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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

MARCELO AUGUSTO MUNIZ FIGUEIREDO

FRANKENSTEIN, OU O CIENTISTA MODERNO:


A TRANSIÇÃO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO IDEAL PARA A PESQUISA
CIENTÍFICA EMPÍRICA (1818-1831).

FORTALEZA - CEARÁ
2017
MARCELO AUGUSTO MUNIZ FIGUEIREDO

FRANKENSTEIN, OU O CIENTISTA MODERNO:


A TRANSIÇÃO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO IDEAL PARA A PESQUISA
CIENTÍFICA EMPÍRICA (1818-1831).

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Curso de Licenciatura em
História do Centro de Humanidades da
Universidade Estadual do Ceará, como
requisito parcial à obtenção do grau de
licenciado em História.

Orientador: Profª. Drª. Valéria Apª.


Alves.

FORTALEZA - CEARÁ
2017
MARCELO AUGUSTO MUNIZ FIGUEIREDO

FRANKENSTEIN, OU O CIENTISTA MODERNO:


A TRANSIÇÃO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO IDEAL PARA A PESQUISA
CIENTÍFICA EMPÍRICA (1818-1831).

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Curso de Licenciatura em
História do Centro de Humanidades da
Universidade Estadual do Ceará, como
requisito parcial à obtenção do grau de
licenciado em História.

Orientador: Profª. Drª. Valéria Apª.


Alves.

Aprovado em: 01 de dezembro de 2017.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________
Profª. Drª. Valéria Aparecida Alves (Orientadora)
Universidade Estadual do Ceará – UECE

_____________________________________________________
Prof. Dr. Francisco José Gomes Damasceno
Universidade Estadual do Ceará – UECE

____________________________________________________
Prof. Dr. Ricardo Jorge de Lucena Lucas
Universidade Federal do Ceará – UFC
AGRADECIMENTOS

Não se faz nada só. Nossas mãos não são suficientes para declararmos um trabalho
acadêmico como nosso. O eu tem muito de nós. De vocês, mesmo indiretamente.
Sendo eu desprovido da inspiração divina, agradeço primeiro a minha mãe, por desde
sempre ter acreditado que eu teria um bom futuro, e ter dispensado todos esses anos ao
zelar pelo meu bem estar, além de ter me ensinado o sentimento de comprometimento.
À minha irmã, que desde sempre nunca me negou nada e sempre esteve de prontidão,
seja para a criança mimada e birrenta, seja para o rapaz emburrado.
Às minhas primas Fernanda e Beatriz, pelos momentos de diversão; aos meus sobrinhos
Gabriel e Alícia, pelos abraços, beijos e pancadas (de brincadeira); ao meu amigãozão
(sic) Helder, por me considerar seu amigãozão.
Aos amigos: Isaac, pela diversão incomparável e por, não sei qual motivo, acreditar em
mim, assim como nos inspirar através de sua história; Paulo, pela paciência em escutar
minhas divagações e por suas sacadas, brincadeiras e maturidade; Haroldo, pelas
conversas e brincadeiras, e por nos ensinar o significado de simplicidade, apesar de ser
tão grandioso; ao Luan, pela sua solicitude, atenção e paciência em estar pronto a ajudar
sem olhar a quem; ao Davi, pela sua sempre feliz e divertida presença; ao Narcisio, já
amigo antes mesmo da faculdade, este nato contador de histórias; ao Léo, por contribuir
conosco com seu tão extenso conhecimento, além das garrafas divididas; ao William e
John, pelas brincadeiras, saídas e vinhos; a Sarah, por ter dividido momentos de tensão
e de alegria nessa caminhada monográfica.
Dedico também espaço aos amigos Elisson e Paulo Neto. O primeiro, por ter sido um
dos primeiros ídolos que conheci, e talvez ele nem saiba disso; uma das pessoas mais
pacientes e habilidosas que se pode conhecer, que muito bem poderia ter sido faixa
preta em qualquer coisa que quisesse. O segundo, pelos momentos de descontração
dedicados ao futebol (real e virtual), além de ser o exemplo de alguém que conquistou
seu sonho com esforço próprio (e ainda pode conquistar mais).
À professora Valéria, pela sua paciência, dedicação e estímulo a esta pesquisa.
À Larisa, que amorosamente se dedicou a mim e fez aquilo que nenhuma outra pessoa
seria capaz ou toleraria fazer. Acreditou em mim de um jeito que eu não sou capaz de
fazer.
Dedico espaço também ao meu pai, que apesar de sua pedagogia incorreta e
dispensável, acabou por me ensinar sobre disciplina.
RESUMO
Esta pesquisa analisa, parcialmente, o sutil processo de transição mental do pensamento
filosófico ideal para a pesquisa científica empírica, inserida no contexto da
industrialização britânica, através da narrativa literária proposta na obra Frankenstein,
ou o Prometeu moderno, de autoria da escritora inglesa Mary Shelley. A partir dela,
reivindicamos elementos internos (textuais) e externos (contextuais) que nos evidencia
que, com o desenvolvimento do capitalismo, através da Revolução Industrial Inglesa, o
universo científico se debruça, concisamente, sobre a pesquisa, coleta e análise empírica
de seus variados objetos de estudo, em uma época marcada pela valorização do emprego
da técnica e da realização material. Através da figura protagonista de Victor
Frankenstein, avaliamos, alegoricamente, o alvorecer de uma nova lógica de
pensamento científico, encarnada naquela personagem. Ao todo, avaliamos, também, a
importância da vida privada da autora na inspiração de sua obra, assim como nos
debruçamos, sobre a influência da mitologia (a figura de Prometeu), a percepção
artística da autora e sobre a presença da ciência em sua trajetória que, por fim,
desemboca em sua escrita.

Palavras-chave: Frankenstein. Mary Shelley. Revolução Industrial. Técnica. Ciência.


ABSTRACT

This work partially analyzes the subtle process of mental transition from an ideal
philosophical thinking to the empirical scientific research, within the context of British
industrialization through the literary narrative proposed in the work Frankenstein; or
The Modern Prometheus, authored by the English writer Mary Shelley. From it, we
claim internal (textual) and external (contextual) elements that evidence the
development of capitalism, through the English Industrial Revolution, the scientific
universe leans, concisely, on the research, collecting and empirical analysis of its varied
study objects, at a time marked by the appreciation of the employment of the technique
and the material realization. Through the figure of the main protagonist Victor
Frankenstein, we evaluate, allegorically, the dawn of a new logic of scientific thought,
incarnated in that character. In overall, we also evaluate the influence of the author’s
private life in the inspiration of her work, when we look at the presence of mythology
(the figure of Prometheus), the artistic perception of the author and the presence of
science in her trajectory that ultimately flows into her writing.

Keywords: Frankenstein. Mary Shelley. Industrial Revolution. Technique. Science


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 6
2 MARY WOLLSTONECRAFT GODWIN SHELLEY ............................................. 13
2.1 HERANÇAS LITERÁRIAS: UMA FAMÍLIA DE RENOME ...................................... 16
2.2 ROMÂNTICOS ............................................................................................................... 21
2.3 OS QUATRO LIBERTINOS: UM CASAL DE ROMÂNTICOS E UMA DUPLA DE
EXCÊNTRICOS ............................................................................................................. 28

3 FRANKENSTEIN DESPEDAÇADO: MITO, ARTE E CIÊNCIA ......................... 32


3.1 FRANKENSTEIN, O PROMETEU MODERNO .......................................................... 34
3.2 O CAOS INVENTIVO - DESAFIOS ESTÉTICOS E TEMÁTICOS: FRANKENSTEIN
ENTRE A ARTE E A REALIDADE ............................................................................. 43
3.3 A CIÊNCIA COMO POSSIBILIDADE ARTÍSTICA ................................................... 49

4. FRANKENSTEIN, OU O CIENTISTA MODERNO ................................................ 54


4.1. CIENTIFICIDADE E HISTORICIDADE ...................................................................... 58
4.2. CARREIRA ABERTA AO TALENTO: EM BUSCA DO PROGRESSO .................... 65
4.3. FRANKENSTEIN: DA UTOPIA À REALIZAÇÃO ..................................................... 74
5 CONCLUSÃO................................................................................................................ 81
REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 85
6

1 INTRODUÇÃO
A pesquisa ora desenvolvida se debruça sobre uma parcial análise do desenvolvimento
científico europeu, em específico na Inglaterra, nos primeiros trinta anos do século XIX.
Parcial, pois analisa uma das faces da evolução técnico-científica decorrente da Revolução
Industrial Britânica, que, junto a Revolução Francesa (1789-1799), estabelecem novos moldes
sociais, políticos, econômicos e culturais. Na esteira do processo de industrialização, percebe-
se também uma modificação nas realizações técnicas, impulsionadas, também, por uma nova
mentalidade intelectual, que propõe, através de métodos teórico-práticos, produções materiais
que buscam dinamizar, acelerar e incrementar as engrenagens que dão funcionamento ao meio
social (a produção, a organização do tempo e do espaço, a análise demográfica, a agilidade
das relações – meios de transporte, de comunicação, etc.).
Nesse contexto de constate avanço e modificação do espaço social, observadores reais
– e fictícios – deixaram expostas suas percepções, análises, críticas e sensações acerca do
mundo novo. Além da intelectualidade, que buscava entender a nova dinâmica que afetava o
cotidiano de milhares de pessoas, poetas, romancistas e prosadores de forma geral, através da
sensibilidade e subjetividade da obra literária ficcional, registraram interpretações sobre a
realidade que se estabeleceu. As abordagens variam: da obra crítica, que em tom de denúncia
expôs as mazelas que se instalaram no novo sistema, até às obras que trataram sobre o
relacionamento cotidiano dos pares sociais (também profundamente modificado), a literatura
de ficção se fez presente em todo o período de ascensão do modo de produção capitalista, que
encontrou seu ápice no século XIX; e em seu fim, já era uma realidade global.
Dentre as várias obras de destaque que marcaram a época e que, ainda, hoje são
referências tanto literárias quanto reflexivas, destacamos, para este trabalho, o livro
Frankenstein, ou o Prometeu moderno, de autoria da inglesa Mary Shelley, escritora clássica
da literatura ocidental. Publicada pela primeira vez em 1818, passando por duas reedições em
1823 e 18311, a obra máxima de Mary traça a trajetória de um jovem estudante suíço, Victor
Frankenstein, que dedica sua vida a uma grande realização científica: a produção da vida.
Atenta às transformações da sua época e convivendo com um círculo fraterno bastante
observador da contemporaneidade de até então, Mary Shelley, muito jovem, apresenta em sua

1
Esta é a versão concisa e base para inúmeras traduções. A edição traduzida que utilizamos é oriunda
diretamente desta publicação de 1831. A versão de 1818, conforme nossa averiguação, encontra-se disponível
em inglês. A de 1823 não conseguimos localizar.
7

escrita valores fundamentais dos novos horizontes científicos que se instalavam: a valorização
do empirismo; o zelo pelo método, pela organização e pela coleta de informações/matéria-
prima; a dedicação disciplinada e ferrenha; a especialização aliada a interdisciplinaridade; o
impacto social; o retorno pessoal. Mais impactante ainda, Mary Shelley faz um contraponto
pertinente e atemporal, mas que ainda assim pode ser revolucionado: o pensamento juvenil,
“grandioso” e eufórico; a maturidade reflexiva, “trabalhadora” e pragmática.
A personagem Victor Frankenstein, duplo protagonista de seu tempo, seja como ficção
ou como retrato de uma época, passa por duas fases que irão moldar seu cientificismo: ainda
jovem, até seus 17 anos, é um garoto ávido por conhecimento, conhecimento este já não mais
apto para a realidade do século XIX, considerado fantasioso e irrealizável (ainda que base
filosófica para a ciência moderna); após aquela idade, ao adentrar na universidade, apesar de
pragmático, o saber que lhe é exposto torna-se mais digno de sua atenção, pois realizável e
cabível às suas capacidades. O Victor jovem conhecia sonhos fantásticos de mentes oníricas;
o Victor adulto entra em contato com promessas palpáveis de homens práticos. Se antes de
sua inserção acadêmica, Frankenstein maravilhava-se com a promessa da vida eterna de
alquimistas de outrora, agora ele trabalhará duro para aprender os métodos de cientistas
modernos. Contudo, o toque sutil de Mary Shelley não permitirá que a obra caia em taciturna
transição: se a era revolucionária europeia possuía horizontes ilimitados e buscava alcançar
grandes realizações materiais, Victor Frankenstein, metaforicamente, não se contentará com o
básico, com o simples. Seu fazer científico é revolucionário, e a revolução é identificada com
a juventude.
O processo de industrialização proporcionou o menor estreitamento entre jovens e
velhas mentes: na própria literatura, afirma Hobsbawm (2014), não alcançar o sucesso antes
dos 30 anos é sinal de fracasso. O crescimento industrial e técnico também repercutiu na
mudança das relações sociais, na constituição da nova moral e novos valores. A valorização
do indivíduo jovem como interventor social, especialmente no campo das artes e da ciência
foi valorizada. Na economia, fortunas foram feitas antes da meia-idade (por volta dos
cinquenta anos), e a inserção no espaço político não se restringiu mais a uma camada de
senhores aristocratas arcaicos.
A realização crucial das duas revoluções [– inglesa e francesa –] foi, assim, o fato de
que elas abriram carreiras para o talento ou, pelo menos, para a energia, a
sagacidade, o trabalho duro e a ganância. Não para todas as carreiras nem até os
últimos degraus superiores do escalão, exceto talvez nos Estados Unidos. E, ainda
assim, como eram extraordinárias as oportunidades, como estava afastado do século
XIX o estático ideal hierárquico do passado! (HOBSBAWM, 2014, p. 298).
8

Ao ter as ferramentas teórico-metodológicas, Victor Frankenstein, ainda, esperançoso


de grandes realizações, une o fazer moderno com um antigo sonho filosófico: dar origem a
vida. Não mais com poções, rituais ou qualquer outro tipo de realização metafísica; o cientista
irá se utilizar da matemática, da anatomia, da química e da filosofia natural para dar origem a
um ser. Simbolicamente, Victor Frankenstein é o retrato de um novo tempo: as ferramentas
são palpáveis, mas as propostas são inesgotáveis. Obras que para os contemporâneos do
século XXI podem parecer triviais, mas para os indivíduos de dois séculos atrás eram
grandiosas. O barco a vapor, por exemplo, encurtou distâncias; a passagem da locomotiva se
fazia como um espetáculo, vista e apreciada por um público admirado. A tecnologia atual se
produz tão aceleradamente que até passa despercebida de uma análise mais profunda.
Contudo, no século XIX, as inovações eram, definitivamente, inovações. Ainda que suas
bases já existissem, seus novos formatos e funcionalidades empolgaram uma geração de
pessoas. Mary Shelley foi uma destas; seu protagonista, também.
Desta forma, Frankenstein, ou o Prometeu moderno é uma licença poética
reintrepretativa do clássico mito grego, de Prometeu, que roubou objeto de divina posse dos
deuses para dar aos homens, assim como é a simbologia de um homem que, dentro dos
padrões morais e religiosos da época, atribuiu a si a maior competência de Deus: a criação da
vida. O título não é aleatório e exprime bem a proposta narrativa da autora. E é a essa sua
proposta, vinculada a uma análise historiográfica de sua época, que nos debruçamos para
investigar que elementos sóciohistóricos podemos então extrair e expor.
Frankenstein, ou o Prometeu moderno é nossa inspiração, fonte e caminho por outro
tempo, outra mentalidade e, acima de tudo, outro contato: é uma conversa sincera entre uma
mulher que expõe a si e sua época através da nobre arte literária.
Logo, para darmos concretude a esta pesquisa, fora necessário mergulhar por uma
relação teórico-metodológica que alimentou, em termos práticos, o desenvolvimento do
trabalho.
Já deixamos exposto que nossa fonte de pesquisa primária é uma obra de ficção, de
cunho literário – prosa. Logo, a historiografia desenvolveu, ao longo de sua trajetória,
estratégias, conceitos e “ferramentas” para auxiliar no trabalho com fontes específicas. O que
queremos dizer é que a pesquisa entre História & Literatura não é cabível de ser conduzida da
mesma forma que uma pesquisa entre História & Cinema. Ambos os campos – literatura e
cinema – transitam pela arte e possuem caracteres ficcionais. Contudo, a forma concreta,
simbólica e até mesmo imagética de cada uma possui peculiaridades que se destoam ao
realizarmos uma análise crítica.
9

A Teoria da História incorporou, portanto, um trato metodológico diferenciado para a


pesquisa em literatura. Em termos gerais, partimos da ideia que uma obra possui um tempo e
lugar específico, e que as condições contextuais desse momento particular imputam em
impacto sobre a criação da mesma. Uma obra humana é “produto de seu tempo”. Utilizando-
nos do óbvio, Mary Shelley só poderia ter escrito sua pesquisa no período em que escreveu, e
não na Idade Média ou durante a Primeira Guerra Mundial. Contudo, trabalharmos com esta
explanação é estabelecer um determinismo e um reducionismo quase que acrítico.
No campo da pesquisa, estabelecemos, contudo, um período que convém a nossa
proposta de estudo. Delimitamos nosso recorte temporal entre 1818 e 1831 – data da primeira
edição de Frankenstein até a data da terceira e última edição. Dentro desse período, buscamos
analisar que características sociohistóricas estão presentes e que ao mesmo tempo são
favoráveis ao desenvolvimento do livro. Da mesma forma, buscamos analisar como tal obra
foi recebida pelo público de sua época. Para realizarmos tal análise, se fez necessário
compreendermos que ideias e mentalidades se faziam presentes no período determinado.
Ao estudarmos a sociedade industrial inglesa que se desenvolveu a partir do século
XIX – como já dito no início, buscamos avaliar não apenas os impactos materiais, mas
também os mentais e emocionais. A literatura, assim como outras expressões artísticas, se
beneficia do trabalho intelectual e do reflexo emocional de quem a elabora. Como afirmou
Hobsbawm acerca da Revolução Industrial, esta “assinala a mais radical transformação da
vida humana já registrada em documentos escritos” (2013, p. 1). Documentos escritos estes,
ressaltamos, que também podem ser de cunho fictício. Pois, afirma o mesmo Hobsbawm “que
até mesmo as ideias falsas e absurdas são fatos e forças históricas” (2014, p. 454).
Aliada à percepção acima, nos munimos da afirmação do historiador Celso Ferreira
“que os gêneros literários estão intimamente relacionados às condições sociais e históricas
que determinam a formação do público leitor, com seus gostos e sensibilidades [...]” (2012, p.
73).
Contudo, apesar dessa intrínseca relação entre realidade e ficção, devemos ter em
mente que a História é uma narrativa “controlada”, e que possui a intenção de estabelecer um
regime de veracidade em seu discurso (PESAVENTO, 2000). Afinal, o historiador, apesar de
investigar, selecionar e “construir” seu objeto, ele, diferente da ficção (que elabora outras
possibilidades para o real), busca alcançar o possível, plausível, verossímil (PESAVENTO,
2000). A autora, portanto, sintetizou de forma explícita a produção argumentativa da História,
em contrariedade a “argumentação literária”:
10

Nossa idéia é de que o texto histórico comporta a ficção, desde que o


tomemos na sua acepção de escolha, seleção, recorte, montagem, atividades que se
articulam à capacidade da imaginação criadora de construir o passado e representá-
lo. Os gregos que o digam, apesar das suas propostas diferenciadas. Há, e sempre
houve, um processo de invenção e construção de um conteúdo, o que, contudo, não
implica dizer que este processo de criação seja de uma liberdade absoluta.
A história, se a quisermos definir como ficção, há que ter em conta que é
uma ficção controlada. A tarefa do historiador é controlada pelo arquivo, pelo
documento, pelo caco e pelos traços do passado que chegami até o presente. De uma
certa forma, eles se "impõem" ao historiador, que não cria vestígios do passado (no
sentido de uma invenção absoluta), mas os descobre ou lhes atribui um sentido,
conferindo-lhe o estatuto de fonte. Ou seja, são as perguntas que o historiador faz
aos registros do passado que lhe chegam às mãos que irá dotá-los - ou não - de
significância para seu trabalho. Logo, a própria categorização de algo como fonte é,
já, uma construção.
A história é controlada ainda pela relação que o historiador narrador
estabeleceu com o seu objeto — o tal real acontecido — e que se torna uma
finalidade de ofício. O historiador quer e se empenha por chegar lá, a este real-
referente que ele busca representar e que se situa além, em uma temporalidade já
transcorrida e inatingível.
Ficção controlada, porque a História aspira ter, em sua relação de
"representância" com o real, um nível de verdade possível. Se não mais aquela
verdade inquestionável, única e duradoura, um regime de verdade que se apoie num
desejável e íntimo nível de aproximação com o real (PESAVENTO, 2000, p. 39).

Organizamos a pesquisa em três capítulos. No primeiro capítulo, denominado Mary


Wollstonecraft Godwin Shelley, apresentamos e refletimos sobre a vida pessoal da autora,
desde bem antes de seu nascimento, através da trajetória de seus pais, Mary Wollstonecraft e
William Godwin.
Duas importantes figuras da intelectualidade inglesa, Mary e William marcaram o
pensamento ocidental com suas ideias sobre a posição da mulher na sociedade e a crítica
moral e política, respectivamente. Mary Shelley é encarada como uma das primeiras
feministas da história, registrando seu pensamento sobre o assunto no livro A Vindication of
The Rights of Woman (1792). A pesquisadora Susan Hitchcock (2010) chega a afirmar que
esse é o primeiro tratado feminista da história. Já William Godwin é identificado com ideais
revolucionários, sendo relacionado ao pensamento anarquista. Sua principal obra, An Enquiry
Concerning Political Justice and its Influence on General Virtue and Happiness (1793), trata
sobre uma concepção de progresso que levaria o indivíduo a alcançar a justiça e paz social.
Logo, analisar a ascendência de Mary Shelley é conhecer seus passos pelo campo
literário, tendo em vista que a mesma é depositária de duas grandes mentes intelectuais,
produtivas e importantes na história da escrita ocidental. Apesar de não ter vivido com a mãe
(esta morrera pouco tempo após o parto), Mary Shelley segue os passos de sua homônima
quando se aventura no campo da escrita e da filosofia (apesar de ficção, Frankenstein expõe
pensamentos famosos e propõe reflexões) e, ainda bastante jovem, se insere no meio
11

intelectual, ainda preponderantemente masculino (apesar da presença da também famosa


autora Jane Austen, contemporânea de Mary Shelley). Contudo, sua vivência com seu pai, a
vida inteira ligado às letras, proporciona uma educação intelectual importante; soma-se,
também, à vida libertária de seu progenitor, que possibilita a Mary Shelley uma criação
jamais voltada ao cumprimento das “tradicionais” “competências femininas” (afazeres
domésticos, casamento, cuidado com a casa e com as crianças).
Aliada à educação familiar, Mary Shelley teve, ao lado de seu esposo Percy Shelley,
um companheiro inigualável: este era, ao mesmo tempo, apoiador e tutor dos talentos
literários de sua esposa, instigando seu desenvolvimento e buscando encontrar meios para que
seus escritos pudessem ser publicados. Percy Shelley, aliás, é um dos maiores poetas
ocidentais, que ainda bastante jovem também conquistou a fama dúbia: ao mesmo tempo
amado por sua literatura, fora também odiado por seus valores “corrompidos”. Afinal, Percy
Shelley era declaradamente ateu, além de ser grande admirador do pai de Mary, o que era
motivo de espanto e aversão para a época.
Além dos pais e do esposo, Mary Shelley, também, contou com a presença de Lord
Byron, outro gigante da literatura inglesa, e John Polidori, este considerado responsável por
instigar os primeiros passos de outro grande monstro da literatura: o vampiro.
Mary Shelley, então, viveu em meio a um círculo literário de prestígio, o que serve
para alavancar ainda mais sua produção literária, influenciada por grandes nomes que lhe
foram contemporâneos.
Adiante, no segundo capítulo, Frankenstein despedaçado - mito, arte e ciência,
analisamos três pontos que acreditamos serem fundamentais para a produção da obra literária:
sua relação com o mito grego de Prometeu; a relação de Mary Shelley com a arte e como a
arte expõe a realidade; a ligação da obra com o pensamento científico.
Como já dito anteriormente, a história de Victor Frankenstein faz alegoria ao mito de
Prometeu: este, desafiando os deuses, roubou um desígnio unicamente de domínio sagrado e
deu aos humanos, em busca de seu bem-estar. Por tal ousadia, o mesmo fora punido a sofrer
uma dor física eterna. Victor faz o mesmo: apenas Deus é capaz de criar vida; contudo,
através da ciência, a personagem atribui a si essa capacidade, e posteriormente é punido
(fisicamente) e se pune (psicologicamente) por sua realização (ressaltamos o deus judaico-
cristão tendo em vista o ambiente em que a autora estava envolvida, em uma Inglaterra cristã,
povoada por protestantes – anglicanos e católicos, além de outros grupos religiosos de base
bíblica).
12

Além da referência ao mito, analisamos como a escrita ficcional é capaz de produzir


traços e reflexões sobre a realidade, sendo, também, um registro histórico. Até porque, a
produção humana, seja de que natureza for, está condicionada aos meios sociais, culturais,
econômicos, políticos e técnicos de seu período. Logo, entendemos que a obra Frankenstein é
única, pois somente determinadas condições são capazes de influir em sua construção.
Analisamos, então, como o período vivido por Mary Shelley foi marcado pela influência do
pensamento científico, tanto nas realizações como no interesse do público por buscar sanar
suas curiosidades acerca. Acrescentamos, também, a análise sobre uma breve concepção
estética da autora que, mais do que agradar ao público leitor quer, acima de tudo, causar
terror. Portanto, além de reflexiva, a obra de Mary Shelley é sensível, pois possui a clara
proposta de alcançar a sentimentalidade e o subjetivo dos indivíduos.
Por fim, no nosso último capítulo, Frankenstein, ou o Cientista moderno, analisamos
como a ciência do começo do século XIX se faz presente na obra da autora. Iniciamos, antes
de tudo, pela sociedade que se desenvolveu após a Revolução Industrial Inglesa, iniciada a
partir da segunda metade do século XVIII e que inferiu profundas modificações na sociedade
europeia. Dentre as transformações, a produção técnica e científica sofreu progressivas
realizações que promoveram irreversível impacto social. Além do mais, a novidade da
mudança acabou por atrair a atenção do público, mesmo aquele leigo, que passou a imaginar,
especular e fantasiar sobre as propostas científicas. Entre esse público, Mary Shelley se
destacou (a classificamos como leiga pelo simples fato da mesma não possuir nenhum tipo de
formação técnica ou científica; contudo, intelectualmente, iremos descobrir no decorrer deste
trabalho que aquela jovem fora muito bem munida de conhecimento) com sua percepção
sobre ciência, apesar de influenciada por grandes nomes, tanto de outrora como de sua
contemporaneidade.
Portanto, aliando narrativa e teoria, munidos de ferramentas metodológicas, demos
então vida a este trabalho. Não da forma fantástica e marcante que Mary Shelley deu vida a
Frankenstein, nem da forma que Frankenstein deu vida a sua criatura. Mas, produzindo este
texto com admiração, olhando de baixo e com humildade, tencionando ter um pouco da
capacidade destas duas figuras.
13

2 MARY WOLLSTONECRAFT GODWIN SHELLEY

A obra Frankenstein, ou o Prometeu moderno hoje faz parte do panteão das grandes
produções literárias. Apesar de já ter sido contestada, criticada e até mesmo ignorada durante
certo tempo (inclusive no círculo acadêmico)2, este clássico britânico, ainda, ocupa o
imaginário contemporâneo, mesmo que seja de forma esvaziada, quando apenas nos
lembramos do nome Frankenstein e a ele relacionamos partes emendadas ou produções
artificiais. Ou, mais comumente, quando associamos o nome a figura de um monstro alto e
forte, de cabeça chata, com cicatrizes, pinos de metal e uma postura que mescla o grotesco
com o bobo. Esta imagem é fruto das intepretações cinematográficas, cujo primeiro grande
marco é Frankenstein, de 1931, dirigido por James Whale e produzido pela Universal
Studios.3 A partir de então, a indústria cultural não parou mais de reproduzir essa versão,
talvez não distorcida, mas diferenciada da narrativa original do livro – segundo ressalta
Hitchcock (2010), nem mesmo era intenção dos elaboradores da versão fílmica realizar uma
adaptação o mais próximo da versão literária.4
Logo, desde sua primeira publicação em 18185, até os dias atuais, o simbolismo
cultural que Frankenstein carrega tornou-se meio que de domínio público da sociedade,

