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Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014.

ISSN: 2359-1072

Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014.


REVISTA PODER & CULTURA

ISSN: 2359-1072

Conselho Editorial

Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira (Editor Chefe) — Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), Instituto de História (IH), Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

Prof. Ms. Leandro Couto Carreira Ricon (Editor Executivo) — Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História (IH), Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

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Departamento de História, Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

Mestranda Quezia Brandão — Universidade de São Paulo (USP), Departamento de


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Revisão: Quezia Brandão

Diagramação: Beatriz Moreira da Costa

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APRESENTAÇÃO

A Revista Poder & Cultura é uma iniciativa que nasceu dos cursos, produções
historiográficas e debates realizados pelos pesquisadores do Laboratório de Estudos
Históricos e Midiáticos das Américas e da Europa (LEHMAE), coordenado pelo Prof.
Dr. Wagner Pinheiro Pereira (IH/UFRJ), desde o ano de 2011. Demarcando seu campo
de investigação na pluralidade de experiências históricas travadas pela relação entre
Poder e Cultura, a Revista pretende ser um canal de expansão da temática e de
divulgação de artigos, resenhas, entrevistas e ensaios de crítica histórica, estando aberta
a abordagem de questões e conceitos acerca de todos os campos disciplinares,
especialidades, períodos e temas históricos.

Nosso propósito é abrir um espaço de circulação para as pesquisas


contemporâneas em história, contribuindo para educação pública e socializando o
espaço acadêmico, promovendo, assim, uma integração no ambiente intelectual e a
cidadania através do acesso às produções.

“Os fatos históricos não se organizam através de


períodos e de povos, mas através de noções; não têm de
pôr-se no seu tempo, mas sob seu conceito.”

(Veyne, 1989:33)

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Sumário
EDITORIAL ..................................................................................................................... 7

O MITO EVITA NO CINEMA ARGENTINO: “EVA PERÓN – A VERDADEIRA


HISTÓRIA” (1996) - WAGNER PINHEIRO PEREIRA ............................................. 10

A CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIA DA GUERRA DO PARAGUAI NO CINEMA


PARAGUAIO: A EXALTAÇÃO DE SOLANO LÓPEZ E A REINTERPRETAÇÃO
DO CONFLITO - FÁBIO RIBEIRO DE SOUSA ........................................................ 30

A ESPERANÇA: A POLÍTICA DE NÃO-INTERVENÇÃO NA OBRA DE ANDRÉ


MALRAUX - REBECA GIL ......................................................................................... 43

“NOSSOS ANOS VERDE-OLIVA”: ROBERTO AMPUERO ENTRE O GOVERNO


DE AUGUSTO PINOCHET, A REVOLUÇÃO DE FIDEL CASTRO E UM SÉCULO
DE AUTORITARISMOS -QUEZIA BRANDÃO ....................................................... 56

O RETORNO DAS BIOGRAFIAS ATRAVÉS DE UM PRISMA


PROBLEMATIZADO OU ULTRAPASSANDO OS LIMITES DA SOLIDÃO -
LEANDRO COUTO CARREIRA RICON .................................................................... 71

UM PARAÍSO TERRESTRE?: OS AMERÍNDIOS E AS DOENÇAS ANTES DE


1492 - DANILO DE LIMA NUNES .............................................................................. 91

O TEATRO DO PROGRESSO: DOM PEDRO II - O IMPERADOR ILUSTRADO - E


O MUSEU REAL - UM IDEAL DE CIVILIZAÇÃO -BEATRIZ MOREIRA DA
COSTA. ........................................................................................................................ 113

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NEONAZISMO ONLINE: VALHALLA88 E CIUDAD LIBERTAD DE OPINIÓN,
ESTRATÉGIAS E APROPRIAÇÕES DO CIBERESPAÇO (2000-2005) - MÔNICA
DA COSTA SANTANA ............................................................................................. 124

RESENHA DE: ROBERTS, ANDREW. A TEMPESTADE DA GUERRA: UMA


NOVA HISTÓRIA DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL. RIO DE JANEIRO:
RECORD, 2012, 814 P. - JOÃO ARTHUR CICILIATO FRANZOLIN. ................... 141

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Editorial

O volume 1 da Revista Poder & Cultura – volume inaugural de nosso primeiro


ano de publicações – inicia sua edição com uma rica gama de textos que se pretendem
importantes contribuições para pensar a relação Poder e Cultura. No bojo de uma
historiografia que pensa a sócio história das práticas culturais, tal como afirmou o
historiador Roger Chartier, os artigos publicados nesta edição trazem distintas
contribuições de história cultural sob o trabalho com diversos tipos de fontes
documentais.

Assim, os dois primeiros artigos exploram recortes históricos a partir da relação


cinema e história: o primeiro trabalha com as representações do mito argentino de Eva
Perón no filme Eva Perón – A verdadeira História (dir. Juan Carlos Desanzo, 1996),
construindo uma interessante análise sobre o cinema como instrumento de
monumentalização histórica. Já o segundo artigo, tem como ponto de partida o filme
Cerro Corá (dir. Guilhermo Vera, 1978), e preocupa-se com a construção de memória
sobre a Guerra do Paraguai e os usos políticos do passado acerca da figura do líder
paraguaio Solano López.

Outros três artigos trabalham com a relação História e Literatura, e a sua


significação para pensar política e as formas de resistência, memória e politização dos
relatos históricos: o primeiro artigo traz uma discussão sobre a política de não-
intervenção durante a Guerra Civil Espanhola a partir da literatura de André Malraux.
Nesse caminho, o segundo artigo trabalha com o romance biográfico de Roberto
Ampuero – Nossos Anos Verde-Oliva (2012) – e a problematização dos regimes
autoritários cubano e chileno, das décadas de 1960 e 1970, um à esquerda política, outro
à direita. Nesse caminho, o terceiro artigo utiliza as fontes literárias biográficas para
pensar uma pertinente questão teórica para o campo da história: o retorno da biografia e
a vocação da historiografia.

O último bloco de artigos explora diferentes tipos de fontes, trabalhando com um


arcabouço das chamadas “fontes mistas”, indo desde a pesquisa com fontes pictóricas e
crônicas da Mesoamérica pré-colombiana, passando pela construção do discurso
histórico nos acervos museológicos, até chegar à utilização de sítios eletrônicos como

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importante corpus documental para pensar as novas ondas de grupo neonazistas,
expandindo a ainda pouco explorada relação História e Internet.

O volume traz, ainda, uma importante resenha de um livro sobre a história da


Segunda Guerra Mundial, voltado para aspectos militares e políticos do conflito - A
tempestade da guerra: uma nova história da Segunda Guerra Mundial, de Andrew
Roberts (2012).

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O MITO EVITA NO CINEMA ARGENTINO: “EVA PERÓN – A
VERDADEIRA HISTÓRIA” (1996)

Wagner Pinheiro Pereira*

RESUMO: O artigo pretende realizar uma análise da representação de Eva Perón e da


Argentina peronista apresentada no filme Eva Perón – A Verdadeira História (Eva
Perón: La Verdadera Historia, dir. Juan Carlos Desanzo, Argentina, 1996). Através da
análise desse filme, buscaremos traçar um perfil da imagem criada em torno do mito
Eva Perón e de sua relação com as “massas”, percebendo de que forma uma temática do
passado é apropriada e interpretada pela cultura da mídia contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE: Argentina; Cinema; Eva Perón; Peronismo.

ABSTRACT: The article intends to conduct an analysis of the representation of Eva


Peron and the Peronist Argentina featured in the movie Eva Peron: The True Story (Eva
Perón: La Historia Verdadera, dir. Juan Carlos Desanzo, Argentina, 1996). Through
analysis of this film, we will seek to draw a profile image created around the myth of
Eva Peron and her relationship with the "masses", realizing how a theme of the past is
appropriated and interpreted by the culture of contemporary media.

KEYWORDS: Argentina; Cinema; Eva Peron, Peronism.

***

*
Doutor em História Social (FFLCH-USP). Professor Adjunto de História da América no Instituto de
História e no Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (IH/PPGHC-UFRJ).
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Ligando a figura mundialmente conhecida, de “Evita”, uma glória
‘hollywoodiana’ de proporções desmedidas, com a moça simples, a
criança ultrajada, podemos chegar à conclusão de que Eva foi,
possivelmente, uma personalidade dividida. De um lado, repleta de
altruísmo e generosidade, há a moça simples, ‘revoltada com a
injustiça’, de outro, no entanto, a mulher seduzida pelo poder. No
âmago de suas preocupações sociais mais profundas, como o salário
e as seguranças empregatícias para a dona de casa, encontra-se uma
infância pobre e uma mãe humilhada pelas circunstâncias.
Promovida pelo peronismo, e sendo principal fator de legitimação
deste, a figura de Eva irá se confundir com a de uma grande
estadista. Eva torna-se mais importante do que a própria imagem da
Argentina real, uma vez que esta imagem é representada revestida de
um aparato e de uma glória que não correspondem à realidade social
da época.

Luiz Carlos Cappellano. Evita: A Mulher, O Mito. (1986)


1
Para os argentinos que continuam a venerá-la, Eva Perón, ou simplesmente Evita ,
é como Carlos Gardel: enquanto ele canta cada vez melhor, quanto mais passa o tempo,
mais bela – e poderosa – ela fica. Os que a odeiam ainda espumam ao lembrar seu
nome. A aura mitológica de Evita continua tão forte que mesmo décadas depois de sua
morte ainda é difícil dizer, para quem procura um ponto de vista objetivo, se foi boa ou
se foi má. Uma coisa é certa: Evita se inventou e captou como poucos o poder da

1
No livro La Razón de Mi Vida (A Razão de Minha Vida), Eva Perón faz a seguinte distinção: “Lembre-
se, mais, que eu não era apenas a esposa do Presidente da República. Era também e, acima de tudo, a
mulher do condutor máximo dos argentinos. À dupla personalidade de Perón devia por força
corresponder em mim uma dupla personalidade: uma, a de Eva Perón, mulher do Presidente, a quem
incumbe uma tarefa simples e agradável de dias festivos, de honrarias, de funções de gala; a outra, a de
‘Evita’, mulher do Líder de um povo que nele depositara toda a sua fé, toda a sua esperança, todo o seu
amor. Somente uns poucos dias ao ano represento o papel de Eva Perón. E creio que desse papel, porque
simples e agradável, me desincumbo cada vez melhor. Em compensação, toca-me, os mais dos dias,
desempenhar o papel de Evita, primeira peronista argentina, ponte estendida entre as esperanças do
povo e as mãos realizadoras de Perón. E esse sim, é-me deverás difícil, ao ponto de que nunca me sinto
totalmente satisfeita do modo por que o desempenho... Quando escolhi o papel de ‘Evita’, fí-lo
plenamente consciente de estar optando pelo caminho do povo... Ninguém, a não ser o povo, me chama
de Evita. Somente os descamisados aprenderam a me chamar assim... De resto, eu própria me apresentei
assim, no dia em que saí ao encontro dos humildes do meu país, alegando que ‘preferia ser Evita a ser a
esposa do Presidente da República, desde que, sendo Evita, pudesse mitigar uma dor ou enxugar uma
lágrima...’[...] Sim. Confesso que tenho uma única ambição, uma única e grande ambição pessoal:
quisera que o nome de ‘Evita’ ficasse inscrito para sempre na história de minha pátria. Quisera que dela
se dissesse, numa pequena nota inscrita ao pé do capítulo maravilhoso que a história certamente
dedicará a Perón, algumas poucas palavras: ‘Houve junto a Perón, uma mulher que foi o veículo das
esperanças do povo, que Perón mais tarde convertia em realidades...’ E me sentiria sobejamente
compensada se essa pequena nota terminasse assim: ‘Dessa mulher sabemos apenas que o povo a
chamava carinhosamente de: ‘Evita’”. PERÓN, Eva. A Razão de Minha Vida. Rio de Janeiro: Edições
Freitas Bastos, sd., pp.87-88; 90-91 e 94.
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imagem. De artista medíocre de rádio e cinema2, de cabelos castanhos e aparência
comum, transformou-se ao lado de Juan Domingo Perón, num fenômeno que até hoje
tem apelo global. A mãe dos pobres, a protetora dos descamisados, a chefe espiritual da
nação, entre outros epítetos, deixou também um legado estético e visual.

A figura de Evita tem transcendência internacional e permite uma reflexão sobre a


cultura e a identidade na Argentina. Pobre e sem estudos, Evita chegou à Casa Rosada, a
sede do governo argentino, em 1946, aos 27 anos, acompanhando Perón como uma
espécie de acessório incômodo, pela reputação, pela origem social e pela facilidade de
comandar. Antes mesmo de domar os erros de concordância pôs-se a se produzir como
uma artista de cinema, adquirindo vestidos, luvas e chapéus de grifes famosos. Os seus
casacos de pele e os diamantes, dizia ela, pertenciam ao povo. As pessoas mais simples
admiravam o fato de Evita, que viam como uma delas, ter alcançado o sonho de todos.
A roupa e o estilo dela serviam justamente para mostrar que tinha chegado lá. Evita
morreu aos 33 anos, de câncer no útero. Quando Perón foi deposto, uma das medidas
dos militares para apagar o rastro do peronismo foi sumir com o corpo embalsamado da
mulher, que, em mórbida epopeia, passou anos escondido em caminhões, porões do
exército, na casa de um oficial e até em um cinema, antes de ser enfim enterrado em
Buenos Aires. O mito sobreviveu a tudo.

Tendo-se em mente a importância política e cultural que Eva Perón possui em seu
país, o presente texto pretende realizar uma análise da representação de Eva Perón e da
Argentina peronista apresentada no filme Eva Perón – A Verdadeira História (Eva
Perón: La Verdadera Historia, dir. Juan Carlos Desanzo, Argentina, 1996). Este filme
argentino, realizado como uma resposta ao filme americano Evita (Evita, dir. Alan
Parker, EUA, 1996), configura-se enquanto fonte para a análise acerca das controvérsias
do Mito Eva Perón e do período peronista na cultura midiática contemporânea: Eva
Perón – A Verdadeira Historia é um exemplo de como na Argentina, Eva Perón tem
sido tema de alguns filmes de estilo documentário, marcados pelo realismo e por certa
solenidade para com a inesquecível heroína. Nele, vemos uma Eva Perón combativa,
hábil líder política e condutora de massas, sendo também a Eva da renúncia e da agonia

2
Evita fez a seguinte avaliação sobre a sua carreira artística: “No cinema, má; no teatro, medíocre; no
rádio, passável”. O seu papel político, no entanto, teria outra qualificação. Cf. NAVARRO, Marysa.
Evita. Buenos Aires: Corregidor, 1981. p.78.
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que deixa os descamisados, com apenas 33 anos de idade, para tornar-se a “Santa Evita”
na imortalidade. (GARCÍA, LABADO & VÁZQUEZ, 1997, pp.196-197.)

As representações de Eva Perón no cinema argentino e americano: Cartazes dos filmes


Eva Perón – A Verdadeira História (Eva Perón: La Verdadera Historia, dir. Juan Carlos
Desanzo, Argentina, 1996) e Evita (Evita, dir. Alan Parker, EUA, 1996).

Através da análise desse filme, buscaremos traçar um perfil da imagem criada em


torno do mito Eva Perón e de sua relação com as “massas”, percebendo de que forma
uma temática do passado é apropriada e interpretada pela linguagem do presente.

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Em primeiro lugar, considero importante apontar, conforme as palavras de Francis
Vanoye, que

um filme é um produto cultural inscrito em determinado contexto


sócio-histórico. [...] Em um filme, qualquer que seja seu projeto
(descrever, distrair, criticar, denunciar, militar), a sociedade não é
propriamente mostrada, é encenada. Em outras palavras, o filme opera
escolhas, organiza elementos entre si, decupa no real e no imaginário,
constrói um mundo possível que mantém relações complexas com o
mundo real: pode ser em parte seu reflexo, mas também pode ser sua
recusa (ocultando aspectos importantes do mundo real, idealizando,
ampliando certos defeitos, propondo um ‘contramundo’ etc.). Reflexo
ou recusa, o filme constitui um ponto de vista sobre este ou aquele
aspecto do mundo que lhe é contemporâneo. Estrutura a representação
da sociedade em espetáculo, em drama (no sentido geral do termo), e é
essa estruturação que é objeto dos cuidados do analista (VANOYE &
GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p.56.).

Assim, a Eva Perón que aqui descreveremos é uma síntese construída e


consolidada pela memória nacional da Argentina, e, por outro lado, é uma visão
comercial do produto ‘Evita’, sendo este absorvido pela grande indústria cultural
americana, que a transforma em um mito de sucesso internacional, desvencilhado de seu
caráter nacional argentino.
No entanto, ao produzir-se o filme Evita, os americanos ocasionaram grandes
problemas e conflitos com os argentinos, pois, como sinaliza a historiadora Maria
Helena R. Capelato,

na Argentina, o peronismo de hoje é muito mais do que uma


lembrança: é força política sustentada pela permanência de mitos que
ainda mobilizam a sociedade, quer no sentido da eleição de um
presidente da República, quer no repúdio a Madonna, profanadora do
mito Eva Perón, a ‘Santa Evita’. A popularidade de Evita persiste e,
em menor ou maior grau, Perón e Vargas também se mantêm como
heróis no panteão da pátria argentina e da brasileira. (CAPELATO,
1998, p.285.)

O filme Eva Perón – La Verdadera Historia inicia-se com a imagem de vários


peronistas colocando cartazes de propaganda da candidatura de Juan Perón e Eva Perón
para as eleições de 1951, que ficou conhecida como “Perón-Eva Perón. A Fórmula da
Pátria (1952-1958)”, em vários murais de toda a Argentina. O que já de início
demonstra o forte poder da propaganda para conquistar as massas, e o seu desempenho
de consolidar a imagem do ‘Mito Evita’ na Argentina peronista.

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Jogos do Poder: Os estilos diferentes de “fazer política” de Eva Perón e Juan D. Perón.

A segunda cena ocorre em abril de 1951, quando a CGT (Confederação Geral do


Trabalho) confirma sua proposta de apoiar a candidatura de Eva Perón para vice-
presidente da Argentina. Todavia, na cena seguinte, aparece Juan Perón rodeado de
generais, que tentam influenciá-lo para não concordar com a ideia de Eva candidatar-se
a vice-presidência, o que leva Perón a responder: “Minha vice-presidente deve ser dócil
e manipulável, ma-ni-pu-lá-vel!”.

Ao anoitecer, Perón mostra-se preocupado com o ritmo das atividades de Eva,


pois enquanto ele, ainda sob a tradição militar, vai dormir cedo, ela vira a noite
trabalhando; segundo Perón, Eva precisava diminuir a sua rotina e descansar. Eva, pelo
contrário, fala diretamente sobre a sua candidatura à vice-presidência da Argentina e
sobre a articulação do povo em seu apoio. No entanto, Perón alega que os militares e a
Marinha mantêm-se contrários a seu desejo político. Neste momento, Eva afirma que
para ela nada foi fácil, e, então, aparecem flashbacks de sua infância em Chivilcoy, em
8 de janeiro de 1926, época em que tinha apenas sete anos de idade, contando o episódio
de sua ida ao velório de seu pai, quando ela, sua mãe e irmãos não foram permitidos de
entrar, por serem filhos ilegítimos. Porém, neste filme, ao contrário de Evita, ela e a sua
família tem permissão de ver rapidamente seu pai falecido, mas Eva nega-se a beijá-lo.

Em seguida, é apresentada uma reunião de seus principais opositores, que


tramam uma forma de impossibilitar a candidatura de Eva, pois a consideram apenas
uma bastarda, filha ilegítima e atriz (que na época era visto como uma garota de
programa), que colocava a saúde da pátria em perigo. Isso mostra, evidentemente, como
Eva gerava intensas controvérsias, pois recebia tantas críticas por parte das classes mais
abastadas quantos eram os aplausos vindos das massas. Muitos a consideravam uma
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oportunista que manipulava as pessoas sem o menor escrúpulo para manter-se, junto ao
seu marido, no poder. Afinal, para Eva Perón, o poder era uma forma de atingir seus
objetivos e ela não tinha a menor dúvida quanto à justiça de sua causa.

Um dos momentos mais interessantes do filme é a cena seguinte, quando Eva


Perón faz um discurso aos ferroviários, que haviam entrado em greve geral, no início de
1951, ano em que Perón enfrentou o primeiro de uma série de conflitos sindicais. Neste
ano, os ferroviários declararam uma greve geral por aumento de salários. Isso levou Eva
Perón, seguindo sua política de mediação com as associações, a interceder no caso e,
dirigir-se às estações de trem para tentar dissuadir os grevistas da paralisação, conforme
aponta o discurso produzido no filme:

EVA PERÓN: A greve contra o governo peronista é uma greve contra o movimento
operário. Uma greve contra vocês mesmos! Ouçam bem, companheiros, quem faz greve é um
carneiro da oligarquia! Entendam bem, companheiros! ... Não sei se quero dizer ‘carneiro’ da
oligarquia.... Procuro outras palavras mas não encontro. Greve contra Perón é antipatriótico!

FERROVIÁRIO 1: Companheira, um ferroviário ganha apenas 340 pesos. Somente 340


pesos. Isso é justo, companheira?

EVA PERÓN: Não. Isso não é justo. E há muitas coisas que ainda não são justas. Os
salários serão aumentados para 500 pesos, eu juro. Mas também juro que só faremos isso, se
suspenderem essa greve rapazes! .... Mas companheiros, estamos só falando de salários, o que é
que há? E a moradia? E os direitos sociais? E as aposentadorias e as férias pagas? Como é
companheiro? Já se esqueceram disso? Quem lhes deu tudo isso? ... Foi Perón! E contra Perón
estão fazendo essa greve? O que teriam se tivesse ganhado a União Democrática? Menor salário
e nenhuma conquista social! Comeriam lixo, lixo da oligarquia!

FERROVIÁRIO 2: Certo companheira, mas em 1945 a oligarquia não venceu, nós


vencemos! Portanto, deles não esperamos nada, mas de você e do General Perón, esperamos
tudo, companheira!

EVA PERÓN: Diga-me, você é peronista?

FERROVIÁRIO 2: Sim, companheira.

EVA PERÓN: Então, entenda. Eu e Perón esperamos coisas dos peronistas. Antes de
tudo, que não nos façam greves e que não deem mau exemplo aos companheiros. Não queremos
greves na Argentina de Perón! Está Claro!

FERROVIÁRIO 3: Não se nega ao Movimento Operário o direito de greve.

EVA PERÓN: Você não é peronista!

FERROVIÁRIO 3: Sou socialista, de Juan B. Justo e de Palácios.

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A relação direta líder e massas: Eva Perón profere discurso aos ferroviários grevistas.

EVA PERÓN: Sim. Socialista dos puxas-sacos, da oligarquia e do ianque Braden! Dos
canalhas da União Democrática! Ouça-me bem, na Nova Argentina quem defende os operários
é Perón, e quem é contra Perón, está contra os operários por mais socialista que se diga!

FERROVIÁRIO 3: Senhora, permita-me...

EVA PERÓN: Não te permito nada... Sabe quem defende esta greve, companheiro
socialista? O jornal La Prensa! O que houve? Viraram socialistas os Gaunza Paz, que esbanjam
grana quando vão para Europa? Ou será que certos operários, obtusos como você, estão fazendo
o jogo dos inimigos do povo? Uma greve operária apoiada pelo jornal da oligarquia. Onde já se
viu isso? Só idiotas caem nessa, companheiro!

FERROVIÁRIO 3: A luta operária começou muito antes de Perón.

EVA PERÓN: Sim, claro que começou! Mas com projetos que passaram anos nas
gavetas do congresso. Nós os tornamos leis! Desafiamos a oligarquia, metemos medo e
ensinamos a respeitar os operários! E vocês nos fazem uma greve! Por 200 pesos de droga!

FERROVIÁRIO 1: Para um operário 200 pesos não são porcaria, companheira.

EVA PERÓN: Sim, são! 200 pesos ao lado da política social do peronismo, ao lado do
amor do General para seu povo, são droga. Suspendam esta greve. A greve tem de ser suspensa!
Entendem? Está não é uma greve operária. Por última vez, companheiros, suspendam esta
greve! Depois não digam que não avisei. Se tivermos que ir pro pau, vamos pro pau,
companheiros. Caia quem caia e custe o que custe!

Conforme pode ser observado,

em seu caminho rumo à lenda, Evita havia endurecido. Seu discurso


contra a classe alta tornou-se ainda mais agressivo [...]. Dessa fase
final, datam suas mensagens mais violentas: embora conservasse o
segundo plano da esposa, essa retórica a fazia transcender sua
condição de líder feminina. A linguagem alcança um registro que vai
no sentido contrário à canonização oficial. Evita revela seu lado mais
combativo e com ele funde o bronze que o governo já está polindo

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sobre sua imagem. (GARCÍA, LABADO & VÁZQUEZ, 1997,
p.132.).

Esse discurso representa também o conturbado momento histórico dos anos


1950, quando a economia argentina começou a mostrar sintomas de esgotamento. A
inflação subia e a balança comercial estava desequilibrada. As medidas tomadas pelo
governo eram parcialmente responsáveis por aquela situação. Os ambiciosos programas
de assistência social haviam esvaziado o Tesouro Nacional. Os salários altos, embora
bons para os trabalhadores, desencorajavam os investimentos estrangeiros, que também
faziam parte do plano do presidente para o crescimento industrial do país. Além disso, o
fascínio que Perón exercia sobre as massas começara a enfraquecer. Surgiam greves
contra a política governamental.

Na Fundação Eva Perón, Evita propõe o controle absoluto de todos os meios de


comunicação e o fechamento do jornal La Prensa, função que ficará sob os cuidados do
deputado Cooke.

Tendo êxito em sua missão, Cooke faz as seguintes considerações à Eva Perón:

“Nossos inimigos enchem a boca com a palavra democracia. Mas acho que se nos
derrubarem, não serão muito democráticos conosco. Senhora, Apold e eu coincidimos em
querer fechar o jornal La Prensa. Ele quer fazê-lo porque quer o peronismo como ditadura. Eu
quero que o peronismo seja uma revolução. Perguntou se é ditadora, como dizem seus
inimigos. Ouça-me bem, senhora: Se uma ditadura é uma revolução, se justifica. Se não é uma
revolução, então é uma ditadura e nada mais. Apenas isso, lamentável isso”.

A cena seguinte retrata uma conversa de Perón com Eva, no jantar, onde ela
explica a sua razão de querer ser vice-presidente:

EVA PERÓN: É uma jogada política minha. Política e pessoal. Sobretudo pessoal.

JUAN D. PERÓN: Por que pessoal?

EVA PERÓN: Eu tinha sete anos quando morreu meu pai.

JUAN D. PERÓN: Já me contou isso...

EVA PERÓN: Espera, não te contei tudo!

JUAN D. PERÓN: Vá, então conte!

EVA PERÓN: Minha mãe levou-nos ao velório e nos barraram. Aí, surgiu uma chata,
filha legítima do meu pai... Gritava como louca: ‘Com que direito!?!’... Você pode imaginar?
Comigo sempre foi assim: ‘Com que direito esta atriz de segunda categoria anda com o Coronel
Perón?’, ‘Com que direito acompanha-o aos desfiles de 9 de julho?’, ‘Ao Teatro Cólon no 25 de
18

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maio?’ E depois, ainda pior: ‘Com que direito ela opina sobre questões de Estado?’, ‘Com que
direito armou esta fundação, deu seu nome e ajuda aos pobres?’. Sempre fui ilegítima, Juan.
Uma bastarda, nunca tive direito a nada. Agora isso acabou. Agora quero ser parte do Estado.
Quero ter direito, Juan! Ouça-me bem, não quero que ninguém volte a perguntar: ‘Com que
direito?’, entende? Quero a vice-presidência, Juan. Quero esse direito!

Todavia, Perón ao ser perguntado se iria apoiá-la, respondeu apenas que ela
continuasse fazendo seu jogo, pois não havia sido a ele que ela doutrinou na Escola
Superior Peronista, mas sim aos outros, então era deles que ela deveria buscar o apoio.

Uma Lição Peronista: Eva Perón ministrando curso na Escola Superior Peronista.

Nesta perspectiva, o filme apresenta uma cena de Eva Perón lecionando na


Escola Superior Peronista, com o seguinte discurso:

EVA PERÓN: Vocês se perguntarão: ‘Por que outra vez o mesmo?’, ‘Por que insisto
em falar-lhes sobre a ética peronista?’ É muito simples, companheiros. Porque ainda há
peronistas no afã de obterem privilégios, mais parecem oligarcas do que peronistas. Quero
dizer-lhes, e o que digo é com a paixão de peronista e de mulher, que o peronismo que nasceu
no dia 17 de outubro, é uma vitória do povo contra a oligarquia! Vou dar-lhes um exemplo. O
funcionário que serve-se do seu cargo é oligarca! Não serve ao povo, serve a sua desmesurada
ambição! Esses não são peronistas, são oligarcas! Ídolos de barro! A oligarquia que derrotamos
em 17 de outubro está morta! Ou está agonizando nos estertores do fracasso! Por isso, tenho
mais medo da oligarquia que possa haver entre nós! Do que ela possa fazer cotidianamente! A
cada dia entre nós! Perdão. Perdoem-me, que eu insista tanto com isso. Mas quero que levem
isso profundamente gravado no coração. É fundamental para o nosso movimento! É
fundamental que os peronistas não destruam o peronismo!

Com isto, segundo Maria Helena R. Capelato, percebe-se como

a nacionalidade e a reformulação da identidade nacional tornaram-se,


desde então, prioridade: viver na Argentina, sentir-se argentino,
produzir e consumir coisas argentinas, tudo isso se tornou moda.
Recusando o modelo cosmopolita que gozava de grande privilégio, a
reformulação propunha a busca da marca de ‘origem’ trazida pelas
19

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massas. A presença delas na cena política era apresentada como uma
garantia de ‘argentinidade autêntica’. A nova identidade nacional
coletiva tinha o caráter das multidões: ela era tumultuada e se
distanciava fortemente do passado recente, dos homens políticos
tradicionais e solenes, dos jornais clássicos e de seu estilo intelectual,
rígido e formal. Esta nova argentinidade era insolente, emotiva e
primária, na visão dos adversários. (CAPELATO, 1998, p.249.)

A próxima cena retrata o trabalho de Eva na sua Fundação, mostrando como o


momento de sua chegada representava a vinda de uma santa, que iria salvar e purificar
seus fiéis da miséria. Eva era idolatrada e ovacionada pela multidão, não era preciso
dizer nada, nenhuma palavra, bastava olhar a expressão de felicidade e o sorriso de seus
fiéis seguidores, que com a presença da ‘Santa Evita’ sentiam-se plenamente amparados
e unificados numa comunhão mística.

A relação direta e carinhosa de Santa Evita com os descamisados na Fundação Eva Perón.

Conforme aponta a historiadora Maria Helena Rolim Capelato,

Eva Perón configurou-se como personagem adequada para representar a


encarnação viva do mito feminino da redenção. Sua capacidade de liderança
era inquestionável; a profissão de artista explica sua desenvoltura diante das
massas, seu grande público. Além disso, seus dotes físicos tornavam-na
especialmente dotada para a representação da feminilidade ideal, expressão
do bem, do bom e do belo.

Não se tratava de uma figura qualquer, mas da primeira-dama que dividia


com o presidente da República a liderança do poder. Nessa divisão cada um
desempenhava funções próprias. O presidente Perón, expressão do poder
masculino, atuava na vida pública, exercendo atividades políticas bem
definidas. Eva Perón, a mulher classicamente feminina, representava a
intuição, o sentimento, a emoção. (CAPELATO, 1998, pp.270-271.)

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Mas, a figura radiante e elétrica de Eva Perón já estava com seus dias contados,
pois, segundo mostra o filme, após uma sequência frenética de suas atividades, Eva
enfraquece e desmaia, era o princípio de sua queda. Mesmo assim, ao falar com Perón,
Eva busca passar uma imagem de força e energia, embora odiasse seu corpo, que a
estava atraiçoando cada dia mais. É nesta conversa, que começa a recordar juntamente
com seu marido, seu primeiro encontro com Perón, em 1944, ano do terrível terremoto
que atingiu a cidade de San Juan, onde houve milhares de mortos e imensos prejuízos.
Nesta época, Perón fez com que a Secretaria do Trabalho montasse uma vasta operação
de socorro e conclamou a nação a contribuir com remédios, roupas, comida, dinheiro,
abrigo e sangue. A resposta foi imediata e generosa. Artistas e figuras de projeção
nacional propuseram-se a ajudar, participando de um grande espetáculo beneficente em
um estádio de Buenos Aires. Entre os artistas presentes encontrava-se Eva Duarte,
conhecida cantora e atriz de rádio e de cinema. Após a apresentação, ela e Perón
deixaram o estádio juntos. Iniciava-se, então, o maior relacionamento da história
argentina, pois ao contrário das críticas, Perón ignorou a opinião dos militares e dos
oligarcas, mantendo o seu caso com Eva Duarte publicamente.

O primeiro encontro entre Juan Domingo Perón e Eva Duarte durante o espetáculo
beneficente para socorrer as vítimas do terremoto de San Juan.

Eva recordou também o famoso 17 de outubro de 1945, quando o presidente


Edelmiro Farrell pediu a Perón para que mandasse a massa reunida em frente à Casa
Rosada para casa, pois era necessário controlar a situação e livrar-se das quinhentas mil
pessoas lá fora. John DeChancie descreve essa cena da seguinte forma:

A multidão se acotovelava na grande praça e nas ruas adjacentes a ela.


Os bombos ressoavam, mesclando seu pesado som aos gritos e às
canções. A grande maioria desses homens e mulheres tinha vindo dos
bairros periféricos da cidade, invadindo com seu aspecto pobre e mal
cuidado o elegante centro da cidade – como os homens costumavam
usar as camisas por fora das calças, os refinados habitantes do centro
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os apelidaram pejorativamente de descamisados3. Eles estavam ali, no
coração de Buenos Aires, frente à Casa Rosada – a sede do governo –,
reivindicando pela presença do homem que idolatravam e a quem
obedeciam cegamente.

O cenário deste acontecimento era a Plaza de Mayo; a data, 17 de


outubro de 1945; o homem reivindicando, Juan Domingo Perón, ex-
vice-presidente da nação. As pessoas que o aguardavam – operários
das indústrias argentinas – queriam que ele assumisse a presidência do
país, de uma nação dilacerada por escândalos e conflitos políticos. E
Perón sabia disso. Chegara a hora de seu triunfo. Um triunfo que seria
ainda mais saboroso pelo fato de que, pouco tempo antes, fora
obrigado a renunciar ao seu cargo no governo e preso por oficiais do
Exército. [...] Perón apagou o cigarro. Estava na hora de executar os
planos que lhe devolveriam o poder. Para a multidão que esperava em
frente à Casa Rosada, o tempo demorava a passar. Fazia calor; o ar
estava parado, úmido. [...] Por fim, pouco após as 23 horas, o coronel
apareceu na sacada. O povo delirou. Seu herói estava são e salvo e,
aparentemente, livre. Aclamaram-no entusiasticamente, gritaram até
ficar roucos, choraram de emoção. Os aplausos se estenderam por
mais 15 minutos. Então, muito emocionado, Perón pediu aos
trabalhadores ali reunidos que cantassem o hino nacional. Após o
hino, disse-lhes que aquele era o maior dia da história política da
Argentina, e que aquela demonstração de apoio era uma ‘grande
celebração da democracia’, uma data muito importante para o
trabalhismo argentino, pois pela primeira vez os operários haviam se
unido para mudar o rumo do governo. (DECHANCIE, 1987, pp.07 e
09-10.)

3
Pertencer ao povo não dependia, para o peronismo, da condição social ou profissional. Neste sentido,
por exemplo, ao propor como modelo do povo argentino o descamisado, o peronismo retirou o sentido
pejorativo do termo, elevando-o a condição de “amigo do líder”. Genericamente descamisado significava
povo / massa, mas no peronismo o termo tornou-se mais preciso e revelou-se com clareza na afirmação de
Eva Perón: “Para mim os trabalhadores, homens e mulheres, são sempre, e antes de tudo, descamisados.
E, o que são, para mim, os descamisados? Não posso falar deles sem que venha a minha memória os dias
de minha solidão em outubro de 1945. [...] Descamisados foram todos os que estiveram na Plaza de
Mayo em 17 de Outubro de 1945; os que cruzaram a nado o Riachuelo, vindos de Avellaneda, da Boca e
da Província de Buenos Aires, os que em colunas alegres, mas dispostos a tudo, inclusive a morrer,
desfilaram naquele dia inesquecível pela Avenida de Mayo e pelas diagonais que conduzem à Casa do
Governo, fizeram calar a oligarquia e a aquele que disse “yo no soy Perón”; os que todo o dia
reivindicaram a presença do Líder ausente e prisioneiro; os que acenderam fogueiras com os jornais da
La Prensa que havia se vendido a um embaixador estrangeiro por trinta moedas, ou talvez menos! Todos
os que estiveram naquela noite na Plaza de Mayo são descamisados! Ainda se houve ali alguém que não
o fosse, materialmente falando, um descamisado, esse ganhou o título por ter sentido e sofrido naquela
noite com todos os autênticos descamisados; e para mim, esse foi e será sempre um descamisado
autêntico. [...] Para mim, descamisado é aquele que se sente povo. É importante que nos sintamos povo,
que amemos, soframos e nos alegremos como faz o povo, embora não nos vistamos como o povo,
circunstância puramente acidental. [...] Nem todos os descamisados são trabalhadores, mas para mim,
todo trabalhador é um descamisado; e eu jamais esquecerei que a cada descamisado devo um pouco da
vida de Perón”. Através dessa definição de Eva Perón conclui-se que descamisado é sinônimo de
peronista. PERÓN, Eva. La Razón de Mi Vida. Buenos Aires: Ediciones Peuser, 1951. pp.115-117.
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Assim, Perón consolidou sua ascensão política na Argentina. Pouco tempo
depois, casou-se com Eva Duarte, que representaria um papel fundamental no
peronismo.

