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PUC RIO

Reitor
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Pe. Iosafá Carlos de Siqueira SI I~ ," ".('"

Vice-Reitor ",~!. ·tÇ}::~:<·:~·\


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Pe. Francisco Ivern Simó 5)

Vice-Reitor para Assuntos Acadêmicos


Prof JosC:> I~i(;\nl() Ikrglll;11l1l

Vice-Reitor para Assuntos Administrativos


Prof. Luiz Carlos Scavarda do Carrno
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Vice-Reitor para Assuntos Comunitários . ·I.~

Prof Augusto Luiz Duarte Lopes Sampaio


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Vice-Reitor para Assuntos de Desenvolvimento .:.,.\(. ... :- .


Prof. Sergio Bruni Jt"."":' .: ,~Jo_" ~

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Decanos
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade (CTCH)
Prof. Luiz Roberto A. Cunha (CCS)
Prof. Luiz Alencar Reis da Silva Mello (CTC)
Prof. Hilton Augusto Koch (CCBM)
HISTORIA DA MRICA lON II::Mf'ORANcA

da negociação e da conciliação;.::ondenação sem restrições de assassi- CAPíTULO 3


nato político em todas as suas formas, bem como atividades subversi-
vas exercidas por Estados vizinhos ou qualquer outro Estado; absoluta DESCOlON!ZAÇÃO DA ÁFRICA:
dedicação à causa da total emancipação da África e de seus territórios RUMOS DISTINTOS DA MESMA ENCRUZilHADA
ainda dependentes; afirmação da política de não alinhamento tendo em
vista todos os blocos.
Esses sete princípios estavam ligados à defesa da soberania e da in-
tegridade territorial, o que é compreensível diante das diferenças terri-
toriais entre os Estados africanos que haviam acabado de conquistar a
independência.
O Pan-Africanismo de meados do século XX permite conhecer as A história do dec1ínio e da extinção formal do colonialismo europeu na
raízes de temas ainda polêmicos no continente. Essa ideologia deve ser África não tem uma data inaugural. A tentativa de identificar um único
estudada em seu contexto histórico e em suas diversas linguagens a fim episódio marcante que seja reconhecido como o primeiro passo da lon-
de melhor compreendermos o discurso dos líderes pan-africanistas. ga marcha africana em direção à autonomia dos seus territórios é um
Se o movimento pan-africano mostrava tanta riqueza de debate, ele esforço sem propósito. A multiplicidade de povos, línguas, conjuntu-
não estava distante das lutas locais pela independência. Se a unidade ras e contrastes do continente africano impede que a trajetória de cada
africana foi de certa forma possível, ela se deve em grande parte às dinâ- Estado nacional seja entendida como uma simples extensão da história
micas locais de enfrentamento do colonialismo após 1945. Sem deixar europeia contemporânea. É evidente que fatores externos influenciam
que o diálogo se interrompa, passaremos agora a tratar das especificí- mudanças internas, mas é preciso considerar quais situações de grande
dades das experiências de libertação nacional que fundaram a África ressonância internacional, como o fim da Segunda Guerra Mundial e a
Contemporânea. consolidação da Guerra Fria, são impostas e negociadas de maneira di-
versa em uma porção de terra com mais de 30 milhões de quilômetros
quadrados e um conjunto de povos que supera a marca de 1.500 línguas
faladas.
Não há dúvida de que o fim do colonialismo europeu coincidiu
com- o momento em que a geopolítica mundial se dividia entre alia-
dos e opositores da influência dos Estados Unidos e da União Soviética.
Entretanto, cada rincão da África teve seus motivos para envolver-se em
disputas internas que não dependiam apenas de um jogo de xadrez in-
ternacional entre antigos e novos impérios.
Os modelos de Estado nacional moderno, de liberdade política e de
planejamento econômico almejados pelos africanos durante o proces-
so de descolonização do continente vinham de outras partes do mun-
do. A autonomia dos povos anunciada pelo presidente norte-americano
Woodrow Wilson, a desobediência civil propagada por Gandhi, na Ín-

109
/
dia, e a revolução social promovida por Lênin, na União Soviética, fo- 3.1 África do Nortei''" luta pela independência e golpe de Estado na
ram importantes parâmetros para o desenvolvimento do processo de Argélia e na Mauritânia
descolonização da África, mas não se pode negar que a luta anticolonial
de Argel e a reconstrução da unidade nacional sul-africana com Nelson A África do Norte é composta por Egito, Líbia, Tunísia, Argélia, Mar-
Mandela também influenciaram outras experiências em todo o mundo. rocos, Saara Ocidental (território ainda sem emancipação reconhecida
Mesmo as experiências consideradas "centrais" na história mun- pelas Nações Unidas), Mauritânia, Sudão e Sudão do Sul. Em comum, es-
dial, derivadas de fatores importantes como a Guerra Fria, foram intei- ses países mantêm o árabe como língua oficial, além de possuírem outros
ramente refeitas e reinterpretadas a partir do momento em que o "Ter- idiomas nacionais. A grande maioria deles sofreu algum grau de coloniza-
ceiro Mundo" se transformou em palco do conflito entre capitalismo e ção de potências imperiais europeias, como a Inglaterra, a França, a Espa-
comunismo. Por isso a África, na segunda metade do século XX, passou nha e a Itália, com níveis variáveis de autonomia política e administrativa.
a integrar esse "Terceiro Mundo" tão diverso quanto a própria África
Países e territórios que formam a África do Norte
como continente. A Guerra Fria transformou as colônias europeias da
África em uma área de revoluções, golpes de Estado e conflitos arma-
dos que fizeram da descolonização um mosaico muitas vezes formado
de ouro e cadáveres.
Assim, na prática, cada história de descolonização de um país afri-
cano pode ser a história de todos ou de nenhum de nós.

As independências formais dos países africanos

__ ruolsi"
Marrocos 1962
1956
AfgeU" Líbla Egito
SaMfI 1962 1951 1922
Ocidental

Cabo Verde Senegal


1975 '<, 1960 \ Mauril!inla Mall
, 1960 191;() Niger .~E~I~~a
, Chaoo Sudâo
Gàmbla 1960
1965 ~urkll'l11 1960 1956

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1950
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Dentre os países que fazem parte dessa região, a história da Repú-
1961 1960~OiO Gabio
1960 1960
blica Argelina Democrática e Popular merece destaque por sua instabi-
Sâc rcmé e
P.mclpe
Cl~L/ lidade política e pela importância alcançada como símbolo da luta an-
1975 Guine AngQI ••
EqOiltOflóll
1968
1975 ticolonial. Desde o século XVI, o território da Argélia esteve sob o jugo
do Império Otomano, até que a decadência desse império instaurou o
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Maurício
;. !·~SuuIlJndI. 1968

África do Sul' ~ 1968 105 Existem formas variadas de se nomear a parte setentrional do continente africano.
1910 , tesctc
1966
As mais utilizadas são África do Norte e Norte da África.

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I

domínio colonial francês em parte considerável da África do Norte. A tros urbanos da Argélia passaram a sofrer um inchaço demográfico que
Argélia sofreu uma invasão francesa em 1830, pois a França desejava agravava ainda mais os problemas sociais advindos da experiência colo-
combater a pirataria na costa africana do mar Mediterrâneo e, para isso, nial francesa. Num ambiente urbano em crise, esses problemas foram se
invadiu cidades argelinas importantes, como a capital Argel e Orã. A transformando em questões políticas incômodas para o poder colonial.
resposta da população local à invasão estrangeira foi rápida, ea resistên- Com a concentração demo gráfica argelina nos centros urbanos, o
cia à presença crescente dos franceses na região suscitou o envio cada progresso da dominação francesa passou a depender de um pacto com
vez maior de tropas coloniais para o país. a elite local, que se beneficiava economicamente da exploração colonial.
Os argelinos conseguiram frear por alguns anos o avanço do exér- Uma pequena parcela da população foi incorporada à lógica colonial,
cito francês, restringindo o controle colonial a um pequeno território li- atuando ao lado dos franceses e gozando de privilégios. Essa camada
torâneo. No interior da Argélia, o rebelde El-Hadj Abd-el-Kader liderou de argelinos assimilados era composta, fundamentalmente, de comer-
um movimento de resistência à invasão francesa que só veio a sucum- ciantes urbanos, profissionais liberais e pequenos e médios agricultores
bir em 1847, quando ele foi capturado e exilado. Porém, o fim da luta de que, à revelia da Lei Warnier, mantiveram suas terras e se adequaram à
Abd-el-Kader não significou a vitória final para as forças coloniais fran- ordem colonial. No entanto, como a França dependia da atuação des-
cesas. Com o apoio de setores religiosos ativos da sociedade argelina, a sa aristocracia local, parte desse grupo reivindicava maior participação
população local- dificultou a consolidação da presença francesa, que res- nas decisões políticas e administrativas da Argélia. Em 1898, a partir das
pondia à resistência com uma repressão cada vez maior. pressões por parte dessa elite, a França promulgou a autonomia finan-
Em fins do século XIX, a situação política interna da França tam- ceira da colônia, que se desdobrou na criação de uma Assembleia Ele-
bém se mostrava desfavorável à ocupação efetiva da Argélia. A derrota tiva, composta por europeus e por representantes da aristocracia local.
na Guerra Franco-Prussiana, em 1871, levou à queda do Segundo Impé- Esse modelo social também foi aplicado em outras áreas coloniais fran-
rio Francês, de Napoleão III, o que inicialmente enfraqueceu o domínio cesas na África e na Ásia. Porém, a mera participação administrativa de
colonial na região. Entretanto, a necessidade cada vez maior de reprimir um pequeno grupo nas concessões francesas não foi capaz de arrefecer
qualquer oposição à presença francesa na Argélia fez com que se elevasse os anseios nacionalistas, que cresciam tanto na elite quanto em outros
o número de tropas coloniais, levando a uma paulatina estabilização do setores menos privilegiados da sociedade colonial argelina.
domínio francês no território argelino, em consonância com a busca por Com o tempo, floresceram na Argélia, assim como em parte dos
solidez da recém -criada Terceira República Francesa. Para acelerar a oeu- demais territórios coloniais e da Europa, ideias políticas que defendiam,
pação do território argelino, o governo francês instituiu, em 1873, a Lei sobretudo, a independência das colônias. A resposta do governo francês
Warnier, um instrumento legal para a expropriação de terras pertencentes aos discursos nacionalistas e independentistas foi a repressão por meio
a argelinos, sobretudo muçulmanos, que seriam entregues a imigrantes de leis restritivas e pela violência. Duas ações legais francesas ilustram
europeus dispostos a viver na Argélia. Segundo a lógica imperialista, o esse contexto: o Código dos Indígenas, de 1880, e a União Aduaneira,
que era produzido nas colônias passava a compor a economia metropo- de 1884. O Código dos Indígenas autorizava a aplicação de duras pena-
litana, sendo a maior parte dos produtos locais destinada à exportação. lidades aos nativos das colônias que desafiassem as leis e a autoridade
A escassez de oportunidades de trabalho no setor agrário, então francesas; a União Aduaneira oficializava o controle comercial da Fran-
controlado por imigrantes europeus, fez com que a população argelina ça sobre a Argélia, fator básico da lógica colonial.
migrasse para as cidades, ocasionando, no fim do século XIX e na pri- As medidas controladoras aplicadas pela França alimentaram ainda
meira metade do século XX, um significativo êxodo rural. Assim, os cen- mais o sentimento nacionalista na população argelina. Mesmo os mem-

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bros da elite local, que chegaram a ~requentar universidades francesas, política de lideranças religiosas era um forte indício de que a reivindica-
engrossaram o discurso pela independência da Argélia, principalmente ção de independência atingia setores amplos da sociedade civil argelina.
nas primeiras décadas do século XX. Em Paris, no ano de 1926, um gru- Cientes de qne as minorias religiosas, como cristãos e judeus, eram pri-
po de estudantes da Ãfricn do Norte criou a primeira associação política vilegiadas pela França em um território de maioria populacional islâmi-
independentista, denominada Estrela Norte-Africana. Essa organização ca como a Argélia, os religiosos muçulmanos exigiam o reconhecimento
foi inicialmente liderada pelo argelino Messali Hadj, reconhecido entu- de direitos iguais para todos.
siasta da Revolução Russa de 1917. A capacidade de unificação do discurso nacional-religioso foi um
O governo francês respondeu à criação da Estrela Norte-Africa- instrumento de coesão social em torno da luta pela independência.
na com repressão, o que levou Messali Hadj a formar outras três asso- Quando o Estado francês percebeu o perigo que o discurso religioso
ciações, que também foram sucessivamente postas na ilegalidade pela representava, propôs, entre 1.936e 1937, a Lei Blum-Violette. Diante de
França: a União dos Muçulmanos Norte-Africanos, de 1935, o Partido um governo francês controlado pela Frente Popular (composta por par-
do Povo Argelino, de 1937, e o Movimento pelo Triunfo das Liberdades tidos de esquerda, como comunistas e socialistas), o primeiro-ministro
Democráticas, de 1946. Como braço paramilitar clandestino das asso- Léon Blum aprovou a iniciativa do ex-governador francês da Argélia,
ciações pela independência da África do Norte, surgiu em 1944 a Or- Maurice Violette;quc permitiu que entre 20 e 25 mil muçulmanos se
ganização Especial, responsável tanto pela arrecadação de fundos como tornassem cidadãos franceses, mantendo seu estatuto pessoal ligado à
pela compra de armamentos e pelo treinamento de militantes. religião. A proposta da Lei Blum -Violette era consentir que uma mino-
Ao lado dos grupos revolucionários e partidos políticos, porém com ria de islâmicos argelinos se constituísse em uma elite local fiel à França,
uma postura menos agressiva e mais "assimilacionista", a tradição islâ- com direito a voto e demais prerrogativas de um cidadão da metrópole.
mica também contribuiu para a aproximação da sociedade civil argelina No início, alguns políticos nacionalistas, como Ferhat Abbas, entende-
com a causa independentista. De acordo com o escritor Mustafa Yazbek: ram que a lei poderia indicar algum avanço nas relações entre a França
e a Argélia. Porém, o tom excessivamente "assimilacionista" e elitista da
o islamismo de vertente sunita, religião professada pela quase totalidade lei causou reações no grupo de Messali Hadj e entre os líderes religiosos
da população argelina, desempenharia um papel tão importante quanto o
dos partidos políticos para a conservação e o avanço da consciência nacio- argelinos mais conservadores. No final, o projeto de lei foi recusado por
nalista. A evocação tradicionalista do passado islâmico, seus princípios mo- grande parte dos políticos franceses.
rais e seus conceitos políticos eram um forte apelo a essa consciência. (...) Os esforços para apaziguar as tensões entre a colônia e a metró-
A Associação dos Ulernás'?" Argelinos, fundada em 1931 pelo xeque Mo-
pole, mostravam-se ineficientes, o que levou todos os envolvidos nes-
hammed Ben Badis, importante líder religioso local, não postulava uma
sa disputa a um alto grau de radicalismo em suas posições. O primei-
cisão radical em relação à França, mas adotou um lema que ressaltava ni-
tidamente a diferenciação, ao dizer que o islã era sua religião; o árabe, sua ro setor a se manifestar foi a' administração colonial francesa, que, em
língua; e a Argélia, sua pátria. 107 1939, pôs o Partido do Povo Argelino e o Partido Comunista Argelino
na clandestinidade.
No contexto de uma dominação política como a francesa, que re- O desdobramento da Segunda Guerra Mundial abalou o domínio
corria à repressão como via de manutenção da ordem colonial, a ação dos impérios europeus sobre seus territórios coloniais; com o impacto
do conflito na Europa, fragilizou-se o poder de coerção das metrópoles.
106 Líderes religiosos islâmicos ligados à tradição sunita.
No Oriente Médio, os protetorados franceses do Líbano e da Síria inten-
107 Yazbek, Mustafa. A revolução argelina. São Paulo: Editora Unesp, 2010, p. 32-33. sificaram seus clamores pela emancipação política total. Apesar de ter

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(

sido reconhecida antes, a independência do Líbano só foi oficializada Abbas, também participaram da Segunda Guerra Mundial. Sem dúvi-
em 1943 e a da Síria, três anos depois. As notícias do sucesso de ações da, a experiência de guerra ajudou o movimento armado independen-
rebeldes em diversas colônias asiáticas da França animaram os argelinos tista a resistir melhor às incursões do exército francês contra a popula-
comprometidos com a causa independentista. ção argelina.
Em 1944, os rumos das colônias francesas na África tornaram-se Um exemplo do acirramento do conflito entre a França e os ar-
motivo de grande preocupação para as autoridades francesas, que orga- gelinos foi o massacre de Sétíf Guelma e Kherrata, em maio de 1945.
nizavam, em Londres, a resistência à invasão da Alemanha. O Comitê Por ocasião das festividades pela vitória dos aliados na Segunda Guerra
Francês de Libertação Nacional reuniu-se com representantes adminis- Mundial, organizou-se um desfile que, tomado por manifestantes inde-
trativos dos territórios franceses da África e com políticos africanos na pendentistas, se transformou em uma manifestação pacífica em prol da
chamada Conferência de Brazzaville. No encontro foi decidida asus- independência da Argélia. As forças francesas reagiram e o resultado foi
pensão do Código dos Indígenas, além de discutida a possibilidade de a morte de milhares de argelinos e pouco mais de cem soldados e cida-
maior participação política das colôr.ias africanas no Parlamento Fran- dãos argelinos de origem francesa. Uma série de retaliações se propagou
cês. O principal ator político da Conferência de Brazzaville foi o ge- em ambos os lados, e a consequência mais direta desses episódios foi o
neral Charles de Gaulle, responsável pela resistência francesa à ocupa- fortalecimento da luta armada na Argélia.
ção nazista. Para reforçar seu papel de liderança central da Comunidade Ao longo do tempo, a França tentou implementar políticas públi-
Francesa, De Gaulle assumiu uma postura mais negociadora com as co- cas que concediam paulatinamente autonomia administrativa à Argélia;
munidades ultramarinas francesas, a fim de evitar mais dificuldades ao porém, aos ativistas políticos argelinos só a independência interessava,
processo de reconstrução da França. e a sublevação .armada era o único caminho considerado para se chegar
No entanto, se em 1944 a Conferência de Brazzaville foi entendida a ela. Na década de 1950 consolidou-se a proposta de libertação da Ar-
como um esforço francês de negociação mais direta com os territórios gélia pela via revolucionária, especialmente com a fundação do Comitê
coloniais africanos, a Liga dos Estados Árabes, criada em 1945, trans- Revolucionário de Unidade e Ação, na cidade egípcia do Cairo. O comi-
formou o discurso de soberania dos povos árabes em motivação para os tê era formado por importantes líderes independentistas exilados, como
ativistas políticos que militavam em favor da independência na Argélia. Ben Bella, e também contava com um grande contingente de chefes que
Todos esses fatores, que demonstram o crescimento da ação política in- atuavam na Argélia, como Mohamed Boudiaf.
dependentista não somente na Argélia, mas em grande parte dos países Os resultados dos esforços coletivos pelo fim do colonialismo fran-
da África do Norte, são reflexos do principal elemento fomentador de cês na Argélia começaram a ser sentidos a partir de 1954. O Comitê
um projeto revolucionário e nacionalista para as colônias: a condição Revolucionário de Unidade e Ação conseguiu reunir diversos partidos
social e econômica caótica da população islâmica local. independentistas pequenos em torno da Frente de Libertação Nacio-
A radicalização da posição política dos argelinos foi reforçada pela nal, que se transformaria na principal organização de combate ao exér-
experiência daqueles que lutaram ao lado dos franceses na Segunda cito francês na Argélia. A característica central da luta armada argeli-
Guerra Mundial. Muitos líderes nacionalistas voltaram do campo de ba- na era a afirmação dos centros urbanos como espaços preferenciais de
talha em 1945 com treinamento e condições para instaurar a luta arma- confronto.
da pela independência em seus territórios de origem. Ahmed Ben Bella Somada aos esforços internos, a Conferência de Bandung, de 1955,
foi um deles. Outros líderes argelinos mais moderados, como Ferhat foi mais um indício de que o ambiente internacional mostrava-se favo-