2
“Os cientistas podiam estar prontos a considerar o romance de Mary Shelley para se orientar, mas a maioria dos
que praticavam o estudo da literatura inglesa profissionalmente teria escarnecido da ideia no início da década de
1970. Para eles, Frankenstein mal valia a pena ler, que dirá estudar como uma obra de arte ou um ponto de
referência moral. Nos departamentos de inglês da época, em ambos os lados do Atlântico, nem Mary Shelley
nem seu romance eram admitidos no cânone da grande literatura. Ela não podia ser comparada em calibre ou
importância, acreditavam eles, com escritores como William Wordsworth, Samuel Taylor Coleridge, John Keats,
Lord Byron ou até mesmo seu marido, Percy Bysshe Shelley. Para os acadêmicos da época, Frankenstein era
estritamente um romance pulp, ou seja, mal escrito e concebido com a intenção de chocar as pessoas [...]”
(HITCHCOCK, 2010, p. 291-292).
3
Cf. HITCHCOCK, 2010, p. 127-204. Outras obras como Frankenstein: mito e filosofia (1991) de Jean-Jacques
Lecercle, Em busca de Frankenstein (1998) de Radu Florescu e O mosaico de Frankenstein (1999) de Ana
Claudia Giassone também tratam sobre o papel do cinema na adaptação e construção imagética das personagens
de Frankenstein. Contudo, Susan T. Hitchcock apresenta um volume maior de informações e reflexões em
língua portuguesa para o leitor ou a leitora que queira se debruçar sobre Frankenstein adaptado, não apenas ao
cinema, mas a variadas mídias (a obra abrange, além das adaptações fílmicas, a produção de caricaturas,
desenhos animados, peças teatrais, canções, séries televisivas, revistas em quadrinhos e até mesmo adaptações
para a própria literatura ficcional, entre outros – não necessariamente apresentados nesta ordem).
4
Sobre a caracterização da versão cinematográfica do monstro de Frankenstein, Cf. NASR, Constantine. He
Who Made Monsters: The Life And Art Of Jack Pierce. [Documentário]. Direção de Constantine Nasr. USA,
2008. Vídeo online, 25h01min. color. son. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xa04zz15eQs.
Acesso em 31 de jan. de 2016.
5
A obra possuiu três edições, que, creio eu, não seria ousadia falar em três versões. A primeira, de 1818, possui
três volumes e um prefácio; a segunda, de 1823, possui dois volumes e algumas alterações na narrativa; a
terceira e última versão, de 1831, é volume único e possui tanto alterações como acréscimos (cinco capítulos
iniciais), além de um prefácio autobiográfico da autora, que trata acerca do processo produtivo da obra. Boa
parte dessas alterações discursivas se deve às várias críticas que a obra sofreu por parte de indivíduos
14

principalmente para aqueles que estão vinculados ao universo artístico. A obra nublou sua
autora, fato não único na literatura6. O seu esvaziamento permite que muitas pessoas sejam
capazes de falar sobre Frankenstein; contudo, uma boa parte não conhece a história original,
muito menos sua origem (HITCHCOCK, 2010). A verdade é que Frankenstein, ou o
Prometeu moderno7 possui uma história original, um local de criação, um recorte temporal
específico e uma autora em particular: iniciado em 1816, em terras suíças, finalizado um ano
depois e publicado em 1818, sob a autoria de uma jovem inglesa chamada Mary
Wollstonecraft Godwin Shelley, mais conhecida por Mary Shelley.
Contudo, indiferente do que fora feito com sua obra, em 1831 Mary Shelley escrevia
estas palavras sobre o futuro de sua cria: “E agora, mais uma vez, peço a minha criatura
hedionda que siga seu caminho e prospere” (SHELLEY, 2013, p.31). Apesar de ainda em
vida ter convivido com a repercussão (tanto favorável como contrária) de seu livro, mal
poderia imaginar Mary que, hediondamente, sua criatura criadora seguiria um caminho
próprio e próspero, e o reflexo disto é que, neste exato momento, apresento uma pesquisa
dedicada a analisá-la, parte por parte.
Destarte, o capítulo inicial fora dividido em três tópicos de ênfase cronológica, mas
que de forma nenhuma se resume apenas a esse critério. Com o objetivo de discutir quem foi
a autora, primeiramente, trataremos dos antepassados de Mary Shelley, seus pais William
Godwin e Mary Wollstonecraft, dando vazão a importância destes não apenas na formação da
jovem filha, mas também nas vidas pregressas de cada um, tendo em vistas serem importantes
nomes da intelectualidade inglesa, como veremos mais detalhadamente. Logo em seguida,
daremos vez a relação entre Mary e seu companheiro intelectual e amoroso, Percy Shelley,
com um breve levantamento biográfico daquele e seu posterior encontro com a escritora. Por
fim, iremos então nos deter sobre os primeiros passos para a confecção de Frankenstein,
quando Percy e Mary conhecem seus dois amigos literários, Lord Byron e John Polidori, e
assim dão início a trocas afetivas, intelectuais e, principalmente, literárias.
Portanto, comecemos! Comecemos despedaçando essa justaposição de sobrenomes,
Wollstonecraft, Godwin e Shelley, possuidores de uma rica história literária que influenciou

ferrenhamente insatisfeitos com a abordagem da autora acerca de alguns temas “polêmicos” – Hitchcock (2010),
por exemplo, nos fala de “acusações de incesto” como um daqueles.
6
Como o caso de Sherlock Holmes, por exemplo, que levou inúmeras pessoas a acreditarem em sua existência,
fazendo-o, durante um bom tempo, mais famoso que seu próprio autor, o escocês Sir Arthur Conan Dolye.
7
Frankenstein, em itálico, será aqui sempre utilizado para se referir ou a obra literária ou a outras adaptações
midiáticas, que, quando necessário, serão devidamente referenciadas em seus campos artísticos para que o leitor
e a leitora não se confundam.
15

nas vivências e nos escritos da britânica Mary, esta mulher que, com apenas 21 anos de idade,
publicava não apenas seu primeiro livro, mas também sua maior obra prima.
16

2.1 HERANÇAS LITERÁRIAS: UMA FAMÍLIA DE RENOME

Mary Shelley nascera em Londres, a 30 de agosto de 1797. Seu nascimento fora


complicado: durante o parto, sua mãe contraíra uma séria infecção, ficando dias em repouso,
em péssimo estado de saúde (FLORESCU, 1998, p. 31-32). Em menos da metade de
setembro (dia 10), Mary Wollstonecraft vinha a óbito. A partir de então, a pequena Mary, que
herdara não só o sobrenome, mas também o nome de sua mãe, era recebida pela vida com a
primeira perda. Esta sina de perder entes queridos fora uma constante em sua vida
(FLORESCU, 1998; HITCHCOCK, 2010). Contudo, as vivências daquela jovem inglesa
atestam um pertinente compromisso afetivo mesmo com aqueles já não presentes em sua vida.
Apesar de nunca ter conhecido sua mãe, Mary Shelley fora capaz de retirar, do âmago de seu
ser, um espaço para adorar, cultuar e louvar aquela mulher. Não à toa, o cemitério de St.
Pancras, local do enterro de M. Wollstonecraft, tornara-se seu refúgio, seja para refletir, se
divertir ou até mesmo namorar:

[...] Ainda jovem, ela procurou refúgio no túmulo tranquilo de sua mãe no
Cemitério de St. Pancras, em Londres, para se entregar às suas fantasias. Mais tarde,
ela se encontrava ali com Shelley, onde os amantes liam um para o outro os livros de
Mary Wollstonecraft, talvez entregues a jogos de imaginação até que a madrugada
os interrompia (FLORESCU, 1998, p. 31).

O cemitério, local visto por alguns como lúgubre e macabro, para Mary era o único
espaço que a permitia ficar próxima de sua raiz. Por esse motivo, frequentar o túmulo de sua
mãe ia além da mera atividade de recordação (ou a produção de um sentimento de recordação,
a visto ser ainda uma recém-nascida quando da morte de sua mãe), mas também se tornara um
hábito da necessidade de encontrar ali o elo materno de vivência. Mary Wollstonecraft,
mesmo sem querer, fora de profunda importância no desenvolvimento de sua filha, legando a
ela não apenas a “dádiva da vida”, mas uma herança intelectual importante, cuja filha não
falhara em honrar em sua memória.
Mas, afinal, quem seria essa mulher, Mary Wollstonecraft, afirmada acima como
figura intelectualmente “importante”? Que herança, aliás, fora essa deixada por ela a filha? E,
principalmente, como a conquistou? Busquemos solucionar estas questões.
Mary Wollstonecraft Godwin (1759-1797) fora uma intelectual britânica importante.
Ela é considerada umas das primeiras feministas da história (GIASSONE, 1999; LECERCLE,
1991), sendo escritora de vários “romances e tratados, incluindo A reivindicação dos direitos
da mulher, o primeiro tratado feminista de todos os tempos” (HITCHCOCK, 2010, p. 30-31).
Este livro “foi considerado revolucionário quando apareceu em 1792, e tornou Mary
17

Wollstonecraft famosa, especialmente nos círculos liberais” (FLORESCU, 1998, p. 33). Sua
inclinação pelo pensamento progressista e transformador a levou até bem distante de sua terra:
simpatizante dos anos revolucionários que transcorriam na França do século XVIII, Mary para
lá viajou buscando presenciar pessoalmente os fatos que se desenrolavam.

[...] Mary Wollstonecraft partiu para Paris em novembro de 1792: logo, ela
se encontrava lá em fevereiro de 1793, quando a Inglaterra declarou guerra e a
situação dos ingleses em Paris ficou precária;8 ela ainda estava lá em outubro do
mesmo ano quando o Comitê de Salvação Pública ordenou a captura de todos os
cidadãos britânicos: só escapou à prisão porque estava refugiada fora da cidade, em
Neuilly. Ela ficaria na França, residindo principalmente no Havre, até 1795. Em
outras palavras, ela passou lá o período da Revolução mais perigoso para os
estrangeiros (LECERLE, 1991, p. 63-64).

Mary Wollstonecraft conviveu com um dos períodos mais turbulentos da história da


França: o período do Terror, que, sob a liderança de Robespierre, fora responsável por uma
onda de extermínio de opositores ao regime revolucionário.
Essa sua viagem é importante para expor como as a posições progressistas e de ruptura
divergiam entre as nações: “Não é fato meramente acidental que os revolucionários
americanos e jacobinos britânicos que emigraram para a França devido a suas simpatias
políticas tenham sido vistos como moderados na França” (HOBSBAWM, 2014, p. 99). A
experiência dessa feminista pioneira, mulher de pensamentos progressistas, só mostra o quão
intenso e fervoroso fora o movimento revolucionário francês, que durante dez anos (1789-
1799) causou profundo impacto na Europa e no mundo, assim como promoveu mudanças
irreversíveis. Logo, assustada e desiludida, Mary retorna a sua terra natal.9
Em seu retorno, Mary viria então a encontrar, pela segunda vez, aquele que se tornaria
seu esposo e que, juntos, dariam vida a jovem e talentosa Mary Shelley.

[...] Mary encontrou William Godwin pela primeira vez em setembro de


1791 [...]. Aquele breve encontro não prenunciou qualquer relação significativa. A
julgar pelas notas de Godwin, tudo indicava que o analista político não apenas
ficaria mal impressionado com os textos de Mary (devido a erros de gramática e
outros pequenos pontos da composição) [...].

8
Sobre o conflito anglo-francês: “Desde 1792, a França estava em guerra com a Primeira Coalizão [– aliança
entre países contrarrevolucionários liderados pela Inglaterra –] de seus inimigos, empenhados em reverter a onda
revolucionária que parecia ameaçar toda a Europa e em restabelecer o status quo ante na França. Na visão de
Thomas Carlyle [intelectual inglês], a morte de Luís XVI na guilhotina ‘dividiu todos os amigos; e, no exterior,
uniu todos os inimigos’; por outro lado, segundo Friedrich Engels e outros, não fosse o efeito estimulante da
intervenção estrangeira, a revolução poderia ter acabado sufocada no próprio vômito” (HORNE, 2013, p. 13).
9
Além de sua viagem a França, Mary também passou por outras nações europeias, como os escandinavos
Suécia, Dinamarca e Noruega, o que resultou no livro Letters Written during a Short Residence in Sweden,
Norway, and Denmark, um “dos seus melhores escritos, e era um dos livros prediletos de Mary Shelley”
(FLORESCU, 1998, p. 34).
18

Eles se despediram mutuamente desagradados um do outro. Encontraram-se


de novo em 1796, depois da volta de Mary da Escandinávia. Por esse tempo,
Godwin tinha – na aparência – mudado sua impressão sobre os escritos de Mary.
Referindo-se à sua narração da viagem10, ele escreveu: “Se alguma vez um livro foi
escrito para fazer um homem se apaixonar por seu autor... a mim pareceu que este
era o livro” (FLORESCU, 1998, p. 35).

E a afeição de William Godwin não parou por aí. Sobre o desenrolar da sua relação
com Mary, ele nos diz:

A inclinação que cultivamos um pelo outro era daquele gênero que sempre
concebi como o mais puro e refinado amor. Cresceu no mesmo ritmo em nosso
espírito. Seria impossível dizer quem de nós chegou primeiro e quem veio depois.
Um de nós não avançou um só passo, que percebesse, que o outro já não tivesse
avançado antes. Não tenho consciência de uma das partes ter sido agente, e a outra
paciente, de uma ser o predador e a outra a presa, nesse encontro. Quando, no curso
natural das coisas, veio a revelação, nada havia enfim que revelar de parte a parte...
Foi amizade que se fez amor (GODWIN apud FLORESCU, 1998, p. 35).

Contudo, essas carinhosas palavras não são o suficiente para esconder uma
personalidade ardente, assim como o intelecto tão crítico quanto de sua esposa. William
Godwin também marcou seu tempo.
William Godwin (1756-1836) é irremediavelmente tratado como um dos mais
importantes pensadores ingleses, e não há nenhuma hesitação em afirmar que o mesmo é um
dos mais efervescentes (FLORESCU, 1998; GIASSONE, 1999; HITCHCOCK, 2010;
LECERCLE, 1991). Sua obra dividia opiniões: poderia ser tanto um homem admirável como
também desprezível (FLORESCU, 1998; GIASSONE, 1999). Contudo, é inegável seu talento
e grande capacidade intelectual em seu tempo. As obras aqui utilizadas para a abordagem da
vida pessoal de Mary Shelley e seus entes queridos endossam seu prestígio, o que torna
desafiador selecionar os trechos mais marcantes sobre sua personalidade e intelecto. Contudo,
o esforço vale a pena.
Giassone afirma ser Godwin:

[...] um filósofo radical, admirado por muitos de seus contemporâneos


como possuidor de uma aguda e sutil inteligência, embora fosse desprezado pela
parcela mais conservadora da sociedade londrina, que o considerava “imoral” e
“ateu”. Em obras como Enquiry Concerning Political Justice (1793), Godwin
deixava clara sua opção pelo anarquismo e a restrição a toda forma de preconceitos e
tabus que limitassem a liberdade humana, como a família, o governo ou a religião
(1999, p. 15-16).

E lembra:

10
Letters Written during a Short Residence in Sweden, Norway, and Denmark.
19

[...] o próprio William Godwin [...] pode ser considerado, também, um


teórico do progresso, na medida em que, sem sua principal obra – Enquiry
Concerning Political Justice –, ele formula uma ideia de progresso baseada na teoria
da positividade intrínseca à natureza humana, a qual acabaria por libertá-lo das
opressões e injustiças sociais e inaugurar o último estágio do desenvolvimento
humano: o anarquismo.

Segundo Hitchcock, fora com essa mesma obra, traduzida como “Inquérito acerca da
justiça política, um tomo de filosofia política, [que Godwin] prendeu a imaginação do público
tão intensamente” [...] (2010, p. 31). Lecercle endossa a importância da obra de Godwin que,
além de ser “um dos grandes textos da filosofia política inglesa”, é a obra que apresenta “a
primeira formulação do anarquismo filosófico” (1991, p. 16). Contudo, apesar destas
afirmações, é Florescu quem nos dá maiores informações sobre a figura de Godwin. Segundo
o autor:

[...] William Godwin foi um influente filósofo radical do final do século


XVIII na Inglaterra; seus muitos seguidores consideravam-no um semideus, um
filósofo-rei, e o comparavam a Voltaire, alguém que enobrecia tudo aquilo em que
tocava. A fama de Godwin, no entanto, apoiava-se essencialmente numa só obra: An
Enquiry Concerning Political Justice and its Influence on General Virtue and
Happiness, publicada em 1793, apenas um ano depois de A Vindication of The
Rights of Woman11. O trabalho é considerado um clássico, e produziu alguma
influência no pensamento político e social inglês do século XVIII, apresentando,
como o fez, as concepções mais radicais da filosofia revolucionária francesa sobre
moral e governo. Como sua esposa, Godwin escrevia muito (nada menos de trinta
livros ao todo), sobre uma grande variedade de assuntos, que incluíam ficção,
biografia, livros infantis e ocultismo. Além de Political Justice, dois livros
produziram um especial impacto em Mary Shelley: The Adventures of Caleb
Williams (1794), que invocava o princípio segundo o qual o homem era o mais
formidável inimigo do homem, e St. Leon: A Tale of the Sixteenth Century (1799), a
história de um alquimista em busca da “pedra filosofal”. [...]
Além de escrever, Godwin tornou-se mentor espiritual de uma elite de
brilhantes homens de letras e ciências, que se reuniam em sua casa. Esses incluíam o
poeta Samuel Taylor Coleridge, autor de The Rime of the Ancient Mariner [...], e Sir
Humphry Davy, celebrado filósofo natural e químico [...].
Apesar do prestígio de William Godwin como cientista político e mentor, o
homem Godwin exibia poucas qualidades apreciáveis: era geralmente frio e
calculista, desprovido de paixão e arredio, e se atribuía a ele a absoluta ausência de
senso de humor. Sua personalidade desagradável era compensada por sua
simplicidade [...]. Era, no entanto, inclinado à verdade e à justiça nas suas relações,
assim como intransigente na defesa de seus princípios (FLORESCU, 1998, p. 36-
37).

Na citação, pudemos perceber a dimensão dos talentos e atividades deste intelectual,


que, diferente de sua esposa, conseguira manter contato com sua filha até a mesma alcançar a
fase adulta e pôde, ainda em vida, ver a fama da jovem Mary alcançar patamares respeitáveis.
“Não é coisa digna de surpresa que, como filha de duas pessoas de renome literário, eu
pensasse, desde a mais tenra infância, em escrever” (SHELLEY, 2013, p. 25): é assim que

11
Principal obra de sua esposa, Mary W., já citada, em português.
20

Mary Shelley, aos seus 34 anos, refere-se aos seus pais. E continua: “Quando criança, eu
rabiscava; e meu passatempo favorito, durante as horas que me eram dadas ao divertimento,
era ‘escrever histórias’” (SHELLEY, 2013, p. 25-26). “O pai até publicou um poema rimado
espirituoso que ela escrevera aos 10 anos de idade, caçoando de um inglês que fingia
conhecer a França” (HITCHCOCK, 2010, p. 31).
Apesar de não sentir nenhuma atração pelos posicionamentos políticos e filosóficos de
seus pais (mas também não renegá-los) (LECERCLE, 1991, p. 60), a obra-prima de Mary
Shelley experimenta e propõe uma efervescência de sentimentos de desafio, de conflitos
contra a ordem vigente; a meta de Victor Frankenstein, sua personagem, pode, no mínimo, ser
chamada de revolucionária. Apesar de ser uma “conformista”, segundo afirma Lecercle
(1991)12, Frankenstein expõe, a priori, um ir além de. É a tragédia, e apenas a tragédia que faz
seu protagonista tentar frear os acontecimentos que se desenrolam.
Contudo, no “mundo real”, Mary Shelley experimentou relativo sucesso, ao ponto de
poder ter o privilégio de afirmar “Fiquei famosa!” (HITCHCOCK, 2010, p. 91). Pouco mais
de um século depois, ela definitivamente entraria para o rol das grandes personalidades
literárias e honraria suas origens intelectuais.

Não sou, na verdade, um bom juiz da personalidade de Mary. Creio que ela nada
tem das coisas comumente chamadas de vício, e que ela tem um talento
considerável... Estou ansioso para que ela floresça... como uma filósofa, ainda que
cínica. Isso aumentaria a força e a riqueza da sua personalidade... Gostaria, também,
que ela pudesse ser estimulada a tornar-se industriosa. Ela tem às vezes grande
perseverança, mas em alguns casos também carece de um estímulo (GODWIN apud
FLORESCU, 1998, p. 39).13

12
“Ela diz isto [...]: respeito os que querem mudar o mundo, mas não partilho suas ideias, pois meu
temperamento não me leva aos extremos, e fora dos que me são próximos, jamais gostei dos liberais, ainda que
nada tenha dito contra eles” (LECERCLE, 1991, p. 60).
13
O texto de Godwin é de 1812; Mary possuía então 14/15 anos.
21

2.2 ROMÂNTICOS

Entre 1789 e 1848, floresceu na Europa um importante movimento literário que fora
impactado e ao mesmo tempo impactou seu tempo. Essa determinação temporal é de
proposição do historiador britânico Hobsbawm, que em seu capítulo “As artes” da obra: A
Era das Revoluções, expõe e argumenta como “as revoluções” tocaram na subjetividade de
vários artistas do Velho Mundo, de escritores a pintores, de desenhistas a arquitetos. Dentre
os importantes movimentos surgidos, Hobsbawm (2014) destaca o valor do Romantismo na
literatura. “A primeira coisa que surpreende a qualquer um que tente analisar o
desenvolvimento das artes neste período de revolução dupla14 é seu extraordinário
florescimento” (HOBSBAWM, 2014, p. 392). Há, portanto, um “excepcional
desenvolvimento de certas artes e gêneros. A literatura, por exemplo, e dentro dela o
romance” (HOBSBAWM, 2014, p. 394). Esse período proposto pelo autor, que por sinal
contempla o recorte temporal e espacial desta pesquisa, é, sugestivamente, o período dos
românticos. Sua força estética, intelectual e social fora marcante sobre a sociedade europeia.
Não à toa: “Neste período, sem dúvida, os artistas eram diretamente inspirados e envolvidos
pelos assuntos públicos” (HOBSBAWM, 2014, p. 395). Contudo, o título deste tópico não
deve iludir sobre o que aqui será tratado.
Não se pretende aqui falar sobre o movimento, sobre seu desenvolvimento e sua
repercussão. O título, na verdade, diz muito além do que uma exposição de partícipes de um
movimento literário: românticos não apenas pelo seu “modelo” literário “escolhido”, mas
românticos pela relação estabelecida entre dois grandes nomes da literatura inglesa, britânica
e universal. Além da influência familiar, fora importante na vida e na obra de Mary Shelley a
presença de seu par amoroso e intelectual, Percy Shelley, um dos baluartes da poesia
europeia. Se seus pais já há muito deixavam de “herança literária” para a jovem Mary, Percy
fora importante para incentivar, orientar e lapidar o talento de sua companheira. Fora de
importância fundamental tanto interna quanto externamente na produção de Mary.
Contudo, antes de entendermos como Percy contribuíra na carreira de sua
companheira, se faz necessário evidenciar quem fora este homem, quais suas realizações e
como elas o fizeram se tornar um famoso literato.
Percy Bysshe Shelley (1792-1822) fora um peculiar indivíduo que cedo já conquistava
respeito e credibilidade no mundo das letras. Com apenas 24 anos de idade, já era um escritor
famoso (HOBSBAWM, 2014, p. 401). Sua ascendência era relativamente privilegiada; filho

14
Revolução Industrial Inglesa e Revolução Francesa.
22

de um baronete, Timothy Shelley, Percy possuía as condições mínimas que poderiam lhe
possibilitar uma carreira estável e promissora no universo da política (HITCHCOCK, 2010, p.
32). Contudo, não era este o propósito do jovem rapaz, que se enveredou por caminhos, à
vista da época, “tortuosos”:

Desde cedo, porém, Percy deixava claro que não preencheria tais expectativas.
Frequentara Oxford, mas fora sumariamente expulso no segundo trimestre por
publicar um panfleto provando, como dizia no título, A necessidade do ateísmo.
Dois depois, em 1813, publicara – novamente à própria custa – um “poema
filosófico” dedicado à jovem esposa, Harriet. A opinião dela era de que Rainha Mab
“não deveria ser publicado sob o sofrimento da morte, porque é excessivamente
contra tudo o que é estabelecido”.15 [...] Com 2.305 linhas de versos não rimados
seguidos por notas de rodapé explicativas que mais do que dobravam o número de
páginas, Rainha Mab era um empreendimento presunçoso para um homem de
apenas 20 anos de idade. Seu conteúdo diz muito sobre o jovem Percy Bysshe
Shelley, cuja imaginação contrapunha fadas-rainhas a órbitas planetárias, fantasia
imaginativa a fato científico (HITHCOCK, 2010, p. 32-32).

Sua ousadia literária nada mais era do que um reflexo de suas grandes paixões: a
liberdade, a poesia, o ateísmo (HITCHCOCK, 2010, p. 24). Além de bradar em suas letras
estas suas paixões, Percy possuía outros hábitos: como afirma Florescu, a alimentação do
poeta era inteiramente vegetariana, além de consumir muito chá (1998, p. 42). Fora também
preocupado com a “liberação da mulher”, assim como “acreditava no amor livre”
(FLORESCU, 1998, p. 42). “Shelley estava sempre defendendo boas causas, muitas delas
revolucionárias no seu tempo, e na Irlanda ele promoveu, mais tarde, o nacionalismo irlandês”
(FLORESCU, 1998, p. 42).
Florescu, ainda, nos dá mais outras informações vívidas de Percy:

Percy Bysshe era um homem jovem, alto e ossudo, mas de aparência frágil,
que talvez parecesse menor por seu curvo. Tinha bastos cabelos castanhos
ondulados, grandes olhos azuis luminosos e pele rosada. Seus gestos eram abruptos,
às vezes até violentos, e sua voz era irritantemente aguda. De temperamento
delicado e gentil, podia exaltar-se de repente. Seu trajar era em geral descuidado,
mas sua presença, de acordo com seu amigo mais próximo, Thomas Jefferson Hogg,
era “extremamente poderosa”. Suas feições “transmitiam uma animação, um fogo
interior, um entusiasmo, uma inteligência vívida e sobrenatural que nunca havia
encontrado antes em outro semblante”.
[...]
Com apenas 22 anos, ele já era poeta e autor, assim como conversador
brilhante, que deixava sua audiência geralmente deslumbrada. Era um leitor voraz e
podia conversar sobre uma imensa variedade de assuntos, como os valores estéticos
da Antiga Grécia, as virtudes da República Romana, o humanismo do
Renascimento, o Século das Luzes e da Razão, o libertarismo e o igualitarismo do
Contrato Social de Rousseau refundidos nos modelos de Godwin, a poesia de

15
Mary, contudo, possuía uma percepção bem diferente sobre a obra: “‘Este é um livro sagrado pra mim’”
(HITCHCOCK, 2010, p. 33).
23

Wordsworth e de Coleridge.16 Hogg assegurava que Shelley passava lendo dezesseis


das vinte e quatro horas do dia (FLORESCU, 1998, p. 42).

Quantas informações, quantas atuações, quantas qualidades! Essa é a imagem que


Percy proporciona através de seus estudiosos e os de Mary. Mas não para por aí: além de
todas essas questões, Percy ainda dedicava um tempo significativo de sua juventude à ciência
(gosto esse que futuramente será compartilhado por sua companheira, Mary, e que
impulsionará a construção da narrativa de Frankenstein).

Além da poesia e da dialética, outra fascinação de Shelley era a ciência –


uma fascinação que partilhava com Godwin. Como Godwin, ele estudara as obras do
famoso Paracelso, que no final da vida havia ensinado medicina em Ingolstadt.
Como menino, citava Dawden, para quem “a ciência transformou o mundo num
lugar de encantamento”. Tomava emprestado sempre livros proibidos de química.
Na Sion House, Shelley soube dos andróides, ou brinquedos mecânicos, que
funcionam como seres humanos – um produto do gênio científico de Adam Walker,
que havia feito conferências lá. Mais tarde, em Eton, seu quarto mais parecia um
laboratório de alquimia, com pós estranhamente coloridos, frascos, curiosos cheiros
e fumaças invadindo o quarto. Dizia-se que ele às vezes retornava a Field Place, nos
feriados, “com o rosto e as mãos sujos e enodoados por pós explosivos e ácidos
virulentos”. Certa vez, “quase se envenenou com uma mistura de arsênico”. Shelley
era igualmente seduzido pelos novos poderes da eletricidade e tinha, de fato,
comprado uma pequena pilha galvânica de um ajudante de Walker, quando estava
em Eton (FLORESCU, 1998, p. 43).