Após essas recordações da ascensão política de Perón e Evita, a cena seguinte,


indubitavelmente, a mais interessante e emocionante do filme, passa-se em Buenos
Aires, no dia 22 de agosto de 1951. Reunidos na Avenida 9 de Julho, multidões entram
em cena para apoiarem a candidatura ‘Perón-Eva Perón. La Fórmula de La Pátria’.

O filme registrou esse momento da seguinte forma:

SINDICALISTA: Companheiros, em nome da CGT e do Conselho Superior do Partido


Peronista, proclamamos a fórmula: Perón-Eva Perón, para a presidência e vice-presidência!

EVA PERÓN: Excelentíssimo senhor Presidente. Meus queridos descamisados da


pátria! É para mim uma grande emoção encontrar-me novamente com os descamisados como
em 17 de outubro e como em todas as datas em que o povo esteve presente. Todos sabem que
foi o General Perón quem os dignificou social, moral e espiritualmente! E sabem que os
oligarcas, que os medíocres, que os vendedores da pátria, ainda não estão derrotados! De suas
guaridas asquerosas, atentam contra o povo e contra o General! Eu, General, com a
plenipotência espiritual que me dão os descamisados da pátria, vos proclamo, antes que o povo
vote em 11 de novembro, Presidente de todos os argentinos!

POVO: Com Evita! Com Evita!....

SINDICALISTA: Senhora, o povo pede-lhe que aceite seu posto!

EVA PERÓN [discretamente dirigindo-se para Perón no palanque]: E agora?

JUAN D. PERÓN [discretamente para Eva]: Impossível, não pode!

EVA PERÓN [discretamente para Perón]: Por quê?

JUAN D. PERÓN [discretamente para Eva]: Mande-os para casa!

EVA PERÓN: Companheiros, eu peço à Confederação Geral do Trabalho e à vocês,


pelo carinho que vos une, pelo amor que propagamos mutuamente, que para uma decisão
transcendental na vida desta humilde mulher, me deem, pelo menos, quatro dias para pensar
numa decisão!

POVO: Não! Não! Não!...

EVA PERÓN: Companheiros...

POVO: Greve Geral! Greve Geral!

EVA PERÓN: Companheiros e Companheiras! Eu não renuncio do meu posto de luta!


Renuncio às honrarias!

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POVO: Resposta! Resposta!

EVA PERÓN: Companheiros, pelo carinho que nos une! Eu lhes peço, por favor, não
me façam fazer o que não quero fazer! Peço a vocês como amiga, como companheira, que se
desconcentrem. Companheiros, quando Evita lhes enganou?

POVO: Nunca! Nunca!

EVA PERÓN: Eu só lhes peço uma coisa, que esperem até amanhã!

JUAN D. PERÓN [discretamente dirigindo-se para Eva Perón]: É preciso suspender


esse ato!

SINDICALISTA: Companheiros, a companheira Evita pede-nos duas horas. Nós vamos


ficar aqui! Não vamos sair até que ela nos dê uma resposta favorável!

EVA PERÓN [dirigindo-se para Juan Perón]: Então!?!

“Perón-Eva Perón – La Formula de la Pátria”: A política de massas peronista no comício


de apoio para o lançamento da candidatura de Eva Perón como candidata a Vice-
Presidência da República Argentina (22 de agosto de 1951)

JUAN D. PERÓN [discretamente para Eva]: Diga que sim, sem dizer sim!

EVA PERÓN [dirigindo-se para Perón]: E como se diz isso!?!

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EVA PERÓN: Companheiros, asseguro-lhes que isto me pega de surpresa! Jamais em
meu coração humilde de mulher argentina, sequer pensei que poderia aceitar este posto!

POVO: Vice-presidente! Vice-presidente!

EVA PERÓN: Companheiros, o mínimo que posso pedir é que me deem, ao menos,
quatro horas para anunciar minha decisão pelo rádio a todo país!

POVO: Agora, Evita! Agora!

EVA PERÓN: Companheiros, como diz o Coronel Perón: farei o que diga o povo!

Após essa grande concentração, Juan D. Perón encontra-se com Eva e discutem
o que foi decidido na Reunião de Gabinete. Neste momento, Perón explica para Eva os
motivos que impossibilitaram-na de aceitar o cargo de vice-presidente. Não somente os
militares não aceitaram, mas, principalmente, Eva havia sido derrotada pelo câncer.
Incontrolável, Eva entra em pânico e desesperada quebra um espelho, gritando que não
queria se ver morrendo.

Mais tarde, renuncia sua candidatura pelo rádio, com as seguintes palavras:

EVA PERÓN: Companheiros! Quero comunicar ao povo argentino minha decisão


irrevogável e definitiva, de renunciar à honra com que os trabalhadores e o povo da minha
pátria, quiseram me honrar na Assembleia de 22 de agosto. Eu não tinha então, nem tenho neste
momento, mais que uma ambição pessoal, que de mim se diga, quando escreverem o capítulo
maravilhoso que a história certamente reservará a Perón, que houve ao lado de Perón uma
mulher, que se dedicou a levar ao presidente as esperanças do povo, e que a essa mulher o povo
chamava carinhosamente de Evita.

A preservação da imagem: A doença não impediu Eva Perón de continuar mantendo uma
preocupação constante com a sua beleza e aparência física.

As últimas cenas do filme apresentam uma Eva Perón, que mesmo doente e
fraca, mantêm-se combativa e preocupada com Perón e com o destino da Argentina.
Para Perón, expressa seu imenso desejo de poder votar nele e se pudesse nela também; e
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também chega a adverti-lo para ficar atento com os militares e com o golpe que poderia
vir a ser desencadeado, pois segundo ela, mesmo com a vitória peronista através das
eleições, os militares poderiam mudar os rumos da história, afinal, para eles as eleições
não valiam nada.

Os últimos conselhos políticos de Evita: A doença não impediu Eva Perón de continuar
atuando – mesmo que nos bastidores – politicamente. Temendo o enfraquecimento político
peronista ou um golpe militar, a principal preocupação de Eva Perón era planejar uma
forma de proteger a manutenção de Perón no poder após a sua morte.

Enquanto a oposição faz a festa com a doença de Eva, escrevendo nos muros,
“Viva el Cancer!”, Eva fazia um de seus últimos discursos, carregado de tom agressivo:

O último discurso público de Eva Perón em 17 de Outubro de 1951: Eva Perón debilitada
fisicamente precisa ser amparada e segura pela cintura por Juan D. Perón.

EVA PERÓN: É o povo humilde da pátria que segue e seguirá Perón. Porque Perón
levantou a bandeira da redenção e da justiça, das massas trabalhadoras! Por isso, o povo o
seguirá contra os traidores de dentro e de fora! E eu peço a Deus que não permita a esses
insensatos, levantar a mão contra Perón! Porque aí desse dia! Porque nesse dia, meu General, eu
sairei com os descamisados da pátria, morta ou viva, para não deixar em pé, sequer um tijolo
que não seja peronista!

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Estava consolidada a imagem de Eva Perón como a Santa da Argentina, pois o
próprio povo via-a como tal, colocando sua imagem num altar, rezando pela sua
melhora em frente à Casa Rosada.

Celebração peronista nas ruas: Eva Perón acompanha Juan Perón na posse de seu
segundo mandato presidencial.

É com muita emoção que o filme retrata o

4 de maio, dia em que seu esposo prestaria juramento relativo a seu


novo período de governo, quando alguma vez sonhou que o
secundaria como vice-presidente, Evita insistiu em acompanhar o
general. Foi sua última e maior produção cinematográfica. Os médicos
ministraram-lhe três calmantes para deslocá-la da residência à Casa
Rosada, e ali repetiram a dosagem para que pudesse realizar o desejo
de saudar os manifestantes. Foi-lhe confeccionada uma armação –
uma estrutura de gesso e arame, oculta pelo amplo casaco de visom –
que a manteria de pé no carro para acenar aos descamisados. Os
noticiários da época refletem o capítulo de maior lirismo da história
argentina: Perón de pé, rígido, apenas sorri, deixando a ribalta para
sua esposa moribunda. Ela, uma caveira sorridente e afetuosa, quase
sobrenatural. Mais que saudá-la, a multidão parece despedir-se dela.
Nenhuma das imagens de Evita tem a intensidade desse passeio à
véspera da morte. (GARCÍA, LABADO & VÁZQUEZ, 1997, pp.147-
148.)

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O momento final do filme ficou reservado para uma conversa de Eva Perón com
o seu padre confessor e a despedida de seu marido Perón. Nas duas conversas, fica
evidente a forma de sacrifício e martírio personificados por Evita. Ao padre, afirma que
não consegue compreender Deus, afinal “Ele não gosta dos pobres?”, perguntava ela,
enquanto o padre não conseguia disfarçar suas lágrimas. “Afinal, por que queria a sua
morte, se neste país, a única que os pobres tinham era ela; Se Deus ama os pobres, por
que a afastava do caminho e não fazia nada para impedir sua morte”. A única resposta
dada pelo padre era que “Deus nem sempre pode impedir o Mal”. O que levou Eva a
replicar: “Se Deus deixa que eu morra, é porque é ‘dos contrários’!”

O martírio de Santa Evita: Agonia e revolta de Eva nos momentos finais de sua vida.

Nos momentos finais de sua vida, Eva faz seu último pedido a Perón,
advertindo-o a nunca abandonar os pobres, pois eles são os únicos que sabem ser fiéis.

Eva Perón morreu em 26 de julho de 1952, tinha apenas 33 anos. Em 16 de


setembro de 1955, um golpe militar (que ela tanto alertou para Perón) derrubou o
governo peronista na Argentina.

Conforme apresentado, procurou-se realizar algumas reflexões sobre os


elementos básicos que constituem e permeiam o imaginário político do ‘Mito Evita’.

O cinema nos faz ter saudade de Evita no próprio processo de ungi-la com
uma auréola de arte e santidade, por meio do registro fotográfico. Evita em
cores distancia-se do real, é como um suvenir do suvenir. As décadas e os
piores avatares políticos arrasaram seu legado. Sobraram três sílabas, logo
para ela, que empreendeu sua saga pessoal de nomes próprios: a conquista
do sobrenome do pai, a conquista do sobrenome do marido e, com este, todo
o poder. Uma vez conquistados, preferiu perdê-los para ter seu verdadeiro
nome e, assim, dever toda a glória a si mesma. Evita, um diminutivo no
tempo. Os heróis populares não têm sobrenome nem biografia. Eles os
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perdem em troca do eco perpétuo. Evita reina na memória coletiva dos
argentinos como emblema desse tempo feliz, quando os pobres acreditaram
encontrar seu espelho. Não há razão para chorar. (GARCÍA, LABADO &
VÁZQUEZ, 1997, p.200.)

BIBLIOGRAFIA:

CAPELATO, Maria Helena R. Multidões em Cena. Propaganda Política no Varguismo


e no Peronismo. Campinas: Papirus, 1998.

__________. “O personagem na história – Perón e Eva: Produtos da sociedade


argentina”. In:Jogos da Política. São Paulo: ANPUH/Marco Zero/Fapesp, s.d.

__________. “Populismo en América Latina: Propaganda política y formas de


manipulacíon de massas”. In: História política del siglo XX. Quito: Ed. Nacional,
1992.

ELIA, Tomás de. & QUEIROZ, Juan Pablo. Evita: An Intimate Portrait of Eva
Perón.Nova York: Rizzoli, 1997.

DECHANCIE, John. Os Grandes Líderes – Perón. São Paulo, Nova Cultural, 1987.

FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

GARCÍA, Fernando Diego; LABADO, Alejandro & VÁZQUEZ, Enrique (Comp.).


Evita: Imagens de uma Paixão. São Paulo: DBA/Cia. Melhoramentos, 1997.

PEREIRA, Wagner Pinheiro. “A ditadura das Imagens: Cinema e Propaganda nos


Regimes Políticos de Massas da Europa e da América Latina (1922-1955)”. In:
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da et al. (Org.). O Brasil e a Segunda Guerra
Mundial. Rio de Janeiro: Multifoco, 2010.

_________. “O Espetáculo do Poder: Políticas de Comunicação e Propaganda nos


Fascismos Europeus e nos Populismos Latino-Americanos (1922-1955)”. In:
SEBRIAN, Raphael Nunes Nicoletti et al (orgs.). Do político e suas interpretações.
Campinas: Pontes Editores, 2009.

_________. O Poder das Imagens: Cinema e Política nos Governos de Adolf Hitler e
Franklin D. Roosevelt (1933-1945). São Paulo: Alameda, 2012.

PERÓN, Eva. La razón de mi vida. Buenos Aires: Ediciones Peuser, 1951.

______. A Razão de Minha Vida. Rio de Janeiro: Edições Freitas Bastos, s.d.

VANOYE, Francis & GOLIOT-LÉTÉ, A. Ensaio sobre a Análise Fílmica. Campinas:


Papirus, 1994.

Artigo recebido em: 04 de agosto de 2013


Aprovado em: 11 de novembro de 2013
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A CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIA DA GUERRA DO PARAGUAI NO
CINEMA PARAGUAIO: A EXALTAÇÃO DE SOLANO LÓPEZ E A
REINTERPRETAÇÃO DO CONFLITO.

Fábio Ribeiro de Sousa*

RESUMO: O presente trabalho pretende analisar o processo de construção de memória


da Guerra do Paraguai no cinema paraguaio, ressaltando a exaltação da figura de Solano
López. O ponto central para esta análise será o filme “Cerro Corá”, de 1978. Dirigida
por Guillermo Vera e financiada pelo regime ditatorial de Alfredo Stroessner, esta
produção cinematográfica tornou-se fundamental para a exaltação da figura de Solano
López e para a consequente consagração da Guerra do Paraguai no imaginário dos
paraguaios. “Cerro Corá” acompanhou a orientação nacionalista do governo de
Stroessner, reproduzindo o revisionismo histórico paraguaio, corrente historiográfica
que visava realizar uma reabilitação histórica acerca da imagem de Solano López e do
conflito.

PALAVRAS-CHAVE: Guerra do Paraguai, Solano López, Cinema.

RESUMEN: El presente trabajo pretende analizar el processo de construcción de la


memória de la Guerra del Paraguay en cine paraguayo, enfatizando la exaltación de la
figura de Solano López. El punta central para esta análisis será la película “Cerro Corá”,
de 1978. Dirigida por Guillermo Vera y financiado por el régimen ditatorial de Alfredo
Stroessner, esta producción del cine hubo tornado essencial para la exaltación de la
figura de Solano López y para la consequente consagración de la Guerra del Paraguay
en lo imaginário de los paraguayos. “Cerro Corá” aconpañó la orientación nacionalista
de Stroessner, reproducindo el revisionismo histórico paraguayo, movimiento
historiográfico que buscava llevar a cabo una rehabilitación acerca de la imagem de
Solano López y del conflicto.

PALABRAS-CLAVE: Guerra del Paraguay, Solano López, Cine.

***

*
Graduado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é mestrando do
Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC/UFRJ). É professor da educação básica.
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A Guerra do Paraguai1 (1864-1870) é um tema extremamente polêmico, ao
longo dos anos, desde o término do conflito, os debates acerca dos acontecimentos e
personagens do conflito foram intensos. Dentro desta ótica, a figura do presidente
paraguaio durante o conflito, Francisco Solano López (1827-1870), assumiu um papel
de destaque.
López 2 é, sem dúvida, o personagem principal da guerra. Como será visto, uma
grande marca dos historiadores alinhados à corrente tradicional do conflito, era atrelar
às ações tirânicas e covardes do presidente paraguaio a causa da guerra. Nenhum outro
personagem do confronto gerou tanta polêmica, sua morte, em 1870, na batalha de
Cerro Corá, marcou, definitivamente, o início de um processo que se prolonga até os
dias atuais, a disputa acerca de sua memória.
Em nenhum outro local a memória da Guerra do Paraguai é tão viva quanto no
país levado ao confronto por Solano López. Os paraguaios respiraram a guerra não
somente nos nomes dados a ruas, praças e monumentos em homenagem aos
combatentes, mas também, através de um processo de mitificação da figura do ex-
presidente paraguaio, que saiu dos livros, artigos e periódicos e chegou ao cinema, sim,
a 7ª arte, foi fundamental para o processo de monumentalização histórica da Guerra do
Paraguai promovido pelo governo ditatorial de Alfredo Stroessner (1954-1989). Em
relação ao povo paraguaio e a memória acerca do conflito, as autoras Priscila Lizieiro e
Tábita Brito tecem um importante relato:

A História do Paraguai é constituída de lembranças. São seu


patrimônio. E estão vinculados à perda e a morte. Com o passar dos
anos e das gerações acumulou histórias de guerra para contar, porém,
em muitos relatos, o que se sabe sobre a Guerra da Tríplice Aliança se
confunde com as impressões e recordações da ditadura. O professor
paraguaio Luiz Alberto Cristaldi Escobar, diz que a confusão histórica
justifica uma boa relação entre Brasil e Paraguai: ‘Se escrevia livros
do jeito que o governo queria; não se falava toda a verdade sobre a
guerra. A verdade é o pior inimigo do governo. Foi assim durante
muito tempo, principalmente no tempo de Stroessner. Este processo
fez com que o povo paraguaio esquecesse a guerra contra o
Brasil.(LIZEIRO; BRITO, 2008, p.12)

É importante ressaltar que, sem dúvida, dentre os países envolvidos3 no


confronto, o Paraguai foi o que sofreu mais danos, a perda mais significativa se deu em

1
Também conhecida como Guerra da Tríplice Aliança, Guerra Grande e Maldita Guerra.
2
Francisco Solano López também é chamado de López II, devido ao seu pai, Carlos López. Para este
trabalho esta distinção não se faz necessária – López se refere a Solano.
3
Brasil, Argentina e Uruguai formaram a Tríplice Aliança, contra o Paraguai.
31

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relação ao número de mortos4 durante o conflito e por consequência das más condições
nos campos de batalha, onde os combatentes eram assolados por inúmeras doenças.
Entretanto, num país marcado por uma derrota dolorosa como esta foi
justamente onde surgiu um movimento historiográfico de exaltação das ações militares
paraguaias e de culto à imagem de Solano López. O revisionismo historiográfico
paraguaio surgiu em fins do século XIX, levado a cabo por interesses financeiros, tal
movimento atingiu importantes setores da sociedade. A marca mais forte deste processo
foi a transformação de Solano López em um grande herói nacional – uma imagem bem
distinta da proposta por alguns intelectuais e predominante ao término do confronto.
Durante as primeiras décadas do século XX o lopizmo – nome dado a este
movimento paraguaio – começou a se fortalecer, e a exaltação da figura de Solano
López tornou-se uma prática comum de governos como o dos militares Rafael Franco5
(1936-1937) e Higino Morinino (1940-1948). A ascensão dos colorados ao poder, em
1947, além de marcar o início da hegemonia do Partido Colorado6, também marca o
início do fortalecimento desta corrente historiográfica no país.
O Partido Colorado foi fundado em 1887, por Bernadino Cabellero, um ex-
combatente da Guerra do Paraguai, e um homem de confiança de Solano López. No
cerne de fundação do partido a figura de Solano López já aparecia com muita força e,
conforme nos aponta a historiadora argentina Liliana Brezzo a relação entre o
surgimento, o fortalecimento e a disseminação da corrente historiográfica revisionista e
o Partido Colorado foi muito íntima:

É também entre fins do século XIX e início do XX quando no


Paraguai começaram a manifestar pequenos impulsos por oferecer
uma construção intelectual diferente, pressagiando o complexo

4
Esta é uma das questões mais polêmicas da guerra e explicita o quão difícil é trabalhar com o tema. Os
números variam, chegando a apresentar diferenças exorbitantes, isto se deve à falta de dados confiáveis
acerca do tamanho da população paraguaia antes da guerra. O historiador brasileiro Francisco Doratioto
faz um balanço dos números apresentados por autores e sua pesquisa estipula que a população Paraguai
antes do confronto girava em torno dos 450 mil habitantes, havendo uma redução de 60% a 69% com a
guerra. Algo bem distinto do apresentado por Chiavenatto, que desenvolve a tese de que a população
paraguaia girava em torno de 800 mil pessoas e que ao término da guerra, apenas 194 mil habitantes,
sendo estes na maioria mulheres e crianças com menos de 10 anos. Ou seja, segundo ele 96,50% da
população masculina do Paraguai foi morta com o confronto.
5
Rafael Franco estabeleceu o dia 1º de março – dia da morte de Solano López em 1870 – como feriado
nacional e declarou-o herói máximo.
6
A chegada dos colorados ao poder marcou o início da hegemonia do partido, que dominaria a
presidência por mais de 60 anos. Somente com a eleição de Fernando Lugo, em 2008, os colorados
deixam de comandar o Paraguai, entretanto, a recente crise política paraguaia depôs Lugo e, em eleições
realizadas no início de 2013, recolocou os colorados no cerne do poder no país, com a vitória de Horácio
Cartes.
32

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caminho que viveria durante o século XX. Começaram a ser
publicados em Assunção os periódicos La Patria, que, orientado por
Enrique Solano López, fazia a reinvindicação da memória de seu pai,
e El Tiempo, em que escreviam Ignácio Pane, Juan O’Leary e Manuel
Domingues, que iriam articulando uma leitura alternativa do passado
centrada na exaltação da figura do Marechal López e que se
alimentava na derrota sofrida na Guerra Grande. Esta campanha
revisionista contou com a adesão de muitos filiados do Partido
Colorado, como Juan Natalino Gonzalez, e, inclusive atraiu
intelectuais identificados com o Partido Liberal, como Juan Pastor
Benítez, Pablo Max Ynsfrán, Facundo Recalde e Anselmo Jover
Peralta, que se uniram para formar o que passaria a ser chamado de
lopizmo. No início da segunda década do século XX, a Guerra Grande
e o mito guerreiro que encarnava Francisco Solano López – ainda
sendo reprimido no âmbito acadêmico e entre o público culto –
demonstrava haver sobrevivido na memória de boa parte da sociedade
paraguaia, sobretudo nos setores populares (BREZZO, 2005, p.282-
283).7

Juan Emiliano O’Leary, citado por Brezzo, se destaca como um dos maiores
propagadores desta reabilitação histórica acerca de Solano López. Autor de importantes
livros8, alguns dos principais sobre a Guerra do Paraguai e sobre o presidente paraguaio,
o historiador O’Leary sempre buscou defender a imagem de Solano López das
acusações que sofria: “O grito feroz de seus inimigos só serviu para dar ressonância à
seu nome” (O’LEARY, 1970, p.11)9.
Apesar deste trabalho não ter como foco central um debate acerca das correntes
historiográfica já produzidas acerca do tema, é fundamental que sejam tragos à tona
algumas interpretações das principais correntes historiográficas já produzidas sobre o
tema. Esta ação visa orientar o leitor e ressaltar como a Guerra do Paraguai tem gerado
intensos debates ao longo dos anos, desde o término do conflito.

7
“Es también en los años entre siglos cuando en Paraguay principian a manifestarse recatados impulsos
por oferecer um construcción intelectual diferente, pressagiando el complejo derrotero que viviría durante
el siglo XX. Comenzaron a publicarse en Assunnción los periódicos La Patria, orientado por Enrique
Solano López y Manuel Dominguez, quienes irían articulando una lectura alternativa del pasado nacional
centrada en la exaltación de la figura del Mariscal López y que se alimentaba en la derrota sufrida en la
Guerra Grande. Esta campaña revisionista contó con la adhesión de muchos afiliados al flamante Partido
Colorado, como Juan Natalicio Gonzalez, e incluso atrajo a intelectuales identificados con el Partido
Liberal, como Justo Pastor Benítez, Pablo Max Ynsfrán, Facundo Recalde y Anselmo Jover Peralta, que
se unirían para conformar lo que pasaria a denominarse lopizmo. Al comenzar la segunda década del
siglo, la Guerra Grande y el mito guerrero que encarnaba Francisco Solano López – aún siendo reprimido
en el ambito académico y entre el público culto – demostraba haber sobrevivido en la memoria de buena
parte de la sociedad paraguaya, sobre todo entre sus sectores populares.”
8
Destaque para as suas obras: El centauro de Ybicuí: a vida heroica del general Bernadino Caballero en la
Guerra del Paraguay. Paris: Le Livre Libre, 1929. El libro de heroes; páginas históricas de la Guerra del
Paraguay. Assunção: Libreria Mundial, 1922. El mariscal Solano López. Madrid: Imprenta de Félix
Molinos, 1925.
9
“La grita feroz de sus enemigos sólo há servido para dar ressonância a su nombre”.
33

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O maior confronto armado da América do Sul vem suscitando inúmeras
questões. A morte de Solano López, no dia 1º de março de 1870 representou o marco
inicial para um extenso debate acerca de acontecimentos e personagens do conflito. O
que deve ser levado em conta, e o historiador Francisco Doratioto lembra muito bem, é
justamente o contexto histórico no qual estas interpretações foram produzidas.
Existem três correntes historiográficas principais que explicam e analisam a
Guerra do Paraguai; a versão oficial/tradicional10 – que começou a ser produzida logo
nos primeiros anos após o término do conflito e que contou com relatos de pessoas que
estiveram no confronto e o anotaram em seus diários – a versão revisionista11 – que
ganha força principalmente na década de 1960, e que apesar de conter algumas
explicações pouco fundamentadas em documentos, conseguiu se espalhar com muita
força pela a América do Sul, e até o hoje tem influenciado no modo como a Guerra é
vista – e a nova história/neorrevisionismo12 – que vem ajudando, através de estudos
pautados em documentos primários, na quebra de alguns juízos de valor e paradigmas
estabelecidos pelas versões anteriores. Abaixo cada uma destas três correntes principais
será brevemente analisada.
A versão tradicional confere às ações de Solano López a culpa da explosão do
conflito. Ele seria o grande vilão da América do Sul, um tirano, que visava expandir o
seu território e dominar a região. Segundo Ricardo Salles:

De acordo com a versão tradicional do conflito, este foi basicamente


decorrente da agressividade de Francisco Solano López, que tinha
pretensões expansionistas e hegemônicas na região platina. As razões
para essa pretensão não são muito bem explicadas, ficando por conta
da vaidade pessoal e da megalomania do governante paraguaio
(SALLES, 1990, p.16).

Os autores desta versão, em sua maioria, são militares que participaram da


guerra e passaram a escrever sobre ela com base nos escritos de seus diários. Além de
pecar por explicar o início do confronto como uma decorrência direta dos ideais

10
Destacam-se nesta corrente os seguintes trabalhos: CERQUEIRA, Dionísio. Reminiscências da
Campanha do Paraguai. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1980. 341 p. e FRAGOSSO, Tasso. A
História da Guerra entre a Tríplice Aliança e Paraguai. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1956.
11
Destacam-se nesta corrente os seguintes trabalhos; POMER, León. La Guerra del Paraguai: gran
negocio!. Buenos Aires: Caldén, 1968. e CHIAVENATTO, Júlio José. Genocídio americano: a Guerra
do Paraguai. São Paulo: Brasiliense, 1979.
12
Destacam-se nesta corrente os seguintes trabalhos; DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: Nova
história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 617 p. IZECKSOHN, Vitor. O
cerne da discórdia: a Guerra do Paraguai e o núcleo profissional do Exército brasileiro. Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército, 1997. e SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: escravidão e cidadania na
formação do Exército. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. 165 p.
34

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tirânicos e agressivos de Solano López, omitindo importantes acontecimentos que
acarretaram o conflito – tais como as disputas territoriais e o contexto de formação dos
Estados nacionais dos países do cone-sul – a versão tradicional não poupou elogios às
atuações dos chefes militares aliados, principalmente os brasileiros, como no caso do
Marquês de Caxias.13
Doratioto esclarece mais alguns aspectos desta corrente historiográfica:

Ficou claro que, desde o final da guerra, em 1870, a historiografia


tradicional brasileira reduziu a importância do aliado argentino para a
vitória sobre Solano Lopez e minimizou, quando não esqueceu,
importantes críticas à atuação de chefes militares brasileiros no
conflito. Em compensação, ficou evidente que Francisco Solano
Lopez era um ditador quase caricato de um país agrícola atrasado,
autor de erros militares que custaram a vida de milhares de seus
valentes soldados, mas que foram motivo de suspeito silêncio de seus
admiradores futuros, os revisionistas históricos (DORATIOTO, 2002,
p.18).

Já a historiografia revisionista criou o mito de Solano López como um líder


anti-imperialista, que comandava um país extremamente avançado, livre da escravidão e
do analfabetismo. O Paraguai passou a ser relatado como um país de desenvolvimento
diferenciado em relação aos demais, já que não necessitava dos empréstimos concedidos
pela Inglaterra para a sua modernização. Como mostrado, este processo revisionista
iniciou-se no Paraguai, em fins do século XIX, sob o nome de lopizmo, e configura-se,
até os dias atuais, como uma versão historiográfica bastante disseminada,
principalmente no Paraguai, que o governo de Alfredo Stroessner popularizou, através
de uma grande propaganda política, na qual o filme “Cerro Corá” (Dir. Guillermo Vera,
1978) possui um papel de destaque. Aqui no Brasil, intelectuais positivistas – já em fins
do século XIX e antes mesmo de terem contato com os ideais revisionistas – também
passaram a criticar a monarquia, culpando-a pelo início da guerra, desta forma, eles
entravam em confronto com os autores da versão tradicional, que diziam ser Solano
López o responsável pelo confronto.
Um fator fundamental para o surgimento deste revisionismo foi a tentativa, por
parte de Enrique Venancio Solano López, de reconquistar a posse das terras que sua
mãe, a escocesa Elisa Lynch – companheira de Solano López desde 1853, quando se
conheceram na França – havia se apropriado durante a guerra:

13
Luís Alves de Lima e Silva tonou-se Barão de Caxias em 1841, Visconde de Caxias em 1843, Conde de
Caxias em 1845, Marquês de Caxias em 1852 e Duque de Caxias em 1869, após retornar dos campos de
batalha.
35

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A busca do reconhecimento, por parte de Enrique Venancio Solano
López, do direito de receber os bens de que seus pais se apropriaram
durante a guerra, explica, em parte, a transformação da imagem de
Francisco Solano López de tirano para herói. Relatório sobre a
situação política do Paraguai, elaborado em 1931 pela Legação do
Brasil em Assunção, lança luzes sobre o nascimento do revisionismo
lopizta e explica a surpreendente transformação de O’Leary de crítico
à panegirista de Solano López (Ibid, p.84).

Esta corrente historiográfica ganhou força na América Latina a partir das


décadas de 1960 e 1970, período no qual os países do Cone Sul sofriam com as
instalações de regimes ditatoriais chefiados por líderes militares. Criticar as ações
militares dos aliados na guerra, apresentando-os como covardes e violentos, atendia à
um desejo de desmoralização destes regimes. Ao mesmo tempo, em tempos onde a
Revolução Cubana (1959) exercia grande influencia no imaginário latino americano,
apontar o Paraguai de Solano López como um precursor de Fidel Castro no que diz
respeito à luta contra grandes potências mundiais – EUA para Cuba e a Inglaterra para o
Paraguai – tornou-se um discurso muito comum, embora mais panfletário do que
acadêmico.
A nova história da Guerra do Paraguai é uma historiografia recente e ainda vem
sendo construída. Foi no final da década de 1980 que o confronto começou a ser
enxergado de outra forma, alguns historiadores passaram a criticar determinadas
interpretações propostas pelas correntes anteriores.
A teoria de que a Inglaterra forçou a guerra, unindo Brasil, Argentina e Uruguai
contra o Paraguai, não leva em conta os acontecimento geopolíticos da região do
Prata14, tratando os países envolvidos como simples “marionetes” de um comando
externo. A Guerra do Paraguai foi o fruto de inúmeras tensões regionais, e a causa de
seu início está ligada às ambições dos países envolvidos. Delimitar a guerra aos
interesses ingleses na região é apagar nossa própria história, é reproduzir um grande
preconceito e complexo de inferioridade, que, implicitamente, aponta para o fato de que
a América Latina não é capaz de fazer sua própria história.
Ainda em relação à historiografia da guerra, vale ressaltar o trabalho
empreendido pelo historiador Mario Maestri15. O autor constrói uma importante análise

14
Os rios Paraná, Paraguai e Uruguai, com seus respectivos afluentes, formam a Bacia do Prata – a
segunda maior do Brasil.
15
Destaque para o seu livro, recentemente publicado. MAESTRI, Mario. A Guerra no papel: História e
historiografia da Guerra no Paraguai (1864-1870). Passo Fundo: PPGH/UPF, 2013.
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acerca da historiografia do conflito, tecendo críticas, inclusive, aos autores da nova
história. Maestri aponta para o que ele chama de “restauração-nacionalista”, ou seja,
uma recuperação das teses nacionalistas da historiografia tradicional, presente
atualmente nas obras neorrevisionistas.
Apesar de todo este debate historiográfico acerca do tema, a forma como o
cinema retratou a guerra e, no caso de “Cerro Corá”, foi utilizado para disseminar
determinados acontecimentos, construindo uma visão que atendesse às perspectivas e
aos interesses de alguns grupos, é uma espaço aberto, que carece de estudos
aprofundados. Vale ressaltar que importantes produções cinematográficas foram
realizadas pelos países que se envolveram no confronto, tais como: “Alma do Brasil”
(Dir. Líbero Luxardo, 1932), “Argentino Hasta La Muerte” (Dir. Fernando Ayala, 1971)
e “Guerra do Brasil – Toda a verdade sobre a Guerra do Paraguai” (Dir. Sylvio Back,
1987).
Como visto, Solano López, de perverso e tirano – apresentado pela corrente
tradicional – transformou-se num herói – consagrado pela versão revisionista. Sua
figura passou a representar o ideal de homem paraguaio; guerreiro, nacionalista. Foi
durante o governo ditatorial de Alfredo Stroessner (1954-1989) que a exaltação de
Solano López alcançou seu ponto máximo, encontrando em “Cerro Corá” (1978) um
grande disseminador dessa imagem positiva do ex-presidente paraguaio. O filme irá
retratar três importantes batalhas da guerra; a de Curupaiti (1866), da Piribebui (1869) e
a de Cerro Corá (1870) – batalha esta marcada pela morte de Solano López, e que dará
nome à produção cinematográfica. Vale ressaltar ainda, como o filme “Cerro Corá”
tentou ser fiel ao retrato de Solano López:

Solano López na ficção e em pintura.

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Tais batalhas foram escolhidas por se adequarem ao grande ideal de exaltação do
ex-presidente paraguaio. Curupaiti é a maior vitória paraguaia na guerra, na produção
cinematográfica, ela aparece como fruto das perfeitas ações estratégicas promovidas por
Solano López. O incêndio ao hospital de Piribebui mostra a valentia do povo paraguaio,
que liderado por López, se uniu e defendeu, até o fim, a independência do país.
Mulheres, crianças e enfermos foram vítimas de um ataque aliado lançado pelo
comandante Conde D’eu. Cerro Corá marca a morte de Solano López, ressaltando o
quanto suas ações foram heroicas, López prefere morrer ao se render, defende seu país
até o fim.
Um discurso do esquecimento pode ser construído a partir do não dito, como no
caso de “Cerro Corá” (1978), onde muitos dos acontecimentos – basicamente os que
pudessem apresentar Solano López como um perverso e tirano – foram deixados de
lado, em troca de batalhas e acontecimentos que retratassem um lado positivo do
presidente paraguaio. Em nenhum momento o filme aponta o início do conflito a partir
das ações providas por López, pelo contrário, o presidente paraguaio, tenta, de todas as
formas, evitar a guerra.
Em relação a isto, Michael Pollak faz uma importante afirmação:

Conforme as circunstâncias ocorre a emergência de certas lembranças,


a ênfase é dada a um ou outro aspecto. Sobretudo a lembrança de
guerras ou de grandes convulsões internas remete sempre ao presente,
deformando e reinterpretando o passado (POLLAK, 1989, p.8).