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rável à descolonização. A reunião de 29 países asiáticos e africanos= em A França, desde 1954, estabeleceu uma guerra sangrenta contra
uma cúpula que propunha o não alinhamento com as grandes potên- guerrilheiros na Argélia que recusavam qualquer forma de autonomia
cias políticas e econômicas da época consolidou o apoio internacional gradativa do país. O ano de 1954 já havia sido vergonhoso para a França
de que a Argélia precisava para dar fôlego ao processo revolucionário de com a independência da lndochina, atual território do Camboja, Laos e
libertação nacional. Nesse momento, a Argélia conseguiu construir re- Vietnã; ·naquele momento os franceses não estavam dispostos a permi-
des de apoio em países já independentes, como o Egito do general Ga- tir que o mesmo acontecesse com a Argélia. A cidade de Argel, a partir
mal Abdel Nasser e a Índia do primeiro-ministro Jawaharlal Nehru. Em de 1957; foi se firmando como palco principal desse embate liderado, de
discurso durante a Conferência de Bandung, Nehru deixou evidente o um lado, pelo Exército de Libertação Nacional (braço armado da Frente
espírito de não alinhamento e a necessidade de os países africanos e asiá- de Libertação Nacional) e, do outro, por militares franceses. De acordo
ticos terem autonomia em suas decisões políticas: com Mustafa Yazbek:

Muitos membros que estão presentes aqui obviamente não aceitam a ideo- o ELN era formado por três tipos de tropas com táticas diferentes: os
logia comunista, enquanto outros aceitam. De minha parte, eu não aceito. mudjahidiins (guerreiros, em árabe) eram soldados convencionais, uni-
, Sou uma pessoa positiva, não uma pessoa "anti" Quero um bem positivo formizados e integrados às unidades do ELN; os mussebilin dedicavam-
para o meu povo e para o mundo. Assim, será que nós, os países da Ásia -se a operações-de terrorismo e de sabotagem das linhas de comunicação
e África, somos desprovidos de um posicionamento positivo além de ser e das estradas, além de serem responsáveis pelo transporte de armas e de
pró-comunistas ou anticomunistas? (...) Será que chegamos a tal ponto, feridos e pelo serviço de informação; os fedayin (em árabe, "aqueles que
que os pensadores que concederam religiões e todos os tipos de coisa ao se sacrificam") eram responsáveis pelos atentados pessoais e pelas sabota-
mundo precisam submeter-se a esse ou àquele tipo de grupo e ser suportes gens urbanas, explosões e incêndios.'!"
desse ou daquele partido, realizando seus desejos e eventualmente contri-
buindo com uma ideia? Isso é muito indigno e humilhante para qualquer Os métodos de luta anticolonial empreendidos pelo Exército de Li-
povo ou nação que se preze. Para mim, é inconcebível pensar que os gran- bertação Nacional previam ações violentas, como ataques a prédios pú-
des países da Ásia e da África deveriam sair da escravidão para a liberdade blicos e execução de funcionários do poder colonial. Com isso, o con-
apenas para serem indignos ou se D!!milharem dessa maneira ...
Esse é meu posicionamento. Não é um posicionamento acadêmico; não fronto entre independentistas e a força colonial transformou centros
é um posicionamento que discute ideologias; tampouco é um posiciona- urbanos como Argel em campos de batalha. O filme A batalha de Argel,
mento que discute o passado histórico. É um posicionamento que está do cineasta italiano Gillo Pontecorvo, é um admirável registro do caos
olhando para o mundo como ele é hoje. 109 vivido pela população de Argel a partir de 1957. Apesar de não ser um
documentário, o filme mostra o alto grau de violência que se instalou na
o fimda Segunda Guerra Mundial estava longe de significar o fim
Argélia durante a luta contra o domínio colonial francês. Temas como a
das hostilidades no mundo. Os impérios europeus tiveram que deslocar
organização dos movimentos revolucionários, os abusos das autorida-
grande parte de suas forças militares para as terras coloniais, o que acir-
des francesas e o clima de tensão vivido pela sociedade civil são retrata-
rou os conflitos na maioria dos territórios da África e da Ásia.
dos fielmente nessa obra de 1965.
A resposta da França ao aumento da violência na Argélia foi o envio
de tropas de elite, como os paraquedistas, responsáveis por inúmeros
108 Os países africanos na Conferência de Bandung eram Egito, Etiópia, Libéria e Líbia. episódios de assassinato, tortura e violência desmedida contra a popula-
A Frente de Libertação Nacional da Argélia contou com observadores no evento.
109 Extraído e traduzido de www.fordham.edu/halsall/mod/I955nehru-bandung2.html. 110 Yazbek, op. cit., p. 44.

118 119
ção argelina. Os paraquedistas representavam o setor mais conservador ex-chefe do Estado-Maior do Exército de Libertação Nacional. A As-
das forças militares francesas e consideravam uma afronta que as auto- sembleia Constituinte foi liderada por Ferhat Abbas e elegeu à presidên-
ridades coloniais negociassem com a Frente de Libertação Nacional. O cia o próprio Ben Bella.
grupo ultraconservador chegou a ameaçar o governo francês ao exigir As primeiras ações de Ben Bella visavam garantir a concentração de
maior controle sobre a colônia argelina, o que mostrava o enfraqueci- poder em suas mãos. Acumulando vários cargos, ele chegou a coman-
mento do Poder Executivo da França nesse momento. O cenário só co- dar três ministérios distintos, além de exercer a função de presidente da
meçou a mudar com a reeleição, em 1958, do general Charles de Gaulle, República. Cada vez mais a política argelina era conduzi da de maneira
que, concentrando poderes na mão do Executivo, instaurou a chamada centralizada, bem diferente do modelo de gestão seguido pela Frente de
Quinta República Francesa. Libertação Nacional no período da descolonização. Em relação à políti-
A posição do general De Gaulle era mais moderada do que dese- ca externa, a Argélia manteve grande parte dos compromissos assumi-
javam os polos extremos da luta na Argélia; não agradava aos militares dos na Conferência de Bandung: era um país independente que deveria
conservadores porque concedia certa autonomia à Argélia, e não agra- favorecer a independência das demais nações africanas e asiáticas que
dava aos argelinos porque não permitia a total independência da colô- ainda se encontravam sob o domínio do poder colonial europeu.
nia. As ações do presidente De Gaulle para pôr fim às ameaças dos ultra- No plano econômico, a Argélia caminhava para um modelo socia-
conservadores - como a destituição do general Iacques Massu -levaram lista particular, com a adoção de políticas de nacionalização dos recur-
a uma reação do Exército francês que deflagrou a Semana das Barrica- sos do país, um projeto de reforma agrária e a intenção de dar um cará-
das, em 1960. Ao final, De Gaulle conseguiu manter o comando sobre o ter "islâmico" às transformações políticas e econômicas. Um dos anseios
Exército, mas sabia que não era uma unanimidade entre seus homens. O de Ben Bella era a expansão do ideal revolucionário argelino, que ele
presidente francês chegou a sofrer uma tentativa de golpe em 1961, mas acreditava encarnar. Para o primeiro presidente da Argélia, a consoli-
conseguiu superá-Ia, sobretudo, porque contava com o apoio popular. dação do socialismo argelino dependia da concretização de um plano
Diante de tais acontecimentos, o governo francês previa que a in- para toda a região da África do Norte e até mesmo para outros países
dependência da Argélia seria uma questão de tempo, e, motivado por do chamado Terceiro Mundo. O sonho de ser líder dos países não ali-
essa certeza, assinou, em março de 1962, em Évian, um armistício com nhados instaurou forte descontentamento entre seus aliados na Argé-
a Frente de Libertação Nacional. Após esse acordo, a França promoveu, lia, que julgavam necessário fazer da economia argelina uma priorida-
em 12 de julho de 1962, um plebiscito, que representou em números o de- de, sem maiores preocupações com a exportação imediata do modelo
sejo da população argelina de independência do domínio colonial fran- revolucionário. Não tardou muito para que Houari Boumediene, chefe
cês. Com uma vitória esmagadora dos que eram favoráveis à emancipa- do Estado-Maior, depusesse Ben Bella, em 1965, submetendo-o à prisão
ção política, a Argélia declarou-se independente em 5 de julho de 1962. domiciliar e depois ao exílio.
Ainda que a ação anticolonial transformasse em irmãos de luta ar- O governo de Boumediene manteve a política externa anterior, mas
mada os membros do alto escalão da política argelina, um jogo de dis- com pretensões mais modestas de liderança revolucionária mundial. A
puta de poder interno tomou conta J-a Prente de Libertação Nacional. A grande preocupação do novo presidente era garantir a consolidação da re-
coligação responsável pela descolonização do país chegou ao poder en- volução argelina, e, para isso, ele passou a governar ao lado de um Conse-
frentando, no seu interior, um embate entre suas principais lideranças lho Revolucionário, composto essencialmente por militares. A prioridade
pelo controle da instituição. O problema da disputa interna pelo poder de ações na política interna fez da economia o centro da estabilização de
só foi resolvido com uma aliança entre Ben Bella e Houari Boumediene, uma Argélia livre e independente. Boumediene nacionalizou empresas,

120 121
promoveu a reforma agrária e desenvolveu um programa audacioso de Uma das principais consequências da abertura política de Bendje-
industrialização do país, que se concentrava na criação de indústrias de did foi a criação de mais de quarenta partidos políticos na Argélia, con-
base e de tecnologia. Com bons resultados econômicos (alcançados prin- firmando o desgaste do monopólio partidário da Frente de Libertação
cipalmente pelos altos preços do petróleo no mercado internacional nes- Nacional. Diversos setores da sociedade argelina passaram a ser repre-
se período) e uma postura política moderada, Boumediene permaneceu sentados por partidos diretamente comprometidos com seus simpati-
no poder até a sua morte, em 1978. Em um rápido mandato, que durou zantes, com destaque para os islamitas, que fundaram a Frente Islâmica
de 27 de dezembro de 1978 a 9 de fevereiro de 1979, Rabah Bitat assumiu de Salvação em fevereiro de 1989, legalizada no ano seguinte.
a presidência interinamente até a ascensão ao poder de Chadli Bendjedid, A Frente Islâmica de Salvação nasceu como um grande fenômeno
mais um militante histórico da descolonização da Argélia. político não esperado pelo governo de Bendjedid. Já nas eleições mu-
O governo de Bendjedid teve uma orientação econômica e diplo- nicipais de 1990 e no primeiro turno das legislativas de 1991, o parti-
mática bem distinta daquela que seguiu Boumedienne. Abandonando do alcançou um sucesso tão grande que assustou o governo argelino e a
parte dos princípios socialistas e de não alinhamento, Bendjedid abriu a Frente de Libertação Nacional. Sob a ameaça de perder espaço político
economia da Argélia à iniciativa privada e estabeleceu relações cordiais para setores religiosos da sociedade civil, Bendjedid recorreu a medidas
com potências econômicas mundiais, como os Estados Unidos e a França. autoritárias para impedir a vitória dos islamitas no segundo turno das
Com a chegada da década de 1980, porém, os preços do petróleo caíram eleições de 1991. A Frente Islâmica de Salvação reagiu organizando gre-
vertiginosamente, o que levou a economia argelina à crise e à contenção ves e manifestações, e o governo rebateu com a outorga de um "estado
de gastos públicos. de exceção", a anulação do processo eleitoral, a prisão de líderes do par-
Era evidente que essa mudança tão abrupta da economia geraria re- tido e a decretação de sua ilegalidade.
ações na sociedade civil argelina, que cada vez mais se afastava da crença Ao longo do tempo, foram inevitáveis os confrontos entre forças do
incondicional no nacionalismo "terceíro-mundista" para dar credibilida- governo e partidários da Frente Islâmica de Salvação. O partido islamita
de ao ativismo político islâmico. Em 1988, a situação social chegou a um já contava com um braço armado conhecido como Exército Islâmico de
tamanho nível de descontentamento que algumas grandes cidades da Ar- Salvação, que, além dos enfrentamentos com o governo argelino, passou
gélia foram tomadas por manifestantes, em sua maioria islamitas. Em res- a atuar contra outros grupos religiosos e contra estrangeiros residentes
posta violenta, o governo pôs nas ruas um grande contingente de forças de no país. Assim, a partir de 1991, o alto grau de instabilidade instalado na
segurança, que reprimiram impetuosamente a ousadia dos manifestantes. Argélia levou o país a uma guerra civil que envolveu as forças do gover-
Em cinco dias de enfrentamentos, centenas de pessoas morreram.
no, o Exército Islâmico de Salvação e outras ramificações armadas isla-
Os conflitos de 1988 mostraram que era preciso redefinir os cami-
mistas, como o Grupo Islâmico Armado.
nhos políticos da Argélia. Alguns políticos de alto cargo ligados a Bend-
Entre atentados terroristas, dentro e fora da Argélia, massacres à
jedid, como o sec.retário-geral da presidência e líder histórico da Frente
população civil, repressão policial e eleições conturbadas, o país viveu
de Libertação Nacional, Mouloud Hamrouche, propuseram mudanças
uma situação dramática somente amenizada com uma proposta de re-
que visavam reformar profundamente o sistema político e a economia
conciliação nacional, em 1999, conduzida por mais um líder históri-
do país. Em 1989, uma nova Constituição foi elaborada, instaurando
co da Frente de Libertação Nacional, Abdelaziz Bouteflika, que chegou
uma abertura política sem precedentes na história da Argélia: instituiu-
à condição de primeiro presidente civil da Argélia nesse mesmo ano,
-se o multipartidarismo, um maior incentivo ao setor privado no ramo
como candidato independente.
das comunicações e o fim da candidatura única para presidente.

122 123
Bouteflika permanece no poder equilibrando-se entre problemas eco- ritária, que mantém o controle das decisões políticas e financeiras, sem
nômicos, políticos e sociais gerados, sobretudo, pela permanente depen- levar em conta os anseios populares.
dência do país em relação aos preços flutuantes do mercado de petróleo A experiência colonial da Mauritânia foi distinta da que tiveram seus
e gás, pelo crescimento interno de forças políticas islamitas e pelos al- vizinhos Marrocos e Argélia, já que a França a considerava um território
tos índices de desemprego, principalmente entre os jovens. Além disso, geograficamente estratégico por sua condição intermediária entre as de-
Bouteflika começa a apresentar sinais de desgaste físico e sabe que é difí- nominadas África Branca e África Negra.!" Ainda que essa classificação
cil garantir a coesão política da Argélia em um processo eleitoral aberto seja artificial e pretenda marcar diferenças significativas entre a porção
para a sua sucessão. De certo modo, a Argélia segue muito marcada pela do continente africano árabe-berbere e a parte "negra-subsaaríana', no
experiência de descolonização, com líderes que retiram seu capital polí- caso mauritano ela diz respeito a sua composição demográfica, expres-
tico da ação militante anticolonial e, por isso, restringem qualquer reno- sando apenas o caráter fragmentário de sua sociedade, e não uma carac-
vação do quadro político. A luta pela descolonização é uma marca tão
III terística irreconciliável da sociedade civil.
profunda que, pelo peso de sua presença nas instituições nacionais, vai Bernabé López García explica como duas regiões naturais forma-
se transformando em uma cicatriz que expõe a fragilidade de um Estado ram esse país, cujo território é composto majoritariamente de deserto e
erguido em meio a episódios históricos de violência. carece de estruturas eficientes de comunicação: "O Norte está habitado
Se a Argélia possui resquícios indeléveis da luta anticolonial na for- por 'mouros' e berberes arabizados desde os primeiros séculos de pre-
mação de seu Estado, a República Islâmica da Mauritânia não é diferente. sença do islã e concentra 80% da população; o Sul forma parte do Saara,
A construção do Estado mauritano apresenta uma série de peculiarida- e sua população, assim como na outra margem do rio Senegal, é com-
des desde o período colonial. Segundo Ulrich Rebstock, a Mauritânia posta por negros, em sua maioria tocalores e sarakolés,":"
não teve nenhuma possibilidade de evitar a imposição de um modelo Diversos autores atestam a análise de García, destacando que a du-
político proposto pelo antigo colonizador. Desde novembro de 1960, pla constituição étnica da população mauritana pode ser entendida
quando conquistou formalmente a independência do jugo colonial como um paradoxo importante com visíveis consequências em ques-
francês, esse país, tão grande quanto a Espanha e a França juntas, pas- tões políticas gerais, uma vez que a Mauritânia é um país que fez de sua
sou a viver em um estado de confrontação permanente que impediu sua condição "árabe" um forte fator identitário e que, por isso, encontra-se
autonomia total em relação à metrópole.!" Consequentemente, suas ins- plenamente integrado a instituições específicas, como a Liga dos Esta-
tituições têm sido instauradas de acordo com o desejo de uma elite auto- dos Árabes ou a União do Magreb Árabe, mesmo que uma parte consi-
derável de sua população seja de origem "subsaariana"
111 "En el ámbito teórico, todos los grupos que compiten por el poder en Argelia tienen Assim, a colonização francesa na Mauritânia, no início do século XX,
características similares (son fruto de Ia guerra de independencia y están vinculados a Ia enfrentou, a partir das bases senegalesas da população, uma sociedade es-
lucha armada). Los demás actores que no optaron por Ia vía armada han sido rnargina-
dos (el Movimiento Nacionalista Argelino, MNA, de Messali Hay, Ia Unión Democráti-
ca deI Manifiesto Argelino, UDMA de Ben Iedda y Ferhat Abbas, y en menor medida Ia
Asociación de Ulcmas)," Bustos, Rufael e Maüé, Aurelia. Argelia: estructura poscolonial 11) Durante o período colonial, a França recorreu a critérios étnicos e culturais para re-

de poder y reproducción de elites sin renovación. In: Brichs, Izquierdo Ferran (ed.). gionalizar seu domínio sobre o continente africano. Desse modo, houve uma tentativa de
Poder y regímenes en mundo árabe contemporáneo. Barcelona: Cidob, 2009, p. 61. dividir a África em duas porções distintas: a África Branca, de maioria árabe, e a África
Negra, formada pelos demais territórios em que a cultura negra era predominante.
112 Rebstock, Ulrich. Democracia, Islamicidad y Tribalismo en Mauritania. In: De Ia
Puente, Cristina; Serrano, Delfina (eds.). Activismo Político y Religioso en el Mundo 114 García, Bernabé López; Suzor, Cecilia Fernández. Introducción aios regímenes y
Islámico Contemporáneo. Madri: Siglo XXI, 2007, p. 271. constituciones árabes. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1985, p. 329.