Termos como “Paracelso”, “Ingolstad”, “química”, “alquimia”, “eletricidade”,


“galvânica” são comuns na vida de Percy e de Mary. Em Frankenstein, como veremos mais
adiante (segundo e terceiro capítulos), tais palavras estão presentes e são de fundamental
importância para a compreensão da obra. Pelas palavras em comum, certamente somos
guiados a enunciar um compartilhamento de ideias entre os dois17.
Contudo, deve ainda parecer obscuro como Percy e Mary vieram a se cruzar, pois até
agora fora falado dos dois como se já presentes um na vida do outro. A bibliografia aqui
utilizada possui uma gama importante de informações acerca do relacionamento entre os dois,
desde os primeiros dias. Florescu (1995), principalmente, apresenta uma descrição mais viva
sobre o cotidiano do casal. Contudo, o trabalho proposto preferiu por ser objetivo no que diz
respeito a intimidade mais “afetiva”, optando por trazer à tona aspectos mais pertinentes
acerca da relação entre Mary, Percy e Frankenstein.

16
William Wordsworth (1770-1850) e Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), importantes nomes da primeira
geração do Romantismo inglês. Para mais informações sobre o romantismo, ver Hobsbawm, 2014, p. 391-426.
17
Vale lembrar que o pai de Mary, William Godwin, também pode em muito ter contribuído. Afinal, William
Godwin dedicava um estudo a “tópicos tais como necromancia, alquimia, rosacrucianismo, Alberto Magno,
Cornélio Agrippa, Paracelso, astrologia e feitiçaria [...]” (FLORESCU, 1998, p. 36). Vemos novamente aparecer
os termos “alquimia” e “Paracelso”, assim como temos agora “Alberto Magno” e “Cornélio Agrippa”, outras
figuras importantes no enredo de Frankenstein.
24

A propósito, Mary conhecera Percy aos 16 anos, em 1814, na Escócia (GIASSONE,


1999; HITCHCOCK, 2010). Percy estava com 22 anos, era casado com Harriet Westbrook,
tinha dois filhos e já era famoso pelo impacto de Rainha Mab (1813) (GIASSONE, 1999;
HITCHCOCK, 2010). A ligação se deu a priori entre Percy e William Godwin que, como dito
na última citação acima, exercia influência intelectual sobre o jovem poeta. Um dos pontos
em comum entre Percy e Godwin era a admiração pelo filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau
(1712-1778):

Rousseau declarara que as imperfeições e os padecimentos da vida humana


decorriam não da natureza mas da sociedade. Os seres humanos só precisavam se
libertar da opressão e do preconceito social para recuperar a sua alegria e liberdade
inatas. A simpatia mútua por essas ideias aproximara [...] o jovem poeta Percy
Bysshe Shelley a [...] William Godwin, o filósofo radical que ele mais admirava [...]
(HITCHCOCK, 2010, p. 23).

A partir de então, Percy rapidamente abdicaria de sua vida habitual para ficar junto de
Mary, em um amor reciprocamente correspondido. Mary declara com fervor esse amor em
anotações feitas na obra Rainha Mab, presente de Percy a ela:

“Este livro é sagrado para mim e como ninguém mais no mundo o verá,
posso escrever nele o que eu quiser – e assim escrevo –, que eu amo o autor muito
mais do que sei expressar, e que partilho com ele o mais caro e único amor – por
esse amor nos temos prometidos um ao outro, embora eu possa ainda não ser sua, já
não posso nunca ser de outro. Mas sou vossa, exclusivamente vossa,

‘Pelo beijo do amor, o olhar que ninguém viu também,


O sorriso que ninguém pôde entender,
O pensamento murmurado de corações unidos,
A pressão de duas mãos que tremem.’”

“A ele me devotei e é sagrada essa promessa. Lembro-me de suas palavras


– você agora é Mary e vai conviver com outras pessoas, e no momento tenho de
partir, mas na solidão do seu quarto estarei ao seu lado – sim, você está sempre
comigo, visão sagrada” (MARY apud FLORESCU, 1998, p. 45).

Essa forte paixão logo levara os dois a fugir pela Europa, ainda no mesmo ano em que
se conheceram (FLORESCU, 1998, p. 47). Um grande desafio para Mary, ainda jovem e
dependente do pai; para Percy, um ousado ato social, tendo em vista ser casado, ter filhos e
uma ascendência respeitável.

Percy explicava seu comportamento de acordo com uma filosofia de amor livre. “O
amor”, escreveria ele, “difere do ouro e do barro: / O que divide não subtrai”. As
suas paixões – Mary, liberdade, poesia, ateísmo – significavam mais para ele do que
a responsabilidade por uma família alienada e terrena (HITCHCOCK, 2010, p. 24).
25

Essa “fuga”, “viagem” ou até mesmo “sequestro” segundo considerava o pai de Mary
Shelley (HITCHCOCK, 2010, p. 25), custou caro aos dois: o pai de Percy “sentiu-se
enfurecido mais pela vergonha sobre a família do que por qualquer outra coisa e bloqueou
perversamente o acesso do filho a qualquer herança”; William Godwin, já não mais tão
popular como “autor radical”, aproveitou-se da situação e “transformou o sequestro da filha e
da enteada18 por Percy, como o considerava, em uma oportunidade para um tipo cavalheiresco
de chantagem” (HITCHCOCK, 2010, p. 25). Contudo, o evento mais trágico viria a ser o
suicídio de ex-esposa de Percy:

Em 10 de dezembro [de 1816] o corpo de uma mulher foi encontrado


flutuando no Serpentine, o lago do Hyde Park. Correram rumores de que estivesse
grávida. Em 16 de dezembro Percy recebeu uma carta do seu advogado, Thomas
Hookham, a quem ele confiara cuidar de Harriet e dos dois filhos. Hookham os
perdera de vista, começava a carta. “Enquanto ainda me esforçava para descobrir os
endereços da sra. Shelley”, explicava ele, “deram-me informações de que ela estava
morta – de que acabara com a própria vida.” Harriet Shelley se atirara no Serpentine;
se, e de quem, ela estava grávida, nunca saberemos. Ela deixou uma carta para a
irmã, em que incluía uma mensagem para “meu querido Bysshe”: “Se você nunca
tivesse me deixado eu poderia viver, mas assim mesmo eu o perdoo por livre
vontade e desejo que aproveite a felicidade de que me privou” (HITCHCOCK,
2010, p. 70).

No fim das contas, a morte de Harriet serviu para fortalecer ainda mais os laços do
casal aventureiro: 20 dias depois, a 30 de dezembro, Percy e Mary se casaram. Entre 1814 e
1816, o casal já passara por uma séria de infortúnios e momentos de tristeza. A própria Mary
já havia engravidado pelo menos duas vezes, e nas duas vezes as crianças não sobreviveram.19
Agora, vivendo sobre a condição oficial de casal, os dois precisavam buscar uma
melhor condição de vida para dar sustento a si e a prole (William – ainda não falecido – e os
filhos de Percy). É justamente em 1816 que Mary inicia a escrita de Frankenstein,
profundamente influenciada e “tocada” pela presença de Percy.

[...] minha vida foi se enchendo de ocupações e responsabilidades, e a


realidade tomou conta da imaginação. Meu marido, contudo, desde o princípio me
incentivou, e com não pouca energia, para que fizesse justiça a meus pais e incluísse
meu nome nas páginas da fama. Todo tempo ele me instigou para que eu granjeasse
reputação literária, a qual eu própria intencionava buscar, ainda que posteriormente
tenha me tornado tão indiferente a ela. Naquelas alturas ele desejava que eu
escrevesse, não tanto sob o princípio de que devesse produzir qualquer coisa digna
de atenção e louvor, mas para que ele pudesse, ele próprio, julgar quanto trazia
comigo da promessa de obras melhores. Eu, contudo, nada fiz. As viagens e os
cuidados da família tomavam meu tempo; e o estudo baseado em leituras e o

18
Junto com Percy e Mary, viajara também Claire Clairmont, filha da segunda companheira de Godwin.
19
O primeiro filho do casal, William, nascera em janeiro de 1816. Contudo, a criança sequer chegara a fase
adulta. Apenas Percy Florence Shelley, segundo filho do casal, sobrevivera por mais tempo (nascera em 1819 e
morrera em 1889).
26

enriquecimento de minhas ideias na comunicação com seu ainda mais cultivado


pensamento eram, em termos de literatura, tudo que empenhavam minha atenção
(SHELLEY, 2013, p. 26-27).

O esforço de Mary para “enriquecer suas ideias” é de fato notável. Entre suas leituras,
podemos destacar: Ensaio sobre o entendimento humano, de John Locke; Vidas de nobres
gregos e romanos, de Plutarco; Pamela, de Samuel Richardson20; The Old Familiar Faces, de
Charles Lamb; The Vicar Of Wakefield, de Olivier Goldsmith; Childe Harold’s Pilgrimage,
de Lord Byron; Mont Blanc e On mutability, de Percy Shelley21; Caleb Williams e St. Leo, de
seu pai William Godwin; The Monk, de Matthew Gregory Lewis; Mysteries Of Udolpho e The
Italian, de Ann Radcliffe; Castle Of Otranto, de Horace Walpole; Wieland, or the
Transformation e Edgar Huntley, de Charles Brockden Brown; Dreams e La Nouvelle
Heloïse, de Jean-Jacques Rousseau; Le Peré de Famille e Lettre su ler Sourds-Muets, de
Diderot; Traité de Sensations, de Condillac; Historie Naturel, de Buffon.22 Poderíamos, ainda,
incluir:

[...] a Bíblia, obras de Ésquilo, Milton, Coleridge e Shakespeare. Frankenstein sacia


sua sede de criação de vida lendo Paracelso, Cornélio Agripa e Alberto Magno.
Igualmente, o Monstro estabelece identidade própria ao travar (precocemente)
conhecimento com as Ruínas dos Impérios, de Volney, com O Paraíso Perdido, de
Milton, com as Vidas, de Plutarco, com As lamentações do jovem Werther, de
Goethe [...]. Ao dirigir-se a seu criador, o Monstro brada: “Eu deveria ter sido vosso
Adão”, para logo depois comparar-se a Satã. A natureza intertextual do romance é
assinalada em seu próprio subtítulo: “O moderno Prometeu” (JAMESON apud
GIASSONE, 1999, p. 42-43).23

Com seu intelecto enriquecido, Mary dava início a escrita de Frankenstein, com seu
marido encarregado de avaliar e apontar que caminhos a jovem deveria seguir em sua
empreitada.

Os manuscritos de Frankenstein mostram com que intimidade os Shelley


colaboraram no romance, com uma camada subjacente de palavras escritas por Mary
Shelley na sua caligrafia grande, angular e alta a ponto de tocar a linha de cima, e a
escrita ligeiramente mais intricada e quase ininteligível de Percy Bysshe Shelley.
“Eu lhe dou carta branca para fazer as alterações que quiser”, ela lhe escreveu

20
HITCHCOCK, 2010, p. 54-56; p. 69.
21
Cf. SHELLEY, 2013.
22
FLORESCU, 1998, p. 153-157.
23
Essa gama de leituras de Mary nos atesta uma variedade de abordagens que alimentava o intelecto da autora:
filosofia, história, prosa e poesia. Um misto íntimo de assuntos que discutem temas da realidade e da ficção,
intimidade esta tão importante para a elaboração de Frankenstein, e que nos atesta uma “espantosa erudição,
ainda que esta fosse, em alguns sentidos, acompanhada da imaturidade adolescente da autora” (GIASSONE,
1999, p. 44).
27

durante os últimos dias da revisão. Cada leitor riscava, acrescentava, rearranjava


palavras, nenhum de uma maneira distinta da do outro, como se os dois editores
trabalhassem como um só. Então a autora decidiu transcrever a versão editada,
gastando dias com o fito de criar uma cópia corrigida que pudesse ser apresentada
para publicação. Em maio [de 1817], Percy Bysshe assumiu o trabalho, copiando a
última dezena de páginas. Se dermos crédito ao relato de Mary, de quinze anos
depois, um prefácio breve para o romance “foi inteiramente escrito por ele”, ainda
que na voz da romancista, pedindo a compreensão do leitor pra a história fantástica
(HITCHCOCK, 2010, p. 79-80).

E, em 1818 nascia Frankenstein, ou o Prometeu moderno. Até no título da obra Percy


se fazia presente: Prometeu, figura mitológica clássica, inspirava uma geração de escritores
românticos, entre eles Percy, que via na personagem “o ideal positivo de progresso mediante
o desenvolvimento da ciência e da indústria” (GIASSONE, 1999, p. 78). Aliás, dois anos
depois, em 1820, Percy publicaria Prometheus Unbound (Prometeu Libertado), sendo que
Prometeu “representa o titã como um líder revolucionário que, após séculos de prisão e
sofrimento, se liberta do jugo tirânico de Júpiter, e pode então sonhar com uma raça de ‘novos
homens’, livres, como ele, das forças opressoras” (GIASSONE, 1999, p. 87). 24
O progressismo de Percy é absorvido por sua esposa; aliás, progressismo esse
pertencente a toda uma geração pós-industrial e, como veremos no próximo capítulo, muito
bem captado por Mary.
Contudo, a atmosfera que pairava sobre o casal e a confecção de Frankenstein
englobava outros personagens importantes à nossa narrativa: afinal de contas, o momento que
propiciou a elaboração do clássico literário fora a participação de Mary em uma conversa
filosófica entre dois de seus companheiros de vida. Mary teve o privilégio de estar presente
enquanto Percy Shelley e Lord Byron, dois gigantes da literatura inglesa, discutiam
“princípios vitais”. Leitora de Bryon, Mary, também, foi influenciada por suas ideias.

24
Como veremos no próximo capítulo, Mary, Percy e Prometeu convergem profundamente.
28

2.3 OS QUATRO LIBERTINOS: UM CASAL DE ROMÂNTICOS E UMA DUPLA DE


EXCÊNTRICOS

1816 foi um ano ímpar na trajetória de Frankenstein: pois, marcou o seu início. Escrito
na Suíça, terra natal de Jean-Jacques Rousseau, a obra-prima de Mary Shelley carrega em sua
história os nomes de grandes literatos ingleses. Além das influências de Percy, já apontadas
acima, Frankenstein, também, é devedor da presença do controverso Lord Byron (1788-1824)
De ascendência aristocrática, George Gordon, o Lord Byron, fora um importante poeta
da segunda geração do romantismo inglês, ao lado de Percy. Aliás, Percy e Byron foram
grandes amigos, que se conheceram na Suíça e conviveram por algum tempo numa pequena
vila chamada de Diodati.
Assim como Percy, Lord Byron, no quesito controvérsias, não perdia em nada para seu
companheiro. Saíra de Londres rumo à Genebra por conta de rumores sobre sua
personalidade. Sua própria esposa chegou a solicitar uma consulta de Byron a um médico para
avaliar sua saúde mental: dado como “são”, sua então companheira Annabella Milbanke
concluiu que seu marido só poderia ser “imoral” e “perigoso”. 25 Ora, se as atitudes
“inadequadas” de Byron não podiam ser explicadas pela ciência, então este homem só podia
ser perverso por consciência: dentre as acusações sociais que sofrera, Byron fora apontado
como incestuoso e sodomita; nesse ínterim, Annabella já havia solicitado a separação.26
Sua herança nobiliárquica se deu aos dez anos de idade, quando tomou posse da
propriedade de sua família após a morte de seu tio-avô George Noel Gordon.27 No entanto,
pouco Byron tinha do que se orgulhar de seus “privilégios de nobreza”: o “patrimônio
hereditário incluía dívidas e má fama por parte de pai, e a mãe enfrentara dificuldades para
sustentá-lo sozinho” (HITCKCOCK, 2010, p. 31). Sua principal obra poética é A
peregrinação de Childe Harold (1812), tornando-o famoso e bem-sucedido literariamente na
Inglaterra.28
Polêmicos e controversos, Lord Byron e Percy Shelley fazem parte do panteão dos
grandes escritores ingleses. Influenciados por sua época, esses dois amigos viveram
intensamente suas emoções tanto no plano real quanto fictício. Influenciados pelas atmosferas
revolucionárias do século XVIII, suas produções possuem profundas inspirações em assuntos

25
HITCHCOCK, 2010, p. 27.
26
HITCHCOCK, 2010, p. 27.
27
HITCHCOCK, 2010, p. 31.
28
HITCHCOCK, 2010, p. 31-32.
29

socialmente debatidos.29 “Se fôssemos resumir as relações entre o artista e a sociedade nesta
época em uma só frase, poderíamos dizer que a Revolução Francesa inspirava-o com seu
exemplo, [...] a revolução industrial com seu horror” (HOBSBAWM, 2014, p. 395). Byron e
Percy, assim como outros escritores, não tinham apenas o compromisso com a arte, mas o
compromisso com questões políticas, sociais e culturais. A arte se fazia via de expressão das
subjetividades desses criadores. E o mais curioso é a validade intelectual que essas obras
obtinham: para além da narrativa crítica de pensadores sociais, as narrativas simbólicas e
metafóricas da poesia e da literatura de ficção alçavam seu espaço como legítimas escrituras
reflexivas, com valor analítico (em alguns casos) tal qual um tratado político ou social:

Nunca é prudente negligenciar as razões do coração que a própria razão desconhece.


Como pensadores dentro dos limites ditados pelos economistas e físicos, os poetas
se encontravam sobrepujados, mas não só viam mais profundamente que aqueles,
como também às vezes com mais clareza. [...] A crítica romântica do mundo,
embora mal definida, não era, portanto, desprezível (HOBSBAWM, 2014, p. 406).

Como bem fica claro acima, essa escrita poética que às vezes se faz mais clara do que
a crítica dos cientistas é uma das características do Romantismo, movimento literário que se
fez contundente principalmente na Inglaterra, França e Alemanha.30 Como já dito, Byron e
Percy fazem parte da segunda geração desse movimento, nos quais muitos de seus problemas
e valores irão influenciar a escrita de Mary Shelley. No entanto, definir o Romantismo é um
desafio um tanto complexo. Em apenas uma página de seu A era das revoluções Hobsbawm
apresenta quatro perspectivas de “mentes românticas” diferentes, cada uma com uma
concepção singular. Contudo, o que podemos inferir é que a escrita romântica se faz através
de uma calorosa expressão sentimental, onde emoções literárias se confundem com emoções
de literatos. O movimento romântico, em síntese, deixa:

[...] evidente o que ele combatia: o meio termo. Qualquer que seja seu conteúdo, era
um credo extremista. Os artistas e pensadores românticos [...] são encontrados na
extrema esquerda, [...] ou na extrema direita, [...] como saltando da esquerda para a
direita, [...] como saltando do monarquismo para a extrema esquerda.
(HOBSBAWM, 2014, p. 399-400).

29
HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções, 1789-1848. 33ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 395.
30
HOBSBAWM, 2014, p. 399.
30

De fato, tanto o ateísmo declarado de Percy quanto a vida “pecaminosa” de Byron se


reproduzem em suas obras.31 Além desses aspectos, torna-se válido ressaltar outros cinco
pontos pertinentes aos românticos que Hobsbawm nos ajuda a esclarecer.
Apesar de profundamente críticos, estas personagens britânicas estampavam o
semblante da juventude: “Nunca houve um período para jovens artistas, vivos ou mortos,
como o período romântico: (...) Byron tornou-se famoso da noite para o dia aos 24 anos, idade
em que [Percy] Shelley já era famoso” (HOBSBAWM, 2014, p. 401). Eram rebeldes,
criativos e industriosos. Escreviam longos poemas marcados pela profunda reflexão social e
humana. Só o poema Rainha Mab de Percy possui 2.305 linhas versadas, contendo notas de
rodapé de cunho explicativo tão densas que ampliavam o número de páginas.32 Segundo
afirma Hitchcock: “[Rainha Mab] era um empreendimento presunçoso para um homem de
apenas 20 anos de idade. Seu conteúdo [...] contrapunha [...] fantasia imaginativa a fato
científico” (2010, p. 33). Entretanto, gênios românticos geralmente estavam só, sem
patrocínio, reconhecimento profissional ou aceitação do grande público (fatos que, ao menos
no quesito reconhecimento público, não contemplam Byron nem Percy pois, como já fora
dito, ambos obtiveram sucesso, ainda, em vida, mesmo com a represália de certos setores da
sociedade).33 Além disso, a “não compreensão” desses “gênios” por parte da sociedade
poderia se fazer através de suas posições e posturas: eram, em geral, pobres e revolucionários,
duas características que não satisfaziam o “padrão social” de certas classes “tradicionalistas”,
tal qual já fora abordado aqui no primeiro tópico. Afora estes pontos que caracterizam de
forma geral o Romantismo, outros dois são de suma importância até mesmo para entendermos
a própria produção de Mary Shelley.
Como rebeldes que eram, assim como sentimentais e desprovidos de riquezas, os
românticos se intencionavam a chocar o público.34 Ideias consideradas subversivas no campo
político ou “imorais” na esfera moral-social estão presentes nos escritos desses e dessas

31
Infelizmente, devido a foco estabelecido por essa obra e, portanto, suas limitações temáticas e analíticas, não
nos aprofundaremos na interpretação dos escritos daqueles dois e suas relações com o momento social, político e
cultural de sua época. O máximo que podemos oferecer ao leitor é um breve panorama de quem foram, suas
expressivas produções e suas parcelas de contribuição na vida pessoal e artística de Mary Shelley.
32
HITCHCOCK, 2010, p. 33.
33
HOBSBAWM, 2014, p. 403.
34
“A juventude e os ‘gênios’ mal compreendidos produziam a [...] moda de atormentar e chocar os burgueses, a
ligação com o submundo e a boemia (termos estes que adquiriram sua atual conotação durante o período
romântico), o gosto pela loucura ou por coisas normalmente censuradas pelos respeitáveis padrões e instituições.
Mas isto era só uma pequena parte do Romantismo” (HOBSBAWM, 2014, p. 404).
31

escritoras.35 A crítica ao racionalismo e mecanicismo aprimorados após a Revolução


Industrial, também, é uma marca dos românticos. Tais autores e autoras “desconfiavam do
resoluto raciocínio mecânico e materialista do século XVIII” (HOBSBAWM, 2014, p. 405).
No caso de Frankenstein, essa crítica é pertinente e clara: ao mesmo tempo em que aparenta
estabelecer o espaço de consagração da ciência, também favorece a um olhar mais atento a
percepção de seus males; valorização do sucesso profissional a todo custo e do apego a
materialidade da vida em detrimento dos sentimentos mais “puros” é uma das “pautas” de
Mary.
Por fim, temos John William Polidori (1795-1821), médico e companheiro de Lord
Byron.36 Sua importância recai na sua contribuição literária em resposta ao desafio proposto
pelo último: surpreendentemente, apenas ele e Mary Shelley – pessoas sem nenhuma
reputação literária – foram capazes de produzir dois “mitos” literários eternos (Polidori, com
o Vampiro, e Mary, com sua criatura). Outra semelhança entre os dois é o prazer pela escrita:
apesar de médico, Polidori também aspirava a uma carreira literária, e até já tinha ensaiado
alguns textos; entretanto, viver ao lado do literariamente bem-sucedido Lord Byron projetava
sobre ele uma sombra nebulosa.37
Fora em meio a estas figuras singulares, curiosas e interessantes que Mary
desenvolvera sua mais importante obra. Um nobre poeta “perverso”, um médico sedento por
arte e um ateu amoroso: pessoas privilegiadas por terem convivido com esta tão importante
escritora. Eis o grupo dos “literatos libertinos”.38

35
De acordo com Hobsbawm (2014), fora justamente no período de produção das obras românticas que as
mulheres, principalmente as jovens, despontaram no cenário artístico com autonomia e em quantidade
significativa.
36
HITCHCOCK, 2010, p. 27.
37
HITCHCOCK, 2010, p. 42.
38
“John Polidori bebia demais, cometeu extravagâncias e provocou a ira das autoridades de Genebra, que
apareceram à sua procura. Corriam rumores em Genebra de que o pequeno clã de ingleses levava ‘une vie du
libertinagem les plus effronté [uma vida da mais desabrida libertinagem]’, como [Percy] Shelley escreveria
depois a um amigo. ‘Disseram que havíamos formado um pacto para ultrajar tudo o que era considerado mais
sagrado na sociedade humana’, recordou ele. ‘Ateísmo, incesto e muitos outras coisas – às vezes ridículas e às
vezes terríveis – em imputadas a nós. [...]’” (HITCHCOCK, 2010, p. 67).
32

3 FRANKENSTEIN DESPEDAÇADO: MITO, ARTE E CIÊNCIA

A narrativa de Frankenstein, ou o Prometeu moderno, é avaliada sob o olhar de alguns


intelectuais como o mito dos tempos modernos (GIASSONE, 1999; HITCHCOCK, 2010;
LECERCLE, 1991). Produzido entre 1816 e 1817, publicado em 1818 e editado duas vezes,
em 1823 e 1831, com algumas relativas alterações no enredo e na estrutura, Frankenstein é
interpretado à luz de uma história que conta sobre as origens de um novo indivíduo, fruto de
uma nova “era”, a era das revoluções de Eric Hobsbawm, marcada pela sua ruptura radical e
eufórica com a tradição, o status quo, o establishment. A partir da segunda metade do século
XVIII, o mundo fora impactado por duas nações que lideraram movimentos de
transição/transformação, em um processo de morte-nascimento de uma perspectiva de
enxergar o mundo, propiciando a homens e mulheres a abertura de caminhos diversos, ainda
que sem indicar qual seguir, ou simplesmente o mais conveniente (HOBSBAWM, 2013).
Uma nova forma de ser, pensar e agir adentrava no cenário mental, principalmente europeu,
devido ao desenrolar da “dupla revolução”, como afirma Hobsbawm (2014); a Revolução
Francesa e a Revolução Industrial Inglesa são, segundo o historiador britânico, marcos na
ruptura com o padrão político e econômico, respectivamente (HOBSBAWM, 2014), dando
vazão a outras manifestações de vanguarda, como na literatura (seja em prosa ou poesia) e na
ciência. Naquela primeira, ilustres literatos (ou não) utilizaram o universo fantasioso e
representativo da ficção para dar vida aos seus anseios mais profundos, talvez antes
reprimidos, talvez agora despertados, acerca de suas formas de enxergarem a sociedade, a
cultura, e, com bastante polêmica, a religião, encarada como espaço para a discussão do
paradigma do “homem submisso” frente ao poder sagrado – não à toa, não poucos escritores
dedicaram algumas de suas linhas a exaltação de personagens históricos (fictícios ou não)
“transgressores”, tendo Satã como um de seus grandes representantes (HOBSBAWM, 2014).
No universo científico, o desenvolvimento das ferramentas, dos saberes e das tecnologias
(ainda que simples, se vista aos olhos do presente) deu grande espaço aos seus praticantes
para se perceberam como indivíduos criadores, independentes e capazes de dar vida a algo ou
alguma coisa (seja como metáfora, seja como afirmação literal). Os “avanços” na ciência da
virada do século XVIII para o XIX possibilitaram, tanto a cientistas como a população de
forma geral,

[...] reinos de reflexão tão fantásticos quanto os que ocorriam à imaginação de um


poeta. Na verdade, para alguns, a filosofia, a poesia e a ciência convergiam na
promessa de mudanças revolucionárias no conhecimento e na visão de mundo da
humanidade (HITCHCOCK, 2010, p. 37).
33

Nesse contexto, de contínuo e progressivo desenvolvimento, Frankenstein é


concebido, ao mesmo tempo obra poética, ao mesmo tempo paradigma científico. E, ainda
mais discutível, um possível mito dos tempos modernos.
34

3.1 FRANKENSTEIN, O PROMETEU MODERNO

Uma rápida primeira vista sobre o título deste tópico é capaz de possibilitar uma
leitura enganosa: é simplesmente a cópia do título original da obra, tanta vezes aqui escrito?
Pois bem, o título acima não é o original da obra. Diferente do título de Mary Shelley,
neste tópico nota-se a falta do “ou”, o que, a priori, altera semanticamente a interpretação do
título. Frankenstein, o Prometeu moderno é a afirmação categórica de que esta personagem
encarna, em sua modernidade, a simbologia do mito clássico de Prometeu. Contudo,
analisado mais a fundo, a presença do “ou” também pode atestar a mesma interpretação.
Ainda assim, dar este título ao tópico simboliza um leve ato de independência frente a
apropriação da produção de Mary. Assim como o cinema, a literatura, a música, os
quadrinhos, etc., desfrutaram de uma inconfundível licença poética para suas versões da
narrativa original, auxilia-se este trabalho de uma licença “poético-científica” para sua escrita.
Victor Frankenstein é, portanto, ao olhar desta pesquisa, a versão prometeica da
contemporaneidade. Mais do que isso: Victor é prometeico, pois baseado na história daquele
mito; contudo, a particularidade de sua época, o simples fato de ser produzido no século XIX,
na Era Contemporânea (como da definição da historiografia) o faz completamente original. A
trajetória dessa personagem carrega a carga de seu tempo, sendo a síntese dos anseios, medos,
dúvidas, conflitos, etc., de parte da sociedade inglesa. Como veremos nos tópicos posteriores,
esse “mito”, de base filosófica e poética greco-romana, corresponde profundamente a uma
lógica de vivências e experiências de uma Inglaterra da primeira metade dos oitocentos, que
ainda percorria tortuosos caminhos para a adaptação aos novos tempos. Mas isto é um assunto
posterior. Neste espaço, cabe analisar as semelhanças (ainda que sejam ao revés, ou seja,
acontecimentos semelhantes, mas protagonizados em circunstâncias e formas diferentes) entre
as figuras de Prometeu e Frankenstein, contribuindo para que o leitor e a leitora conheçam
mais a fundo as partes que compõem essa obra, assim como, conectada aos tópicos
subjacentes, ajude a compreender o porquê desse clássico da literatura ser responsável, como
afirmam alguns, por delinear um “mito moderno”.39

39
Frankenstein enquanto mito, em Lecercle: “[...] Frankenstein seria um grande mito moderno, que faz vibrar
uma corda no ponto mais profundo de nossa natureza humana, que logo se tornou intemporal e se livrou das
contingências históricas de seu nascimento [...]. [...] A conjuntura histórica não se permite ser esquecida, e nem
eu mesmo acredito na minha explicação intemporal, pois, em sua própria formulação ela não escapa de um
paradoxo: o mito é intemporal, porém moderno. Contrariamente à maior parte de nossos mitos, sua origem não é
popular. Em Frankenstein, temos um autor, uma data e até mesmo um lugar, já que conhecemos a circunstâncias
precisas de sua concepção” (LECERCLE, 1991, p. 12). Em Giassone: “[...] Mary Shelley construiu [...] seu
romance a partir de um mosaico de citações teológicas, filosóficas, literárias, morais e científicas, fundamentais
para a ascensão de Frankenstein como mito moderno [...]” (GIASSONE, 1999, p. 38); “Os críticos literários
contemporâneos que se voltaram para a análise de desta obra, como Harold Bloom e José Paulo Paes, são
35

A nós, tão acostumados com a ideia de mito em sociedades antigas ou em outras de


modus vivendi não urbano nem industrial, como alguns grupos tribais ainda existentes pelo
mundo, parece equivocado falar de mito no mundo ocidental pós-industrial. Mito hoje, além
de seu papel histórico de falar sobre seu tempo, seus indivíduos e os sentimentos destes,
também é visto por nós como uma herança narrativa que entretêm e que dialoga com nossas
emoções.40 É o “exótico” literário que enobrece nosso intelecto. No entanto, a empreitada de
Victor, que se torna capaz, por si só, de ter em mãos a possibilidade de criar aquilo que antes
era apenas do domínio do sagrado – a vida – se encontra presente em um período onde
homens e mulheres passaram a se adaptar a uma sociedade em que as forças da natureza
rapidamente vão sendo dominadas e transformadas; o artificial passa a ser produzido em larga
escala e impressiona povos pela sua dimensão grandiosa e complexa, realizada através de
feitos práticos e palpáveis. Frankenstein nos fala sobre esse período: narra o domínio sobre a
natureza em suas mais variadas instâncias; trata sobre a transferência das responsabilidades
divinas para os humanos da capacidade de criar; fala sobre a criação, a criação daquilo que
antes era só da competência divina: a origem da vida, mistério antigo que alimentou sistemas
de crenças dos mais variados povos.41 A história da personagem Victor Frankenstein, que
empresta seu sobrenome ao título do livro, é a história de um homem que, assim como
Prometeu, utilizou-se de um dom para possibilitar o domínio e manipulação do natural.42 É
por conta dessas características que, como já dito, a “[...] história [de Frankenstein] foi
chamada de o primeiro mito dos tempos modernos” (HITCHCOCK, 2010, p. 10).