A construção de uma memória coletiva, que exalte a figura de Solano López


como um grande líder foi uma grande iniciativa da propaganda levada a cabo pelo
regime ditatorial de Alfredo Stroessner. Em relação ao conceito de memória coletiva,
Ulpiano Bezerra de Meneses expõe que:

Essa memória assegura a coesão e a solidariedade do grupo e ganha


relevância nos momentos de crise e pressão. Não é espontânea: para
manter-se precisa permanentemente ser reavivada. É, por isso, que é
da ordem da vivência, do mito e não busca coerência, unificação.
Várias memórias coletivas podem coexistir, relacionando-se de
múltiplas formas (MENESES, 1992, p.15).

A historiadora sul-mato-grossense Ana Paula Squinelo, ao tratar do revisionismo


acerca da figura de Solano López, afirma que:

Esse movimento ganhou forte relevo no governo ditatorial do general


Alfredo Stroessner, líder da nação paraguaia entre os anos de 1954 e
38

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1989. Seu governo, de cunho nacionalista, empenhou-se em uma
intensa propaganda política, com o objetivo de despertar o sentimento
“patriótico” nos cidadãos paraguaios (SQUINELO, 2002, p.41).

Este movimento patriótico também esteve no cerne de “Cerro Corá”, já que este
foi o primeiro filme produzido totalmente no Paraguai, por um diretor – Guillermo Vera
– e por atores – Roberto de Felice, Rosa Ros e Pedro Ignácio Aceval – nacionais.
“Cerro Corá” também foi o primeiro longa-metragem de ficção dirigido por Guillermo
Vera, que mais tarde iria participar da produção binacional de “A cafetina de meninas
virgens” (1981)16, junto com o Brasil. O diretor também se destaca como o autor de
uma série de filmes sobre o Paraguai, produzidos para a televisão. Durante a década de
1970, Vera, que havia estudado durante alguns anos na Espanha, tornou-se um diretor
de ponta no Paraguai, dirigindo “Paraguay, tierra de progresso” (1970), “Crisol de
glória” (1971) e “La voluntad de un Pueblo” (1973). Entretanto, nenhuma destas
produções alcançou o sucesso de “Cerro Corá” (1978), filme que tornou-se um símbolo
para o país, e que, até os dias atuais, é considerado uma obra canônica.17
No que diz respeito ao cinema e à propaganda política, o historiador Wagner
Pinheiro Pereira faz um importante relato:

Em qualquer governo, a propaganda é estratégia para o exercício do


poder, mas adquire uma força muito maior naqueles em que o Estado,
graças aos monopólios dos meios de comunicação, exerce controle
rigoroso sobre o conteúdo das mensagens, procurando bloquear toda
atividade espontânea ou contrária à ideologia oficial. (...) Dentre todos
os meios de comunicação utilizados para exercer tal influência
psicológica, o cinema foi bastante privilegiado, tanto pelas ditaduras
de direita e de esquerda, quanto pelas democracias liberais
(PEREIRA, 2012, p.17-18).

Com base no historiador francês Jacques Le Goff (1994), precisando o seu


conceito de “Documento/Monumento”, o filme aqui exposto é analisado como um
documento produzido pela sociedade, criado pelas relações de força dos que possuem o
poder, e como monumentos, que evocam os acontecimentos do passado através do
presente.
Atrelado a isto, definir o que é um filme histórico torna-se bastante importante.
Segundo Robert Rosestone, um filme histórico é aquele que “tenta recriar,
conscientemente o passado” (2010, p.15). Recriar o passado, apresentando o

16
Este filme foi gravado no Paraguai, onde recebeu o nome de “Kapanga”.
17
http://www.imdb.com/name/nm0893539/ acesso em 23/01/2013.
39

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acontecimento mais marcante da história paraguaia de acordo com as demandas
vigentes, seguindo uma doutrina nacionalista é o ponto principal de “Cerro Corá”.
Em relação à reconstrução consciente acerca de acontecimentos e personagens
da guerra, uma importante questão deve ser ressaltada; a utilização, por parte de Alfredo
Stroessner, do revisionismo histórico paraguaio para o fortalecimento de seu governo,
enquanto nos demais países, os intelectuais revisionistas o fomentaram como uma
forma de crítica às ditaduras chefiadas por líderes militares, que comandavam os países
do Cone-Sul durante as décadas de 1960 e 1970 – justamente o período em que tal
revisão historiográfica passou a se fortalecer e se disseminar.
A exaltação de Solano López tornou-se fundamental para a opressão realizada
pelo regime stronista. O uso político do passado histórico forneceu legitimidade ao
ditador Alfredo Stroessner. A reconstrução da Guerra do Paraguai no imaginário
nacional, ao apontar para a união e o patriotismo dos paraguaios, foi constante na
ditadura paraguaia.
Por fim, vale citar, que este trabalho compreende a construção de memória a
partir de uma constante luta, de um constante conflito, logo, não há unanimidade, e, sem
dúvida, havia setores que enxergavam nas ações de Solano López e Alfredo Stroessner
atos de tirania, porém, a exaltação de López, a partir da reconstrução de suas ações na
Guerra do Paraguai, conferiu ao ex-presidente paraguaio um status de herói, uma
imagem extremamente mitificada, perceptível a partir da constante presença de seu
nome até os dias atuais no país, através de ruas, praças e outros espaços –
principalmente públicos. O cinema e a grande força na propagação de ideias, costumes
e memórias que possui, tornou-se fundamental para disseminar este processo.

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SQUINELO, Ana Paula. A Guerra do Paraguai, essa desconhecida... Ensino, memória


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Artigo recebido em: 27 de setembro de 2013


Aprovado em: 21 de novembro de 2013

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A ESPERANÇA: A POLÍTICA DE NÃO INTERVENÇÃO NA OBRA DE
ANDRÉ MALRAUX

Rebeca Gonzalez*

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo mostrar como a obra literária A
Esperança (L’espoir, 1937), de André Malraux tratou a Guerra Civil Espanhola, em
particular a política de Não-Intervenção. Segundo o autor, esta política foi decisiva para
a derrota da República Espanhola, visto que as potências democráticas liberais não
ofereceram ajuda, participando do pacto de Não-Intervenção, mas países como
Alemanha e Itália participaram ativamente da guerra espanhola, inclusive com tropas
próprias.

PALAVRAS-CHAVE: André Malraux; Guerra Civil Espanhola; Pacto de Não


intervenção.

ABSTRACT: This article aims to show how the literary work Man’s Hope (L’espoir,
1937), by André Malraux treated the Spanish Civil War, particularly the policy of Non-
Intervention. According to the author that policy was decisive to the defeat of Spanish
Republic, since the liberal democrats powers didn't offer help, participating with the
Non-Intervention agreement, but countries like Germany and Italy actively participated
in the Spanish war, including their own troops.

KEYWORDS: André Malraux; Spanish Civil War; Non-Intervention Pact.

***

*
Rebeca Gonzalez, mestranda do Programa de Pós-graduação em História Comparada da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
43

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Introdução

André Malraux nasceu na cidade de Paris em 1903 e muito jovem começou a


escrever, tendo publicado seu primeiro livro em 1923, Lunes em Papier1, com apenas
vinte anos. Desde sua juventude esteve envolvido em temas políticos, tendo participado
ativamente da Revolução Chinesa como militante de esquerda e esta luta deu origem ao
livro Condition humaine (A Condição Humana), em 1933, obra que lhe rendeu o prêmio
francês Goncourt de literatura neste mesmo ano.
Alguns anos depois, Malraux se envolve na Guerra Civil Espanhola (1936-
1939), sendo esta uma oportunidade para o escritor aliar sua paixão pela escrita e a
necessidade de ação2. Assim, imediatamente vai à Madri, se estabelecendo lá apenas
três dias após o início do conflito. É importante destacar que o francês “teria sido o
primeiro escritor a perceber que a Europa estava em guerra e a fazer uma literatura de
guerra”3. Logo André Malraux retorna a França com objetivo de chamar mais pessoas
para ajudar a República Espanhola. organiza uma esquadrilha de aviões para lutar ao
lado dos legalistas, inicialmente chamada Esquadrilha Espanha, mas logo rebatizada
para Esquadrilha Malraux4. Porém, é irônico saber que o escritor francês nunca pilotou
um avião.
Enquanto esteve na França devido aos ferimentos sofridos na guerra, arrecadou,
junto com ouros escritores e intelectuais, donativos para levar a Espanha. Foi neste
período também que escreveu o livro A esperança, sendo publicado antes do final da
guerra, obra que inicialmente foi pensada como um texto de propaganda. A sua
experiência no combate ajudou o escritor com esta obra visto que
[...] Malraux trocou temporariamente a ficção pela realidade, as
palavras-arma por uma esquadrilha aérea, vivenciando batalhas reais.
Terminada sua ação, as batalhas foram imortalizadas nas palavras dos
personagens de L’Spoir(1937) e dos interpretes do filme Sierra de
Teruel(Espoir)(1939).5

1
SOARES, Daniela. Anarquistas na Guerra Civil Espanhola: Uma abordagem a partir das obras
literárias de Ernest Hemingway e André Malraux. 2010. Monografia [Graduação] – Curso de História,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. p 57
2
FREITAS, Maria Teresa. “Ficção e História: Malraux e a Guerra Civil Espanhola”. Revista brasileira de
história. São Paulo: Associação Nacional de História, 1986/1987. v.7 n.13 set/fev. p. 145.
3
Ibid. p. 145.
4
Ibid. p. 146
5
OLIVEIRA, Clarissa Laus Pereira. A Condição Crítica de Malraux no Brasil e na Espanha: recepção
crítica das obras La Condition humaine, L’Spoir e Antimémoires. Tese de Doutorado. Programa de Pós
Graduação em Letras/UFRGS, Porto Alegre: 2006. p. 90
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Após o término das atividades da Esquadrilha Malraux em março de 1937, em
1938 retorna a Espanha para produzir e dirigir seu filme, Sierra de Teruel(Espoir), mas
este não tinha a intenção de ser uma adaptação do livro L’Spoir. A filmagem não foi
fácil, já que o país ainda se encontrava em guerra, não sendo diferente para a estréia, já
que seu único filme estreou em julho de 1939, assim, poucas pessoas puderam assistir,
inclusive o presidente exilado Juan Negrín. Logo depois o filme foi proibido na França,
sendo liberado apenas em 1945, após o fim da Segunda Guerra Mundial.
A Esperança trata da primeira fase da Guerra Civil Espanhola, de julho de 1936,
com a rebelião dos nacionalistas, até a vitória republicana em Guadalajara, em março de
1937, passando por diversas batalhas que ocorreram neste tempo. Este livro não é um
romance peculiar, visto que não existe um protagonista, mas sim diversos personagens
que surgem no decorrer da trama, que por vezes, retornam – estes são os “protagonistas”
da história. Apesar do personagem Magnin, comandante, apresentar certas semelhanças
a Malraux, este não serviu de base para a criação do personagem. Dessa maneira,
nenhum personagem desta obra pode ser identificado com pessoas reais, pois todos
existem apenas no mundo imaginário6. Outro aspecto importante a ser ressaltado sobre
esta obra é que não existem heróis, desta maneira, Malraux buscou valorizar o coletivo e
a igualdade entre os soldados.
O livro é divido em três partes: Ilusão Lírica, O Manzanares e L’Spoir. A última
parte termina dando esperança, assim como o próprio nome sugere, de que a guerra
pode ser ganha pelos republicanos. Além disso, tenta transmitir coragem e otimismo às
massas oprimidas. Porém, como já foi apresentado, no momento que a obra é lançada, o
quadro que se apresentava na Espanha já não era do otimismo republicano da vitória em
Guadalajara, último episódio do livro.

Uma guerra que atrai a intelectualidade


Durante a Segunda República espanhola houve um salto na educação da
população, visto que para àquele governo, “[...] a cultura constitui uma forma de
emancipar o povo, libertando-o da estagnação mental em que assentava o anterior
regime” 7.Assim, alavancado por esta ideia, ocorreu a alfabetização de 75 mil soldados e
300 mil civis, foram criadas 800 escolas, mil bibliotecas, além de serem colocadas 60

6
FREITAS, Maria Teresa. Op. cit. p. 149.
7
CERQUEIRA, João. Arte e literatura na Guerra civil de Espanha. Porto Alegre: ZOUK, 2005. p. 10.
45

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mil crianças em colônias escolares8. Dessa maneira, neste período, os números da
educação espanhola se aproximavam do padrão europeu, publicação de imprensa e
livros atinge valores inéditos.
Após o início da Guerra Civil Espanhola, o governo também promovia “a
confraternização entre soldados e civis e realizados colóquios de politização das
massas, com o objetivo de explicar as finalidades da guerra”9. A massa, antes privada
do conhecimento, demonstrava grande interesse pelo o que agora lhe era oferecido. Por
isso, pode-se dizer que “a Guerra Civil acorda talentos adormecidos que sem os
trágicos acontecimentos ocorridos em Espanha talvez permanecessem ocultos”10.
Temas históricos atraem, não sendo de se estranhar,
[...]que essa atração seja maior pelos processos com dimensão
especialmente ‘catastrófica’ da História: guerras, revoluções,
insurreições constituem momentos em que essas situações se
exacerbam, e que oferecem, por conseguinte, fontes inesgotáveis de
inspiração às mais diversas formas de produção literária.11

Durante a Guerra Civil espanhola, o país se tornou em campo de discussão sobre


os principais ideais que estavam se expandindo pelo mundo – Fascismo e Comunismo.
Assim, “a Espanha converteu-se em um símbolo de esperança para intelectuais,
representou a possibilidade de lutar pela liberdade e justiça e as grandes correntes
políticas da época puderam ser ouvidas e discutidas”12.
A guerra espanhola foi considerada a última guerra romântica, pelos ideais
envolvidos nela. Para Freitas, “era uma guerra romântica, feita de ‘tragédias’ e não de
batalhas; por heróis e não por soldados. E o afluxo de voluntários estrangeiros, nem
sempre simples mercenários, só fez ampliar esse caráter romântico que o conflito
adquiria”13.
O apelo republicano era grande, o que levou a muitos artistas aderirem à causa,
fazendo com que compositores como Dmitrj Sostakovic e Frans Szabo criassem hinos
para as Brigadas Internacionais. O próprio Luís Buñuel estava filmando na Espanha,
com Jean Grémillon, o filme chamado Sentinela Alerta, uma comédia militar que, de
certa maneira, era inspirada nos acontecimentos espanhóis do início da década de 30,

8
Ibid. p.10.
9
Ibid. p. 10.
10
Ibid. p. 110.
11
FREITAS, Op. cit., p. 138.
12
SOARES, Op. cit., p. 15.
13
FREITAS, Op. cit., p.139.
46

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que teve sua estreia em plena guerra civil14. A lista que Cerqueira faz de alguns
intelectuais que participaram é imensa, porém, vale lembrar que mesmo que o lado
republicado tivesse mais atrativos para a intelectualidade, os nacionalistas também
tinham apoio, por exemplo, Salvador Dali15.
Em 1937 foi realizado em Valência o Congresso Internacional de Escritores,
onde foi defendida a “intervenção da literatura nas causas políticas, tendo sem dúvida
reforçado o comprometimento ideológico de inúmeros escritores e consequentemente
contribuído para o aumento de obras de propaganda”16. Porém, alguns escritores,
dentre eles Malraux e Orwell, não se contentaram em participar escrevendo, mas
também se alistaram nas Brigadas Internacionais.
Dessa forma, pode-se falar sobre a literatura engajada, onde a geração de
escritores – artistas ou intelectuais – da década de 1930 estava engajada em questões
políticas, sendo a guerra que acontecia uma oportunidade de colocar seus valores em
prática. Para Maria Freitas, a Guerra Civil Espanhola provocou o desenvolvimento desta
nova relação entre a História e Literatura, produzindo a chamada literatura engajada
com um caráter político, polêmico e pragmático17. Assim,

Muitos esforços e criatividade foram subordinados às demandas


conjunturais. Os textos produzidos foram marcados pelo caráter
emergencial e pela necessidade de denunciar e convencer, objetivos
maiores que pautaram a ação dessa geração engajada18.

Essa geração engajada estava disposta a arriscar suas vidas por seus ideais –
Miguel Unamuno e Federico Garcia Lorca, foram dois que perderam a vida por se
colocarem contra os fascistas. Muitos deles não eram comunistas, mas como se unir ao
comunismo significava fazer frente ao fascismo, se vinculavam aos partidos de esquerda
– que nem sempre era comunista, mas também anarquista, por exemplo – para lutar na
guerra da Espanha. Alguns imaginavam que seria como uma aventura estar na Espanha,
enquanto outros, não aguentaram a disciplina e privações que lhes eram impostas nas
Brigadas Internacionais. Questão curiosa levantada por João Cerqueira é que os
escritores estavam convencidos da superioridade moral da sua causa, por isso não

14
BUÑUEL, Luís. Meu último suspiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p.203.
15
CERQUEIRA, Op. cit., p.118.
16
Ibid. p. 117.
17
FREITAS, Op. cit., p.138.
18
OLIVEIRA, Op. cit., p.77.
47

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tentam “[...] compreender as motivações dos adversários nem analisar com
imparcialidade as razões da Guerra, cedendo a tentação de dividir os combatentes
entre bons e maus”19. Alguns escritores, menos seguros das suas capacidades e
menosprezando a inteligência do seu público leitor, interferem diretamente na ação,

intrometendo-se na relação entre o leitor e as personagens, para


facilitar a compreensão do enredo ou propagar mensagens políticas.
Em vez de utilizarem a voz das personagens, alguns autores não
resistem a expressar as suas opiniões e, inclusive, interpelar o leitor,
congelando a narrativa por períodos mais ou menos longos. O cúmulo
da propaganda dá-se quando certas personagens, ao invés de
defenderem os seus ideais, desferem críticas ao sistema político em
que acreditam e renegam a ideologia pela qual lutavam.20

É interessante lembrar que, devido a ruptura que os intelectuais espanhóis


desejavam fazer, os “autores republicanos ignoram as regras da métrica e a inspiração
lírica, por as considerarem expressões culturais dos intelectuais do antigo regime”21.
Outra curiosidade é que a poesia republicana não valorizava a figura do herói – com
exceção de algumas figuras simbólicas -, pois glorificava o coletivo – bastante marcada
na obra A esperança, de Malraux.
Como consequência do objetivo de levar a “cultura” para as massas, pela
linguagem, a poesia republicana tenta se aproximar do povo, enquanto os nacionalistas
fazem o contrário, rebuscando ainda mais a escrita. Os nacionalistas permaneciam
seguindo as regras da academia e baseando seus textos nos autores clássicos. Além
disso, o apoio intelectual aos nacionalistas foi menor e, talvez, o apoio desta
intelectualidade não fosse o objetivo do grupo, pois um dos lemas mais conhecidos dele
é Abaixo a inteligência! Viva a morte!, do General Millán Astray22.
Dessa maneira, durante a guerra, pela necessidade dos combatentes registrarem
o que viviam, além de muitos intelectuais se descobrirem soldados, soldados também se
descobriram escritores. Frequentemente, os soldados nos seus momentos de descanso se
tornavam escritores, registrando suas memórias. Porém, de acordo com Cerqueira, as
obras concebidas após o término do conflito, são mais maduras, pois permitiram que a

19
CERQUEIRA, Op. cit., p.118.
20
Ibid., p. 119.
21
Ibid., p.111.
22
Palavras ditas durante o Festival da Raça em 12 de outubro de 1936, realizado no salão de honra da
Universidade de Salamanca. Neste evento Unamuno retirou seu apoio aos nacionalistas e foi preso até sua
morte em 31 de dezembro de 1936.
48

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distância evitasse um discurso de propaganda, com complexidade e estrutura
superiores23.
Vale ressaltar que a experiência da guerra causa desilusões e rupturas
ideológicas em alguns escritores, como o caso de Koestler, que “acaba por descobrir
que nenhum ideal, por mais elevado que seja, pode aplacar a brutalidade dos homens
enraivecidos pela Guerra”24. Dessa maneira, os escritores se chocam com a realidade da
guerra que entra em choque os ideais que antes defendiam, levando a introspecção,
conduzindo a dramáticas transformações de identidade25.
Para Cerqueira,
a literatura não consegue derrotar as ditaduras fascistas e comunista,
mas preserva a memória dos seus horrores ao evitar o esquecimento e
a distorção da verdade, fornecendo assim à humanidade preciosa ajuda
para não repetir erros do passado.26

Abandono das democracias ocidentais

A obra de André Malraux aborda – ainda que não durante todo o livro – um
tema de grande importância para entender o desenvolvimento do conflito espanhol. Em
algumas passagens A esperança menciona questão da política de Não-Intervenção, que
na verdade foi uma fraude. Neste trecho vemos exatamente a sensação de abandono que
os republicanos sentiam:

“Os fascistas ajudaram aos fascistas, os comunistas ajudaram aos


comunistas e até mesmo à democracia espanhola; as democracias não
prestam ajuda às democracias”.27
“Nós, democratas, acreditamos em tudo, menos em nós mesmos. Se
um Estado fascista dispusesse da força dos Estados Unidos, da
Inglaterra e da França reunidos, estaríamos aterrorizados. Mas como
se trata da nossa força, não acreditamos nela”.28

No momento da revolta dos militares, em julho de 1936, o governo sabia que


não podia contar com países como Alemanha nazista, Itália fascista e Portugal de
Salazar, pois estes apoiariam ou, ao menos, não se oporiam aos nacionalistas. Os aliados

23
CERQUEIRA, Op. cit., p. 118.
24
Ibid., p.121.
25
Ibid., p.122.
26
Ibid., p.124.
27
MALRAUX, André. A esperança. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2000. p. 361.
28
Ibid., p. 161.
49

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“naturais” da República espanhola seriam a URSS, já que o governo espanhol era de
esquerda, e as democracias ocidentais, porém estas últimas acabaram por não fornecer
ajuda oficial, mas apenas voluntários enviados por organizações desvinculadas dos seus
Estados.
Dessa maneira, os republicanos tinham grande esperança de conseguir ajuda
imediata da França, visto que o governo também era da Frente Popular 29. Em 19 de
julho, o primeiro-ministro da República envia um telegrama ao primeiro-ministro
francês, Léon Blum, pedindo ajuda com armas e aeroplanos30. Segundo Salvado, esta
solicitação não era ilegal, já que,

segundo o direito internacional, um governo tem o direito de comprar


armas quando confrontado com uma rebelião. Além disso, um acordo
comercial franco-espanhol, assinado no final de 1935, providenciou a
aquisição de armas na França até a quantia de 20 milhões de francos31.

Além do que foi apresentado, a França tinha interesse que a Frente Popular
permanecesse no governo espanhol, pois seria um aliado ao sul de sua fronteira32. Uma
vitória nacionalista seria hostil ao governo francês e estaria cercada por três países
hostis33. Porém, a posição do governo francês muda, já que o governo britânico,
temendo uma nova guerra europeia, pressiona a neutralidade francesa.
Ao contrário do que ocorria com a França, a administração britânica tinha mais
simpatia pelos rebeldes. Mesmo que a Grã-Bretanha fosse uma democracia, assim como
a Espanha, não apoiaria o governo da Frente Popular, porque se tratava de um governo
esquerdista e na Inglaterra os conservadores estavam no poder. Por isso, “desde os
primeiros dias, relatórios diplomáticos e de inteligência confirmam os sentimentos anti-
republicanos já dominantes no governo britânico”34.
Assim sendo, devido a pressões inglesas, a França foi persuadida a quebrar o
acordo de envio de armas a Espanha, já que o cumprimento deste acordo colocaria em
risco as relações entre Londres e Paris. Dessa forma, em 9 de agosto de 1936, a França
proíbe a exportação de equipamentos militares, inclusive transações feitas por

29
SALVADÓ, Francisco. A Guerra Civil Espanhola. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 95.
30
THOMAS, Hugh. A Guerra Civil Espanhola. Vol. 1 . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.
p.257.
31
SALVADÓ, Op.cit., p.96.
32
Ibid., p 96.
33
THOMAS, Op. cit. V. 1., p.259.
34
SALVADÓ, Op.cit., p.98.
50

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particulares com o governo espanhol35. A Partir de então, adota de forma unilateral a
política de não-intervenção e “falou-se demais nas ‘lágrimas’ de Léon Blum”36.
Inicialmente, se acreditou que a política de não-intervenção, mesmo com a
República impedida de comprar armas, deixaria esta em condição de derrotar a
insurreição, visto que os nacionalistas também não o fariam37. Segundo Matthews, a
“teoria da não-intervenção era compreensível e, aparentemente, sensata: fazer com que
nenhuma potência estrangeira fornecesse ou vendesse armas ou material bélico a
qualquer um dos lados na Guerra Civil”38. Porém, se mostrou um total fracasso, visto
que não conseguiam impedir a ajuda dada aos nacionalistas pela Itália e Alemanha, já
que “a intervenção no lado insurreto começou com uma explosão; no lado republicano,
começou com um murmúrio”39.
Ainda que a Alemanha tivesse iniciado sua ajuda de maneira tímida, logo seu
apoio foi fundamental, principalmente pela Legião Condor que os nazistas utilizaram na
guerra espanhola para testar a eficiência da Luftwaffe. A Legião Condor mostrou sua
eficiência ao bombardear a cidade de Guernica. Estima-se que esta legião era composta
de 80 a 150 aparelhos, variando de acordo com o momento, e 4 mil homens40.
A Itália também não poupou esforços para ajudar os espanhóis nacionalistas.
Para Vilar, “a intervenção italiana foi mais teatral, mais ideológica, financeiramente
mais desinteressada que a intervenção alemã, sem ser, no entanto, isenta de interesses
a longo prazo”41. Entretanto, para Salvadó, “a decisão da Itália de se envolver na
Espanha foi resultado de um cuidadoso exercício de oportunismo político”42.
Dessa forma, a política de não-intervenção se mostrou uma fraude,
a flagrante ineficiência do NIA43 era, em grande medida, consequência
de ele ser na realidade uma trapaça, um instrumento da diplomacia
britânica cujos objetivos não eram os retratos pela propaganda oficial,
isto é, a prevenção da participação estrangeira na guerra.44

35
Ibid., p. 106.
36
VILAR, Pierre. A Guerra da Espanha, 1936-1939. São Paulo: Paz e Terra, 1989. p.103.
37
SALVADÓ, Op. cit., p.107
38
MATTHEWS, Herbert Lionel. Metade da Espanha morreu: uma reavaliação da Guerra Civil
Espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. p.136.
39
Ibid. p.136.
40
VILAR, Op. cit., p.101.
41
Ibid., p.102.
42
SALVADÓ, Op. cit., p.104.
43
Sigla de Acordo de Não-Intervenção em inglês.
44
SALVADÓ, Op. cit., p.108.
51

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A Liga das Nações também mostrou sua ineficiência em colocar em prática a
política de não-intervenção ao ignorar a participação de Estados estrangeiros no lado
nacionalista. Além disso, a Liga ignorou os protestos do governo espanhol, que era
membro do Conselho da Liga45. O Conselho chegou a votar para que o Comitê de Não-
Intervenção organizasse, entre seus membros, mediação para a política ser cumprida,
porém, esta não foi aceita por republicanos nem por nacionalistas, acabando por ser
abandonada46.
Assim, países como França e Inglaterra mostraram ser de pouca confiança,
principalmente após o primeiro confiscar parte do ouro do Banco de Espanha e só
entregar após a guerra à Francisco Franco47. Os Estados Unidos, seguindo a política
isolacionista que adotou após a Primeira Guerra Mundial, se manteve afastado do
conflito, ficando neutro e, logo, também adotou a política de não-intervenção, inclusive,
realizando embargos à República Espanhola. Sendo o México o único país ocidental a
defender abertamente a república espanhola, não participando da não-intervenção, já
que a consideravam um embuste48.
Como foi mostrado no trecho inicial do texto, havia uma sensação de abandono
e “a falsidade evidente das consequências a revoltar a maioria dos liberais e socialistas
dos países ocidentais”49. Por isso, “face ao abandono da República Espanhola pelas
democracias e à crise mundial do Capitalismo, muitos destes homens abraçam o
Comunismo como a única forma de travar o Fascismo”50. Dessa maneira, a República
apenas pode contar com a ajuda da URSS, já que o México não podia ajudar em muito.

Considerações Finais
André Malraux esteve envolvido na guerra até o seu final, ainda que não como
combatente todo este tempo, mas sempre buscando ajudar a causa republicana na
Espanha, sendo um exemplo disso o próprio romance A Esperança, que por ter sido
lançado ainda durante a guerra, constituiu, segundo Sartre, uma literatura engajada por
excelência51. Por conta disso, esta obra foi, muitas vezes, classificada como “romance-
reportagem”, já que seria de cunho jornalístico e autobiográfico, ainda que, não trate de

45
MATTHEWS, Op.cit., p.174.
46
THOMAS, Opcit. V. 2., p.27.
47
MATTHEWS, Op.cit., p.176.
48
Ibid., p.173.
49
THOMAS, Op. cit., p.36.
50
CERQUEIRA, João. Arte e literatura na Guerra civil de Espanha. Porto Alegre: ZOUK, 2005. p.117.
51
Ver: FREITAS, Op.cit.
52

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seus próprios relatos, mas sim, em uma ficção baseada no que viu durante sua estadia na
Espanha em guerra.
Além disso, vale ressaltar que o país natal de Malraux, a França, de todos os
países envolvidos, foi o mais concernido52. “A única democracia de esquerda a ter
fronteira comum com a Espanha na época, já que Portugal tomara o partido dos
rebeldes nacionalistas”53. Além disso, a própria população francesa se posicionou
contrária a política de não intervenção, sendo que, segundo estatísticas, os franceses
foram maioria nas Brigadas Internacionais, deixando também uma vasta bibliografia
sobre o assunto54.
Assim, percebemos que o escritor não era uma exceção entre os franceses, que
apoiavam a luta da República. Porém, posteriormente, devido ao pacto de Não-
Intervenção e pressão Inglesa, a França retirou a ajuda e o governo eleito
democraticamente foi massacrado pelas tropas nacionalistas que tiveram apoio militar
até o final da Alemanha e Itália.

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52
Ibid. p. 140.
53
Ibid. p. 140.
54
Ibid. p. 142.
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Artigo recebido em: 29 de agosto de 2013


Aprovado em: 28 de setembro de 2013

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“NOSSOS ANOS VERDE-OLIVA”: ROBERTO AMPUERO ENTRE O
GOVERNO DE AUGUSTO PINOCHET, A REVOLUÇÃO DE FIDEL
CASTRO E UM SÉCULO DE AUTORITARISMOS.

Quezia Brandão*

RESUMO: O presente artigo se propõe a discutir o papel da obra literária Nossos Anos
Verde-Oliva, de Roberto Ampuero, para pensar as experiências autoritárias dos
governos do General Augusto Pinochet, no Chile, após o Golpe de 1973 que derrubou o
governo da Unidade Popular de Salvador Allende e do líder revolucionário Fidel Castro,
em Cuba, após a vitória da Revolução Cubana de 1959, sobretudo com o acirramento do
governo de Castro na década de 1970. Assim, o texto abordará as questões atinentes à
memória, a legitimação, consenso e consentimento sociais acerca de tais regimes
políticos, partindo das contribuições deixadas por Roberto Ampuero em seu romance
biográfico.

PALAVRAS-CHAVE: Nossos Anos Verde-Oliva; Agusto Pinochet; Fidel Castro;


Autoritarismo.

ABSTRACT: This article aims to discuss the role of literary Roberto Ampuero’s
Nuestros Años Verde-Olivo, to think the of authoritarian government’s experiences of
General Augusto Pinochet in Chile after the 1973 coup that overthrew the Popular Unity
Governements Salvador Allende and revolutionary leader Fidel Castro in Cuba after the
triumph of the Cuban Revolution in 1959, especially with the growth of Castro's
government in the 1970s. Thus, the text will address the issues relating to memory,
legitimation, social consensus and consent about such political regimes, starting from
the left by Roberto Ampuero contributions in his biographical novel.

KEY-WORDS: Nuestros Años Verde-Olivo; Augusto Pinochet; Fidel Castro;


Authoritarianism

***

*
Graduanda em História pelo Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Pesquisadora no Laboratório de Estudos Históricos e Midiáticos das Américas e da Europa e no
Laboratório de Imagem, Arte e Metrópoles. Bolsista de Iniciação Científica – Jovem Cientista - Faperj.
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“Só a Literatura, aquela que surge do conhecimento profundo da alma humana e de
suas paixões, suas mesquinharias e grandezas, era capaz de dar conta daquilo que
eu presenciava. Disso provém a causa última pela qual o gênero do romance nunca
perderá sua vigência.”
Roberto Ampuero. Nossos Anos Verde-Oliva (2012).

Introdução

Todo trabalho que pretenda analisar obras literárias coloca, em si, uma difícil e
árdua tarefa. Ao pensar uma produção literária do ponto de vista das suas implicações
políticas e sociais estamos indo além da crítica literária e construindo uma complexa
teia de compreensões e caminhos interpretativos sobre aquilo que, grosso modo,
Hayden White problematizou com as noções de representação histórica e o papel da
imaginação histórica1. Embora White estivesse preocupado em pensar o problema da
escrita da história pelos historiadores e daquilo que se pode ou não chamar de “real”,
suas reflexões, em um primeiro momento, tornam-se úteis para pensarmos como o devir
histórico de certos eventos é representado socialmente a partir da literatura, que é
associada diretamente à ideia de uma narrativa eivada de subjetividades, simbolismos e
posições sobre determinado acontecimento ou conjunto de acontecimentos. Nesse
caminho, o historiador Antônio Celso Ferreira em A Fonte Fecunda2implica que

“Afirmar que a literatura integra o repertório das fontes históricas não


provoca hoje qualquer polêmica, mas nem sempre foi assim. Mais do que
isso, nas últimas décadas, os textos literários passaram a ser visto pelos
historiadores como materiais propícios a múltiplas leituras, especialmente
por sua riqueza de significados para o entendimento do universo cultural,
dos valores sociais e das experiências subjetivas de homens e mulheres no
tempo.”3

O presente artigo pretende se debruçar sobre as experiências autoritárias de Cuba


– sob o regime de Fidel Castro, instaurado após a Revolução Cubana de 1959 - e do
Chile – sob o presidente Augusto Pinochet, após o Golpe de 1973 que depôs o
presidente Salvador Allende - , a partir da análise crítica da obra literária de Roberto

1
WHITE, Hayden. Meta-História: A imaginação histórica no século XIX. São Paulo: EDUSP, 1995.
2
FERREIRA, Antônio Celso. A fonte fecunda. In: PINSKY, Carla Bassanezi & LUCA, Tânia Regina de.
Os Historiadores e suas Fontes. São Paulo: Contexto, 2009. pp.61-91.
3
Ibidem.
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Ampuero4 – Nossos anos verde-Oliva (Nuestros años verde olivo). Através do romance
biográfico de Ampuero iremos pensar a noção de memória5 acerca do regime de Fidel
Castro, do Golpe de 1973 que elevou Pinochet à presidência do Chile e do conflito
bipolar da Guerra Fria que propulsionou diversas experiências políticas autoritárias e
ditatoriais6 na América Latina, sobretudo.
O que se quer aqui é demonstrar como ambas as experiências históricas
constituíram (e, constitui, no caso cubano) regimes autoritários, como se deu a subida e
permanência ao poder, entendendo tais governos como produtos sociais. Nesse sentido,
nos utilizaremos do duplo eixo analítico proposto por Denise Rollemberg e Samantha
Quadrat, em A construção social dos regimes autoritários7: 1) como um regime
autoritário/ditadura obteve apoio e legitimidade na sociedade; 2) como os valores desses
regimes autoritários/ditatoriais estavam presentes na sociedade e, assim, tal regime foi
antes o resultado da própria construção social. Não deixaremos de abordar também,
mesmo que brevemente, as questões atinentes à memória desses regimes, como se
constitui a obra literária aqui analisada.
Para além de toda uma discussão em torno do conceito(s) definidor(es) de tais
regimes, pretendemos nos referir às experiências quanto ao seu caráter repressivo,
nocivo às liberdades individuais e coletivas, suas ideologias legitimadoras e seus líderes
carismáticos ou não. Utilizaremos, então, tanto o termo ditadura quanto regime

4
Roberto Ampuero é um dos autores mais significativos de toda a América Latina. Ampuero nasceu em
Valparaíso, no Chile, ano de 1953. Permaneceu exilado em Berlim Oriental após o Golpe que instaurou a
ditadura de Augusto Pinochet, radicou-se em Cuba, até mudar-se para os Estados Unidos da América. É,
atualmente, embaixador do Chile no México e professor de escrita criativa e redação na Universidade de
Iowa (EUA).
5
Apesar do presente esforço historiográfico aqui proposto perpassar pela noção de memória, afinal de
contas, a obra literária em discussão é um romance biográfico e, portanto, parte importante do que
Michael Pollak em Memória, Esquecimento, Silêncio (Rio de Janeiro. Revista de Estudos Históricos, Vol.
2, n.3, 1989, páginas 3 - 15) irá chamar de memória coletiva e memórias subterrâneas, a construção de
memória não é discussão principal.
6
As discussões sobre a conceituação acerca da natureza das diversas experiências políticas do século XX
partem das reflexões teóricas de Hanna Arendt em Origens do Totalitarismo: anti-semitismo,
imperialismo e totalitarismo (Companhia das Letras. São Paulo, 1998). Neste trabalho, Hanna Arendt
toma o conceito de totalitarismo e o considera como definição de um sistema político no qual o Estado
detém o domínio completo sobre a sociedade a qual está imposto e mesmo à vida particular dos
indivíduos constituintes da mesma. O conceito de totalitarismo, entretanto, foi construído a partir de uma
discussão que teve, como horizonte principal de observação, a Alemanha Nazista de Adolf Hitler (1933 -
1945) e o governo de Josef Stálin na Rússia Soviética. A partir de então, diversos estudiosos do tema
começaram a considerar a necessidade de novos eixos e paradigmas conceituais para tentar determinar a
essência e dinâmica de diversas experiências autoritárias, sobretudo na América Latina. Logo, hoje é
possível e necessário trabalhar com os conceitos de ditadura, autoritarismo e totalitarismo, tendo em vista
as especificidades de cada regime político-social posto em análise.
7
ROLLEMBERG, Denise & QUADRAT, Samantha Viz. A construção social dos regimes autoritários.
Legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
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autoritário, porque compreendemos aqui que não há uma distancia inconcebível entre
ambos, e são capazes de dar conta do discurso sobre os processos históricos.

