúdo, era
um credo extremista. Os artistas e pensadores românticos [...] são encontrados na
extrema esquerda, [...] ou na extrema direita, [...] como saltando da esquerda para a
direita, [...] como saltando do monarquismo para a extrema esquerda.
(HOBSBAWM, 2014, p. 399-400).
29
HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções, 1789-1848. 33ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 395.
30
HOBSBAWM, 2014, p. 399.
30
31
Infelizmente, devido a foco estabelecido por essa obra e, portanto, suas limitações temáticas e analíticas, não
nos aprofundaremos na interpretação dos escritos daqueles dois e suas relações com o momento social, político e
cultural de sua época. O máximo que podemos oferecer ao leitor é um breve panorama de quem foram, suas
expressivas produções e suas parcelas de contribuição na vida pessoal e artística de Mary Shelley.
32
HITCHCOCK, 2010, p. 33.
33
HOBSBAWM, 2014, p. 403.
34
“A juventude e os ‘gênios’ mal compreendidos produziam a [...] moda de atormentar e chocar os burgueses, a
ligação com o submundo e a boemia (termos estes que adquiriram sua atual conotação durante o período
romântico), o gosto pela loucura ou por coisas normalmente censuradas pelos respeitáveis padrões e instituições.
Mas isto era só uma pequena parte do Romantismo” (HOBSBAWM, 2014, p. 404).
31
35
De acordo com Hobsbawm (2014), fora justamente no período de produção das obras românticas que as
mulheres, principalmente as jovens, despontaram no cenário artístico com autonomia e em quantidade
significativa.
36
HITCHCOCK, 2010, p. 27.
37
HITCHCOCK, 2010, p. 42.
38
“John Polidori bebia demais, cometeu extravagâncias e provocou a ira das autoridades de Genebra, que
apareceram à sua procura. Corriam rumores em Genebra de que o pequeno clã de ingleses levava ‘une vie du
libertinagem les plus effronté [uma vida da mais desabrida libertinagem]’, como [Percy] Shelley escreveria
depois a um amigo. ‘Disseram que havíamos formado um pacto para ultrajar tudo o que era considerado mais
sagrado na sociedade humana’, recordou ele. ‘Ateísmo, incesto e muitos outras coisas – às vezes ridículas e às
vezes terríveis – em imputadas a nós. [...]’” (HITCHCOCK, 2010, p. 67).
32
Uma rápida primeira vista sobre o título deste tópico é capaz de possibilitar uma
leitura enganosa: é simplesmente a cópia do título original da obra, tanta vezes aqui escrito?
Pois bem, o título acima não é o original da obra. Diferente do título de Mary Shelley,
neste tópico nota-se a falta do “ou”, o que, a priori, altera semanticamente a interpretação do
título. Frankenstein, o Prometeu moderno é a afirmação categórica de que esta personagem
encarna, em sua modernidade, a simbologia do mito clássico de Prometeu. Contudo,
analisado mais a fundo, a presença do “ou” também pode atestar a mesma interpretação.
Ainda assim, dar este título ao tópico simboliza um leve ato de independência frente a
apropriação da produção de Mary. Assim como o cinema, a literatura, a música, os
quadrinhos, etc., desfrutaram de uma inconfundível licença poética para suas versões da
narrativa original, auxilia-se este trabalho de uma licença “poético-científica” para sua escrita.
Victor Frankenstein é, portanto, ao olhar desta pesquisa, a versão prometeica da
contemporaneidade. Mais do que isso: Victor é prometeico, pois baseado na história daquele
mito; contudo, a particularidade de sua época, o simples fato de ser produzido no século XIX,
na Era Contemporânea (como da definição da historiografia) o faz completamente original. A
trajetória dessa personagem carrega a carga de seu tempo, sendo a síntese dos anseios, medos,
dúvidas, conflitos, etc., de parte da sociedade inglesa. Como veremos nos tópicos posteriores,
esse “mito”, de base filosófica e poética greco-romana, corresponde profundamente a uma
lógica de vivências e experiências de uma Inglaterra da primeira metade dos oitocentos, que
ainda percorria tortuosos caminhos para a adaptação aos novos tempos. Mas isto é um assunto
posterior. Neste espaço, cabe analisar as semelhanças (ainda que sejam ao revés, ou seja,
acontecimentos semelhantes, mas protagonizados em circunstâncias e formas diferentes) entre
as figuras de Prometeu e Frankenstein, contribuindo para que o leitor e a leitora conheçam
mais a fundo as partes que compõem essa obra, assim como, conectada aos tópicos
subjacentes, ajude a compreender o porquê desse clássico da literatura ser responsável, como
afirmam alguns, por delinear um “mito moderno”.39
39
Frankenstein enquanto mito, em Lecercle: “[...] Frankenstein seria um grande mito moderno, que faz vibrar
uma corda no ponto mais profundo de nossa natureza humana, que logo se tornou intemporal e se livrou das
contingências históricas de seu nascimento [...]. [...] A conjuntura histórica não se permite ser esquecida, e nem
eu mesmo acredito na minha explicação intemporal, pois, em sua própria formulação ela não escapa de um
paradoxo: o mito é intemporal, porém moderno. Contrariamente à maior parte de nossos mitos, sua origem não é
popular. Em Frankenstein, temos um autor, uma data e até mesmo um lugar, já que conhecemos a circunstâncias
precisas de sua concepção” (LECERCLE, 1991, p. 12). Em Giassone: “[...] Mary Shelley construiu [...] seu
romance a partir de um mosaico de citações teológicas, filosóficas, literárias, morais e científicas, fundamentais
para a ascensão de Frankenstein como mito moderno [...]” (GIASSONE, 1999, p. 38); “Os críticos literários
contemporâneos que se voltaram para a análise de desta obra, como Harold Bloom e José Paulo Paes, são
35
Ele surgiu num momento decisivo da história ocidental, quando o universo moral
estava mudando e quando alguém ousou acreditar que os avanços no conhecimento
científico prometiam o domínio humano sobre o que, por séculos, fora só de Deus.
unânimes em afirmar que, para além de sua ficcionalidade, Frankenstein pode ser considerado um mito
moderno, figurando ao lado de clássicos como Édipo-rei, Hamlet, Fausto e Drácula, para citar alguns”
(GIASSONE, 1999, p. 41).
40
“As religiões da Grécia e da Roma antigas desapareceram. As chamadas divindades do Olimpo não têm mais
um só homem que as cultue, entre os vivos. Já não pertecem à teologia, mas à literatura e ao bom gosto. Ainda
persistem, e persistirão, pois estão demasiadamente vinculadas às mais notáveis produções da poesia e das belas
artes, antigas e modernas, para caírem no esquecimento” (BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia:
história de deuses e heróis. 34ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, p. 13).
41
“A criação do mundo é um problema que, muito naturalmente, desperta a curiosidade do homem, seu
habitante. Os antigos pagãos, que não dispunham, sobre o assunto, das informações de que dispomos,
procedentes das escrituras, tinham sua própria versão sobre o acontecimento [...]” (BULFINCH, 2006, p. 23).
42
“Portanto, assim como o roubo do fogo do conhecimento marca a transgressão fatal de Prometeu, a descoberta
da eletricidade inicia a caminha de Frankenstein rumo à transgressão das leis naturais [...]” (GIASSONE, 1999,
51). Enquanto o fogo prometeico é do domínio dos deuses, a eletricidade em Frankenstein se quer é vista da
mesma forma: é um fenômeno físico, observável e analisável, controlada por fatores empíricos, não por ações
“épicas”.
36
Portanto, como se percebe, diferente do mito clássico, Victor não se utiliza de forças
místicas: diferente de “Prometeu, que, com a ajuda de Minerva43, subiu ao céu e acendeu sua
tocha no carro do sol, trazendo o fogo para o homem”, o que “assegurou sua superioridade
sobre todos os outros animais” (BULFINCH, 2006, p. 24), Frankenstein se utiliza das
ferramentas proporcionadas pelos “avanços que dia a dia ocorriam nos campos da ciência e da
mecânica”, passando “alguns meses coletando e organizando com sucesso os materiais”
(SHELLEY, 2013, p. 75). As experiências de Victor são frutos dos “[...] efeitos da Primeira
Revolução Industrial e ao desenvolvimento da ciência e da técnica” (GIASSONE, 1999, p.
43).44 Mas as comparações não param por aí. Quanto mais nos aprofundamos na pesquisa,
mais nos damos com outras pertinentes questões entre o clássico e o moderno mito:
Enquanto Prometeu desafia o “poder olímpico em favor dos mortais terrestres”, Victor
Frankenstein, ainda jovem, já imaginava poder “[...] livrar o corpo humano da doença e torná-
lo invulnerável a tudo que não fosse uma morte violenta – que glória não se seguiria a
tamanha descoberta!” (SHELLEY, 2013, p. 62). Assim como a personagem clássica, Victor
se propõe a trazer melhorias para a vida humana – claro, sem ignorar as vantagens próprias
que conquistaria, como reconhecimento e prestígio. É o que também nos atesta Bulfinch:
“Prometeu tem sido um assunto preferido dos poetas. Representa o amigo da humanidade,
que se colocou em sua defesa, [...] e que ensinou aos homens a civilização e as artes”
43
Minerva – Atena, para os gregos – era a deusa da sabedoria (também considerada uma divindade guerreira,
apenas para os combates de caráter defensivo). Para maiores informações, consultar BULFINCH, 2006, p. 113-
117.
44
Nesse sentido, é sempre importante ressaltar que o avanço científico foi de fato possibilitado pela
industrialização, mas não foi aquela primeira fundamental a esta última: “Qualquer que tenha sido a razão do
avanço britânico, ele não se deveu à superioridade tecnológica e científica” (HOBSBAWM, 2014, p. 61). As
grandes realizações inglesas na indústria não se devem a homens teóricos e “científicos”: seus desafios eram
solucionados por “um número suficiente de homens com escolaridade comum, familiarizados com dispositivos
mecânicos simples e [...] dotados de experiência prática e iniciativa” (HOBSBAWM, 2013, p. 29). Ainda assim,
estabelecendo campos de relativismo, devemos pontuar que a “praticidade” da industrialização “não significava
que os primeiros industriais não estivessem constantemente interessados na ciência [...] [ainda que, novamente
repetindo, estivessem] em busca de seus benefícios práticos” [Grifo meu] (HOBSBAWM, 2014, p. 63).
37
(BULFINCH, 2006, p. 28). Como já lembrado por Hitchcock na citação acima, as impressões
da história de Prometeu refletidas em dois grandes representantes dos românticos como Byron
e Percy nos mostra o quanto o gênero literário daqueles buscou uma escrita que dialogasse
com os que se voltam contra ao status quo, deixando evidente que a vontade que deve
prevalecer é a vontade individual; nesse mesmo sentido, Hobsbawm (2014) nos fala sobre as
personagens famosas (reais ou fictícias) que até aquele momento alimentavam a história do
mundo: desde que fossem conquistadoras ou revolucionárias – ou mesmo pecadoras, como
Satã –, que transpunham os limites impostos tanto pelos próprios homens como pela própria
existência, eram, em não raros casos, inspiração para grandes obras.