124 125
truturada nas suas tradições, o que tornava a diversidade cultural um pon- novembro de 1960. Até a data de sua autonomia política oficial, a Mau-
to de grande importância capaz de trazer instabilidade política e social. ritânia foi mantida sob a condição de tutela neocolonial, exercida, so-
Um dos principais motivos que levaram a França a colonizar a Mau- .bretudo, pela Sociedade Miferma (Minas de Ferro Mauritânia), forma-
ritânia foi o propósito de impedir que outrapotência europeia exerces- da majoritariamente por capital estrangeiro francês.
se o controle sobre esse território estratégico. Não havia interesse em Em 20 de maio de 1961, os responsáveis pela primeira Constituição
explorar os eventuais recursos minerais e pesqueiros da nova colônia, mauritana criaram, com indiscutível influência francesa, a primeira Re-
uma vez que, no princípio do século XX, ainda não se conhecia o poten- pública Islâmica da Afríca, ao afirmar, no artigo 12 da Carta Magna, que
cial econômico dos recursos naturais mauritanos, escondidos em uma "a República Islâmica da Mauritâniaé um Estado republicano, indivisível,
região recortada pelo deserto. Desse modo, em 1904, a França impôs à democrático e social': Esse texto também gerou uma contradição semân-
Mauritânia um comissário de Governo da África Ocidental Francesa, tica ao admitir, no parágrafo segundo do artigo 22, a liberdade de culto e
aproximando assim sua nova colônia do modelo de dominação cons- consciência para os cidadãos, enquanto no parágrafo primeiro desse mes-
truído em terras subsaarianas. A transposição de um paradigma colo- mo artigo estabelecia que "o Islã é a religião do povo mauritano'l'"
nial estranho ao panorama cultural próprio da Mauritânia fez com que a Entretanto, mesmo após sua independência formal e o reconheci-
metrópole tardasse muito em conseguir a pacificação completa do terri- mento marroquino -;de sua autonomia.!" o país permaneceu sob a tutela
tório mauritano. A dominação imperial se consolidou somente a partir da antiga metrópole, passando por uma série de golpes de Estado lidera-
de 1934, quando a França exigiu da Espanha o controle militar da região dos pelo Exército. Em 12 de junho de 1991, após sofrer pressão interna-
do Saara Ocidental, onde se formavam os grupos de resistência contra a cional, o governo mauritano apresentou aos eleitores a atual Carta Cons-
presença francesa em toda a África do Norte. titucional, na qual é reforçado o caráter político confessional do país, que
Os anos 1940 e 1950 trouxeram mudanças importantes para a situ- se afirma como "República Islâmica"!" sob um sistema de governo presi-
ação política da Mauritânia. Com a criação da União Francesa'" duran- dencialista. A nova redação do preâmbulo insiste na fidelidade ao islã e aos
te a Segunda Guerra Mundial, as antigas colônias foram incorporadas à princípios da democracia, mas acrescenta que "os preceitos do islã são fon-
Quarta República e a Mauritânia se converteu então em província france- te exclusiva de Direito e estão abertos às exigências do mundo moderno"
sa. Contudo, permaneceria politicamente submetida a um "novo" regime As interferências estrangeiras nas questões políticas da Mauritânia
colonial que qualificava as antigas colônias como "Estados associados". ficaram mais evidentes em duas ocasiões específicas. Em 1986, foram as
Nos anos 1950~com a descoberta de importantes reservas de ferro sanções econômicas do Banco Mundial e do Fundo Monetário Inter-
no Norte da colônia, a Mauritânia ganhou prioridade na agenda econô- nacional que obrigaram o governo militar mauritano de Ould Taya (no
mica francesa e se converteu em propriedade de um consórcio privado poder desde 1984, depois de um golpe de Estado) a instituir a Liga Mau-
liderado por políticos franceses para a exploração de seus recursos mi- ritana de Direitos Humanos. Em 1990, foi o próprio presidente francês
nerais. Entre 1956 e 1957, a Lei Marco permitiria a existência de insti-
tuições semiautônomas no país. Essa modificação administrativa seria
116 Constitution de Ia République islamique de Mauritanie, 22 de março de 1959. Artigo
um passo importante para a independência formal da colônia, em 28 de primeiro e artigo segundo.
117 Entre 1957 e 1960, o Marrocos reivindicou o território mauritano na Organização
115Instituição criada a partir da Conferência de Brazzaville, em 1944, e da formação da
das Nações Unidas.
Quarta República Francesa dois anos depois. O propósito da União Francesa era impe-
dir a independência das colônias francesas na África e na Ásia, a partir de uma institui- 118 A condição de "República Islâmica" está presente no jogo político mauritano desde
ção republicana que substituía o antigo império colonial francês. a Constituição; apenas foi reforçada em 1991.

126 127
François Mitterrand quem declarou, durante a 16a Cúpula Franco-afri- o resultado desse cenário de crise foi um novo golpe de Estado, de-
cana de La Baule, que a concessão de ajuda econômica e de desenvolvi- flagrado em 8 de junho de 2005, contra o então presidente eleito Ould
mento para esse país altamente endividado estaria totalmente condicio- Taya, que governou durante quase 13 anos desde sua primeira vitória de-
nada às reformas democráticas e ao atendimento dos direitos humanos. mocrática. Durante a viagem do presidente à Arábia Saudita para o fu-
A partir desse momento inaugurou-se uma fase de promessas de neral do rei Fahd, o Exército tomou a capital, Nouakchott, com extrema
democratização proferidas pelo presidente Ould Taya. Em 1992, ini- facilidade. A resposta internacional a esse golpe foi muito negativa. Os
ciou-se um processo eleitoral presidencial baseado em um sistema mul- Estados Unidos, a União Europeia e a União Africana condenaram pu-
tipartidarista, e o resultado desse pleito foi a vitória de Ould Taya sobre blicamente a queda de Taya, a quem os norte-americanos, em particular,
seu opositor, Moktar Uki Daddah, com cerca de 60% dos votos.!" Entre tinham como um aliado estratégico para impedir que o deserto do Saara
julho de 1991 e abril de 1992, o país passou de um regime militar para se convertesse em uma região de domínio ideológico da al-Qaeda e dos
uma democracia parlamentar. islamitas argelinos, bem como em lugar de tráfico de armas intenso.
Enquanto a Mauritânia experimentava 'uma abertura democrática O novo governo militar, liderado por Ely Ould Mohamed Vali, ex-
inédita em sua história, as tensões cresciam entre suas principais forças -chefe da Segurança Nacional na administração de Ould Taya, contava
demográficas: a população "árabe-berbere" e os "negros-subsaarianos" com o apoio de distintos setores da política mauritana e se manteve no
Além das questões relacionadas às divergências entre esses dois grupos, o poder com a promessa de normalizar a situação política do país. No dia
presidente eleito enfrentava o desafio de conter os conflitos sociais criados 26 de junho de 2006, celebrou-se um referendo que determinou a refor-
pelo intenso êxodo rural e pela rápida transformação de uma sociedade ma da Constituição e o apoio à manutenção de relações diplomáticas
nômade, que, por demandas econômicas, fixava-se nos centros urbanos. com Israel.
A esse ambiente interno de grandes desafios somava-se a necessidade de Em fins de 2006, realizaram-se as eleições parlamentares e, posterior-
preparar o país para enfrentar um contexto geopolítico conturbado por mente, as eleições presidenciais de março de 2007, que deram a vitória a
fatores como a chamada "questão saaráui'; 120 a rebelião tuareg no vizinho Sidi Ould Cheikh Abdallahi. Essas eleições chegaram a ser qualificadas de
Mali, o ataque de grupos ativistas islâmicos na Argélia, o aumento das transparentes pela comunidade internacional, que as enalteceu como pa-
hostilidades com o Senegal e, principalmente, a manutenção de relações radigma para o mundo árabe, em virtude de seu caráter pluripartidarista.
diplomáticas do governo de Ould Taya com o Estado de Israel.": A euforia diante de uma possível consolidação do modelo políti-
co democrático na Mauritânia depois de décadas de sucessivas inter-
119 "EI propio coronel Taya también había llegado aI poder por esta vía con un golpe venções militares foi abruptamente interrompida em 6 de agosto de
de Estado con el que en diciembre de 1984 apartó aI presidente Mohamed Juna Uld
2008, quando líderes do Exército conduziram um novo golpe de Esta-
Haidalla. Pero, a diferencia de sus antecesores, a partir de 1991, Taya puso en marcha
una democratización que en 1992 desembocó en Ias primeras elecciones presidenciales do e depuseram o presidente eleito, Sidi Ould Cheikh Abdellahi, e seu
multipartidistas. Su premio fue el triunfo en Ias urnas con 62,65 por ciento de los vo- primeiro-ministro, YahyaOuld Ahmed Waghf. O motivo do golpe foi
tos frente aI 32,75 por ciento de los obtenidos por el que entonces era su principal rival,
el primer presidente de Mauritania, Moktar Uld Daddah" Camacho, Ana. Mauritania:
golpe de Estado con olor a petróleo, s.l., Mundo Negro 499, setembro de 2005. dade com a decisão conjunta da Liga Árabe quI.!vigorava desde 1967. Quando admitida
na Liga Árabe em 1973, a Mauritânia ratificou essa posição. Durante o governo de Taya,
120 É a luta da população do Saara Ocidental pelo reconhecimento de sua independên-
as relações entre Mauritânia e Israel foram edificadas, levando sua República Islâmica
cia perante a reivindicação marroquina das terras saarianas.
ao rol de países da Liga Árabe que mantêm relações diplomáticas com Israel nesse pe-
121 Como resultado da Guerra dos Seis Dias, vencida por Israel contra uma coalizão de ríodo, tais como Egito e Iordânia. Oficialmente, a troca de embaixadores entre a Mau-
países árabes liderados pelo Egito, a Mauritânia declarou guerra a Israel, em conformi- ritânia e Israel se deu em outubro de 1999.

128 129
a decisão do presidente de destituir o chefe do Estado-maior, o general as estruturas de ambos os Estados rivalizam entre si. Nesse cenário, o
I

Mohamed el Ghazuani. Até 15 de abril de 2009, a Mauritânia esteve sob islã se firma como uma importante instituição de união identitária da
a autoridade de um Conselho de Estado liderado pelo general Moha- população mauritana, cuja maioria esmagadora se declara islârnica.!"
med Uld Abdelaziz. Entre abril e agosto de 2009, assumiu interinamente Entre todos esses elementos da estrutura social e política da Mauri-
a presidência Ba Mamadou dit Mbaré, que foi substituído com o retorno tânia, destaca-se um último: as relações clânicas. A sociedade maurita-
do general Abdelaziz, após eleições diretas. na é fundamentada em estruturas tradicionais importantes que devem
Alguns analistas da política mauritana, como a jornalista Ana Ca- ser respeitadas e não sufocadas por identidades nacionais impostas por
macho, enfatizam que a instabilidade política é resultado do interesse elites que detêm o monopólio do. poder político.
de vários grupos internos em controlar o potencial econômico do país. O grupo demográfico dos haratin (termo derivado da raiz berbere
Ao avaliar o golpe de Estado de 2005, Camacho destaca a influência do hrtn, que significa "tonalidade intermediária entre branco e negro") re-
descobrimento de grandes reservas petrolíferas em território maurita- presenta entre 40 e 45% da população mauritana. A etimologia popular
no. O domínio econômico dos recursos naturais é o principal mote
122 os designa como hur tani, ou seja, de "classificação social livre e secun-
das sucessivas sublevações dos setores militares, do mesmo modo que a dária"; sua liberdade os distinguia dos escravos, chamados de abid. Após
exportação do produto das minas._~e ferro protagonizou os conflitos do a abolição constitucional da escravidão, ocorrida apenas no final do sé-
não tão distante passado colonial. culo XX, os haratin e os abid se integraram em um único grupo social,
Independentemente dos motivos reais do intervencionismo políti- constituindo uma formação demo gráfica majoritária entre a população
co na Mauritânia, o panorama atual mostra uma situação instável. Os mauritana. Ainda que seja coeso social e economicamente, esse grupo é
múltiplos golpes de Est~do sofridos durante os últimos quarenta anos, discriminado e empobrecido, pois está submetido a um regime que lhe
as incontáveis manifestações reprimidas, as personae non gratae expul- nega igualdade de status, direitos e acesso ao bem-estar econômico, dos
sas do país e as organizações políticas e jornalísticas proibidas de atu- quais desfrutam as elites locais.
ar formaram um cenário de rivalidade política e resistência civil. Mas, Dessa forma, o Estado, composto por representantes de grupos so-
como mostra a prática política no país, o descontentamento social pode ciais elitistas, emprega 20% da mão de obra mauritana e recompensa a
ser absorvido pelo Estado se os sintomas da crise não forem muito for- lealdade política de seus "clientes" com empregos e privilégios, em uma
tes nem muito frequentes. estrutura de poder muito semelhante àquela estabeleci da durante o do-
A Mauritânia e a Líbia eram os dois únicos países da Africa do Nor- mínio colonial francês. O clientelismo perpetua a relação assimétrica
te que careciam de instituições estatais anteriores à realidade colonial. de poder entre a elite, que o detém, e seus subordinados. No fim, esse
As demais nações, ao conquistarem a independência, assumiam uma sistema desigual reparte os recursos econômicos do país somente entre
organização territorial já estabelecida pela experiência colonial, en- determinadas camadas da população e grupos sociais privilegiados pró-
quanto a Mauritânia teve que se consolidar como Estado enfrentando ximos aos líderes.
embates internos entre grupos com diferenças socioculturais que não se O sociólogo mauritano Abdel Wedoud Ould Cheikh descreve essa
identificavam como integrantes de uma mesma comunidade. O Estado gestão patrimonial do poder como uma espécie de "cultura sultânica"!"
moderno se sobrepõe ao Estado clientelista, algo recorrente na cultura
123 Segundo dados oficiais do país em 2006, 99,84% da população é muçulmana e 0,16%
política de parte dos países da África do Norte, e, ainda que coexistam, professa o cristianismo.
124 Para o conceito de "cultura sultânica" ver Cheikh, Abdel Wedoud Ould. La science
122 Camacho, op. cit. au(x) miroir(s) du Prince. Savoir et pouvoir dans l'espace arabo-musulman d'hier et

130 131
e reforça como a relação entre o eleitorado e os partidos políticos se madas mauritanas voltarão aos seus quartéis ou seguirão como principal
fundamenta a partir das vantagens outorgadas ou negadas a esse pú- barreira à instauração de um real governo civil democrático no país. O
blico após as últimas eleições. Assim, os haratin passaram de "cria- golpe militar de 2008 mostrou claramente que o Exército não exerceu o
dos domésticos" a "criados políticos" que buscam refúgio nas forma- papel de defensor dos direitos democráticos do povo mauritano.
ções políticas constituídas por seus antigos senhores. A exceção a esse Da experiência colonial à ação política intervencionista e autori-
comportamento aparece numa minoria radical dos haratin, que aderiu tária das forças armadas, a Mauritânia ainda é uma invenção europeia,
ao movimento contestatório dos "negros mauritanos" que precisa ser "reinventada"
Para muitos analistas, como o já citado Ulrich Rebstock, o processo
democrático mauritano não apenas foi interrompido bruscamente, mas 3.2 África Ocidental: do oceano Atlântico ao mar de sangue
reanimou estruturas pré-estatais corrompidas, que estão estrangulan- na Libéria e em Serra Leoa
do o desenvolvimento do país com o pretexto de serem mais "democrá-
ticas': A ausência clara de uma administração civil eficaz leva à fraude A África Ocidental é uma sub-regíão que reúne uma grande mul-
eleitoral, e a opressão do aparato estatal reprime qualquer tentativa de tiplicidade de países, com experiências distintas de descolonização e
compromisso civil. O longo processo de democratização claramente de construção dos seus Estados nacionais. Podem-se considerar os se-
fracassado, a repetida suspensão de eleições e o controle destas por eli- guintes países como integrantes dessa sub-região: Benin, Burkina Faso,
tes institucionalizadas não permitem um prognóstico otimista para a si- Cabo Verde, Camarões, Chade, Costa do Marfim, Gabão, Gâmbia, Gana,
tuação política da Mauritânia. Guiné, Guíné-Bissau, Guiné Equatorial, Libéria, Mali, Níger, Nígéria,
O discurso dúbio de regimes autoritários que, com o propósito de São Tomé e Príncipe, Senegal, Serra Leoa e Togo.
transmitir uma falsa impressão de segurança e proteção, se apropriam
de termos democráticos para legitimar-se - mas se recusam sistematica-
Países que formam a África Ocidental
mente a governar de modo a atender às necessidades de seus cidadãos -
é uma realidade na Mauritânia. Contudo, essa falsa ideia de democracia
traz um risco: pode criar um anseio amplo por reais instituições demo-
cráticas capaz de trazer, no longo prazo, efeitos colaterais indesejados
Cabo Verde
para o Poder Executivo autoritário.
r?r::.f o Mali

.'~.
A ausência de informação confiável nos meios de comunicação so- o Chade
bre a opinião da população mauritana acerca do recente quadro político
do país não permite uma análise re'al do grau de descontentamento ou Gâmbla

da mobilização social na Mauritânia. A comunidade internacional tarn-


pouco parece envolver-se nesse debate, mantendo uma conveniente ati-
tude de expectativa.
Diante de um sistema político fortemente presidencialista, com cons- Togo Senin

tante intervenção do Exército, torna-se neces~ário indagar se as forças ar-

d'aujourd'hui. Revue des mondes musuImans et de Ia Méditerranée, 101-102, julho de


EqUatorial/O
Guiné

SãoTomé
f!jJ
Gabão

e Príncipe
2003, disponível on -line em http://remmm.revues.org/ 46.

l32 133
Na complexa gama de países que compõem a África Ocidental, a Li- no, [ames Monroe -, o modelo republicano estadunidense. A primeira
béria se destaca por não ter sido submetida a um forte processo de colo- Constituição da Libéria foi escrita no mesmo ano de 1847 pelo professor
nização pelas potências europeias no século XIX, ao contrário de grande Simon Greenleaf, da Universidade de Harvard. O texto constitucional
parte dos países africanos. Do mesmo modo que a Etiópia, a Libéria não garante privilégios aos cidadãos descendentes de americanos, em detri-
teve suas fronteiras desenhadas pela dominação europeia - o que não sig- mento da população local não emigrada. Dentre os artigos constitucio-
nifica que o país não tenha sido uma espécie de criação colonial. A dife- nais que mais evidenciam as regalias está o artigo 4u, que em suas seções
rença em relação aos demais países africanos não é seu destino trágico, e 12, 13,14 e 15 afirma:
sim o país colonizador: os Estados Unidos da América. Seco 12. Nenhuma pessoa terá direito de manter imobiliário nessa Repú-
A Libéria foi, em um primeiro momento, um projeto oficial de luta blica, a menos que seja um cidadão da mesma. No entanto, esse artigo não
contra o tráfico negreiro, em meados do século XIX. A ideia era consti- poderá ser interpretado como aplicável a instituições com propósitos de
tuir um território de liberdade para os negros em sua região de origem, Colonização, Missionárias, de Educação, ou de outras ações beneficentes,
26
desde que a propriedade seja aplicada a seus fins legítimos.1
a África. Por trás do discurso humanitário e bem-intencionado estava o
Seco 13. O grande objetivo de formar essas colônias é dar um lar para os
desejo de transferir para o continente africano os negros livres que vi- filhos dispersos e oprimidos da África, além de regenerar e iluminar esse
viam nos Estados Unidos e também na Europa. A demografia dos paí- continente tenebroso. Ninguém, a não ser pessoas de cor, deve ter direito
ses colonizadores começava a preocupar a elite branca local. Europeus e à cidadania nessa República.!"
Seco 14. A compra de um terreno por qualquer cidadão ou cidadãos abo-
norte-americanos viam que a população negra crescia fora da África, e
rígines desse país para si ou seu uso próprio, ou em benefício de outros,
temiam que isso gerasse problemas no médio prazo, como a Revolução ou bens ou propriedades simples e gratuitas será considerada nula e sem
do Haiti, de 1791.125 efeito para todos os intentos e propósitos. 128
Assim, em 1822, a Libéria foi fundada por emigrantes negros dos Seco 15. A melhoria das tribos nativas e seu avanço nas artes da agricultura
Estados Unidos, os quais se somaram a escravos que haviam sido liber- e pecuária é um objeto caro a esse governo e deve ser o dever do presidente
nomear em cada conselho uma pessoa discreta, cujo dever será o de tor-
tos e levados para a África Ocidental após serem retirados de navios ne-
nar regular excursões periódicas em todo o país com o objetivo de chamar
greiros. A Libéria não foi o único país destinado a ser um território para a atenção dos nativos para esses ramos saudáveis da indústria, e instruí-los
ex-escravos. Serra Leoa e a região da atual cidade de Libreville, no Ga-
bão, também foram instituídas como terra de acolhida a negros emigra-
dos. O que torna o caso da Libéria único é seu vínculo histórico com os
Estados Unidos no século XIX.
126 "Sec 12th. No person shall be entitled to hold real estate in this Republic, unless he be