Da Obra

Ao propor a presente análise literária da obra Nossos anos verde-Oliva, de


Roberto Ampuero, precisamos entender o contexto de produção, quais fatores
propiciaram a publicação da obra, tendo em consideração sua motivação social e seu
efeito no mesmo sentido, pois como refletiu Antonio Cândido em Literatura e
Sociedade8:
(...) a arte é social nos dois sentidos: depende da ação de fatores do meio,
que se exprime na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os
indivíduos um efeito prático, modificando sua conduta e concepção do
mundo, ou reforçando nele o sentimento dos valores sociais9.

Nuestros años verde olivo (título original da obra) teve sua primeira edição em
1999, pela editora Planeta, no Chile. No Brasil teve sua primeira edição no recente ano
de 2012 pela editora Benvirá, traduzido por Luis Reyes Gil. A publicação dessa obra de
Roberto Ampuero é significativa do ponto de vista do momento de fala. O fim do século
XX presenciava todo tipo de deflagração aos regimes ditatoriais; estava em pauta (e
ainda está até os dias de hoje) o debate sobre consentimento, legitimação e consenso,
bem como as questões em torno da memória. Precisamos lembrar também que o fim do
regime de Augusto Pinochet era recente (1990).O romance biográfico de Ampuero é
importante pois, além de aludir a ditadura chilena de Pinochet, retrata, às próprias
impressões, a ilusão do Regime Castrista após a Revolução Cubana de 1959.
Roberto Ampuero faz parte dos escritores da escola literária pós-moderna. Ainda
há uma discussão entre literatos e intelectuais sobre situar ou não as obras pós-
modernas como uma escola literária. Existem várias vertentes de escrita dentro da
escola pós-moderna. Enquanto o Concretismo consolidava suas características na
poesia, a prosa pós-modernista seguia por diferentes estilos, marcada por tendências
diversas: regionalista, urbana, intimista, política, realista-fantástica, além de crônicas e
contos. O pós-modernismo, em todas as áreas da cultura, se configura uma mistura, um
“boom” de diversos assuntos, estilos e interesses. É sintomático do mundo que emerge

8
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro. Ed.: Ouro sobre Azul, 2006.
9
CANDIDO, Op.cit., p.29.
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após os anos 1950; é o mundo do pós-guerra, da polarização política e da verdadeira
convergência de estruturas culturais. Nesse sentido, o romance biográfico Nuestros años
verde olivo surge como corolário dessa nova vertente, explorando o sentido político, e
por consequência, social e econômico. No entanto, podemos perceber que não há uma
marcada característica dessa escola literária, justamente porque é – em contraposição –
movimentação do diversionismo.
Roberto Ampuero Espinoza nasceu em Valparaíso, Chile, em 1953. Criado por
uma família pequeno-burguesa que se inclinou para a direita, Ampuero estudou alemão
na Deutsche Schule de Valparaíso (DSV)e tornou-se um militante político de esquerda
em apoio a Unidade Popular de Salvador Allende. Contudo, após o Golpe de 1973,
quando Pinochet tomou o poder e instaurou um governo de cunho autoritário, o escritor
– na época apenas estudante – viu-se obrigado a pedir asilo político, indo parar na
Alemanha Oriental. Estudando em Leipizig, na Karl Marx Universität, conheceu a filha
de um comandante cubano que trabalhava na embaixada, em Moscou. Envolvendo-se
em um caso amoroso Ampuero parte para Cuba onde recebe asilo político. Nos anos
subsequentes o autor, que sentirá a decepção política com a Revolução Cubana tentará a
saída da Ilha até voltar à Alemanha Oriental e, dali, atravessar para a parte ocidental
onde escreve seus dois primeiros romances policiais (gênero predominante dos livros de
Ampuero) que só serão publicados posteriormente. Voltando ao Chile em 1993, o
escritor passa pela Suécia e depois irá morar nos Estados Unidos.
Roberto Ampuero, atualmente, além de ser escritor pós-modernista com treze
obras publicadas, é reconhecido mundialmente por seus muitos prêmios e seu trabalho
em relação à propaganda da cultura no Chile e, de alguma forma, nos Estados Unidos,
onde é embaixador chileno. O seu trabalho de 1999 se destaca em relação a seus outros
livros por seu gênero biográfico e por ser um importante testemunho, não só sobre o
Regime Cubano, mas sobre os anos da ordem bipolar mundial, sendo o livro que teve
mais traduções pelo mundo. Ainda percebemos a característica principal que, ao lançar
breve atenção sobre as obras de Roberto Ampuero, podemos notar ser predominante em
todas as suas obras que é o estilo de sua escrita – o romance policial. Essa tendência é
típica da influência contextual do autor, pois ele viveu o auge dos romances policiais e
de espionagem à égide da Guerra Fria.
O livro Nossos anos verde-Oliva narra a história que viveu Roberto Ampuero
desde sua saída do Chile, após o Golpe Militar de Augusto Pinochet que derrubou a

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Unidade Popular de Salvador Allende. Em Leipzig, Alemanha oriental, Roberto
estudará na Karl Marx Universität e conhecerá Margarita Cienfuegos10, filha do
comandante cubano e embaixador em Moscou Ulisses Cienfuegos. Envolvido em um
romance a personagem principal recebe asilo político em Cuba onde se casa com
Margarita e, meses depois, nasce o filho do casal.
Ao passar dos anos, mesmo trabalhando em Cuba e estudando o nível superior,
Roberto irá perder a ilusão do regime socialista, estando em contato direto com a
camada dirigente do governo ele perceberá as rupturas ideológicas, se fatigará da
penúria econômica em que vive a Ilha e, assim, seu casamento irá ruir. Sem poder
manifestar seu descontentamento político e suas “quedas” pela literatura proibida pela
administração Roberto presenciará diversos episódios de repressão a cidadãos cubanos e
asilados políticos, bem como conhecerá o sofrimento dos gusanos11, a perseguição
política e os mecanismo sombrios para conter o “diversionismo ideológico”. Assim,
Roberto começa a ansiar pela saída de Cuba, ao que se colocam muitas dificuldades
devido à sua situação de estrangeiro com passaporte vencido e seu conflito com a
família Cienfuegos.
Ao desenrolar dos acontecimentos a decepção de Roberto aumenta, não apenas
em relação a Cuba, mas também à sua organização política – a Jota, que representa a
resistência socialista chilena que tinha seus polos em vários países socialistas. Ao
discordar dos trâmites partidários, principalmente em relação à recém-montada FAR
(Fuerzas Armadas Revolucionarias), pede saída do partido. O seu desespero e agonia de
estar preso à Ilha aumentam a cada dia e novos episódios reafirmam esses sentimentos.
Graças ao festival de comemoração da Revolução, diversos grupos e partidos, bem
como turistas socialistas, visitam Cuba e Roberto se reencontra com um antigo
compatriota – Alberto Arancibia – que era líder da UJD na Alemanha Oriental, uma
resistência chilena de tendência social-democrata. Assim, ele tenta com o auxílio de
Aranciabia uma saída por vias legais de Cuba – visto que intentava sair com uma balsa
pelo mar rumo à Miami. Durante o tempo em que espera uma carta de salvo-conduto
para poder sair do país – o que demora meses – o seu desespero aumenta e ele é levado
ao total desespero. Quando a embaixada peruana é invadida e essa decide dar asilo
político para cubanos a situação torna-se insustentável em Havana e Roberto presencia
10
Todos os nomes de personagens foram alterados e por isso são meras ficções. O autor decidiu trabalhar
dessa forma, pois várias pessoas retratadas na história ainda fazem parte do governo cubano e poderiam
ser comprometidas pelo relato.
11
Gusanos – expressão pejorativa usada em Cuba para designar aqueles que se opõe ao governo castrista.
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cenas de violência como vira anos atrás antes de sair do Chile. Ele sentira estar preso
para sempre na Ilha. Como vemos, ele consegue sair de Cuba pelo intermédio da UJD
de Arancibia, até que sairá para o mundo ocidental definitivamente.
As personagens principais desta história são Roberto Ampuero, Margarita
Cienfuegos e seu pai Ulisses Cienfuegos. Apesar deste último não aparecer com grande
evidência na breve exposição acima, no papel de comandante e homem próximo a Fidel
Castro ele foi o elemento propiciador dos primeiros questionamentos de Roberto por ser
um homem duro, cruel, calculista e por se envolver em fuzilamentos e prisões que
chocaram seu genro. Roberto, um jovem iludido, ingênuo e pacífico se torna cada vez
mais consternado com as atitudes de sua mulher ao longo do enredo – Margarita – que
abandona a posição crítica e “os olhos brilhantes”12 para se entregar ao serviço pela
revolução de modo acrítico e passional. A personagem principal é uma só, com o
aparecimento, ao longo da narrativa, de várias personagens secundárias e típicas que nos
ambientam ao lugar e momento de fala da história.
A narrativa de Ampuero mescla elementos de um tipo linear e retrospectivo,
criando uma expectativa pelo desfecho e acaba por ser um recurso muito bem utilizado,
pois transmite ao leitor a sensação vivida pelo autor, de espera, agonia; ao mesmo
tempo em que trabalha episódios mais ou menos independentes Roberto Ampuero nos
transmite a ideia base: a tormenta de viver recluso em um país de regime fechado,
situação econômica precária e sentimento de insegurança e medo sociais. Em seu
enredo, constatamos:

Com o passar dos dias, fui descobrindo com angústia que, embora me
esforçasse para escolher bem as palavras e dar descrições precisas, era
incapaz de transmitir de forma cabal a meus pais o que significava viver no
socialismo. Só aqueles que viveram nele e experimentaram na própria carne
as penúrias provocadas pela escassez cotidiana, a regulamentação extrema
de todas as esferas da vida e a mensagem messiânica de um governo sem
oposição entendem o que é o socialismo e a dolorosa marca que imprime na
pessoa para sempre13.

Ao longo de quase toda a narrativa temos a sensação de estática, como se o


tempo houvesse parado e um eterno ciclo de acontecimentos repetitivos o que é um
recurso do autor que nos demonstra como a Ilha estava parada no tempo e como viviam
sem novas perspectivas as pessoas ali. Apenas temos a sensação de avanço, de

12
AMPUERO, 2012.
13
AMPUERO, Op.cit., p.210.
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mudança, quando dos capítulos finais que Roberto espera pela saída para integrar-se à
UJD na Alemanha Oriental e a narrativa torna-se precisamente linear, progressiva, com
diversos acontecimentos extraordinários até que enfim alcança seu objetivo. Assim o
tempo nesta narrativa não é cronológico e sim psicológico, medido a partir dos
sentimentos do personagem principal.
O ambiente da história é, no início do livro, retratado pela sua beleza
paradisíaca, pelas pessoas felizes com o regime castrista e pelas reverberações políticas.
Ampuero chega a dizer: “Agora, nesta terra imensamente verde, de morros suaves, céu
azul e gente alegre, começa uma nova etapa de minha vida (...)”14. No entanto, ao
avançar da história temos uma mudança de perspectiva e o ambiente começa a ser
descrito a partir do descontentamento que se instaura no autor: o calor intenso e
inquietante, a atmosfera irrespirável, as filas de víveres, as construções decadentes, os
utensílios domésticos que não funcionam. E essa mudança é também consequência da
alteridade de meio social, pois se no início Roberto estava em contato com a
administração do regime, os setores diplomáticos e as lideranças políticas, ao fim ele irá
conviver com a massa, com os pobres, com as pessoas pelas quais o governo havia se
estabelecido, mas que eram privadas de direito de expressão, da liberdade e do desfruto
do desenvolvimento econômico – inexistente na Ilha. Como a narrativa tem a intenção
de transmitir as sensações e os sentimentos o autor recorre sempre ao uso de um tipo
específico de figura de linguagem, a metáfora.
Do ponto de vista técnico a forma de narrar – narrador empenhado – onde ele é a
personagem principal e não reconhece as “verdades alheias”, não é onisciente, não sabe
as verdadeiras intenções e os sentimentos das outras personagens. Essa escolha é típica
do estilo biográfico. O discurso utilizado pelo autor mescla o discurso direto e o
discurso indireto. Esse recurso traz maior dinâmica à história e é comum em narrativas
biográficas.
Com uma mensagem que veicula valores políticos, morais e sociais, ficando
claro seu apelo por liberdades, direitos humanos, representação política e auxílio mútuo,
o livro de Roberto Ampuero foi sucesso de crítica e vencedor de prêmios. Nuestros años
verde olivo foi bem recebido não só por seu vigor literário, mas por sua característica
política, sendo louvado por literários como Mario Vargas Llosa15 e Heberto Padilla16

14
AMPUERO, Op.cit., p.70.
15
Mario Vargas Llosa é um importante intelectual latino-americano. Muitas de suas obras refletiram sob
o espectro político, social e cultural dos países latino-americanos. Sua obra mais recente é o livro A
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que conheceram bem a repressão em torno das artes em geral praticadas pelo governo
cubano. Ampuero reflete sobre essa repressão, dizendo o seguinte
Uma das questões que surgem ao conhecer as reflexões políticas de autores
como Milan Kundera, Heberto Padilla ou Herta Müller, que viveram em
regimes socialistas reais, é como se pode depois manejar essa experiência
produtivamente em termos literários. (...) Suspeito que o melhor antídoto
para essa dor – causada por quem monopoliza sua pátria e emprega seus
símbolos, sua história e seus recursos para reprimi-lo e desprestigiá-lo – é
escrever sobre a própria experiência que a originou. Trata-se, ao que parece,
de converter a dor em memória, em literatura, em resistência17.

Esses aspectos trazem para o cerne da crítica o que anteriormente havíamos


colocado sobre a memória. Um importante elemento que se coloca ao analisar um
romance de tipo biográfico, como este, é questão da disputa de memória, situação
incontornável em todas as realidades nacionais, mas, sobretudo, naquelas que foram
assoladas por regimes de natureza autoritária e repressiva. É, precisamente, o conflito
que se impõe entre memória coletiva, memórias individuais, e, mais apuradamente,
memórias subterrâneas. O exemplo do livro de Ampuero é significativo para pensarmos
como se conforma, grosso modo, os espaços de disputa entre uma memória
oficial/coletiva e uma memória individual/subterrânea. Para Michael Pollak, a função
desse tipo de discurso memorial, importa que

(...)Esses exemplos tem em comum o fato de testemunharem a vivacidade


das lembranças individuais e de grupos durante dezenas de anos, e até
mesmo séculos. Opondo-se a mais legítima das memórias coletivas, a
memória nacional, essas lembranças são transmitidas no quadro familiar, em
associações, em redes de sociabilidade afetiva e/ou política (...)18.

Civilização do Espetáculo: Uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura, publicado no Brasil em
2013, pela editora Objetiva. O livro discute as metamorfoses que incidiram sobre a noção/conceito de
cultura, trazendo o advento da mídia e seus diversos desdobramentos para o centro do debate. Os regimes
autoritários de toda natureza (populistas, regimes militares, ditaduras personalistas, etc.), que eclodiram
por toda a América Latina no século XX, e existem ainda hoje no século XXI, são elencados como
principais espaços de metamorfoses da cultura, propiciando uma cultura midiática que os favoreceu.
16
Heberto Padilha aparece enquanto personagem do romance de Roberto Ampuero. O autor narra e dá
vida, em seu livro, às experiências do poeta Padilha. Nossos Anos Verde-Oliva conta o drama de Heberto
Padilha em seu exílio, durante quase uma década, dentro de Cuba, a proibição que lhe era imposta quanto
ao seu exercício de poeta e marginalização de suas obras, como foi o estopim com o livro de poemas
Fuera del Juego. Heberto Padilha – conta Ampuero – conseguiu sair da Ilha contando com a intervenção
do senador norte-americano Edward Kennedy junto a Fidel Castro. Nos EUA, Heberto Padilha lecionou
em diversos colégios e universidades. Morreu em 25 de setembro de 2000, no estado do Alabama.
17
AMPUERO, Op.cit., p.479.
18
POLLAK, Op.cit., p.8.
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E, ainda, citando os mecanismos psíquicos de Claude Olievenstein19, Pollak nos
faz pensar sobre as questões colocadas pelo próprio autor do romance em questão, sobre
a sua escolha pelo gênero literário:

A linguagem é apenas a vigia da angústia (...) Mas a linguagem se condena a


ser impotente porque organiza o distanciamento daquilo que não pode ser
posto a distância. É aí que intervém, com todo o poder, o discurso interior, o
compromisso do não-dito entre aquilo que o sujeito se confessa a si mesmo e
aquilo que ele pode transmitir ao exterior20.

Assim, o regime político cubano sob Raúl Castro relegou a obra a ilegalidade,
sendo proibida a circulação em Cuba apesar de ter posado para fotografia junto à ex-
presidente do Chile – Michelle Bachelet – na feira do Livro em Havana, 200921.
Roberto Ampuero afirma, em capítulo dedicado à construção da obra Nossos Anos
Verde-Oliva

Não consigo, porém, voltar à Ilha. A publicação deste romance


autobiográfico, escrito originalmente para minha mulher, meus filhos e meus
pais, irritou de tal modo o regime que desde então minha entrada em Cuba
está proibida. É uma represália dolorosa (...)Uma represália que me une à
diáspora de milhões de cubanos que perambularam pelo planeta privados de
sua pátria22.

Essa proibição se dá por razões óbvias: o relato contido no livro revela uma face
do regime cubano dos anos 1970 que expõe seu caráter autoritário e repressivo, como
significou para Ampuero e muitos outros indivíduos, constituinte de um Estado de
Exceção.

19
OLIEVENSTEIN, Claude. Les non-dits de l'émotion, Paris. Odile Jacob, 1988. Apud: POLLAK,
Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2. n. 3, 1989, p.3- 15.
20
POLLAK, Op.cit., p.8.
21
Na foto mencionada, Raul Castro (irmão de Fidel Castro), está com Nuestros Años Verde-Olivo em
mãos, junto à ex-presidente chilena Michele Bachelet (reeleita à presidência do Chile no ano de 2013), na
feira do Livro de Havana, em 2009. O livro está censurado em Cuba e Roberto Ampuero não pode entrar
na Ilha desde a publicação de seu romance. Apesar da situação o governo cubano tenta mostrar à
imprensa internacional que o livro circula livremente no território cubano. “(...)Os exemplares do livro se
esgotaram em questão de minutos no estande do Chile daquela feira, adquiridos, segundo a imprensa,
por leitores entusiastas e por discretos indivíduos de cabelo curto, óculos e guayabera, que agiam de
maneira previamente combinada.” (Apud. AMPUERO, Roberto. “Iconografia/Documentos”. In: Nossos
Anos Verde-Oliva. São Paulo: Benvirá, 2012)
22
AMPUERO, Op.cit., p.473.
65

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Cuba e Chile: diferentes/semelhantes apenas no plano conceitual?

Para começar aqui uma discussão que imediatamente se propôs devemos pensar,
ademais, sobre as categorias conceituais exploradas no trabalho de Denise Rollemberg e
Samantha Quadrat23. Nunca houve, entre os historiadores, um horizonte comum quanto
ao entendimento em relação a um regime – se era autoritário ou mesmo uma ditadura. A
Cuba castrista, por exemplo, é um bom exemplo desse problema. Uma ditadura alude
um sistema repressivo, coercitivo, sem nenhuma representação e perspectivas sobre ela;
remete, sobretudo, a algo imposto, manipulado e imoral. A partir das definições de
Newman24poderíamos ter, para o caso chileno, uma ditadura tipicamente simples, onde
o governo tem o controle da polícia, do exército, da burocracia e do judiciário, somando
se a características da ditadura cesarista, onde o apoio ao governo e o culto ao líder são
indispensáveis. Logo, em Cuba haveríamos de ter uma ditadura cesarista. Em
contrapartida, o trabalho de Stoppino25classificaria o governo chileno de ditadura
reacionária e, o cubano, ditadura revolucionária. No entanto, ao analisar as
experiências cubana e chilena – a primeira ainda mais que a segunda – percebemos que
as aspirações em torno da chegada ao poder por tais governos/governantes estiveram
todo tempo legitimada pela participação social. Portanto, o que se quer entender aqui é
como chegamos a ditas conjunturas históricas e como se conformou a fisionomia desses
regimes ao suceder dos anos; não se trata de estabelecer semelhanças e diferenças, entre
Cuba e Chile, no plano conceitual. Como bem podemos observar, nos amparando
mesmo no relato da obra de Ampuero, Fidel e Pinochet galgaram o poder em
conjunturas (guardadas as devidas proporções e momentos históricos) muito semelhante
do ponto de vista estrutural, marcado pela insatisfação/contestação dos governos
anteriores.
O trabalho de Daniel Aarão Reis26 é muito importante para trabalharmos a
questão do consenso em torno do regime cubano. Como o historiador aponta o processo
revolucionário esteve apoiada sobre os mais variados setores sociais. A proposta da

23
ROLEMBERG, Denise & QUADRAT, Samantha Viz. A construção social dos Regimes Autoritários.
Legitimidade, Consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
24
Idem.
25
Idem.
26
REIS, Daniel Aarão. A Revolução e o socialismo em Cuba: ditadura revolucionária e construção do
consenso. In: ROLEMBERG, Denise & QUADRAT, Samantha Viz. A construção social dos Regimes
Autoritários. Legitimidade, Consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010. pp.364.
66

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Revolução de 1959 se mostrou capaz de reunir os diversos interesses em uma mesma
pauta política, o que conferiu consentimento ao novo sistema. O uso da história, do
passado, do futuro, de heróis nacionais para criar um consenso e uma identidade em
torno da causa, como é o caso da figura de José Martí. O governo de Fidel Castro sobe
ao poder sob a prerrogativa de construir uma Cuba livre, independente, sem clivagens
sociais e sem o medo do domínio Americano. Em suma, a ditadura
revolucionária/cesarista sobe ao poder por meio de um “compromisso social”.
Nesse mesmo caminho nos aproximamos do Chile, a partir das perspectivas
lançadas pelo trabalho História del Siglo XX Chileno – Balance paradojal27. Pinochet
sob ao poder a partir de um Golpe de Estado (11/09/1973) que depõe a Unidade Popular
de Salvador Allende. Como aponta a obra Nossos anos verde-oliva, o Chile entra em
um processo de viragem política devido a própria conjuntura nacional, sua economia
fragilizada, o descontentamento social, a decepção em torno dos projetos da Unidade
Popular. Augusto Pinochet não sobe ao poder sozinho: uma maioria apoia seus atos a
partir do já chamado “compromisso social”. Nesse sentido, aproximamos Cuba e Chile,
ao menos quanto à instauração dos referidos governos. Mas ainda fica a pergunta: como
dois regimes de diferentes orientações políticas (esquerda e direita) podem ser
comparados dentro de um quadro comum? É justo isso que pretendemos destacar aqui.
As especificidades só demonstram o caráter e conjuntura nacionais de cada país, essas,
tão logo, só corroboram para entender o processo histórico de cada um em separado,
pois na verdade não influem na forma de governo vigente: o regime
ditatorial/autoritário.
Como observamos quando da leitura do romance biográfico, o sistema, o
aparelho de Estado e as configurações dos pós-consolidados governos são muito
parecidas, quando não idênticas. Ampuero sinaliza o controle da sociedade, das idas e
vindas, do cerceamento total da liberdade que se estabelece em ambos os governos. A
oposição é reprimida, perseguida, presa. A literatura é controlada e deve ser sempre a
favor do sistema – como o slogan de Fidel, “Dentro da Revolução, tudo; contra a
revolução, nada”. Ainda sobre esse aspecto, o trabalho Fidel Castro28é importante ao
abordar as palavras de Fidel aos intelectuais cubanos, onde o controle das ideologias
grassava as mais simples manifestações culturais. Esse dois governos se entronizaram
27
SUTIL, Sofía Correa; GARVAGNO, Consuelo Figueroa; LETELIER, Alfredo Jocelyn-Holt; CRUZ,
Claudio Rolle e URRUTIA, Manuel Vicuña. História del siglo XX Chileno – Balance Paradojal.
Santiago: Sudamerica, s/d.
28
SADER, Emir & FERNANDES, Florestan. Fidel Castro - Política. São Paulo: Ática, 1986.
67

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(Cuba, de forma muito mais intensa) na vida social; dissolveram o indivíduo nos
propósitos estabelecidos. Ambos assinalaram um viés de cunho democrático, mas logo
nos momentos imediatos e ao longo dos anos as liberdades democráticas passaram a ser
suplantadas face às necessidades de fortalecimento/permanência dos regimes.
As duas ditaduras sobem ao poder no contexto da Guerra Fria, expressam,
portanto, a aproximação às duas potências beligerantes do mundo de meados/fins do
século XX – Estados Unidos e URSS – e acabam fomentando a via autoritária que
mantém a sociedade sob rédeas curtas contra o opositor comum – seja o imperialismo
ou o comunismo. É importante também pensar o importante relato que consta na
narrativa de Nossos anos verde-Oliva: às vésperas de sua tão almejada saída da Ilha
socialista Ampuero se vê frente ao que anos antes havia presenciado no Chile. Quando
Pinochet sobe ao poder a resistência popular vai às ruas em protesto, tenta convocar a
população para se unir contra o novo governante. No entanto, essa militância encontra
violência absurda por parte dessa mesma população e uma cena de massacre é
protagonizada, e fica claro o apoio social ao governo de Pinochet. Já em Cuba, quando
da crise diplomática com a embaixada do Peru, onde vários cidadãos cubanos ao
saberem da possibilidade de asilo político se colocaram em uma intensa movimentação
em Havana para sair do país, a reação social aos traidores foi imensamente violenta e,
as cenas de morte presenciadas por Roberto Ampuero, no Chile, se repetiam na maior
das Antilhas. A passagem do livro, confirma

Permaneci na calçada, rodeado de milhares de pernas e pés, ouvindo as


batidas do tambor batá que ressoavam torturando meu coração e meu
cérebro, causando-me náuseas assustadoras, como as daquela maldita rua de
Santigado [do Chile], náuseas que subiam, queimando e dilacerando meu
peito29.

Isso mostra como os valores desses regimes estavam presentes na sociedade, e


que o estabelecimento dos mesmos se deu através de ideologias que beberam da própria
moral, dos valores e ideais comuns que repercutiam nas mentes locais. É esse caráter de
consenso que aponta tais regimes como construções sociais.
Em suma, muitos são os aspectos que devem ser abordados sobre ambos os
regimes. Contudo, um esforço de comparação entre as duas experiências – feito de
forma cabal – não cabe no presente trabalho. Entretanto, para o que aqui se projetou –

29
AMPUERO, Op.cit., p.459.
68

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aproximar o Chile de Augusto Pinochet e a Cuba de Fidel Castro a partir da literatura de
Roberto Ampuero – nos contentamos em apontar apenas as características mais
importantes que permitiram vislumbrar uma semelhança nas formas de governo. É
necessário ainda que se reflita sobre as condições atuais de tais países, pois o Chile
conta agora com vários grupos chamados neo-nazistas, Cuba permanece fechada para o
mundo (os seus cidadãos) e agora entra em um novo estágio em seu governo ditatorial –
de governo fidelista passa-se a falar em ditadura dos irmãos Castros, devido a assunção
de Raúl Castro (irmão de Fidel) ao poder cubano. Roberto Ampuero fala sobre suas
experiências com a seguinte perspectiva

Poderia dizer que foi a ameaça de ambas as ditaduras latino-americanas o


que terminou por converter minhas memórias em um romance
autobiográfico, ou que o texto inicial optou por mudar de gênero para
continuar contando sua verdade. Reitero que cheguei à Ilha de Fidel Castro
fugindo de Augusto Pinochet. A ilha era então a minha utopia. Pinochet, o
meu pesadelo. A experiência me ensinaria que ambos eram ditaduras, e que
não há ditaduras boas nem justificáveis. Todas são perversas e nocivas,
inimigas do ser humano e de sua liberdade30.

Precisamos pensar em que medida a memória, o consentimento e o consenso


ainda fazem pairar sobre esses países a sombra do autoritarismo, quando não na forma
de governo, nas ideologias de pequenos grupos organizados, caso do Chile. Essas
experiências vividas, sentidas, durante anos e anos por ambas as nações, são um
importante campo de estudos para investigar de que forma a identidade nacional desses
países foi marcada durante esses regimes, qual legado foi deixado para a prática cidadã
e política e, ainda, quais heranças se fazem sentir no plano cultural.

BIBLIOGRAFIA:

AMPUERO, Roberto. Nossos anos verde-oliva. São Paulo: Benvirá, 2012.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Ed.: Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul,
2006.

30
AMPUERO, Op.cit., p.477.
69

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FERREIRA, Antônio Celso. A fonte fecunda. In: PINSKY, Carla Bassanezi & LUCA,
Tânia Regina de. Os Historiadores e suas Fontes. São Paulo: Contexto, 2009.

REIS, Daniel Aarão. A Revolução e o socialismo em Cuba: ditadura revolucionária e


construção do consenso. In: ROLEMBERG, Denise & QUADRAT, Samantha
Viz. A construção social dos Regimes Autoritários. Legitimidade,
Consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010.

ROLLEMBERG, Denise & QUADRAT, Samantha Viz. A construção social dos


regimes autoritários. Legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

SADER, Emir & FERNANDES, Florestan. Fidel Castro - Política. São Paulo: Ática,
1986.

SUTIL, Sofía Correa; GARVAGNO, Consuelo Figueroa; LETELIER, Alfredo Jocelyn-


Holt; CRUZ, Claudio Rolle e URRUTIA, Manuel Vicuña. História del siglo XX
Chileno – Balance Paradojal. Santiago: Sudamerica, s/d.

Artigo recebido em: 01 de outubro de 2013


Aprovado em: 12 de novembro de 2013

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O RETORNO DAS BIOGRAFIAS ATRAVÉSDE UM PRISMA
PROBLEMATIZADO OU ULTRAPASSANDO OS LIMITES DA SOLIDÃO
Leandro Couto Carreira Ricon*

RESUMO: Escrita histórica comum desde a Antiguidade, as biografias alcançaram


destaque durante a transição do século XVIII para o XIX principalmente pela ampla
individualização que as sociedades europeias passavam neste momento. Após certo
tempo, este gênero acabou saindo da cena da produção histórica entrando em certo
interregno historiográfico apenas retornando a partir do final da década de 1960. Assim,
o trabalho aqui apresentado objetiva fazer um apanhado da situação do gênero
biográfico demonstrando a sua presença ao longo do tempo; objetiva, também,
demonstrar os problemas teórico-metodológicos que esta forma encontra em nosso
tempo presente. Principalmente a necessidade de problematização social dos indivíduos
biografados.

PALAVRAS-CHAVE: Abordagens Historiográficas Contemporâneas; Biografias;


Teoria e Metodologia da Produção do Conhecimento Histórico.

ABSTRACT: Model of common historical writing since antiquity, biographies


achieved a prominent position during the transition from the eighteenth to the
nineteenth motivated primarily by the personalization that European societies passed
this time. However, after this time, this genre ended up leaving the scene of historic
production entering certain interregnum historiographical just returning in the 1960s.
Thus, this paper aims to do an outline of the situation of the biographical genre
demonstrating its presence over time, also aims at demonstrating the theoretical and
methodological problems that this form of historical writing is in our present time.

KEYWORDS: Contemporary Historiography; Biographies; Theory and Methodology


of History.

***

*
Doutorando e Mestre em História pelo Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGHC-IH-UFRJ), na linha de Poder e Discurso. Especialista em História Social pela Universidade
Norte do Paraná (UNOPAR). Graduado em História pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP).
Interessado em pesquisas acerca de Teoria e Filosofia da História, Historiografia e da relação música-
sociedade a partir do século XVIII. Este trabalho conta com o apoio da CAPES.
71

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Em seu estudo acerca do gênero biográfico, o historiador francês François Dosse
(2009: 19) afirma com certo humor irônico: “não contem para minha mãe que sou
biógrafo: ela pensa que sou historiador”. Esta afirmação, baseada na própria prática
deste historiador em escrever biografias, como as de Michel de Certeau e de Paul
Ricoeur1, encerra algumas reflexões acerca dos estudos biográficos ao longo do século
XX. Pensemos em duas, que estão estritamente interligadas: em primeiro lugar,
demonstra que em alguns núcleos acadêmicos ou mesmo perante certa parte do público
em geral ainda impera uma negação das pesquisas biográficas e, em segundo lugar – e
como consequência direta da primeira –, a biografia aparece como gênero relegado às
curiosidades, sem valor documental, principalmente de caráter historiográfico, uma
pequena História. Devemos, contudo, compreender esse gênero de escrita que é um dos
mais expressivos – e debatidos – de nosso tempo presente.
As narrativas de histórias de vidas (biografias) surgiram na Grécia antiga ao
mesmo tempo em que surge a História como ramo de conhecimento. Neste momento do
passado humano estas escritas servem a uma ordem propedêutica, de ensinamentos
mínimos ao cidadão do contexto social e político. Daniel Madélenat (1984), ao dividir a
escrita biográfica em três momentos2, afirma que a biografia entre a Antiguidade e o
século XVIII mesmo sofrendo variegadas modificações mantém a lógica de
instrumentalidade e finalidade e, acerca da escrita biográfica da Antiguidade ainda
demonstra que essa modelagem de estudo surge após o declínio da polis, mesmo
momento em que a vida coletiva vai se esvaindo, surgindo, assim, por exemplo, as
biografias elogiosas – encomion (ἐγκώμιον) – principalmente políticas e unidas à
memória.
Nesta Antiguidade encontramos, por exemplo, Cornélio Nepote que, com seu De
viris illustribus3, acabaria influenciando outros autores, como é o caso de Suetônio e seu
De vita Caesarum4e de Plutarco, um dos principais autores do gênero e o primeiro a

1
Cf.: Paul Ricoeur: les sens d’une vie (1913-2005). Paris : La Decouverte, 2008. Michel de Certeau: el
caminante herido. Buenos Aires: Universidad Iberoamericana, 2000.
2
Madélenat, buscando uma conciliação teórica entre a Biografia e a História, divide as biografias em três
momentos: em primeiro lugar, se prolongando desde a Antiguidade até o século XVIII, encontramos as
biografias clássicas, que possuem uma instrumentalidade e finalidade determinadas; em segundo lugar,
encontra-se o paradigma romântico, preferindo uma leitura das personagens mais fiel à ‘verdade’, se
estendendo entre a transição do século XVIII-XIX e o momento em torno da Primeira Guerra Mundial;
por último, localizamos as biografias modernas, que são aquelas nas quais se encontra o direito à
imaginação, mesclando características de objetividade científica e narratividade ficcional, sofrendo
interferências, portanto, da sociologia e da psicanálise.
3
As vidas ilustres
4
A vida dos doze Césares
72

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escrever biografias a partir de uma abordagem comparativa, ou algo próximo a tal.
Nestes estudos, comparando personagens gregas e personagens romanas, ocorre um
confronto simbólico entre as duas principais culturas de seu momento, a Grega e a
Romana. Este autor, nascido em torno do ano de 46 em Queronéia e sua principal obra,
Vidas Paralelas, acabou ficando conhecido pela pluralidade de personagens analisados,
incluindo, nestes, homens públicos reconhecidos, na época, por sua maldade, uma
inovação para o modelo5. Associando o público com o privado, sua linguagem possui
um pleno sentido dramático que acaba por conduzir sua narratividade. Tal característica
fazia-se necessária para os anseios biográficos do contexto, bem como a junção da ética
com a verdade e com a política.
Esta modalidade de escrita, no entanto, encontrou certa resistência e não era tida
como algo próximo à História desde seu surgimento. Tucídides em sua obra A Guerra
do Peloponeso já percebe problemas nesta modalidade, assim como Tito Lívio. Políbio,
em suas Histórias, já demonstra, por sua vez, a distinção entre História e Biografia e o
próprio Plutarco, que além de marcar que escreve suas obras por puro prazer, marca que
seus personagens devem ser compreendidos enquanto humanos. A partir disto, o próprio
autor demonstra que percebe diferenças entre a biografia e a História ao longo de sua
obra.
A época seguinte, a Idade Média manterá a principal característica das biografias
da Antiguidade: o cunho pedagógico. As biografias, nesta época, ainda servem para
demonstrar à população como viver, mas com uma diferença: se na Antiguidade grega e
romana a vida estava atrelada à prática política, na Idade Média passa a estar presa à
moralidade religiosa cristã que se reafirmava cada vez mais em território europeu.
Durante o medievo reina, então, as hagiografias já que a figura da santidade e do
próprio santo, representativa do Bem numa visão maniqueísta, deve ser lembrada por ter
vencido alguma adversidade. Este também é o momento das crônicas e já no século
XIV, o escritor italiano Giovanni Boccaccio escreveu uma biografia de Dante Alighieri,
Trattatello in laude di Dante6. Dante, morto há pouco, teve seu texto biográfico
baseado, em grande parte, em documentos, uma característica inovadora da época, já
que a Antiguidade tendia à analisar os relatos orais e mitológicos com mais influências
de veracidade.