Outro aspecto importante que aproxima Victor e Prometeu está relacionado a criação
de seus seres. Enquanto “Prometeu [...] fez o homem à semelhança dos deuses” (BULFINCH,
2006, p. 23), Victor se encarregou de “[...] produzir um ser de proporções gigantescas [...]”
(SHELLEY, 2013, p. 75). No caso de Prometeu, a semelhança em questão é puramente física;
no entanto, como os deuses na mitologia greco-romana advêm primeiro que os mortais, ser
semelhante aos seres divinos é um prestígio; já Victor, que atua no terreno da ciência e do
empirismo, incapaz de criar “deuses” (algo fora de seu propósito, tendo em vista que sua meta
era justamente se apropriar da capacidade divina), dá vida a sua criatura à forma dos homens,
ainda que com proporções incomuns – “[...] ou seja, de mais ou menos dois metros e meio e
proporcionalmente grande” (SHELLEY, 2013, p. 75). Em ambos o casos, as criaturas são
feitas às semelhanças físicas de seus predecessores, ainda que com alterações.
Como a semelhança é meramente física, é interessante notar que Prometeu dá origem a
seres com habilidades abaixo das daqueles dos deuses, sem lhes conferir poderes; em
contrariedade, Victor produz um ser que seja fisicamente superior a ele e seus semelhantes.
Naquele primeiro, vemos a necessidade de manter intacta a supremacia do universo sagrado,
através da constituição de seres com “capacidades inferiores”; no segundo, vemos um
cientista que pretende criar uma “espécie de seres superiores”, mas que estes sejam, apesar de
suas capacidades excepcionais, obedientes ao seu mestre. Em ambos os casos, há, aos menos
em teoria, a prudência frente à criação.45
45
A prudência em Victor: “Uma nova espécie me abençoaria como seu criador e origem; muitas criaturas felizes
e excelentes deveriam a mim sua existência” (SHELLEY, 2013, p. 75); a prudência em Prometeu: “O nome
[Prometeu] deriva do adjetivo προμηθής, ‘previdente, prudente’, e significa, portanto, ‘o que pensa à frente, que
prevê’ [...]. [...] A hipótese de que προμηθής tenha sofrido a influência analógica de μῆτις é improvável [...],
apesar de que de μῆτις derivam os principais epítetos de Prometeu: αἰολόμητις, ‘de mente ágil’ [...],
ἀγκυλομήτης, ‘de conselhos tortuosos’ [...], αἰπυμήτης, ‘de pensamentos elevados’ [...], e também a expressão
πάντων πέρι μήδεα εἰδώς, ‘o que tem os pensamentos mais certos’ [...]” (PELLIZER, Ezio (Org).
PROMETEU. In: ______ Dicionário Etimológico da Mitologia Grega. Disponível em:
<http://demgol.units.it/pdf/demgol_pt.pdf>, p. 239. Acesso em 5 de janeiro de 2016).
38
[...] mandou acorrentá-lo num rochedo do Cáucaso, onde um abutre lhe arrancava o
fígado, que se renovava à medida que era devorado. Essa tortura poderia terminar a
qualquer momento, se Prometeu se resignasse a submeter-se ao seu opressor, pois
era senhor de um segredo do qual dependia a estabilidade do trono de Jove 46 e, se o
tivesse rebaixado, imediatamente teria obtido graça. Não se rebaixou a fazê-lo,
porém. Tornou-se assim símbolo da abnegada resistência a um sofrimento imerecido
e da força de vontade de resistir à opressão (BULFINCH, 2006, p. 28).
Além desses efeitos diretos a Prometeu, sua própria criação, a humanidade, também
sofrera com sua atitude.
Como vimos, o ideal de Prometeu ao roubar o fogo sagrado era possibilitar uma
melhor condição de vida. Não à toa, o fogo:
Contudo, este feito possui outra concepção, se visto por um ângulo histórico-
mitológico diferente.
Fornecer aos homens a capacidade de “domar” os recursos ao seu redor também pode
ser visto como a inauguração de um novo período mitológico em que, diferente de antes, os
homens passam a se dedicar aos esforços do trabalho. Antes do roubo do fogo, a humanidade
da mitologia greco-romana vivia sob as benesses da Idade do Ouro. “A terra produzia tudo
necessário para o homem, sem que este se desse ao trabalho de lavrar ou colher”
(BULFINCH, 2006, p.25). A partir de então, sucediam-se as idades de Prata, do Cobre, do
Bronze e do Ferro, em que os homens passam a confrontar as necessidades da habitação, da
produção de alimento, da busca de riquezas minerais, da produção de utensílios, além dos
conflitos – bélicos – entre si.47
46
Outra designação para Zeus/Júpiter.
47
BULFINCH, 2006, p. 25.
39
“A pior foi a Idade de Ferro. O crime irrompeu, como uma inundação; a modéstia, a
verdade e a honra fugiram, deixando em seus lugares a fraude e a astúcia, a violência e a
insaciável cobiça” (BULFINCH, 2006, p. 25). Eis os efeitos do feito de Prometeu, este
contraditório “benfeitor da humanidade” “ ‘de pensamentos fraudulentos’ ”, protagonista da
“origem das desgraças do homem”.48
O roubo do fogo deve ser pago. Doravante, toda riqueza terá o labor como
condição: é o fim da idade de ouro, cuja representação na imaginação mítica
sublinha a oposição entre a fecundidade e o trabalho, uma vez que nesta época todas
as riquezas nascem da terra espontaneamente. O que acontece com os produtos do
solo também acontecerá com os homens: a contrapartida do furto de Prometeu, será
igualmente Pandora, a primeira mulher. A partir de então os homens não nascerão
mais diretamente da terra; com a mulher, eles conhecerão o nascimento por geração,
por consequência também, o envelhecimento, o sofrimento e a morte (VERNANT,
1973, p. 209).
Neste trecho, em seu último ponto, acerca de Pandora, há aqui uma inversão na
perspectiva de Frankenstein.
Ao lidar com seu antagonista, o Monstro, Victor se vê diante da solicitação do mesmo
para que lhe produza uma companheira, cuja criatura promete com ela se refugiar em terras
distantes. Neste caso, a presença feminina seria uma solução, não um problema para a
sociedade. Ao mesmo tempo, como já tratamos, a criatura, primeiro membro de uma virtual
prole, é dotado de capacidades especiais que só lhe permitem perecer caso sua morte seja
causada. Ou seja, o monstro só pode vir a óbito caso seja assassinado, acidentado ou mesmo
cometa suicídio. Afora estas causas, nem o tempo nem as doenças – as quais ele já “nasce”
imune – podem lhe prejudicar. De todas as três consequências sofridas pela humanidade da
mitologia prometeica, apenas o sofrimento é inevitável em Frankenstein; a velhice é
descartada, e a morte, pelo menos a do Monstro, Mary Shelley não nos decretou, deixando
“em aberto”. E quanto ao castigo de Frankenstein?
Quando do seu encontro com sua criação, Victor descobre que seu pequeno irmão,
William, fora morto por aquela e que a mesma, buscando causar maior sofrimento em seu
criador e familiares, se utilizou de uma artimanha que incriminava, injustamente, sua prima,
Justine Moritz, presa, julgada e executada. A princípio, o castigo de Victor não é físico, como
em Prometeu: seu sofrimento advém do sentimento de culpa por ter criado “aquele demônio”
(SHELLEY, 2013, p. 114), que pudera causar a morte de duas inocentes pessoas, direta e
indiretamente. Este fato nos leva a outra aproximação de personagens, que seria entre a
48
VERNANT, Jean Pierre. Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica. São Paulo:
Difusão Européia do Livro, Ed. Da Universidade de São Paulo, 1973, p. 208.
40
Criatura e Zeus. O monstro impõe terror e desgraça tanto a Victor como a seus semelhantes,
principalmente àqueles que lhe são próximos (outros ainda irão perecer por conta das atitudes
da criatura). Frankenstein é então consumido pelo sofrimento e pela fadiga de ter que lidar
com o monstro. Contudo, há a possibilidade de redenção, quando a criatura oferece uma
possibilidade para o fim do sofrimento – a criação de uma companheira por parte de Victor,
como supracitado. Na relação de contrariedade Zeus-Prometeu, o deus pune não só o titã, mas
também aqueles que por ele foram auxiliados, principalmente em virtude do caos instalado
durante a Idade do Ferro.
Percebe-se aqui a força da tragédia sofrida por aquela sociedade mitológica, fruto da
fúria de Júpiter/Zeus. Em Frankenstein, essa tragédia social é apenas virtual, imaginada por
Victor; contudo, é importante ressaltar que o peso do sofrimento imposto ao cientista e aos
seus afetos próximos nos é exposto em uma linguagem profundamente dramática e
depressiva, que beira à exaustão física. Ambos os danos causados pelas contrapartes Zeus-
Criatura são de uma expressividade marcante, sendo a primeira pautada na quantificação dos
danos – como atesta a citação acima –, enquanto a segunda encontra seu fundamento no sentir
euforicamente negativo da dor da perda.49
49
Para que o paralelo entre Zeus e a Criatura se faça mais pertinente, é importante deixar claro que o monstro
não representa somente um ser, mas sim um princípio moral evocado por Mary de que o indivíduo deve ter
41
Lembra-te, fizeste-me mais forte do que tu; meu peso é superior ao teu, minhas
juntas mais flexíveis. Mas não me deixarei levar pela tentação de me colocar em
oposição a ti. Sou tua criatura, e serei até mesmo tranquilo e dócil a meu senhor e rei
natural se interpretares o papel que cabe a ti, aquele me deves. [...] Lembra-te de que
sou tua criatura; deveria ser teu Adão, mas sou antes o anjo caído [...]. Vejo a
felicidade em todos os lugares, da qual apenas eu estou irrevogavelmente excluído.
Eu era bom e benevolente; a miséria fez de mim um demônio. Faça-me feliz, e hei
de ser mais uma vez virtuoso (SHELLEY, 2013, p. 123).
consciência dos limites de sua posição enquanto humano, não buscando querer tomar para si atribuições outras
que não de sua estirpe. Para a autora, a ruptura desses limites seria algo inadmissível. Logo, a semelhança entre a
criatura e Zeus em relação à punição de seus opositores se faz quando levamos em conta que seus castigos são
respostas às suas atitudes de tomarem para si atributos divinos.
50
A princípio, Victor até inicia a criação da versão feminina de sua criatura; contudo, desiste.
51
O desfecho da obra até poderia ser usado para a complementação da análise, como o faz a historiadora
Giassone (1999). Contudo, omito tal parte e deixo a cargo do leitor e da leitora a curiosidade pela obra e seus
pormenores, caso assim lhes seja aprazível, ressaltando que sua omissão não interfere de forma alguma nesta
pesquisa.
42
São estes os “mitos punitivos”, que orientam os seres a refletirem sobre suas atitudes,
até mesmo antes de serem executadas:
Logo, para além de uma obra para o deleite, há, afinal de contas, uma pertinente
reflexão, que a própria Mary não se isenta de posicionamento: a produção do monstro, fruto
da ciência, é acompanhada de infortúnios, perdas e sofrimentos. “Será então necessário
desafiar nossas tradições, nossa natureza, em prol daquilo que está tão a frente de nós – o
progresso científico - que sequer podemos prever suas consequências?” Eis, talvez, um
questionamento que podemos depreender de Mary, se ela tivesse se esquivado das vias
metafóricas – Frankenstein – e nos fosse mais direta.