Em 1847, a Libéria tornou-se oficialmente uma República sob a li- a citizen of the same. Nevertheless this article shalI not be construed to apply to Colo-
derança dos negros norte-americanos que passaram a viver nessa re- nization, Missionary, Educational, or other benevolent institutions, so long as the pro-
perty or estate is applied to its legitimate purposes"
gião. Os negros "américo-Iiberianos" reproduziram na capital do país,
127 "Sec. 13th. The great object of forming these Colonies, being to provide a home for
Monróvia - nome em homenagem ao quinto presidente norte-america-
the dispersed and oppressed children of Africa, and to regenerate and enlighten this be-
nighted continent. None but persons of color shalI be admitted to citizenship in this
Republic"
125A Revolução do Haiti de 1791 foi uma luta pela independência promovida pelos ne-
128 "Sec. 14th. The purchase of any land by any citizen or citizens from the aborigines of
gros que viviam na província francesa de Saint-Domingue. Liderados por Toussaint
Louverture, os negros da província conquisraram a independência e instauraram uma this country for his or their own use, or for the benefit of others, or estate or estates in
República, inspirados na Revolução Francesa de 1789. free simple, shalI be considered nulI and void to ali intents and purpose"

135
134
em relação aos mesmos, e o Legislativodeve, assim quese possa fazer conve- por uma política de perseguição c tortura à população "arnérico-liberia-
nientemente, tomar medidas para esse fim pela apropriação de dinheiro.!" na" A Constituição de 1847 foi abolida e substituída, em 1986, por uma
nova Carta Magna, que não permitia interpretações capazes de favore-
Cada seção constitucional revela um aspecto que confirma a con- cer os cidadãos de origem americana.
cessão de privilégios a pessoas e instituições vinculadas aos Estados Samuel K. Doe manteve-se firme no poder até o retorno à Libéria
Unidos. O status concedido às instituições de "colonização, missioná- de um ex-funcionário do governo, Charles McArthur Ghankay Taylor.
rias ou educacionais" impõe padrões culturais ocidentais à população Após ter sido exonerado por corrupção em 1983 e ter fugido para os Es-
local, além de privilegiar essas instituições economicamente. Isso tam- tados Unidos - depois possivelmente para a Libia -, Taylor entrou em
bém fica evidente quando, na seção 13, o continente africano é descrito 1989 na Libéria pela fronteira com a Costa do Marfim e empreendeu
como "tenebroso': As instituições adventícias detêm prerrogativas que uma guerra de guerrilha que se estendeu por longo tempo.
promovem certa "desafricanização" da Libéria, já que as "tribos nativas" Ao retornar à Libéria, Taylor levou as técnicas de um novo tipo de
ou "aborígines" devem sofrer constantes "melhorias" garantidas pelo combate que empregava combatentes paramilitares com armas leves e
governo. A política em favor dos emigrados norte-americanos garante de baixo custo e não diferenciava alvos civis de militares. A base do exér-
a concessão de uma posição social privilegiada a esses cidadãos e o fa- cito de Taylor (Frente Patriótica Nacional da Libéria - FPNL) era for-
vorecimento de empresas dos Estados Unidos, como a Firestone Plan- mada por uma nova categoria de guerreiros: os "soldados-crianças': 130
tation Company, que chegou a exercer forte influência na política da Li- Esse tipo de estrutura paramilitar se popularizou em parte considerável
béria na primeira metade do século XX. da Africa Ocidental com grande êxito, sobretudo em Serra Leoa.
Até meados do século XX, o país passou por diversas crises internas Entretanto, em sua própria força paramilitar, Taylor passou a ter
em consequência do confronto entre os colonos norte-americanos e os um concorrente: Prince Yormie Johnson, um líder da FPNL que havia
negros locais. Somado a esse cenário de instabilidade social, sofreu graves conquistado fama com a captura, tortura e morte do presidente Samuel.
problemas econômicos em razão do seu endividamento junto a credores K. Doe, em 1990. Quando parecia que Taylor não teria mais adversários,
europeus e norte-americanos, como a própria Firestone, que obteve, gra- a FPNL sofreu diversas divisões, que arrastaram a Libéria para mais seis
ças a essas dívidas, algumas concessões de terras para plantio de borracha. anos de sangrentos confrontos internos. Mais do que o poder políti-
Com o passar do tempo, a Libéria foi caminhando para uma situa- co, cada facção disputava o controle das principais fontes de riqueza do
ção política cada vez mais instável, até que em 12 de abril de 1980 o pre- país: borracha, ferro, madeira, café e cacau. No total, acredita-se que a
sidente William Tolbert [unior foi deposto e assassinado por um golpe Libéria chegou a ser retalhada em sete facções, uma situação insusten-
militar liderado pelo sargento Samuel Kanyon Doe, o primeiro liberia- tável do ponto de vista político, econômico e social. Um exemplo disso
no nativo a ocupar o cargo de presidente da República. Sob o domínio foi o cerco a Monróvia, em abril de 1996, quando cinco facções distintas
de Doe, a Libéria viveu tempos de violência e autoritarismo, marcados enfrentaram-se na capital, causando milhares de mortes.

llO "Em um contexto perverso, os soldados-crianças se ajustavam perfeitamente às ne-


129 "Sec. 15th. The improvement of the native tribes and their advancement in the arts of
agriculture and husbandry, being a cherished object of this government, it shall be the cessidades de Taylor. Eram fáceis de recrutar, ingênuos o suficiente para ficar dentro do
duty ofthe President to appoint in each county some discreet person whose duty it shall ambiente e, armados com AK, tão letais quanto os adultos. Mesmo os garotos mais jo-
be to make regular and periodical tours through the country for the purpose of calling vens, para quem era difícil empunhar o fuzil, podiam disparar balas e atingir um alvo
the attention of the natives to these wholesome branches of índustry, and of instructing humano. Psicologicamente, os soldados-crianças tinham outras vantagens. A juventu-
their in the same, and the Legislature shall, as soon as it can conveniently be dane, make de os fazia se sentirem invulneráveis," Kahaner, Larry. AK-47: a arma que transformou
provisions forthese purposes by the appropriation of money" a guerra. Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 90-91.

137
136
Após longas negociações para um cessar-fogo, as rivalidades foram Ruanda e outros países na África constituem somente uma pequena parte
de uma longa lista de devastação realizada pelo AK e outras armas peque-
sendo contornadas e, em 1997, realizaram-se eleições, que deram a vi-
nas. Em alguns países, o AK é chamado jocosamente de "cartão de crédito
tória a Taylor, com 75% dos votos. A opinião pública internacional acei- africano",porque em muitas partes do continente é necessário ter um para
tou o resultado do pleito, e, nos anos seguintes, o mundo acompanhou a existência diária. Em Angola, por exemplo, os refugiados e os ex-rebel-
a ascensão de Taylor à condição de ditador e chefe de um exército de des fugindo das forças do governo durante a guerra civil trocavam AKs
crianças munidas de armas leves, como o AK-47. O presidente da Li- por alimentos com habitantes de aldeias naZârnbía.!"
béria transformou-se em um importante intermediário no comércio de
armas na África, fornecendo armamento a grupos aliados de países vi- O fascínio causado por essas armas pequenas e leves é um dano
zinhos e oferecendo proteção a traficantes internacionais de armas. Um já incorporado à simbologia política de algumas regiões da África. Em
dos grupos beneficiados pela "ajuda" de Taylor foi a Frente Revolucio- Moçambique, por exemplo, a bandeira nacional ostenta um AK-47 jun-
nária Unida (RUF), de Serra Leoa, que garantia a ele o acesso às minas to a uma enxada com um livro ao fundo. Entre soldados-crianças, fuzis
de diamante serra -leonesas. de assalto, minas de diamantes, ditadores sanguinários e a conivência
Não tardou muito para que se organizassem grupos opositores na das duas maiores potências mundiais do período (EUA e URSS), a his-
Libéria. Dois anos após a chegada de Taylor ao poder, o grupo Liberia- tória da África na segunda metade do século XX foi escrita unindo pelo
nos Unidos para a Reconciliação e Democracia (LURD) consolidou um sofrimento a África Ocidental à África Central.
foco de resistência de guerrilha no norte do país, com o apoio do gover-
no da Guiné, recorrendo aos mesmos métodos guerrilheiros utilizados 3.3 África Central: violência e intolerância
pela FPNL antes das eleições de 1997. No sul do país, o grupo Movimen- no genocídio burundiano-ruandês
to para a Democracia na Libéria (MODEL) organizava-se com o apoio
da vizinha Costa do Marfim. Vendo seu poder esfacelar-se, Taylor deu Para melhor elaborar as discussões sobre a África pós-colonial,
início à operação No Living Thing, uma campanha cruel para impedir adotou-se neste livro uma subdivisão geográfica que enquadra em ca-
que civis dessem apoio a grupos de oposição, principalmente o LURD. tegorias distintas um grande número de países africanos. Mais do que
As medidas repressoras fracassaram paulatinamente, levando-o à perda estabelecer um padrão rígido de modelo explicativo, o emprego da de-
do controle do país, em 2003, e ao exílio nos anos seguintes. Depois de nominação "Africa Central" como sub-região visa melhor organizar as
ser preso e enviado a Serra Leoa, onde um tribunal especial das Nações informações sobre determinados países africanos. Não se considera
Unidas o acusou de diversos crimes, Taylor foi mandado à Corte Penal aqui a existência de fronteiras rígidas que determinam um olhar único
Internacional de Haia para responder por delitos relacionados à guerra sobre o centro do continente. Desse modo, com a liberdade própria de
civil serra-leonesa, quem reconhece os limites de categorias pretensamente "verdadeiras" e
O principal legado deixado pela experiência sanguinária dos con- essencialistas, entende-se por África Central uma sub-região que abriga
flitos na Libéria e em Serra Leoa foi a permanente circulação de uma os atuais Estados de Burundi, Comores, Congo, Djibuti, Eritreia, Etiópia,
quantidade incalculável de armas pequenas no continente, empunha- Quênia, República Centro-Africana, República Democrática do Congo,
das, na maioria das vezes, por crianças. As armas contrabandeadas, so- Ruanda, Seychelles, Somália, Tanzânia e Uganda.
bretudo por Taylor, alimentaram confrontos políticos em outras regiões
da África, como a Somália, o Congo, a África do Sul, Moçambique e
Ruanda. Sobre os problemas gerados pela grande quantidade desse tipo
131 Kahaner,op. cit., p. 107.
de arma na África, o jornalista Larry Kahaner salienta:

138
-.~.r

Países que formam a África Central que são a minoria populacional, estiveram ligados ao poder colonial dos
alemães e depois dos belgas, que controlaram a região até a segunda me-
Eritreia tade do século XX. A emancipação política de Ruanda em 1962 conso-
lidou a ascensão dos hutus ao poder, favorecendo a escalada do revan-
chismo histórico entre hutus e tutsis, que rondava o país no momento
ernque o jato presidencial foi abatido.
A morte do presidente da República levou o então comandante do
Estado-maior do Exército ruandês, coronel Théoneste Bagosora, a assu-
mir o comando efetivo de um país que parecia se afundar em uma crise
política. Bagosora era um dos integrantes ais ativos do chamado "co-
seychelle,\ • mando linha-dura" dos hutus, grupo que mantinha um discurso de ódio
~;t·
aos tutsis. A existência de um sentimento de "revanche" em relação aos
tutsis não era privilégio de setores militares. Outras esferas importantes
da sociedade ruandesa eram vulneráveis ao sedutor apelo à vingança,
Comores
01 incentivado pelos antigos colonizadores, principalmente os belgas, que
.' D
recorriam às rivalidades locais para enfraquecer os colonizados e au-
mentar o domínio sobre ele'). O principal veículo de propagação do ódio
A história contemporânea da África Central é carregada de cir-
aos tutsis era a Mille Collines, uma emissora de rádio controlada por
cunstâncias adversas, sendo um dos casos mais aterradores o genocí-
hutus radicais que, ao anunciar a morte de Habyarimana, acusou os tut-
dio ocorrido em Ruanda e no Burundi em meados dos anos 1990. O
sis de derrubarem o jato presidencial. Os veículos de comunicação em
mundo ficou perplexo com a paulatina confirmação de que milhares de
Ruanda, em particular o rádio e a televisão, insultavam os tutsis rotinei-
vidas foram brutalmente exterminadas em uma região da África havia
ramente. Assim, em programas transmitidos para todo o país, eles eram
tempos esquecida pelos meios de comunicação. Desde 1994, a região
chamados de Inyenzi, que, na língua kinyarwanda, significa "baratas". A
central do continente africano, especialmente a República de Ruanda,
rádio Mille Collines viu na morte do presidente uma grande oportuni-
transformou-se em sinônimo de uma barbárie que faz recordar o Holo-
dade de conclamar a população hutu a juntar-se ao exército liderado por
causto e que contou com a cumplicidade indireta dos países do Conse-
Bagosora, afastando rapidamente qualquer político ruandês moderado
lho de Segurança das Nações Unidas à época, como por exemplo os Es-
que pudesse vir a ser um crítico do revanchismo hutu.
tados Unidos e a França.
As primeiras ações das autoridades ruandesas foram assustadoras.
Em 6 de abril de 1994, o jato presidencial ruandês -levando a bordo
Em pouco tempo, os hutus radicais já haviam instalado barreiras milita-
o presidente de Ruanda, Juvénal Habyarimana, e o presidente do Burun-
res nas estradas que ligavam a capital, Kigali, ao resto do país. Além dis-
di, Cyprien Ntaryamira - foi derrubado a tiros. A trágica notícia correu
so, favoreceram a ação de milícias hutus, como a Impuzamugambi 132 e
o país, historicamente marcado por uma experiência colonial que ali-
mentou a divisão social e política de sua população, especialmente entre
dois grupos de origem banyaruanda: os hutus e os tutsis. Antes da inde-
1J2 Em kinyarwanda, "aqueles que têm o mesmo objetivo", Nome da segunda maior mi-
pendência do país, setores economicamente mais abastados dos tutsis, lícia hutu de Ruanda em meados da década de 1990.

140
141
a Interahawme,':" que caçavam supostos inimigos. Rapidamente, o pri- Mesmo o Brasil, que inaugurou suas relações diplomáticas com
meiro alvo dos hutus radicais foi encontrado e eliminado: a primeira- Ruanda em 1981, nunca realizou uma visita oficial ao país, nem firmou
-ministra interina de Ruanda, Agathe Uwilingiyimana, de origem hutu, acordos de cooperação. A verdade é que, para os países ocidentais, a
considerada "traidor à' por sua posição moderada. Em 7 de abril, um dia África Central e Ruanda jamais foram áreas prioritárias em termos de
depois do atentado ao jato presidencial, Uwílíngíyímana estava morta, ação diplomática, o que ficou claro por ocasião do genocídio de 1994. A
após um ataque à sua casa, e Ruanda, sem presidente e sem primeira- falta de mobilização dos principais atores da política internacional dian-
-ministra, mantinha-se sob o controle absoluto dos radicais hutus. te do aumento gradual da violência no país isolou a missão de assistên-
A rádio Mille Collines favorecia k ação dos assassinos radicais, trans- cia das Nações Unidas para Ruartda (Unamir), que já atuava na região e
mitindo os nomes e a localização de hutus "traidores" e tutsis, o que encontrava-se, naquele ano, sob o comando do tenente-general holan-
confirmava a existência de uma lista prévia de inimigos a serem elimi- dês-canadense Roméo Allain Dallaire.
nados. Aos ruandeses restava ouvir o anúncio dessa lista de execução, As forças de paz da Unamir pouco puderam fazer quando a situ-
na expectativa de que nenhum de seus entes queridos ou amigos fosse ação em Ruanda se deteriorou com a resposta dos tutsis às primeiras
mencionado. mortes. A Frente Patriótica Ruandesa (FPR) - uma organização milícia-
A rápida desintegração da coesão nacional em Ruanda e a tomada na formada portutsis exilados, que havia restringido sua ação em Ru-
das forças de segurança por líderes radicais do Exército mostraram que anda após um acordo de paz, parte dos Acordos de Arusha'" - voltou
o Estado ruandês sofria do mesmo mal que a maioria dos Estados pós- às ruas de Kigali com o objetivo de repelir os ataques promovidos pelo
-coloniais da África: a fraqueza de suas instituições. Uma onda de vio- exército e pelas milícias hutus. Foi exatamente nesse momento que teve
lência brutal contra a população nacional foi o destino comum de mui- início o genocídio em Ruanda, pois o confronto entre hutus e tutsis se
tos Estados africanos e asiáticos criados sob.a força do poder colonial transformou em um irremediável embate de proporções nacionais.
das potências ocidentais no século XIX. Assim, grande parte dos países Toda a população ruandesa estava, naquele momento, diretamente
africanos que alcançaram sua independência na segunda metade do sé- envolvida na crescente onda de violência, compondo um cenário dra-
culo XX não respeita fronteiras demo gráficas e culturais evidentes, o mático de enfrentarnentos generalizados. Nos ataques iniciados pelos
que estimula a rivalidade entre grupos locais distintos. Marcada por um militares hutus radicais, as armas de fogo não foram o único meio utili-
passado de violência característico das relações coloniais, Ruanda se de- zado por civis para matar tutsis e hutus moderados. Muitas mortes fo-
senvolveu em meio a intolerâncias alimentadas por políticas coloniais. ram causadas por instrumentos rústicos, tais como martelos, porretes,
Quando o fracasso da colonização belga ficou evidente, os colonizado- chaves de fenda, facões, foices ou qualquer outro que pudesse servir a
res abandonaram o poder sem a preocupação de formar um ambiente esse fim, o que tornava os crimes ainda mais bárbaros. Nesse ambiente
social harmonioso e politicamente eficiente para a sociedade civil lo- de extrema crueldade, chama atenção o uso do masu, uma grande clava
cal. Assim, o previsível aumento das hostilidades entre grupos rivais em cravejada de pregos, muito utilizada no interior do país.
Ruanda e em grande parte dos países africanos trazia a marca da indi-
ferença ocidental.