5
Plutarco chega a marcar determinadas curiosidades dos indivíduos já que, segundo ele, estas também
vão construindo os atores, seu pensamento e seu espaço de atuação.
6
Tratado em louvor de Dante
73

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Ocorre, então, com a ascensão do Renascimento italiano uma modificação no
padrão da escrita das histórias de vidas: surgem as primeiras biografias anedóticas,
satíricas sem, contudo, perderem determinadas características educacionais, assim como
as modelagens anteriores (BURKE, 1997). No renascimento, marcado, entre outros,
pela impressão em série de textos, proporcionada pela imprensa de Gutenberg e a
‘redescoberta’ da Antiguidade, o indivíduo começa a ter e perceber sua importância
fazendo com que os textos de memória ganhem relevância. Desta forma, as escritas
acerca da vida de determinados indivíduos começam a se colocar como fonte para a
História. Já no século XVI, Giorgiu Vasari escreveu seu texto Delle Vitae de’ più
eccelelenti pittoti, scultori ed architettori7, demonstrando que as mais plurais
personagens agora eram biografadas e mais, nestes textos, Vasari marca uma retomada
da preocupação com as vidas particulares de seus atores. Por último, podemos marcar
que, com o processo de individualização ocorrido na Europa durante o Renascimento,
uma das práticas que se transformaram em comum foi a produção de autobiografias, ou
seja, os indivíduos, sabendo de sua relevância, começam a produzir sobre si. Esta
característica de produção autobiográfica acabaria se transformando em uma tônica para
os estudos históricos das vidas privadas, principalmente no século XIX e final do XX.
Após estas, o gênero biográfico não sofre profundas modificações até sua
próxima guinada ocorrida apenas no processo de instauração de uma mentalidade
iluminista nos produtores destes textos. Quanto a este momento, podemos lembrar da
tentativa de reescrita da história de determinado personagem anulando, assim, seus
defeitos, como fez o teólogo e bispo francês Jacques Bossuet, um dos primeiros a
defender a teoria do absolutismo político, com suas Orações fúnebres. É um pouco após
este contexto sociocultural, no ano de 1721, que ocorre a dicionarização da palavra
‘biografia’, designando, à época, “um gênero que tinha por objetivo a vida dos
indivíduos” (DEL PRIORE, p.8). Neste século XVIII o herói político e ético antigo ou o
mártir e santo medieval são substituídos pela figura dos grandes homens – aqueles que
prestaram ou prestariam algum serviço para o seu grupo. Esta figura de grande homem
reinará na historiografia até o gênero biográfico sofrer um interdito na passagem do
século XIX para o XX.
O século XVIII, porém, ainda veria uma grande inovação em nível de
pensamento e de interpretação das existências: o Iluminismo. Este movimento em busca

7
Sobre a vida dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos.
74

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de uma racionalização do mundo modificou a estrutura das escritas biográficas
existentes até então e se até o século XVIII as biografias da Antiguidade demonstram
modelos de vida a serem seguidos, a partir do Iluminismo, elas se transformam num
modelo narrativo a ser seguido (BARROS, 2010). Neste momento, iluministas como
Voltaire e David Hume escrevem seus textos biográficos ou com aproximações
biográficas8. Contudo não ocorre uma plena unidade nestas escritas: enquanto Hume,
acreditando que a biografia cria uma possibilidade de auxílio para a compreensão total
da História, escrevendo sua obra acerca de Carlos I da Inglaterra com uma
caracterização heroica, Voltaire analisa Luís XIV e Carlos XII da Suécia de forma
díspar (LORIGA, 1998).
Ainda ocorriam, porém, divergências: enquanto Jean Jacques Rousseau
acreditou na possibilidade e relevância do gênero escrevendo, por fim, sua autobiografia
(Confissões); Diderot, por sua vez, afirmava que uma biografia nunca captará a essência
de um indivíduo, ou seja, nunca será afirmada numa forma estritamente científica. O
que, contudo, não necessariamente exclui a possibilidade de se biografar determinado
indivíduo – ambos, Rousseau e Diderot, acreditam que o diálogo com o método é o
melhor caminho para a pesquisa Histórica e para a execução das narrativas de vida
(LEVI, 2008). Esta pretensão de rigor metodológico, começada tempos antes, já no
início da Idade Moderna, faz com que, em 1791, James Boswell publique a sua Life of
Samuel Johnson LL.D.9, texto este que possuía plenas pretensões de contar apenas a
verdade evitando as adulações, tão comuns nesta época – para isso, por exemplo, o
autor recorreu a entrevistas. Logo, ao contar a vida de Samuel Johnson, também autor
de biografias, Boswell passou a ser um dos primeiros a se preocupar com sua
personagem integralmente, buscando a exemplificação de qualidades e defeitos. Este
momento, a transição entre o XVIII e o XIX, marcado pelo aprofundamento das
relações individuais iniciadas com o Renascimento, seguido pela ascensão da burguesia
é o momento no qual ocorre o surgimento do biógrafo profissional, aquele indivíduo
que se dedica à análise da vida de outro.
É chegado então o século XIX, aquele que ficou conhecido como sendo ‘o
século da História’, o momento no qual a História ganhou ampla relevância. Este
contexto que presenciou profundas mudanças em todos os segmentos da vida humana
acabou influenciando toda a historiografia bem como a teoria (e, porque não, a filosofia)

8
São representativos, neste sentido, o História de Carlos II de Voltaire e a autobiografia de Hume.
9
Vida do Dr. Samuel Johnson.
75

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e a metodologia da História. Neste século, no que tange à escrita biográfica, ocorrem
duas posições díspares: a princípio, ocorre certa superestimação deste gênero, logo a
produção em determinados núcleos amplia-se pelos mais diferentes motivos; em
segundo lugar ocorre, em núcleos específicos, uma subestimação da escrita biográfica,
processo este que acaba afastando este tipo de produção. Estas contradições de núcleos
historiográficos acabam sendo, na verdade, as próprias contradições que a sociedade
européia do ‘século romântico’ percebe. O prisma analítico da História se configurou
em uma pluralidade de possibilidades que, em certa medida, foram responsáveis por
determinada relativização e hiperespecialização desta disciplina.
Para o primeiro grupo de historiadores, a produção biográfica do século XIX faz
a união entre a relevância do indivíduo e a importância das histórias nacionais. É o
momento do enfoque heróico do indivíduo biografado, tão popularizado por Thomas
Carlyle10, mesmo que não seja o único modelo a dominar dentre aqueles autores que
permanecem fiéis à escritas de vidas11.
Neste sentido, alguns autores acabaram se tornando famosos ao longo de suas
vidas por sua quantidade e qualidade de produção, entre eles destacam-se: o historiador
e filósofo da história e da cultura Jacob Burckhardt e seu método patológico, baseado no
sofrimento dos homens demonstrando, assim, que a ideia de progresso histórico é
equivocada (BURCKHARDT, 1971)12; o crítico e historiador francês Hippolyte Taine,
que procurou uma psicologia que afastasse as contradições entre o particular e o geral –
além de ambos, tanto Burckhardt quanto Taine serem reconhecidos por buscarem uma
dimensão antianedótica na escrita biográfica (LORIGA, 1998) –; e o filósofo e
historiador francês Jules Michelet que, escrevendo textos acerca de Dante e de
Napoleão Bonaparte buscou fazer com que a História (biografada) servisse à construção
de determinada ideia de nação.

10
A consolidação do modelo biográfico heroico deve-se, em certa medida, às formulações individualistas
pelas quais o século XIX passou. Ocorre, destarte, o privilégio do ‘eu’ (indivíduo) sobre o ‘nós’ (grupo).
Esse fenômeno se iniciou no contexto da Revolução Francesa com a consolidação da burguesia na
Europa. O problema de se privilegiar apenas os indivíduos é esquecer-se que ele apenas pode ser
compreendido numa configuração social. Ainda são características deste processo, no caso da arte o
Romantismo e, no caso da historiografia, o Historicismo (BARROS, 2010).
11
Devemos levar em conta que, neste mesmo momento, existem, também, a prática biográfica não-
heróica, que acaba focando nos sentimentos humanos, seara antes mais resguardada mesmo que já
demonstradas em outros momentos históricos. Foca-se a biografia, então, no personagem de tipo médio,
no geral, o mesmo tipo do biógrafo, como é o caso da biografia que o pianista Franz Liszt escreveu para
seu amigo Frederic Chopin após a morte deste. (MADÉLENAT, Op. Cit.)
12
Jacob Burckhardt buscou, também, aspectos emocionais resgatando aquilo que é durável através de seu
indivíduo patológico.
76

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Ainda no século XIX, encontramos as biografias vitorianas, caso extremamente
singular na produção deste gênero. Neste contexto social, político e cultural as biografia
são de extrema importância. Basta lembrarmos, por exemplo, do Dictionary of National
Biography13 que, coordenado pelo historiador e biógrafo Leslie Stephen 14, foi lançado
em 63 volumes, contando com mais de 600 colaboradores em um extenso agrupamento
de pequenos artigos biográficos. Esse é o momento em que a fundamentação da história
nacional ocorre através das vidas pessoais incluindo nestas o modelo heroico proposto
por Thomas Carlyle. Essas biografias, possuindo claras características de exaltação da
vida do biografado e sendo muitas vezes encomendadas por herdeiros, eram importantes
para a constituição da própria percepção por parte da burguesia enquanto classe ligada
diretamente à manutenção da política econômica do período vitoriano (TOSH, 2010.
GAY, 1999).
Leopold von Ranke, um dos autores mais relevantes do cenário da produção
historiográfica do século XIX, percebia, na biografia, um complemento ao trabalho do
historiador, chegando a escrever, na década da Unificação Alemã os textos biográficos
sobre Albrecht von Wallenstein, militar e político boêmio, e do barão Karl August von
Hardenberg, estadista prussiano. Todavia este mesmo autor acabou encontrando
dificuldades em compensar a neutralidade objetiva que ele mesmo outrora propunha,
uma vez que o biografado, pelo simples fato de ser humano, desperta as mais variadas
sensações na narrativa do biógrafo (ALVES DE ALMEIDA, 2008).
Vale lembrarmos, também, que Wilhelm Dilthey também lança mão de estudos
biográficos percebendo, nestes, validade heurística, como é o caso, por exemplo, de
seus estudos acerca do filósofo Gottfried Leibniz, do escritores Friedrich Schiller e
Wolfgang von Goethe, nos quais procura explicitar suas concepções psicológicas e
epistemológicas. A partir da leitura das obras biográficas de Dilthey, notamos que para
este pensador, o estudo biográfico existe já que a relação entre a parte (indivíduo) e o
todo (sociedade) forma o que é chamado de “teatro da História” (AMARAL, 1987).
Para o segundo grupo de historiadores do século XIX as biografias eram
consideradas naturalmente a-históricas. Assim sendo, reduzindo o lugar dos indivíduos,
este acabou sendo “esmagado pela lei” (LORIGA, 1998, p.230). Ou seja, a busca por
leis gerais que explicariam amplamente a dinâmica social dificultam e, em alguns
núcleos, inviabilizam a prática biográfica nos centros historiográficos. A partir daí, a

13
Dicionário de Biografia Nacional.
14
Pai da escritora e, também, biógrafa inglesa Virginia Woolf.
77

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pequena gama de autores que ainda praticavam este gênero, passam a se preocupar com
dois temas: inicialmente o indivíduo biografado passa a ser compreendido como um ser
social, influência direta da gênese da sociologia e, em segundo lugar, passa a ser
necessário levar em conta o lado psíquico do indivíduo e da cultura social, clara
influência da formação dos estudos acerca da psicologia e da psicanálise que que
começam a ganhar força vertiginosamente durante a transição do século XIX para o
século XX.
Dessa forma, ocorre um afastamento do gênero biográfico da possibilidade
epistemológica da História, possibilidade esta tão procurada no século XIX, se
aproximando, portanto, de uma narratividade não-problematizadora. É aí que as
biografias passam a ser produzidas por literatos, como a Maria Antonieta e o Erasmo do
austríaco Stefan Zweig e a sequência de narrativas de vidas de compositores da música
dita erudita realizada pelo suíço Guy de Portalès. Logo, podemos perceber que, apesar
de mudar de foco, o interesse pelas biografias ainda persistia dentre leitores e autores.
Após este historiograficamente conturbado ‘século da História’ a biografia
começa a ser questionada nos meios acadêmicos como gênero menor. Somou-se a esse
fato a larga produção que entregava importância exacerbada às curiosidades das vidas
ilustres. É o contexto de Andrés Maurois e Emil Ludwig que acabam criando
personagens, por isso, amputados (LORIGA, 1998), afastados de suas
contextualizações. Todavia, o costume historiográfico contemporâneo de se afastar a
prática biográfica deste período deve ser relativizada. Já Bloch demonstra a importância
do homem ao afirmar que a “História é a ciência dos homens no tempo” (BLOCH,
2001). Assim, percebemos que, apesar dos questionamentos afirmados neste momento,
o gênero continuou a ser produzido, atingindo as possibilidades de feitura em outros
núcleos intelectuais, como o jornalismo e a sociologia que cada vez mais se
reafirmariam.
É chegada a vez, então, do escasseamento biográfico dentro da produção
historiográfica. Alguns pontos marcam este período ocorrido aproximadamente entre a
década de 1920 e a década de 1960, momento da ampliação de outras formas de
produção historiográfica, como a História Econômica e o estruturalismo. Durante este
momento, mesmo assim, certos estudos biográficos dentro dos núcleos historiográficos
continuaram sendo feitos, dos quais vale destacarmos a tentativa de renovação do
gênero, buscando a relação entre o indivíduo e a sociedade, proposta, por exemplo, pelo

78

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historiador francês Lucien Febvre com seus Un destin, Martin Luthere e Le problème de
l'incroyance au XVIIe siècle, la religion de Rabelais15. Mesmo com certas críticas até
mesmo Fernand Braudel, conhecido por seus estudos de ‘História de longa duração’, ou
seja, uma história mais focada nas permanências, se enveredou por este ramo,
escrevendo textos sobre Carlos V e Felipe II. Contudo, mesmo com estas tímidas
defesas de significativos historiadores, o gênero biográfico acabou em segundo plano
sufocado, principalmente, por outras abordagens epistemológicas, como é o caso das
análises marxistas focadas na análise econômica e, quando usada por historiadores,
passam apenas a servir para ilustrar determinado fato16.
Após os historiadores abandonarem este gênero ele começa a ser utilizado
principalmente por jornalistas e literatos de forma não-problematizada. A biografia
como modalidade histórica tinha se transformado na biografia romanceada, aquela que
acabou por se preocupar apenas com a narratividade esquecendo, assim, as
possibilidades de problematização. A partir daí, a plena publicação de textos acerca de
vidas ilustres ganharia força17 e acaba alcançando as salas de cinema durante o século
XX atingindo, assim, uma maior parte da população que já começava a ficar interessada
em consumir a vida de outros indivíduos.
Mesclando seus períodos perenes e de intermitências as escritas biográficas são
retomadas na escrita da História entre os anos de 1960 e 1980 fazendo, hoje, sucesso no
mundo inteiro. Um dos motivos desta retomada neste momento é a relevância que os
estudos acerca da relação indivíduo e sociedade ganham. Outro motivo, como dito
anteriormente, é a necessidade de se consumir as vidas alheias, tanto as fictícias, como
no caso dos filmes e das novelas, quanto aquelas que são criadas como que em
laboratório, como é o caso dos reality shows sem esquecermos, também, das vidas
ilustres, como no caso da biografia (SENNET, 1998). No mais, a volta dos indivíduos
para o palco da História teve o próprio apoio de determinados historiadores preocupados
com certas abordagens sociais. Todavia, os historiadores de nosso tempo presente ainda
ficam preocupados com o afastamento que os problemas – a ideia de história-problema

15
Respectivamente: (1) Martinho Lutero, um destino; e (2) O problema da incredulidade no século XVI,
a religião de Rabelais. Para mais debates feitos por Febvre, cf: Combats pour l’histoire. Paris: Armand
Collin, 1953.
16
Vale marcarmos, porém, que, mesmo sem a biografia estar inserida nos estudos históricos, o estudo de
cartas e autobiografias ainda era fonte para uma escrita da História.
17
Vale notar que as biografias ganham tanto interesse popular ao longo do século XX que até mesmo
Winston Churchill (1941) publicou ensaios biográficos – incluindo personagens como o próprio Adolf
Hitler, seu futuro inimigo durante a Segunda Guerra Mundial. Este também é o contexto de autores como
Emil Ludwig e André Maurois.
79

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– tiveram no modelo biográfico, ficando apenas com a narratividade cronológica (LE
GOFF, 1989). Destarte, autores plurais passam a escrever sobre determinados
personagens nas formas narrativas mais variantes, como é o caso de Christopher Hill em
sua O eleito de Deus: Oliver Cromnwell e a Revolução Inglesa e Jean-Paul Sartre que,
publicando seu L’idiot de la familie: Gustave Flaubert18, acabou fundamentando a
possibilidade de uma escrita biográfica existencialista e não-causalista.
Então, neste contexto de crise da cientificidade historiográfica e sua tendência
globalizante, representada no surgimento da nova historiografia (STONE, 1979),
singular é o caso do medievalista francês Jacques Le Goff, da chamada Escola dos
Annales. Este autor organizou, em conjunto com Pierre Norra, uma série de textos
acerca das novas possibilidades historiográficas correntes nas décadas de 1970 e 1980.
Todavia, em momento algum surge a retomada do gênero biográfico como campo
epistemológico na prática da História (LE GOFF; NORA, 1988). Singular também é a
postura dos micro-historiadores, principalmente, os italianos.
Acerca da História política de pequena escala, podemos perceber a relevância do
estudo das biografias segundo estas observações de Philippe Levillain:
sem dúvida, pode-se falar da interação entre o movimento das forças
profundas e os personagens históricos que sabem exprimir, em
termos de conduta, curta ou longa, as aspirações de um povo, de uma
nação, e se impõem como ‘protagonistas' (2003, p.160).

Dentro desses estudos de micro-história que são utilizados como, seguindo


Jacques Revel, Jogos de Escalas, podemos perceber a dinâmica social, cultural, política
e econômica de determinado quadro e certo território. No âmbito dos micro-
historiadores com textos biográficos ou com esta aproximação relevantes para a
historiografia contemporânea encontramos Carlo Ginzburg com seu O queijo e os
vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição, no qual
analisa a trajetória de um herege, Menocchio, do século XVI buscando compreender a
cultura popular do momento; Natalie Zemon Davis, com seu O retorno de Martin
Guerre, em que é contada a vida de Martin Guerre, um camponês usurpado de sua vida;
Judith C. Brown, com seu Atos Impuros: a vida de uma freira lésbica na Itália da
renascença, no qual analisa a percepção da sociedade renascentista perante a
sexualidade lésbica da abadessa Benedetta Carlini de Vellano das Teatinas de Pescia
durante o século XVI; e Giovanni Levi com o seu A herança imaterial: trajetória de um

18
O idiota da família: Gustave Flaubert.
80

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exorcista no Piemonte do século XVII, livro no qual o autor, a partir da cruzada
exorcista do padre Giovan Batista Chiesa, analisa a hierarquia política da região.
O grupo dos Annales, representado aqui por Jacques Le Goff, percebe que a
biografia é um instrumento à História, principalmente aquela de modelo Cultural,
porém, em nossa visão, essa utilidade ultrapassa os estudos culturalistas. Neste sentido,
Le Goff escreve, por exemplo, duas obras biográficas. Na biografia de São Francisco de
Assis, o medievalista problematiza a urbanização e o enriquecimento das cidades-
Estado italianas. Já em São Luís, pensou sobre a existência e a relação entre a
existência-individual e a existência-coletiva. Neste autor e em outros historiadores dos
Annales deste momento, a duração de uma vida passa a ser significativa para a história,
diferentemente do que foi pregado pela geração anterior de Fernand Braudel e sua longa
duração19. Desta forma, podemos perceber as diferenças dessas obras de micro-história
se comparadas àquelas de História Cultural ou das Mentalidades: essa abordagem se
preocupa com os conflitos sociais, negando, porém, as características totalizantes. E,
enquanto os historiadores filiados aos Analles, como é o caso de Le Goff, decidiram
pela necessidade de um novo modelo metodológico para a narrativa biográfica. A partir
da década de 1980, os micro-historiadores procuraram por um quadro teórico-
metodológico que os permitisse destacar o valor heurístico das escalas surgindo, assim,
os protagonistas anônimos da história20.
O já citado François Dosse (2009), com uma erudição ímpar apresenta um
panorama geral da produção biográfica ao longo da História e demonstra que os
próprios historiadores vinculados aos Annales afastaram as possibilidades surgidas com
a narrativa das trajetórias de vida para utilizar o indivíduo apenas dentro dos estudos da
sociedade. Para tal empreendimento Dosse, assim como Madélenat divide as biografias
em três tipos: de início encontramos as biografias heroicas: aquelas que tinham a função
de educar através dos exemplos de vidas; em segundo lugar encontramos as biografias
modais, que partem de concepções generalizantes buscando nos indivíduos traços que
expliquem a dinâmica da sociedade na qual este está inserido; por último encontramos

19
Lembremos, no entanto, que o próprio Braudel teve estudos acerca da prática biográfica.
20
Como crítica consolidada pela historiografia contemporânea a essa micro-história italiana lembramos
que pode ocorrer um interpretativismo exacerbado e pode-se, também, cair na supervalorização das
exceções, na análise de quesitos insignificantes e na busca pelos indivíduos comuns o que inviabiliza ou,
ao menos, dificulta a perspectiva de estudos mais amplos e estruturais ou mesmo comparativos. Cf.
PALLARES-BURKE, 2000.
81

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as biografias hermenêuticas, aquelas que buscaram romper com o modelo estrutural da
historiografia francesa.
A renovação que as biografias tiveram nos últimos anos deve-se, portanto, à
inversão do procedimento historiográfico. Logo, o interdito do século XX, ocorrente a
nível estritamente historiográfico, não atingindo também todos os territórios21, já que as
biografias continuam existindo e mantendo seu sucesso de venda neste momento, é
perceptível como uma crítica às modalidades de produção históricas do século anterior.
Estes modelos mais antigos adaptavam a sociedade às possibilidades do indivíduo
biografado não demonstrando, nesta maneira, as contradições e subordinações mútuas
entre os sujeitos e os meios nos quais estão inseridos. O mundo moderno, no entanto,
ainda subordina a biografia à História ou ainda as separa completamente esquecendo-se
dos relacionamentos entre este gênero e esta disciplina. Há, portanto, uma percepção
lógica: é imprecisa a fronteira entre biografia e História enquanto possibilidade
epistemológica (LORIGA, 1998).
Ponto importante é marcar, mais uma vez, que as biografias são retomadas
especialmente nos núcleos historiográficos e não nos ambientes literários gerais já que
nestes, sempre estiveram presentes sendo apenas renovadas no que tange a sua escrita –
o que acaba por transformá-las em um gênero dentro da História (CANDAR, 2000).
Desta forma, mesmo no momento do interdito as biografias continuam existindo,
todavia, eram estritamente literárias. No nosso tempo presente percebemos que ocorreu
uma epidemia biográfica influenciada diretamente por certa guinada subjetiva no
interior das ciências humanas (GUIMARÃES, 2008. SCHMIDT, 1997). Logo,
conforme disse Daniel Madélenat (1984, p.32) “a história da biografia é a história de
seus recomeços seguidos de sua adaptação a novas percepções do homem”.
Hoje, o principal polo de debate acerca desta modalidade de escrita está nas
características metodológicas das abordagens biográficas. Em primeiro lugar, devemos
perceber que não existe um método definitivo para a biografia. Dessa forma, o método
deve ser sempre adaptável à necessidade da pesquisa (ORIEUX, s/d). Assim sendo,
ainda hoje as escritas biográficas acabam misturando métodos criticados, inovadores
e/ou aceitos ocorrendo, portando, uma incerteza metodológica. Incerteza essa que faz
com que variados pensadores ainda critiquem esta forma de pesquisa. O resultado do
estudo, ou seja, o texto biográfico, sempre possuirá problemas uma vez que o critério de

21
Podemos lembrar que em determinados países da América Latina, como o México e a Argentina, a
produção biográfica continuou sendo uma das principais características da historiografia.
82

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seleção é o pesquisador o que faz com que os fatos selecionados como relevantes sejam
assim escolhidos a partir do tempo presente do próprio historiador (LEVILLAIN, 2003)
e, já que o filtro para as fontes e para os fatos apresentados é sempre o historiador há,
logicamente, uma dificuldade de seleção para as narrativas (TUCHMAN, 1995;
BORGES, 2010).
Pontos adicionais de problematização das metodologias apresentadas nas obras
biográficas contemporâneas são, entre outros, a localização da identidade, a
complexidade da existência humana no tempo, a questão do inconsciente e a não-
linearidade da vida. Esta última circunstância acabou se transformando em uma das
principais questões para os opositores do gênero biográfico já que devemos lembrar que
as vidas humanas são vividas em curvas (ROJAS, 2000). Acerca desta crítica
metodológica e de sua respectiva construção narrativa, se fundamentou toda a análise
proposta por pensadores como Pierre Bourdieu, Giovanni Levi e Sabina Loriga.
Para Pierre Bourdieu (2008) o principal problema da escrita biográfica é a
condução – encaminhamento – a um final já concebido. Desta forma, continuará
afirmando que
Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é,
como o relato coerente de uma sequência de acontecimentos com
significado e direção, talvez seja conformar-se com ilusão retórica,
uma representação comum da existência que toda uma tradição
literária não deixou e não deixa de reforçar (p.185).

Assim, segundo o sociólogo francês, ocorre a ilusão biográfica, já que é


necessário reconstruir o contexto em que o indivíduo age. E continua, afirmando que “o
real é descontinuo, formado de elementos justapostos sem razão, todos eles únicos e
tanto mais difíceis de serem apreendidos porque surgem de modo incessantemente
imprevisto, fora de propósito, aleatório” (idem). Percebemos que para o sociólogo
francês as análises biográficas são ilusões uma vez que a subjetividade do estudo apenas
reconstrói a vida de forma artificial22. Seguindo essas problematizações expostas por
Bourdieu, Jacques Le Goff, buscando escapar das 'Ilusões Biográficas', demonstrou a
dificuldade do experimento biográfico e partiu, por exemplo, para a lógica do ‘sujeito
globalizante’, ou seja, aquele sujeito que é considerado apenas em uma perspectiva

22
Vale lembrarmos que o debate iniciado por Bourdieu, apesar de extremamente relevante para a
produção historiográfica contemporânea é iniciado ainda na década de 1980, momento no qual, como
vimos, ocorre ainda uma série de questionamentos acerca da abordagem biográfica enquanto gênero
histórico.
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global. Este sujeito, portanto, serve para as análises de todas as características do
contexto já que nele estas mesmas características se encerram (LE GOFF, 1999).
A partir do exposto até agora, principalmente acerca da incerteza metodológica
que o gênero biográfico carrega em seu interior, conseguimos perceber que um dos
principais problemas desta forma de escrita é mesclar a pluralidade e a erudição
documental acerca de determinado personagem com a problematização que a escrita
histórica exige sem, contudo, criar apenas uma narratividade fechada23. Assim, o gênero
histórico-biográfico passa a estar no interior da História enquanto campo de saber
seguindo, também, procedimentos específicos.
Notamos que o autor dos textos biográficos acaba conhecendo sua personagem,
muitas vezes, de forma mais ampla do que aqueles indivíduos que com este conviveram,
Acerca deste ponto, o historiador francês Jean Orieux (s/d) afirma:
O autor, dois séculos após a morte desses personagens, está talvez
mais bem informado das suas diversas facetas do que as pessoas que
os conheceram. Isto não é nada paradoxal. Os homens, ou as
mulheres, apenas mostram, àqueles que lhes estão próximos, uma
determinada faceta (p.41)

E continua:
A partir de cem testemunhos diferentes e até contraditórios, o biógrafo
acaba por elaborar uma face compósita, na qual há algumas
probabilidades de podermos encontrar o personagem integral, que os
seus contemporâneos provavelmente não conhecem. (p.42)

Logo, uma vez conhecendo amplamente as fontes documentais acerca de


determinada vida, o historiador deve cuidar para não se colocar mais do que a
necessidade exige, completando situações e criando falsidades24. Notamos, então, a
necessidade de se respeitar o personagem na integridade. Incluindo no estudo, por
exemplo, analises de psicologia, seguindo as sugestões da professora Vavy Pacheco
Borges da UNICAMP em seu texto Grandes e misérias da biografia:

23
Devemos notar que a utilização de uma pluralidade de documentos explorados com ampla erudição
somados a uma problematização errônea e uma narrativa mal construída, no geral aquela que busca uma
linearidade desmedida – a vida humana raramente é linear – acabam gerando finalismos históricos que
impossibilitam a classificação deste gênero como História.
24
O já mencionado Oireux (s/d) afirmou, acerca desta lógica: “Processo de reanimação de um testemunho
só tem valor com a condição de jamais nos abandonarmos ‘àquilo que poderia ou deveria ter sido’. É
preciso respeitar o personagem tal e qual ele nos surge nos fatos” (p.44). Assim sendo, é necessário,
acima de tudo o afastamento de uma pedestalização do indivíduo biografo.
84

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A psicanálise é um aparato útil, ensinando aos historiadores, por
exemplo, a importância do inconsciente, a pluralidade do indivíduo, a
importância das origens e do início da vida, entre outros – todavia a
biografia não pode se esgotar nessa possibilidade de análise (2010,
p.219)25.

Outro ponto metodológico relevante na escrita histórico-biográfica é a percepção


de que a vida do indivíduo não começa no nascimento deste nem termina com sua
morte. Destarte, o pesquisador deve buscar, também, as origens e as influências que
marcam a vida do indivíduo, bem como os influenciados e a memória construída acerca
deste sujeito (BORGES, 2010). Logo, é função do autor da análise biográfica, em sua
escrita, notar que, muitas vezes, as ausências de fatos são tão ou mais significativas do
que os fatos ocorridos em si.
Em suas pesquisas para a elaboração da biografia de um indivíduo já conhecido
o historiador, provavelmente, se deparará com variados textos biográficos escritos
anteriormente acerca desta personagem. Essas outras biografias escritas previamente
devem, portanto, serem analisadas e problematizadas para a construção de um novo
estudo: analisando, por exemplo, o lugar de fala dos antigos biógrafos de determinados
sujeitos. O motivo de se analisar a biografia-fonte reside no fato de que os personagens
– principalmente os célebres – já entraram, direta ou indiretamente, no imaginário das
sociedades. E mais, estes personagens já foram apropriados e reapropriados repetidas
vezes (BARROS, 2010).
Um último ponto é relevante para a escrita da biografia: como lidar com os
textos biográficos produzidos pelo próprio sujeito, ou seja, como lidar com
autobiografia. Em primeiro lugar, deve ocorrer uma dúvida autobiográfica: quando o
sujeito falar acerca de sua trajetória, é função do historiador questionar, problematizar e
duvidar deste discurso, assim, resta ao pesquisador comprovar quaisquer relatos
cruzando os relatos com outras fontes, seguindo critérios metodológicos previamente
determinados (ROSENTHAL, 2008).
Esta necessidade de averiguação – esta dúvida – baseia-se na percepção de
memória dos sujeitos. O filósofo francês Henri Bergson (1859-1941) a quem, diga-se de
passagem, não agradava a possibilidade da escrita biográfica, já demonstrou que a
própria percepção de memória é um ato reiterado de interpretações (BERGSON, 1990).

25
Acerca das análises que sugerem a utilização de abordagens psicológicas em conjunto com as
históricas, podemos citar as proposições do historiador Peter Gay em seu célebre texto Freud para
historiadores.
85

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Logo, recontamos ou reconstruímos o passado com nossas ideias atuais sobre aquilo que
julgamos ser importante – na psicologia essa característica da memória é chamada de
percepção seletiva. Do ponto de vista do presente, o passado é mutável, maleável, ou
seja, apenas reinterpretamos aqueles momentos que são lidos como relevantes e
necessários para o nosso ‘eu’ presente, contemporâneo.
Mais do que um gênero meramente literário, mais do que uma redução à
historiografia, a biografia está localizada em uma área de intersecções amplas que
viabilizam ao historiador do tempo presente uma análise mais profunda não só da vida
do biografado como, também, do contexto no qual este indivíduo estava inserido além,
é claro de possibilitar ao historiador problematizar o tempo da própria escrita. Por estes
motivos, devemos ultrapassar os limites da solidão, aqui identificado com as
perspectivas de análises de indivíduos isolados em, para utilizar uma expressão do
século XIX, torres de marfim. A partir do momento no qual, se ultrapassando o
indivíduo, chegamos a um prisma socialmente problematizado e as trajetórias de vida
ganham nova relevância nos estudos históricos se afastando da narrativa determinista
outrora empregada. Gênero antigo e amplo que caminha desde a antiguidade até nosso
tempo presente, com escritas de vida de personagens históricos e mesmo de pessoas
comuns até às trajetórias coletivas26, as biografias, hoje, são uma forma direta e
acessível do conhecimento histórico, desde que feita com todo o rigor metodológico
evitando, assim, o risco de perder-se em uma narrativa infrutífera, aos mais variados
públicos.

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BARROS, José D’Assunção. O campo da história. 7ed. Petrópolis: Vozes, 2010.

26
Chamada de prosopografia nos estudos históricos, esse gênero considera alguns dados variáveis para a
reconstituição do perfil de determinado grupo.
86

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Artigo recebido em: 17 de setembro de 2013


Aprovado em: 25 de outubro de 2013

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UM PARAÍSO TERRESTRE: OS AMERÍNDIOS E AS DOENÇAS ANTES
DE 1492
Danilo de Lima Nunes*

RESUMO: Ao analisarmos o processo da conquista espanhola da América e os


mecanismos que o possibilitaram, através das historiografias clássica e revisionista
sobre o tema, assim como das fontes textuais e pictográficas hispânicas e ameríndias,
um questionamento pode surgir: antes de 1492 – ou seja, antes da chegada dos
conquistadores, colonizadores e microrganismos do Velho Mundo ao continente
americano – os ameríndios eram ou não assolados por doenças epidêmicas? Nesse
artigo, procuraremos desconstruir o chamado “mito do paraíso terrestre”, no qual se
afirma que, antes da chegada dos europeus e de sua “biota portátil” ao Novo Mundo, os
ameríndios não eram assolados por doenças epidêmicas. Para isso, apresentaremos e
discutiremos uma série de fontes textuais nativas, evidências arqueológicas e estudos de
paleopaleontólogos e paleodemógrafos que acabam por derrubar esse mito.

PALAVRAS-CHAVE: América Pré-Colombiana; doenças epidêmicas; mito do paraíso


terrestre.

ABSTRACT: By analyzing the process of the Spanish Conquest of America and the
mechanisms that made it possible, through classical and revisionist historiography on
the subject, as well as Hispanic and Native textual and pictographic sources, a dispute
may arise: before 1492 – i.e., before the arrival of the conquerors, colonizers and
microorganisms from the Old World to the American continent – were or weren’t
Amerindians plagued by epidemic diseases? In this paper, we will try to deconstruct the
so-called “myth of the earthly paradise”, which states that before the arrival of
Europeans and their “portable biota” to the New World, the Native Americans were not
hit by epidemic diseases. For this, we present and discuss a number of native textual
sources, archaeological evidence and paleopathologist and paleodemographic studies
that ultimately overthrow this myth.