43
“Cada um de nós escreverá um conto de fantasmas,” disse Lord Byron; e com sua proposta
assentimos.
(Mary Shelley)
Em 181652, na Suíça, Lord Byron propôs aos seus três companheiros Mary, Percy e
Polidori que escrevessem uma história de fantasmas. Tal proposta se deu após os mesmos
terem compartilhado a leitura de “uma coletânea de histórias sobrenaturais, [chamada]
Phantasmagoriana” (HITCHCOCK, 2010, p. 39) – Mary se refere aos contos como “histórias
de fantasmas, traduzidos do alemão para o francês” (SHELLEY, 2013, p. 27).53 Inspirados
por essas histórias sombrias, os quatro iniciaram sua empreitada. Curiosamente, apenas a
inexperiente e jovem Mary conseguiu dar corpo às suas ideias, apesar das dificuldades
criativas que a mesma registrou em seu Prefácio. Quanto a Lord Byron e Percy Bysshe
Shelley, estes “ilustres poetas [...] [que se encontravam] enfastiados com as trivialidades da
prosa, rapidamente abandonaram a tarefa tão pouco adequada a seus talentos” (SHELLEY,
2013, p. 28). Em relação à Polidori54, “este teve uma péssima ideia sobre uma senhora cuja
cabeça havia se transformado em caveira em punição por bisbilhotar pelo buraco da fechadura
– o que ela via, eu esqueci – algo aterrorizante e errado” (SHELLEY, 2013, p. 28). Nem dois
grandes poetas, nem um médico sedento por respaldo literário: apenas uma jovem inglesa de
19 anos deu início a seu clássico.55 Mas, os passos foram lentos.
Para Mary, já não bastava apenas escrever uma história. Era necessário escrever uma
obra que “pudesse falar aos misteriosos medos de nossa natureza e despertasse o arrepiante
52
“Polidori data o desafio de Byron em 16 de junho [de 1816] [...]” (HITCHCOCK, 2010, p. 47).
53
E ainda temos, de acordo com Florescu (1998), um título mais complexo para as histórias: Fantasmagoriana,
or Collection of the Histories of Apparitions, Spectres, Ghosts etc. (Fantasmagoria, ou Coleção de Histórias de
Aparições, Espectros, Fantasmas, etc.).
54
Segundo Hitchcock (2010), naquele mesmo ano de 1816 nascia o protótipo de um clássico: Polidori, que se
utilizou de um conto inacabado de Lord Byron, acabou legando à literatura as primeiras características do
Vampiro. Ainda de acordo com a autora, Vampyre: a Tale, publicado por Polidori, se tornaria a maior influência
para outro respeitado escritor britânico, Bram Stoker, que viria a publicar Drácula, em 1897. Nesse sentido,
afirma Hitchcock ser o verão de 1816 na Suíça o momento da origem das duas mais importantes criaturas do
terror literário - a Criatura de Frankenstein e o protótipo de Drácula.
55
De acordo com Giassone (1999), a obra seria finalizada em “fins de 1817” e publicada pela primeira vez em
11 de março de 1818.
44
terror – terror tal que fizesse o leitor temer olhar ao redor, gelar o sangue e acelerar os
batimentos do coração” (SHELLEY, 2013, p. 28). Quanto empreendimento Mary depositava
em sua escrita: poderia ela provocar tamanho impacto em seus leitores, provocando tamanho
alvoroço nas sensibilidades de seus leitores e leitoras?
“Sabe-se, hoje, que os gêneros literários estão intimamente relacionados às condições
sociais e históricas que determinam a formação do público leitor, com seus gostos e
sensibilidades [...]”.56 A meta de inspirar terror no público talvez não fosse de tamanha
dificuldade: como já visto no capítulo anterior, Hobsbawm (2014) nos mostra que o horror da
Revolução Industrial (que ainda se processava no recorte que vai de 1816 – início da escrita
de Frankenstein – até 1818 – sua primeira edição e publicação) afetava a produção artística
dos britânicos. Mas, não apenas estes: a população inglesa não “podia deixar de notar que o
mundo estava se transformando mais radicalmente nesta era [(1789-1848)] do que em
qualquer outa anterior. Nenhuma pessoa que usasse o raciocínio poderia deixar de estar
atemorizada, abalada e mentalmente estimulada por estas convulsões e transformações”
(HOBSBAWM, 2014, p. 449-450).
“A Revolução Industrial assinala a mais radical transformação da vida humana já
registrada em documentos escritos”.57 Radicalização essa sentida e refletida através do pensar
e agir dos que foram afetados, produzindo uma nova forma de ser – de existir58 – constituindo
assim um novo ideal de indivíduo.
Ela transformou a vida dos homens a ponto de torná-las irreconhecíveis. Ou, para
sermos mais exatos, em suas fases iniciais ela destruiu seus antigos estilos de vida,
deixando-os livres para descobrir ou criar outros novos, se soubessem ou pudessem.
Contudo, raramente ela lhes indicou como fazê-lo (HOBSBAWM, 2013, p. 70).
É nesse contexto que Mary Shelley estabelece sua meta transformadora do fazer
artístico, em um ambiente aberto às propostas, sem necessariamente indicá-las. Além de
buscar escrever um texto que pudesse “transbordar” as páginas “concretas” do livro,
56
FERREIRA, Antonio Celso. A fonte fecunda. In: LUCA, T. R. de; PINSKY, C. B. (Orgs.). O Historiador e
suas fontes. São Paulo: Contexto, 2012, p. 73.
57
HOBSBAWM, Eric. Da revolução industrial inglesa ao imperialismo. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013,
p. 1.
58
Sobre estas transformações, vale a pena conferir este famoso escrito de Karl Marx e Friedrich Engels, um
genuíno documento do século XIX: “A transformação contínua da produção, o abalo ininterrupto de todas as
condições sociais, incerteza e movimento eternos, eis aí as características que distinguem a época burguesa de
todas as demais. Todas as relações sólidas e enferrujadas, como seu séquito de venerandas e antigas concepções
e visões, se dissolvem; todas as novas envelhecem antes mesmo que possa se solidificar. Evapora-se toda a
estratificação, todo o estabelecido; profana-se tudo que é sagrado, e as pessoas se veem enfim obrigadas a
enxergar com olhos sóbrios seu posicionamento na vida, suas relações umas com as outras” (MARX, Karl.
Manifesto do partido comunista. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2012, p. 47).
45
instigando e sensibilizando o seu leitor a se inserir em uma atmosfera sombria, que o fizesse,
como a mesma diz e que já fora citado anteriormente, sentir medo de olhar ao seu próprio
redor,59 Mary também propõe, ainda que de forma breve, uma perspectiva para a criação
literária:
A invenção, é bom que humildemente se diga, não consiste em criar a partir do nada,
mas a partir do caos; em primeiro lugar, os materiais precisam estar à mão: podemos
dar forma a substâncias obscuras e informes, não trazer à luz a substância em si. [...]
A invenção consiste na capacidade de avaliar as possibilidades de um assunto e no
poder de moldar e arranjar as ideias por ele sugeridas (SHELLEY, 2013, p. 29).
Ou seja: para Mary, o mais importante no ato de criar não é a busca por um princípio
criador, um modelo inicial; ao invés disso, se torna mais pertinente se deter nos “materiais”
disponíveis (organizados ou não) e, a partir deles, refletir sobre a melhor forma possível de
moldá-los. Tal perspectiva é viva em sua confecção literária, não sendo apenas uma falácia
teórico-artística: ainda que durante certo tempo sentisse “[...] travos de incapacidade de
invenção que são a grande desgraça da autoria, quando um estulto Nada responda a nossas
invocações” (SHELLEY, 2013, p. 28). Nota-se que Mary não produziu sua obra através de
um rigor metodológico; pelo contrário, sua inspiração veio através de certa noite – descrita
com bastante ênfase e euforia – em que o sono não lhe vencera:
Quando coloquei minha cabeça no travesseiro, não dormi, tampouco poderia dizer
que pensava. Minha imaginação possuiu-me e guiou-me sem qualquer permissão,
presenteando-me com as sucessivas imagens que surgiam em minha mente, com
uma vivacidade que ia muito além das costumeiras fronteiras do devaneio. Vi – com
os olhos fechados, mas a visão mental aguda –, vi o estudante pálido de artes
profanas ajoelhando-se diante da coisa que havia produzido. Vi a silhueta medonha
de um homem deitado que, então, com o trabalho de alguma máquina poderosa,
apresentava sinais de vida e se agitava em movimentos nervosos, apenas
parcialmente vivos (SHELLEY, 2013, p. 29-30).
59
Segundo Giassone: “o medo como algo real, capaz de fazer-nos duvidar da impossibilidade ou
inverossimilhança do que está sendo lido [...]” (1999, p. 21).
46
Como posso descrever o que senti ante tamanha catástrofe? Como posso
definir o horror que construir com trabalho e desvelo infinitos? [...].
[...] Incapaz de suportar o aspecto do que ser criara, corri para fora do
cômodo e passei um bom tempo em meu quarto, agitado, sem conseguir me acalmar
e dormir. [...]
Oh! Nenhum mortal conseguiria suportar o horror daquela imagem.
[...] Havia perscrutado seu corpo ainda incompleto; ele, então, me parecera feio,
mas quando seus músculos e articulações ganharam movimento, aquilo tornou-se
algo que sequer Dante teria concebido (SHELLEY, 2013, p. 79-81).
Mas, se Mary buscava impactar e estar a frente de seu tempo (literariamente), suas
palavras, também, denunciavam certa cautela para com o tema tratado: aquele indivíduo que
viria a ser Victor Frankenstein é ainda um “estudante pálido de artes profanas”, ou seja, um
indivíduo dedicado a práticas desvinculadas de quaisquer princípios religiosos60 que produziu
uma “coisa”61, um ser não classificável dentro das categorias científicas de seres vivos.62
Ainda assim, sua forma é de um “homem” com “sinais de vida” – pois feito de partes
humanas. E, de fato, Mary, no mesmo parágrafo em que expõe tais pensamentos, posiciona-se
criticamente em relação a tal evento fictício: “Isto deve ser aterrorizante – pois supremamente
aterrorizante deve ser o efeito de qualquer tentativa humana de caçoar do estupendo
mecanismo do Criador do mundo” (SHELLEY, 2013, p. 30). Ou seja, podemos perceber
como Mary ainda se encontrava vinculada a princípios religiosos. Apesar de ter sido filha de
um pai que lhe forneceu educação filosófica e científica, em contrariedade ao que era
ensinado às moças de sua época e mesmo sendo esposa de um declarado ateu – Percy Shelley
– além de conviver com o “mal falado” Lord Byron, Mary nos deixa exposto seu fervor ao
sagrado. Já não bastasse tratar um cientista como “profano”, para ela a capacidade criadora de
Deus era “estupenda” e que qualquer tentativa humana de a ela se comparar era um ato de
“zombaria”. Esta postura nos leva a outra, de caráter social e político, que leva a alguns
60
De acordo o minidicionário Soares Amora, define-se Profano: 1. Que não pertence à religião; 2. estranho ou
contrário à religião; 3. não sagrado; leigo; secular; 4. alheio; estranho; 5. que não pertence a determinada classe,
seita ou associação; 6. não iniciado em certos assuntos. (AMORA, Antônio Soares. Minidicionário Soares
Amora da língua portuguesa. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 560).