134-0S chamados Acordos de Arusha eram um conjunto de acordos assinados em 4 de


agosto de 1993 na cidade tanzaniana de Arusha, entre a Frente Patriótica Ruandesa e o
J33 Em kinyarwanda, "aqueles que lutam juntos': Nome da maior milícia hutu de Ruan- governo de Ruanda. O objetivo dos acordos era estabelecer medidas para pôr fim a uma
da em meados da década de 1990. guerra civil de três anos envolvendo tutsis e hutus.

147 143
Os tutsis que tentavam fugir acabavam caindo nas barreiras ergui- - Ajudar uma mulher tutsi;
das pelos hutus nas estradas de todo o território. O número de mortes - Empregar uma mulher tutsi como secretária ou concubina.
2. Todo hutu deve saber que nossas filhas hutus são mais adequadas e ínte-
foi ganhando tamanha proporção que grande parte dos cadáveres nem
gras em seu papel de mulher, esposa e mãe de família. Que elas são belas,
sequer foi sepultada. O sol intenso em Ruanda apodrecia mais rapida- boas secretárias e mais honestas.
mente a carne humana abandonada pelas ruas, estradas, igrejas e casas 3. Mulheres hutus, sejam vigilantes e busquem abrir os olhos de seus ma-
de todo o país. Além da tragédia dos massacres constantes, o terror so- ridos, irmãos e filhos.
frido pelos civis ruandeses começava diante da escolha entre proteger 4. Todo hutu deve saber que todo tutsi é desonesto nos negócios. Seu úni-
co objetivo é a supremacia de seu grupo étnico. Assim, qualquer hutu que
entes queridos ou a própria pele. Apesar do histórico conflito entre hu-
praticar as ações abaixo mencionadas é um traidor:
tus e tutsis, esses dois grupos mantinham relações próximas, não sen- - Ser sócio de um tutsi em um negócio;
do raros casamentos mistos e amizades em toda a sociedade ruandesa. - Investir seu dinheiro ou dinheiro público em uma empresa tutsi:
A questão central da escalada de violência em Ruanda é que, mesmo - Emprestar dinheiro a um tutsi ou tomar dinheiro emprestado de um tutsi;
com os esforços de paz que antecederam o genocídio em 1994 e as posi- - Favorecer um tutsi nos negócios (concedendo licenças e importação,
empréstimos bancários, canteiros de obras, mercados públicos etc.).
ções moderadas de alguns setores da sociedade, a militarização do país, 5. Todos os cargos estratégicos, políticos, administrativos, econômicos,
iniciada ainda nos anos de domínio colonial belga, não deixou de existir. militares e desegurança devem ser ocupados por hutus.
O frágil Estado ruandês, que fora governado por belgas com a co- 6. No setor da educação (escolares, estudantes universitários, professores),
nivência de tutsis no período colonial, e depois controlado durante três a maioria deve ser hutu.
décadas por hutus revanchistas, nãofoi preparado para formar institui- 7. As forças armadas ruandesas devem ser formadas exclusivamente por
hutus. A experiência de outubro de 1990 nos ensinou uma lição. Nenhum
ções fortes capazes de promover uma coesão nacional definitiva. Não
militar deve casar-se com uma tutsi.
havia segurança sequer para os moderados de ambos os lados que dese- 8. Os hutus devem parar de ser clementes com os tutsis.
javam a paz e a formação de uma nação tão próspera quanto os modelos 9. Os hutus, estejam onde estiverem, devem ter união e solidariedade, e se
nacionais propagados pelas potências ocidentais depois do fim formal interessar pelo destino de seus irmãos hutus:
do colonialismo na África. - Os hutus dentro e fora de Ruanda devem constantemente procurar ami-
gos e aliados para a causa hutu, começando por seus irmãos bantos:
Os chamados Acordos de Arusha não foram unanimidade entre os
- Devem opor-se constantemente à propaganda tutsi: .
cidadãos ruandeses. Os setores hutus extremistas não somente repudia- - Os hutus devem ser firmese vigilantescontra seu inimigo comum, os tutsis.
ram esses acordos como também aproveitaram o cessar-fogo momentâ- 10. A revolução social de 1959, o referendo de 1961 e a ideologia hutu de-
neo para comprar mais armas de fogo e intensificar a campanha pública vem ser ensinados a todo hutu em todos os níveis. Todo hutu deve dis-
contra os tutsis, por meio de jornais e programas de rádio e televisão. seminar amplamente essa ideologia. Todo hutu que perseguir um irmão
hutu por ter lido, disseminado e ensinado essa ideologia é traidor!"
Como exemplo dessa campanha racista contra os tutsis, vale a pena ci-
tar o artigo "Os 10 mandamentos do Hutu', publicado em fins de 1990 Considerando que esse artigo foi publicado quatro anos antes do ge-
no jornal hutu Kangura: nocídio em Ruanda, torna-se impossível alegar que a imprensa interna-
Os 10 mandamentos do Hutu: cional, as embaixadas estrangeiras em Ruanda e as Nações Unidas não
puderam prever o final trágico dessa campanha de ódio. Além disso, em
1. Todo hutu deve saber que uma mulher tutsi, de qualquer origem, serve
aos interesses dos tutsis. Assim, considera-se traidor qualquer hutu que:
- Desposar uma mulher tutsi; 135 Extraído e traduzido de www.rwandafile.com/Kangura/k06a.html.

144 145
fins de 1993 e nos primeiros meses do ano de 1994, ocorreram diversos crescente de violência em Ruanda e a situação dos americanos naquele
assassinatos políticos, como, por exemplo: o assassinato de 50 mil civis no país. Quando ela saiu da tribuna, Michael McCurry, porta-voz do depar-
Burundi, em outubro de 1993; a morte do ministro de Obras Públicas Fe- tamento, ocupou seu lugar e criticou governos estrangeiros por impedi-
rem a exibição do filme A lista de Schindler, de Steven Spielberg. "Essefil-
licien Gatabazi, um hutu moderado que havia promovido diálogos com
me retrata de modo tocante (...) a catástrofe mais horrível do século XX':
a Frente Patriótica Ruandesa; e a morte de Martin Bucyana, um hutu ex- disse McCurry. "E mostra que, mesmo em meio a um genocídio, um indi-
tremista ligado à Coalition pour Ia Défense de Ia République (CDR). O víduo pode fazer diferença." McCurry pediu que o filme fosse exibido no
assassinato de Bucyana parecia indicar que a violência revanchista cres- mundo todo. "O modo mais eficaz de evitar a recorrência da tragédia do
cia em Ruanda, já que sua morte foi entendida como uma retaliação dos genocídio é garantir que atos genocidas do passado nunca sejam esqueci-
dos:' Ninguém associou os comentários de Bushnell aos de McCurry. Jor-
tutsis, o que pode ter acontecido, mas nunca foi comprovado.
nalistas e funcionários do governo dos Estados Unidos não estavam pen-
Em 1994, o ambiente internacional era desfavorável à ação estran- sando nos tutsís.!"
geira em favor da paz. Um ano antes, os Estados Unidos haviam sofri-
do um grande revés na Somália após uma tentativa de resgatar soldados A pressão internacional sobre Ruanda não levava em consideração
das Nações Unidas que atuavam no país durante a guerra civil. A inge- o destino trágico dos ruandeses, mas concentrava suas preocupações
rência norte-americana no conflito somaliano gerou uma quantidade nos cidadãos estrangeiros que viviam no país. Dallaire chegou a pedir
expressiva de mortos e feridos em apenas 15 horas de combate. Dois que o efetivo de soldados das Nações Unidas passasse a 5 mil homens,
helicópteros Black Hawk da força de elite do exército norte-americano mas recebeu a instrução de dar prioridade à retirada dos estrangeiros.
foram abatidos em Mogadíscio, tornando a operação de resgate na So- Em 9 de abril, ele recebeu cerca de mil soldados europeus para auxiliar
mália uma catástrofe. na remoção de cidadãos estrangeiros. Esses homens recém -chegados ti-
Enquanto os países do Conselho de Segurança das Nações Unidas nham ordens expressas de seus governos e das Nações Unidas para não
mostravam-se reticentes em ampliar a ação das forças de paz no mun- realizar ações de salvamento de ruandeses; sua missão era exclusiva-
do, Roméo Dallaire percebia que o apoio internacional às suas tropas mente garantir a remoção dos estrangeiros. Ao longo dos três dias de
em Ruanda era impossível, apesar de necessário. Dallaire implorou que atuação desse contingente europeu, 4 mil estrangeiros foram retirados
as Nações Unidas enviassem mais soldados para conter os hutus extre- de Ruanda, enquanto 20 mil ruandeses foram brutalmente assassinados
mistas, mas foi, por muito tempo, ignorado. Em Washington, o governo com a conivência das potências mundiais.
norte-americano apenas emitia sinr.is de "apreensão" com a escalada de Com o passar dos dias, era cada vez mais difícil ignorar o genocí-
violência em Ruanda, criando situações bastante constrangedoras para dio ruandês. Havia indícios claros de que a violência no país era orques-
os seus assessores perante a imprensa; a jornalista Samantha Power des- trada pelo coronel Bagosora, o que não permitia que os acontecimentos
taca uma passagem embaraçosa ocorrida no Departamento de Estado fossem classificados como uma guerra civil, ou até mesmo uma limpeza
norte-americano durante uma entrevista coletiva, em 8 de abril de 1994 étnica. A dinâmica do genocídio envolvia diversas esferas das forças de
(dois dias após a morte do presidente ruandês): segurança do país. O Exército dava o suporte logístico, a polícia prendia
.' as vítimas e as milícias as torturavam e matavam; depois esquartejavam
Na entrevista coletiva à imprensa no Departamento de Estado em 8 de
e abandonavam os corpos.
abril, Bushnell= esteve presente e falou com preocupação sobre a onda

136 Prudence Bushnell, secretária adjunta interina de Estado para Assuntos Africanos 137 Power, Samantha. Genocídio: a retórica americana em questão. São Paulo: Compa-
do governo dos Estados Unidos durante o genocídio em Ruanda. nhia das Letras, 2004, p. 402-403.

146
147
Os relatos dos sobreviventes e das testemunhas do genocídio ruan- te para as tropas ou retaliações diplomáticas contra o governo ruandês,
dês são a prova mais evidente de que os governos ocidentais e a impren- nada foi feito. Uma das poucas iniciativas internacionais foi um esfor-
sa internacional estavam equivocados em suas análises sobre os aconte- ço, principalmente norte-americano, para fomentar o embargo de ar-
cimentos de 1994. As declarações oficiais dos Estados e até mesmo do mas a Ruanda. Essa ação não gerou impacto profundo na contenção
Conselho de Segurança das Nações Unidas à época evitaram ao máxi- dos massacres, já que a interiorização do conflito mostrava que as ar-
mo o uso do termo "genocídio". Reconhecer a real dimensão dos acon- mas mais utilizadas no país eram o facão, a foice, o martelo e o masu.
tecimentos em Ruanda era assumir que os principais países do mundo As primeiras ações concretas contra o genocídio só começaram a
haviam se esquivado de suas responsabilidades sobre crimes cometidos aparecer em meados do mês de maio do referido ano. No dia 17, quan-
contra a humanidade. Já a imprensa, envolvida em tentativas de explicar do a maior paste das vítimas já havia sucumbido à violência, o Conse-
o que acontecia no país, reproduzia velhos preconceitos que transfor- lho de Segurança das Nações Unidas autorizou o envio de mais soldados
mam a África em espaço típico de violência. a Ruanda. Entretanto, poucos países estavam dispostos a correr o risco
Muitos jornalistas viam e continuam vendo a África como um am- de enviar seus soldados a um cenário de conflito tão aterrador. A Fran-
biente "primitivo'; invocando conceitos como "tribalismo" para identificar ça, que tradicionalmente mantinha boas relações com o governo hutu,
nos africanos aquilo que é próprio da condição humana, mas que não se responsável pelogenocídio, anunciou em junho a chamada "Operação
deseja reconhecer em si mesmo. Para jornalistas e "especialistas de área'; a Turquesa'; que consistiu no envio de 2.500 soldados para a criação de
rivalidade entre "grupos étnicos" é a essência da experiência humana não uma zona de estabilidade no sudoeste do país, próxima ao Burundi e ao
ocidental, e eles acabam convertendo o conceito de "etnia" numa justifi- Zaire.'> A ação francesa foi rápida, mas não conseguiu acabar com os
cativa pasteurizada para todos os problemas sociais dos povos africanos e massacres nem na área de estabilidade recém -criada. Assim, os respon-
asiáticos. A responsabilidade pela violenta experiência colonial e a manu- sáveis pelo fim do genocídio foram os próprios rebeldes tutsis da FPR,
tenção de estruturas sociais sufocantes criadas pelos impérios europeus liderados por Paul Kagame.!"
na África são apenas alguns pontos importantes que se perdem na des- Nos anos que se seguiram, os problemas internos de Ruanda estive-
crição jornalística e acadêmica de "ódios étnicos" ou "tribais" O resulta- ram longe de ser resolvidos. O avanço da FPR pelo país criou, naquele
do desse cenário caótico em que ninguém encontrava um nome correto momento, uma massa de refugiados hutus que debandava em direção
para se referir às imagens de pilhas de cadáveres apodrecendo nas ruas de ao Zaire e à Tanzânia. Todo o mundo acompanhou, a partir de junho
Kigali foi que levou dois meses para que a palavra "genocídío" aparecesse de 1994, os relatos sobre as condições subumanas enfrentadas pelos re-
nos discursos de jornalistas e diplomatas no caso de Ruanda. fugiados hutus no Zaire, padecendo de fome, sede e varridos por uma
Para o tenente-general Roméo Dallaire, o descaso mundial em re- incontrolável epidemia de cólera. Somente com o fim do genocídio o
lação a Ruanda ficou mais claro a partir de meados de abril de 1994, governo norte-americano sob a administração de Bill Clinton enviou
quando o Conselho de Segurança das Nações Unidas votou, no dia 21, soldados e ajuda humanitária para a região. O Conselho de Seguran-
pelo corte nas tropas da Unamir, que seriam reduzidas para menos de tre- ça das Nações Unidas instituiu um tribunal de crimes de guerra para
zentos homens.'> Quanto à ajuda humanitária, asilo a refugiados, supor- Ruanda no final de 1994, convocando Roméo Dallaire para depor em
fevereiro de 1998, quatro anos após o genocídio. O impacto do depoi-
J3H "A maioria dos soldados de Dallaire foi removida em 25 de abril. Embora houvesse
sido determinado que ele ficaria com 270 soldados, 503 permaneceram." Power, op. lJ9 Zaire: desde 17 de maio de 1997, República Democrática do Congo.
.it., p. 422. 14U Desde 2000, Paul Kagame é o presidente de Ruanda.

148 149
mento de Dallaire foi tão profundo que, no mês seguinte, o presidente 3.4 O sul do continente africano: guerra civil em Angola
Clinton visitou Ruanda e fez um pedido formal de desculpas. e segregação na África do Sul
Quase vinte anos depois do genocídio, a República de Ruanda ainda
A porção meridional do continente africano compreende os seguin-
segue tentando exorcizar os fantasmas de seu duro passado não tão dis-
tes países: África do Sul, Angola, Botsuana, Lesoto, Madagascar, Malauí,
tante. Aos olhos dos "especialistas de área" que tentam explicar com ca-
Maurício, Moçambique. Namíbia, Suazilândia, Zâmbia e Zimbábue.
tegorias fixas e pretensamente "científicas" os acontecimentos de 1994, as
questões étnicas do país são a raiz de todos os seus problemas. Não só Ru-
anda sofre esse tipo de interpretação equivocada; grande parte dos confli- Países que formam o Sul da África
tos ocorridos nos países africanos a partir da segunda metade do século
XX é analisada de maneira parcial e pouco esclarecedora. Sobre como o
caso do genocídio de Ruanda é visto pelos estudos acadêmicos, a analista
em Relações Internacionais Ana Cristina Araujo Alves afirma:

Conflitos tais como o ruandês não se submetem à interpretação geopolíti-


ca moderna, com sua insistência em fronteiras absolutas delimitando den-
tro e fora. Esses conflitos são melhor compreendidos através da noção de
"lutas transversais" (...): conflitos que atravessam de forma transversal to-
das as fronteiras políticas, porque concernem à interpretação dos termos
em que os Estados, as sociedades domésticas e suas fronteiras políticas de- o
/
vem ser definidos. Esses conflitos são transversais, ao invés de transnacio- MauricIo

nais, porque não podem ser reconciliados com a interpretação cartesiana


do espaço e, por isso, não podem ser fixados em um nível de análise (...).
Eles não respeitam fronteiras, pois são lutas para inscrever uma presen-
ça soberana que deve disciplinar a interpretação do tempo e do espaço.!"

As disputas políticas entre hutus e tutsis em territórios da África Cen-


tral como Burundi e Ruanda já causaram muitas vítimas. Contudo, não
se pode ignorar que muitos hutus e tutsis envolvidos nesses conflitos tam- Essa sub-região é marcada por problemas sociais profundos, princi-
bém são vítimas da imposição histórica de fronteiras que não se adéquam palmente vinculados à saúde pública e a questões econômicas herdadas
à maneira como os indivíduos veem sua identidade. A questão sobre o da experiência colonial. Apesar de a região ter sido colonizada por im-
genocídio na África Central é muito mais complexa do que a resposta périos europeus distintos, como Inglaterra, França, Portugal, Holanda e
pronta que atribui a responsabilidade do barbarismo aos próprios africa- Alemanha, muitas adversidades ultrapassam as atuais fronteiras nacio-
nos, sendo importante lembrar que a intolerância e o ódio são atributos nais e são compartilhadas por nações que vivem o paradoxo de possuí-
presentes em todos os seres humanos, independentemente de sua "etnia" rem grandes riquezas, recursos naturais e serem submetidas a taxas ele-
vadas de pobreza, violência e urbanização descontrolada. A seguir, uma
141Alves, Ana Cristina Araujo. Contos sobre Ruanda: uma análise crítica das narrativas tabela comparativa que melhor ilustra o panorama histórico e socioeco-
sobre o genocídio ruandês de 1994. Dissertação (mestrado em Relações Internacionais)
- Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005, p. 51. nômico dessa sub-região:

150
1 151
Tabela combinada entre IDH, Esses dados revelam que os índices de pobreza não estão relaciona-
experiência colonial e recursos naturais (2011)142 dos à presença de um colonizador específico, tampouco à abundância,
carência ou diversificação de urna economia. É preciso refutar as expli-
PAís COLONIZADOR IDH - 2010: RECURSOS cações deterministas que condicionam a situação social e econômica de
RANKING NATURAIS um país a urna política colonial particular.
África do Sul Holanda 123º (médio) Diamantes, ouro e A colonização inglesa é um exemplo interessante porque engloba
e Inglaterra produtos agrícolas um número expressivo de países africanos que apresentam índices de
Angola Portugal 1482 (baixo) Diamantes, petróleo, desenvolvimento humano variáveis. A ingerência inglesa no período
ferro e outros minérios colonial não fez de Botsuana um país com nível "médio" de IDH, nem
Botsuana Inglaterra 1182 (médio) Diamantes fez do Zimbábue um país com índice "baixo". Os fatores de classifica-
Lesoto Holanda 160 (baixo)
2 Diamantes e produtos ção social dos países devem ser relativizados, já que trajetórias históri-
e Inglaterra agrícolas cas não são determinantes diretos, tampouco a abundância de recursos
Madagascar Portugal e França 151º (baixo) Produtos agrícolas e naturais. As ilhas Maurício, por exemplo, apesar de não possuírem re-
titânio (ainda pouco cursos minerais expressivos, e contando, sobretudo, com os produtos
explorado) agrícolas que exporta, são o único país nessa sub-região com um IDH
Malauí Inglaterra 1712 (baixo) Produtos agrícolas considerado alto pelas Nações Unidas. É o terceiro maior IDH do conti-
Maurício Holanda, França 772 (alto) Produtos agrícolas nente africano, perdendo apenas para as Seychelles e a Líbia.'?
e Inglaterra Ainda que o ranking do IDH seja uma fonte importante para a aná-
Moçambique Portugal 184º (baixo) Ouro, pedras preciosas, 1ise das questões sociais e dos índices de pobreza dos países, não pode
outros minérios, gás ser tornado corno um medidor inquestionável. A estatística social e eco-
natural, mármore,
nômica dos países tem sua finalidade, mas possui também limites que
pesca e produtos
agrícolas só podem ser identificados e superados com o conhecimento da trajetó-
ria histórica dos povos. Assim, a história e a estatística não são verdades
Namíbia Alemanha 1202 (médio) Urânio e outros
e Inglaterra minerais absolutas, mas se inserem em um conjunto de fatores que, combinados
Inglaterra 1402 (médio) Carvão, diamantes,
ao respeito à singularidade de povos e países, podem servir de instru-
Suazilândia
ouro e produtos mento para ajudar a identificar meios de superar as mazelas.
agrícolas É a partir dessa discussão que a história de Angola deve ser anali-
Zâmbia Inglaterra 1642 (baixo) Cobre e produtos sada. O contraste entre riqueza natural, diversidade de povos e domí-
agrícolas nio colonial é o principal fator de análise da história angolana de pou-
Zimbábue Inglaterra 173º (baixo) Ouro, platina, outros co mais· de cinco séculos. O atual Estado nacional de Angola abarca o
minérios e produtos antigo território de diversos reinos africanos que foram paulatinamente
agrícolas

143 Os índices da Líbia precisam ser revistos em razão das turbulências políticas e do
142Os índices de IDH foram extraídos do último relatório das Nações Unidas, de 2011. alto grau de violência sofrida pelo país no ano de 2011, com a chamada "Primavera
http://hdr.undp.org/en/media/HDR_20 11_EN_ Tables.pdf. Árabe" e a queda do regime de Muammar al-Kadafi.