Ele surgiu num momento decisivo da história ocidental, quando o universo moral
estava mudando e quando alguém ousou acreditar que os avanços no conhecimento
científico prometiam o domínio humano sobre o que, por séculos, fora só de Deus.

unânimes em afirmar que, para além de sua ficcionalidade, Frankenstein pode ser considerado um mito
moderno, figurando ao lado de clássicos como Édipo-rei, Hamlet, Fausto e Drácula, para citar alguns”
(GIASSONE, 1999, p. 41).
40
“As religiões da Grécia e da Roma antigas desapareceram. As chamadas divindades do Olimpo não têm mais
um só homem que as cultue, entre os vivos. Já não pertecem à teologia, mas à literatura e ao bom gosto. Ainda
persistem, e persistirão, pois estão demasiadamente vinculadas às mais notáveis produções da poesia e das belas
artes, antigas e modernas, para caírem no esquecimento” (BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia:
história de deuses e heróis. 34ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, p. 13).
41
“A criação do mundo é um problema que, muito naturalmente, desperta a curiosidade do homem, seu
habitante. Os antigos pagãos, que não dispunham, sobre o assunto, das informações de que dispomos,
procedentes das escrituras, tinham sua própria versão sobre o acontecimento [...]” (BULFINCH, 2006, p. 23).
42
“Portanto, assim como o roubo do fogo do conhecimento marca a transgressão fatal de Prometeu, a descoberta
da eletricidade inicia a caminha de Frankenstein rumo à transgressão das leis naturais [...]” (GIASSONE, 1999,
51). Enquanto o fogo prometeico é do domínio dos deuses, a eletricidade em Frankenstein se quer é vista da
mesma forma: é um fenômeno físico, observável e analisável, controlada por fatores empíricos, não por ações
“épicas”.
36

A história do monstro de Frankenstein é um mito de reivindicação de um


conhecimento há muito esquecido e de arcar com as consequências (HITCHCOCK,
2010, p. 10).

Portanto, como se percebe, diferente do mito clássico, Victor não se utiliza de forças
místicas: diferente de “Prometeu, que, com a ajuda de Minerva43, subiu ao céu e acendeu sua
tocha no carro do sol, trazendo o fogo para o homem”, o que “assegurou sua superioridade
sobre todos os outros animais” (BULFINCH, 2006, p. 24), Frankenstein se utiliza das
ferramentas proporcionadas pelos “avanços que dia a dia ocorriam nos campos da ciência e da
mecânica”, passando “alguns meses coletando e organizando com sucesso os materiais”
(SHELLEY, 2013, p. 75). As experiências de Victor são frutos dos “[...] efeitos da Primeira
Revolução Industrial e ao desenvolvimento da ciência e da técnica” (GIASSONE, 1999, p.
43).44 Mas as comparações não param por aí. Quanto mais nos aprofundamos na pesquisa,
mais nos damos com outras pertinentes questões entre o clássico e o moderno mito:

Prometeu já obcecava os pensamentos de Shelley e seus amigos em 1816.


Na Villa Diodati, naquele mês de julho, Lord Byron compôs um poema lírico para
ele. “Titã”, escreveu ele, “teu crime divino foi ser bom, (...) E fortaleceu o Homem
com sua própria mente.” Desafiando o poder olímpico em favor dos mortais
terrestres, Prometeu torna-se um intermediário, nem deus nem humano, mas o
“protótipo imortal do homem como o rebelde original e senhor do seu destino”
(HITCHCOCK, 2010, p. 60).

Enquanto Prometeu desafia o “poder olímpico em favor dos mortais terrestres”, Victor
Frankenstein, ainda jovem, já imaginava poder “[...] livrar o corpo humano da doença e torná-
lo invulnerável a tudo que não fosse uma morte violenta – que glória não se seguiria a
tamanha descoberta!” (SHELLEY, 2013, p. 62). Assim como a personagem clássica, Victor
se propõe a trazer melhorias para a vida humana – claro, sem ignorar as vantagens próprias
que conquistaria, como reconhecimento e prestígio. É o que também nos atesta Bulfinch:
“Prometeu tem sido um assunto preferido dos poetas. Representa o amigo da humanidade,
que se colocou em sua defesa, [...] e que ensinou aos homens a civilização e as artes”

43
Minerva – Atena, para os gregos – era a deusa da sabedoria (também considerada uma divindade guerreira,
apenas para os combates de caráter defensivo). Para maiores informações, consultar BULFINCH, 2006, p. 113-
117.
44
Nesse sentido, é sempre importante ressaltar que o avanço científico foi de fato possibilitado pela
industrialização, mas não foi aquela primeira fundamental a esta última: “Qualquer que tenha sido a razão do
avanço britânico, ele não se deveu à superioridade tecnológica e científica” (HOBSBAWM, 2014, p. 61). As
grandes realizações inglesas na indústria não se devem a homens teóricos e “científicos”: seus desafios eram
solucionados por “um número suficiente de homens com escolaridade comum, familiarizados com dispositivos
mecânicos simples e [...] dotados de experiência prática e iniciativa” (HOBSBAWM, 2013, p. 29). Ainda assim,
estabelecendo campos de relativismo, devemos pontuar que a “praticidade” da industrialização “não significava
que os primeiros industriais não estivessem constantemente interessados na ciência [...] [ainda que, novamente
repetindo, estivessem] em busca de seus benefícios práticos” [Grifo meu] (HOBSBAWM, 2014, p. 63).
37

(BULFINCH, 2006, p. 28). Como já lembrado por Hitchcock na citação acima, as impressões
da história de Prometeu refletidas em dois grandes representantes dos românticos como Byron
e Percy nos mostra o quanto o gênero literário daqueles buscou uma escrita que dialogasse
com os que se voltam contra ao status quo, deixando evidente que a vontade que deve
prevalecer é a vontade individual; nesse mesmo sentido, Hobsbawm (2014) nos fala sobre as
personagens famosas (reais ou fictícias) que até aquele momento alimentavam a história do
mundo: desde que fossem conquistadoras ou revolucionárias – ou mesmo pecadoras, como
Satã –, que transpunham os limites impostos tanto pelos próprios homens como pela própria
existência, eram, em não raros casos, inspiração para grandes obras.
Outro aspecto importante que aproxima Victor e Prometeu está relacionado a criação
de seus seres. Enquanto “Prometeu [...] fez o homem à semelhança dos deuses” (BULFINCH,
2006, p. 23), Victor se encarregou de “[...] produzir um ser de proporções gigantescas [...]”
(SHELLEY, 2013, p. 75). No caso de Prometeu, a semelhança em questão é puramente física;
no entanto, como os deuses na mitologia greco-romana advêm primeiro que os mortais, ser
semelhante aos seres divinos é um prestígio; já Victor, que atua no terreno da ciência e do
empirismo, incapaz de criar “deuses” (algo fora de seu propósito, tendo em vista que sua meta
era justamente se apropriar da capacidade divina), dá vida a sua criatura à forma dos homens,
ainda que com proporções incomuns – “[...] ou seja, de mais ou menos dois metros e meio e
proporcionalmente grande” (SHELLEY, 2013, p. 75). Em ambos o casos, as criaturas são
feitas às semelhanças físicas de seus predecessores, ainda que com alterações.
Como a semelhança é meramente física, é interessante notar que Prometeu dá origem a
seres com habilidades abaixo das daqueles dos deuses, sem lhes conferir poderes; em
contrariedade, Victor produz um ser que seja fisicamente superior a ele e seus semelhantes.
Naquele primeiro, vemos a necessidade de manter intacta a supremacia do universo sagrado,
através da constituição de seres com “capacidades inferiores”; no segundo, vemos um
cientista que pretende criar uma “espécie de seres superiores”, mas que estes sejam, apesar de
suas capacidades excepcionais, obedientes ao seu mestre. Em ambos os casos, há, aos menos
em teoria, a prudência frente à criação.45

45
A prudência em Victor: “Uma nova espécie me abençoaria como seu criador e origem; muitas criaturas felizes
e excelentes deveriam a mim sua existência” (SHELLEY, 2013, p. 75); a prudência em Prometeu: “O nome
[Prometeu] deriva do adjetivo προμηθής, ‘previdente, prudente’, e significa, portanto, ‘o que pensa à frente, que
prevê’ [...]. [...] A hipótese de que προμηθής tenha sofrido a influência analógica de μῆτις é improvável [...],
apesar de que de μῆτις derivam os principais epítetos de Prometeu: αἰολόμητις, ‘de mente ágil’ [...],
ἀγκυλομήτης, ‘de conselhos tortuosos’ [...], αἰπυμήτης, ‘de pensamentos elevados’ [...], e também a expressão
πάντων πέρι μήδεα εἰδώς, ‘o que tem os pensamentos mais certos’ [...]” (PELLIZER, Ezio (Org).
PROMETEU. In: ______ Dicionário Etimológico da Mitologia Grega. Disponível em:
<http://demgol.units.it/pdf/demgol_pt.pdf>, p. 239. Acesso em 5 de janeiro de 2016).
38

Ao menos em teoria; na prática, os feitos de ambos foram acompanhados de penosas


consequências. Este é outro elemento que aproxima os dois: o castigo.
Já vimos que Prometeu dera origem aos mortais; também vimos que atuou em seu
auxílio, para que elevassem seu modo de vida. Isto lhe custou caro: ao roubar o fogo sagrado,
Júpiter/Zeus:

[...] mandou acorrentá-lo num rochedo do Cáucaso, onde um abutre lhe arrancava o
fígado, que se renovava à medida que era devorado. Essa tortura poderia terminar a
qualquer momento, se Prometeu se resignasse a submeter-se ao seu opressor, pois
era senhor de um segredo do qual dependia a estabilidade do trono de Jove 46 e, se o
tivesse rebaixado, imediatamente teria obtido graça. Não se rebaixou a fazê-lo,
porém. Tornou-se assim símbolo da abnegada resistência a um sofrimento imerecido
e da força de vontade de resistir à opressão (BULFINCH, 2006, p. 28).

Além desses efeitos diretos a Prometeu, sua própria criação, a humanidade, também
sofrera com sua atitude.
Como vimos, o ideal de Prometeu ao roubar o fogo sagrado era possibilitar uma
melhor condição de vida. Não à toa, o fogo:

[...] forneceu o meio de construir armas com que subjugou os animais e as


ferramentas com que cultivou a terra; aquecer sua morada, de maneira a tornar-se
relativamente independente do clima, e, finalmente, criar a arte da cunhagem das
moedas, que ampliou e facilitou o comércio (BULFINCH, 2006, p.24).

Contudo, este feito possui outra concepção, se visto por um ângulo histórico-
mitológico diferente.
Fornecer aos homens a capacidade de “domar” os recursos ao seu redor também pode
ser visto como a inauguração de um novo período mitológico em que, diferente de antes, os
homens passam a se dedicar aos esforços do trabalho. Antes do roubo do fogo, a humanidade
da mitologia greco-romana vivia sob as benesses da Idade do Ouro. “A terra produzia tudo
necessário para o homem, sem que este se desse ao trabalho de lavrar ou colher”
(BULFINCH, 2006, p.25). A partir de então, sucediam-se as idades de Prata, do Cobre, do
Bronze e do Ferro, em que os homens passam a confrontar as necessidades da habitação, da
produção de alimento, da busca de riquezas minerais, da produção de utensílios, além dos
conflitos – bélicos – entre si.47

46
Outra designação para Zeus/Júpiter.
47
BULFINCH, 2006, p. 25.
39

“A pior foi a Idade de Ferro. O crime irrompeu, como uma inundação; a modéstia, a
verdade e a honra fugiram, deixando em seus lugares a fraude e a astúcia, a violência e a
insaciável cobiça” (BULFINCH, 2006, p. 25). Eis os efeitos do feito de Prometeu, este
contraditório “benfeitor da humanidade” “ ‘de pensamentos fraudulentos’ ”, protagonista da
“origem das desgraças do homem”.48

O roubo do fogo deve ser pago. Doravante, toda riqueza terá o labor como
condição: é o fim da idade de ouro, cuja representação na imaginação mítica
sublinha a oposição entre a fecundidade e o trabalho, uma vez que nesta época todas
as riquezas nascem da terra espontaneamente. O que acontece com os produtos do
solo também acontecerá com os homens: a contrapartida do furto de Prometeu, será
igualmente Pandora, a primeira mulher. A partir de então os homens não nascerão
mais diretamente da terra; com a mulher, eles conhecerão o nascimento por geração,
por consequência também, o envelhecimento, o sofrimento e a morte (VERNANT,
1973, p. 209).

Neste trecho, em seu último ponto, acerca de Pandora, há aqui uma inversão na
perspectiva de Frankenstein.
Ao lidar com seu antagonista, o Monstro, Victor se vê diante da solicitação do mesmo
para que lhe produza uma companheira, cuja criatura promete com ela se refugiar em terras
distantes. Neste caso, a presença feminina seria uma solução, não um problema para a
sociedade. Ao mesmo tempo, como já tratamos, a criatura, primeiro membro de uma virtual
prole, é dotado de capacidades especiais que só lhe permitem perecer caso sua morte seja
causada. Ou seja, o monstro só pode vir a óbito caso seja assassinado, acidentado ou mesmo
cometa suicídio. Afora estas causas, nem o tempo nem as doenças – as quais ele já “nasce”
imune – podem lhe prejudicar. De todas as três consequências sofridas pela humanidade da
mitologia prometeica, apenas o sofrimento é inevitável em Frankenstein; a velhice é
descartada, e a morte, pelo menos a do Monstro, Mary Shelley não nos decretou, deixando
“em aberto”. E quanto ao castigo de Frankenstein?
Quando do seu encontro com sua criação, Victor descobre que seu pequeno irmão,
William, fora morto por aquela e que a mesma, buscando causar maior sofrimento em seu
criador e familiares, se utilizou de uma artimanha que incriminava, injustamente, sua prima,
Justine Moritz, presa, julgada e executada. A princípio, o castigo de Victor não é físico, como
em Prometeu: seu sofrimento advém do sentimento de culpa por ter criado “aquele demônio”
(SHELLEY, 2013, p. 114), que pudera causar a morte de duas inocentes pessoas, direta e
indiretamente. Este fato nos leva a outra aproximação de personagens, que seria entre a

48
VERNANT, Jean Pierre. Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica. São Paulo:
Difusão Européia do Livro, Ed. Da Universidade de São Paulo, 1973, p. 208.
40

Criatura e Zeus. O monstro impõe terror e desgraça tanto a Victor como a seus semelhantes,
principalmente àqueles que lhe são próximos (outros ainda irão perecer por conta das atitudes
da criatura). Frankenstein é então consumido pelo sofrimento e pela fadiga de ter que lidar
com o monstro. Contudo, há a possibilidade de redenção, quando a criatura oferece uma
possibilidade para o fim do sofrimento – a criação de uma companheira por parte de Victor,
como supracitado. Na relação de contrariedade Zeus-Prometeu, o deus pune não só o titã, mas
também aqueles que por ele foram auxiliados, principalmente em virtude do caos instalado
durante a Idade do Ferro.

Vendo aquele estado de coisas, Júpiter indignou-se e convocou os deuses


para um conselho. [...]
Dirigindo-se à assembleia, Júpiter expôs as terríveis condições que
reinavam na Terra e encerrou suas palavras anunciando a intenção de destruir todos
os seus habitantes e fazer surgir uma nova raça, diferente da primeira, que seria mais
digna de viver e saberia melhor cultuar os deuses. Assim dizendo, apoderou-se de
um raio e já estava prestes a atirá-lo contra o mundo, destruindo-o pelo fogo, quando
atentou para o perigo que o incêndio poderia acarretar para o próprio céu. Mudou,
então, de ideia, e resolveu inundar a terra. O vento norte, que espalha as nuvens, foi
encadeado; o vento sul foi solto e em breve cobriu todo o céu com escuridão
profunda. As nuvens, empurradas em bloco, romperam-se com fragor; torrentes de
chuva caíram; as plantações inundaram-se; o trabalho de um ano do lavrador
pereceu em uma hora. Não satisfeito com suas próprias águas, Júpiter pediu ajuda a
seu irmão Netuno. Este soltou rios e lançou-os sobre a terra. Ao mesmo tempo,
sacudiu-a com um terremoto e lançou o refluxo do oceano sobre as praias.
Rebanhos, animais, homens e casas foram engolidos e os templos, com seus recintos
sacros, profanados. Todo edifício que permanecera de pé foi submergido e suas
torres ficaram abaixo das águas. Tudo se transformou em mar, num mar sem praias.
Aqui e ali, um indivíduo refugia-se num cume e alguns poucos, em barcos, apoiam o
remo no mesmo solo que ainda há pouco o arado sulcara. Os peixes nadam sobre os
galhos das árvores; a âncora se prende num jardim. Onde recentemente os
cordeirinhos brincavam, as focas cabriolam desajeitadamente. O lobo na entre as
ovelhas, os fulvos leões e os tigres lutam nas águas. A força do javali de nada lhe
serve, nem a ligeireza do cervo. As aves tombam, cansadas, na água, não tendo
encontrado terra onde pousar. Os seres vivos que a água poupara caem como presas
da fome (BULFINCH, 2006, p. 26).

Percebe-se aqui a força da tragédia sofrida por aquela sociedade mitológica, fruto da
fúria de Júpiter/Zeus. Em Frankenstein, essa tragédia social é apenas virtual, imaginada por
Victor; contudo, é importante ressaltar que o peso do sofrimento imposto ao cientista e aos
seus afetos próximos nos é exposto em uma linguagem profundamente dramática e
depressiva, que beira à exaustão física. Ambos os danos causados pelas contrapartes Zeus-
Criatura são de uma expressividade marcante, sendo a primeira pautada na quantificação dos
danos – como atesta a citação acima –, enquanto a segunda encontra seu fundamento no sentir
euforicamente negativo da dor da perda.49

49
Para que o paralelo entre Zeus e a Criatura se faça mais pertinente, é importante deixar claro que o monstro
não representa somente um ser, mas sim um princípio moral evocado por Mary de que o indivíduo deve ter
41

Ainda assim, em meio a tanto sofrimento, a “semelhança ao revés” continua presente,


na medida em que Victor e Prometeu possuem a possibilidade de se livrarem de seus
tormentos, já sofridos. No mito clássico, como observamos, quem impõe as condições do
acordo é um deus, que se encontra acima dos outros seres; em Frankenstein, é a criatura que
determina o destino não só de Victor, mas da própria humanidade.

Lembra-te, fizeste-me mais forte do que tu; meu peso é superior ao teu, minhas
juntas mais flexíveis. Mas não me deixarei levar pela tentação de me colocar em
oposição a ti. Sou tua criatura, e serei até mesmo tranquilo e dócil a meu senhor e rei
natural se interpretares o papel que cabe a ti, aquele me deves. [...] Lembra-te de que
sou tua criatura; deveria ser teu Adão, mas sou antes o anjo caído [...]. Vejo a
felicidade em todos os lugares, da qual apenas eu estou irrevogavelmente excluído.
Eu era bom e benevolente; a miséria fez de mim um demônio. Faça-me feliz, e hei
de ser mais uma vez virtuoso (SHELLEY, 2013, p. 123).

A partir deste fato, lembramos que tanto em Prometeu como em Frankenstein, o


destino está irremediavelmente ligado às personagens protagonistas. Tanto Zeus, o todo
poderoso deus do Olimpo, como o monstro, superior a todos os outros seres, incubem seus
opositores de tomarem as decisões. Aqui, podemos ver outra semelhança entre Zeus e a
criatura: apesar de mais fortes do que seus adversários, nem a onipotência do deus greco-
romano é capaz de restituir-lhe o que é seu sem a colaboração de Prometeu, nem a “espécie
superior” do monstro é capaz de conceber outros como ele. Inevitavelmente, ambos precisam
de Victor e Prometeu para alcançaram seus objetivos.
Dessa forma, assim como Prometeu, Victor opta por resistir; diferente daquele
aprisionado e que só lhe resta ceder, a personagem de Shelley vai ao confronto de sua
antagonista.50 A desgraça, então, lhe acomete: a criatura, irada com a decisão de
Frankenstein, lhe causa mais sofrimento ao assassinar cruelmente seu melhor amigo, Henry
Clerval, assim como sua irmã adotiva e par amoroso, Elizabeth Lavenza.51
Portanto, concluída essa breve análise, as figuras de Prometeu e Frankenstein nos
mostram uma das faces dos mitos desafiadores, perpetrados por personagens ousadas:

consciência dos limites de sua posição enquanto humano, não buscando querer tomar para si atribuições outras
que não de sua estirpe. Para a autora, a ruptura desses limites seria algo inadmissível. Logo, a semelhança entre a
criatura e Zeus em relação à punição de seus opositores se faz quando levamos em conta que seus castigos são
respostas às suas atitudes de tomarem para si atributos divinos.
50
A princípio, Victor até inicia a criação da versão feminina de sua criatura; contudo, desiste.
51
O desfecho da obra até poderia ser usado para a complementação da análise, como o faz a historiadora
Giassone (1999). Contudo, omito tal parte e deixo a cargo do leitor e da leitora a curiosidade pela obra e seus
pormenores, caso assim lhes seja aprazível, ressaltando que sua omissão não interfere de forma alguma nesta
pesquisa.
42

Prometeu, Adão e Eva e Faustão [(assim como Prometeu)] cruzaram a linha


divisória que separa o humano do divino, e por essa ousadia foram punidos. Nesses
mitos a ordem moral – o conjunto de regras para participar desse jogo da vida – é
ditada pelas divindades, sejam elas Zeus o Yahweh. Mesmo que faça parte da
natureza humana querer, ou ser capaz de, transgredir os limites estabelecidos por
Deus, os humanos devem concordar em viver dentro dos limites e obedecer às
ordens divinas. Nesse universo moral a vida se apresenta como uma tentação
perpétua. Há sempre como ir mais longe, mas a recompensa de uma vida longa e
serena é para aqueles que recuam e se conformam com a orientação dada
(HITCHCOCK, 2010, p. 11).

São estes os “mitos punitivos”, que orientam os seres a refletirem sobre suas atitudes,
até mesmo antes de serem executadas:

Assim, Frankenstein, [...] é, sobretudo, um alerta e uma lição: que os homens se


deem conta das possíveis consequências negativas de seu domínio e transformação
das leis naturais, e de que todo conhecimento, mesmo o que aparentemente só é
capaz de construir, pode também destruir (GIASSONE, 1999, p. 35).

Logo, para além de uma obra para o deleite, há, afinal de contas, uma pertinente
reflexão, que a própria Mary não se isenta de posicionamento: a produção do monstro, fruto
da ciência, é acompanhada de infortúnios, perdas e sofrimentos. “Será então necessário
desafiar nossas tradições, nossa natureza, em prol daquilo que está tão a frente de nós – o
progresso científico - que sequer podemos prever suas consequências?” Eis, talvez, um
questionamento que podemos depreender de Mary, se ela tivesse se esquivado das vias
metafóricas – Frankenstein – e nos fosse mais direta.
43

3.2 O CAOS INVENTIVO - DESAFIOS ESTÉTICOS E TEMÁTICOS: FRANKENSTEIN


ENTRE A ARTE E A REALIDADE

“Cada um de nós escreverá um conto de fantasmas,” disse Lord Byron; e com sua proposta
assentimos.
(Mary Shelley)

Em 181652, na Suíça, Lord Byron propôs aos seus três companheiros Mary, Percy e
Polidori que escrevessem uma história de fantasmas. Tal proposta se deu após os mesmos
terem compartilhado a leitura de “uma coletânea de histórias sobrenaturais, [chamada]
Phantasmagoriana” (HITCHCOCK, 2010, p. 39) – Mary se refere aos contos como “histórias
de fantasmas, traduzidos do alemão para o francês” (SHELLEY, 2013, p. 27).53 Inspirados
por essas histórias sombrias, os quatro iniciaram sua empreitada. Curiosamente, apenas a
inexperiente e jovem Mary conseguiu dar corpo às suas ideias, apesar das dificuldades
criativas que a mesma registrou em seu Prefácio. Quanto a Lord Byron e Percy Bysshe
Shelley, estes “ilustres poetas [...] [que se encontravam] enfastiados com as trivialidades da
prosa, rapidamente abandonaram a tarefa tão pouco adequada a seus talentos” (SHELLEY,
2013, p. 28). Em relação à Polidori54, “este teve uma péssima ideia sobre uma senhora cuja
cabeça havia se transformado em caveira em punição por bisbilhotar pelo buraco da fechadura
– o que ela via, eu esqueci – algo aterrorizante e errado” (SHELLEY, 2013, p. 28). Nem dois
grandes poetas, nem um médico sedento por respaldo literário: apenas uma jovem inglesa de
19 anos deu início a seu clássico.55 Mas, os passos foram lentos.
Para Mary, já não bastava apenas escrever uma história. Era necessário escrever uma
obra que “pudesse falar aos misteriosos medos de nossa natureza e despertasse o arrepiante

52
“Polidori data o desafio de Byron em 16 de junho [de 1816] [...]” (HITCHCOCK, 2010, p. 47).
53
E ainda temos, de acordo com Florescu (1998), um título mais complexo para as histórias: Fantasmagoriana,
or Collection of the Histories of Apparitions, Spectres, Ghosts etc. (Fantasmagoria, ou Coleção de Histórias de
Aparições, Espectros, Fantasmas, etc.).