61
Sobre os termos utilizados para se referir à criatura de Victor, Hithcock afirma que: “Um estudante de
Frankenstein, Chris Baldick, catalogou em fichas as palavras que Mary Shelley deu ao seu narrador ou
personagens para usar como nomes da criação inominável. ‘Monster’ [monstro] é a que aparece com maior
frequência no romance dela, 27 vezes; ‘fiend’ [diabo] é a seguinte, como 25 aparições; em seguida vêm as
palavras ‘daemon’, ‘creature’ e ‘wretch’ [respectivamente, demônio, criatura, infeliz], cada uma usada 15 ou
mais vezes, e ‘devil’, ‘being’ e ‘ogre’ [respectivamente diabo, ser e ogro], usados ocasionalmente”
(HITCHCOCK, 2010, p. 17).
62
A própria criatura possui consciência da sua condição: “E o que era eu? [...] [Eu] era dotado de uma figura
terrivelmente deformada e ofensiva; não era sequer da mesma natureza do homem. [...] Era mais ágil que os
homens e conseguia sobreviver sob um magro regime, suportava os extremos do calor e do frio com menos dor a
minha estrutura; minha estatura excedia a deles. Quando olhava ao redor nada via e ouvia que me fosse
semelhante. Era eu, então, um monstro, uma mancha sobre a terra, da qual todos os homens corriam e que todos
os homens recusavam” (SHELLEY, 2013, p. 143).
47
estudiosos de sua vida e obra a enxergarem em Mary Shelley traços de “conformismo”, senão
mesmo “conservadorismo” (principalmente após a morte de seu esposo Percy).
Ana Giassone (1999), por exemplo, ao analisar algumas cartas de Mary Shelley
datadas do ano de 1848, percebe em sua escrita uma oposição aos acontecimentos que
efervescia aquele histórico ano, marcado pela ocorrência da “Primavera dos Povos”, período
em que alguns países da Europa entraram em ebulição social, com caracteres de revolução.
Enquanto Mary enxerga na França uma “total subversão da lei [...] [em que] o deslocamento
do [seu] sistema social [...] apresentam aspectos temerosos” (SHELLEY apud GIASSONE,
1999, p. 93), na “Alemanha as classes sociais encontram-se inteiramente quebradas, os
aluguéis não são pagos, camponeses invadem os palácios e tomam-nos” (SHELLEY apud
GIASSONE, 1999, p. 93).
A própria autocensura de Mary em Frankenstein acerca do tema incesto, devido a
forte oposição de alguns indivíduos, atesta este seu cuidado frente a um público crítico:
Este seu caráter bem oposto ao de seus companheiros Percy e Byron, assim como o de
seus pais, M. Wollstonecraft e W. Godwin, leva o filósofo Jean-Jacques Lecercle a afirmar,
categoricamente, que Mary “não queria revolucionar nem a literatura nem a sociedade”.63 E,
ainda, nos diz mais:
63
LECERCLE, Jean-Jacques. Frankenstein: mito e filosofia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p. 60.
64
O trecho em itálico não é original do texto, sendo aqui utilizado por mim para alertar que, neste ponto,
Lecercle insere uma fala sem referenciar a uma fonte específica. Contudo, tendo em vista sua obra já ser
utilizada por dois outros historiadores – Florescu e Giassone – que são aqui referenciados, deposita-se crédito em
sua escrita.
48
Contudo, ao leitor e a leitora, deve-se ficar claro que não apenas um “devaneio”
servira de base para a elaboração de sua obra. Outro ponto intimamente ligado a Frankenstein
é a influência social da ciência.
49
“Talvez um cadáver pudesse ser reanimado”: em uma era onde tudo se constrói e
reconstrói, não seria diferente com a vida humana. Se o desenvolvimento material havia
mostrado as possibilidades criativas do que viria a existir e de restauração do que já existia,
talvez as capacidades científicas pudessem realizar o mesmo com homem. Tal percepção pode
aparentar incoerência, mas busquemos entender que estamos dialogando com mentalidades
absorvidas por uma Inglaterra em acelerado desenvolvimento, que se manifesta
cotidianamente aos olhares dos cidadãos. Logo, essa “atmosfera” das possibilidades diversas
se faz presente no universo psicológico, produzindo a sensação do sentimento do avançar
contínuo.66 Afinal, “embora seja uma criação ficcional, o romance de Frankenstein é capaz de
se revelar, aos olhos do historiador atento, uma fantástica trama tecida com os fios da
invenção e da observação do mundo” (GIASSONE, 1999, p. 11).
Poderia o próprio ser humano ser “produzido”? Observemos bem os termos utilizados:
“componentes”, “fabricados”, “montados”. Com o avanço de ciências como a biologia e a
65
Sobre esta relação entre ciência e arte, a historiadora Giassone (1999) faz uma breve análise sobre as relações
existentes entre a obra Frankenstein e o gênero literário – também fílmico – de ficção científica. Para a autora, a
obra de Shelley é, se não a primeira de Science-fiction, ao menos é a inauguradora de seus princípios narrativos,
através da “utilização de bases científicas ou pseudocientíficas, [...] imprimindo uma racionalidade científica aos
acontecimentos, com o objetivo de fazer o leitor abandonar uma explicação meramente fantástica” [Grifo meu]
(GIASSONE, 1999, p. 36).
66
“Ninguém podia deixar de notar que [durante a Revolução Industrial] o mundo estava se transformando mais
radicalmente [...] do quem em qualquer outra [época] anterior. [...] Quase não surpreende que os padrões de
pensamento derivados das rápidas mudanças sociais, das profundas revoluções, da substituição sistemática de
instituições tradicionais e costumeiras por inovações racionalistas radicais resultaram aceitáveis”
(HOBSBAWM, 2014, p. 449-450).
50
anatomia, o corpo humano passa então a ser percebido como uma estrutura que possui uma
estrutura racionalmente verificável de funcionamento, maquinalmente. Por dentro do ser
humano constitui-se uma “parafernália” onde cada um de seus componentes se combina de
forma eficaz; por fora, é revestido por uma “carcaça” que lhe confere uma aparência
“sociável”. Se determinados indivíduos possuem falhas em suas estruturas – internas ou
externas – são então vistos como fora do padrão estético-social estabelecido, assim como
debilitados. São “doentes”, “anormais”, “inválidos”, etc. A adjetivação varia. No entanto,
assim como um navio, que possui seu revestimento externo aprazível aos olhares alheios, mas
que por dentro possui um funcionamento complexo e racional, não poderiam ambos
(humanos e objetos) ser “construídos”? Para o navio, nos primórdios do século XIX, sua força
motriz é o carvão; para o ser humano, é a vida. Mas, concretamente falando, o que é a vida?
Como ela se produz, para além da explicação biológica reprodutiva? Mary Shelley a
denomina de “calor vital”, uma energia fornecedora de vida.
A influência do pensamento científico na produção literária de Mary,67 principalmente
através das conversas cuja mesma fora “ouvinte”, também se coaduna com as reflexões acerca
do universo espiritual que estão presentes na produção de seu esposo, Percy Shelley. No
poema Rainha Mab, escrito esse detestado pela ex-esposa daquele, mas que Mary via como
um livro que, sentimentalmente, era sagrado a ela68, Percy além de se utilizar de temáticas
científicas, escreve frases no mínimo impactantes para a sua época.
Com a frase “Deus não existe!” no início de seu poema, o poeta causara a si danos
irreparáveis.69
67
Sobre a relação de Mary com a ciência: “O estudo dos ‘grandes’ era leitura relativamente fácil, mas em relação
à ciência que a interessava, as coisas tinham de ser facilitadas, e as pessoas se maravilham pela maneira com ela
podia interessar-se por discussões a respeito das leis da eletricidade, ou outras sobre a circulação do sangue. Sua
relutância em mergulhar em explicações médicas e científicas corria mais à conta de cautela do que simples
ignorância dos fatos ou ingenuidade” (FLORESCU, 1998, p. 41).
68
HITCHCOCK, 2010, p. 33.
69
HITCHCOCK, 2010, p. 34.
51
apud HITCHCOCK, 2010, p. 34). Nestes versos, Percy alude aos humanos no tempo que,
desconhecedores dos mistérios da natureza, estabelecem a si a crença em um ser superior,
transcendental e criador de tudo aquilo que os rodeia. Agora, em plena era do “tudo se faz,
tudo se cria”, cabem aos homens encontrar as respostas dos segredos do mundo em que
vivem. Em síntese: retira-se do sagrado sua responsabilidade pela criação da vida e a transfere
para os mesmos. Este duelo entre o sagrado e o científico é um debate acirrado que se instala
pelo século XIX.
Essa evidente ligação entre arte e ciência, sendo que a primeira serve de canal de
manifestação reflexiva e propositiva (assim como espaço de exaltação) para a segunda, se fez
bastante presente no século XIX.
Não à toa, Mary, legitimando sua fala, se refere aos experimentos do “Dr. Darwin”.
Erasmus Darwin, avô do mais famoso Charles Darwin, já se aventurava pelos estudos
evolucionistas antes de seu neto emplacar o clássico A origem das espécies, de 1859. Em
1803, Erasmus publicava o poema O templo da natureza; ou a origem da sociedade70, onde o
mesmo expunha suas teorias científicas acerca da evolução dos seres vivos.71 Esse caminho
de dupla troca entre literatura e ciência se fazia ainda mais forte quando se tratava da
eletricidade: o galvanismo, citado por Mary no primeiro excerto deste tópico, era um dos
temas científicos de maior popularidade tanto entre artistas, cientistas, quanto à população de
forma geral, com destaque para esta última que, no século XIX, passou a receber “a chegada
de novos leitores das camadas populares, dentre os quais mulheres e crianças, tanto dentro
como fora da escola”.72
70
HITCHCOCK, 2010, p. 37.
71
“[...] as formas de vida ‘adquirem novos poderes e desenvolvem membros maiores/Daí que incontáveis grupos
de vegetação surgem/E produzem reinos de nadadeiras, pés e asas’” (DARWIN apud HITCHCOCK, 2010, p.
37).
72
CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. São Paulo: Unesp, 2014, p. 22.
52
no corpo dos animais. Quando um bastão de metal carregado fez com que os
músculo da perna de uma rã desmembrada se movessem, Galvani vislumbrou que a
eletricidade motivava os nervos. A sua obra antecipou a compreensão do que foi
chamado de [...] “galvanismo” [...] (HITCHCOCK, 2010, p. 38).
73
HITCHCOCK, 2010, p. 38.
74
“Os jornais de Londres relataram o fenômeno, e Aldini montou espetáculos para o público. Até mesmo o
príncipe- regente compareceu a um deles. Não parecia exagerado considerar essa força natural recém-controlada,
a eletricidade, como a força primordial da vida” (SHELLEY, 2010, p. 39).