152 153
entrando em contato com os co.omzadores europeus a partir do século vas de minérios no Congo. A suspeita de que o interior do território co-
xv. Cerca de dez grupos populacionais distintos habitavam as terras de lonial abrigava minas de metais preciosos, como ouro e prata, fez com
Angola: ovimbundos, mbundos, bacongos, chokwe, nganguela, nhaneca- que a guerra contra o Reino doCongo se convertesse em um empreen-
-humbe, herero, ambo, xindonga e khoisan, todos pertencentes ao con- dimento potencialmente lucrativo.
junto de povos de língua banto. O domínio crescente sobre as terras cultiváveis exigiu que Portu-
A entrada dos portugueses em terras a~golanas se deu pelo litoral galmantivesse um pacto social com determinados setores da sociedade
norte, na região do delta do rio Congo. Em 1483, o navegador portu- local, Para garantir a estabilidade do processo de instalação da colônia
guês Diogo Cão estabeleceu relações com o Reino do Congo, um dos portuguesa na região do Reino do Congo, fez-se necessário criar uma
mais organizados politicamente na região. A proximidade inicial entre aliança entre os portugueses e os povos da região litorânea, os quais, fa-
portugueses e congoleses é tão intensa que, entre o final do século xv vorecidos pelo controle do comércio de escravos, ganharam privilégios
e o início do século XVI, os reis do Congo, conhecidos como manicon- no interior da lógica colonial portuguesa. De acordo com Marco Anto-
gos, foram convertidos ao cristianismo, recebendo nomes portugueses nio Liberatti:
de batismo. O primeiro deles foi o rei Nzinga-a-Nkuwu, que em 1491
Por volta de 1614, conflitos entre o Reino do Congo e os portugueses emer-
adotou o nome cristão de João I. giram em função da disputa pelo acesso a terras cultiváveis. Em 1622, um
As relações entre Portugal e o Reino do Congo não se mantiveram violento ataque foi lançado ao Reino do Congo pelo governador portu-
estáveis por muito tempo. Já no governo de Mvemba-a-Nzínga (Afon- guês de Angola, cujos resultados teriam efeitos duradouros. (...) os portu-
gueses saíram da guerra convencidos da existência de minas de prata e de
so I, sucessor de João 1), as hostilidades foram se intensificando com a
ouro no Congo, crença esta que fomentaria uma série de conflitos entre os
ação cada vez maior de defensores dos interesses portugueses, como os colonizadores e o Reino por meio século. E a guerra também criou uma
mercadores. Um dos pontos de divergência dizia respeito ao tráfico de xenofobia entre os bacongos do interior com relação aos brancos e mes-
escravos negros explorado por Portugal. A necessidade de mão de obra tiços das áreas litorâneas, beneficíáríos do sistema colonial e do comércio
escrava para as plantações de açúcar na' América reduziram o Reino do de escravos. Formava-se um dos fatores históricos que iriam compor o ce-
nário das tensões étnicas e raciais no século XX.144
Congo a um mero fornecedor desse "produto", e com isso o controle das
relações entre portugueses e congoleses foi transferido aos traficantes
A aliança entre os portugueses e os povos do litoral da colônia é
de escravos. Ao longo do século XVI, os comerciantes de escravos fo-
uma questão indiscutível da história angolana. Entretanto, não se pode
ram se impondo sobre os manicongos, até que entre 1576 e 1590, com a afirmar que as rivalidades entre os povos colonizados sejam de nature-
fundação da cidade de Luanda e o controle absoluto de Portugal sobre a za exclusivamente "étnica", ou apenas 'um elemento externo trazido pelo
região, os conflitos com o Reino do Congo se tornaram abertos. As me- colonizador em um dado momento. Não são as diferenças de origens ou
didas tomadas em função da posse direta da colônia revelaram a impor- as identidades que determinam as fronteiras das disputas entre grupos
tância do tráfico de escravos para a lógica colonial portuguesa. humanos distintos. Considerar essas desigualdades como embriões so-
Com a chegada do século XVII, os conflitos entre Portugal e o Rei- ciais de conflitos entre povos é um risco para a análise da história afri-
no do Congo não apenas se intensificaram, como passaram a envolver cana, porque pode levar a interpretações muito rígidas da sociedade 10-
questões ligadas às terras cultiváveis da região. Os portugueses saíram
fortalecidos dessa disputa, conquistando um grande número de escra- 144 Liberatti, Marco Antonio. A guerra civil em Angola: dimensões históricas e contempo-

râneas. Dissertação (mestrado em Ciência Política) - Universidade de São Paulo, São


vos e aumentando suas especulações sobre a presença de grandes reser-
Paulo, 1999, p. 4.

154 155
cal. Desse modo, as rivalidades entre "brancos e mestiços" do litoral e Jorge da Mina, na Guiné, foi tomada dos portugueses para que a Holan-
"negros bacongos" do interior se estenderam ao longo de séculos pelo da garantisse o envio de escravos a suas possessões no Brasil. A partir
fato de "brancos': "mestiços" e "negros" serem potenciais antagonistas da Guiné, os ataques holandeses ao litoral Oeste da África sob domínio
no continente africano. Para os padrões sociais do século XVII, a ex- português se intensificaram, até que, no ano de 1640, o conflito luso-ho-
ploração da escravidão negra criava uma separação rigorosa entre o co- landês chegou a Angola.
lonizador europeu branco, seus aliados locais e os negros escravizados, As ofensivas holandesas em Angola coincidiram com a dissolução
mas os movimentos de descolonização da África e da Ásia no século XX da União Ibérica, o que levou Portugal a acreditar que as tensões com
mostraram que essa polarização racial não é o único fator determinan- a Holanda poderiam ser sanadas -.Em vez do cessar-fogo, foram man-
te dos conflitos internos. Muitos europeus apoiaram lutas pela indepen- tidas duas frentes de combate: uma no Nordeste brasileiro e outra em
dência africana, assim como certos membros das sociedades locais co- Angola. Ao chegar ao litoral Oeste da África, os holandeses estabelece-
laboraram para a manutenção <iao~'dem colonial. ram uma aproximação com os reinos africanos que tentavam resistir à
De todo modo, o paulatino domínio de Portugal sobre as terras cul- presença portuguesa, dentre os quais o Reino de Matamba, sob o co-
tiváveis de Angola levou o Reino do Congo à completa desintegração mando da rainha Nzinga.!" A aliança entre a Holanda e os reinos locais
em 1914. Com o propósito de alimentar o comércio de escravos e ga- tornou evidente a fragilidade do poder português em Angola. Além dis-
so, a presença holandesa no Oeste da África trazia grandes problemas
rantir a posse das terras agrícolas, os portugueses voltaram-se à coloni-
aos proprietários de terras no Brasil por interromper o fluxo de mão de
zação das partes meridional e central do território angolano, alcançan-
obra escrava aos países aliados de Portugal. Assim, os próprios brasilei-
do os demais reinos africanos de Ndongo, Matamba, Kasanje, Lunda e
ros chegaram a enviar uma expedição militar a Angola com o intuito
Chokwe, entre outros.
de expulsar os holandeses da região. Em 1648, a coalizão luso-brasileira
O caso do Reino de Matamba merece destaque por ser representa-
venceu as tropas coloniais holandesas em Luanda, obrigando a sua reti-
tivo da instabilidade vivida pelos povos angolanos durante o processo
rada do território angolano. A rainha Nzinga refugiou-se no interior do
de colonização promovido pelos europeus. De 1580 até 1640, a Coroa
Reino de Matamba e resistiu aos ataques portugueses até a assinatura de
portuguesa juntou-se à espanhola, formando a União Ibérica (período
um tratado de paz em 1659. Com a morte dela em 1663, Portugal vol-
conhecido como Dinastia Filipina). Com a integração dos reinos ibé-
tou a atacar o Reino de Matamba, expandindo seu domínio por grande
ricos, a rivalidade entre Espanha e Holanda foi transferida para Portu-
parte desse território.
gal, o que motivou os holandeses a realizarem ofensivas às colônias lu-
Todas essas guerras entre potências coloniais europeias e alianças
sitanas na América e na África. Em 1597, um ataque holandês à ilha de
com poderes locais no continente africano mostram que a ocupação
São Tomé e Príncipe deu início à Guerra Luso-Holandesa. Em 1607, a
portuguesa de Angola foi um processo penoso, lento e inconstante. O
região de Moçambique também foi assediada, mas conseguiu rechaçar
empenho de expansão do império português no território angolano es-
a investi da.
tendeu-se por todo o século XVIII e chegou ao século XIX sustentado
Foi nesse período que o Brasil e Angola foram invadidos pelo exér-
cito colonial holandês. Uma parte do Nordeste do Brasil ficou sob domí- 145 Na bibliografia sobre o tema, o nome da rainha Nzinga pode ser encontrado de ma-
nio da Holanda entre 1630 e 1654, o que resultou na modernização da neiras distintas. Entre eles, destacam-se Ana de Sousa (após conversão ao cristianis-
cidade do Recife por Maurício de Nassau e na comercialização e explo- mo), Nzinga r, Rainha Nzinga Mdongo, Nzinga Mbandi, Nzinga Mbande, Iinga, Sin-
ga, Zhinga, Ginga, Ana Nzinga, Ngola Nzinga, Nzinga de Matarnba, Rainha Nzingha
ração do açúcar brasileiro pelos holandeses. Em 1638, a região de São de Ndongo, Ann Nzingha, Nxingha, Mbande Ana Nzingha e Ann Nzingha.

157
por ações militares, nem sempre bem-sucedidas. No momento em que conservadores ligados à tradição imperial portuguesa apoiaram-se em
Portugal renovou seu interesse pela colonização africana, recorrendo um golpe militar para afastar o perigo de que forças radicais de esquer-
dessa vez à diplomacia no jogo político das potências europeias do final da tomassem o controle de um Estado desgovernado. Desse modo, os
do século XIX, é que a presença lusitana em Angola pôde consolidar-se, monarquistas, as classes sociais abastadas, a classe média preocupada
apesar das resistências internas. O decadente império português subs- com a ascensão da esquerda no país e setores direitistas da Igreja Cató-
tituiu a onerosa ação militar expansionista pela condição de equilíbrio lica portuguesa uniram-se em torno do Exército.
entre as pretensões inglesas, francesas, belgas e alemãs no sul do conti- O principal problema de Portugal nesse momento era a crise eco-
nente africano, reafirmada após a Conferência de Berlim de 1885. Isso 146 nômica, e para saná -la a ditadura militar nomeou por duas vezes o pro-
não livrou os portugueses de se envolverem em disputas internas pela fessor catedrático de economia da Universidade de Coimbra, António
presença efetiva no território angolano, mas mostrou que, com o reco- de Oliveira Salazar, ministro das Finanças. Em seu último ministério,
nhecimento da dominação portuguesa na África pelas potências euro- Salazar conseguira estabelecer o equilíbrio das contas públicas, o que
peias, as instabilidades trazidas pelo embate entre Portugal e Holanda lhe deu notoriedade e apoio político para, em 1932, propor a elabora-
no século XVII não eram mais impedimento ao controle português de ção de uma nova Constituição que garantiria sua posse efetiva do poder.
Angola. Assim, com a aprovação do novo texto constitucional em 1933, Salazar
A chegada do século XX trouxe um novo cenário colonial para os criou o chamado Estado Novo, uma ditadura civil de extrema direita
angolanos. Em 1910, a monarquia portuguesa foi destituída e o novo mo- cujo lema exaltava:, "Deus, pátria e autoridade:'
delo político republicano instaurado propôs mudanças no modo de co- O impacto da ascensão política de Salazar para as colônias foi pro-
lonização das possessões ultramarinas. A principal alteração referia-se à fundo, principalmente para Angola. Em 1930, quando ele era um mi-
aplicação de uma legislação segregacionista aos colonizados: por meio de nistro das Finanças de muito poder, foi lançado o Acto Colonial que
leis que visavam à separação dos habitantes da colônia em europeus me- defendia:
tropolitanos e nativos africanos, a exclusão social transformou-se em po-
Artigo 22; É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a
lítica oficial da nova República portuguesa. Essa era uma prática comum
função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civili-
entre os colonizadores europeus, que tentavam mostrar força política em zar as populações indígenas que neles se compreendam, exercendo tam-
suas colônias, em contraponto à situação caótica da Europa, mergulhada, bém a influência moral que lhe é adstrita pelo Padroado do Oriente. (...)
nas primeiras décadas do século XX, num cenário de instabilidade inter- Artigo 222; Nas colônias atender-se-á ao estado de evolução dos povos
na, desordem financeira, rebeliões políticas e convulsões sociais decor- nativos, havendo estatutos especiais dos indígenas que estabeleçam para
estes, sob a influência do direito público e privado português, regimes ju-
rentes, sobretudo, da Primeira Guerra Mundial.!"
rídicos de contemporização com os seus usos e costumes individuais, do-
A crise generalizada que se instaurou no Estado português fez com mésticos e sociais, que não sejam incompatíveis com a moral e com os di-
que seu modelo republicano chegasse ao fim em 1926. Grupos políticos tames da hurnanidade.!"

O Acto Colonial só sofreu mudanças nos anos 1950, quando inte-


146Sobre a Conferência de Berlim, ver, no primeiro capítulo deste livro, as discussões
grado à Constituição. Os artigos citados mostram bem como Portugal
sobre os impérios europeus na África do século XIX.
defendia sua expansão e seu domínio imperial por meio de um projeto
Ainda neste capítulo, a Primeira Guerra Mundial será invocada como um cenário de
1,,7

crise europeia que favoreceu a instauração ou o enrijecimento de políticas segregacio-


nistas nas colônias africanas. Além de Angola, o caso da Africa do Sul é emblemático. 148 Acto colonial: httpi//dre. pt/pdfgratis/1930/07 /15600.pdf.

lSR 159
"civilizador" das colônias amparado pelo vínculo do Estado português O espírito de superioridade europeia presente no Acto Colonial e a
com a Igreja Católica. As alianças políticas que sustentavam o poder política autoritária de submissão econômica das colônias fizeram cres-
conservador português foram incorporadas ao regime administrativo cer vertiginosamente o descontentamento da população negra angolana
das colônias, transferindo ao projeto ultramarino os discursos de supe- com o regime colonial português após a década de 1950. Um dos fato-
rioridade moral e civilizacional europeia. Os costumes dos nativos só res que melhor evidencia isso é a política de expropriação de terras em-
seriam respeitados se estivessem em concordância com os interesses da preendida por Portugal nesse período. As propriedades agrícolas do in-
metrópole. terior de Angola foram retiradas de seus donos nativos e conferidas ao
O governo Salazar recorreu por diversas vezes ao Acto Colonial poder colonial. O resultado dessa desapropriação sistemática foi a for-
para garantir que a economia de Angola fosse dependente da ação por- mação de uma onda de expulsão dos africanos negros de suas terras,
tuguesa. Não havia espaço para qualquer reivindicação de autonomia culminando em um êxodo rural que contribuiu para o inchaço das cida-
política, econômica ou administrativa por parte dos territórios colo- des angolanas e o aumento das pressões sociais nesses centros urbanos.
niais. Para isso, Salazar atrelou aos princípios de seu Acto Colonial uma Para os nativos que permaneciam, de alguma maneira, ligados à
política racial mantida por forças policiais que sufocavam qualquer ten- produção agrícola, a situação não era mais animadora. A ação de com-
tativa de oposição à ação discriminatória portuguesa. Aos nativos, espe- panhias comerciais portuguesas no território colonial levou os agricul-
cialmente aos negros, restava adequar-se a uma hierarquia que os colo- tores a produzirem culturas destinadas, sobretudo, à exportação, com-
cava em condição social subalterna, sob pena de forte repressão. pradas pelas companhias por preços baixos estipulados pelo governo
Diante desse quadro segregacionista, houve uma escalada das ten- português e produzidas por meio de trabalho compulsório.
sões sociais entre a maioria da população africana negra e os grupos que Ao longo dos anos 1960 e 1970, a crise social vivida pelos angola-
contavam com algum tipo de privilégio dentro do sistema colonial por- nos, principalmente pelos negros do interior da colônia, fez com que
tuguês. Nas décadas seguintes, principalmente após a Segunda Guerra movimentos em favor da independência de Angola ganhassem força e
Mundial, a questão colonial foi a base da política externa salazarista, tão visibilidade. Mesmo com o fim da Era Salazar em 1968 e a ascensão ao
autoritária e nacionalista com os territórios africanos e asiáticos quan- poder de Marcelo Caetano, não houve o apaziguamento da ação de mo-
to em suas fronteiras continentais europeias. Nas palavras de Francisco vimentos nacionalistas angolanos que tentavam diminuir as diferenças
Carlos Palomanes Martinho: sociais e culturais entre membros da sociedade local pela defesa de uma
coalizão interna entre setores da sociedade que viam Portugal como um
Ao longo do século XIX e até a metade do século XX, o sistema colonial
inimigo em comum.
português se manteve intocado. No pós-guerra transformou-se na prin-
cipal preocupação da política diplomática do regime. Se a situação portu- Ainda que o poder colonial português tenha sido o centro do deba-
guesa já era desconfortável nos anos 1940 e 1950, agravou-se ainda mais te em torno da transformação de Angola em um Estado nacional eman-
na década de 1960, quando começaram as guerrilhas pela independência cipado, a luta pela independência do país não se baseou em um discurso
das colônias africanas. 149 libertário único. A diversidade social e identitária dos angolanos tam-
bém era percebida nos diferentes anseios dos grupos de resistência co-
149 Martinho, Francisco Carlos Palomr nes A ordenação do trabalho e a nostalgia do Im- lonial formados na sociedade local.
pério: o Estado Novo português e as razões do consentimento (1933-1974). ln: RoJIem-
A primeira corrente independentista de Angola era composta por
berg, Denise; Quadrar, Samantha Viz (orgs.). A construção social dos regimes autoritá-
rios: legitimidade, consenso e. consentimento no século xx. Rio de Janeiro: Civilização indivíduos que defendiam uma postura nacionalista fortemente in-
Brasileira, 20 !O, p. 296. fluenciada pelos modelos políticos europeus. Os partidários dessa posi-