54
Segundo Hitchcock (2010), naquele mesmo ano de 1816 nascia o protótipo de um clássico: Polidori, que se
utilizou de um conto inacabado de Lord Byron, acabou legando à literatura as primeiras características do
Vampiro. Ainda de acordo com a autora, Vampyre: a Tale, publicado por Polidori, se tornaria a maior influência
para outro respeitado escritor britânico, Bram Stoker, que viria a publicar Drácula, em 1897. Nesse sentido,
afirma Hitchcock ser o verão de 1816 na Suíça o momento da origem das duas mais importantes criaturas do
terror literário - a Criatura de Frankenstein e o protótipo de Drácula.
55
De acordo com Giassone (1999), a obra seria finalizada em “fins de 1817” e publicada pela primeira vez em
11 de março de 1818.
44

terror – terror tal que fizesse o leitor temer olhar ao redor, gelar o sangue e acelerar os
batimentos do coração” (SHELLEY, 2013, p. 28). Quanto empreendimento Mary depositava
em sua escrita: poderia ela provocar tamanho impacto em seus leitores, provocando tamanho
alvoroço nas sensibilidades de seus leitores e leitoras?
“Sabe-se, hoje, que os gêneros literários estão intimamente relacionados às condições
sociais e históricas que determinam a formação do público leitor, com seus gostos e
sensibilidades [...]”.56 A meta de inspirar terror no público talvez não fosse de tamanha
dificuldade: como já visto no capítulo anterior, Hobsbawm (2014) nos mostra que o horror da
Revolução Industrial (que ainda se processava no recorte que vai de 1816 – início da escrita
de Frankenstein – até 1818 – sua primeira edição e publicação) afetava a produção artística
dos britânicos. Mas, não apenas estes: a população inglesa não “podia deixar de notar que o
mundo estava se transformando mais radicalmente nesta era [(1789-1848)] do que em
qualquer outa anterior. Nenhuma pessoa que usasse o raciocínio poderia deixar de estar
atemorizada, abalada e mentalmente estimulada por estas convulsões e transformações”
(HOBSBAWM, 2014, p. 449-450).
“A Revolução Industrial assinala a mais radical transformação da vida humana já
registrada em documentos escritos”.57 Radicalização essa sentida e refletida através do pensar
e agir dos que foram afetados, produzindo uma nova forma de ser – de existir58 – constituindo
assim um novo ideal de indivíduo.

Ela transformou a vida dos homens a ponto de torná-las irreconhecíveis. Ou, para
sermos mais exatos, em suas fases iniciais ela destruiu seus antigos estilos de vida,
deixando-os livres para descobrir ou criar outros novos, se soubessem ou pudessem.
Contudo, raramente ela lhes indicou como fazê-lo (HOBSBAWM, 2013, p. 70).

É nesse contexto que Mary Shelley estabelece sua meta transformadora do fazer
artístico, em um ambiente aberto às propostas, sem necessariamente indicá-las. Além de
buscar escrever um texto que pudesse “transbordar” as páginas “concretas” do livro,
56
FERREIRA, Antonio Celso. A fonte fecunda. In: LUCA, T. R. de; PINSKY, C. B. (Orgs.). O Historiador e
suas fontes. São Paulo: Contexto, 2012, p. 73.
57
HOBSBAWM, Eric. Da revolução industrial inglesa ao imperialismo. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013,
p. 1.
58
Sobre estas transformações, vale a pena conferir este famoso escrito de Karl Marx e Friedrich Engels, um
genuíno documento do século XIX: “A transformação contínua da produção, o abalo ininterrupto de todas as
condições sociais, incerteza e movimento eternos, eis aí as características que distinguem a época burguesa de
todas as demais. Todas as relações sólidas e enferrujadas, como seu séquito de venerandas e antigas concepções
e visões, se dissolvem; todas as novas envelhecem antes mesmo que possa se solidificar. Evapora-se toda a
estratificação, todo o estabelecido; profana-se tudo que é sagrado, e as pessoas se veem enfim obrigadas a
enxergar com olhos sóbrios seu posicionamento na vida, suas relações umas com as outras” (MARX, Karl.
Manifesto do partido comunista. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2012, p. 47).
45

instigando e sensibilizando o seu leitor a se inserir em uma atmosfera sombria, que o fizesse,
como a mesma diz e que já fora citado anteriormente, sentir medo de olhar ao seu próprio
redor,59 Mary também propõe, ainda que de forma breve, uma perspectiva para a criação
literária:

A invenção, é bom que humildemente se diga, não consiste em criar a partir do nada,
mas a partir do caos; em primeiro lugar, os materiais precisam estar à mão: podemos
dar forma a substâncias obscuras e informes, não trazer à luz a substância em si. [...]
A invenção consiste na capacidade de avaliar as possibilidades de um assunto e no
poder de moldar e arranjar as ideias por ele sugeridas (SHELLEY, 2013, p. 29).

Ou seja: para Mary, o mais importante no ato de criar não é a busca por um princípio
criador, um modelo inicial; ao invés disso, se torna mais pertinente se deter nos “materiais”
disponíveis (organizados ou não) e, a partir deles, refletir sobre a melhor forma possível de
moldá-los. Tal perspectiva é viva em sua confecção literária, não sendo apenas uma falácia
teórico-artística: ainda que durante certo tempo sentisse “[...] travos de incapacidade de
invenção que são a grande desgraça da autoria, quando um estulto Nada responda a nossas
invocações” (SHELLEY, 2013, p. 28). Nota-se que Mary não produziu sua obra através de
um rigor metodológico; pelo contrário, sua inspiração veio através de certa noite – descrita
com bastante ênfase e euforia – em que o sono não lhe vencera:

Quando coloquei minha cabeça no travesseiro, não dormi, tampouco poderia dizer
que pensava. Minha imaginação possuiu-me e guiou-me sem qualquer permissão,
presenteando-me com as sucessivas imagens que surgiam em minha mente, com
uma vivacidade que ia muito além das costumeiras fronteiras do devaneio. Vi – com
os olhos fechados, mas a visão mental aguda –, vi o estudante pálido de artes
profanas ajoelhando-se diante da coisa que havia produzido. Vi a silhueta medonha
de um homem deitado que, então, com o trabalho de alguma máquina poderosa,
apresentava sinais de vida e se agitava em movimentos nervosos, apenas
parcialmente vivos (SHELLEY, 2013, p. 29-30).

Fora um devaneio, um “caleidoscópio” de imagens mentais que alimentara as ideias de Mary.


Fora a própria visualização de uma das cenas presentes em seu livro – a criação do Monstro –
que a estimulara. É com essa mesma ideia que ela inicia a primeira edição (1818) de
Frankenstein, cujo seu primeiro capítulo corresponde ao quinto da edição traduzida aqui
utilizada (1831):

Era uma noite pavorosa de novembro quando cheguei à consumação de


meus esforços. [...] a chuva batia terrível contra a janela, e minha vela quase derretia
por completo quando, ao bruxulear de uma luz que quase se esgotava, vi os olhos
baços, amarelados, da criatura se abrirem, ela resfolegava, e convulsões agitavam
seus membros.

59
Segundo Giassone: “o medo como algo real, capaz de fazer-nos duvidar da impossibilidade ou
inverossimilhança do que está sendo lido [...]” (1999, p. 21).
46

Como posso descrever o que senti ante tamanha catástrofe? Como posso
definir o horror que construir com trabalho e desvelo infinitos? [...].
[...] Incapaz de suportar o aspecto do que ser criara, corri para fora do
cômodo e passei um bom tempo em meu quarto, agitado, sem conseguir me acalmar
e dormir. [...]
Oh! Nenhum mortal conseguiria suportar o horror daquela imagem.
[...] Havia perscrutado seu corpo ainda incompleto; ele, então, me parecera feio,
mas quando seus músculos e articulações ganharam movimento, aquilo tornou-se
algo que sequer Dante teria concebido (SHELLEY, 2013, p. 79-81).

Mas, se Mary buscava impactar e estar a frente de seu tempo (literariamente), suas
palavras, também, denunciavam certa cautela para com o tema tratado: aquele indivíduo que
viria a ser Victor Frankenstein é ainda um “estudante pálido de artes profanas”, ou seja, um
indivíduo dedicado a práticas desvinculadas de quaisquer princípios religiosos60 que produziu
uma “coisa”61, um ser não classificável dentro das categorias científicas de seres vivos.62
Ainda assim, sua forma é de um “homem” com “sinais de vida” – pois feito de partes
humanas. E, de fato, Mary, no mesmo parágrafo em que expõe tais pensamentos, posiciona-se
criticamente em relação a tal evento fictício: “Isto deve ser aterrorizante – pois supremamente
aterrorizante deve ser o efeito de qualquer tentativa humana de caçoar do estupendo
mecanismo do Criador do mundo” (SHELLEY, 2013, p. 30). Ou seja, podemos perceber
como Mary ainda se encontrava vinculada a princípios religiosos. Apesar de ter sido filha de
um pai que lhe forneceu educação filosófica e científica, em contrariedade ao que era
ensinado às moças de sua época e mesmo sendo esposa de um declarado ateu – Percy Shelley
– além de conviver com o “mal falado” Lord Byron, Mary nos deixa exposto seu fervor ao
sagrado. Já não bastasse tratar um cientista como “profano”, para ela a capacidade criadora de
Deus era “estupenda” e que qualquer tentativa humana de a ela se comparar era um ato de
“zombaria”. Esta postura nos leva a outra, de caráter social e político, que leva a alguns
60
De acordo o minidicionário Soares Amora, define-se Profano: 1. Que não pertence à religião; 2. estranho ou
contrário à religião; 3. não sagrado; leigo; secular; 4. alheio; estranho; 5. que não pertence a determinada classe,
seita ou associação; 6. não iniciado em certos assuntos. (AMORA, Antônio Soares. Minidicionário Soares
Amora da língua portuguesa. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 560).
61
Sobre os termos utilizados para se referir à criatura de Victor, Hithcock afirma que: “Um estudante de
Frankenstein, Chris Baldick, catalogou em fichas as palavras que Mary Shelley deu ao seu narrador ou
personagens para usar como nomes da criação inominável. ‘Monster’ [monstro] é a que aparece com maior
frequência no romance dela, 27 vezes; ‘fiend’ [diabo] é a seguinte, como 25 aparições; em seguida vêm as
palavras ‘daemon’, ‘creature’ e ‘wretch’ [respectivamente, demônio, criatura, infeliz], cada uma usada 15 ou
mais vezes, e ‘devil’, ‘being’ e ‘ogre’ [respectivamente diabo, ser e ogro], usados ocasionalmente”
(HITCHCOCK, 2010, p. 17).
62
A própria criatura possui consciência da sua condição: “E o que era eu? [...] [Eu] era dotado de uma figura
terrivelmente deformada e ofensiva; não era sequer da mesma natureza do homem. [...] Era mais ágil que os
homens e conseguia sobreviver sob um magro regime, suportava os extremos do calor e do frio com menos dor a
minha estrutura; minha estatura excedia a deles. Quando olhava ao redor nada via e ouvia que me fosse
semelhante. Era eu, então, um monstro, uma mancha sobre a terra, da qual todos os homens corriam e que todos
os homens recusavam” (SHELLEY, 2013, p. 143).
47

estudiosos de sua vida e obra a enxergarem em Mary Shelley traços de “conformismo”, senão
mesmo “conservadorismo” (principalmente após a morte de seu esposo Percy).
Ana Giassone (1999), por exemplo, ao analisar algumas cartas de Mary Shelley
datadas do ano de 1848, percebe em sua escrita uma oposição aos acontecimentos que
efervescia aquele histórico ano, marcado pela ocorrência da “Primavera dos Povos”, período
em que alguns países da Europa entraram em ebulição social, com caracteres de revolução.
Enquanto Mary enxerga na França uma “total subversão da lei [...] [em que] o deslocamento
do [seu] sistema social [...] apresentam aspectos temerosos” (SHELLEY apud GIASSONE,
1999, p. 93), na “Alemanha as classes sociais encontram-se inteiramente quebradas, os
aluguéis não são pagos, camponeses invadem os palácios e tomam-nos” (SHELLEY apud
GIASSONE, 1999, p. 93).
A própria autocensura de Mary em Frankenstein acerca do tema incesto, devido a
forte oposição de alguns indivíduos, atesta este seu cuidado frente a um público crítico:

Determinada a que seu romance não mais suscitasse mais o espectro do


incesto [...], Mary Shelley mudou o relacionamento entre Victor Frankenstein e a
sobrinha, Elizabeth. Na edição de 1818, Elizabeth era prima de Victor, adotada após
a morte da mãe, uma irmã do pai de Victor. Em 1831, Elizabeth tornou-se uma
criança enjeitada, levada por caridade para a família Frankenstein durante a infância
de Victor (HITCHCOCK, 2010, p. 104).

Este seu caráter bem oposto ao de seus companheiros Percy e Byron, assim como o de
seus pais, M. Wollstonecraft e W. Godwin, leva o filósofo Jean-Jacques Lecercle a afirmar,
categoricamente, que Mary “não queria revolucionar nem a literatura nem a sociedade”.63 E,
ainda, nos diz mais:

Mary Shelley, filha e mulher de pessoas de esquerda, até mesmo de


extrema-esquerda, para falar em termos anacrônicos, não renega este meio, mas não
sente nenhuma atração por suas ideias políticas. Ela diz isto claramente depois da
morte de [Percy] Shelley: respeito os que querem mudar o mundo, mas não partilho
suas ideias, pois meu temperamento não me leva aos extremos e, fora dos que me
são próximos, jamais gostei dos liberais, ainda que nada tenha dito contra eles.64 O
resto de sua vida demonstra uma vontade de integração e de conformismo [...]
(LECERCLE, 1991, 60).

63
LECERCLE, Jean-Jacques. Frankenstein: mito e filosofia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p. 60.
64
O trecho em itálico não é original do texto, sendo aqui utilizado por mim para alertar que, neste ponto,
Lecercle insere uma fala sem referenciar a uma fonte específica. Contudo, tendo em vista sua obra já ser
utilizada por dois outros historiadores – Florescu e Giassone – que são aqui referenciados, deposita-se crédito em
sua escrita.
48

Contudo, ao leitor e a leitora, deve-se ficar claro que não apenas um “devaneio”
servira de base para a elaboração de sua obra. Outro ponto intimamente ligado a Frankenstein
é a influência social da ciência.
49

3.3 A CIÊNCIA COMO POSSIBILIDADE ARTÍSTICA

A ciência em Frankenstein flui como uma possibilidade artística, uma possibilidade de


uma perspectiva científica tornar-se realizável no meio ficcional. Os princípios científicos que
estão presentes na obra Frankenstein debitam não só da imaginação de Mary Shelley, mas
também de discussões a ela contemporâneas no mundo científico:65

Muitas e longas foram as conversas entre Lord Byron e Shelley, de quem


era uma devota, porém quase muda ouvinte. Durante uma delas, muitas doutrinas
filosóficas foram discutidas, dentre as quais a da natureza do princípio da vida, e se
havia alguma possibilidade de esta ser descoberta e comunicada. Falaram sobre os
experimentos do dr. Darwin (não me refiro ao que o doutor realmente fez, ou disse
que fez, mas, segundo o que aqui me interessa, àquilo que então se falava que havia
feito, que preservou um pedaço de aletria em um vidro até que, de maneira
extraordinária, esta começou a se mover como que por vontade própria. Não era
assim, claro, que a vida seria dada. Talvez um cadáver pudesse ser reanimado; o
galvanismo havia oferecido pistas nesse sentido: talvez os componentes de uma
criatura pudessem ser fabricados, montados e dotados de calor vital. (SHELLEY,
2013, p. 29).

“Talvez um cadáver pudesse ser reanimado”: em uma era onde tudo se constrói e
reconstrói, não seria diferente com a vida humana. Se o desenvolvimento material havia
mostrado as possibilidades criativas do que viria a existir e de restauração do que já existia,
talvez as capacidades científicas pudessem realizar o mesmo com homem. Tal percepção pode
aparentar incoerência, mas busquemos entender que estamos dialogando com mentalidades
absorvidas por uma Inglaterra em acelerado desenvolvimento, que se manifesta
cotidianamente aos olhares dos cidadãos. Logo, essa “atmosfera” das possibilidades diversas
se faz presente no universo psicológico, produzindo a sensação do sentimento do avançar
contínuo.66 Afinal, “embora seja uma criação ficcional, o romance de Frankenstein é capaz de
se revelar, aos olhos do historiador atento, uma fantástica trama tecida com os fios da
invenção e da observação do mundo” (GIASSONE, 1999, p. 11).
Poderia o próprio ser humano ser “produzido”? Observemos bem os termos utilizados:
“componentes”, “fabricados”, “montados”. Com o avanço de ciências como a biologia e a

65
Sobre esta relação entre ciência e arte, a historiadora Giassone (1999) faz uma breve análise sobre as relações
existentes entre a obra Frankenstein e o gênero literário – também fílmico – de ficção científica. Para a autora, a
obra de Shelley é, se não a primeira de Science-fiction, ao menos é a inauguradora de seus princípios narrativos,
através da “utilização de bases científicas ou pseudocientíficas, [...] imprimindo uma racionalidade científica aos
acontecimentos, com o objetivo de fazer o leitor abandonar uma explicação meramente fantástica” [Grifo meu]
(GIASSONE, 1999, p. 36).
66
“Ninguém podia deixar de notar que [durante a Revolução Industrial] o mundo estava se transformando mais
radicalmente [...] do quem em qualquer outra [época] anterior. [...] Quase não surpreende que os padrões de
pensamento derivados das rápidas mudanças sociais, das profundas revoluções, da substituição sistemática de
instituições tradicionais e costumeiras por inovações racionalistas radicais resultaram aceitáveis”
(HOBSBAWM, 2014, p. 449-450).
50

anatomia, o corpo humano passa então a ser percebido como uma estrutura que possui uma
estrutura racionalmente verificável de funcionamento, maquinalmente. Por dentro do ser
humano constitui-se uma “parafernália” onde cada um de seus componentes se combina de
forma eficaz; por fora, é revestido por uma “carcaça” que lhe confere uma aparência
“sociável”. Se determinados indivíduos possuem falhas em suas estruturas – internas ou
externas – são então vistos como fora do padrão estético-social estabelecido, assim como
debilitados. São “doentes”, “anormais”, “inválidos”, etc. A adjetivação varia. No entanto,
assim como um navio, que possui seu revestimento externo aprazível aos olhares alheios, mas
que por dentro possui um funcionamento complexo e racional, não poderiam ambos
(humanos e objetos) ser “construídos”? Para o navio, nos primórdios do século XIX, sua força
motriz é o carvão; para o ser humano, é a vida. Mas, concretamente falando, o que é a vida?
Como ela se produz, para além da explicação biológica reprodutiva? Mary Shelley a
denomina de “calor vital”, uma energia fornecedora de vida.
A influência do pensamento científico na produção literária de Mary,67 principalmente
através das conversas cuja mesma fora “ouvinte”, também se coaduna com as reflexões acerca
do universo espiritual que estão presentes na produção de seu esposo, Percy Shelley. No
poema Rainha Mab, escrito esse detestado pela ex-esposa daquele, mas que Mary via como
um livro que, sentimentalmente, era sagrado a ela68, Percy além de se utilizar de temáticas
científicas, escreve frases no mínimo impactantes para a sua época.
Com a frase “Deus não existe!” no início de seu poema, o poeta causara a si danos
irreparáveis.69

[...] Apenas 250 exemplares de Rainha Mab foram impressos, significativamente


menos foram vendidos, mas, por essa evidente declaração de ateísmo, Percy Shelley
acabou vendo negado o direito ao título de baronete, recusado o apoio financeiro do
pai, impedido de ver os filhos e praticamente acossado para fora da Inglaterra [...]
(HITCHCOCK, 2010, p. 34-35).

Entretanto, um de seus versos extremamente significativo para entendermos o


momento em que Frankenstein se produz é quando Percy Shelley afirma ser “o orgulho
humano/[...] hábil em inventar os mais graves nomes/Para ocultar a ignorância” (SHELLEY

67
Sobre a relação de Mary com a ciência: “O estudo dos ‘grandes’ era leitura relativamente fácil, mas em relação
à ciência que a interessava, as coisas tinham de ser facilitadas, e as pessoas se maravilham pela maneira com ela
podia interessar-se por discussões a respeito das leis da eletricidade, ou outras sobre a circulação do sangue. Sua
relutância em mergulhar em explicações médicas e científicas corria mais à conta de cautela do que simples
ignorância dos fatos ou ingenuidade” (FLORESCU, 1998, p. 41).

68
HITCHCOCK, 2010, p. 33.
69
HITCHCOCK, 2010, p. 34.
51

apud HITCHCOCK, 2010, p. 34). Nestes versos, Percy alude aos humanos no tempo que,
desconhecedores dos mistérios da natureza, estabelecem a si a crença em um ser superior,
transcendental e criador de tudo aquilo que os rodeia. Agora, em plena era do “tudo se faz,
tudo se cria”, cabem aos homens encontrar as respostas dos segredos do mundo em que
vivem. Em síntese: retira-se do sagrado sua responsabilidade pela criação da vida e a transfere
para os mesmos. Este duelo entre o sagrado e o científico é um debate acirrado que se instala
pelo século XIX.
Essa evidente ligação entre arte e ciência, sendo que a primeira serve de canal de
manifestação reflexiva e propositiva (assim como espaço de exaltação) para a segunda, se fez
bastante presente no século XIX.

[...] Os avanços científicos do início do século XIX possibilitaram reinos de reflexão


tão fantásticos quanto os que ocorriam à imaginação de um poeta. Na verdade, para
alguns, a filosofia, a poesia e a ciência convergiam na promessa de mudanças
revolucionárias no conhecimento e na visão de mundo da humanidade
(HITCHCOCK, 2010, p. 37).

Não à toa, Mary, legitimando sua fala, se refere aos experimentos do “Dr. Darwin”.
Erasmus Darwin, avô do mais famoso Charles Darwin, já se aventurava pelos estudos
evolucionistas antes de seu neto emplacar o clássico A origem das espécies, de 1859. Em
1803, Erasmus publicava o poema O templo da natureza; ou a origem da sociedade70, onde o
mesmo expunha suas teorias científicas acerca da evolução dos seres vivos.71 Esse caminho
de dupla troca entre literatura e ciência se fazia ainda mais forte quando se tratava da
eletricidade: o galvanismo, citado por Mary no primeiro excerto deste tópico, era um dos
temas científicos de maior popularidade tanto entre artistas, cientistas, quanto à população de
forma geral, com destaque para esta última que, no século XIX, passou a receber “a chegada
de novos leitores das camadas populares, dentre os quais mulheres e crianças, tanto dentro
como fora da escola”.72

Depois que Benjamin Franklin e outros conseguiram controlar a


eletricidade que se manifestava na natureza, os experimentadores passaram a
trabalhar em aparelhos para captar, controlar e gerar a energia elétrica. A pilha
galvânica [...] recebera esse nome em referência ao cientista italiano Luigi Galvani,
cujos famosos experimentos dos anos 1790 testaram os efeitos da corrente elétrica

70
HITCHCOCK, 2010, p. 37.
71
“[...] as formas de vida ‘adquirem novos poderes e desenvolvem membros maiores/Daí que incontáveis grupos
de vegetação surgem/E produzem reinos de nadadeiras, pés e asas’” (DARWIN apud HITCHCOCK, 2010, p.
37).
72
CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. São Paulo: Unesp, 2014, p. 22.
52

no corpo dos animais. Quando um bastão de metal carregado fez com que os
músculo da perna de uma rã desmembrada se movessem, Galvani vislumbrou que a
eletricidade motivava os nervos. A sua obra antecipou a compreensão do que foi
chamado de [...] “galvanismo” [...] (HITCHCOCK, 2010, p. 38).

Posteriormente, Aldini, sobrinho de Galvani, passou a realizar outros experimentos


galvânicos pela Europa nos primeiros anos do século XIX.73 Um deles, realizado em Londres,
chegou a ser relatado nos jornais; dando continuidade a repercussão favorável de suas
demonstrações, Aldini abriu espaço a um público maior, configurando-se suas apresentações
como verdadeiros espetáculos.74 Se Prometeu tomara do Olimpo o fogo sagrado e o
disponibilizara para seu povo como um instrumento de benefícios para a humanidade, agora
era a vez da eletricidade, essa força natural “celeste”, ser dominada pelo conhecimento
humano. “Assim, o mais importante dos novos campos abertos, e o único que teve imediatas
consequências tecnológicas, foi o da eletricidade, ou melhor, o do eletromagnetismo”
(HOBSBAWM, 2014, p. 432-433).
Esse período de domínio humano sobre as forças naturais através da ciência ainda é
um reflexo da já citada revolução dupla inglesa e francesa. “A era revolucionária, portanto,
fez crescer o número de cientistas e eruditos e estendeu a ciência em todos os seus aspectos”
(HOBSBAWM, 2014, p. 431). A ruptura com o passado e a ansiedade pelo novo: esses dois
preceitos colaboraram no fazer vanguardista dos cientistas da era revolucionária, que já não
dispunham de tantos obstáculos quanto antes – apesar da pertinente presença do pensamento
conservador, principalmente diante das teorias evolucionistas, que retiravam do crivo divino
(em determinadas circunstâncias) a responsabilidade pelo desenvolvimento das espécies. Em
Frankenstein, esse “embate na escolha entre o velho e o novo” é pertinente, pois “capaz de
apresentar e julgar, no nível da fantasia, uma situação real: a dolorosa transição da sociedade
ocidental em direção à modernidade” (GIASSONE, 1999, p. 42).
É dentro de todo esse recheado contexto que Frankenstein gesta. Independente da
validade e viabilidade de seus preceitos, tal obra, que carrega essa carga conjuntural
complexa, deixa claro a nós, historiadores e demais investigadores das manifestações
humanas, “que até mesmo as ideias falsas e absurdas são fatos e forças históricas”
(HOBSBAWM, 2014, p. 454). Acrescida de Chartier (2014), essa percepção se torna ainda
mais viva: para o historiador, a existência do pensamento humano se torna ainda mais notável

73
HITCHCOCK, 2010, p. 38.
74
“Os jornais de Londres relataram o fenômeno, e Aldini montou espetáculos para o público. Até mesmo o
príncipe- regente compareceu a um deles. Não parecia exagerado considerar essa força natural recém-controlada,
a eletricidade, como a força primordial da vida” (SHELLEY, 2010, p. 39).
53

por conta da concretude que adquire através de sua materialização em meios que comunicam:
papiros, pergaminhos, códex, livros, textos virtuais, etc. Reais ou fictícias, as ideias
“existem”, pois são suas próprias fontes – homens e mulheres no tempo – existentes.
54

4. FRANKENSTEIN, OU O CIENTISTA MODERNO

Mais uma vez o uso de trocadilhos com o título original da obra. Pode aparentar falta
de criatividade em insistir nesta “fórmula” para a denominação. Em defesa desta pesquisa, os
trocadilhos são, antes de tudo, orientadores. Eles propõem uma reflexão a priori por parte de
quem lê a perceber que tipo de ligação há entre o título e a temática do tópico ou capítulo que
serão abordados. Ao mesmo tempo, são definidores do assunto em questão. Logo, opta-se
pela evidenciação e clareza em detrimento de títulos ou muito extensos ou muito “pomposos”.
Os títulos aqui utilizados são, antes de tudo, objetivados. Frankenstein, ou o Cientista
moderno evidencia, depois de tudo que até aqui vimos acerca da relação da obra com a
ciência, que aquela personagem, Victor Frankenstein, é a personificação (fictícia) do cientista
moderno, ao modo que entendemos moderno como algo novo, em oposição direta e próxima
com o passado. (É interessante atentarmos para o sentido de moderno aqui utilizado, tendo
em vista que, sob o olhar historiográfico, o recorte dos tempos históricos possui um período
denominado de Moderno – séculos XV-XVIII –, enquanto que a obra Frankenstein é fruto da
Era Contemporânea, como já apontado no capítulo anterior. Para tanto, os conceitos de
“moderno” e “passado” serão devidamente apresentados a partir de embasamento teórico –
enfoque na perspectiva de Jacques Le Goff).
Victor Frankenstein, seja na literatura ou em qualquer outra mídia artística,
possibilitou ao público que o interpretasse como o símbolo humano do desafio as ordens
naturais, como o guia da humanidade para que descobrisse por si só os segredos da vida e da
morte, rompendo drasticamente com a “abstração” de seres e mundos transcendentais
(GIASSONE, 1999; HITCHCOCK, 2010). Para Victor Frankenstein, o principal caminho
para que homens e mulheres tornassem-se de fato autônomos era aquele proporcionado pelo
desenvolvimento da ciência, ferramenta essa teórico-metodológica que reflete sobre o
materialismo da existência para nela poder intervir, promovendo significativas melhorias (ao
menos na intenção). Logo, se aceitarmos a sugestão de Hobsbawn “que até mesmo as ideias
falsas e absurdas são fatos e forças históricas” (2014, p. 454) e a adaptarmos a famosa
afirmação de Marc Bloch, que a História é a ciência “dos homens, no tempo” (2002, p. 55),
esta personagem fictícia, portanto, obviamente falsa, ainda assim é uma “força histórica”, pois
é um “homem de seu tempo” e, portanto, sobre ele nos fala, ainda que por meio de uma
narrativa absurda.75

75
Sobre a relação entre a História e a Literatura e as suas similaridades (ou pontos de encontro) no que diz
respeito à confecção da narrativa, consultar BARROS, José D’Assunção. História e Literatura – novas relações
55

E é justamente através da narrativa da história de vida de Victor Frankenstein que


realizamos nossa análise para perceber os conflitos consequentes de uma sociedade em pleno
avanço material e intelectual. Através das experiências estudantis deste jovem e brilhante
cientista, somos inseridos em um duelo epistemológico entre duas mentalidades científicas,
que contrapõem tradição e progresso, antigo e moderno, velho e novo: a juventude de Victor
Frankenstein está associada à imaturidade intelectual (ainda que o mesmo demonstrasse
dedicação e compromisso com os estudos), voltada a uma visão romântica de ciência, através
da crença em hipóteses que, sob olhar erudito e tradicional, são tratadas como inconcebíveis.
Posteriormente, com seu ingresso na universidade, Victor Frankenstein é apresentado a um
fazer científico empírico, experimental, fundamentado em preceitos filosóficos contrários a
uma visão idealista da ciência.76 Portanto, são estes dois momentos de conflito –
modernidade x tradição – que a princípio por sobre eles nos debruçaremos. Contudo, vale
aqui uma ressalva: seguindo a percepção de José D’Assunção (2010), é importante notarmos
que nenhum objeto de estudo é passivamente construído. Para aquele historiador, o objeto de
análise, através dos vestígios que nos deixa (claro, sendo tais vestígios percebidos de acordo
com a interpretação de variados pesquisadores) se permite ser construído, realizando assim,
conjuntamente ao investigador, o processo de elaboração da narrativa científica (BARROS,
2010). Esse processo logo nos remete a outra percepção acerca do trabalho de pesquisa
auxiliado por fontes de cunho literário e fictício: seguindo o raciocínio de Ana Giassone
(1999), não podemos confundir a possibilidade de interpretamos uma fonte por perspectivas
diversificadas com a possibilidade de obtermos qualquer interpretação, ilimitadamente. (É
sempre válido ressaltar que, por trás de uma produção, existem intenções, ainda que estas
sejam as mais “obscuras” de se compreender; também possuem período e local específicos).