53
por conta da concretude que adquire através de sua materialização em meios que comunicam:
papiros, pergaminhos, códex, livros, textos virtuais, etc. Reais ou fictícias, as ideias
“existem”, pois são suas próprias fontes – homens e mulheres no tempo – existentes.
54
Mais uma vez o uso de trocadilhos com o título original da obra. Pode aparentar falta
de criatividade em insistir nesta “fórmula” para a denominação. Em defesa desta pesquisa, os
trocadilhos são, antes de tudo, orientadores. Eles propõem uma reflexão a priori por parte de
quem lê a perceber que tipo de ligação há entre o título e a temática do tópico ou capítulo que
serão abordados. Ao mesmo tempo, são definidores do assunto em questão. Logo, opta-se
pela evidenciação e clareza em detrimento de títulos ou muito extensos ou muito “pomposos”.
Os títulos aqui utilizados são, antes de tudo, objetivados. Frankenstein, ou o Cientista
moderno evidencia, depois de tudo que até aqui vimos acerca da relação da obra com a
ciência, que aquela personagem, Victor Frankenstein, é a personificação (fictícia) do cientista
moderno, ao modo que entendemos moderno como algo novo, em oposição direta e próxima
com o passado. (É interessante atentarmos para o sentido de moderno aqui utilizado, tendo
em vista que, sob o olhar historiográfico, o recorte dos tempos históricos possui um período
denominado de Moderno – séculos XV-XVIII –, enquanto que a obra Frankenstein é fruto da
Era Contemporânea, como já apontado no capítulo anterior. Para tanto, os conceitos de
“moderno” e “passado” serão devidamente apresentados a partir de embasamento teórico –
enfoque na perspectiva de Jacques Le Goff).
Victor Frankenstein, seja na literatura ou em qualquer outra mídia artística,
possibilitou ao público que o interpretasse como o símbolo humano do desafio as ordens
naturais, como o guia da humanidade para que descobrisse por si só os segredos da vida e da
morte, rompendo drasticamente com a “abstração” de seres e mundos transcendentais
(GIASSONE, 1999; HITCHCOCK, 2010). Para Victor Frankenstein, o principal caminho
para que homens e mulheres tornassem-se de fato autônomos era aquele proporcionado pelo
desenvolvimento da ciência, ferramenta essa teórico-metodológica que reflete sobre o
materialismo da existência para nela poder intervir, promovendo significativas melhorias (ao
menos na intenção). Logo, se aceitarmos a sugestão de Hobsbawn “que até mesmo as ideias
falsas e absurdas são fatos e forças históricas” (2014, p. 454) e a adaptarmos a famosa
afirmação de Marc Bloch, que a História é a ciência “dos homens, no tempo” (2002, p. 55),
esta personagem fictícia, portanto, obviamente falsa, ainda assim é uma “força histórica”, pois
é um “homem de seu tempo” e, portanto, sobre ele nos fala, ainda que por meio de uma
narrativa absurda.75
75
Sobre a relação entre a História e a Literatura e as suas similaridades (ou pontos de encontro) no que diz
respeito à confecção da narrativa, consultar BARROS, José D’Assunção. História e Literatura – novas relações
55
para os novos tempos. Revista Contemporâneos, Santo André – SP, n. 6, mai./out. 2010. Disponível em:
<http://www.revistacontemporaneos.com.br/n6/dossie2_historia.pdf>. Acesso em: 17 fev. 2016.
76
Vale ressaltar: mais do que falarmos em “maturidade intelectual” na fase adulta, temos que ter em conta que,
no caso de Victor e sua inserção na academia, estamos também tratando sobre a legitimação do saber, cujo este
se faz em determinados círculos restritos e regulamentados, seja a nível macro ou microscópico (BURKE, 2003;
CHARTIER, 2014).
56
estas não necessariamente convergem com os objetivos aqui propostos. Em síntese: à medida
que é interpretado, o objeto permite-se transparecer aos olhos do historiador, isso porque,
mesmo que ele possibilite uma gama diversificada de interpretações, estas se fazem dentro de
um “círculo” de sentidos delimitado, ou seja, as interpretações só são possíveis porque,
obviamente, é o objeto que permite tal ação, não o historiador que, aleatoriamente, “produz”
percepções a seu bem querer. Isto, claro, pois toda realização artística possui, como já dito,
proposta ou propostas passíveis de serem analisadas.
Mas, afinal, o que é um cientista sem a prática de sua ciência?
Mais do que o embate epistemológico, também, é importante analisarmos os feitos de
um intelectual. Nesse sentido, concluída a análise da trajetória da personagem até a
maturidade científica, nos ocuparemos de investigar os resultados de seu trabalho, apelando
profundamente para uma percepção filosófica de sua realização. Afinal, qual o impacto de
uma produção científica na sociedade? No caso de Frankenstein, o que a obra nos permite
refletir acerca do trabalho científico? Ele é benéfico para o meio? Ou seria maléfico? Poderia
ser indiferente? Existe um posicionamento crítico por parte da autora acerca da ciência em seu
tempo e seu avançar contínuo? Se sim, qual ou quais interpretações podemos realizar?
Victor Frankenstein, como veremos, cria um ser à imagem física do homem. Ou seja,
possui a habilidade e o conhecimento para poder criar a vida. Esta vida, contudo, foge aos
domínios do seu criador, consequência esta não refletida por Frankenstein. A independência
de sua criatura causa profundos infortúnios. Ora, mas não fora justamente a independência de
Victor Frankenstein em relação ao grande Criador – isso se levarmos em conta o discurso
religioso normativo tanto do livro como da autora – que o levara a produzir um ser tão
desafiador quanto ele mesmo? Victor Frankenstein é uma ameaça que produz ameaças. Ele
mesmo rompeu o “tratado natural” e “divino” que o fazia submisso às forças sagradas:
deveria, portanto, sua criação, racional e progressista como ele próprio, se submeter frente ao
seu humano criador? Neste ponto, damos vazão a um posicionamento crítico de Mary Shelley
como, se não uma opositora, ao menos uma pessoa cautelosa frente ao sensacionalismo
científico de sua época, instigando seus contemporâneos a refletirem sobre quais seriam os
limites das realizações humanas. Para tanto, destacamos, no segundo momento, espaço para
que a Criatura se manifeste. Através de sua trajetória, marcada por percepções psicológicas e
sociológicas, buscamos entender como esse Monstro articula, metaforicamente, um
posicionamento crítico frente ao fazer científico.
Por fim, mergulhamos na conjuntura da obra e passamos a refletir sobre suas
possibilidades de interpretação de um tempo que não o nosso, mas que de forma alguma está
57
desconectado do presente. Pois, em uma sociedade em constante avanço como a que vivemos,
seja um avanço material ou de qualquer outra categoria, é sempre importante avaliarmos os
nossos passos e decidirmos sobre o melhor caminho. Essa é uma das grandes lições de Mary
Shelley e seu Frankenstein: a pedagogia mítica dos e para os humanos (HITCHCOCK,
2010).
Contudo, antes de adentrarmos detalhadamente na narrativa de Mary Shelley,
precisamos elucidar alguns detalhes “técnicos” importantes para a compreensão da análise. O
primeiro ponto importante é observamos a estrutura da obra: se fizermos uma contagem literal
da divisão de capítulos, a obra possui, portanto, vinte e oito. Contudo, o texto se inicia com
quatro cartas escritas pela personagem Robert Walton, um britânico navegante explorador.
Ao término destas cartas, tem-se o início da história de Victor Frankenstein, que marca o
primeiro capítulo. Outro detalhe “técnico” nos surge.
Walton escreve as quatro cartas endereçadas à sua irmã, Margaret Saville, que vive na
Inglaterra. Na quarta e última carta, Walton então encontra Victor Frankenstein pela primeira
vez e este inicia sua história. Logo, a história de Frankenstein é narrada dentro do conteúdo
das cartas de Walton. Assim, temos o seguinte encadeamento: {Walton [Frankenstein]}.77
Posteriormente, Frankenstein conta sobre sua criatura e dá voz a mesma. Assim surge um
novo encadeamento: {Walton [Frankenstein (Criatura) Frankenstein]}. O livro então termina
com Walton narrando em suas cartas os trágicos acontecimentos que se sucederam a Criatura
e a seu criador. Por fim: {Walton [Frankenstein (Criatura) Frankenstein] Walton}. O texto é,
então, produzido através de narrativas dentro de narrativas, cujas falas inicial e final são de
Walton, transparecendo que todo o conteúdo escrito (fictício) está em sua propriedade. Logo,
resolvida esta questão, apresento a análise da trama.
77
A utilização dessa estrutura para a explicação do formato das falas dos personagens é apenas a nível
explicativo. Contudo, tal estratégia já fora utilizada por Giassone (1999), portanto, nela inspirado.
58
Como dito, a história não se inicia com a protagonista, mas sim com outro personagem
não menos importante à trama. Robert Walton é um explorador inglês que busca desbravar as
terras gélidas do Polo Norte. Para tanto, dedica-se firmemente a sua meta pois, como o
mesmo afirma:
[...] não se pode contestar o bem inestimável que farei a toda a humanidade, até sua
última geração, ao descobrir uma passagem nas imediações do polo rumo àquelas
terras, alcançando o que no presente requereria tantos meses para se alcançar
(SHELLEY, 2013, p. 36).
Podemos perceber, então, que sua meta não se justifica apenas por si e para si, mas
que ela tem valor especial para a humanidade. Aliás, seu objetivo conflui duas perspectivas
que o motivam a dar cabo de sua missão: assim como pretende “saciar [...] [sua] ardente
curiosidade com as paisagens de uma parte do mundo nunca dantes visitada”, Walton também
busca descobrir “ali o fabuloso poder que atrai a agulha e empreende uma infinitude de
observações do céu”, para então “estabelecer com convicção o segredo do magneto”
(SHELLEY, 2013, p. 36). Eis um ponto importante que devemos aqui nos deter e analisar; na
verdade, temos duas observações históricas importantes: a importância dos navegadores
exploradores e a curiosidade que se converte em empreendimento científico78.
É assim que Peter Burke (2012), nos apresenta o papel importante dos navegadores no
desenvolvimento do conhecimento. Tal papel é antigo, contudo toma forma mais profunda a
partir daquilo que Burke denomina de “primeira era dos descobrimentos, que se iniciou com
Vasco da Gama e Cristóvão Colombo” (2012, p. 23). Apesar de sabermos que desde tempos
remotos, como no período da Antiguidade, a navegação e a troca de informações ocorriam, é
justo com o processo explorador marítimo iniciado no século XV pelos europeus, em especial
pelos países ibéricos – Portugal e Espanha – considerar o processo quantitativo de
78
Walton usa os termos “empreendimento”, “trabalho”, “projeto”, “expedição”, “exploração” para se referir a
sua meta. Ao mesmo tempo, se descreve da seguinte forma: “Sou industrioso – um trabalhador esforçado, que
executa com perseverança e meticulosidade seu trabalho [...]” (SHELLEY, 2013, p. 41).
59
conhecimento em grande circulação que se estabeleceu. A partir do século XV, podemos ver a
Europa se “comunicar” com uma gama maior de continentes, a partir da penetração nos
continentes americanos. Desta forma, temos uma geografia que conecta o Velho Mundo
(Europa, Ásia e África) com o Novo Mundo (Américas).