160 161
ção eram habitantes das grandes cidades que constituíam uma elite so- dial da chamada Guerra Fria, vigente nesse período, vinculava ideologi-
cial descolada das massas camponesas do interior do país e defendiam camente o grupo aos Estados Unidos e ao bloco ocidental.
um processo paulatino de concessão de autonomia, já que muitos eram, Em contrapartida, as forças independentistas de Angola que se ali-
de alguma maneira, privilegiados socialmente por Portugal em relação nhavam com a política revolucionária marxista concentravam-se, prin-
à população do interior de Angola e não desejavam que se alterasse de cipalmente, em torno do Movimento Popular de Libertação de Angola
forma abrupta a ordem social vigente. A oposição entre os grupos urba- (MPLA), que, pelos seus princípios ideológicos, unia diversos setores
nos que usufruíam de certas vantagens com a presença portuguesa no da sociedade angolana. O MPLA contou com o apoio de países vincula-
país e a população do interior, excluída desses benefícios, pode ser en- dos ao bloco socialista na Guerra Fria, principalmente a União Soviética
tendida como um elemento de distinção entre os projetos de indepen- e Cuba. Originalmente, o movimento foi dirigido por Agostinho Neto
dência existentes em uma sociedade angolana desigual. e lutou contra a dominação colonial portuguesa sob a liderança do se-
Se, por um lado, o nacionalismo citadino não rompia drasticamente cretário-geral Viriato da Cruz. Em 1961, Lucio Lara assumiu a secreta-
com a ordem colonial portuguesa, cresciam em outras regiões movi- ria-geral do MPLA e instaurou uma crise interna que minou a coesão
mentos independentistas mais radicais, principalmente entre setores da do grupo, somente restaurada em 1974, a partir de uma conferência na
sociedade angolana excluídos historicamente, como parte dos bacon- Zâmbia que promoveu a unificação do MPLA por meio do expurgo de
gos, que, por habitarem a região de Angola mais próxima do Congo Bel- alguns de seus membros.
ga, foram influenciados pela independência desse país em 1960. Em re- Por fim, como terceiro movimento independentista mais impor-
lação a esses, Marco Antonio Liberatti afirma: tante de Angola, havia a Uniã~ para a Independência Total de Angola
(Unita), criada em 1966, sobretudo por dissidentes da FNLA liderados
Antes de 1961, o nacionalismo entre os bacongos dividia-se entre a União
por Tonas Savimbi. Ao longo dos conflitos pela independência e, pos-
das Populações de Angola (UPA) e um agregado de pequenos grupos, ca-
teriormente, das disputas internas entre os três principais movimentos
rentes de lideranças e inclinados a buscar colaboração com os portugueses.
Originalmente, a UPA não passava de uma modesta associação tribal de independentistas de Angola, a Unita contou com diversos apoios in-
elementos monarquistas progressistas, cujo maior interesse estava restri- ternacionais, que mudavam de acordo com as circunstâncias. Em épo-
to à independência de sua região e de seu povo. Com o tempo, a UPA iria cas distintas, o grupo de Tonas Savimbi teve o apoio dos Estados Uni-
abandonar sua opção monarquista para tornar-se, não obstante a perma- dos, da China e de países vizinhos, como a África do Sul, Zâmbia, Zaire
nência de traços tribais, uma organização nacionalista voltada para a auto-
(atual República Democrática do Congo) e Costa do Marfim. A Uni-
determinação de todos os angolanos face ao regime colonial português. ISO
ta formou-se como uma organização militar calcada em uma identi-
A incorporação de membros de outros grupos entre seus partidá- dade sectária, desenvolvendo um nacionalismo independentista ligado
rios fez com que ~ UPA fosse reconhecida como um movimento inde- aos povos ovimbundos, em uma estratégia discursiva bem diferente da
pendentista legítimo, chegando a fundir-se, em 1962, com o Partido De- perspectiva unificadora-nacional do MPLA. Isso fez com que a Unita ti-
mocrático de Angola (PDA), formando a Frente Nacional de Libertação vesse mais sucesso em áreas rurais de Angola, antagonizando com o ca-
de Angola (FNLA), sob a liderança de Holden Roberto. Dadas as carac- ráter urbano das bases políticas do MPLA.
terísticas desse movimento e a ação de Roberto, a FNLA adotou uma Nesse cenário de múltiplas ameaças ao seu poder colonial, Portugal
posição claramente antimarxista, o que no interior da geopolítica mun- perdeu o controle sobre a colônia, sobretudo quando, em 1974, a cha-
mada Revolução dos Cravos pôs fim ao regime do Estado Novo. Um
ISO Liberatti, op. cit., p. 18. ano depois, em 11 de novembro de 1975, MPLA, FNLA e Unita procla-

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maram separadamente a independência de Angola. A conquista da au- guintes. Apesar de as eleições terem ocorrido em 1992, as demais obri-
tonomia política não diminuiu as tensões internas da sociedade angola- gações do acordo não foram totalmente cumpridas.
na, principalmente entre os três grupos independentistas. Após o fim da O pleito de 1992 contou com a participação do MPLA eda Unita
presença colonial portuguesa, teve início um longo período de guerra e deu a vitória ao primeiro grupo. Imediatamente após o resultado, os
civil que transformou o país em palco das tensões internacionais do pe- derrotados não reconheceram a vitória do oponente e retomaram a luta
ríodo da Guerra Fria. De acordo com Marcelo Bittencourt: armada no interior do país, ainda que um pequeno grupo da Unita con-
tinuasse participando timidamente do novo sistema político angolano.
A batalha pelo controle de Luanda foi vencida pelo MPLA, que no dia
previsto, quando das negociações entre os movimentos de libertação e As denúncias de fraude eleitoral alardeadas pela Unita não intimidaram
os militares portugueses, 11 de novembro, proclamou a independência o reconhecimento internacional da vitória do MPLA, o que tirava a le-
e a criação da República Popular de Angola. Todavia, o conflito entre os gitimidade da retomada do confronto militar pela Unita. A guerra civil
movimentos não cessou, apenas mudou de enquadramento. Teve início a se estendeu até 2002, quando as Forças Armadas de Angola mataram [o-
guerra civil; de um lado, o governo angolano, numa sobreposição quase
nas'Savimbi em combate. Em abril do mesmo ano foi firmado um acor-
total com o MPLA, com apoio militar de Cuba e apoio financeiro, político
e logístico do bloco soviético; de outro, a guerrilha da Unita, com apoio do de paz que pôs fim ao período mais sangrento da história recente de
das tropas sul-africanas no terreno - ainda que bem mais discreto que o Angola.
do ano de 1975 - e financeiro, político e logístico dos EUA. Ou seja, ape- Com a paz, os problemas sociais do país ficaram mais visíveis, e o
sar do enfraquecimento e subsequente desaparecimento da força militar
processo de reconstrução apresentou seus primeiros resultados. A pos-
da FNLA, o quadro da internacionalização da guerra, mais do que perma-
necer, se intensificou. Angola passou a ser uma peça importante no tabu- sibilidade de uma maior coesão nacional passa a ser uma alternativa
leiro da Guerra Fria.!" possível com o crescimento econômico que o país consegue manter nes-
sa nova fase de sua história. A exploração petrolífera e de riquezas mi-
Os conflitos entre o MPLA e a Unita marcaram os anos iniciais da nerais garante condições financeiras para o desenvolvimento de uma
independência angolana. Ao longo dos anos 1980, a guerra civil viveu sociedade que, mesmo em tempos de paz, precisa suplantar as cicatrizes
seu período mais dramático, com o MPLA reforçando suas posições nos do passado, cada vez mais visíveis nos índices de pobreza e desigualdade
centros urbanos do país e a Unita mostrando sua força no interior. So- social difíceis de ser totalmente superados.
mente com o término da Guerra Fria, em fins da década de 1980 e iní- Se as feridas históricas das divisões internas de Angola são um fan-
cio dos anos 1990, é que foi possível um cessar-fogo entre o MPLA e a tasma a ser exorcizado, outros países, como a África do Sul, possuem
Uni ta, mediado por países que participaram diretamente da guerra civil . particularidades que também refletem a formação de um Estado-nação
angolana, como Portugal, Cuba, Africa do Sul, além dos Estados Unidos marcado pelo racismo e pela segregação do regime do apartheid, que vi-
e o que sobrou da União Soviética, já em processo de esfacelamento. Os gorou oficialmente no país até a década de 1990.
termos do cessar-fogo previam a desmilitarização de ambos os grupos, a Os fundamentos históricos do apartheid começaram a ser traçados
aproximação paulatina entre eles e a realização de eleições nos anos se- ainda no período colonial, quando, em 1648, um grupo de embarcações
portuguesas saídas do Rio de Janeiro e lideradas por Salvador Correia
de Sá e Benevides chegou à costa atlântica do Sul da Africa (atual An-
151 Bittencourt, Marcelo. Conflitos, identidades e voto em Angola. In: Ribeiro, Alexan- gola) para expulsar os holandeses desse território, como visto anterior-
dre; Gebara, Alexander; Bittencourt, Marcelo (orgs.). Africa: passado e presente - II En-
contro de Estudos Africanos da UFF. Niterói: PPGHISTÓRIA-UFF, 2010, p. 176. mente. Após serem forçados a sair das cercanias de Luanda e Benguela,

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os holandeses fugiram para o Sul, chegando ao extremo meridional do colonos, os bôeres - colonos de origem calvinista, majoritariamente
continente africano, próximo ao chamado Cabo da Boa Esperança. holandeses, que imigraram para a África. 154

Para os holandeses, a fixação no Sul do continente africano era a Aos poucos, os modelos de produção agrícola dos khoikhoi foram
oportunidade de estabelecer um entreposto para a Companhia Holan- reelaborados pelos bôeres, dando maiores condições para que os ha-
desa das Índias Orientais, que atuava na Ásia e a partir de então po- bitantes de origem europeia aproveitassem melhor as terras invadidas.
deria contar com um porto seguro em parte de sua travessia para a Ainda que muitos bôeres mantivessem uma economia de subsistência,
Europa.t? Assim, em 1652, a região da atual Cidade do Cabo passou podiam sempre recorrer a atividades comerciais do Cabo da Boa Espe-
a ser um centro de abastecimento importante para navios holandeses. rança e à mão de obra escrava ou.servil dos nativos na produção, mas sua
Sob o domínio do colonialismo holandês, a porção de maior valor es- exploração da terra era mais voltada à subsistência e à fixação do que à
tratégico-marítimo do Sul do continente africano sofreu transforma- lógica comercial. De qualquer forma, o aumento da população branca na
ções geográficas, demográficas e econômicas baseadas, principalmente, região do Cabo da Boa Esperança promoveu uma expansão em direção
na posse da terra pela Companhia das Índias Orientais, que efetuou às terras próximas ao oceano Índico, habitadas pelo povo xhosa=
inúmeras doações de terras para funcionários comprometidos em pro- A rotina de dominação dos povos do Sul da África favoreceu o sen-
duzir alimentos a serem vendidos diretamente para a Companhia. timento de superioridade dos bôeres em relação aos nativos. Os bóe-
Além disso, a Holanda permitiu a vinda de escravos trazidos de ou- res passaram a se ver como um grupo conspícuo, já que subjugavam os
tras regiões da África para o trabalho nessas terras. Esses fatores ge- povos locais por meio de armas de fogo e do uso militar de cavalos, o
raram uma forte pressão sobre os nativos da região, especialmente os que.lhes dava vantagens estratégicas no enfrentamento. Além da cren-
khoikhoi.w que, diante da estrutura de dominação colonial, passaram ça nessa superioridade técnica, os bôeres acompanharam as formas de
a atuar como servos dos holandeses em suas próprias terras. Ao longo organização do mundo colonial nesse período e incorporaram o con-
dos séculos XVII e XVIII, os khoikhoi sofreram diversos ataques dos ceito de "raça" ao discurso de distinção em relação aos nativos negros.
holandeses, sendo assassinados e subjugados aos interesses dos novos Assim, o contato entre holandeses e negros nativos foi violento e con-
dicionado ao processo de segregação dos colonizados. Essa experiên-
cia colonial deu origem a um idioma que, baseado na língua holandesa,
152 Nas palavras de Luiz Felipe de Alencastro, em prefácio à obra de Anthony Sampson: se apropriou de vocábulos e estruturas de línguas de povos dominados
~'ACompanhia das Índias Ocidentais tinha uma irmã, a Companhia Neerlandesa das
Indias Orientais (VOC), cujo teatro de operações era a Ásia. Com a ocupação do Cabo
para servir de principal instrumento de comunicação entre brancos e
da Boa Esperança a VOC garantia um ponto de apoio crucial na rota marítima das Ín- negros: o africâner.
dias. Mais de três séculos depois desses acontecimentos, o Brasil e a África do Sul, os
mais importantes enxertos demográficos e culturais europeus nos trópicos, perpetuam
ainda alguns dos paradoxos das políticas imperiais portuguesa e holandesa:' Sampson, 154 Existe uma distinção importante entre os colonos holandeses calvinistas, que eram
Anthony. O negro e o ouro: magnatas, revolucionários e o apartheid. São Paulo: Compa- pastores nômades (trekboers) entre os séculos XVIII e XIX, e os colonos holandeses
nhia das Letras, 1988, p. 7. que, com a presença britânica, saíram da região do Cabo para o interior do atual terri-
153 Os khoikhoi são nativos africanos que se fixaram na região Sudoeste da África (atuais tório da África do Sul (voortrekkers), na primeira metade do século XIX. Para melhor
Namfbia e Botsuana), Desde a colonização holandesa das terras dos khokhoi, passaram compreensão da história colonial do país. este livro utilizará o termo "bõeres" para se
a ser chamados pelos invasores de "hotentotes', um termo considerado pejorativo. A referir a todos os colonizadores de origem holandesa e seus descendentes ao longo dos
origem da palavra, em holandês, é "hottentots", que pode significar "gago': Isso aconte- séculos XVIII e XIX na África do Sul.
ceu porque a língua dos khoikhoi possui um som de clique característico, depreciado 155 Os xhosa são um povo de origem banto da região leste da África do Sul. Foram expul-

pelos colonizadores como sinal de primitivismo. sos de suas terras tanto por bôeres quanto por ingleses ao longo dos séculos XVIII e XIX.

166
167
Os limites da colonização holandesa no Sul da África não foram im- Contudo, as divergências entre bôeres e ingleses não se limitavam
postos pela resistência sistemática dos nativos negros; foi a chegada do ao status jurídico dos negros e à questão da escravidão. A dominação
império inglês, em fins do século XVIII, que colocou em perigo a he- colonial inglesa também alterou a vida cotidiana dos bôeres, já que a
gemonia holandesa na região. Isso não significa que os negros que ha- partir de então eles teriam que pagar impostos aos ingleses pela posse da
bitavam o Sul da África não ofereceram resistência e foram passivos à terra, tolerar a ação religiosa dos missionários anglicanos na região e se
, I

presença europeia. Pelo contrário, oskhoikhoi, os xhosa e muitos outros habituar ao uso corrente do inglês como língua administrativa.
povos dessa região lutaram contra a invasão estrangeira em suas terras, A reação dos bóeres ao controle do império inglês sobre o Sul da
e, mesmo não conseguindo expulsar os europeus, a principal resistên- África foi contundente. Em 1837; os bôeres que haviam se fixado nas
cia se fazia de forma cotidiana, entre conflitos e negociações pela sobre- terras ao Leste saíram em direção ao Norte para fugir da influência in-
vivência em uma terra tomada pela violência da experiência colonial. glesa e dos confrontos rotineiros com os nativos de origem xhosa. Essa
Alheios à disputa entre os impérios que alimentou a corrida colo- corrida para o Norte ficou conhecida como a "Grande Viagem' (em afri-
nial dos países europeus em direção à África e à Ásia, os negros do Sul câner, Die Groot Trek) e deu origem a três repúblicas bôeres que manti-
da África acompanharam a conquista do Cabo pelos ingleses, em 1795. veram, por algum tempo, certa autonomia em relação aos ingleses: a Re-
Ao mesmo tempo em que o domínio estratégico da região do Cabo po- pública de Natália (1839-1843), a República do Estado Livre de Orange
dia conter as pretensões expansionistas da França napoleônica no Sul (1854-1902) e a República Sul-Africana (1856-1900/1902).156
da África, a Inglaterra ficava mais próxima de concretizar seu projeto Nesse momento, ainda não integrados às questões territoriais entre
de formar um corredor de colônias que ligaria diretamente o Cairo, no ingleses e bôeres, os povos bantos consolidaram um processo de unifi-
Egito, à colônia do Cabo. cação de suas comunidades próximas ao rio Tugela, em uma parte do
A presença inglesa trouxe mudanças significativas para os povos da litoral índico do Sul da África. Chefiados por Shaka Zulu, promoveram
região. Os ingleses introduziram uma nova forma de exploração da co- uma unificação forçada conhecida como Mfecane, que em língua banto
lônia, mais voltada à inclusão dos recursos econômicos do Sul da Áfri- significa "esmagamento': O Estado zulu formado nessa região era total-
ca à lógica fundamentalmente comercial e financeira que caracterizou mente militarizado e arrastou os povos bantos a um cotidiano violento
todo o século XIX. Os bóeres, com seu sistema econômico pouco mo- que levou inúmeros refugiados ao Cabo, sob tutela inglesa. Esse proces-
netarizado e escravagista, não se adequavam aos planos de exploração so de fortalecimento do Reino Zulu e as vicissitudes das questões de ter-
da terra que a Inglaterra possuía para a região. Na primeira metade do ra entre ingleses e bôeres levaram a um enfrentamento inevitável entre
século XIX, os ingleses intensificaram seu plano de comando da ordem as três formas distintas de poder daquela região. Houve disputas entre
capitalista, forçando grande parte dos países e territórios subordinados bôeres e zulus e, posteriormente, em 1879, deu-se o confronto direto en-
ao seu império a pôr fim à escravidão e instituindo um modelo capita- tre o Reino Zulu e as forças coloniais da Inglaterra na chamada Guerra
Anglo-Zulu. Ao final, a Inglaterra venceu e, no ano seguinte, voltou suas
lista de transformação do trabalhador em membro ativo do mercado
armas para a República Sul-Africana.
consumidor, o que não era possível com escravos e trabalhadores assala-
riados. Nessa ordem capitalista inglesa, o sistema produtivo dos bôeres
156A República Sul-Africana dos bôeres foi fundada em 1856 e manteve-se autônoma
era considerado inadequado pelos ingleses, e, para os bôeres, as inter- até 1877, quando os ingleses estabeleceram sua autoridade sobre o território. Em 1881,
venções inglesas - como o fim da escravidão e a igualdade jurídica entre tornou-se novamente independente e foi retomada de forma definitiva pelos ingleses
em 1900, embora a entrega oficial do território somente ocorresse em 1902, com o fim
brancos e negros - eram impróprias para os seus interesses.
da segunda parte da Guerra dos Bôeres, que será mais bem analisada posteriormente.