[...] as fontes impedem a liberdade total do historiador e, ao mesmo tempo, não


fixam as coisas de tal modo que se ponha mesmo fim a infinitas interpretações. [...]
Assim, embora as fontes/acontecimentos possam simplesmente impedir que se diga
tudo que se queira, eles também não implicam que se deve seguir uma única
interpretação (JENKINS, 2013, p. 33-34).

Logo, as fontes possuem uma localização, um espaço estrutural delineado. E, ainda


que saibamos que existam outras problemáticas palpáveis para a investigação sociohistórica,

para os novos tempos. Revista Contemporâneos, Santo André – SP, n. 6, mai./out. 2010. Disponível em:
<http://www.revistacontemporaneos.com.br/n6/dossie2_historia.pdf>. Acesso em: 17 fev. 2016.
76
Vale ressaltar: mais do que falarmos em “maturidade intelectual” na fase adulta, temos que ter em conta que,
no caso de Victor e sua inserção na academia, estamos também tratando sobre a legitimação do saber, cujo este
se faz em determinados círculos restritos e regulamentados, seja a nível macro ou microscópico (BURKE, 2003;
CHARTIER, 2014).
56

estas não necessariamente convergem com os objetivos aqui propostos. Em síntese: à medida
que é interpretado, o objeto permite-se transparecer aos olhos do historiador, isso porque,
mesmo que ele possibilite uma gama diversificada de interpretações, estas se fazem dentro de
um “círculo” de sentidos delimitado, ou seja, as interpretações só são possíveis porque,
obviamente, é o objeto que permite tal ação, não o historiador que, aleatoriamente, “produz”
percepções a seu bem querer. Isto, claro, pois toda realização artística possui, como já dito,
proposta ou propostas passíveis de serem analisadas.
Mas, afinal, o que é um cientista sem a prática de sua ciência?
Mais do que o embate epistemológico, também, é importante analisarmos os feitos de
um intelectual. Nesse sentido, concluída a análise da trajetória da personagem até a
maturidade científica, nos ocuparemos de investigar os resultados de seu trabalho, apelando
profundamente para uma percepção filosófica de sua realização. Afinal, qual o impacto de
uma produção científica na sociedade? No caso de Frankenstein, o que a obra nos permite
refletir acerca do trabalho científico? Ele é benéfico para o meio? Ou seria maléfico? Poderia
ser indiferente? Existe um posicionamento crítico por parte da autora acerca da ciência em seu
tempo e seu avançar contínuo? Se sim, qual ou quais interpretações podemos realizar?
Victor Frankenstein, como veremos, cria um ser à imagem física do homem. Ou seja,
possui a habilidade e o conhecimento para poder criar a vida. Esta vida, contudo, foge aos
domínios do seu criador, consequência esta não refletida por Frankenstein. A independência
de sua criatura causa profundos infortúnios. Ora, mas não fora justamente a independência de
Victor Frankenstein em relação ao grande Criador – isso se levarmos em conta o discurso
religioso normativo tanto do livro como da autora – que o levara a produzir um ser tão
desafiador quanto ele mesmo? Victor Frankenstein é uma ameaça que produz ameaças. Ele
mesmo rompeu o “tratado natural” e “divino” que o fazia submisso às forças sagradas:
deveria, portanto, sua criação, racional e progressista como ele próprio, se submeter frente ao
seu humano criador? Neste ponto, damos vazão a um posicionamento crítico de Mary Shelley
como, se não uma opositora, ao menos uma pessoa cautelosa frente ao sensacionalismo
científico de sua época, instigando seus contemporâneos a refletirem sobre quais seriam os
limites das realizações humanas. Para tanto, destacamos, no segundo momento, espaço para
que a Criatura se manifeste. Através de sua trajetória, marcada por percepções psicológicas e
sociológicas, buscamos entender como esse Monstro articula, metaforicamente, um
posicionamento crítico frente ao fazer científico.
Por fim, mergulhamos na conjuntura da obra e passamos a refletir sobre suas
possibilidades de interpretação de um tempo que não o nosso, mas que de forma alguma está
57

desconectado do presente. Pois, em uma sociedade em constante avanço como a que vivemos,
seja um avanço material ou de qualquer outra categoria, é sempre importante avaliarmos os
nossos passos e decidirmos sobre o melhor caminho. Essa é uma das grandes lições de Mary
Shelley e seu Frankenstein: a pedagogia mítica dos e para os humanos (HITCHCOCK,
2010).
Contudo, antes de adentrarmos detalhadamente na narrativa de Mary Shelley,
precisamos elucidar alguns detalhes “técnicos” importantes para a compreensão da análise. O
primeiro ponto importante é observamos a estrutura da obra: se fizermos uma contagem literal
da divisão de capítulos, a obra possui, portanto, vinte e oito. Contudo, o texto se inicia com
quatro cartas escritas pela personagem Robert Walton, um britânico navegante explorador.
Ao término destas cartas, tem-se o início da história de Victor Frankenstein, que marca o
primeiro capítulo. Outro detalhe “técnico” nos surge.
Walton escreve as quatro cartas endereçadas à sua irmã, Margaret Saville, que vive na
Inglaterra. Na quarta e última carta, Walton então encontra Victor Frankenstein pela primeira
vez e este inicia sua história. Logo, a história de Frankenstein é narrada dentro do conteúdo
das cartas de Walton. Assim, temos o seguinte encadeamento: {Walton [Frankenstein]}.77
Posteriormente, Frankenstein conta sobre sua criatura e dá voz a mesma. Assim surge um
novo encadeamento: {Walton [Frankenstein (Criatura) Frankenstein]}. O livro então termina
com Walton narrando em suas cartas os trágicos acontecimentos que se sucederam a Criatura
e a seu criador. Por fim: {Walton [Frankenstein (Criatura) Frankenstein] Walton}. O texto é,
então, produzido através de narrativas dentro de narrativas, cujas falas inicial e final são de
Walton, transparecendo que todo o conteúdo escrito (fictício) está em sua propriedade. Logo,
resolvida esta questão, apresento a análise da trama.

77
A utilização dessa estrutura para a explicação do formato das falas dos personagens é apenas a nível
explicativo. Contudo, tal estratégia já fora utilizada por Giassone (1999), portanto, nela inspirado.
58

4.1. CIENTIFICIDADE E HISTORICIDADE

Como dito, a história não se inicia com a protagonista, mas sim com outro personagem
não menos importante à trama. Robert Walton é um explorador inglês que busca desbravar as
terras gélidas do Polo Norte. Para tanto, dedica-se firmemente a sua meta pois, como o
mesmo afirma:

[...] não se pode contestar o bem inestimável que farei a toda a humanidade, até sua
última geração, ao descobrir uma passagem nas imediações do polo rumo àquelas
terras, alcançando o que no presente requereria tantos meses para se alcançar
(SHELLEY, 2013, p. 36).

Podemos perceber, então, que sua meta não se justifica apenas por si e para si, mas
que ela tem valor especial para a humanidade. Aliás, seu objetivo conflui duas perspectivas
que o motivam a dar cabo de sua missão: assim como pretende “saciar [...] [sua] ardente
curiosidade com as paisagens de uma parte do mundo nunca dantes visitada”, Walton também
busca descobrir “ali o fabuloso poder que atrai a agulha e empreende uma infinitude de
observações do céu”, para então “estabelecer com convicção o segredo do magneto”
(SHELLEY, 2013, p. 36). Eis um ponto importante que devemos aqui nos deter e analisar; na
verdade, temos duas observações históricas importantes: a importância dos navegadores
exploradores e a curiosidade que se converte em empreendimento científico78.

Os exploradores oferecem exemplos memoráveis de coleta de


conhecimento, motivando reflexões sobre o processo pelo qual se produz
conhecimento.
[...]
A quantidade de conhecimento novo colhido ou coletado no primeiro
século de nosso período de estudo, 1750-1850, foi assombrosa, sobretudo o
conhecimento coletado por europeus sobre a fauna, a flora, a geografia e a história
de outras partes do mundo (BURKE, 2012, p. 22-23).

É assim que Peter Burke (2012), nos apresenta o papel importante dos navegadores no
desenvolvimento do conhecimento. Tal papel é antigo, contudo toma forma mais profunda a
partir daquilo que Burke denomina de “primeira era dos descobrimentos, que se iniciou com
Vasco da Gama e Cristóvão Colombo” (2012, p. 23). Apesar de sabermos que desde tempos
remotos, como no período da Antiguidade, a navegação e a troca de informações ocorriam, é
justo com o processo explorador marítimo iniciado no século XV pelos europeus, em especial
pelos países ibéricos – Portugal e Espanha – considerar o processo quantitativo de

78
Walton usa os termos “empreendimento”, “trabalho”, “projeto”, “expedição”, “exploração” para se referir a
sua meta. Ao mesmo tempo, se descreve da seguinte forma: “Sou industrioso – um trabalhador esforçado, que
executa com perseverança e meticulosidade seu trabalho [...]” (SHELLEY, 2013, p. 41).
59

conhecimento em grande circulação que se estabeleceu. A partir do século XV, podemos ver a
Europa se “comunicar” com uma gama maior de continentes, a partir da penetração nos
continentes americanos. Desta forma, temos uma geografia que conecta o Velho Mundo
(Europa, Ásia e África) com o Novo Mundo (Américas).
Através desse processo, podemos ver surgir uma “curiosidade” maior pelo outro
(ainda que numa visão eurocêntrica de padrões morais e culturais), levando em consideração
as várias práticas cotidianas de outros povos e como elas poderiam ser adaptadas ao mundo
europeu. Prova disso é a constatação de Burke (2003) que alguns conhecimentos médicos de
povos colonizados, por exemplo, eram então apropriados e reutilizados no círculo médico
europeu, devido sua eficácia.
Contudo, a própria quantificação dos dados coletados levou a uma maior qualificação
desses navegadores, devido ao desenvolvimento de novos de sistemas de classificação,
levando a uma especialização desses desbravadores.79
Uma marca dessa qualificação da navegação se evidencia a partir da “segunda era de
descobrimentos” (a partir do século XVIII), cujos navios europeus agora não levavam mais
apenas “soldados, comerciantes, missionários e administradores”: se faziam presentes também
especialistas como “astrônomos, naturalistas e outros estudiosos” (BURKE, 2012, p. 27).
Como a obra Frankenstein é escrita e publicada no século XIX (apesar de sua narrativa
fictícia ser localizada no século anterior), torna-se plausível a aproximação da figura de
Walton com as dos navegadores contemporâneos. Afinal, segundo Burke, “é correto situar o
surgimento da expedição científica ou de coleta de conhecimento como fenômeno recorrente
e organizado – em outras palavras, como uma instituição – na segunda metade do século
XVIII” (2012, p. 27).
Essa especialização crescente, também, se torna necessária devido aos inúmeros
problemas enfrentados em alto mar. Afinal, os empreendimentos variavam bastante entre o
sucesso e a tragédia (BURKE, 2012). Walton, esse homem “industrioso”, não fica atrás no
quesito preparo. Ele nos narra seu processo de aprimoramento e adaptação às adversidades da
natureza, assim como sua dedicação a variados estudos:

Posso, mesmo agora, lembrar o instante a partir do qual passei a me dedicar a este
grande projeto. Comecei preparando meu corpo às adversidades. Acompanhei
baleeiros em muitas expedições pelo Mar do Norte; suportei voluntariamente o frio,
a fome, a sede e o sono; muitas vezes trabalhei com mais afinco do que os
marinheiros comuns durante o dia e devotei minhas noites ao estudo da matemática,

79
É o caso da Casa de Contratación espanhola, fundada em Sevilha em 1503, “uma escola de treinamento de
navegadores [...]. [...] A primeira escola de navegação na Europa, logo adquiriu reputação internacional (como
testemunha um visitante inglês em 1558, o piloto Stephen Borough)” (BURKE, 2003, p. 41).
60

das teorias médicas e dos ramos das ciências físicas, saberes que um aventureiro dos
mares deve testar na prática (SHELLEY, 2013, p. 37).

Atentemo-nos para o imperativo na fala de Walton: “saberes que um aventureiro dos


mares deve testar na prática”. Ora, sua meta exige determinados conhecimentos citados no
trecho acima. Conhecimentos esses que se especificam de acordo com o objetivo proposto.
Afinal, antes da constituição da expedição científica como “instituição”, a coleta de dados –
materiais ou imateriais (como experiências culturais e folclóricas) – era de grande relevância.
Isso, contudo, ao invés de prejudicar o acúmulo dos saberes, impulsionou passos importantes
no desenvolvimento nos sistemas de classificação. Mesmo com a coleta “abrangente” e
aparentemente “aleatória”, há sim, entre os séculos XV-XVIII, uma preocupação com a
classificação. Burke nos dá um exemplo: “O museu de Worm inclui caixas rotuladas de
‘Metal’, ‘Pedra’, ‘Madeira’, ‘Conchas’, ‘Ervas’, ‘Raízes’ etc.” (2003, p. 102). Também é
válido ressaltar o zelo dado a “coleta” de conhecimentos sociais e culturais desde o século
XV, ainda que tal atividade tenha se tornado mais efetiva e abundante, além de mais
especializada (arqueologia, antropologia, etnologia, etc.) no século XIX (BURKE, 2003;
2012). Logo, a navegação colonizadora e comercial aos poucos vai se aperfeiçoando e
exigindo novas habilidades de seus membros. A “curiosidade” de outros tempos se
especializada e se transmuta em “investigação”.
Como já dito acima, o projeto de Walton exige uma diversidade de aprendizados para
que de fato possa concluir com êxito seu o objetivo. Temos, portanto, um viajante que tem
especificado seu compromisso (desbravar o Polo Norte e realizar descobertas acerca do
magnetismo – quando possível, observar e analisar o “céu”). Agora, diferente de outros
períodos, Walton, apesar de ter em mente que sua exploração pode se deparar com
imprevistos e adversidades, o navegador já possui um foco e planejamento estabelecido, não
dependente da “aleatoriedade” das descobertas (óbvio que, em toda busca, por mais que nos
dediquemos a um único objetivo, temos a possibilidade de ter acesso a outros conhecimentos,
até mesmo de nos confrontarmos com descobertas que de antemão não queremos – a tal fato,
o físico e historiador da ciência Thomas Kuhn designa o termo anomalia para explicar
descobertas tanto aleatórias como indesejáveis que podem ocorrer durante o processo de
investigação).80 Tal fenômeno, a transição da “curiosidade” para a “pesquisa”, tem seu

80
Cf. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 12ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 127-
143.
61

desenrolar com mais precisão a partir do século XVII; com o advento do projeto Iluminista,
especialmente no século XVIII, toma proporções mais evidentes (BURKE, 2003).

[...] A palavra “pesquisa”, em diversas línguas (research, recherche,


ricerca, etc.) deriva da origem comum “busca” (search) e pode ser encontrada em
títulos de livros já no século XVI, inclusive nas Recherches de la France (1560), de
Étienne Pasquier. O termo era mais empregado no plural que no singular, e se tornou
mais visual a partir do século XVII, e mais ainda ao final do século XVIII, fosse
para referir-se às artes ou às ciências, aos estudos de história ou aos de medicina.
Junto com a palavra “pesquisa” outros termos vieram a ter uso regular, notadamente
“investigação” (e seu equivalente italiano indagine), que se ampliou para além de
seu contexto legal original, e “experimento” (em italiano, cimento), que se restringiu
a partir de seu sentido original de teste em geral para o de teste das leis da natureza
em particular.
[...] Esse conjunto de termos sugere uma consciência crescente, em certos
círculos, da necessidade de buscas para que o conhecimento fosse sistemático,
profissional e útil. [...] Por essas razões, podemos falar de um deslocamento, em
torno do ano 1700, da “curiosidade” para a “pesquisa”, resumida num memorando
de Leibniz que recomendava o estabelecimento de uma Academia de Berlim, mas
definia seu propósito em contraste com a mera curiosidade (Appetit zur Curiosität).
Esse sentido da pesquisa estava ligado à ideia de que o estoque de conhecimento não
era constante em qualidade ou quantidade, mas podia ser “aumentado” e
“aperfeiçoado”, ideia discutida com mais detalhes adiante (BURKE, 2003, p. 48-
49).

Contudo, vale ressaltar que, dentre esses inúmeros trabalhos que traziam “pesquisa”
em seus títulos81, a maioria se refere a “pesquisas realizadas em arquivos, museus e
laboratórios, mas outros exemplos incluíam o que agora chamamos de ‘trabalho de campo’,
como no caso óbvio da exploração” (BURKE, 2012, p. 22).
Essa transição dentro do universo do fazer científico se deve, se nos apropriarmos da
proposição de Eric Hobsbawm (2014), das consequências sociais, culturais, econômicas,
políticas e “mentais” proporcionadas pela “dupla revolução” – Francesa e Industrial Inglesa –
que impactou a sociedade europeia e, em não muito tempo, o mundo. Contudo, tal processo
não deve ser enxergado à maneira Iluminista, que prevê progresso constante e eterno
(teleológico) da sociedade. Ante tal perspectiva, Hobsbawm nos alerta:

O progresso da ciência não é um simples avanço linear, cada estágio determinando a


solução de problemas anteriormente implícitos ou explícitos nele, e por sua vez
colocando novos problemas. Este avanço também acontece pela descoberta de novos
problemas, de novas maneiras de abordar os antigos, de novas maneiras de enfrentar
ou solucionar velhos problemas, de campos de investigação inteiramente novos, de
novos instrumentos práticos e teóricos de investigação (HOBSBAWM, 2014, p.
428).

81
Em vários campos, aliás; “entre eles a anatomia, a astronomia, a economia política, a demografia, a geografia,
a física, a química, a paleontologia, a medicina, a história e os estudos orientais” (BURKE, 2012, p. 22).
62

Walton é, mais uma vez, nosso exemplo: mais que um mero navegador, é um
intelectual polivalente, pois possui novos problemas que enfrenta e aborda através de novas
maneiras. O período da dupla revolução, “portanto, fez crescer o número de cientistas e
eruditos e estendeu a ciência em todos os seus aspectos” (HOBSBAWM, 2014, p. 431).
Contudo, fica no ar uma questão: sabendo que o século XVIII é importante na história do
desenvolvimento da ciência e que as duas revoluções europeias impactaram a proliferação de
pesquisadores, como o universo do saber fora quantificado, nesse contexto? Fora uma
iniciativa de cooperação entre pesquisadores ou podemos tratar acerca de incentivos
macroscópicos (Estado, empresários, etc.)?
Hobsbawm (2014), por exemplo, infere três situações (séculos XVIII-XIX): o
incentivo estatal, no caso da França napoleônica; a atitude individual – o caso do “Conde de
Rumford, [...] [que] fundou a Instituição Real em 1799” (HOBSBAWM, 2014, p. 430); assim
como a contribuição de industriais, como no caso da fundação da Sociedade Lunar de
Birmingham e a Sociedade Filosófica e Literária de Manchester (HOBSBAWM, 2014, p.
431).82 Em complementaridade, Peter Burke mergulha um pouco mais profundo no tempo, e
mostra que a iniciativa de fomento à pesquisa já vigorava desde o século XVI.

Algumas instituições alternativas de educação superior já existiam em


1700. Embora os artistas continuassem a receber boa parte de seu treinamento em
ateliês, a instrução por elas fornecida era cada vez mais complementada com
temporadas em academias de Florença, Bolonha, Paris e outras cidades. Academias
para que os meninos da nobreza aprendessem matemática, fortificações, línguas
modernas e outras habilidades consideradas úteis para suas futuras carreiras no
exército ou na diplomacia haviam sido fundadas em Soro (1586), Tübingen (1589),
Madri (1629), etc. Academias ou quase universidades para os calvinistas franceses
haviam sido fundadas em Sedan e Saumur por volta de 1600 e desempenharam
papel importante na vida intelectual até sua supressão em 1685. Em Amsterdã, o
Athenaeum (fundado em 1632) exploravam novos temas, como história e botânica.
Foi, porém, no século XVIII que essas iniciativas se multiplicaram. Foram
fundadas academias de artes em Bruxelas (1711), Madri (1744), Veneza (1756) e
Londres (1768). Novas academias nobres foram fundadas em Berlim (1705) e em
muitas outras cidades. Entre 1663 e 1750 foram fundadas em Londres e cidades
provinciais como Warrington, em Lancashire (onde um dos professores era filósofo
Joseph Priestley), quase sessenta academias para “dissidentes” da Igreja da
Inglaterra, excluídos de Oxford e Cambridge.
[...] Essas iniciativas [...] foram levadas mais adiante no século XVIII, a era
das academias, em geral com o apoio dos governantes, que pagavam salários aos
sábios para que realizassem suas investigações, permitindo que seguissem carreiras
fora das universidades pelo menos em tempo parcial. O cientista profissional do
século XIX surgiu a partir de uma tradição semiprofissional (BURKE, 2003, p. 47-
49).

82
Hobsbawm também ressalta a participação “popular”, como no caso da “pressão geral das pessoas inteligentes
da classe média por uma educação técnica e científica [...]” (2014, p. 430).
63

Podemos perceber então que o processo de qualificação da pesquisa científica é


obviamente longo, mas não necessariamente linear, como já apontado anteriormente: a citação
acima nos dá o exemplo das instituições calvinistas francesas, suprimidas em menos de um
século.83
Compreendida a importância da pesquisa e da institucionalização, também, se faz
importante refletirmos sobre o que se estuda. A partir de Walton, temos acesso a várias
ciências e campos científicos, como a matemática, astronomia (“observações do céu”),
magnetismo, assim como as “teorias médicas” e demais “ciências físicas”.
Ao passo que Hobsbawm atesta que a astronomia não teve um “grande avanço” a
partir da segunda metade do século XVIII (permanecendo fiel ao paradigma newtoniano), o
mesmo afirma que a matemática fora radicalizada tão quanto a dupla revolução pôde
impulsionar (2014, p. 428-429).

Uma revolução ainda mais profunda mas, pela própria natureza do assunto,
menos óbvia do que a ocorrida na química, se deu em relação à matemática.
Contrariamente à física, que continuou dentro dos termos de referência do século
XVII, e à química, que respirava forte através da porta aberta no século XVIII, a
matemática em nosso período [1789-1848] entrou em um universo inteiramente
novo, muito além do universo dos gregos, que ainda dominava a aritmética e a
geometria plana, e daquele do século XVII que dominava a análise (HOBSBAWM,
2014, p. 434-435).84

Contudo, é importante notarmos a historicidade que esse contraponto


“desenvolvimentista” entre ciências revela, sendo já um fato debatido pelos contemporâneos
dos séculos XVIII e XIX. A importância da legitimação do saber científico, daquilo que deve
ser estudado, por quem deve ser estudado, onde deve ser estudado é crucial para o
desenvolvimento de indivíduos, grupos ou instituições que buscam se estabelecer.
Atualmente, defendemos um forte discurso de disseminação do saber e cooperação mútua –
ainda que reter saberes, ou distribuí-los dentro de certas condições (financeiras, institucionais,
políticas, etc.) seja uma prática nada incomum – compartilhando expressões como
“democratização da informação”, inter ou transdisciplinaridade, etc. O próprio Walton possui
estas atitudes, deixando exposto sua pretensão de contribuir para o saber universal. Contudo,
devemos novamente lembrar, o explorador inglês determina que conhecimentos devem-se

83
A consulta a Burke (2003) ajuda a elucidar e compreender as tramas que permeiam a constituição de
movimentos científicos e institucionais, tratando sobre permanências, mudanças, conflitos, rupturas,
agremiações, avanços e retrocessos, etc. Apesar de seu recorte temporal ser estabelecido entre os séculos XV-
XVIII, as observações do autor são flexíveis o suficiente para nos permitir refletir sobre práticas científicas de
outros tempos – especialmente do nosso.
84
O próprio Victor Frankenstein também se dedica ao estudo da matemática, após sugestão de um de seus
professores universitários (SHELLEY, 2013, p. 71).
64

possuir para dar concretude à sua obra. No século XIX, Burke nos dá os exemplos de Auguste
Comte, que vê na sociologia a ciência máxima, e de William Whewell, este mais coerente
com nosso discurso, ao afirmar que a astronomia é suprema (2012, p. 73).
Suprema ou não, a astronomia no século XIX fora uma ciência atraente. Essa
proximidade entre o poético e o científico nos oitocentos (cujo já vimos no capítulo anterior)
nos permite refletir acerca do envolvimento lúdico que há entre o céu e os seus subalternos –
humanos. O próprio protagonista Victor Frankenstein nos dá seu exemplo: “Eram os segredos
do céu e da terra que desejava conhecer; [...] todos os meus questionamentos se dirigiam aos
segredos metafísicos ou, em seu mais elevado grau, físicos do mundo” (SHELLEY, 2013, p.
58). Para além do céu, indo ao alcance dos segredos do universo, o famoso cientista
Alexander Von Humboldt proferia palestras “sobre o cosmo, apresentadas em Berlim em
1827-1828, atraindo um grande público, inclusive de damas da sociedade” [grifo meu]
(BURKE, 2012, p. 119). Notemos que o período das palestras de Humboldt, por exemplo, se
encaixa em nosso recorte temporal (1818-1831). Tal fato nos faz refletir acerca da atualização
de Mary Shelley sobre os debates contemporâneos, tendo em vista que é apenas na terceira
edição de 1831 que a autora acrescenta as quatro cartas inicias de Walton, das quais retiramos
os primeiros elementos para análise. Assim, temos em Walton um explorador já conhecedor
da importância dos “segredos do céu”, pois até aqui pudemos vislumbrar com Humboldt e
Whewell a relevância da astronomia.
Humboldt, aliás, é um exemplo real das diversas habilidades e conhecimentos que um
explorador deve possuir, afinal:

[...] contribuiu primordialmente [...] para o progresso da ciência: como um


incansável viajante, observador e teórico nos campos da geografia, etnografia e
história natural, embora sua nobre síntese de todo o conhecimento, a obra Cosmos
(1845-1859), não possa ser definida dentro dos limites de disciplinas particulares
(HOBSBAWM, 2014, p. 431).