Através desse processo, podemos ver surgir uma “curiosidade” maior pelo outro
(ainda que numa visão eurocêntrica de padrões morais e culturais), levando em consideração
as várias práticas cotidianas de outros povos e como elas poderiam ser adaptadas ao mundo
europeu. Prova disso é a constatação de Burke (2003) que alguns conhecimentos médicos de
povos colonizados, por exemplo, eram então apropriados e reutilizados no círculo médico
europeu, devido sua eficácia.
Contudo, a própria quantificação dos dados coletados levou a uma maior qualificação
desses navegadores, devido ao desenvolvimento de novos de sistemas de classificação,
levando a uma especialização desses desbravadores.79
Uma marca dessa qualificação da navegação se evidencia a partir da “segunda era de
descobrimentos” (a partir do século XVIII), cujos navios europeus agora não levavam mais
apenas “soldados, comerciantes, missionários e administradores”: se faziam presentes também
especialistas como “astrônomos, naturalistas e outros estudiosos” (BURKE, 2012, p. 27).
Como a obra Frankenstein é escrita e publicada no século XIX (apesar de sua narrativa
fictícia ser localizada no século anterior), torna-se plausível a aproximação da figura de
Walton com as dos navegadores contemporâneos. Afinal, segundo Burke, “é correto situar o
surgimento da expedição científica ou de coleta de conhecimento como fenômeno recorrente
e organizado – em outras palavras, como uma instituição – na segunda metade do século
XVIII” (2012, p. 27).
Essa especialização crescente, também, se torna necessária devido aos inúmeros
problemas enfrentados em alto mar. Afinal, os empreendimentos variavam bastante entre o
sucesso e a tragédia (BURKE, 2012). Walton, esse homem “industrioso”, não fica atrás no
quesito preparo. Ele nos narra seu processo de aprimoramento e adaptação às adversidades da
natureza, assim como sua dedicação a variados estudos:
Posso, mesmo agora, lembrar o instante a partir do qual passei a me dedicar a este
grande projeto. Comecei preparando meu corpo às adversidades. Acompanhei
baleeiros em muitas expedições pelo Mar do Norte; suportei voluntariamente o frio,
a fome, a sede e o sono; muitas vezes trabalhei com mais afinco do que os
marinheiros comuns durante o dia e devotei minhas noites ao estudo da matemática,
79
É o caso da Casa de Contratación espanhola, fundada em Sevilha em 1503, “uma escola de treinamento de
navegadores [...]. [...] A primeira escola de navegação na Europa, logo adquiriu reputação internacional (como
testemunha um visitante inglês em 1558, o piloto Stephen Borough)” (BURKE, 2003, p. 41).
60
das teorias médicas e dos ramos das ciências físicas, saberes que um aventureiro dos
mares deve testar na prática (SHELLEY, 2013, p. 37).
80
Cf. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 12ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 127-
143.
61
desenrolar com mais precisão a partir do século XVII; com o advento do projeto Iluminista,
especialmente no século XVIII, toma proporções mais evidentes (BURKE, 2003).
Contudo, vale ressaltar que, dentre esses inúmeros trabalhos que traziam “pesquisa”
em seus títulos81, a maioria se refere a “pesquisas realizadas em arquivos, museus e
laboratórios, mas outros exemplos incluíam o que agora chamamos de ‘trabalho de campo’,
como no caso óbvio da exploração” (BURKE, 2012, p. 22).
Essa transição dentro do universo do fazer científico se deve, se nos apropriarmos da
proposição de Eric Hobsbawm (2014), das consequências sociais, culturais, econômicas,
políticas e “mentais” proporcionadas pela “dupla revolução” – Francesa e Industrial Inglesa –
que impactou a sociedade europeia e, em não muito tempo, o mundo. Contudo, tal processo
não deve ser enxergado à maneira Iluminista, que prevê progresso constante e eterno
(teleológico) da sociedade. Ante tal perspectiva, Hobsbawm nos alerta:
81
Em vários campos, aliás; “entre eles a anatomia, a astronomia, a economia política, a demografia, a geografia,
a física, a química, a paleontologia, a medicina, a história e os estudos orientais” (BURKE, 2012, p. 22).
62
Walton é, mais uma vez, nosso exemplo: mais que um mero navegador, é um
intelectual polivalente, pois possui novos problemas que enfrenta e aborda através de novas
maneiras. O período da dupla revolução, “portanto, fez crescer o número de cientistas e
eruditos e estendeu a ciência em todos os seus aspectos” (HOBSBAWM, 2014, p. 431).
Contudo, fica no ar uma questão: sabendo que o século XVIII é importante na história do
desenvolvimento da ciência e que as duas revoluções europeias impactaram a proliferação de
pesquisadores, como o universo do saber fora quantificado, nesse contexto? Fora uma
iniciativa de cooperação entre pesquisadores ou podemos tratar acerca de incentivos
macroscópicos (Estado, empresários, etc.)?
Hobsbawm (2014), por exemplo, infere três situações (séculos XVIII-XIX): o
incentivo estatal, no caso da França napoleônica; a atitude individual – o caso do “Conde de
Rumford, [...] [que] fundou a Instituição Real em 1799” (HOBSBAWM, 2014, p. 430); assim
como a contribuição de industriais, como no caso da fundação da Sociedade Lunar de
Birmingham e a Sociedade Filosófica e Literária de Manchester (HOBSBAWM, 2014, p.
431).82 Em complementaridade, Peter Burke mergulha um pouco mais profundo no tempo, e
mostra que a iniciativa de fomento à pesquisa já vigorava desde o século XVI.
82
Hobsbawm também ressalta a participação “popular”, como no caso da “pressão geral das pessoas inteligentes
da classe média por uma educação técnica e científica [...]” (2014, p. 430).
63
Uma revolução ainda mais profunda mas, pela própria natureza do assunto,
menos óbvia do que a ocorrida na química, se deu em relação à matemática.
Contrariamente à física, que continuou dentro dos termos de referência do século
XVII, e à química, que respirava forte através da porta aberta no século XVIII, a
matemática em nosso período [1789-1848] entrou em um universo inteiramente
novo, muito além do universo dos gregos, que ainda dominava a aritmética e a
geometria plana, e daquele do século XVII que dominava a análise (HOBSBAWM,
2014, p. 434-435).84
83
A consulta a Burke (2003) ajuda a elucidar e compreender as tramas que permeiam a constituição de
movimentos científicos e institucionais, tratando sobre permanências, mudanças, conflitos, rupturas,
agremiações, avanços e retrocessos, etc. Apesar de seu recorte temporal ser estabelecido entre os séculos XV-
XVIII, as observações do autor são flexíveis o suficiente para nos permitir refletir sobre práticas científicas de
outros tempos – especialmente do nosso.
84
O próprio Victor Frankenstein também se dedica ao estudo da matemática, após sugestão de um de seus
professores universitários (SHELLEY, 2013, p. 71).
64
possuir para dar concretude à sua obra. No século XIX, Burke nos dá os exemplos de Auguste
Comte, que vê na sociologia a ciência máxima, e de William Whewell, este mais coerente
com nosso discurso, ao afirmar que a astronomia é suprema (2012, p. 73).
Suprema ou não, a astronomia no século XIX fora uma ciência atraente. Essa
proximidade entre o poético e o científico nos oitocentos (cujo já vimos no capítulo anterior)
nos permite refletir acerca do envolvimento lúdico que há entre o céu e os seus subalternos –
humanos. O próprio protagonista Victor Frankenstein nos dá seu exemplo: “Eram os segredos
do céu e da terra que desejava conhecer; [...] todos os meus questionamentos se dirigiam aos
segredos metafísicos ou, em seu mais elevado grau, físicos do mundo” (SHELLEY, 2013, p.
58). Para além do céu, indo ao alcance dos segredos do universo, o famoso cientista
Alexander Von Humboldt proferia palestras “sobre o cosmo, apresentadas em Berlim em
1827-1828, atraindo um grande público, inclusive de damas da sociedade” [grifo meu]
(BURKE, 2012, p. 119). Notemos que o período das palestras de Humboldt, por exemplo, se
encaixa em nosso recorte temporal (1818-1831). Tal fato nos faz refletir acerca da atualização
de Mary Shelley sobre os debates contemporâneos, tendo em vista que é apenas na terceira
edição de 1831 que a autora acrescenta as quatro cartas inicias de Walton, das quais retiramos
os primeiros elementos para análise. Assim, temos em Walton um explorador já conhecedor
da importância dos “segredos do céu”, pois até aqui pudemos vislumbrar com Humboldt e
Whewell a relevância da astronomia.
Humboldt, aliás, é um exemplo real das diversas habilidades e conhecimentos que um
explorador deve possuir, afinal:
e sua relação com o universo fictício da obra. Concluída esta tarefa, passemos adiante para o
tópico principal de nossa análise.
O título deste tópico alude ao capítulo 10 da obra Era das revoluções, de Eric
Hobsbawm. Nele o autor analisa as possibilidades que um mundo industrial burguês
proporciona ao início de carreiras cada vez mais cedo. A experiência prática e longeva de
profissionais de outrora vai abrindo espaço para o aprimoramento intelectual de uma
juventude que se debruça sobre um aprofundamento intelectual, seguido do exercício técnico,
além de uma educação que tem, como um de seus recursos para posteridade, a possibilidade
de alteração, reformulação ou mesmo acréscimos em seu fazer. Uma sociedade em constate
transformação exige flexibilidade por parte de seus analistas, tendo em vista que o intervalo
de tempo entre o alvorecer das novidades torna-se, gradualmente, menor. Mentalidades,
costumes, técnicas, saberes: tais categorias têm quatro opções a seguir frente ao novo: se
acostumar, combater, absorver ou eliminar. Progressismo e conservadorismo: duas palavras
que vão caracterizar bem a discrepância de impressões frente ao um mundo diferente que se
instaura devido às inovações político-sociais trazidas pela Revolução Francesa e às frequentes
e presentes contribuições materiais da Revolução Industrial. Contribuições materiais essas que
levaram uma quantidade de mentes a se dedicarem a um universo “prático” de realizações,
com rápido “retorno”.
É justo nesse “admirável mundo novo” que nasce Victor Frankenstein, nosso
protagonista. “Havia uma ordem no universo, mas já não era a ordem do passado”
(HOBSBAWM, 2014, p. 294).
Victor Frankenstein é suíço, natural de Genebra. Contudo, parte de sua juventude foi
vivida na Itália, onde por sinal conheceu Elizabeth Lavenza, aquela que viria a ser sua irmã
adotiva e futura esposa. Desde a mais tenra infância, Victor recorda em suas memórias o
gosto pela investigação da natureza: “com todo meu fervor, demonstrava-me capaz de uma
mais intensa aplicação e era mais profundamente arrebatado pela sede de conhecimento”
(SHELLEY, 2013, p. 57). Sobre sua juventude ao lado de sua irmã, elucida sua principal
diferença em relação a ela (e posteriormente a outros jovens):
Podemos ver uma marca na fala de Victor Frankenstein: a fala romântica, que, aliada à
sua juventude, apresenta uma perspectiva da pesquisa dos “segredos do mundo” como um
trabalho deleitoso e virtuoso. Além disso, mais do que admirar, poder de fato “penetrar” nos
recônditos nublados daquilo que se vê. É justamente nesse aprofundamento nos segredos da
natureza que ele desenvolve os métodos e ferramentas para a confecção de seu projeto: criar
vida.