KEY-WORDS: Pre-Columbian America; epidemic diseases; myth of the earthly


paradise.

***

*
Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de
História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/IH/UFRJ). Pesquisador do Laboratório de
Estudos Históricos e Midiáticos das Américas e da Europa (LEHMAE), participando do projeto “Política,
Cultura e Comunicação nas Américas e na Europa Contemporâneas: Circulação de Ideias, Imagens e
Práticas Políticas (Sécs. XX-XXI)”, coordenado pelo Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira. Atualmente
desenvolve sua pesquisa com a bolsa oferecida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES).
91

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Ao analisarmos o processo da conquista1 espanhola da América, há um verso de
Pablo Neruda, presente no poema Oda a la araucaria araucana, que sintetizam os
“mecanismos” – utilizando-nos das palavras do historiador italiano Ruggiero Romano
em Os Mecanismos da Conquista Colonial: Os Conquistadores, obra originalmente
publicada em francês em 1972 – que possibilitaram esse empreendimento no continente
por nós assinalado: “a espada, a cruz e a fome iam dizimando a família selvagem”
(apud ROMANO, 1995, p. 12, tradução nossa). Esses “mecanismos”, destacados
historicamente por Romano e poeticamente por Neruda, encontram-se reproduzidos em
uma vasta historiografia clássica sobre o tema, que busca refletir o seguinte (e outros)
questionamento(s): como foi possível o êxito da conquista espanhola da América por
“um punhado de homens” (ELLIOTT, 1963, p. 51) e que elementos tornaram-na
realizável? Como possíveis respostas, podemos encontrar: o poderio bélico e as
inovações tecnológicas trazidas pelos europeus a essa porção continental, conforme
apontou William Prescott em The Conquest of Mexico (1843); a submissão nativa pelos
conquistadores, sendo esses vistos como deuses ou agentes da Providência; a
inadaptabilidade das culturas nativas para a tarefa de rechaçar a invasão espanhola,
como podemos conferir nas obras de Jacques Soustelle, La Vie Quotidiene des Aztèques
à la Veille de la Conquête Espagnole (1955), de J. H. Elliott, Imperial Spain, 1469-1716
(1963) e de Charles E. Dibble, The Conquest Through Aztec Eyes (1978); e a
superioridade hispânica em termos linguísticos, de alfabetização e na leitura de

1
Sobre o termo “conquista”, Ruggiero Romano lembra-nos das disposições reais publicadas em 1556 que
proibiam seu uso, assim como o termo “conquistadores”, devendo ser substituídos por “descobrimento” e
“colonos”. Além disso, o autor busca compreender o porquê dessas interdições, afirmando, dentre outras
motivações, que “o essencial da América está ocupado, inserido num sistema. A partir desse momento,
não há mais nada para conquistar, apenas terras descobertas para colonizar. A pax hispanica triunfa”
(ROMANO, 1995, p. 54). Contudo, ressalta Romano, o estabelecimento dessa data pode ser criticado,
uma vez que esse processo não se encerrara por completo: o autor cita, por exemplo, os casos argentino e
chileno para comprovar a sua tese (Ibidem, p. 55) e chega a afirmar que a conquista estendeu-se ao longo
do século XX. Matthew Restall, em Sete Mitos da Conquista Espanhola, retorna a tese de Romano,
denominando-a de “o mito da conclusão” (cf. RESTALL, 2006, pp. 125-146) e, após apresentar as sete
dimensões que compõem o quadro geral da incompletude da conquista, sentencia: “[...] a Conquista das
regiões cruciais dos Andes e da Mesoamérica foi mais prolongada do que asseveraram a princípio e
mais tarde vieram a crer os espanhóis; quando os conflitos chegavam efetivamente a um fim nessas
áreas, eram tão-somente deslocados para as fronteiras da América espanhola, jamais pacificadas e em
permanente expansão. No âmbito interno, a violência da Conquista também sofreu uma transposição,
assumindo uma miríade de formas de dominação e repressão; nem por isso, entretanto, deixou de
enfrentar, em caráter permanente, um conjunto de métodos também diversificado de resistência nativa.
As conquistas espiritual e cultural foram igualmente complexas e prolongadas, desafiando seu resultado
a ponto de o próprio conceito de conclusão tornar-se irrelevante” (Ibidem, p. 145). Por fim, gostaríamos
de destacar o artigo de Richard N. Adams, “The Conquest Tradition of Mesoamerica”, publicado na
revista The Americas, no qual afirma que “a conquista psicológica da Mesoamérica ainda prevalece, e
continua sendo reproduzida hoje na área onde as altas culturas pré-colombianas tiveram domínio”
(ADAMS, 1989, p. 129, tradução nossa).
92

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“signos”, fatores esses amplamente trabalhados por Tzvetan Todorov em The Conquest
of America (1982).
Contudo, uma historiografia revisionista sobre esse processo tem apontado
novos elementos que o possibilitaram e que também, ao lado dos fatores mencionados
anteriormente, são importantes e precisam não ser mais negligenciados. Matthew
Restall, em Sete mitos da conquista espanhola (Seven Myths of the Spanish Conquest),
por exemplo, afirma que foram as doenças, as quais os indígenas não possuíam a
mínima imunidade, a desunião interna entre os diversos grupos nativos, impedindo um
levante geral, e a preocupação dos indígenas em manter o seu habitat frente os
transtornos das guerras, que tornaram decisiva a expansão colonial hispânica em solo
americano (cf. RESTALL, 2006, pp. 221-243).
Detendo-nos no papel das doenças infectocontagiosas eurasianas no processo da
conquista espanhola, ao realizarmos uma rápida pesquisa sobre a produção
historiográfica acerca do seu desempenho, notamos que a maioria dos autores trata-as
en passant, ou seja, dedica a elas poucas linhas de suas obras ou um único capítulo, e
em outros em uma série de artigos, por vezes, repetitivos. A tarefa de se analisar a
importância das doenças eurasianas na conquista espanhola acaba recaindo aos
epidemiologistas e biólogos, produzindo, alguns desses, uma espécie de história das
doenças voltada para o mercado editorial, tendo por público-alvo pessoas que possuem
certa “curiosidade” por essa abordagem, utilizando-se em suas narrativas de uma
linguagem leve, de menor reflexão teórica e chamando a atenção para temas polêmicos.
Em nosso trabalho de conclusão de curso2, orientado pelo Prof. Dr. Wagner
Pinheiro Pereira, procuramos, com base na historiografia revisionista e nas fontes
textuais e pictográficas espanholas e nahuas, realizar uma análise sobre as doenças e os
medos gerados na sociedade pelos discursos produzidos sobre essas no processo da
conquista espanhola da Mesoamérica3. Com isso, pudemos demonstrar que uma

2
Cf. NUNES, Danilo de Lima. A conquista epidemiológica: as doenças e os medos sociais no processo da
conquista espanhola da Mesoamérica (1492-1650). Rio de Janeiro: UFRJ, 2012.
3
Ao início do século XX, antes da criação desse termo, estudiosos alemães, particularmente Eduard Seler
(1849-1922), em Eine archaölogische Forschungsreise in Süd-und Mittelamerika (1910), cunharam a
expressão Mittelamerika para designar a região onde floresceu uma alta cultura ameríndia no México
central e meridional e no território contíguo dos países do norte da América Central. Em 1943, o filósofo
e antropólogo alemão Paul Kirchhoff (1900-1972), em seu texto “Mesoamérica: seus limites geográficos,
composição étnica e caracteres culturais”, desenvolveu, com base nas reflexões de outros estudiosos que
desde o século XIX se dedicavam aos estudos das antigas civilizações do México e da América Central, o
conceito de Mesoamérica, para designar as áreas de agricultura estável situadas no México – ao sul dos
desertos setentrionais –, Guatemala, Belize, oeste de Honduras, sudoeste da Nicarágua, e a península de
Nicoya na Costa Rica. Em “A Mesoamérica antes de 1519”, publicada no primeiro volume da coletânea
93

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abordagem sócio-histórica do impacto das doenças e dos consequentes medos sociais
nesses processos de conquista é possível e fundamental, uma vez que as fontes
apresentam ricas informações textuais e visuais sobre as enfermidades, que precisam ser
mais e melhor estudadas, não se atendo unicamente a poucos parágrafos ou páginas e
aos aspectos epidemiológicos e demográficos. Ademais, analisamos de que modos os
discursos dos conquistadores, dos cronistas e dos membros da Cristandade foram
utilizados para gerar o medo sobre os povos nativos conquistados e justificar a
empreitada conquistatória e debatemos sobre o uso metafórico das doenças
epidemiológicas e de seus sintomas nos discursos realizados pelos conquistadores,
cronistas e membros da Cristandade.
Não quisemos e não pudemos findar o debate sobre o processo da conquista
espanhola da Mesoamérica, até porque se trata de um debate que já se arrasta por mais
de quinhentos anos, sendo impossível de ser explicado sob uma única perspectiva.
Inclusive, atualmente temos desenvolvido uma pesquisa de Mestrado4 que se trata de
uma continuidade e aprofundamento do tema trabalhado por nós no TCC mencionado,
na qual visamos analisar, através de um estudo sócio histórico comparado, como os
surtos epidêmicos possibilitaram as conquistas do Império Asteca (Mesoamérica) e do
Império Tawantinsuyu (América Andina) e os seus impactos nessas regiões da América.
Entretanto, ao olhar atento do leitor, pode surgir um questionamento: e antes de
1492 – ou seja, antes da chegada dos conquistadores, colonizadores e microrganismos
do Velho Mundo ao continente americano – os ameríndios eram ou não assolados por
doenças epidêmicas? Há um mito5, ao qual denominaremos de “o mito do paraíso
terrestre”, que afirma que esses ameríndios não eram assolados por tais enfermidades
antes da chegada da frota de Cristóvão Colombo. Desse modo, torna-se fundamental
verificar a procedência desse mito e, ao mesmo tempo, recorrendo e discutindo uma
série de fontes textuais nativas, evidências arqueológicas e estudos de

História da América Latina (The Cambridge History of Latin America), organizada por Leslie Bethell,
Miguel León-Portilla apresenta-nos uma longa descrição geográfica dessa região (cf. LEÓN-PORTILLA,
2005, pp. 26-27).
4
O Reino da Morte: uma história comparada das doenças e dos medos sociais na conquista espanhola
da Mesoamérica e da América Andina (1492-1590), desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em
História Comparada, do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGHC/IH/UFRJ), tendo por orientação o Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira.
5
Para a discussão sobre o conceito de “mito”, torna-se interessante citar a obra do francês Mircea Eliade,
Mito e realidade (Myth and Reality). O autor atenta-nos para o fato desse termo se encontrar atualmente
sendo utilizado em duas acepções, tornando-o dúbio e ambíguo: “ficção” ou “invenção” e “uma história
sagrada, portanto uma história verdadeira, porque sempre se refere a realidades” (ELIADE, 1991, p.
12). Em nosso artigo, ao nos referirmos a “mito”, estamo-nos utilizando da primeira acepção.
94

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paleopaleontólogos e paleodemógrafos, desconstruí-lo: esses serão, pois, os alvos de
nosso artigo.
Antes de prosseguirmos, faz-se necessário respondermos a um (novo)
questionamento que talvez o leitor possa levantar: as doenças podem também pertencer
ao domínio do campo historiográfico? Jacques Revel e Jean-Pierre Peter, em “O Corpo:
o homem doente e sua história”, capítulo publicado em História: novos objetos (1976),
lembra-nos que “desde a origem da crônica, o historiador fez da doença uma das
passagens obrigatórias de sua narrativa” (REVEL; PETER, 1976, p. 142).
Ricardo Augusto dos Santos, em capítulo publicado na obra Uma história
brasileira das doenças (2004), aponta que nos últimos anos uma historiografia mais
tradicional vem sendo desafiada por novos paradigmas que passam a considerar a
inclusão de outros saberes. “Estas relevantes contribuições”, afirma o autor, “trazem à
tona aspectos antes negligenciados por uma historiografia mais tradicional”
(SANTOS, 2004, p.128). O surgimento desses novos paradigmas pode ser buscado, por
exemplo, no advento da corrente historiográfica da Nouvelle Histoire [Nova História],
na qual houve a busca por novos problemas, abordagens e objetos (cf. LE GOFF;
NORA, 1976; BURKE, 1992, pp.7-38). Analisando o interesse despertado entre os
historiadores sobre a história da sexualidade, da doença e, mais recentemente, do corpo,
Mary Del Priore, no artigo “A história do corpo e a Nova História: uma autópsia”,
publicado em 1994 na Revista USP, afirma:

Reflexões [...] têm trazido à tona o interesse dos historiadores sobre a


história da sexualidade, da doença e, mais recentemente, do corpo.
Mas a inscrição deste objeto de estudos no universo de pesquisas do
historiador deve muito à dinâmica do que se convencionou chamar de
Nova História [...] Constituída contra o romance histórico e a história
tradicional, a Nova História procurou tornar-se mais científica,
aprendendo as lições de geografia, da demografia, da antropologia e
da etnologia. Ao renovar a curiosidade história, especificando-a,
acabou por renovar, também, problemas. Ela é feita por historiadores
que emprestam modelos de análise de outras ciências humanas,
fazendo emergir novos objetos de estudo no seio das questões
históricas, e “constituindo novos territórios, pela anexação de
territórios de outros” (DEL PRIORE, op. cit., pp. 49-50).

Sob essa nova perspectiva historiográfica, a categoria “doença” passou a ser


aproximada mais apropriadamente com a sociedade, como um sistema vivo, isto é, a
doença não passou simplesmente a ser quantificada e descrita epidemiológica e
95

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demograficamente, porém, sim, passou-se a buscar as construções sociais – a partir das
representações imagéticas, discursivas, dentre outras – que eram feitas a partir da
doença (cf. NUNES, op. cit., pp.18-22). Nara A. Brito, em “La dansarina: a gripe
espanhola e o cotidiano na cidade do Rio de Janeiro”, ressalta os desdobramentos das
reflexões a esse respeito, nas quais outros saberes se juntam para lançar um novo olhar
sobre os fatos sociais, políticos e econômicos, combinando-se com a História das
Doenças (cf. BRITO, 1997, p.13).
Charles E. Rosenberg, no livro Explaining Epidemics and other studies in
History of Medicine (1995), aponta que a partir da observação de uma determinada
epidemia, torna-se possível apreender o contexto sócio-histórico-cultural de uma
determinada sociedade. A doença também pode ser entendida enquanto um elemento de
desorganização e de reorganização social, tornando, segundo Jacques Revel e Jean-
Pierre Peter,
[...] frequentemente mais visíveis as articulações essenciais do grupo,
as linhas de força e as tensões que o traspassam. O acontecimento
mórbido pode, pois, ser o lugar privilegiado de onde melhor observar
a significação real de mecanismos administrativos ou de práticas
religiosas, as relações entre os poderes, ou a imagem que uma
sociedade tem de si mesma (REVEL; PETER, op. cit., p. 144).

Conforme salientamos anteriormente, dentre outros meios, para alcançarmos os


objetivos traçados para esse artigo, recorreremos às fontes textuais nativas que, muitas
das vezes, são renegados pelos historiadores. Eduardo Natalino dos Santos, em Deuses
do México Indígena: Estudo comparativo entre narrativas espanholas e nativas (2002),
aponta que:
[...] não é muito comum à tradição histórico-filosófica ocidental
admitir a existência de um pensamento indígena de uma determinada
região. No máximo se fala em um pensamento mítico que,
independentemente do grupo ou época, teria sempre uma mesma
estrutura de funcionamento. Essa forma de o mundo ocidental olhar as
civilizações americanas tende a desqualificar qualquer outra
explicação do mundo que rivalize com a sua (SANTOS, 2002, p. 79).

Essa desqualificação, segundo o autor, possui duas vertentes: 1) a naturalização


das outras culturas; 2) o lançamento de toda a produção intelectual de explicações e
reflexões sobre o funcionamento do mundo e sobre a condição humana no campo das
fábulas ou da imaginação. Porém esse universo documental ameríndio, como os

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códices6, deveria ser explorado com mais frequência nos estudos historiográficos sobre
a Mesoamérica ao lado das já conhecidas documentações espanholas, evitando-se
gradativamente o que o Eduardo Natalino afirma mais adiante em seu livro:

[...] optamos pela narrativa espanhola em detrimento de uma enorme


pluralidade de vozes e testemunhos, ou seja, selecionamos os relatos
que se encaixam na construção da história do moderno império
espanhol e nas teorias explicativas cristãs ocidentais (Ibidem, p. 89).

Federico Navarrete Linares, no artigo “Las fuentes indígenas más allá de la


dicotomía entre historia e mito”, publicado na revista Estudios de Cultura Náhuatl
(1990), reafirma e amplia o alerta feito por Eduardo Natalino, ao criticar a separação
academicista construída ao se analisar as fontes textuais e pictográficas tidas
simplesmente como mitos (geralmente proveniente de relatos orais dos povos nativos) e
as tidas como “históricas”, ou seja, os relatos hispânicos, cabendo aos antropólogos e
mitólogos as análises das primeiras, por serem consideradas fontes “não históricas”, e
aos historiadores as análises das segundas:

Parece-me que um fator que tem impedido a necessária cooperação


entre os defensores da explicação histórica e mítica tem sido a brecha
entre suas respectivas especialidades acadêmicas. Desde o século
passado, uma das premissas do etnocentrismo ocidental tem sido a
contraposição entre a sociedade moderna, plenamente histórica, e as
outras sociedades, que se consideram não históricas. Uma é o campo
de estudo dos historiadores, as outras, dos antropólogos e dos
mitólogos. Uma é o terreno da diacronia, a outra, o da sincronia
(NAVARRETE LINARES, 1999, pp. 250-251, tradução nossa).

O autor defende que, para compreender de maneira mais plena as tradições


históricas ameríndias, é necessário romper com a dicotomia ainda existente entre
história e mito e utilizar as ferramentas de análise de ambas às disciplinas. Para isso,
citando o historiador Kerwin Lee Klein, Navarrete Linares destaca que necessitamos
considerar o que ocorre com a historicidade quando imaginamos todos os povos,

6
Sobre os códices, no artigo “Un trayecto por los signos de escritura”, publicado na revista eletrônica
Destiempos.com, afirmam Maria del Carmen Herrera M., Perla Valle P., Bertina Olmedo V. e Tomás
Jalpa Flores: “Os códices elaborados pelos povos que habitavam o centro do México nos séculos XVI e
XVII são manifestações tardias dos sistemas de escrita desenvolvidos na Mesoamérica. Para entender a
lógica que organiza a textualidade dessa documentação é preciso identificar, descrever e ler em náhuatl
os signos empregados na maior parte dos códices que chegaram até nós, assim como entender as normas
que ordenavam o discurso, dependendo do gênero em que se encontra escrito o documento” (HERRERA
M. et al., 2009, p. 361, tradução nossa).
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independentemente de sua etnia, religião ou alfabetização, como históricos e pensarmos
suas narrativas como diferentes variedades do discurso histórico mais que como
alternativas românticas a esse discurso (cf. KLEIN, 1995, p. 298 apud. Ibidem, p. 251).
De pronto, analisemos duas fontes textuais ameríndias: Los libros de Chilam
Balam de Chumayel, coletânea de relatos escritos por anônimos nos séculos XVI e
XVII, que narram sobre os fatos e as circunstâncias históricas da civilização maia, e La
nueva corónica y buen gobierno, de Felipe Guamán Poma de Ayala (1556-1644),
cronista inca do século XVII. De acordo com a primeira fonte:

Nesse tempo [antes do início da conquista espanhola] não havia


enfermidade: não tinham ossos doloridos; não tinham febre alta; nesse
tempo não tinham varíola; não tinham a queimação no peito; eles não
tinham dor no ventre; eles não tinham tísica; eles nesse tempo não
tinham dor de cabeça; nesse tempo o curso da humanidade era
ordenado. Os estrangeiros mudaram [esse quadro] quando chegaram
aqui (ROYS, 1967, p. 83, tradução nossa).

Felipe Guamán Poma de Ayala, por seu turno, afirma:

Os incas, seus monarcas, seus povos, tanto como a gente antiga destes
reinos, viviam vidas longas e sãs, e muitos deles chegavam a idade de
150 e 200 anos porque tinham um regime de vida e de nutrição bem
ordenado e metódico (POMA DE AYALA, [1615] 1956, v. 1, p. 89,
tradução nossa).

À primeira vista, ao lermos os excertos acima, notamos que, aparentemente, os


ameríndios que nesse continente viviam antes da chegada de Colombo em 1492
gozavam de plena saúde, não sendo assolados por alguma enfermidade endêmica ou
epidêmica e, com isso, tendo vidas longas e sãs. Os tempos pré-coloniais eram
marcados por dias aprazíveis, em que a vida era mais longa e feliz (cf. NABOKOV,
1991). Esse “paraíso terrestre”, contudo, se encerrou, segundo esses e outros relatos
nativos, a partir de 1492, com a chegada dos conquistadores, colonizadores e
microrganismos do Velho Mundo. Essas descrições continuaram sendo repetidas por
alguns historiadores do século XX (cf. SALE, 1990, p. 160; ORTIZ DE
MONTELLANO, 1990, p. 120; DOBYNS, 1983, p. 34; THORNTON, 1987, p. 39),
perpetuando-se o que estamos aqui chamando de “o mito do paraíso terrestre”.
Um olhar atento sobre esses relatos aponta que essas narrativas visavam
provocar um grande contraste com a realidade com a qual os ameríndios foram
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submetidos a partir do processo da conquista espanhola da América, comparando-a de
forma romantizada com a realidade de antes de 1492. Entretanto, os avanços nos
campos da paleopatologia e da paleodemografia, além do acesso e da tradução de novas
fontes pré-colombianas, permite-nos uma aproximação com a realidade desse continente
de antes da chegada dos europeus, tornando-a reveladora: de “paraíso terrestre” nada se
havia aqui; guerras, fomes e epidemias eram comuns, “assim, longe de ser um paraíso
terrestre, o perfil de vida e morte que emerge no Novo Mundo se parece ao do Velho
Mundo em vários aspectos importantes” (ALCHON, 1999, p. 201, tradução nossa).
As doenças estiveram presentes nesse continente desde a chegada dos primeiros
ameríndios. Quando e por aonde eles chegaram? Trata-se, todavia, de uma grande
dúvida que ainda não foi completamente elucidada. Os arqueólogos e outros estudiosos
sempre estão em busca de novas evidências que possam esclarecer, por fim, esse vácuo
na história do nosso continente. Porém, paleopatologistas apontam que o estudo dos
parasitas intestinais presentes nos coprólitos (pedras de fezes) dos primeiros habitantes
da América pode solucionar essa questão. Segundo o médico infectologista Stefan
Cunha Ujvari, em A história da humanidade contada pelos vírus, bactérias, parasitas e
outros microrganismos...,

Há um parasita que contribuiu para esclarecer nossa rota de entrada na


América, o Ancylostoma duodenale presente em coprólitos de índios
americanos. [...] O amarelão em múmias americanas contribuiu para
solucionarmos parte do mistério das rotas de entrada humana na
América. [...] Simulação computadorizada remontou o clima do
estreito de Bering à época da chegada dos primeiros americanos. A
longa faixa de terra que emergiu pela Era Glacial não foi
suficientemente quente para ovos e larvas do ancilóstomo
sobreviverem. Os ovos eliminados pelas fezes não encontraram solo
favorável para eclodirem em larvas. [...] Os ovos encontrariam solo
ideal caso os humanos viessem pelas embarcações no litoral. Nesse
caso, os primeiros americanos trariam o ancilóstomo do continente
asiático para a América. O litoral quente e úmido não barraria a
entrada do parasita que acompanharia os humanos. Seu encontro em
coprólitos indica entrada humana por via marítima, que chegou com o
parasita e evacuou no litoral da América do Norte, onde colonizou.
Isso não elimina a clássica entrada pela ponte terrestre do estreito de
Bering. Apenas acrescenta outras rotas marítimas (UJVARI, 2009, pp.
71-73).

O ancilóstomo, contudo, não veio sozinho. Acompanhando os primeiros homens


americanos também veio a bactéria da tuberculose, microrganismo que ceifaria os
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enfraquecidos nessa jornada. Os estudos de restos ósseos presentes em sítios mortuários
pré-históricos, a despeito de seus problemas de análise (cf. ALCHON, op. cit., p. 203),
demonstraram a sua presença nos ossos desses homens. Dissipando-se pela América do
Norte, a doença provavelmente alcançou a América Central (apesar de não termos
múmias suficientes para comprovarmos a sua presença), aproveitando-se do surgimento
de aglomerados populacionais e do processo de urbanização, além das guerras (que
acabavam por aumentar o número de desabrigados, debilitados e famintos, grupos
suscetíveis a serem acometidos por essa moléstia) e das mudanças climáticas, como a
grande seca ocorrida nos séculos VIII e IX d.C. que, segundo Jared Diamond, em
Collapse: how societies choose to fail or succeed (2005), contribuiu para o colapso das
cidades maias clássicas e o surgimento de uma epidemia geral7. Do mesmo modo
sucedeu-se na América do Sul, em cidades como Tiahuanaco, Pucara e Huari,
aproveitando-se da expansão de aglomerados humanos e de períodos de guerra.
“Grandes impérios com grandes cidades, comércio, guerras e fome aliaram-se à
tuberculose” (UJVARI, op. cit., p. 75).
À espera dos nossos primeiros habitantes americanos, encontravam-se as
doenças autóctones, ou seja, nativas do hemisfério: leishmaniose, doença de Chagas,
febre maculosa, bartonelose – doenças crônicas e raramente mortais, porém fatais
quando desenvolvidas junto de outras enfermidades ou deficiências nutricionais –, pinta
(treponematose não venérea), leptospirose e febres endêmicas e epidêmicas.
Os primeiros ameríndios eram nômades, andavam em pequenos grupos e se
dedicavam à caça de animais de grande porte (mamutes, preguiças-gigantes, bisões,
tigres dentes de sabre e tatus gigantes), à pesca e à coleta de frutos. A variedade de suas
dietas alimentares fazia com que eles raramente fossem acometidos por doenças
relacionadas a deficiências nutricionais, além da pouca frequência de períodos de fome.
O simples fato deles não se concentrarem em grandes conglomerados populacionais
permitia com que raramente ocorressem epidemias. A estimativa de vida desses
habitantes girava em torno de 16 a 22 anos para os homens e de 14 a 18 anos para as
mulheres (cf. JAFFEE, 1991, p. 58; CASSIDY, 1984, p. 320), dando poucas chances
para o desenvolvimento de doenças degenerativas crônicas associadas ao

7
Miguel León-Portilla discorda dessa tese, afirmando que “[...] as velhas cidades [maias] começaram a
ser gradativamente abandonadas. Não se encontraram vestígios de ataques externos, nem de destruição
por fogo. Os centros foram apenas abandonados, quando seus habitantes procuraram outros locais onde
se fixar. E seria difícil provar que foi isso o resultado de uma mudança climática violenta e generalizada,
de uma catástrofe agrícola ou de uma epidemia geral” (LEÓN-PORTILLA, op. cit., p. 32.).
100

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envelhecimento. As principais causa mortis era a complicação no parto no caso das
mulheres, e as lesões traumáticas como resultado de violência ou de acidente (cf.
JAFFEE, op. cit., p. 60) no caso dos homens, além do canibalismo, infanticídio,
sacrifício, gerontocídio e outras formas de guerra. Os caçadores-coletores eram
acometidos, em sua maioria, por doenças gastrointestinais, que também os
acompanharam na travessia para a América, como a disenteria bacteriana (shigelose),
salmonelose, teníase, tricuríase, oxiuríase, amebíase, giardíase, toxoplasmose, dentre
outras, e por doenças respiratórias, como a (citada) tuberculose, pneumonia,
blastomicose e coccidioidomicose (cf. ALCHON, 2003, pp. 39-45).
Com o término da última glaciação (há cerca de 10 mil anos atrás) e as
consequentes mudanças climáticas (aumento de temperatura e de umidade), de fauna e
da flora, os grupos nômades passaram a caçar animais menores (raposas do deserto,
linces, coiotes e diversos roedores), iniciaram o cultivo de plantas e, embora em menor
escala, a domesticação de animais, como o peru e o cachorro. Aos poucos, a partir de
meados do quinto milênio a.C., houve a diminuição do nomadismo e, em contrapartida,
o predomínio do sedentarismo: essa mudança permitiu com que a agricultura se tornasse
a principal atividade de sobrevivência dos grupos humanos aqui estabelecidos, a
implantação de novas técnicas de plantio (seleção e o cruzamento de plantas, a
construção de canais de irrigação etc.), a formação de grandes aldeias e o aumento
populacional (cf. SANTOS, 2002, pp. 47-49). “Segundo arqueólogos e
paleopaleontólogos”, afirma Alchon, “a transição para uma forma de vida agrícola e
sedentária teve um impacto negativo na saúde das populações humanas em todo o
mundo” (ALCHON, 1999, p. 208, tradução nossa). Esse impacto não foi diferente entre
os ameríndios, uma vez que se aumentaram os níveis de desnutrição e,
concomitantemente, com a baixa resistência aos patogênicos, eles tornaram-se mais
propícios a adquirir doenças infectocontagiosas. Por exemplo, populações que tinham
por base alimentar exclusivamente ou na maior parte das vezes o milho, tornavam-se
deficientes em ferro e niacina (vitamina B3, vitamina PP ou ácido nicotínico) e,
consequentemente, estavam mais suscetíveis a adquirir anemia e/ou pelagra, doenças
provocadas, respectivamente, pelas deficiências desses nutrientes. Apesar da pobre
nutrição e das altas taxas de infecção, as populações sedentárias se expandiram com o
tempo através das Américas. Além disso, as populações sedentário-agrícolas viviam, em
média, de dois a quatro anos a mais que as de caçadores-coletores (cf. JAFFEE, op. cit.,

101

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p. 58)8. A sedentarização, a introdução de práticas agrícolas e o aumento populacional
permitiram com que fossem constituídos grandes aldeias e conglomerados
populacionais, havendo um maior contato entre as pessoas e, com isso, o aumento das
doenças infectocontagiosas e o aparecimento das epidemias. As doenças relacionadas ao
conglomerado de pessoas e à falta de higiene tornaram-se comuns, além do aumento de
pessoas infectadas pelas doenças gastrointestinais e respiratórias que já afetavam as
populações caçador-coletoras, inclusive as que eram raras ou que não as conheciam
previamente. Aumentaram-se os índices de tuberculose vertebral e pulmonar, como
provam os restos ósseos provenientes da América do Norte (cf. BUIKSTRA, 1991, p.
165), além da pneumonia e da blastomicose. Apareceram, pela primeira vez, o tifo
endêmico e o tifo epidêmico (cf. ALCHON, 2003, pp. 45-59). Essas doenças foram
registradas por Guamán Poma de Ayala, em Historia de los Incas, ao narrar sobre os
êxitos militares de Pachuti Inca Yupanqui (1438-1471):

A derrota do Chile foi possível pelos estragos da praga, a qual durou


dez anos. A enfermidade e a fome, mais que a força dar armas, levou à
queda dos chilenos, do mesmo modo que a guerra civil entre Huáscar
e Atahualpa facilitou mais tarde a conquista espanhola. Peru também
sofreu terrivelmente pela praga, a fome e a seca. Por uma década, não
caiu chuva, e a erva murchou-se e morreu. As pessoas chegaram a
devorar seus próprios filhos, e quando os estômagos dos pobres foram
abertos às vezes os encontrou [e viram] que haviam sobrevivido
comendo ervas (POMA DE AYALA, 1978, p. 42 Apud. ALCHON,
1999, pp. 212-213, tradução nossa).

Mais adiante, Poma de Ayala escreveu que os incas associavam “a praga das
pulgas” com a morte, indicando que talvez houvessem associado estes ectoparasitas
com a aparição do tifo (cf. POMA DE AYALA, Op. cit., p. 77. Apud. ALCHON, Op.
cit., p. 213).
Dois elementos são interessantes de se destacar no relato de Poma de Ayala:
primeiro, as epidemias ajudaram os próprios incas na conquista de novos territórios na
América do Sul; mais tarde, eles sofreriam do mesmo golpe pelas mãos dos espanhóis.
Segundo, a eclosão do tifo deu-se em um cenário de guerra e fome, confirmando-se a
mesma tese descrita por nós para o caso da disseminação da tuberculose no solo
americano. Essa associação fez-se também presente no território mesoamericano
8
Essa estimativa de vida acaba por desmentir a afirmação de Felipe Guamán Poma de Ayala que
apresentamos anteriormente, ao escrever que os seus ancestrais, antes da conquista espanhola, chegavam
a viver por mais de 150 anos.
102

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durante o século XV, conforme exemplificam os autores Angélica Mandujano Sánchez,
Luis Camarillo Solache e Mario A. Mandujano, no artigo “Historia de las epidemias en
el México antiguo: algunos aspectos biológicos y sociales”, divulgado pela Revista
Casa del Tiempo:
Os cronistas mencionam a aparição de vários fenômenos fora de
ordem natural até 1446, quando sobreveio a grande inundação que
motivou a construção de um dique que separara as águas salgadas e
doces da lagoa. Chimalpahin reporta uma praga de lagostas e Veytia
assinala que desde 1448 surgiram problemas pela falta de chuvas e a
escassez nas colheitas. De 1450 a 1454 a seca e as geadas
extemporâneas levaram os povos de Anáhuac a uma crise catastrófica
de fome e enfermidade (MANDUJANO SÁNCHEZ; CAMARILLO
SOLACHE; A. MANDUJANO, 2003, p. 10, tradução nossa).

A exemplo do excerto destacado acima, os relatos históricos dos maias e astecas


fazem referências a períodos de enfermidade relacionados com desastres naturais e
períodos de fome. Acompanhando e analisando-os, notamos que a década de 1450 foi
caracterizada por uma série de epidemias na Mesoamérica relacionadas a mudanças
climáticas (marcadas por um inverno rigoroso entre 1450-1452 ou 1453-1454, seguido
por uma seca de três anos) e períodos de fome, tornando as suas populações vulneráveis
às doenças epidêmicas. A alta mortalidade assistida por essas populações nessa década
também está relacionada ao consumo de plantas prejudiciais à saúde (talvez uma
tentativa desesperadora de se driblar a escassez de alimentos) e, ao mesmo tempo, a
deficiência de nutrientes, como podemos ver no Códice Chimalpopoca:

No ano 3 técpatl [1456], neste ano se deram os bredos [carurus], que


era tudo o que se comia e por isso houve mortandade. Foi o terceiro
ano que houve fome. Estão pintadas as figuras das pessoas, a quem
comem as auras e os coiotes (CÓDICE CHIMALPOPOCA, 1975, p.
52, tradução nossa).

Os ameríndios consideravam as enfermidades como produtos da vontade dos


deuses, um castigo, uma maldição. Tezcatlipoca, por exemplo, o deus asteca que
encarnava a destruição, o castigo e a bruxaria, era capaz de enviar castigos como as
epidemias (cf. DUVERGER, 1983). Guilhelm Olivier, em Tezcatlipoca: burlas y
metamorfosis de un dios azteca, originalmente publicado em francês, em 1997, escreve:

Também lhe atribuíam [a Tezcatlipoca], como a maioria das


divindades mesoamericanas, enfermidades como a lepra, o câncer, as
103

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hemorroidas, pruridos, pústulas, etc., que afetavam os indivíduos
negligentes ou não respeitosos [...]. De fato, em caso de epidemia, [os
mesoamericanos] dirigiam fervorosas preces a Tezcatlipoca – tanto
como o responsável por esses males como a entidade capaz de
remediá-los – que recebia, entre outros, o título de Yohualli Ehécatl
[...] (OLIVIER, 2004, pp. 53-54, tradução nossa).

Torna-se interessante destacar a relação que a religião possuía, ao lado da magia


(os ameríndios também acreditavam que as doenças eram causadas por encantamento de
povos inimigos, devendo ser medicadas por meios mágicos) e do empirismo (uso de
plantas, minerais e técnicas como medicamentos), com a cura das enfermidades, uma
vez que os homens pré-colombianos tinham também de recorrer, através das preces, aos
seus deuses em seus combates contra os microrganismos.
Em síntese, segundo Sánchez, Solache e Mandujano,

A intervenção do fator psíquico na concepção das enfermidades teve


um papel importante, para os povos indígenas, pois qualquer alteração
da ordem cósmica o do humano era considerada realizada pelos
deuses. Assim, estes povos tributavam adoração especial aos astros e
procuravam comprazer em tudo aos seus deuses para evitar com que
as calamidades caíssem sobre eles (MANDUJANO SÁNCHEZ;
CAMARILLO SOLACHE; A. MANDUJANO, Op. cit., p. 11,
tradução nossa).