E, assim como Walton, é um atento aos segredos do céu e do magnetismo:

Em sua expedição à América espanhola (1799-1804), Humboldt levou, segundo ele


mesmo relatou, mais de quarenta tipos de instrumentos de medição, entre eles [...]
um magnetômetro para medir as forças magnéticas da Terra, e até um cianômetro
para medir o azul do céu (BURKE, 2012, p. 87).

Magnetismo: outro campo presente na obra Frankenstein e importantíssimo para a


história da ciência. Contudo, tanto o magnetismo, com a medicina e outras “ciências físicas”
são pertinentes na trajetória de Victor Frankenstein. Nesse sentido, este tópico é finalizado
tendo como objetivo apresentar os percursos do desenvolvimento científico, sua historicidade
65

e sua relação com o universo fictício da obra. Concluída esta tarefa, passemos adiante para o
tópico principal de nossa análise.

4.2. CARREIRA ABERTA AO TALENTO: EM BUSCA DO PROGRESSO

O título deste tópico alude ao capítulo 10 da obra Era das revoluções, de Eric
Hobsbawm. Nele o autor analisa as possibilidades que um mundo industrial burguês
proporciona ao início de carreiras cada vez mais cedo. A experiência prática e longeva de
profissionais de outrora vai abrindo espaço para o aprimoramento intelectual de uma
juventude que se debruça sobre um aprofundamento intelectual, seguido do exercício técnico,
além de uma educação que tem, como um de seus recursos para posteridade, a possibilidade
de alteração, reformulação ou mesmo acréscimos em seu fazer. Uma sociedade em constate
transformação exige flexibilidade por parte de seus analistas, tendo em vista que o intervalo
de tempo entre o alvorecer das novidades torna-se, gradualmente, menor. Mentalidades,
costumes, técnicas, saberes: tais categorias têm quatro opções a seguir frente ao novo: se
acostumar, combater, absorver ou eliminar. Progressismo e conservadorismo: duas palavras
que vão caracterizar bem a discrepância de impressões frente ao um mundo diferente que se
instaura devido às inovações político-sociais trazidas pela Revolução Francesa e às frequentes
e presentes contribuições materiais da Revolução Industrial. Contribuições materiais essas que
levaram uma quantidade de mentes a se dedicarem a um universo “prático” de realizações,
com rápido “retorno”.

O punhado de intelectuais, escritores e eruditos agnósticos do século XVIII


que falavam por eles não deve obscurecer o fato de que a maioria deles estava muito
ocupada em ganhar dinheiro para se aborrecer com qualquer coisa que não estivesse
ligada a este fim. Eles apreciam seus intelectuais, até mesmo quando, como no caso
de Richard Cobden (1804-1865), não eram homens de negócio particularmente bem-
sucedidos, desde que evitassem ideias pouco práticas e excessivamente sofisticadas,
pois eles eram homens práticos cuja própria falta de instrução fazia-os suspeitar de
qualquer coisa muito além do empirismo. O cientista Charles Babbage (1792-1871)
propôs-lhes seus métodos científicos em vão. Sir Henry Cole, o pioneiro do desenho
industrial, da educação técnica e da racionalização do transporte, deu-lhes (com a
inestimável ajuda do Príncipe Consorte alemão) o mais brilhante monumento a seus
esforços, a Grande Exposição de 1851. [...] George Stephenson, mecânico de minas
que se fez por si mesmo dominou as novas ferrovias, impondo-lhes a medida do
velho cavalo e da carroça - nunca pensou em outra coisa –, ao contrário do
sofisticado, criativo e ousado engenheiro Isambard Kingdom Brunel, que não possui
monumento no panteon de engenheiros construídos por Samuel Smiles, exceto a
frase condenatória: “ em termos de resultados práticos e lucrativos, os Stephenson
foram inquestionavelmente os homens mais seguros para se seguir. Os filósofos
radicais fizeram todo o possível para construir uma rede de “Institutos de
Mecânicos” - expurgados dos desastrosos erros políticos que os operadores
insistiam, contra a natureza, em ouvir nesses lugares – a fim de treinar os técnicos
das novas indústrias de bases científicas. Já em 1848, a maioria deles se encontrava
moribunda por falta de qualquer reconhecimento geral de que tal instrução
66

tecnológica poderia ensinar aos ingleses (em comparação com os alemães e os


franceses) qualquer coisa de útil. Havia muitos industriais inteligentes, de espírito
experimentador, e até mesmo cultos, que lotavam as reuniões da Associação
Britânica para o Progresso da Ciência, mas seria um erro supor que eles
representavam o conjunto de sua classe (HOBSBAWM, 2013, p. 294-295).

É justo nesse “admirável mundo novo” que nasce Victor Frankenstein, nosso
protagonista. “Havia uma ordem no universo, mas já não era a ordem do passado”
(HOBSBAWM, 2014, p. 294).
Victor Frankenstein é suíço, natural de Genebra. Contudo, parte de sua juventude foi
vivida na Itália, onde por sinal conheceu Elizabeth Lavenza, aquela que viria a ser sua irmã
adotiva e futura esposa. Desde a mais tenra infância, Victor recorda em suas memórias o
gosto pela investigação da natureza: “com todo meu fervor, demonstrava-me capaz de uma
mais intensa aplicação e era mais profundamente arrebatado pela sede de conhecimento”
(SHELLEY, 2013, p. 57). Sobre sua juventude ao lado de sua irmã, elucida sua principal
diferença em relação a ela (e posteriormente a outros jovens):

Enquanto minha companheira contemplava de espírito sério e satisfeito as


magníficas aparências das coisas, eu me deleitava na investigação de suas causas. O
mundo me era um segredo que desejava desvelar. A curiosidade, o ávido auscultar e
o estudo das leis oclusas da natureza – uma alegria próxima do êxtase me tomava à
medida que as compreendia, e estas são as mais primordiais sensações de que posso
me recordar (SHELLEY, 2013, p. 57).

Podemos ver uma marca na fala de Victor Frankenstein: a fala romântica, que, aliada à
sua juventude, apresenta uma perspectiva da pesquisa dos “segredos do mundo” como um
trabalho deleitoso e virtuoso. Além disso, mais do que admirar, poder de fato “penetrar” nos
recônditos nublados daquilo que se vê. É justamente nesse aprofundamento nos segredos da
natureza que ele desenvolve os métodos e ferramentas para a confecção de seu projeto: criar
vida.
Antes mesmo de ingressar na universidade, Victor Frankenstein já era um estudioso
das ciências. Contudo, suas referências intelectuais eram de outros tempos que não mais
convergiam com as propostas contemporâneas ao jovem. Durante a juventude, lera filósofos
como Paracelso, Cornelio Agripa e Alberto Magno.

Li e estudei as loucas fantasias desses escritores com prazer; eles me pareceram


tesouros conhecidos de poucos além de mim. Vejo-me desde sempre impregnado de
um desejo premente de sondar os segredos da natureza. A despeito do trabalho
intenso e das maravilhosas descobertas dos filósofos modernos, sempre deixava
meus estudos descontente e insatisfeito. De Sir Isaac Newton é dito que
confessadamente se sentia uma criança recolhendo conchas à praia do grande e
inexplorado oceano da verdade. Aqueles seus sucessores em cada ramo da filosofia
67

natural com os quais havia travado contato pareciam à minha percepção infantil
iniciantes empenhados na mesma busca (SHELLEY, 2013, p. 62).

O trecho acima evidencia não apenas a já citada gama de Victor Frankenstein pelos
estudos; nele, também podemos destacar uma crítica que até hoje se faz presente, que é o ônus
que resultante da especialização da ciência em detrimento de sua universalidade. Apesar de
Frankenstein reconhecer que as descobertas “dos filósofos modernos são maravilhosas”, não
evita a crítica:

O camponês iletrado atentava aos elementos a seu redor e conhecia suas


possibilidades imediatas. O mais estudado filósofo não sabe muito ais do que ele.
Ele havia apenas parcialmente desvelado a face da Natureza, mas seus contornos
imortais ainda lhe eram uma maravilha e um mistério. Ele a poderia dissecar,
analisar e classificar; mas desconhecia mesmo causas de segundo e terceiro grau,
para não falar em uma causa final. Eu observara as fortificações e barreiras que
pareciam impedir os seres humanos de adentrar a cidadela da natureza e, ignorante e
descuidado, as lamentava (SHELLEY, 2013, p. 62).

Logo, descontente com o trabalho científico de sua época, Victor Frankenstein se


debruça sobre uma pesquisa ousada, intensa e enérgica, com metas grandiosas.

Mas então havia livros e homens que penetravam mais fundo e conheciam
mais. Tomei suas palavras por tudo que acertavam, e tornei-me seu discípulo. Pode
parecer estranho que tudo isso tivesse lugar no século XVIII; mas enquanto seguia a
rotina pedagógica das escolas de Genebra, era, em certa medida, um autodidata no
que concernisse a meus mais diletos estudos. Meu pai não tinha verve científica, e
assim fui deixado à luta contra minha cegueira infantil, à qual se somava minha sede
de conhecimento. Sob a tutela de meus novos preceptores embrenhei-me com a mais
elevada diligência à procura da pedra filosofal e do elixir da vida; mas a última logo
me exigiu toda a atenção. Bem-estar era uma questão menor; e se pudesse livrar o
corpo humano da doença e torná-lo invulnerável a tudo que não fosse uma morte
violenta – que glória não se seguiria a tamanha descoberta! Mas não eram estas as
minhas únicas visões. O suscitar de fantasmas e demônios era uma possibilidade
abertamente aceita por meus autores favoritos, e tal objetivo eu, intrépido, buscava;
e se meus feitiços sempre quedavam frustrados, atribuía o fracasso antes à minha
inexperiência e enganos do que à falta de habilidade ou saber de meus instrutores. E
assim me ocupei por algum tempo desses sistemas caducos, misturando sem
qualquer método um sem número de teorias contraditórias e me perdendo
desesperadamente em um abismo de saberes vários, guiado por uma imaginação
ardente e um raciocínio infantil, até que um novo acidente mudou o curso de minhas
ideias (SHELLEY, 2013, p. 62-63).

Já neste trecho, Victor Frankenstein nos faz um relato que, ao mesmo tempo em que
exalta suas qualidades juvenis de dedicação e autodidatismo, nos revela também um
posicionamento crítico acerca de seus estudos (vale lembrar que a narrativa é toda ela um
“olhar para trás” por parte dos personagens, com falas sempre dispostas no passado): como o
mesmo diz, sua pesquisa não possui um ordenamento, é toda ela aleatória, utilizando-se de
teorias que sequer se coadunam, assim como de perspectivas que, observando em retrospecto,
68

as considera “caducas”, ou seja, já não eficazes. Como o mesmo ressalta, uma das
deficiências de seu estudo é a falta de método: Victor Frankenstein tem acesso a teoria, mas
não consegue desenvolver um planejamento prático para suas realizações, o que o leva ao
fracasso de suas realizações. Tal denúncia já não era novidade na época em que Frankenstein
fora escrito: no século XVII, o filósofo inglês Francis Bacon alertava os males de estudos que
valorizam ou somente a teoria, ou somente a prática, concluindo que produtiva seria a coesão
dos dois.

Em seu Avanço do conhecimento, Francis Bacon condenou os “médicos empíricos”


que não conheciam nem as verdadeiras causas de uma doença, nem o método
verdadeiro de curá-la, mas era um crítico igualmente severo dos filósofos
escolásticos que deduziam suas conclusões sem dar atenção ao mundo cotidiano. “O
modo verdadeiro, ainda não tentado”, segundo o Novo órganon (1620), de Bacon,
era não seguir nem a formiga empírica, coletando dados de modo aleatório, nem a
aranha escolástica, armando uma teia a partir de si mesma, mas sim a abelha, que
tanto coleta quanto digere. Importava começar “a partir dos sentidos e particulares”
e elevar-se, por etapas, a conclusões gerais (Aforismos XIX, XCV) (BURKE, 2003,
p. 23).

Podemos perceber então que, de acordo com a observação de Burke (2003) sobre
Francis Bacon, há muito que a especialização do saber já dava seus primeiros passos, quando
então se pensava em começar os estudos de um nível menor para maior de conhecimentos. No
caso de Victor Frankenstein, é feito exatamente o contrário, quando o mesmo se debruça
sobre obras completas de vários autores e “mistura” vários conhecimentos gerais sem
especificar objetivos mais evidentes. Contudo, lembremos que, no trecho acima do nosso
protagonista, nos é revelado que suas ideias mudaram para um novo “curso”, mudança essa
provocada por um “acidente”. Segundo a personagem, “uma violenta e terrível tempestade”
(SHELLEY, 2013, p. 63).

Enquanto durou a tempestade permaneci observando-a com curiosidade e deleite.


Estando eu à porta, subitamente vi uma corrente de fogo partir de um velho e belo
carvalho que ficava a mais ou menos vinte jardas de nossa casa; e tão logo a
perturbadora luz se desfez, o carvalho desapareceu, nada restando senão um tronco
destroçado. Quando fomos até ele na manhã seguinte, encontramos árvores
destruídas, porém de um modo singular. Ela não havia se partido com o choque, mas
se reduzindo totalmente a frágeis lascas de madeira. Nunca havia visto destruição
dessa monta.
Antes desse episódio não estava a par das mais óbvias leis da eletricidade.
Naquela ocasião um homem de grande conhecimento em filosofia natural estava
conosco, e agitado pela catástrofe, desatou a nos explicar uma teoria sua sobre
eletricidade e galvanização, para mim algo absolutamente novo e formidável. Tudo
o que disse lançou Paracelso, Alberto Magno e Cornélio Agripa, os senhores de
minha imaginação, ao imediato esquecimento; no entanto, por alguma fatalidade, ter
abandonado esses autores tirou-me da trilha de meus estudos. Parecia-me que nada
seria ou poderia ser conhecido. Tudo que até então havia tomado minha atenção
subitamente quedava menor e inútil. Por um desses caprichos da mente aos quais
mais estamos sujeitos em nossa tenra juventude, desisti de meus primeiros
69

interesses, abandonei a história natural e toda a sua progenia como se fossem


aberrações da criação humana e alimentei um categórico desprezo por uma ciência
que, então, julgava fantasiosa e incapaz de chegar sequer perto do pórtico do
conhecimento real. Com esse espírito voltei-me à matemática e aos ramos do saber
relacionados àquela ciência, supostamente edificados sobre sólidas fundações e,
assim dignos de minha consideração (SHELLEY, 2013, p. 63-64).

A partir de agora, podemos observar nosso protagonista dar mais atenção aos
fenômenos cotidianos e, a partir deles, se debruçar sobre campos científicos específicos e que
dizem respeito àquele fenômeno em especial, no caso, as tempestades e seus raios. Para tanto,
como o mesmo nos diz, se faz necessário estudar ciências como a eletricidade e o galvanismo,
além da matemática, ciência básica para o uso dos cálculos. Tal escolha de Victor
Frankenstein não é à toa, tanto do ponto de vista científico, como histórico. Há um forte
paralelo social.

[...] o mais apaixonado crente na imaculada ciência pura é consciente de que o


pensamento científico pode ser influenciado por questões alheias ao campo
específico de uma disciplina. Os cientistas, até mesmo o mais antimundano dos
matemáticos, vivem em um mundo mais vasto que o de suas especulações
(HOBSBAWM, 2014, p. 428).

Aparentemente alheia a um fenômeno como o raio, a matemática é de fundamental


importância, tendo em vista ser, como já dito, base de qualquer tipo de cálculo, pois as quatro
operações (adição, subtração, multiplicação e divisão) são precedentes básicos para o avanço
em qualquer ciência que tenha os números como orientadores da pesquisa – não à toa, durante
nosso período aqui estudado, Hobsbawm (2014) afirma ser a matemática, por exemplo, uma
ciência que experimentou “novos pontos de partida radicais” (p. 429). Além do mais, Victor
Frankenstein e Hobsbawm “entram em acordo”, quando entendem que o que se conhece ainda
é pouco frente àquilo que pode vir a ser descoberto.
[...] “O progresso da ciência não é um simples avanço linear, cada estágio
determinando a solução de problemas anteriormente implícitos ou explícitos nele, e por sua
vez colocando novos problemas” (HOBSBAWM, 2014, p. 428): ao invés de manter sua
pesquisa anterior, Victor a descarta para dar início a uma nova, justamente por ter sido
confrontado com um novo problema. E, Hobsbawm prossegue na fórmula:

Este avanço também acontece pela descoberta de novos problemas, de novas


maneiras de abordar os antigos, de novas maneiras de enfrentar ou solucionar velhos
problemas, de campos de investigação inteiramente novos, de novos instrumentos
práticos e teóricos de investigação. Em todo ele há um grande espaço para o
estímulo ou a formação do pensamento através de fatos externos (2014, p. 428).
70

Exatamente o que acabemos de discutir acima. Novas propostas de pesquisa, não raro
orientadas por fatos “externos” ao universo científico – um raio e seus efeitos sobre a natureza
são os elementos motivadores para seu estudo.
Por fim, existe um aspecto na fala de Victor Frankenstein que é marcante e decisivo
nos rumos da pesquisa científica: a mudança da concepção de mundo; um novo olhar sobre o
que já existe. A esse fenômeno, o físico e historiador da ciência Thomas Kuhn dá o nome de
“revolução científica”.

O historiador da ciência que examinar as pesquisas do passado a partir da


perspectiva da historiografia contemporânea pode sentir-se tentado a proclamar que,
quando mudam os paradigmas, muda com eles o próprio mundo. Guiados por um
novo paradigma, os cientistas adotam novos instrumentos e orientam seu olhar em
novas direções. E o que é ainda mais importante: durante as revoluções, os cientistas
veem coisas novas e diferentes quando, empregando instrumentos familiares, olham
para os mesmos pontos já examinados anteriormente. É como se a comunidade
profissional tivesse sido subitamente transportada para um novo planeta, onde
objetos familiares são vistos sob uma luz diferente e a eles e apregam objetos
desconhecidos. Certamente não ocorre nada semelhante: não há transplante
geográfico; fora do laboratório os afazeres cotidianos em geral continuam como
antes. Não obstante, as mudanças de paradigma realmente levam os cientistas a ver
o mundo definido por seus compromissos de pesquisa de uma maneira diferente. Na
medida em que seu único acesso a esse mundo dá-se através do que veem e fazem,
poderemos ser tentados a dizer que, após uma revolução, os cientistas reagem a um
mundo diferente (KUHN, 2013, p. 201-202).

O que Kuhn nos descreve no trecho acima, relaciona-se exatamente com a experiência
de Victor Frankenstein: o contato com o novo, a eliminação ou substituição do atual e a busca
por novos “instrumentos” de “interpretação do mundo”. Contudo, a fala de Kuhn evidencia
outro termo caro a esta pesquisa: paradigma.
Para Kuhn (2013), paradigma seria uma “realização” científica que fornece modelos
para a pesquisa científica, incluindo “lei, teoria, aplicação e instrumentação” (p. 72).

O estudo dos paradigmas, muitos do quais bem mais especializados do que os


indicados acima, é o que prepara basicamente o estudante para ser membro de
determinada comunidade científica na qual atuará mais tarde. Uma vez que ali o
estudante reúne-se a homens que aprenderam as bases de seu campo de estudo a
partir dos mesmos modelos concretos, sua prática subsequente raramente irá
provocar desacordo declarado sobre pontos fundamentais. Homens cuja pesquisa
está baseada em paradigmas compartilhados estão comprometidos com as mesmas
regras e padrões para a prática científica. Esse comprometimento e o consenso
aparente que produz são pré-requisitos para a ciência normal, isto é, para a gênese e
a continuação de uma tradição de pesquisa determinada (KUHN, 2013, p. 72)

Destaquemos três pontos nas falas de Kuhn para analisarmos as experiências de Victor
Frankenstein até agora relatadas: comunidade científica, paradigmas compartilhados e ciência
normal.
71

A todo o momento, Thomas Kuhn recorre a ideia de comunidade científica para o


debate acerca da pesquisa científica. Victor, entretanto, é um jovem que, apesar de ter
conhecimento acerca das realizações dos “filósofos” de seu tempo, está física e
intelectualmente ausente de uma comunidade científica. Como vimos, antes de passar por um
processo de “revolução científica” em suas concepções, o jovem estudioso pouco se satisfazia
com a ciência presente em sua época: para ele, se faz necessário uma perspectiva maior,
grandiosa, como poder criar um “elixir da vida” e prolongar a existência humana. Em quatro
momentos do livro, podemos testemunhar Victor Frankenstein ser “advertido” por não possuir
os “paradigmas compartilhados” necessários a pesquisa científica.
Num primeiro momento, é seu pai quem o alerta, quando Victor Frankenstein se
entusiasma: “Uma nova luz parecia iluminar meus pensamentos, e saltando de alegria,
comuniquei a descoberta a meu pai. Meu pai olhou cuidadosamente o frontispício do livro e
disse – ‘Ah, Cornélio Agripa! Meu querido Victor, não perca seu tempo com isto; é inútil’”
(SHELLEY, 2013, p. 60). Contudo, ao invés de retroceder em seus estudos, a jovem
personagem dá continuidade a pesquisa, mas ressalta:

Caso meu pai, em lugar deste comentário, tivesse tido o trabalho de me


explicar que os princípios de Agripa haviam sido completamente rebatidos e que um
sistema moderno de ciência, muito mais poderoso, real e empírico do que aquelas
antigas quimeras, havia se estabelecido, eu teria naquele momento colocado Agripa
de lado e me contentado em retornar com minha imaginação, ardorosa como era, a
meus estudos pregressos (SHELLEY, 2013, p. 60).

Aqui, novamente nos fala o Victor Frankenstein maduro, em retrospecto, já inserido


na comunidade científica e conhecedor de seus paradigmas, como o princípio do empirismo.
Em seguida, é o próprio que, de novo em retrospecto, nos fala de sua tomada de
consciência frente ao fenômeno da eletricidade, já citada acima, e sua então guinada de
concepção. A sua terceira advertência vem em tom mais rude, ao se encontrar com seu
primeiro professor, “Sr. Krempe”:

Era um homem rude, porém profundo conhecedor dos segredos de sua ciência.
Perguntou-me inúmeras questões acerca de meu progresso nos diferentes ramos da
ciência relacionados à filosofia natural. Respondi sem maiores cuidados e, em parte
com desdém, mencionei os nomes dos alquimistas como os principais autores que
estudara. O professor arregalou os olhos. “Você”, disse, “realmente perdeu seu
tempo estudando essas bobagens?”
Respondi afirmativamente. “Cada minuto”, continuou sr. Krempe com
alguma ternura, “cada instante que você perdeu com esses livros está perdido para
todo o sempre. Você enterrou sua memória em sistemas obsoletos e nomes inúteis.
Meu bom Deus! Em que deserto você vivia, onde não houvesse gente boa o
suficiente para informá-lo de que as fantasias de que você fartamente bebeu tinham
mil anos e era tão antigas quanto obsoletas? Não espera, neste mundo esclarecido e
72

científico, encontrar um discípulo de Alberto Magno e Paracelso. Meu caro senhor,


você deve recomeçar seus estudos do zero” (SHELLEY, 2013, p. 67-68).

Tal advertência não mais surpreendeu Victor Frankenstein, pois já sabia das falhas de
seus estudos. Ainda assim, o trato áspero por parte do professor Krempe não o motivou a
seguir adiante. Por fim, sua quarta advertência, que bem poderíamos chamar de iniciação a
comunidade científica, definem os rumos de sua pesquisa. Tudo se deu em uma palestra
proferida por outro professor seu, “Sr. Waldman”, um químico.

Ele começava sua palestra com uma retrospectiva da história da química e os vários
avanços produzidos por diversos homens de saber, proferindo com fervor os nomes
de seus mais ilustres descobridores. Então, passou a uma perspectiva geral do estado
presente da ciência e explicou muitos de seus principais conceitos. Depois de ter
feito alguns experimentos preparatórios, concluiu com um elogio da química
moderna, cujas palavras jamais esquecerei. “Os antigos professores desta ciência”,
disse ele, “prometeram o impossível e nada conseguiram. Os mestres modernos
prometem muito pouco; eles sabem que os metais não podem ser transformados e
que o elixir da vida é tão somente uma quimera, mas esses filósofos, cujas mãos
parecem afeitas apenas à sujeira, e seus olhos, a perscrutar por microscópios e
cadinhos, realmente produzem milagres. Eles adentram os recônditos da natureza e
mostram como ela funciona em seus recessos. Eles ascendem aos céus; eles têm
demonstrado como o sangue circula, e a natureza do ar que respiramos. Eles
adquiriram novos e quase ilimitados poderes; eles são capazes de dar ordens aos
trovões dos céus, ridicularizar terremotos, e caçoar do mundo invisível com suas
próprias sombras” (SHELLEY, 2013, p. 69-70).

Sem se isentar da força poética de expressão, Waldman por fim introduz Victor
Frankenstein na comunidade científica, com seus valores, seus paradigmas – instrumentos
(microscópios, cadinhos), métodos (empirismo), etc. – e o seu desenvolvimento. Victor está, a
partir de então, guiado para se aprofundar nos saberes necessários à prática da ciência padrão,
ou ciência normal, nos termos de Kuhn.

[...] “ciência normal” significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais


realizações científicas passadas. Essas realizações são reconhecidas durante algum
tempo por alguma comunidade científica específica como proporcionando os
fundamentos para sua prática posterior (KUHN, 2013, p. 71).

Além disso, Waldman entra em acordo com Kuhn quando se refere ao sucesso dos
“mestres modernos”, ainda que suas conquistas sejam não sejam “grandiosas”, em detrimento
dos das promessas dos “antigos professores”. Aqui, os paradigmas modernos são mais bem-
sucedidos do que os de outrora.

Os paradigmas adquirem seus status porque são mais bem-sucedidos que seus
competidores na resolução de alguns problemas que o grupo de cientistas reconhece
como graves. Contudo, ser bem-sucedido não significa nem ser totalmente bem-
sucedido com um único problema, nem notavelmente bem-sucedido com um grande
número. De início, o sucesso de um paradigma [...] é, a princípio, em grande parte,
73

uma promessa de sucesso que pode ser descoberta em exemplos selecionados e


ainda incompletos. A ciência normal consiste na atualização dessa promessa,
atualização que se obtém ampliando o conhecimento daqueles fatos que o paradigma
apresenta como particularmente relevantes, aumentando a correlação entre esses
fatos e as predições do paradigma e articulando ainda mais o próprio paradigma
(KUHN, 2013, p. 88).

E, ainda sobre o método de pesquisa “moderno”, outra convergência:

As áreas investigadas pela ciência normal são certamente minúsculas; ela restringe
drasticamente a visão do cientista. Mas essas restrições, nascidas da confiança no
paradigma, revelaram-se essenciais para o desenvolvimento da ciência. Ao
concentrar a atenção numa fixa de problemas relativamente esotéricos, o paradigma
força os cientistas a investigar alguma parcela da natureza com uma profundidade e
de uma maneira tão detalhada que de outro modo seria inimaginável. E a ciência
normal possui um mecanismo interno que assegura o relaxamento das restrições que
limitam a pesquisa toda vez que o paradigma do qual derivam deixa de funcionar
efetivamente. Nessa altura os cientistas começam a comportar-se de maneira
diferente a natureza dos problemas de pesquisa muda. No intervalo, entretanto,
durante o qual o paradigma foi bem-sucedido, os membros da profissão terão
resolvido problemas que mal poderiam ter imaginado e cuja solução nunca teriam
empreendido sem o comprometimento com o paradigma. E pelo menos parte dessas
realizações sempre demonstra ser permanente (KUHN, 2013, p. 89).