Antes mesmo de ingressar na universidade, Victor Frankenstein já era um estudioso
das ciências. Contudo, suas referências intelectuais eram de outros tempos que não mais
convergiam com as propostas contemporâneas ao jovem. Durante a juventude, lera filósofos
como Paracelso, Cornelio Agripa e Alberto Magno.
natural com os quais havia travado contato pareciam à minha percepção infantil
iniciantes empenhados na mesma busca (SHELLEY, 2013, p. 62).
O trecho acima evidencia não apenas a já citada gama de Victor Frankenstein pelos
estudos; nele, também podemos destacar uma crítica que até hoje se faz presente, que é o ônus
que resultante da especialização da ciência em detrimento de sua universalidade. Apesar de
Frankenstein reconhecer que as descobertas “dos filósofos modernos são maravilhosas”, não
evita a crítica:
Mas então havia livros e homens que penetravam mais fundo e conheciam
mais. Tomei suas palavras por tudo que acertavam, e tornei-me seu discípulo. Pode
parecer estranho que tudo isso tivesse lugar no século XVIII; mas enquanto seguia a
rotina pedagógica das escolas de Genebra, era, em certa medida, um autodidata no
que concernisse a meus mais diletos estudos. Meu pai não tinha verve científica, e
assim fui deixado à luta contra minha cegueira infantil, à qual se somava minha sede
de conhecimento. Sob a tutela de meus novos preceptores embrenhei-me com a mais
elevada diligência à procura da pedra filosofal e do elixir da vida; mas a última logo
me exigiu toda a atenção. Bem-estar era uma questão menor; e se pudesse livrar o
corpo humano da doença e torná-lo invulnerável a tudo que não fosse uma morte
violenta – que glória não se seguiria a tamanha descoberta! Mas não eram estas as
minhas únicas visões. O suscitar de fantasmas e demônios era uma possibilidade
abertamente aceita por meus autores favoritos, e tal objetivo eu, intrépido, buscava;
e se meus feitiços sempre quedavam frustrados, atribuía o fracasso antes à minha
inexperiência e enganos do que à falta de habilidade ou saber de meus instrutores. E
assim me ocupei por algum tempo desses sistemas caducos, misturando sem
qualquer método um sem número de teorias contraditórias e me perdendo
desesperadamente em um abismo de saberes vários, guiado por uma imaginação
ardente e um raciocínio infantil, até que um novo acidente mudou o curso de minhas
ideias (SHELLEY, 2013, p. 62-63).
Já neste trecho, Victor Frankenstein nos faz um relato que, ao mesmo tempo em que
exalta suas qualidades juvenis de dedicação e autodidatismo, nos revela também um
posicionamento crítico acerca de seus estudos (vale lembrar que a narrativa é toda ela um
“olhar para trás” por parte dos personagens, com falas sempre dispostas no passado): como o
mesmo diz, sua pesquisa não possui um ordenamento, é toda ela aleatória, utilizando-se de
teorias que sequer se coadunam, assim como de perspectivas que, observando em retrospecto,
68
as considera “caducas”, ou seja, já não eficazes. Como o mesmo ressalta, uma das
deficiências de seu estudo é a falta de método: Victor Frankenstein tem acesso a teoria, mas
não consegue desenvolver um planejamento prático para suas realizações, o que o leva ao
fracasso de suas realizações. Tal denúncia já não era novidade na época em que Frankenstein
fora escrito: no século XVII, o filósofo inglês Francis Bacon alertava os males de estudos que
valorizam ou somente a teoria, ou somente a prática, concluindo que produtiva seria a coesão
dos dois.
Podemos perceber então que, de acordo com a observação de Burke (2003) sobre
Francis Bacon, há muito que a especialização do saber já dava seus primeiros passos, quando
então se pensava em começar os estudos de um nível menor para maior de conhecimentos. No
caso de Victor Frankenstein, é feito exatamente o contrário, quando o mesmo se debruça
sobre obras completas de vários autores e “mistura” vários conhecimentos gerais sem
especificar objetivos mais evidentes. Contudo, lembremos que, no trecho acima do nosso
protagonista, nos é revelado que suas ideias mudaram para um novo “curso”, mudança essa
provocada por um “acidente”. Segundo a personagem, “uma violenta e terrível tempestade”
(SHELLEY, 2013, p. 63).
A partir de agora, podemos observar nosso protagonista dar mais atenção aos
fenômenos cotidianos e, a partir deles, se debruçar sobre campos científicos específicos e que
dizem respeito àquele fenômeno em especial, no caso, as tempestades e seus raios. Para tanto,
como o mesmo nos diz, se faz necessário estudar ciências como a eletricidade e o galvanismo,
além da matemática, ciência básica para o uso dos cálculos. Tal escolha de Victor
Frankenstein não é à toa, tanto do ponto de vista científico, como histórico. Há um forte
paralelo social.
Exatamente o que acabemos de discutir acima. Novas propostas de pesquisa, não raro
orientadas por fatos “externos” ao universo científico – um raio e seus efeitos sobre a natureza
são os elementos motivadores para seu estudo.
Por fim, existe um aspecto na fala de Victor Frankenstein que é marcante e decisivo
nos rumos da pesquisa científica: a mudança da concepção de mundo; um novo olhar sobre o
que já existe. A esse fenômeno, o físico e historiador da ciência Thomas Kuhn dá o nome de
“revolução científica”.
O que Kuhn nos descreve no trecho acima, relaciona-se exatamente com a experiência
de Victor Frankenstein: o contato com o novo, a eliminação ou substituição do atual e a busca
por novos “instrumentos” de “interpretação do mundo”. Contudo, a fala de Kuhn evidencia
outro termo caro a esta pesquisa: paradigma.
Para Kuhn (2013), paradigma seria uma “realização” científica que fornece modelos
para a pesquisa científica, incluindo “lei, teoria, aplicação e instrumentação” (p. 72).
Destaquemos três pontos nas falas de Kuhn para analisarmos as experiências de Victor
Frankenstein até agora relatadas: comunidade científica, paradigmas compartilhados e ciência
normal.
71
Era um homem rude, porém profundo conhecedor dos segredos de sua ciência.
Perguntou-me inúmeras questões acerca de meu progresso nos diferentes ramos da
ciência relacionados à filosofia natural. Respondi sem maiores cuidados e, em parte
com desdém, mencionei os nomes dos alquimistas como os principais autores que
estudara. O professor arregalou os olhos. “Você”, disse, “realmente perdeu seu
tempo estudando essas bobagens?”
Respondi afirmativamente. “Cada minuto”, continuou sr. Krempe com
alguma ternura, “cada instante que você perdeu com esses livros está perdido para
todo o sempre. Você enterrou sua memória em sistemas obsoletos e nomes inúteis.
Meu bom Deus! Em que deserto você vivia, onde não houvesse gente boa o
suficiente para informá-lo de que as fantasias de que você fartamente bebeu tinham
mil anos e era tão antigas quanto obsoletas? Não espera, neste mundo esclarecido e
72
Tal advertência não mais surpreendeu Victor Frankenstein, pois já sabia das falhas de
seus estudos. Ainda assim, o trato áspero por parte do professor Krempe não o motivou a
seguir adiante. Por fim, sua quarta advertência, que bem poderíamos chamar de iniciação a
comunidade científica, definem os rumos de sua pesquisa. Tudo se deu em uma palestra
proferida por outro professor seu, “Sr. Waldman”, um químico.
Ele começava sua palestra com uma retrospectiva da história da química e os vários
avanços produzidos por diversos homens de saber, proferindo com fervor os nomes
de seus mais ilustres descobridores. Então, passou a uma perspectiva geral do estado
presente da ciência e explicou muitos de seus principais conceitos. Depois de ter
feito alguns experimentos preparatórios, concluiu com um elogio da química
moderna, cujas palavras jamais esquecerei. “Os antigos professores desta ciência”,
disse ele, “prometeram o impossível e nada conseguiram. Os mestres modernos
prometem muito pouco; eles sabem que os metais não podem ser transformados e
que o elixir da vida é tão somente uma quimera, mas esses filósofos, cujas mãos
parecem afeitas apenas à sujeira, e seus olhos, a perscrutar por microscópios e
cadinhos, realmente produzem milagres. Eles adentram os recônditos da natureza e
mostram como ela funciona em seus recessos. Eles ascendem aos céus; eles têm
demonstrado como o sangue circula, e a natureza do ar que respiramos. Eles
adquiriram novos e quase ilimitados poderes; eles são capazes de dar ordens aos
trovões dos céus, ridicularizar terremotos, e caçoar do mundo invisível com suas
próprias sombras” (SHELLEY, 2013, p. 69-70).
Sem se isentar da força poética de expressão, Waldman por fim introduz Victor
Frankenstein na comunidade científica, com seus valores, seus paradigmas – instrumentos
(microscópios, cadinhos), métodos (empirismo), etc. – e o seu desenvolvimento. Victor está, a
partir de então, guiado para se aprofundar nos saberes necessários à prática da ciência padrão,
ou ciência normal, nos termos de Kuhn.
Além disso, Waldman entra em acordo com Kuhn quando se refere ao sucesso dos
“mestres modernos”, ainda que suas conquistas sejam não sejam “grandiosas”, em detrimento
dos das promessas dos “antigos professores”. Aqui, os paradigmas modernos são mais bem-
sucedidos do que os de outrora.
Os paradigmas adquirem seus status porque são mais bem-sucedidos que seus
competidores na resolução de alguns problemas que o grupo de cientistas reconhece
como graves. Contudo, ser bem-sucedido não significa nem ser totalmente bem-
sucedido com um único problema, nem notavelmente bem-sucedido com um grande
número. De início, o sucesso de um paradigma [...] é, a princípio, em grande parte,
73
As áreas investigadas pela ciência normal são certamente minúsculas; ela restringe
drasticamente a visão do cientista. Mas essas restrições, nascidas da confiança no
paradigma, revelaram-se essenciais para o desenvolvimento da ciência. Ao
concentrar a atenção numa fixa de problemas relativamente esotéricos, o paradigma
força os cientistas a investigar alguma parcela da natureza com uma profundidade e
de uma maneira tão detalhada que de outro modo seria inimaginável. E a ciência
normal possui um mecanismo interno que assegura o relaxamento das restrições que
limitam a pesquisa toda vez que o paradigma do qual derivam deixa de funcionar
efetivamente. Nessa altura os cientistas começam a comportar-se de maneira
diferente a natureza dos problemas de pesquisa muda. No intervalo, entretanto,
durante o qual o paradigma foi bem-sucedido, os membros da profissão terão
resolvido problemas que mal poderiam ter imaginado e cuja solução nunca teriam
empreendido sem o comprometimento com o paradigma. E pelo menos parte dessas
realizações sempre demonstra ser permanente (KUHN, 2013, p. 89).
Ou seja, tudo aquilo que já discutimos e que fazem parte da experiência científica do
jovem Victor Frankenstein. Contudo, falta agora nos debruçarmos sobre o cientista maduro,
instrumentalizado e pronto para dar início às suas novas empreitadas científicas.