Essa concepção foi retratada por Juan de Torquemada, em sua obra Primeira
parte de los veintiún libros rituales y monarquia indígena, con el origen y guerras, de
los índios occidentales, de sus poblaciones, descubrimiento, conquista, conversión y
otras cosas maravillosas de la misma tierra, ao dizer que:

Contam as histórias, que poucos dias antes da guerra, apareceu no céu


um grande cometa... o qual durou até o fim da batalha. Este sinal
tiveram por mau agouro; porque estes índios (também como nós, os
castelhanos) conhecem delas significar fomes, pestilências, e guerras
como nesta ocasião se verificou (DE TORQUEMADA, 1723, p. 85.
Apud. Ibidem, p. 11, tradução nossa).

Ao início da década de 1480, a região mesoamericana presenciou uma nova


epidemia, marcada por doenças gastrointestinais, mais uma vez relacionada a fome e a
seca. No katún9 4 Ahua (1480-1485),

9
Trata-se de uma unidade de contagem empregada no sistema calendário maia, equivalente a 20 tunes ou
7.200 dias, contados até 20 (cf. SANTOS, Op. cit., p. 84).
104

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O rosto de [o senhor do katún] está coberta; seu rosto está morto. Há
luto pela água; há luto pelo pão. Seu tapete e seu trono olharão até o
oeste. Vômito de sangue à sua custa [do katún] (ROYS, op. cit., p.
133, tradução nossa).

A partir desses exemplos, portanto, podemos notar que a América Pré-


Colombiana estava longe de ser um paraíso terrestre, tal como algumas fontes e
historiadores do século XX10 buscaram demarcar. Obviamente que as fontes que
descreveram esse cenário como “paraíso terrestre”, apesar de se tratar meramente de um
mito, precisam ser contextualizadas: suas produções se deram no momento da conquista
espanhola da América e buscavam contrastar o cenário brutal ao qual os ameríndios se
encontravam submetidos com o de antes das chegadas dos conquistadores, dos
colonizadores e das doenças infectocontagiosas eurasianas, forjando um cenário
pacífico, feliz, de longas e sãs vidas e livres de microrganismos.
Até o final do século XV, não possuímos evidências ou relatos de populações de
qualquer parte do mundo que tenha sido atingida simultaneamente por três grandes
patógenos virulentos, como veio a ocorrer no continente americano e, a posteriori, na
Oceania. “Nem sequer a Peste Negra, símbolo da enfermidade virulenta, foi tão
mortífera como se sustenta estas epidemias” (MANN, 2006, p. 143), escreve Charles
Mann em 1491: New Revelations of the Americas Before Columbus (2006), concluindo
que “nem sequer naquela ocasião a enfermidade acabou com mais de um terço de suas
vítimas”.

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10
Somente a partir da década de 1970, que um crescente número de especialistas começou a duvidar
sobre esse cenário de “paraíso terrestre” presente nas narrativas pré-colombianas e reproduzidas pelos
historiadores.
105

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Artigo recebido em: 25 de setembro de 2013


Aprovado em: 14 de novembro de 2013

112

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O TEATRO DO PROGRESSO: DOM PEDRO II - O IMPERADOR
ILUSTRADO, O MUSEU REAL E UM IDEAL DE CIVILIZAÇÃO.

Beatriz Moreira da Costa*

RESUMO: A prática do Colecionismo é antiga na nossa sociedade e ao longo dos


séculos deu-se um processo paulatino de mudança das concepções sobre Colecionismo
e Museu, estabelecendo-se definições de acordo com a ressignificação conveniente ao
seu tempo. À partir da chegada da corte portuguesa no Brasil, em 1808, inaugurou-se a
preocupação com a criação de instituições culturais e científicas, abarcando a formação
do Museu Real. A proposta desse artigo é demonstrar sob quais intenções e como o
colecionismo se desenvolveu no Brasil sob o Regime Monárquico.

PALAVRAS-CHAVE: Brasil Império; Museu Real; Colecionismo.

ABSTRACT: The practice of collectionism is old in our society over the centuries
there has been a gradual process of change in conceptions of Collectionism and
Museum, settling settings according to resignification convenient to their time. At the
arrival of the Portuguese court in Brazil, in 1808, inaugurated the concern with the
creation of cultural and scientific institutions, covering the formation of the Museu
Real. The purpose of this article is to demonstrate under what intentions and how the
collectionism developed in Brazil under the Monarchy.

KEY-WORDS: Brazil Empire; Museu Real; Collectionism.

***

*
Graduanda do curso de História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bolsista do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), sob orientação da Profª. Drª. Regina
Maria da Cunha Bustamante (LHIA-UFRJ) e membro do Grupo de Estudos Kemet (GEKemet/CEIA-
UFF).
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Introdução

O século XIX foi tempo de um processo difícil: a criação ou redefinição dos


Estados nacionais latino-americanos, processo conturbado em todos os países recém-
criados. A partir da formação dos Estados-Nações durante o século XIX, a legitimação
do poder do governante e a necessidade de criar, além de uma história comum, uma
identidade comum, passaram a ser uma questão política importante, gerando inúmeros
projetos que abarcassem soluções para essas demandas. (SANTOS, 2002)

Dentre os projetos de consolidação da nação estavam a criação de escolas


públicas, que conseguiam abarcar com uma parte das crianças; as forças armadas as
quais agora tinham regras claras para filtrar futuros interessados na adesão, tais como
língua comum e aliança com países. Além dessas formas de difusão dos ideais vigentes,
os governantes ainda contavam com a ajuda de diversos homens da arte, os quais
produziam obras mais acessíveis à população, como músicas, pinturas e livros.
Instituições essas criadas pelos novos Estados-Nacionais que visavam à definição de
patrimônio nacional e moderno, os quais garantiam a representação do Estado Nacional
que se formava, através de novas concepções de arte, cultura e civilização. (SANTOS,
2002)
Além das instituições públicas mais comuns, uma instituição que cumpriu igual
função para o império brasileiro em seu projeto de consolidação de uma nação foi o
Museu Real, atual Museu Nacional, não somente pelo contexto histórico da construção
do Museu, mas pelo processo de mudança, ao longo do tempo, da concepção de
“Museu” em todo o mundo; e pelo particular significado de um Museu do século XIX
no Brasil, os quais partilhavam da prática da conceptualização de um mundo civilizado
e em ascensão por ser uma instituição científica chave. (LOPES e MURRIELLO, 2005)

A proposta desse artigo é demonstrar, com base em uma bibliografia


correspondente, o processo de mudança das concepções sobre colecionismo e museu ao
longo dos séculos, assim como o significado e a importância do cientificismo para a
Europa e para o Brasil em pleno século da Segunda Revolução Industrial (ALMEIDA,
2001; LEITE, 2011; LOPES e MURRIELLO, 2005; SANTOS, 2000 e 2002;
SCHWARCZ e DANTAS, 2008; SOUZA, 2009; TRIGGER, 2004). Autoras como Lilia
Mortiz Schwarcz e Regina Dantas defendem que a prática do colecionismo da
monarquia brasileira se resumia a duas hipóteses: uma questão de alteridade, a qual
114

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definiria “o outro” – aquelas sociedades as quais estavam sendo postas, perpassando
outros significados e valores, dentro de um espaço museal como mera exposição e
declaração de finitude – e o “eu”; e, por outro lado, tal prática poderia sinalizar a
vontade ocidental de se possuir vestígios de todos os estágios civilizacionais para
preservá-los. (SCHWARCZ e DANTAS, 2008)

As origens do museu

A prática do colecionismo é antiga na nossa sociedade, visto que desde a


antiguidade é um ato recorrente. Porém colecionar comporta significados diferentes ao
longo do tempo, e nem sempre associado a um espaço museológico, mas quase sempre
cumprindo a função de poder simbólico, uma vez que cada civilização que pratica o ato
de colecionar, ressignifica o objeto da forma que mais for útil a ela. Na antiguidade, era
comum saquear os locais conquistados, transformando as riquezas materiais em espólios
de guerras, dessa forma, tira-se o objeto do seu uso cotidiano, leva-o para outro espaço e
ressignifica-o como um troféu de conquista. (TRIGGER, 2004)

Mouseion, vocábulo grego que designa “lugar sagrado dedicado às musas”,


deu origem ao termo “Museu”, pois na Grécia Antiga esse espaço era dedicado à
contemplação do pensamento, um lugar para o indivíduo poder se dedicar às ciências e
às artes. Havia diversas obras – originárias de doações ou ex-votos - em exposição no
ambiente, porém não eram para apreciação dos homens, e sim das divindades. O
conceito “Mouseion” tomou diversos moldes de acordo com o tempo-espaço, por
exemplo, no Egito Ptolomaico, significava algo próximo à universidade moderna, um
espaço para a aprendizagem. Na Idade Média, o Museu está diretamente ligado ao
contexto religioso, pois quem obtém a maioria das obras de artes é a Igreja, tendo ela o
maior acervo em suas mãos. Na Igreja e nos monastérios havia diversas relíquias de
santos e outras relíquias doadas por fiéis e pela realeza. (TRIGGER, 2004)

A mudança das práticas colecionistas é presenciada em um momento onde


tais objetos teriam outras funções para cumprir, funções essas ligadas aos valores
históricos. Mais especificamente no século XV, criavam-se os Gabinetes de
Curiosidades, lugares aonde a aptidão colecionista da elite, e patrocinados por ela,
mostra-se notável, compostos por coleções de extremos exotismos, incluindo fauna e
flora. Os Gabinetes foram os lugares que inauguraram a intenção de se ter um único

115

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espaço para amontoar as coleções da época, porém sem nenhum tipo de organização ao
qual se conhece nos museus modernos, pois o objetivo era exatamente ter um espaço
para depositar as curiosidades recolhidas pelo mundo, curiosidade essa propícia do
homem renascentista, que buscava uma realidade antropocêntrica nos ideais da
antiguidade clássica em contraposição ao teocentrismo exacerbado presente na Idade
Média. (SOUZA, 2009)

Ao final do século XV, há o resgate da palavra “Museu” em homenagem à


antiguidade clássica, tipicamente uma ação do ideal renascentista. No entanto, a
preocupação em organizar e separar as curiosidades mostra-se presente, ao longo do
tempo, quando há a divisão entre artes e curiosidades. As galerias, espaços maiores,
sendo as responsáveis pela exposição de obras-primas e os gabinetes, espaços pequenos
e particulares, que abarcavam as curiosidades. (SOUZA, 2009).

O museu como concebemos hoje é a junção dos ideais Renascentistas com


os ideais Iluministas do século XVIII. É, portanto, o resultado de um processo histórico
que vai desencadear, cada vez mais, na associação do museu como um espaço de
preservação da nação, para suprir as necessidades tais dos estados nacionais europeus.
Até o século XVIII, os estados eram monárquicos, religiosos, e a nação era identificada
com a realeza, de forma que não havia cidadãos e sim súditos da monarquia específica,
e o direito de sucessão ao trono era puramente divino e religioso, sendo, assim,
dispensável a preocupação com a legitimidade que o povo haveria de dar. (ALMEIDA,
2001)

A Revolução Francesa desorganizou o cenário, principalmente em relação à


legitimidade do governo, o qual não haveria mais sentido ser o divino. Os bens da Igreja
Católica passam para a mão do Estado e então, na França, o Louvre é convertido em
museu, difundindo, assim, princípios como a instrução da Nação e história. No século
XIX, o colecionismo andava de mãos dadas com o racionalismo vigente, tendo,
obviamente, um caráter cientifico e mais especializado do que os anteriores,
substituindo uma cultura de curiosidade por uma preocupação em organizar os artefatos
por período históricos. (ALMEIDA, 2001)

O espaço do Museu é um objeto de legitimação ideológica dos novos


Estados Nacionais, pois a institucionalização do museu o torna “patrimônio nacional”.

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O museu é um espaço propício para a construção de um passado nacional comum, por
conter fragmentos de cultura material da maioria dos estágios da civilização e mais
especificamente, da nação a qual se quer legitimar. A fabricação de lugares de memória
está presente em Napoleão, o qual, em 1803, rebatizou o Museu do Louvre como Museu
Napoleão, administrado pelo barão Dominique Vivant Denon, arqueólogo que
aconselhou Napoleão a escolher quais obras de artes, oriundas dos países conquistados,
deveria levar à Paris. Para Napoleão, havia a necessidade de glorificação não só do
presente, mas também dos “grandes vultos”, procurando na exaltação do passado a sede
de legitimidade nacional. A legitimidade nacional se dava em diversos âmbitos, como
por exemplo, a criação de bandeiras nacionais e hinos nacionais. A construção da nação
contava com diversos artistas, pintores e musicistas, todos trabalhando juntos para a
promulgação dos símbolos da nação no imaginário nacional através dos valores os quais
se queria difundir: civilização, progresso, ordem, urbanismo, conhecimento, entre
outros. (LEITE, 2011)

O Museu Real

À partir da chegada da corte portuguesa no Brasil, em 1808, inaugurou-se a


preocupação com a criação de instituições culturais e científicas, iniciativa própria para
o novo contexto de inserção na “modernidade” - ser moderna, fazer parte da corrida
pelo progresso, transformar-se em uma grande nação, desconstruir a imagem do
exotismo tropical, do atraso e da inércia -, que abarcou a formação do Museu Real,
Colégio Pedro II e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (PESAVENTO, 1997)

O Museu Real, fundado em 1818, localizado em uma casa adquirida pela


Corte Real no Campo de Santana no Rio de Janeiro, inicialmente, contou com a direção
de um professor da Academia Real Militar, José da Costa Azevedo. O Museu Real
continha diversas coleções, desde um acervo mineralógico até numismático, adquiridos
através do incentivo a expedições naturalistas estrangeiras e por algumas peças que a
Imperatriz Maria Leopoldina trouxe ao vir residir no Brasil ao casar-se com Dom Pedro
I. Leopoldina tinha aptidão para o colecionismo, propício para o século, trouxe
consigo Karl Friedrich von Martius e Johann Baptist von Spix, dois naturalistas
famosos, os quais promoveram diversas incursões no país. (MUSEU Real, 2014)

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Além da coleção em questão, dada a Independência em 1822, Dom Pedro I
ainda teve a oportunidade de adquirir o maior acervo egípcio da América Latina, em
1824, aonde um certo Nicolau Fiengo desembarcou no Brasil trazendo consigo diversas
peças egípcias, dentre elas estelas, estatuetas, papiros, múmias, amuletos, mobiliário,
entre outras. Dom Pedro I comprou tais relíquias pelo valor de cinco contos de réis,
posteriormente doadas ao Museu Real. Interesse esse pelo Egito Antigo o qual não se
limita somente ao primeiro reinado, pois Dom Pedro II, além de fazer viagens ao Egito
– escrevendo inclusive um diário sobre a viagem – ainda trouxe consigo, em 1876, um
presente do soberano local, Quediva Ismail: um esquife contendo a múmia da Sha-
Amun-Em-Su, uma cantora-sacerdotisa do templo de Amon, nomeada posteriormente
como “A Favorita do Imperador”. O presente não foi doado para o Museu Real,
somente faria parte do acervo após a transferência do Museu para o Palácio da Quinta
da Boa Vista. Até esse dia, a múmia fez parte da coleção particular do Imperador de pé
no seu gabinete. Entenda-se “gabinete” por “Gabinete de Curiosidades”, que consistia
em coleções particulares as quais eram abertas à elite para apreciação e estudo.
(BRANCAGLION JR, 2004)

A antiguidade clássica também teve espaço nesse cenário com a Imperatriz


Maria Thereza Christina, esposa de Dom Pedro II, a qual subsidiou diversas escavações
arqueológicas em Pompéia e Herculano, sítios arqueológicos recém-descoberto de
colônias romanas soterradas pelas larvas do Monte Vesúvio. A partir do dote trazido por
Thereza Christina e seus financiamentos arqueológicos, deu-se o atual acervo de
antiguidade clássica do Museu Nacional. (AVELLA, 2010)

Febre do momento, as duas colônias romanas, riquíssimas em esculturas,


afrescos, artefatos, mobiliários, entre outros objetos, foram utilizadas para basear o
estilo neoclássico europeu e, consequentemente, o brasileiro, vide os atuais patrimônios
tombados construídos no século XIX no Rio de Janeiro como o Hospício Dom Pedro II
– atual Instituto Philippe Pinel, erigido para ser um emblema da razão e da ciência, no
caso, da ciência médica – e o prédio da Academia Real Militar – atual Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro -, os quais
funcionavam como uma reação a situações novas, mas agindo como referência a
situações anteriores numa continuidade artificial (a antiguidade clássica), além de
também ressaltarem a ideia de civilização e ordem através da recorrência à arquitetura

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que fazia referência ao classicismo, que, desde meados do século XVIII, foi relacionado
a virtudes morais e cívicas calcadas na razão e no equilíbrio, bases para a consolidação
da civilização europeia, que o Brasil Império se via como herdeiro e continuador na
América. (LEITE, 2011)

Com a proclamação da República, o Museu Real passou para o Paço de São


Cristóvão na Quinta da Boa Vista, antiga residência da família real, tornando-se o
Museu Nacional em 1892. Todo o acervo do Museu Real, assim como os pesquisadores,
foi transferido para o novo local, sendo também incorporado à coleção o acervo
particular do antigo imperador. (MUSEU Real, 2014)

Dom Pedro II: “A Ciência sou eu”

O Imperador Dom Pedro II, definitivamente um homem ilustrado,


promoveu a criação de diversas instituições públicas ligadas à educação, arte e ciência
no Brasil durante o seu reinado, seguindo o processo do que era ser uma sociedade
civilizada no século XIX. Houve a criação do Colégio Pedro II, a faculdade de
Medicina, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e o Museu Nacional -
que funcionava como local de pesquisa e estudo de diversas pessoas, sendo a principal
instituição cientifica do século XIX no Brasil -, ou seja, não só houve a consolidação de
instituições existentes, como a fundação de uma ciência nacional. (SCHARWCZ, 1998)

Entre inúmeras fontes documentais, encontra-se um artigo nomeado de D.


Pedro II no Egypto resultado de uma conferência dada por Nicolas Debanné, que na
época ocupava o cargo secretário da Embaixada do Brasil no Egito, no Instituto
Egípcio, situado no Cairo. Esse artigo foi publicado na Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro n. 75 de 1912 e demonstra muito sobre a personalidade do
imperador envolta de cientificismo e racionalidade:

Fallando-vos de d. Pedro, não é de um extrangeiro que me occuparei, mas


sim de um dos vossos: por isso, exprimo-vos o meu reconhecimento pela
prova de confiança e amizade [...]. D. Pedro II foi o grande soberano de um
grande Estado; presidiu brilhantemente por mais de meio século aos destinos
de um paiz por si tão extenso quanto toda a Europa; foi o educador de um
povo que elle formou desde a infancia como nação, para deixa-lo, em plena
edade viril e em plena força, preparado para tornar-se o grande povo, que
hoje conhemos.
Mas d. Pedro também foi o “imperador homem de sciencias”, como o
denominava o seu amigo Pasteur; o “príncipe philosopho”, como appellidava
Lamartine; o neto de Marco Aurelio, como o chamava Victor Hugo,

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Membro de diversas sociedades scientificas, do Instituto da Franã e do
Instituto Egypcio, foi vosso colega ou de vossos predecessores; e, embora a
sua modéstia procurasse ocultar seustitulos, para ele era especial prazer
ostentar o ultimo; [...].1

Um homem que afirmava ser a ciência, não era menos do que um


simpatizante das ciências. Como um imperador itinerante, realizou múltiplas incursões
no Brasil e excursões pelo o mundo - tais visitas se inserem no contexto de construção
de uma identidade nacional -: ainda em 1840, explorou o território brasileiro com o
objetivo de conhecê-lo e fazer-se conhecer por seus súditos; já a partir de 1870, D.
Pedro II visita países no exterior, tais como a Espanha, França, Inglaterra, Alemanha,
Itália, Egito, Palestina e a Ásia Menor. Conhecido também por sua habilidade em
tradução era de fato um linguista de grande porte. D. Pedro II não era somente um
imperador ilustrado que se limitava à prática erudita de acumulação de conhecimento,
ele estava comprometido em produzir soluções para os problemas internos do Brasil,
visando o progresso. (SANTOS, 2002)

Através da participação direta ou do financiamento a expedições, pintores,


escultores, músicos, cientistas, D. Pedro II incentivou um projeto que lembrava muito o
vigente na Europa, com algumas exceções, o Imperador desejava o fortalecimento do
regime monárquico e do Estado por intermédio da unificação nacional, que também
seria uma unificação cultural. D. Pedro II e a elite política preocupavam-se com a
criação de uma memória nacional e a afirmação do sentimento de pertencimento a uma
nação comum. (SCHARWCZ, 1998)

E a função do Museu Real não foi diferente, pois colecionar objetos


significa – consequentemente – ressignificar, e foi exatamente isso que ocorreu com o
acervo do museu em questão. Ter artefatos tanto do território brasileiro, como de
civilizações antigas, reafirmava a concepção de que o museu era um espaço de
representação do passado como símbolo do poder, seja por assimilação do progresso de
tais civilizações, seja por imposição de conquista, ou seja, é uma fatídica
“musealização” da história – inventada ou não - do país. A afirmação de elementos de
glorificação da nação ou do Estado resgatando o passado para legitimá-la foi uma
característica vigente do século XIX europeu, copiado por D. Pedro II, porém com

1
Fragmento extraído de: DEBANNÉ, Nicolas. D. Pedro II no Egypto. Revista do Instituto Historico e
Geographico brasileiro, v. 75. 1912. p. [131]-157.

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algumas particularidades, como, por exemplo, a escola romântica presente no Brasil
destoante do puro neoclassicismo europeu – apesar da escola neoclássica estar
extremamente presente em edifícios para promulgar as concepções de ordem e
legitimação. (LEITE, 2011)

Como afirma Schwarcz e Dantas, o Museu possuía a função de reafirmar a


identidade de D. Pedro II como um homem das ciências, visto que o próprio tinha o
projeto pessoal de ser o exemplo de cientista e mecenas, considerando que se o país não
é configurado dentro as grandes civilizações, ao menos as possui, conseguindo receber
um lugar paralelo a elas e se igualando ao projeto Europeu de nação. Dessa forma, as
autoras concordam que o museu servia como espelho para D. Pedro II, pois reproduzia e
invertia sua imagem: reproduzia, pois de fato lhe fez igual ao estereótipo civilizacional
europeu o qual visava parecer; mas também invertia, de modo que dentro do museu o
que mais havia era representação. Entretanto, com sua imagem refletida ou invertida, o
imperador fazia de sua coleção uma espécie de teatro do seu poder. (SCHWARCZ e
DANTAS, 2008)

Considerações Finais

Os monarcas do século XIX foram grandes colecionadores e grande parte de


suas coleções particulares se reverteram em Museus Nacionais. Dom Pedro II, um
visível observador da Europa, não fez menos do que ser um grande colecionador de
artefatos tribais e outras curiosidades, de acordo com os estereótipos oitocentistas.
Colecionar e dar um novo significado aos objetos, no Brasil, demonstrou a aptidão pela
criação de identidades particulares e coletivas, assim como baseou o projeto de nação
pautado na alteridade do “eu” – civilizado e, portanto, igualado à Europa e – em
contraposição ao “outro” – não-civilizado ou bárbaro –.

Houve limites nessa pesquisa, de forma que se podem explorar outros


campos, como os ideais positivistas e românticos – a necessidade de preservar vestígios
do passado para o futuro, completando o processo histórico da humanidade - presentes
no Brasil no século XIX e uma discussão mais profunda sobre como as elites brasileiras
participavam do espaço museal e como contribuíam para o projeto nacional. Um tema
que poderá ser desenvolvido posteriormente gira em torno da influência positivista para

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a organização do museu, de modo que a vontade de colecionar diversos estágios da
civilização é impulsionada pelo mito do progresso.

BIBLIOGRAFIA:

ALMEIDA, Cícero Antônio Fonseca de. O “Colecionismo Ilustrado” na Gênese dos


Museus Contemporâneos. Anais do Museu Histórico Nacional, v. 33, 2001.

AVELLA, Aniello Angelo. Teresa Cristina Maria de Bourbon, uma imperatriz


silenciada. In: Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade
– ANPUH/SP. 2010.

BENNETT, Tony. The birth of the museum: history, theory, politics. London:
Routledge, 1995.

BRANCAGLION JR., Antonio. As Coleções Egípcias no Brasil. In: BAKOS, Margaret


(org.). Egiptomania – O Egito no Brasil. São Paulo: Paris Editorial, 2004.

DANTAS, Regina Maria Macedo Costa. A Casa do Imperador: Do Paço de São


Cristóvão ao Museu Nacional. Dissertação (Mestrado em Memória Social) –
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação
em Memória Social, 2007.

DEBANNÉ, Nicolas. D. Pedro II no Egypto. Revista do Instituto Historico e


Geographico brasileiro, v. 75. 1912. p. [131]-157.

LEITE, Beatriz. A arte como expressão da glória: Napoleão Bonaparte. São Paulo:
Altamira editorial, 2011.
LOPES, Maria Margaret. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as
ciências naturais no século XIX. São Paulo: Hucitec, 1997.
__________________ Museu, História, Educação, e Ciências – Contradições e
Exclusões. Ciências e Ensino, São Paulo, n. 10, Junho de 2001.

LOPES, Maria Margaret e MURRIELLO, Sandra Elena. Ciências e educação em


museus no final do século XIX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 12
(suplemento), p. 13-30, 2005.

MUSEU Real. In: Dicionário histórico-biográfico das ciências da saúde no Brasil


(1832-1930). Disponível em:
http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br/iah/pt/verbetes/musnac.htmAcesso em:
12 de maio 2014.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Exposições Universais: espetáculos da modernidade do


século XIX. São Paulo: Hucitec, 1997.

SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Políticas da memória na criação dos museus


brasileiros. Cadernos de Sociomuseologia - Lisboa, Universidade Lusófona de
Humanidades e Tecnologia, n. 19, 2002.

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______________Os museus Brasileiros e a constituição do imaginário nacional.
Sociedade e Estado, vol.15, no.2, 2000.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos


trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

SCHWARCZ, Lilia Moritz e DANTAS, Regina. O Museu do Imperador: quando


colecionar é representar a nação. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São
Paulo, n. 46, fev. 2008.

SOUZA, Helena Vieira Leitão. Colecionismo na Modernidade. In: XXV Simpósio


Nacional de História – ANPUH. Fortaleza, 2009.
TRIGGER, Bruce. História do Pensamento Arqueológico. São Paulo: Odysseus
Editora, 2004.

VERGARA, Moema de Rezende. A Revista Brasileira: vulgarização científica e


construção da identidade nacional na passagem da Monarquia para a República.
Tese (Doutorado em História) - Departamento de História, Pontifícia
Universidade Católica, Rio de Janeiro, 2003.

Artigo recebido em: 9 de agosto de 2013


Aprovado em: 11 de setembro de 2013

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NEONAZISMO ONLINE: VALHALLA88 E CIUDAD LIBERTAD DE
OPINIÓN, ESTRATÉGIAS E APROPRIAÇÕES DO CIBERESPAÇO
(2000-2005)

Monica da Costa Santana*

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar as principais estratégias de


atuação feitas pelos sítios eletrônicosValhalla88
(http://www.libreopinion.com/members/sul88/valhalla88.htm) do Brasil e o Ciudad
Libertad de Opinión (www.libreopinion.com), da Argentina, durante os anos de 2000 a
2005. Estes sítios, criados respectivamente em 1997 e 1999, enquanto estiveram em
atividade difundiram por meio do ciberespaço diversas mensagens de conteúdo
intolerante e preconceituoso e incitaram direta ou indiretamente a prática de ações
violentas. Desta maneira, investigamos como grupos neonazistas têm se apropriado do
ciberespaço para divulgarem suas ideias políticas. Nosso estudo será realizado tomando
como referência a análise comparativa, partindo das reflexões produzidas por Marc
Bloch. Desta forma, buscaremos problematizar as realidades estudadas a partir das
semelhanças e diferenças percebidas em cada um dos grupos analisados. Assim, ao
tentarmos traçar um perfil desses grupos na tentativa de entender como se comportam e
atuam no ciberespaço esperamos contribuir para os estudos sobre a atuação dos grupos
neonazistas no século XXI.

PALAVRAS-CHAVE: ciberespaço; neonazismo; História Comparada

ABSTRACT: This study aims to analyze the main action strategies made by electronic
sites Valhalla88 (http://www.libreopinion.com/members/sul88/valhalla88.htm) of Brazil
and Ciudad Libertad Opinión (www.libreopinion.com) of Argentina, during the years
2000-2005. These sites, created respectively in 1997 and 1999, while they were in
activity spread through cyberspace several messages intolerant and bigoted content, and
directly or indirectly incited the commission of violent acts. Thus, we investigated how
neo-Nazi groups have appropriated the cyberspace to disseminate their political
ideas.Our study will be conducted with reference to comparative analysis, departing
from the reflections produced by Marc Bloch . Thus, we will seek to problematize the
realities studied from perceived similarities and differences in each of the groups. Thus,
when we try to draw a profile of these groups in an attempt to understand how they
behave and act in cyberspace hope to contribute to the studies on the role of neo-Nazi
groups in the XXI century.

KEYWORDS: cyberspace; neo-Nazism; Comparative History

***
*
Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES). Integrante do Laboratório de Estudos Históricos e Midiáticos das Américas e da
Europa (LEHMAE). E-mail: monica.ifcs@gmail.com. Orientador: Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira
(UFRJ).
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Introdução
Se antes havia alguma dúvida a respeito das possibilidades oferecidas pela
Internet para o estabelecimento da comunicação, hoje em pleno século XXI parece cada
vez mais consolidada a ideia de que ela revolucionou não só as formas de comunicação
como também de informação.
“As sociedades e culturas diferentes, que haviam começado suas jornadas
históricas separadamente, [agora estão] viajando juntas na mesma ‘via expressa
deinformação’” (BRIGGS; BURKE, 2006, p. 267). Esta informação tem sido um dos
principais elementos da era digital. O sucesso da Internet talvez possa ser explicado
através das suas características, esta ferramenta de comunicação que teve suas “origens
na física e nas políticas de defesa durante o período da Guerra Fria” (BRIGGS;
BURKE, 2006, p. 300) permite àqueles que têm acesso aos seus serviços utilizá-las de
diversificadas maneiras.
A versatilidade e as facilidades de uso oferecidas pela internet a transformaram
em uma ferramenta indispensável para o homem no século XXI. De acordo com Manuel
Castells, “a Internet, [...] tornou-se a alavanca na transição para uma nova forma de
sociedade – a sociedade de rede –, e com ela para uma nova economia” (CASTELLS,
2003, p. 08). A web inova as maneiras de relacionamentos estabelecidas entre os
homens e a comunicação passa a adquirir aspectos peculiares. A vida humana parece
estar sendo gerenciada pelos novos instrumentos de telecomunicação e informação:
As relações entre os homens, o trabalho, a própria inteligência
dependem, na verdade, da metamorfose incessante de dispositivos
informacionais de todos os tipos. Escrita, leitura, visão, audição,
criação, aprendizagem são capturados por uma informática cada vez
mais avançada. (LEVY, 1993, p. 07)

Assim, cada vez mais entramos no ambiente virtual estabelecemos


relacionamentos, negócios, construímos perfis, buscamos informações ou participamos
da informação quando opinamos sobre determinada matéria ou tema nas redes sociais.
O ciberespaço1 tem possibilitado diversas formas de atuação humana. Sendo conhecida
por não possuir proprietários ela está aberta para qualquer tipo de usuário. Este aspecto
faz do ciberespaço um ambiente propício para a ação de grupos extremistas.

1
De acordo com Pierre Levy, o ciberespaço é “o novo meio de comunicação que surge da interconexão
de mundial de computadores. O termo especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação
digital, mas também o universo oceânico de informação que ele abriga, assim como os seres humanos que
navegam e alimentam esse universo”. Cf. LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São
Paulo: Ed. 34, 1999, p. 17.
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A popularização da internet a partir da década de 1990, associada à falta de uma
legislação mais rígida para impedir que qualquer mensagem seja divulgada através da
web transformou este ambiente em um dos principais meios de difusão de ideias
extremistas por grupos identificados como neonazistas. O baixo custo de manutenção, a
aparente facilidade de uso e o benefício do anonimato que a Internet oferece aos seus
usuários podem ser alguns dos fatores que transformaram esse espaço virtual numa
alternativa para esses grupos organizarem seus movimentos.
Neste trabalho analisaremos dois sítios eletrônicos que durante o período em que
estiveram em atividade no ciberespaço, além de difundirem mensagens de conteúdo
intolerante e preconceituoso incitando direta e/ou indiretamente a prática de atos
violentos também ofereceram diversos materiais (textos, imagens, cartazes, postagens e
símbolos) que se configuraram como verdadeiros instrumentos de doutrinação.
Nesse estudo analisaremos os sítiosValhalla88 e o Ciudad Libertad de Opinión.
Para tanto, fazemos uso da metodologia comparativa por considerarmos esta uma
proposta metodológica que nos proporciona a investigação simultânea de um mesmo
fenômeno que atravessa duas realidades nacionais distintas abrindo espaço para a
formulação de questões e problemas resultantes desta comparação.

História Comparada: limites e possibilidades metodológicas

A História Comparada se apresenta como um novo campo histórico em


contraposição a velha historiografia nacionalista que esteve bem acomodada ao contexto
nacional dos Estados-nações até, aproximadamente, meados do século XX. Sendo vista
inicialmente com desconfiança pelos historiadores profissionais acostumados com as
tradicionais práticas historiográficas, a História Comparada vem aos poucos ganhando
espaço no ambiente acadêmico.
As discussões em torno do texto intitulado “Por uma história comparada das
sociedades europeias”, escrito por Marc Bloch em 1928, expõem as preocupações
voltadas para uma possível reformulação nos trabalhos historiográficos. A proposta
seria levar para o ambiente acadêmico o debate sobre uma nova maneira de olhar as
pesquisas de História. Desse modo, a História Comparada é apresentada como
alternativa para libertar as análises históricas dos limites nacionais, abrindo, de acordo

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com José D’Assunção Barros, um mundo de possibilidades para as investigações nesta
área.
Contemporânea de um contexto social e político em que os nacionalismos
exacerbados direcionam as nações para o interior de seus territórios, a História
Comparada se apresenta como uma oportunidade ímpar para redirecionar o olhar sobre
outras realidades e ajudar a estabelecer diálogos entre sociedades distintas.
Cientes que “comparar em História significa discutir dois ou mais fenômenos
históricos sistematicamente a respeito de suas similaridades e diferenças de modo a se
alcançar determinados objetivos intelectuais” (KOCKA, 2003, p. 01) utilizamos a
metodologia comparativa em nosso trabalho de acordo com o que Marc Bloch chama de
“História Comparada Problema”, sendo assim “uma história que se constrói em torno de
problematizações específicas, e não de curiosidades ou meras factualidades” (BARROS,
2007, p. 06).
Partindo do princípio que a comparação amplia o campo de visão do pesquisador
e o ajuda na construção de problemas bem como em soluções criativas para os
questionamentos levantados, a análise comparativa nos permite pensar questões ligadas
às singularidades e similaridades como também nos proporciona estudá-las de forma
conjunta, percebendo as possíveis ligações estabelecidas entre elas. Desta maneira, de
acordo com José D’Assunção Barros, a comparação como método historiográfico
oferece:
[...] àquele que a utiliza determinadas potencialidades e certos limites,
forçando-o antes de mais nada a definir o que pode e o que não pode
ser comparado, a refletir sobre as condições em que esta comparação
pode se estabelecer, a formular estratégias e modos específicos para a
observação mais sistematizada das diferenças e variações,
acrescentando-se ainda a necessária reflexão de que alguns tipos de
objetos permitem este ou aquele modo de observação e de análise, e
não outro. (BARROS, 2007, pp. 5-6)

Dessa maneira, torna-se imprescindível para a realização da análise comparativa


a definição sobre “o que comparar” e “como comparar”. Para Marc Bloch há dois
caminhos que podem ser percorridos pelos historiadores que adotarem o método
comparativo em seus estudos. O primeiro caminho, mais abrangente ocorre quando:

[...] se eligen sociedades separadas en el tiempo y el espacio por


distancias tales que las analogias observadas en uma e outra parte,
entre un fenómeno e otro, no puedan explicarse, evidentemente, ni por

127

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influencias mutuas ni por comunidad de origen. (BLOCH, 1963, p.
65)

Neste caso, não havendo elementos que simultaneamente influencie as


sociedades examinadas o que se busca com este tipo de comparação é a observar as
analogias feitas através da formulação de hipóteses. No entanto, este tipo de análise está
sujeito a alguns riscos, entre eles podemos citar as falsas analogias e o anacronismo. Ou
seja, o transplante “de um modelo válido para uma época ou espacialidade social para
um outro contexto histórico onde o modelo não tenha sentido real” (BARROS, 2007, p.
11) poderá corresponder apenas a uma ficção construído pelo próprio historiador.
Outro caminho apontado por Bloch para a realização da análise comparativa
refere-se ao estudo feito paralelamente entre sociedades próximas no tempo e no
espaço, no qual estão “constantemente influídas unas por las otras, y su sincronismo, a
la acción de las mismas grandes causas, provenientes, almenos parcialmente, de un
origen común (1963, p. 66). Através deste caminho é possível analisarmos duas
realidades por meio da iluminação recíproca e chegarmos a conclusões menos
hipotéticas e mais precisas sobre as questões levantadas (BLOCH, 1963).
É evidente que o método comparativo não exime o historiador de cometer
equívocos como também não deve ser entendido como a única fórmula para a realização
do trabalho histórico. No entanto, a comparação se apresenta como uma alternativa
interessante para a análise historiográfica ao ajudar o historiado a sair de sua zona de
conforto à medida que torna a pesquisa menos provincial “abrindo perspectivas com
consequências para a atmosfera e estilo da profissão” (KOCKA, 2003, pp. 39-44) e
desta maneira, lhe permite enxergar problemas e formular questionamentos de outro
modo não percebido.