Ou seja, tudo aquilo que já discutimos e que fazem parte da experiência científica do
jovem Victor Frankenstein. Contudo, falta agora nos debruçarmos sobre o cientista maduro,
instrumentalizado e pronto para dar início às suas novas empreitadas científicas.
74

4.3. FRANKENSTEIN: DA UTOPIA À REALIZAÇÃO

Victor Frankenstein agora é um promissor futuro mestre moderno da ciência. Tocado


pela fala de seu professor Sr. Waldman, Victor agora vê para si grandes realizações:

[...] Tanto havia sido feito, minha alma exultava – e mais, ainda mais, realizarei;
percorrendo os caminhos já trilhados, serei o pioneiro de trilhas novas, conhecerei os
limites de poderes ainda desconhecidos e desvelarei ao mundo os mais profundos
segredos da criação (SHELLEY, 2013, p. 70).

Contudo, vale ressaltar aquilo que já comentamos antes, através da fala de Thomas
Kuhn (2013), que o conhecimento predecessor, ainda que seja pseudoconhecimento a
posteriori, produz base científica para a continuidade da produção do saber. Tal característica
da trajetória da ciência encontra paralelo também na obra Frankenstein, mostrando a
maturidade intelectual presente em 1831 numa jovem inglesa. É o que nos conta o trecho
abaixo, através da fala ponderada e pedagógica do professor Waldman sobre a importância
dos antigos filósofos:

[...] “esses foram homens a cujo zelo infatigável os filósofos modernos deviam
grande parte dos princípios de seu conhecimento. Eles nos deixaram a tarefa,
certamente mais leve, de dar novos nomes e dispor em classificações coerentes com
os fatos que eles próprios, em grande medida, haviam trazido à luz. Os trabalhos dos
homens de gênio, ainda que erroneamente dirigidos, raramente fracassam em
transformar suas vias no sólido avanço da humanidade”. Escutei suas palavras,
expostas sem arrogância e afetação, e então emendei que sua palestra me havia
despido dos preconceitos contra os químicos modernos; expressei-me com
moderação, com a modéstia e a deferência exigidas de um jovem quando diante de
seu professor, sem que deixasse escapar (a inexperiência na vida teria me feito
corar) o entusiasmo infundido em minhas pretensões. Pedi-lhe conselhos em relação
aos livros que eu devesse providenciar (SHELLEY, 2013, p. 71).

Logo em seguido, Victor Frankenstein passa a se debruçar vorazmente sobre os


estudos atuais necessários ao seu desenvolvimento intelectual. Dentre as ciências que lhe
interessa, a primeira em que se dedica é a química – não para menos, a química “teve [...] uma
implicação revolucionária: a descoberta de que a vida podia ser analisada em termos das
ciências inorgânicas” (HOBSBAWM, 2014, p. 434).
O desenvolvimento da química vem bem a calhar com a ainda viva proposta de Victor
Frankenstein de poder criar vida. É forte a conexão entre o universo lúdico de Frankenstein e
a realidade pragmática paralela a sua produção. A cada leitura e análise mais profunda sobre
bibliografia e fonte, Mary Shelley nos convence sobre a possibilidade de ter tido acesso a tão
específico conhecimento. O saber químico está vinculado à vida, isso no período de 1789-
1848, época que recobre nosso recorte. A cada nova pesquisa de nosso protagonista, tornamo-
75

nos mais distantes de uma perspectiva sacra da realidade. Afinal, a química já havia “[...]
superado o grande obstáculo para o progresso – a crença de que a matéria viva obedecia a leis
naturais fundamentalmente diferentes da matéria inerte [...]” (SHELLEY, 2013, p. 434).
Contudo, a química não é uma ciência que abarca todo o saber acerca da vida. Para além deste
campo, Victor Frankenstein enxerga a necessidade de se aprofundar mais sobre a vida. Para
tanto, busca seu inverso, a morte.
“Um dos fenômenos que havia chamado minha atenção em especial era a estrutura do
corpo humano e, de modo geral, de qualquer animal dotado de vida” (SHELLEY, 2013, p.
73). Para tanto, Victor Frankenstein se debruça sobre o estudo da anatomia, nos dando um
testemunho penetrante sobre sua experiência:

Explorei os caminhos da anatomia, mas não bastava; era igualmente necessário


investigar o definhar natural, a derrocada do corpo humano. [...] A escuridão não
excitava minha fantasia, e um cemitério não me era mais do que um terreno repleto
de corpos sem vida, os quais, outrora cheios de beleza e viço, haviam se tornado
alimento para os vermes. Agora era levado a examinar a causa e o progresso de tal
decadência e forçado a passar dias e noites em criptas e necrotérios. Minha atenção
voltava-se ao que havia de mais insuportável à delicadeza humana. Vi como as belas
formas do homem se degradam e se acabam; observei a corrupção da morte
sucedendo o rosto corado da vida; divisei o verme a herdar as maravilhas dos olhos
e do cérebro. Examinando e analisando minuciosamente todas as causas, tais como
mostradas nas passagens da vida à morte e da morte à vida, não foram poucas as
dúvidas – até que, do meio dessa escuridão, fez-se uma súbita luz sobre mim, tão
brilhante e maravilhosa e, no entanto, tão simples que, enquanto perdia os sentidos
com a imensidão do horizonte que com ela se abria, causava-me surpresa que, dentre
tantos e eminentes homens de gênio que houvessem dirigido suas investigações a tal
ciência, coubesse a mim somente a descoberta daquele fantástico segredo
(SHELLEY, 2013, p. 73-74).

Esta é uma descrição de teor poético sobre os estudos fisiológicos. Contudo, há algo
mais reflexivo por trás desta fala, cujo historiador Philippe Ariès nos remonta em detalhe,
através daquilo que ele denomina de mórbido:

Chamamos de mórbido ao gosto mais ou menos perverso, mas cuja perversidade não
é declarada ou consciente, pelo espetáculo físico da morte e do sofrimento. Do
século XVI ao XVIII, o corpo morto e nu tornou-se ao mesmo tempo objeto de
curiosidade científica e de deleite mórbido. É difícil separar a ciência fria, a arte
sublimada (o nu casto) e a morbidez. O cadáver é o tema complacente das lições de
anatomia, objeto das pesquisas sobre cores do início da decomposição, que não são
horríveis ou repugnantes e sim verdes sutis e preciosos para Rubens, Poussin e
tantos outros (ARIÈS, 2012, p. 143).

Contudo, como já vimos no capítulo anterior que as ciências, nos séculos XVIII e XIX
encontravam-se popularizadas entre a sociedade, a prática da anatomia também transcendia o
espaço científico:
76

As estampas de anatomia não eram reservadas apenas a uma clientela


médica; eram também procuradas pelos amantes de belos livros. Da mesma maneira,
a dissecação era praticada fora dos anfiteatros; amadores tinham cabinas de
dissecação, onde colecionavam homens sob a forma de veias e músculos. O
Marquês de Sade conta, em um livro totalmente descente inspirado em um episódio
corriqueiro, como a marquesa de Ganges, sequestrada em um castelo, consegue
evadir-se de seu quarto durante a noite, caindo por acaso em um cadáver aberto. Na
época de Diderot, reclamava-se na grande Encyclopédie, de os cadáveres disponíveis
serem açambarcados pelos ricos amadores e não sobrarem para o uso médico
(ARIÈS, 2012, p. 143-144).

Com o conhecimento teórico e experimental da Matemática, Química e Anatomia,


Victor Frankenstein dá então início a instrumentalização de sua pesquisa. Egresso de uma
juventude utópica e romântica, agora o jovem cientista decididamente encontra-se inserido na
comunidade científico e nos conta o passo a passo de sua metodologia:

Inicialmente não conseguia me decidir sobre se devia tentar a criação de um ser


como eu próprio, ou outro de mais simples organização [...]. Os materiais que tinha
à disposição não pareciam adequados a tamanho esforço, mas o fracasso não me era
concebível. Preparei-me para uma infinidade de reveses – que meus procedimentos
um a um quedassem frustrados; que me trabalho acabasse imperfeito; mas
considerando os avanços que dia a dia ocorriam nos campos da ciência e da
mecânica, encorajava-me a esperança de ver minhas tentativas iniciais abrirem
caminho ao sucesso futuro. Nem podia aceitar a impossibilidade como corolário à
magnitude e complexidade de minha empreitada. Com esses sentimentos, inicia a
criação de um ser humano. Como as miudezas de suas partes formassem grande
obstáculo à rapidez, resolvi, contra minha primeira intenção, produzir um ser de
proporções gigantescas, ou seja, de mais ou menos dois metros e proporcionalmente
grande. Depois de ter tomado essa decisão e ter passado alguns meses coletando e
organizando com sucesso os materiais, dei início aos trabalhos (SHELLEY, 2013, p.
75).

Este trecho nos elucida três importantes pontos: 1) metodologia; 2) precisão; 3)


prestígio. Já é ponto comum nesta pesquisa a fala de que Victor Frankenstein avança até o
desenvolvimento de uma metodologia eficaz e possível. Isto, claro, apreendido durante sua
formação acadêmica, através de sua inserção no fazer científico. Os próprios termos
“coletando”, “organizando” e “materiais” nos incitam a pensar sobre a criação metodológica.
Nesse sentido, novamente recorremos a Kuhn, a quem se dedica a pesquisa da dinâmica do
universo da ciência:

A esta altura deveria estar claro que os cientistas nunca aprendem conceitos, leis e
teorias de uma forma abstrata e isoladamente. Em lugar disso, esses instrumentos
intelectuais são, desde o início, encontrados numa unidade histórica e
pedagogicamente anterior, onde são apresentados juntamente às suas aplicações e
por meio delas. Uma nova teoria é sempre anunciada juntamente às suas aplicações
a uma determinada gama concreta de fenômenos naturais; sem elas não poderia nem
mesmo candidatar-se à aceitação científica. Depois de aceitas, essas aplicações (ou
mesmo outras) acompanharão a teoria nos manuais onde os futuros cientistas
aprenderão seu ofício. As aplicações não estão lá simplesmente como um adorno ou
mesmo documentação. Ao contrário, o processo de aprendizado de uma teoria
77

depende do estudo das aplicações, incluindo-se aí a prática na resolução de


problemas, seja com lápis e papel, seja com instrumentos num laboratório (KUHN,
2013, p. 119-120).

Através de seus estudos matemáticos, Victor Frankenstein é introduzido no universo


do cálculo preciso. Sua fala deduz isto, ao falar sobre a “proporção” das medidas de um corpo
a ser criado. A anatomia dá espaço à biologia, aliada da matemática nas realizações de Victor.
À primeira, podemos dedicar este breve trecho de Hobsbawm: “O avanço mais fundamental
da biologia neste período [1789-1848], a descoberta feita por Schleiden e Schwann de que
todas as coisas vivas eram compostas de multiplicidades de células (1838-1839) [...]” (2014,
p. 434). Já em relação à outra ciência, dos números, o mesmo autor nos diz que:

[...] a matemática em nosso período entrou em um universo inteiramente novo,


muito além do universo dos gregos, que ainda dominava a aritmética e a geometria
plana, e daquele do século XVII que dominava a análise. Poucos, exceto os
matemáticos, apreciarão a profundidade da inovação trazida para a ciência pela
teoria das funções de complexos variáveis (Gauss, Cauchy, Abel, Jacobi), da teoria
dos grupos (Cauchy, Galois) ou dos vetores (Hamilton). Mas até mesmo o leigo é
capaz de compreender o alcance da revolução pela qual o russo Lobachevsk (1826-
1829) e o húngaro Bolyai (1831) derrubaram a mais permanente das certezas
intelectuais, a geometria euclidiana. Toda a majestosa e inabalável estrutura da
lógica euclidiana se apoiava em certas suposições, uma das quais, o axioma de que
as paralelas nunca se encontram, não é nem evidente nem comprovável
(HOBSBAWM, 2014, p. 435).

Por fim, a fama vem decorrente das grandes realizações propagadas a um público
bastante atento, como buscamos elucidar no segundo capítulo, através da exposição da
interação entre sociedade, ciências e literatura. Aliás, os próprios cientistas encarnavam uma
veia interpretativa para alcançarem seu público:

Da segunda metade do século XVIII em diante, havia a apresentação


regular de experiências em público, como um espetáculo ou uma espécie de teatro, e
o palestrante como um apresentador. O químico inglês Humpry Davy, por exemplo,
ajudou a popularizar a ciência nas décadas iniciais do século XIX, encenando-a em
público para uma plateia heterogênea na Royal Institution. A eletricidade se prestava
muito bem a esse tipo de espetáculo, com as palavras do palestrante acompanhadas
de estrondos e clarões (BURKE, 2012, p. 119).

E Burke complementa, com seus “estrondos e clarões”:

Na Inglaterra de meados da época vitoriana, a tradição de Davy se


prolongou na figura dos “apresentadores de ciência”. Em Oxford, o excêntrico
geólogo William Buckland às vezes dava suas palestras montado a cavalo, ao ar
livre, e, quando fazia suas apresentações em espaços fechados, costumava animá-las
não só fazendo circular os espécimes entre o público, mas também imitando os
movimentos dos dinossauros. Em Londres, John Henry Pepper, que dava aulas de
química no Royal Polytechnic Institute, notabilizou-se criador do que agora
chamaríamos de “efeitos especiais”, fazendo aparecer fantasmas no palco. Não
faltavam críticos que denunciassem o que chamavam de “ciência sensacionalista”,
78

mas esses métodos de fato difundiam o conhecimento entre um público mais amplo
(BURKE, 2012, p. 119).

De fato, quando se lê a obra, não percebemos um Victor Frankenstein performático e


expositor; na verdade, trata-se de um cientista taciturno, reservado e “laboratorial”, preferindo
o isolamento a sociabilidade. Contudo, a meta de sua pesquisa, como o mesmo deixa
transparecer durante o livro, também envolve reconhecimento e prestígio público, para além
do recôndito espaço acadêmico.
Victor Frankenstein, definitivamente, consegue dar vida a sua criação. “Uma nova
espécie me abençoaria como seu criador e origem; muitas criaturas felizes e excelentes
deveriam a mim sua existência” (SHELLEY, 2013, p. 75).

Era uma noite pavorosa de novembro quando cheguei a consumação de


meus esforços. Ansioso a ponto da agonia que reuni ao meu redor os instrumentos
com o quais infundiria uma fagulha de ser nas formas sem vida que jaziam a meus
pés. O relógio marcava uma da manhã; a chuva batia terrível contra a janela, e
minha vela quase derretia por completo quando, ao bruxulear de uma luz que quase
se esgotava, vi os olhos baços, amarelados, da criatura se abrirem; ela resfolegava, e
convulsões agitavam seus membros (SHELLEY, 2013, p. 79).

É dessa forma que Mary Shelley dá, então, início a relação curiosa entre Victor
Frankenstein e sua criatura inominada. Um clássico literário que já perdura há 199 anos.
Contudo, aqui devemos incluir um uma observação: a ausência da figura do monstro
como objeto de análise.
A narrativa que decorre até a criação da criatura comporta ainda conteúdo não
suficiente para a completude da obra. A partir da introdução da personagem monstro, o texto
se debruça sobre um longo embate filosófico e físico entre as personagens principais, o
cientista e o monstro. Na medida em que este texto foi sendo pensado e construído, foi
verificada a possibilidade de analisar a atuação do “antagonista” e sua importância científica
para esta pesquisa. Desta forma, obtivemos dois caminhos a seguir, tanto por meios
independentes, como complementares, a saber:
1. Na perspectiva do historiador da ciência Thomas Kuhn, a pesquisa científica pode
levar a anomalia, que, em síntese, seria um desvio dos propósitos do cientista. Neste
caso, o cientista Victor Frankenstein possuía como proposta criar uma nova raça de
seres humanos fisicamente superiores, cujos mesmos obedeceriam ao seu mentor.
Contudo, a criatura produzida acaba por seguir caminho independente, confrontando,
então, seu mestre inventor. Mas vale lembrar que Kuhn (2013) ressalta que a anomalia
é algo comum e, em muitos casos, inerente a criação científica; a mesma pode ser
79

prevista ou não, a depender do planejamento e calculismo do pesquisador. Logo,


analisar a criatura como fruto anômalo de uma pesquisa científica seria um ponto
pensado previamente. Contudo, para nos delimitarmos nessa investigação, ao menos
no que diz respeito a este trabalho planejado, concluiu-se que acabaríamos tendo que
nos envolver em um novo percurso, conforme segue abaixo.
2. A criatura se torna anômala a partir de sua construção psicológica, emocional,
intelectual e social. Daí, a quem possui a leitura prévia dos pensadores John Locke e
Jean-Jacques Rousseau, logo percebe a influência da filosofia destes dois intelectuais:
a filosofia da “tábula rasa”, cujo, em síntese, afirma que todo e qualquer indivíduo
nasce desprovido de qualquer carga mental, sendo construída com o decorrer do
tempo; em complemento, podemos claramente destacar da narrativa a visão de
Rousseau, que depreende que o ser humano vem a vida com uma mentalidade
benigna, contudo, é corrompido pela inclusão na sociedade (como já dito em capítulo
anterior, os estudiosos de Mary Shelley situam, entre suas leituras, Locke e Rousseau).
Logo, acabaríamos por adentrar no campo da análise das ciências humanas, hipótese
não pretendida por este trabalho.
Logo, fica exposta a possibilidade de se pensar, além da figura de Victor Frankenstein
e sua trajetória, a construção da personagem Monstro, para além de um animalismo
devastador e maligno. É bem possível desconstruir a interpretação maniqueísta entre Victor e
sua criatura, extirpando a ideia de bem versus mal.
Mary Shelley criou uma figura complexa, emocional e racional, que possui uma base
intelectual tão valiosa quanto a de seu criador. A construção psíquica, como já dito acima, da
criatura, se fez através da concepção lockeana de um vazio racional, que gradualmente foi
sendo preenchido, através de experiências sensoriais e experimentais. Sua inserção social, via
Rousseau, faz da obra Frankenstein uma visão sociológica sobre a formação humana. Essa
abordagem mais filosófica sobre a condição humana torna a obra Frankenstein mais profunda,
requerendo de seus analistas uma percepção mais complexa de análise e levando a realização
de alguns questionamentos:
 Que indivíduo é formado pela nova sociedade que se impõe?
 Como ele a vê?
 Como, por ela, ele é visto?
 “Estabelecida” sua formação, como o mesmo se insere nessa sociedade?
80

Afinal, há uma nova explicação para as “formas de ser” do indivíduo? O fato de ser
usada a percepção de Locke e de Rousseau significa que os mesmos ainda são pertinentes, ou
é Mary Shelley que ainda se limitava a eles?
Vimos a mudança do ser científico, intelectual, através de Victor. Contudo, mais
desafiador se faz é percebermos a transformação do indivíduo em seu âmago. Essa
averiguação, claro, é impossível. Mas, ainda se faz possível observar que sentimentalidade se
impõe a essa nova era.
81

5 CONCLUSÃO

Findamos, então, este trabalho, após termos analisado os aspectos contextuais que
circundam a obra Frankenstein, ou o Prometeu moderno, sejam acerca dos elementos que a
compõem internamente (narrativa), como externamente (condições em que fora elaborada).
Para tanto, dividimos a pesquisa em três capítulos, em que apresentamos as origens da
autora Mary Shelley, ligada ao mundo literário (ficção e filosofia) desde sua infância, através
de uma análise da trajetória intelectual de seus pais, Mary Wollstonecraft e William Godwin,
figuras importantes no cenário filosófico europeu, perpassando, também, sua vida amorosa e
social, através da convivência com seu cônjuge Percy Shelley, membro do Panteão dos
grandes poetas ingleses, e das relações amigáveis com Lord Byron, ocupante do mesmo
patamar que Percy, e John Polidori, elaborador do protótipo daquilo que viria a ficar
conhecido como vampiro. A este primeiro capítulo, demos a nomeação de Mary
Wollstonecraft Godwin Shelley, em alusão aos seus pais e esposo, todos sendo grandes
influenciadores, emocional e intelectualmente, do seu amadurecimento criativo e de sua
postura perante a vida.
Logo em seguida, buscamos adentrar na análise da construção da obra de Mary, sendo
que elencamos três pilares, pois acreditamos serem os pontos básicos para a criação da obra
Frankenstein: a relação com o mito clássico de Prometeu (a renovação da ideia de mito e sua
pedagogia), a proposta de criação artística da autora – promover o terror, e a influência do
pensamento filosófico e científico, tendo em vista que a narrativa se constrói em virtude do
desejo do protagonista Victor Frankenstein em concretizar aquela que se tornaria a maior
realização científica de todos os tempos: criar vida. Nomeamos este capítulo de Frankenstein
despedaçado, em alusão a cultura popular que vê na obra de Mary Shelley a figura de um ser
remendado (é, a própria criatura de Frankenstein, um ser feito através de variadas partes de
outros seres, todos em remendo), e que buscamos justamente desconstruí-lo para então o
compreendermos. Em complemento, para tornar clara a ideia, inserimos o subtítulo “mito,
arte e ciência”, em concordância com o que pretendíamos analisar.
Por último, após avaliarmos, em dois capítulos, os elementos que selecionamos para
determinar a formação da obra Frankenstein, através de fatores internos e externos à mesma,
adentramos, em definitivo, na narrativa do livro, sendo que, por meio de elementos textuais,
analisamos que características Mary Shelley nos expõe que se corresponde com uma realidade
modificada pelo desenvolvimento técnico, científico, intelectual e material que se apresenta
com o advento da Revolução Industrial, mais especificamente no período de sua primeira
82

fase. Nele, averiguamos o desenvolvimento histórico do conhecimento, tendo a obra literária


como referência orientadora; as possibilidades de ascensão proporcionadas por uma sociedade
competitiva e necessitada de novas ideias; e a transição do pensamento filosófico ideal para o
pensamento científico e empírico. Ao todo, buscamos elementos que expusessem uma
sociedade em busca de seu progresso – no que diz respeito a ideia de desenvolvimento, e não
de evolução linear, perspectiva esta complexa e de profundos debates não necessariamente
concisos.
Para este capítulo, resolvemos realizar um simples e esclarecedor trocadilho com o
título original da obra, substituindo, apenas, o termo “Prometeu” por “Cientista”, resultando
em Frankenstein, ou o Cientista moderno, cuja nomeação esclarece também nossa proposta
de interpretar a personagem Victor como uma representação alegórica do pesquisador
moderno de sua época.
Inserido no campo acadêmico, a proposta então desenvolvida tende a avaliar esse
pequeno espaço (cronologicamente amplo) de transição que ocorre na mentalidade humana
diante da noção de progresso. Autores respeitáveis no universo científico propuseram, como
Peter Burke, Thomas Kuhn, Michel Foucault, Eric Hobsbawm, Gaston Bachelard, entre
outros, estudos acerca do desenvolvimento do conhecimento no decorrer dos séculos no
mundo ocidental. Contudo, sentimos a necessidade de focar exclusivamente no sutil processo
de alteração da lógica ideal (utópica) para a lógica científica (empírica) na produção do
conhecimento. E ainda fomos além: a possibilidade de conjugá-los. Aliás, como podemos
observar na narrativa de Frankenstein, Victor, através de métodos empíricos, realiza
transplantes de órgãos para produzir vida. Em seu tempo, 1818-1831, tal proposta se
apresentava, no universo real, algo inalcançável, devido a ausência de saberes práticos e
técnicos para dar condução ao procedimento. No século XXI, a rede pública hospitalar no
Brasil, por exemplo, já dispõe de filas de pessoas em busca de um novo órgão para a
manutenção de sua sobrevivência, assim como existem famílias que autorizam a doação de
órgãos de seus entes em prol do próximo. Esses fatos elucidam como o transplante de órgãos
se tornou comum, seja em sua prática, seja na mentalidade dos indivíduos. Logo, a percepção
acerca do saber, do conhecimento, é temporal, contextual e localizada. E Frankenstein é
documento vivo deste outro pensar.
Assim, espera-se que a pesquisa possa inspirar reflexões sobre o papel social que a
ciência pode exercer para melhoria do meio em que vivemos e a nós mesmos. Pois, o decorrer
da história nos mostrou que sonhos do passado se tornaram realidades no presente e
inspiraram o futuro. Desde o século XX, a ciência se mostrou capaz de modificar o corpo
83

interna e exteriormente (retirada de tumores, cirurgia plástica, mudança de sexo), transplantar


órgãos, sintetizar membros, etc. E, ainda, assim as metas não se esgotaram: investigações para
recuperar a visão, dar movimento a quem o perdeu, transmitir pensamentos, são exemplos de
alguns dos muitos desafios que os cientistas contemporâneos pretendem resolver. A
investigação científica em prol de realizações grandiosas está mais viva do que nunca:
ironicamente, tal objetivo, tão reivindicado pelo protagonista da obra, vem se tornando a cada
dia mais viável.
Neste sentido, buscamos, a todo o momento, alcançar nosso objetivo de elucidar
acerca da ideia de progresso desenvolvida nos primórdios do século XIX, tendo a obra
literária como nosso norte substancial para darmos concretude ao proposto, através da
contraposição entre o ideal e o empírico, não sem, contudo, vinculá-los.
É válido ressaltar que, devido às delimitações elencadas para esta pesquisa, outros
pontos importantes poderiam ter sido desenvolvidos. A própria vida de Mary Shelley,
principalmente seu contato com a literatura filosófica e científica e seu interesse pelas mesmas
poderia ter sido desenvolvida; contudo, limitações bibliográficas e linguísticas (ausência de
conhecimento para leitura em outros idiomas), impossibilitaram que seguíssemos este rumo
como maior profundidade.
Outro ponto de bastante vigor e que pudemos perceber que é frequentemente
privilegiado pelos estudiosos da obra de Frankenstein é a figura do monstro. Contudo, tal
figura se apresentou, diante das fronteiras desta pesquisa, um tanto quanto complexa: afinal,
levando em consideração que estamos tratando do desenvolvimento da ciência e que é o
monstro o próprio o resultado deste processo, teríamos um confuso choque para elucidar, que
não teria espaço necessário nestas linhas: a criatura de Frankenstein desenvolve intelecto à
esteira do pensamento lockeano, se insere na sociedade em acordo com o pensamento de
Rousseau e, mais do que uma obra passiva, é um ser pensante, intelectualmente desenvolvido
(poliglota, leitor de clássicos históricos, gregos e poéticos) e que conflitua com seu criador,
dando início a outra fase da estória.
Manteríamos, ainda, uma relação teórica em concordância com este trabalho, que seria
a utilização do conceito de anomalia, também de Thomas Kuhn, que, em síntese, expõe a
ideia de uma criação científica que foge parcialmente ou por completo dos objetivos do
pesquisador (Victor, com a criação de seu ser, possuía o intento de dar vida a uma nova raça
de seres humanos, que não fosse maculada por doenças ou velhice, perecendo, somente,
perante uma morte provocada – assassinato, acidentes, suicídio; acima de tudo, essa raça lhe
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seria obediente, sendo ele o novo “pai dos povos”), cujo este seria o caso do monstro, que
ousa enfrentá-lo até a morte.
Contudo, entraríamos com maior ênfase no campo filosófico, político e sociológico,
pois, na medida em que nos debruçaríamos sobre a trajetória da criatura, perceberíamos que a
mesma se faz envolvendo debates sobre a noção de humanidade, culpabilidade, punição,
aceitação, estética entre outras questões, já de uma outra ordem, onde nos direcionaríamos por
uma análise da sociabilidade. Já não seria mais um estudo sobre o indivíduo cientista
moderno, mas um outro indivíduo em uma sociedade moderna, fundamentada através das
reentrâncias da Micro-História, percorrendo a imagem da sociedade e de seu grotesco, relação
esta tão presente na produção ficcional inglesa durante o século XIX, em obras como
Dracula, Strange Case of Dr Jekyll and Mr. Hyde (O médico e o Monstro), The Picture of
Dorian Gray, as histórias criminalísticas de Sherlock Holmes, o mundo degradado e
moralmente deturpado de Charles Dickens, e que não ficou de fora dos estudos literários de
Victor Hugo, que a analisou em seu “Do grotesco e do sublime”, prefácio de sua obra
Cromwell.
Findamos, portanto, este trabalho, com o intento de expor a vivacidade do documento
literário, sua dinâmica e, principalmente, sua fala. Pois, a literatura possui, em qualquer
tempo, seus outros tempos: o de sua narrativa e o de sua época. A escrita ficcional é, acima de
tudo, uma conversa com o outro. Sendo assim, que estejamos abertos ao diálogo.
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