74
[...] Tanto havia sido feito, minha alma exultava – e mais, ainda mais, realizarei;
percorrendo os caminhos já trilhados, serei o pioneiro de trilhas novas, conhecerei os
limites de poderes ainda desconhecidos e desvelarei ao mundo os mais profundos
segredos da criação (SHELLEY, 2013, p. 70).
Contudo, vale ressaltar aquilo que já comentamos antes, através da fala de Thomas
Kuhn (2013), que o conhecimento predecessor, ainda que seja pseudoconhecimento a
posteriori, produz base científica para a continuidade da produção do saber. Tal característica
da trajetória da ciência encontra paralelo também na obra Frankenstein, mostrando a
maturidade intelectual presente em 1831 numa jovem inglesa. É o que nos conta o trecho
abaixo, através da fala ponderada e pedagógica do professor Waldman sobre a importância
dos antigos filósofos:
[...] “esses foram homens a cujo zelo infatigável os filósofos modernos deviam
grande parte dos princípios de seu conhecimento. Eles nos deixaram a tarefa,
certamente mais leve, de dar novos nomes e dispor em classificações coerentes com
os fatos que eles próprios, em grande medida, haviam trazido à luz. Os trabalhos dos
homens de gênio, ainda que erroneamente dirigidos, raramente fracassam em
transformar suas vias no sólido avanço da humanidade”. Escutei suas palavras,
expostas sem arrogância e afetação, e então emendei que sua palestra me havia
despido dos preconceitos contra os químicos modernos; expressei-me com
moderação, com a modéstia e a deferência exigidas de um jovem quando diante de
seu professor, sem que deixasse escapar (a inexperiência na vida teria me feito
corar) o entusiasmo infundido em minhas pretensões. Pedi-lhe conselhos em relação
aos livros que eu devesse providenciar (SHELLEY, 2013, p. 71).
nos mais distantes de uma perspectiva sacra da realidade. Afinal, a química já havia “[...]
superado o grande obstáculo para o progresso – a crença de que a matéria viva obedecia a leis
naturais fundamentalmente diferentes da matéria inerte [...]” (SHELLEY, 2013, p. 434).
Contudo, a química não é uma ciência que abarca todo o saber acerca da vida. Para além deste
campo, Victor Frankenstein enxerga a necessidade de se aprofundar mais sobre a vida. Para
tanto, busca seu inverso, a morte.
“Um dos fenômenos que havia chamado minha atenção em especial era a estrutura do
corpo humano e, de modo geral, de qualquer animal dotado de vida” (SHELLEY, 2013, p.
73). Para tanto, Victor Frankenstein se debruça sobre o estudo da anatomia, nos dando um
testemunho penetrante sobre sua experiência:
Esta é uma descrição de teor poético sobre os estudos fisiológicos. Contudo, há algo
mais reflexivo por trás desta fala, cujo historiador Philippe Ariès nos remonta em detalhe,
através daquilo que ele denomina de mórbido:
Chamamos de mórbido ao gosto mais ou menos perverso, mas cuja perversidade não
é declarada ou consciente, pelo espetáculo físico da morte e do sofrimento. Do
século XVI ao XVIII, o corpo morto e nu tornou-se ao mesmo tempo objeto de
curiosidade científica e de deleite mórbido. É difícil separar a ciência fria, a arte
sublimada (o nu casto) e a morbidez. O cadáver é o tema complacente das lições de
anatomia, objeto das pesquisas sobre cores do início da decomposição, que não são
horríveis ou repugnantes e sim verdes sutis e preciosos para Rubens, Poussin e
tantos outros (ARIÈS, 2012, p. 143).
Contudo, como já vimos no capítulo anterior que as ciências, nos séculos XVIII e XIX
encontravam-se popularizadas entre a sociedade, a prática da anatomia também transcendia o
espaço científico:
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A esta altura deveria estar claro que os cientistas nunca aprendem conceitos, leis e
teorias de uma forma abstrata e isoladamente. Em lugar disso, esses instrumentos
intelectuais são, desde o início, encontrados numa unidade histórica e
pedagogicamente anterior, onde são apresentados juntamente às suas aplicações e
por meio delas. Uma nova teoria é sempre anunciada juntamente às suas aplicações
a uma determinada gama concreta de fenômenos naturais; sem elas não poderia nem
mesmo candidatar-se à aceitação científica. Depois de aceitas, essas aplicações (ou
mesmo outras) acompanharão a teoria nos manuais onde os futuros cientistas
aprenderão seu ofício. As aplicações não estão lá simplesmente como um adorno ou
mesmo documentação. Ao contrário, o processo de aprendizado de uma teoria
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Por fim, a fama vem decorrente das grandes realizações propagadas a um público
bastante atento, como buscamos elucidar no segundo capítulo, através da exposição da
interação entre sociedade, ciências e literatura. Aliás, os próprios cientistas encarnavam uma
veia interpretativa para alcançarem seu público:
mas esses métodos de fato difundiam o conhecimento entre um público mais amplo
(BURKE, 2012, p. 119).
É dessa forma que Mary Shelley dá, então, início a relação curiosa entre Victor
Frankenstein e sua criatura inominada. Um clássico literário que já perdura há 199 anos.
Contudo, aqui devemos incluir um uma observação: a ausência da figura do monstro
como objeto de análise.
A narrativa que decorre até a criação da criatura comporta ainda conteúdo não
suficiente para a completude da obra. A partir da introdução da personagem monstro, o texto
se debruça sobre um longo embate filosófico e físico entre as personagens principais, o
cientista e o monstro. Na medida em que este texto foi sendo pensado e construído, foi
verificada a possibilidade de analisar a atuação do “antagonista” e sua importância científica
para esta pesquisa. Desta forma, obtivemos dois caminhos a seguir, tanto por meios
independentes, como complementares, a saber:
1. Na perspectiva do historiador da ciência Thomas Kuhn, a pesquisa científica pode
levar a anomalia, que, em síntese, seria um desvio dos propósitos do cientista. Neste
caso, o cientista Victor Frankenstein possuía como proposta criar uma nova raça de
seres humanos fisicamente superiores, cujos mesmos obedeceriam ao seu mentor.
Contudo, a criatura produzida acaba por seguir caminho independente, confrontando,
então, seu mestre inventor. Mas vale lembrar que Kuhn (2013) ressalta que a anomalia
é algo comum e, em muitos casos, inerente a criação científica; a mesma pode ser
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Afinal, há uma nova explicação para as “formas de ser” do indivíduo? O fato de ser
usada a percepção de Locke e de Rousseau significa que os mesmos ainda são pertinentes, ou
é Mary Shelley que ainda se limitava a eles?
Vimos a mudança do ser científico, intelectual, através de Victor. Contudo, mais
desafiador se faz é percebermos a transformação do indivíduo em seu âmago. Essa
averiguação, claro, é impossível. Mas, ainda se faz possível observar que sentimentalidade se
impõe a essa nova era.
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5 CONCLUSÃO
Findamos, então, este trabalho, após termos analisado os aspectos contextuais que
circundam a obra Frankenstein, ou o Prometeu moderno, sejam acerca dos elementos que a
compõem internamente (narrativa), como externamente (condições em que fora elaborada).
Para tanto, dividimos a pesquisa em três capítulos, em que apresentamos as origens da
autora Mary Shelley, ligada ao mundo literário (ficção e filosofia) desde sua infância, através
de uma análise da trajetória intelectual de seus pais, Mary Wollstonecraft e William Godwin,
figuras importantes no cenário filosófico europeu, perpassando, também, sua vida amorosa e
social, através da convivência com seu cônjuge Percy Shelley, membro do Panteão dos
grandes poetas ingleses, e das relações amigáveis com Lord Byron, ocupante do mesmo
patamar que Percy, e John Polidori, elaborador do protótipo daquilo que viria a ficar
conhecido como vampiro. A este primeiro capítulo, demos a nomeação de Mary
Wollstonecraft Godwin Shelley, em alusão aos seus pais e esposo, todos sendo grandes
influenciadores, emocional e intelectualmente, do seu amadurecimento criativo e de sua
postura perante a vida.
Logo em seguida, buscamos adentrar na análise da construção da obra de Mary, sendo
que elencamos três pilares, pois acreditamos serem os pontos básicos para a criação da obra
Frankenstein: a relação com o mito clássico de Prometeu (a renovação da ideia de mito e sua
pedagogia), a proposta de criação artística da autora – promover o terror, e a influência do
pensamento filosófico e científico, tendo em vista que a narrativa se constrói em virtude do
desejo do protagonista Victor Frankenstein em concretizar aquela que se tornaria a maior
realização científica de todos os tempos: criar vida. Nomeamos este capítulo de Frankenstein
despedaçado, em alusão a cultura popular que vê na obra de Mary Shelley a figura de um ser
remendado (é, a própria criatura de Frankenstein, um ser feito através de variadas partes de
outros seres, todos em remendo), e que buscamos justamente desconstruí-lo para então o
compreendermos. Em complemento, para tornar clara a ideia, inserimos o subtítulo “mito,
arte e ciência”, em concordância com o que pretendíamos analisar.
Por último, após avaliarmos, em dois capítulos, os elementos que selecionamos para
determinar a formação da obra Frankenstein, através de fatores internos e externos à mesma,
adentramos, em definitivo, na narrativa do livro, sendo que, por meio de elementos textuais,
analisamos que características Mary Shelley nos expõe que se corresponde com uma realidade
modificada pelo desenvolvimento técnico, científico, intelectual e material que se apresenta
com o advento da Revolução Industrial, mais especificamente no período de sua primeira
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seria obediente, sendo ele o novo “pai dos povos”), cujo este seria o caso do monstro, que
ousa enfrentá-lo até a morte.
Contudo, entraríamos com maior ênfase no campo filosófico, político e sociológico,
pois, na medida em que nos debruçaríamos sobre a trajetória da criatura, perceberíamos que a
mesma se faz envolvendo debates sobre a noção de humanidade, culpabilidade, punição,
aceitação, estética entre outras questões, já de uma outra ordem, onde nos direcionaríamos por
uma análise da sociabilidade. Já não seria mais um estudo sobre o indivíduo cientista
moderno, mas um outro indivíduo em uma sociedade moderna, fundamentada através das
reentrâncias da Micro-História, percorrendo a imagem da sociedade e de seu grotesco, relação
esta tão presente na produção ficcional inglesa durante o século XIX, em obras como
Dracula, Strange Case of Dr Jekyll and Mr. Hyde (O médico e o Monstro), The Picture of
Dorian Gray, as histórias criminalísticas de Sherlock Holmes, o mundo degradado e
moralmente deturpado de Charles Dickens, e que não ficou de fora dos estudos literários de
Victor Hugo, que a analisou em seu “Do grotesco e do sublime”, prefácio de sua obra
Cromwell.
Findamos, portanto, este trabalho, com o intento de expor a vivacidade do documento
literário, sua dinâmica e, principalmente, sua fala. Pois, a literatura possui, em qualquer
tempo, seus outros tempos: o de sua narrativa e o de sua época. A escrita ficcional é, acima de
tudo, uma conversa com o outro. Sendo assim, que estejamos abertos ao diálogo.
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