Valhalla88 e Ciudad Libertad de Opinión: estratégias de atuação

Criados respectivamente em 1997 e 1999 os sítios Valhalla88 e Ciudad Libertad


de Opinión durante o período em que estiveram em atividade mantiveram uma intensa
relação de cooperativismo estabelecida através de links que ambos mantinham em suas
principais páginas virtuais. O intuito era promover a divulgação simultânea de seus
serviços tanto para os internautas que visitassem o Valhalla quanto o Libertad de
Opinión.

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Estes sítios chamam atenção pelos serviços e materiais que disponibilizaram no
ciberespaço. Entre esses materiais foi possível encontrar diversas postagens
(mensagens) com referências claras ao antissemitismo, o preconceito racial e a
xenofobia. Ao longo desse estudo analisaremos algumas dessas postagens.
O portal argentino Libertad de Opinión criado por Alejandro Carlos Biondini
sob os princípios de Deus, Pátria, Justiça Social e Família se define como uma
“Ciudad Nacionalista” e, de acordo com seu idealizador, sua criação tem como
finalidade defender a liberdade de expressão na Internet, abrindo suas portas e
oferecendo hospedagem gratuita a camaradas e organizações que têm seus sites ou
atividades barradas pelo que eles denominam de pressão mafiosa desempenhada por
determinados grupos contrários as suas ideias políticas.2
A hospedagem gratuita oferecida pelo servidor argentino ocorreu de maneira
intensa entre os anos de 2000 a 2005. Entre os sites hospedados pelo Libertad de
Opinión podemos citar: Catalunya NS –http://www.libreopinion.com/members/jomp/,
Movimiento Nacionalista de Venezuela–http://www.libreopinion.com/members/145/,
Movimiento Nacional Socialista Despierta Perú –
http://www.libreopinion.com/members/mnsdp, Orden Lusa –
http://libreopinion.com/members/ordemlusa/, Racial Pride (USA) –
http://www.libreopinion.com/members/racialpride/usa.htmle o sítio brasileiro
Valhallahttp://libreopinion.com/members/sul88/valhalla88.htm, posteriormente
conhecido por Valhalla88.
O principal lema usado no Ciudad Libertad de Opinión era a defesa pela
liberdade de expressão. Registrado no próprio nome do servidor argentino, estas
palavras frequentemente evocadas por Biondini em seus textos, discursos e editoriais
também se transformaram em sua bandeira de luta política e encontraram no ambiente
virtual espaço para serem difundidas:
Que nadie se espante por esta ola de pensamientos libre que comieza a
surcar la red. O mejor dicho, que sólo se espante los represores del
pensamiento y de las libertades ajenas, pues seremos, pese a quien
pese, un verdadero factor de poder en la lucha contra la intolerancia y
el terrorismo sionista, y a favor de la independencia definitiva de
nuestro Pueblo.3

2
A declaração dos princípios divulgada pelo Libertad de Opinión pode ser encontrada através do link:
http://web.archive.org/web/20000305233327/http://libreopinion.com acesso em 11 de abril de 2012.
3
Ciudad Libertad/Libre Opinión – Inauguración. Disponível em:
http://web.archive.org/web/20000126105831/http://libreopinion.com acesso em 11 de abril de 2012.
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Se pautando em princípios democráticos, Biondini utilizou a web para propagar
suas ideias políticas de caráter duvidoso. Durante os anos de 200 a 2005 manteve uma
intensa e articulada rede de contatos com sítios que pregavam a violência e intolerância
ao outro (este outro era representado na figura do judeu, estrangeiro ou negro).
No universo virtual, um território sem donos e sem fronteiras, no qual as
informações e as pessoas que navegam neste espaço se tornam uma só coisa, a liberdade
de expressão/pensamento atinge seu ponto máximo. É neste lugar sem caminhos fixos
que “os transgressores não deixam pegadas [...] e, cada um é uma realidade tão
verdadeira como as sombras da caverna de Platão” (ALEXANDRE apud GIBSON,
2002, p. 259). Ao lançar-se no ciberespaço, Alejandro Biondini mostrava conhecer os
benefícios de estar neste ambiente. Segundo ele, “querer prohibir definitivamente algo
en Internet, es como querer teñir el océano con un frasco de tinta, es un acto de
soberba y majestuosa imbelicidad”.4 A clareza de que o ciberespaço possui dimensões
infinitas possibilitou a Biondini construir uma verdadeira cidade virtual à serviço da
extrema-direita neonazista.
O Valhalla88, um dos sítios hospedados pelo portal argentino, por
aproximadamente uma década de atividade na web disponibilizou uma grande
quantidade de materiais que ajudaram a alimentar o ódio e a violência entre seus
simpatizantes. Denominando-se como “o mais ativo site NS da América do Sul” o sítio
brasileiro incentivou jovens a organizarem grupos de militância denominados por eles
como “células NS”, no intuito de difundirem as ideias políticas e ampliarem seu o
espaço de atuação.
Uma das estratégias utilizadas pelo Valhalla era a divulgação de materiais com
instruções de como organizar grupos extremistas em diferentes cidades brasileiras.
Tendo em vista as possíveis dificuldades encontradas pelos jovens para efetivarem sua
militância, eles eram instruídos desde o que fazer para consolidar o grupo até como se
comportar diante de uma possível abordagem policial.
O primeiro passo sugerido pelo Valhalla para a consolidação de células de
militância era a “organização de um grupo de discussão [que a princípio, de acordo com
os idealizadores do sítio], não se trata de fazer política, somente estabelecer um

4
KALKI (Alejandro Biondini). Sólo prohíben los débiles. Revista Libertad de Opinión. Ano I, nº 5 –
dezembro de 1997. Disponível em:
http://web.archive.org/web/20010219003143/http://www.libreopinion.com acesso em 17 de junho de
2013.
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ambiente em que as ideias se mantenham”.5 A célula deveria ter no máximo 05
membros ou, se preferisse, o indivíduo poderia agir sozinho se tornando o que eles
denominavam de “lobo solitário”. Assim, caso fossem pegos não comprometeriam a
ação do movimento. Para o Valhalla88 “o futuro do movimento depende do fanatismo,
mesmo da intolerância, com a qual seus adeptos o defenderem como a únicacausa
justa”.6
Diferentemente do Valhalla, o Ciudad Libertad de Opinión além de servir como
um ambiente de busca e divulgação de sítios neonazistas também se configurou como
um portal informativo. Por meio do Libertad de Opinión, Alejandro Biondini publicou
informações ligadas ao contexto político da Argentina e, fazendo uso do ambiente
virtual vociferava suas críticas às lideranças, não apenas da Argentina, como também de
outros países latino-americanos, a exemplo de Brasil, Venezuela e Bolívia.
Alejandro Carlos Biondini um antissemita declarado, desde sua juventude
participou de movimentos políticos, sendo membro da juventude peronista e
posteriormente do Partido Justicialista. Biondini nunca escondeu sua simpatia pelo
nazismo e não foi responsável apenas por idealizar o portal Ciudad Libertad de
Opinión, mas também pelo Partido Nuevo Triunfo (P.N.T).7 Por meio desse partido
tentou, sem sucesso, concorrer nas eleições para a presidência do ano de 2003. Ao criar
o portal Biondini tinha entre outras pretensões divulgar seu partido político.
Apesar de apresentarem estratégias de abordagem diferenciadas tanto o sítio
brasileiro quanto o argentino mantinham um espaço de contato com seus membros e

5
As instruções de como organizar uma célula de militância estão disponível através do link:
http://web.archive.org/web/20020221142208/http://www.libreopinion.com acesso em 06 de setembro de
2012.
6
As formas de atuação foram disponibilizadas pelo Valhalla88 através do link:
http://web.archive.org/web/20031028073727/http://libreopinion.com/members/sul88/valhalla88.htm
acesso em 06 de setembro de 2012.
7
A criação do Partido Nuevo Triunfo teve como motivação o rompimento de Biondini com o Partido
Justicialista (Peronista) em 1989. Neste ano, Carlos Menem o representante do peronismo, assume o
poder na Casa Rosada e, de acordo com Alejandro Biondini, “[...] ya en el discurso de la victoria hace un
giro de 180 grados. Cuando asume, se transforma en el Judas del Peronismo [...]”. A divergência de
ideais leva Kalki a criar em 1990 o Partido Nacionalista de los Trabajadores (P.N.T.). No ano de 1991 é
acrescentado o termo Socialista ao nome do Partido que passa a ser identificado por Partido Nacionalista
Socialista de los Trabajadores. A base política que originou o Partido dos Trabalhadores surgiu em 04 de
julho de 1983 com a criação da revista “Alerta Nacional”. Mas, seria em 02 de abril de 1984 que a
“Agrupación Justicialista Alerta Nacional” faria sua apresentação oficial. Nos anos seguintes o partido
mudou de nome e passou a se chamar Partido Nuevo Triunfo. Cf. SANTANA, Monica da Costa.
Intolerância digital: Cibercultura e extrema-direita no site argentino Ciudad Libre Opinión (1999-2009).
(Monografia). Universidade Federal de Sergipe (UFS) – São Cristóvão, 2011, p. 28.
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simpatizantes. O Valhall88 estabelecia contato por meio da Voz de Odin8 já o Libertad
de Opinión realizava este contato através do Libro de Visitas.
A seguir apresentamos uma postagem feita através da Voz de Odin por um
simpatizante do Valhalla:

Sou decendente de duas famílias tradicionais europeias, uma


portuguesa por parte paterna à qual possui um festival anual e uma
árvore genealógica atualizada; e a outra italiana e austríaca por parte
materna à qual possui um livro que foi lançado esse ano sobre o
desbravamento brasileiro à partir de meu patriarca europeu. Meu tio
foi o primeiro a quebrar nossa linhagem pura, loiro de olhos azuis
casou-se com uma negra (todas suas irmãs também casaram-se com
brancos) e teve duas filhas mestiças que passaram a pertencem à nossa
família e acabaram com um ramo da família. Meu primo largou sua
namorada, nascida na Alemanha e que passou sua infância na Itália
antes de vir para o Brasil, para trocá-la por uma mestiça. Minha irmã
de pele muito branca e olhos claros já namorou um mestiço, um
amarelo e agora um mulato. Estou presenciando a decadência de
minha família, já cansei de argumentar sobre os males disso, o que
ainda posso fazer para preservar nossa linhagem caucasiana?
Resposta: Lamentavelmente o plano judaico de "miscigenar e
conquistar" parece estar funcionando muito bem, as pessoas já não
possuem um mínimo senso de identidade racial. A única coisa que
você pode fazer para preservar sua linhagem é jamais se misturar com
outras raças e educar seus filhos desde cedo para que eles possuam
orgulho de sua raça e saibam que tem um dever para com a
preservação desta.9

Nesta postagem, publicada em 2004, podemos perceber a indignação de um


jovem com os relacionamentos estabelecidos por seus familiares. Sua maior
preocupação é preservar a “linhagem caucasiana” da qual diz ser descendente, sua fala
pode ser identificada com as ideias de purificação racial difundidas pelo nazismo (1933-
1945). Este jovem demostra uma clara decepção ao ver seus parentes próximos se
relacionarem com pessoas que, segundo ele, são “mestiço, amarelo e mulato” e se

8
O nome Odin faz referência a um Deus mitológico – mitologia germânica. “Deus incansável que sempre
que mais combates, mais força, mais prazeres, mais mulheres; quer impor a todos e a tudo a lei de sua
vontade; à procura do poder absoluto; o arquétipo de um Fausto. É também o deus dos mortos, que
percorre os campos de batalha as vítimas às Valquírias. Símbolo da violência cega: viaja nas dobras de
um manto azul-noite, com um grande chapéu escondendo o seu rosto; só tem um olho e aparece
inesperadamente”. Cf. CHEVALIER, Jean et al. Dicionários de Símbolos: mitos, sonhos, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números. 18 ed. Trad de Vera da Costa e Silva. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2003.
9
Esta postagem está disponível no link:
http://web.archive.org/web/20040603041404/http://www.libreopinion.com/members/sul88/valhalla.htm
acesso em 08 de novembro de 2012.
132

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mostra determinado a fazer o que for preciso para evitar que sua família perca a sua
“linhagem caucasiana”.
Esta postagem nos mostra um explícito posicionamento intolerante e
preconceituoso em relação a pessoas que por não possuírem determinadas
características físicas (loiras, olhos azuis, pela clara) são vistas com indiferença e, em
alguns casos, com hostilidade.
As ideias do jovem responsável pela postagem são alimentadas pelo webmaster
do Valhalla que responde a sua mensagem. Para este, a preservação racial é algo que
deve ser ensinado desde a primeira infância e incentiva o jovem a não se relacionar com
pessoas que não possuam as mesmas características físicas que as suas. Aqui podemos
perceber uma clara aprovação e estímulo a um comportamento preconceituoso e
intolerante. Esta postagem foi disponibilizada no sítio brasileiro podendo ser acessada
por qualquer pessoa que visitasse o sua página virtual. Deste modo, não só este jovem
como outros (que possivelmente leram a postagem) foram induzidos e estimulados a
praticarem a intolerância racial.
Em outra postagem, desta vez feita no Libro de Visitas do Libertad de Opinión,
um jovem entusiasmado com a criação do portal argentino, expressa sua satisfação com
a possibilidade de eliminar o que ele denomina de “inimigos”:
Saludos Camaradas:
En esta, la más trágica hora una sola consigna se alza para indicarnos
el camino: el judaismo y la izquierda son el enemigo.
Judaísmo+izquierdismo=degradación social y droga. La lucha es dura
pero si todos nos congregamos en torno al PNT nuestra lucha se hara
sentir. Sieg heil, mein Führer!10

Durante o período em que os regimes totalitários estiveram no poder a


comunidade internacional foi testemunha de uma das mais violentas perseguições
realizadas sobre o povo judeu. Apesar de não terem sidos os únicos as sofrerem com as
perversidades desses regimes (principalmente no caso alemão onde a perseguição aos
judeus ocorreu com maior intensidade) os judeus receberam o desagradável título de
“inimigos da nação”.
Nesta postagem podemos perceber que a ideia de “inimigos da nação”
relacionada aos judeus continua sendo propagada e sua imagem vinculada de forma

10
Esta postagem está disponível no link:
http://web.archive.org/web/20001021162927/http://libreopinion.com/ acesso em 08 de novembro de
2012.
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pejorativa à decadência da sociedade. O entusiasmo apresentado pelo jovem com o
Partido Nuevo Triunfo mostra que apesar de não obter os resultados satisfatórios nas
disputas eleitorais, Alejandro Biondini conseguiu atrair jovens dispostos a lutarem por
sua causa política, mesmo que esta tenha sido construída a partir de práticas de
intolerância, antissemitismo e violência.
Em ambos os sítios eletrônicos pudemos encontrar referência ao judeu. No sítio
brasileiro,ele aparece não apenas referenciado em textos revisionistas como também
representado em diferentes tipos de imagens. Em uma das charges publicadas pelo
Valhalla em 2005, encontrada através do link Cartoons, um homem branco, conforme
visualizado na própria imagem, é subornado por um judeu:

Figura 1: Charge disponível publicada no Valhalla88 através do link cartoons em 2005.


Disponível em http://web.archive.org/web/20061108142941/http://www.valhalla88.com/cartoons/ acesso
em 22 de setembro de 2011.

Sempre com aparência deformada e em busca de dinheiro o judeu é apresentado


como o mal que oprime o homem branco. Para tanto, se utiliza da “farsa do holocausto”
para justificar suas ações. No texto Os mentirosos números de Auschwitz encontrado no
sítio em 2005 por meio do link Artigo, o holocausto é descrito como uma farsa/mentira
que foi inventada no intuito de extorquir o povo alemão:

A exploração dessa farsa/mentira, por incrível que pareça, rende


bilhões de dólares, até hoje, aos criadores/inventores/exploradores do
chamado ‘holocausto judeu’, pagos pela Alemanha - sob ameaças de
boicotes comerciais e outras punições, por parte e outras punições, por
parte dos vencedores - pois nenhum dos 68 países que estiveram em
guerra com a mesma assinou qualquer tratado de Paz até agora, fato

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que a torna totalmente submissa e que nos leva a taxa-la de ser uma
Colônia Sionista.11

Descritos como mentirosos, oportunistas e trapaceiros, os judeus são mostrados


pelo Valhalla88 como uma ameaça a supremacia branca, sendo eles responsáveis por
um grande plano de dominação mundial. Desta forma, eles se utilizam o holocausto
(também chamado de “holoconto” pelos membros do site) que, segundo os criadores do
Valhalla, é uma grande invenção criada com o objetivo de coagir a sociedade para
conseguirem o que desejam.
No Libertad de Opinión, a postagem de imagensfazendo alusão a judeus,
também eram uma prática comum. Além disso, Alejandro Biondini frequentemente
fazia referência ao judeu para expressar sua indignação a respeito dos abusos que,
segundo ele, o povo judaico tem cometido sobre os direitos humanos. De acordo com
Biondini:
Los judíos cuentan con el curioso diploma de tener el único Estado en
el mundo que ha legalizado la tortura, que ha sido condenado por
genocidio en numerosas oportunidades por las Naciones Unidas, y que
no obstante, sigue cobrando millonarias indenizaciones por otro
genocidio que nunca existió.12

Desta maneira, Alejandro Biondini alicerçava seus discursos, a partir de um


antissemitismo que ele buscava justificar por meio de uma inversão dos elementos
vítima – carrasco, colocando o povo judaico como representante do segundo elemento.
Ao terminar sua declaração com a frase: “sigue cobrando millonarias indenizaciones
por otro genocidio que nunca existió”, podemos perceber as inclinações de Biondini às
teorias defendidas pelo revisionismo histórico.
Ambos os sítios encontraram caminhos distintos para lançarem-se no universo
digital, em cada um desses ambientes encontramos estruturas bem organizadas e
serviços variados que permitiam a qualquer pessoa ou grupo as utilizarem para a
construção de seus próprios movimentos. Fica evidente que as novas tecnologias da
informação, principalmente a Internet, têm se transformado em um dos principais
espaços de reorganização da extrema direita neonazistas no século XXI.

11
“Os mentirosos números de Auschwitz”. Texto encontrado no site Valhalla88 através do link artigos.
Disponível em: http://web.archive.org/web/20050516002940/http://www.valhalla88.com acesso em 26 de
junho de 2012.
12
BIONDINI, Alejandro Carlos. “Sólo prohíben los débiles”, 1997. Libertad de Opinión. Disponível em:
http://web.archive.org/web/20010219003143/http://www.libreopinion.com acesso em 17 de junho de
2013.
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Conclusão

Desde a criação da Internet e sua consequente popularização, presenciamos seu


desenvolvimento até o momento em que ela se tornou praticamente o tecido de nossas
vidas (CASTELLS, 2003, p. 07). As possibilidades de uso desta ferramenta parecem
não ter limites e abrem espaço para a atuação de diversas pessoas, grupos ou
movimentos políticos/sociais com diversas finalidades. É nesta seara de possibilidades
que grupos neonazistas têm agido com aparente sucesso na construção de ambientes
virtuais nos quais podem organizar seus eventos e difundir mensagens diversas.
A partir dos anos de 1990 grupos neonazistas intensificaram suas ações em
diversos países por todo o mundo. O caráter racista e xenofóbico desses movimentos
constitui, conforme Flávio Koutzii, uma ameaça para as sociedades multiétnicas
(KOUTZII, 2000, p. 07). Protegidos por trás de seus computadores, sendo que o
formato apresentado pelo ciberespaço “garante o anonimato, enquanto que a extensão
permite alcançar milhares de pessoas ao mesmo tempo, num tempo menor do que o
necessário com outro veículo o que exponencializa esta forma de socialização” (DIAS,
2007, p. 37), os neonazistas, apesar de não contarem com um grupo numeroso de
seguidores, são significativamente ativos.
Livres nas ruas e anônimos no ciberespaço os neonazistas navegam pelas ondas
ópticas da Internet reorganizando seus movimentos e disseminando o ódio. O crescente
uso das tecnologias da informação à serviço de grupos extremistas tem sido cada vez
mais comum e, como aponta Manuel Castells, sendo a Internet “a extensão da vida
como ela é, em todas as suas dimensões e sob todas as suas modalidades” (2003, p.
100), é preciso estar atentos as silenciosas, no entanto, perigosas manifestações desses
grupos.

FONTES:
Ciudad Libertad de Opinión (www.libreopinion.com)

Valhalla88 (http://www.libreopinion.com/members/sul88/valhalla88.htm)

Links acessados
http://web.archive.org/web/20000305233327/http://libreopinion.com acesso em 11 de
abril de 2012.

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http://web.archive.org/web/20031028073727/http://libreopinion.com/members/sul88/va
lhalla88.htm acesso em 06 de setembro de 2012.

http://web.archive.org/web/20040603041404/http://www.libreopinion.com/members/sul
88/valhalla.htm acesso em 08 de novembro de 2012.

http://web.archive.org/web/20001021162927/http://libreopinion.com/ acesso em 08 de
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27 de setembro de 2012 às 14h04min.

Artigo recebido em: 20 de agosto de 2013


Aprovado em: 07 de outubro de 2013
139

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Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


RESENHA DE: ROBERTS, Andrew. A tempestade da guerra: uma
nova história da Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Record,
2012, 814 p.
João Arthur Ciciliato Franzolin*

Não são poucos os historiadores que consideram os eventos da Segunda Guerra


Mundial, além de suas causas, como suficientemente estudados. De fato, a quantidade
de trabalhos sobre o tema, acadêmicos ou não, cresce a cada ano. No entanto, poucos
são aqueles que distinguem-se do conjunto, o que não é o caso do livro de Andrew
Roberts, “A tempestade da guerra”. Fruto de ampla pesquisa bibliográfica, suas mais de
800 páginas pretendem estabelecer, como afirma o subtítulo, uma nova compreensão a
respeito do conflito de 1939-1945, mas graves falhas acometem a obra como um todo.
Escrito por Andrew Roberts, historiador formado pela Universidade de
Cambridge e publicado originalmente em 2009, pela Penguin inglesa e em 2012 no
Brasil pela Record, o livro foi largamente aplaudido por especialistas importantes como
Michael Burleigh e Richard Overy como uma nova contribuição para a já extensa
bibliografia sobre o assunto, o que é passível de contestação. Com o nome retirado de
discurso de Winston Churchill datado de 1940, a obra encontra-se repartida de maneira
tradicional, ou seja, em ordem cronológica aos eventos do conflito global. Tal divisão já
reflete a estrutura do texto vindouro, apoiado em maciça descrição de eventos e
batalhas. Por sinal, este é um dos muitos defeitos da obra de Roberts: procurou-se dar
atenção demasiada a aspectos militares e políticos em detrimento de tantos outros
igualmente importantes, como questões sociais e propagandísticas, dentre outras, como
havia feito em 2006 seu compatriota Norman Davies (2009).
Depois de um prefácio com os agradecimentos e a listagem de museus e
instituições visitadas por Roberts em toda a Europa (nos quais não houve qualquer
contato do historiador com fontes primárias em língua alemã, russa, italiana, japonesa
ou francesa, salvo as escritas em inglês) inicia-se o texto principal composto de três
partes, intituladas “Ataque”, “Virada” e “Desforra”, cada uma delas composta de seis
capítulos, contabilizando dezoito, além de um prelúdio e uma conclusão. Procurou-se
estabelecer a cronologia de forma a abarcar os acontecimentos de acordo com a
ascensão, apogeu e queda da Alemanha e Japão, provocadores do conflito.

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Mestre em História - Doutorando – Instituto de História e Pós-Graduação em História Comparada. E-
mail: joaoarthurfranz@gmail.com
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No prelúdio, intitulado “O Pacto”, cujo título provém da assinatura do pacto de
não-agressão nazi-soviético de 1939, Roberts escreve a respeito dos antecedentes da
Segunda Guerra Mundial na Europa, focando exclusivamente as ações da Alemanha,
tais como a ocupação da Renânia, o Anschluss (união) com a Áustria e a ocupação dos
Sudetos tchecoslovacos. Não são trazidos novos fatos sobre tais episódios. Além disso,
fica aparente no prelúdio tendência de Roberts para a simplificação e o reducionismo de
fatos importantes a casos anedóticos. Assinalando em certo ponto que a decisão de
Hitler de afastar os generais Blomberg e Fritsch e assumir o comando supremo das
Forças Armadas se deu unicamente por escândalos causados pelo envolvimento destes
militares com “uma ex-prostituta e de um ardiloso garoto de programa” (p. 44), em vez
de equacionar outros motivos para o fato, dá exemplo de tal prática, que se repete com
frequência em outras partes da obra.
Abrindo a primeira parte, “Ataque”, “Quatro Invasões” narra a invasão da
Polônia, Noruega e Dinamarca pelos alemães e a da Finlândia pelos soviéticos. Neste
capítulo observa-se a obsessão de Roberts pela ideia da tática militar da “Blitzkrieg”
(guerra-relâmpago) como fundamental para a vitória alemã principalmente na Polônia,
já que o país supostamente possuía condições ideais estratégicas para tanto (p.55).
Muito pelo fato de apenas citar livros escritos por anglo-saxões ou traduzidos para o
inglês, o autor desconhece pesquisas recentes na área, tal como a do historiador alemão
Karl-Heinz Frieser, o qual considera a ideia da Blitzkrieg um mito criado
particularmente após a queda da França e empregado a partir daí nas campanhas dos
Bálcãs e URSS (FRIESER, 1996).
“Führer, o imperador”, coloca em questão a vitoriosa campanha alemã de 1940,
quando foram derrotadas Holanda, Bélgica, Luxemburgo e, finalmente, França. Tal
como já acontecia no primeiro capítulo, apenas são narrados fatos e acontecimentos,
bem ao gosto da história militar, com abundância de dados sobre movimentação de
tropas. Mais uma vez, o completo desconhecimento de obras historiográficas alemãs e
outras empobrece o texto, o que leva Roberts a repetir e citar incessantemente dados
conhecidos e questões já lançadas por autores como Richard Evans, Ian Kershaw,
Richard Overy, dentre outros. Atividades importantes para a condução da guerra no
período são completamente ignoradas, como a propaganda, justamente alvo da produção
historiográfica recente (VOLKMANN; MÜLLER, 1999).

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O terceiro capítulo, “A ilha da última esperança”, traz novos problemas. O autor
revela uma postura apologética para com a Inglaterra (o que já demonstra o título) e
Winston Churchill, primeiro-ministro inglês, aos quais lança infindáveis elogios. Tal
questão lança dúvidas sobre a atuação de Roberts enquanto historiador, haja vista sua
completa parcialidade em relação aos acontecimentos. Assim, na página 148, a respeito
dos comentários de Churchill sobre os pilotos que lutaram na chamada “Batalha da
Inglaterra”, lê-se: “Naturalmente, o primeiro-ministro exaltou a bravura dos jovens
pilotos e lhes ofertou seu mais precioso presente: uma frase imortal.” As exaltações à
Grã-Bretanha e ao premiê continuam por todo o volume. Curiosa ainda é a assertiva de
que a batalha aérea sobre os céus ingleses teria resultado no “[...] primeiro embate em
que os Aliados saíram vitoriosos contra os germânicos.” (p. 147), sendo que pesquisas
recentes como a de Richard Overy (a qual inclusive consta da bibliografia do autor)
apontam para o fato de que o combate teria sido apenas um empate entre as duas forças,
já que nem os germânicos poderiam invadir a Inglaterra, nem os britânicos atacar a
Europa ocupada (OVERY, 2000).
A contenda entre ingleses e alemães no norte da África, bem como as operações
nos Bálcãs é o tema do quarto capítulo, “Lutando pelo litoral”, que ressalta os feitos do
general Rommel contra as forças do Commonwealth britânico, que sofreram pesados
revezes. Mais uma vez, a descrição de fatos e batalhas domina a narrativa.
Mas é no capítulo subsequente que surgem renovadas dificuldades. “Chutando a
porta”, dedicado à chamada Operação Barbarossa, a invasão da URSS, é pontilhado por
afirmações extraídas do Mein Kampf (Minha Luta), mistura de autobiografia e programa
político escrito por Hitler nos anos 1920, que afirmava ser a conquista da Rússia
objetivo principal para a sobrevivência do povo alemão no futuro (p. 187, 188). Embora
Hitler realmente tenha expressado tais desejos em seus escritos, não se pode
simplesmente condicionar toda a estratégia do exército alemão de 1941 a partir das
afirmações do livro programático do ditador, o que mais uma vez demonstra a tendência
de Roberts para a simplificação e reducionismo históricos.
Deslocando-se da Europa para o conflito no Extremo Oriente, “O Tufão de
Tóquio” relata como os japoneses atacaram Pearl Harbor e obtiveram supremacia nas
águas do Pacífico, chegando a ameaçar possessões americanas e inglesas. Como já se
afirmou, falta bibliografia de historiadores japoneses, o que coloca o escopo do texto ao
lado dos Aliados e, principalmente, da sempre louvada Inglaterra.

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A segunda parte, “Virada”, se inicia com uma explanação detalhada dos horrores
cometidos por unidades de extermínio da SS no leste, bem como detalha passo-a-passo
a idealização e construção do cruel sistema de extermínio da população judaica e o
porquê dos Aliados terem se omitido do bombardeamento dos campos de concentração
quando era possível fazê-lo, em “Vergonha eterna da humanidade”. Muito embora se
utilize de bibliografia já conhecida, como a obra de Saul Friedländer (2007), Roberts
consegue trazer para o leitor comum um resumo da aniquilação sofrida por judeus e
outros grupos nas mãos dos nazistas.
Já “Cinco Minutos em Midway” retoma acontecimentos que levaram à
destruição de boa parte da frota japonesa de porta-aviões pelos norte-americanos na
citada ilha do título, dando a estes últimos a primazia no Oceano Pacífico.
“Meia-noite nos Jardins do Diabo” refere-se à batalha de El Alamein e à
primeira vitória inglesa conquistada na guerra, quando o Afrika Korps de Rommel foi
derrotado e forçado a recuar até a Tunísia, onde foi enfim capturado por tropas anglo-
americanas.
A batalha de Stalingrado sempre cativou a imaginação de historiadores e do
público leigo como o combate decisivo da guerra, na qual a Alemanha perdeu grande
quantidade de materiais e soldados. Ela é o tema de “A mãe-pátria sobrepuja a pátria
prometida”. Juntamente à descrição do andamento da batalha, chama a atenção dois
problemas principais na composição do texto: o primeiro deles refere-se ao excessivo
valor dado a generais como articuladores dos acontecimentos, como se dependesse
somente deles a vitória ou derrota em batalha, algo que também permeia toda a obra. O
segundo é precisamente o fato desta abordagem estar na contramão da pesquisa mais
recente sobre a peleja, que tende a enfatizar o estudo da correspondência de guerra para
entender como pensava e agia o soldado comum diante de tal situação (WETTE;
UEBERSCHÄR, 2003).
O próximo capítulo, “As ondas no mar e no ar” trata não apenas da difícil
batalha do Atlântico, na qual o emprego de submarinos pelos alemães tornou a luta
ainda mais renhida, como também da eficácia do sistema inglês de informações Ultra, o
qual decifrou com sucesso o código de criptografia Enigma, usado pelo estado-maior
das Forças Armadas do Reich.
“Virada” termina com o capítulo “Galgando a península com cintura de vespa”
que relata a abertura da segunda frente na Itália pelos anglo-americanos e as

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dificuldades logísticas e militares para conquistar as posições alemãs na península em
forma de bota. Vale ressaltar mais uma vez a abundância de fatos e informações
militares, que acaba tornando a leitura por vezes enfadonha.
A ofensiva final das Nações Unidas contra Japão e Alemanha ocupa os seis
capítulos restantes componentes de “Desforra”. O primeiro deles, “A inversão de
salientes”, aponta a chamada “Batalha de Kursk” como ponto de inflexão para o
Exército Vermelho, pois foi a partir dela que a URSS passou à ofensiva, em um avanço
que só terminou com a conquista de Berlim, em 1945.
Uma das abordagens mais interessantes de Roberts em todo o livro é o capítulo
14, “A cruel realidade”, que relata os bombardeios indiscriminados perpetrados pelos
alemães, ingleses e americanos em estágios diferentes da guerra. De fato, o autor discute
a culpa de ambos os lados no conflito, embora acredite que pesados ataques como o de
Dresden em 1945 sejam justificáveis, pois impediu revanchismo alemão no pós-guerra.
Além disso, mais uma vez o autor se apressa em louvar a capacidade britânica de
resistir, pois o ataque alemão à Ilha, conhecido como Blitz, não teria “[...] alquebrado o
moral da população como pretendia – na realidade, chegou a fortalecê-lo” (p. 526-527),
ao passo que sobre a Alemanha “foram despejadas 955.044 toneladas de bombas pelo
Comando de Bombardeiros durante a guerra e, decerto, elas tiveram efeito
desmoralizador” (p.527), quando na verdade os ataques também não tiveram tal efeito
entre a população germânica, que teve uma reação próxima da inglesa (SÜSS, 2011).
O Dia-D e a invasão da Normandia pelos Aliados ocupa papel central em
“Conquista normanda”, que continua a apresentar dados militares e acentuar o papel de
generais e políticos no resultado da batalha.
O texto segue com o capítulo “Abordagens pelo Oeste”, que descreve o avanço
final dos Aliados ocidentais Alemanha adentro, enquanto “Abordagens pelo Leste”
demonstra o lado soviético, novamente sem acrescentar nada que já não se saiba a
respeito.
Por fim, “A terra do sol poente” apresenta as condições em que o Japão foi
finalmente derrotado em batalhas como Iwo Jima e Okinawa e enfim prostrado com o
lançamento de bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki.
A conclusão de Roberts, “Por que o Eixo perdeu a Segunda Guerra Mundial?” é
o ponto mais fraco de toda a obra, por um motivo simples. Roberts passa a se basear em
conjecturas e na chamada “História Contrafactual”, que nada tem de histórica,

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afirmando que caso Hitler tivesse escutado seus generais e não ter travado uma guerra
ideológica, a Segunda Guerra Mundial teria tido outro rumo. Sua conclusão, dessa
forma, se apoia tão somente em especulações, algo que escapa ao ofício de historiador.
No cômputo final, a obra de Roberts tem muito pouco ou quase nulo valor
historiográfico. Seus problemas, aqui já apontados, são diversos: gosto pelo anedótico;
nenhum uso de fontes ou bibliografia em outras línguas que não o inglês; mera
miscelânea bibliográfica; exaltação constante da Inglaterra; utilização de memórias de
generais e líderes políticos de forma indiscriminada, sem problematização; descrição
enfadonha de batalhas e equipamentos militares sem qualquer fim específico; apelo ao
uso da chamada “História Contrafactual”, que não possui nenhum valor histórico por se
tratar de mera conjectura. Seria portanto o livro de Roberts “uma nova história da
Segunda Guerra Mundial” como apregoa seu subtítulo? A não ser que levemos em
consideração sua data de publicação, a resposta é um sonoro não.

BIBLIOGRAFIA:

DAVIES, Norman. Europa na guerra 1939-1945. Uma vitória nada simples. Rio de
Janeiro: Record, 2009.

FRIEDLÄNDER, Saul. The Years of Extermination. Nazi Germany and the Jews 1939-
1945. Nova York: Harper Collins, 2007.

FRIESER, Karl-Heinz. Blitzkrieg-Legende. Der Westfeldzug 1940. Munique:


Oldenbourg, 1996.

OVERY, Richard. The Battle. Londres: Penguin, 2000.

SÜSS, Dietmar. Tod aus der Luft. Kriegsgesellschaft und Luftkrieg in Deutschland und
England. Munique: Siedler, 2011.

VOLKMANN, Hans-Erich; MÜLLER, Rolf-Dieter. Die Wehrmacht. Mythos und


Realität. Munique: Oldenbourg, 1999.

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WETTE, Wolfram; UEBERSCHÄR, Gerd R. (Orgs.). Stalingrad. Mythos und
Wirklichkeit einer Schlacht. Frankfurt: Fischer, 2003.

Resenha recebida em: 13 de agosto de 2013.


Aprovado em: 25 de setembro de 2013.

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