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Enquanto ingleses e bôeres disputavam território e autonomia no exemplo, durante os anos 1870, os negros tinham que portar seus passes e
Sul da África, a descoberta de minas de diamantes e ouro em Kimberley viver em partes segregadas da cidade. (...)
Em 1899, a indústria mineradora sul-africana era responsável por 27,55%
e em Witwatersrand'? tornava a luta entre eles mais intensa. O aumen-
da produção do ouro no mundo. A segregação racial e a discriminação eram
to do interesse inglês por essas terras e o descontentamento dos bôeres sistematicamente aplicadas na organização das atividades mineradoras.!"
com o assédio da Inglaterra e com a chegada de um grande número de
aventureiros à região criaram as condições para um conflito que passou Esse ambiente de insatisfação dos bôeres com a situação social e eco-
a ser conhecido como a Primeira Guerra dos Bôeres, em 1880. nômica instaurada pelos ingleses resultou na Segunda Guerra dos Bôe-
Cada vez mais, a situação política e econômica desfavorecia tanto res, em 1899. Com o confronto, que se estendeu até 1902, todos os terri-
os nativos negros quanto os bôeres, em favor dos ingleses. Além disso, tórios dos bôeres foram incorporados ao império inglês, criando-se, pela
a crescente chegada de imigrantes indianos à região causou um impacto junção do Cabo, Natália, Orange e Transvaal, a União Sul-Africana. A
demo gráfico profundo para os negros desde as décadas de 1860 e 1870, formação de um domínio britânico em toda a região das antigas repú-
assim como a ida de alemães para a região da atual Namíbia ameaçava, blicas bôeres foi possível porque a Inglaterra, ao mesmo tempo em que
em médio prazo, a expansão territorial dos bôeres. Incorporados ao do- exerceu um rígido controle sobre os negros, indianos e bôeres, negociou
mínio econômico exercido pelos ingleses e tentando resistir aos abusos uma ordem sociaÍ em que os brancos desfrutavam de posições privilegia-
cometidos no processo de colonização, os negros ainda tiveram que dis- das. A língua holandesa ganhou status de idioma oficial, ao lado da lín-
putar trabalhos mal remunerados com os indianos recém-chegados. O gua inglesa. O africâner somente substituiu o holandês em 1925.
declínio do sistema agrícola dos bôeres, que passaram a concorrer com a A União Sul-Africana foi responsável por institucionalizar as bases
produção de outras regiões do império inglês, como a Austrália, levou ao da política segregacionista do país com a conivência da Inglaterra. Entre
enfraquecimento de sua resistência ao domínio dos ingleses. Essa condi- 1911 e 1913, três leis adotadas pela União Sul-Africana deixavam claras
ção econômica desfavorável reforçava a utilização por parte dos bôeres as intenções racistas do novo Estado:
de políticas segregacionistas para impedir que sua situação fosse social-
mente mais subalterna do que a dos n,~gros no interior da ordem colonial - Regulamento do Trabalho Nativo.!" de 1911: considerava-se crime que
os "africanos nativos" (não brancos) rompessem um contrato de trabalho.
inglesa. De acordo com Pablo de Rezende Saturnino Braga:
- Lei da Igreja Holandesa Reforrnada.!" de 1911: era proibido aos negros
tornarem-se membros efetivos da Igreja Reformada Holandesa.
A decadência das atividades agropecuárias tornou os bôeres mais depen-
- Lei de Terras dos Nativos,'?' de 1913: grosso modo, essa lei retalhou o Sul
dentes do capitalismo britânico e da atividade mineradora, tendo que dis-
da África em porções de terra destinadas separadamente para negros e
putar os postos mais baixos de emprego com africanos destribalizados e
brancos. Mais de 90% das terras foram destinadas aos brancos, que repre-
urbanizados. Essa disputa, reflexo da consolidação da hegemonia inglesa,
sentavam 20% da população. Já os mestiços, chamados de "coloured", não
catalisou a polarização dos bôeres em direção à defesa de políticas de se-
tinham direito algum à posse da terra.
gregação racial. Nesse sentido, trabalhadores brancos passaram a se orga-
nizar em sindicatos para evitar a desvalorização de sua força de trabalho
e exigir políticas de segregação da mão de obra negra. Em Kimberley, por
158 Braga, Pablo de Rezende Saturnino. Africa do Sul: a rede de ativismo transnacional con-

tra o apartheid na Africa do Sul. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011, p. 65.
15') No original, "The Native Labour Regulaiion Acl".
157A cidade de Kimberley fica justamente na zona fronteiriça entre Orange, Transvaal
(região da República Sul-Africana) e o Cabo, e Witwatersrand localiza-se integralmente 160 No original, "The Dutch Reformed Church Act':
na região de Transvaal. As minas foram descobertas respectivamente em 1867 e 1886. 161 No original, "Na tive Lands Act".

17() 171
Essas leis são apenas alguns exemplos de uma série de medidas le- A crise econômica do início dos anos 1930 marcou profundamente
gais tomadas pelos brancos para a construção de um Estado nacional os rumos da política e da economia sul-africanas. O colapso econômi-
marcado pela segregação racial. Ao conjunto de medidas discrimina- co acentuado pela Grande Depressão de 1929 comprometeu o projeto
tórias somou-se o intenso processo de urbanização e industrialização de rápida industrialização do país sustentado pela aliança Trabalhista-
sofrido pela União Sul-Africana na primeira metade do século XX, o -Nacional, o que desestabilizou a coalizão política. Os membros do Par-
que favoreceu a pressão social vivida pelos negros em pleno território tido Nacional, já sem apoio, recorreram a uma aproximação com a elite
africano. favorável à ingerência inglesa, e as relações entre africânderes e os anti-
Os anos iniciais da União Africana foram liderados por dois an- gos rivais colonizadores foram reatadas. Esse processo levou capital es-
tigos heróis de guerra da comunidade dos bôeres, Louis Botha e [an trangeiro à União Sul-Africana, revitalizando em um ritmo mais lento o
Smuts. Ambos fundaram, em 1911, o Partido Sul-Africano, considera- programa nacional de industrialização.
do excessivamente próximo aos interesses ingleses. Louis Botha e Ian Com os Nacionalistas conduzindo o desenvolvimento industrial e
Smuts controlaram a política da União Sul-Africana até 1924, quando econômico da União Sul-Africana, não havia espaço para a inclusão dos
um dissidente do Partido Sul-Africano, Barry Hertzog, assumiu o co- negros nesse modelo de transformação econômica. As políticas de in-
mando do país com a chegada ao poder de seu Partido Nacional, fun- dustrialização destinavam-se a favorecer os trabalhadores industriais
dado em 1914. brancos, a fim de evitar um novo cenário de competição com a mão
Se, por um lado, o jogo político-partidário era dominado pelos de obra negra, como o que se deu no país nas décadas finais do século
brancos, isso não significa que os negros não se organizaram politica- XIX. O nacionalismo branco e o sentimento racista em relação aos ne-
mente para expressar, pela via institucional, uma alternativa antirracista gros estavam tão institucionalizados na política africânder que uma dis-
para a União Sul-Africana. Desde 1912 e até hoje, o Congresso Naci~nal sidência mais direitista foi criada por Daniel Françóis Malan: o Partido
Africano atua como' um partido político comprometido com a defesa da Nacional Purificado, uma força política conservadora que seria respon-
coesão nacional pela eliminação de fronteiras raciais. sável pelo regime oficial de segregação racial do país, o apartheid.
No plano econômico, o colapso instaurado na economia mundial A situação social, política e econômica dos negros se deteriorou cada
pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e pela crise do pós-guerra vez mais. O processo de favelização se intensificou, e foram criados nas pe-
atingiu as indústrias mineradoras do Sul da Afríca, tornando mais van- riferias de cidades economicamente importantes, como Iohannesburgo,
tajosa para os industriais a contratação de mão de obra negra, sensivel- espaços urbanos degradados, como Soweto, que, a partir dos anos 1960,
mente mais barata que a branca. Os trabalhadores afrícãnderes= reagi- seria reconhecido como foco de resistência e protesto dos negros contra o
ram a essa situação por meio de greves, o que gerou tensões sociais com apartheid. Do ponto de vista político, os anos 1940 foram marcados pela
consequências políticas para Louis Botha: nas eleições de 1924, o Parti- consolidação de novas formas de luta e resistência, já que, inspirados no
do Sul-Africano foi vencido por uma aliança entre o Partido Trabalhista movimento de desobediência civil pacífica de Mahatma Gandhi, os ne-
(formado pela burguesia nacional urbana) e o Partido Nacional de gros passaram a se organizar sob a liderança de homens como Nelson
Hertzog. O compromisso dos vencedores do pleito era atuar em favor Mandela e Oliver Tambo, que militavam contra as leis discriminatórias do
dos africânderes, utilizando o Estadocorno instrumento de defesa eco- país por meio das atividades do Congresso Nacional Africano.
nômica dos trabalhadores branco-i, l Enquanto os negros realizavam uma trajetória mais coesa de resis-
tência ao racismo vigente, os conservadores africânderes davam mais
162 Como os bôeres passaram a ser conhecidos após a criação da União Sul-Africana. suporte ao Partido Nacional Purificado, que venceu as eleições de 1948

172 173
com um projeto político de segregação rigorosa dos «não brancos': Nes- rompimento de suas lideranças, em 1958, dando origem ao Congresso
se momento, as ideias políticas do Partido Nacional Purificado incluíam Pan-Africano: um grupo que criticava a posição "complacente" de parte
mestiços e imigrantes indianos à discriminação já vigente contra os ne- da liderança negra que dialogava com os brancos nas questões políticas.
gros. O governo de Malan intensificou a criação de leis segregacionis- Essé grupo organizou, em fevereiro de 1960, um grande protesto contra
tas, principalmente aquelas que interferiam diretamente no cotidiano as leis do apartheid, sendo fortemente reprimido por forças de seguran-
da sociedade civil negra e na formação de forças políticas desfavoráveis ça africânderes. No chamado Massacre de Sharpeville, 69 pessoas foram
ao apartheid. Dentre essas estavam as seguintes: mortas pelo governo sul-africano.
As décadas de 1960 e 1970 mostraram um panorama internacional
- Lei de Proibição de Casamentos Místos.v" de 1949: proibia expressa-
mente o casamento entre indivíduos de diferentes raças.
pouco favorável ao modelo segregacionista implantado pelos africân-
- Lei de Supressão do Comunismo.!" de 1950: lei que serviu para suprimir deres, que, desde 1961, após a péssima repercussão internacional dos
qualquer oposição ao apartheid, classificada pelo governo sul-africano de acontecimentos em Sharpeville, substituíram a União Sul-Africana pela
"comunista" em plena Guerra Fria. República da África do Sul. No momento em que o continente africano
- Lei de Registro da População.!= de 1950: todas as pessoas deveriam ser
intensificava o processo de descolonização de seus territórios, a África
identificadas por três critérios raciais (brancos, coloured - mestiços - ou
africanos) e passariam a portar um cartão de identidade que evidenciaria do Sul consolidava o regime do apartheid com a manutenção de práti-
essa classificação. cas de dominação racial repudiadas por um número cada vez maior de
- Lei das Areas Grupaís.t= de 1950: forçava a separação física entre as ra- países em todo o mundo.
ças, criando áreas residenciais distintas. O Estado instituía assim as home- Para os negros, crescia a convicção de que a luta armada era a me-
lands, que eram terras onde se concentravam pessoas de determinada raça
lhor estratégia de combate e aversão ao segregacionismo. O Congresso
sob a tutela dos brancos. Multidões foram removidas de suas casas por es-
tarem em áreas atribuídas a outras raças pelo Estado. Nacional Africano abandonou a desobediência civil pacífica e acompa-
nhou, em 1961, a criação e a atuação do Umkhonto We Sizwe, braço ar-
Muitos outros artifícios legais foram criados para segregar a popu- mado dessa organízação.!" Em 1962, Mandela transformou-se em em-
lação «não branca" da União Sul-Africana. A necessidade dos negros baixador antiapartheid ao realizar uma viagem internacional em busca
de portarem um documento ou passe que lhes permitia circular pelo de apoio, principalmente no interior da África e na Europa. Quando re-
país e a proibição de que negros e brancos compartilhassem locais pú- tornou à África do Sul, foi preso e condenado a prisão perpétua.
blicos são exemplos da política racista instituída pelos africânderes ao O aumento da repressão interna levou a militância negra a atuar
longo dos anos 1950. Mesmo quando o governo promovia ações preten- com grande força no exílio. Em reação ao avanço dos movimentos an-
samente libertárias, como a autonomia administrativa das homelands, tiapartheid fora da África do Sul e ao aumento da violência interna, o
reforçava a condição social subalterna dos "não brancos" no país. governo africânder criou o Bureau of State Security (BOSS), uma es-
À revelia do segregacionismo oficial, o Congresso Nacional Afri- pécie de serviço secreto de sustentação do apartheid. A ação política
cano, que havia decidido pela desobediência civil pacífica, sofreu um dos órgãos de repressão sul-africanos tornou-se cada vez mais eficiente
e, ao longo dos anos 1960, foi limitando a atuação dos dois principais
163 No original, "Prohibition of Mixed Marriages Act".
movimentos políticos dos negros: o Congresso Nacional Africano e o
164 No original, "Suppression ofCommunism Act".
165 No original, "Population Registration Act"
167 Oficialmente, Nelson Mandela só anunciou o vínculo do Congresso Nacional Africa-
166 No original, "Groups Areas Act".
no com a resistência armada em 1964, durante sua prisão e seu julgamento, em Rivonia.

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,\ Congresso Pan-Africano. Por essa razão, a atuação das lideranças an- taram o país para uma crise econômica severa. Era cada vez mais dis-
tiapartheid exiladas passou a ter extrema importância. A partir de sedes pendioso manter as forças repressivas que, tanto no exterior quanto no
políticas na Tanzânia e na Zâmbia, os movimentos negros antiapartheid interior do país, continham a ação política antiapartheid. Nessemomen-
passaram a treinar guerrilheiros para a luta armada. to, a Organização dos Estudantes Sul-Africanos organizou uma passeata
Nesses anos de efervescência da Guerra Fria, a África do Sul adotou em Soweto que reuniu 10 mil pessoas em uma manifestação pacífica. O
uma postura agressiva em relação aos seus vizinhos africanos, incorpo- movimento foi reprimido com extrema violência e ganhou repercussão
rando a lógica da bipolaridade ideológica à ação de sua política exter- internacional, ficando conhecido como o Levante de Soweto de 1976.
na. Como grande parte dos movimentos antiapartheid eram vincula- Um de seus principais líderes, Steve Bantu Biko, foi "banido'['" depois
dos e até mesmo financiados por países do bloco socialista, a África do preso e morto pela polícia sul-africana.
Sul passou a interferir diretamente em países africanos que mantinham O aumento vertiginoso da violência institucional na África do Sul,
grupos políticos de esquerda. Em Angola, por exemplo, onde se desen- acompanhado por notícias e imagens da atuação da polícia, como nos
rolava uma guerra civil entre o movimento rebelde de direita União pela episódios de Soweto e de Steve Biko, tornou irreversível o isolamento
Independência Total de Angola (Unita) e o Movimento pela Libertação internacional sul-africano e levou o país a sofrer uma sanção das Na-
de Angola (MPLA), a África do Sul chegou a atuar contra o governo lo- ções Unidas.
cal, de orientação socialista. O mesmo cenário ocorreu em Moçambi- Em 1978, Pieter Botha, do Partido Nacional, assumiu o governo.
que, onde o regime sul-africano apoiou a Resistência Nacional Moçam- Apesar de anunciar "reformas políticas': Botha apenas recorreu a uma
bicana (Renamo), contra o governo socialista da Frente de Libertação estratégia retórica para acalmar os ânimos internacionais. Nenhuma re-
de Moçambique (Prelimo).' forma realmente transformadora foi implantada. A África do Sul seguia
Em 1975, o governo sul-africano invadiu militarmente o território como um país racista e violento, com uma nova Constituição de 1983,
angolano pela fronteira da Namíbia. O projeto de intervenção e conten- que continuava a restringir uma série de direitos vitais aos negros. Frus-
ção do socialismo em Angola foi interrompido pela ação e pelo apoio trada pela retórica do governo Botha, a própria sociedade civil sul-afri-
que Cuba e a União Soviética deram ao governo angolano. Os Estados cana organizou-se em um movimento antiapartheid conhecido como
Unidos, que até pouco tempo antes da invasão a Angola dava assistên- Frente de União Democrática. Diante do temor de que esse movimen-
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cia militar à África do Sul, não mais queria sua imagem vinculada a um to civil fosse irrefreável, Botha decretou estado de emergência nacional
regime malquisto pela opinião pública internacional, e, dessa forma, as e intensificou as forças de repressão do Estado. Com medidas extrema-
tropas sul-africanas. tiveram que retroceder às terras namibianas. mente restritivas e sem renunciar ao uso da violência, a África do Sul fi-
Nos anos 1960, a África do Sul tinha boas relações com territórios cou sob isolamento e pressão internacionais irreversíveis, o que levou o
próximos ainda submetidos ao domínio colonial europeu, como An- governo a revogar algumas leis racistas em 1986.
gola, Moçambiquc,Rodésia (futuro Zirnbábue) e Namíbía. Essas terras Os esforços de Botha para conter a violência interna e o isolamento
formavam o chamado "cordão sanitário" (cordon sanitaire), estabelecen- externo não surtiram o efeito desejado: não acalmaram a sociedade ci-
do uma área de contenção do nacionalismo anticolonial africano. Na se- vil sul-africana, não melhoraram a imagem da África do Sul no mundo
gunda metade da década de 1970, esse cordão já havia se rompido, ori-
ginando governos hostis ao regime do apartheid.
IfiH O "banimento" foi uma punição criada pelo regime sul-africano que proibia o in-
As grandiosas despesas militares geradas na África do Sul com a divíduo de se comunicar com mais de uma pessoa por vez. Era uma pena que recaía,
interferência nos países vizinhos não surtiram efeitos políticos e arras- principalmente, sobre líderes políticos e militantes de oposição ao apartheid.

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e não resolveram a crise econômic~ do país. O balanço geral do governo EPílOGO
Botha incluía, ainda, a derrota militar definitiva em Angola e Meçam-
bique, a independência 'da Namíbia e a chegada ao poder de Frederik CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE A HISTÓRIA
Willem de Klerk. DA ÁFRICA CONTEMPORÂNEA
Em 1989, De Klerk assumiu o poder tendo que afrouxar as bases
repressivas do apartheid. No primeiro ano de mandato libertou diver-
sos líderes antiapartheid, como Walter Sisulu (um dos fundadores do
Congresso Nacional Africano, ao lado de Mandela), além de legalizar
partidos políticos e permitir a atuação de grupos antiapartheid na so-
ciedade civil sul-africana. Em 12 de fevereiro de 1990, Nelson Mandela
Apesar do a,;,anço intelectual universalista do Iluminismo, o expansio-
foi libertado e o governo De Klerk declarou a abertura das negociações
nismo europeu sobre a África no século XIX gerou uma história que
com o Congresso Nacional Africano. Ao final, Mandela teve sua lide-
não sustenta as afirmativas sobre o progresso das sociedades. O "eta-
rança antiapartheid reconhecida mundialmente e, com De Klerk, rece-
pismo" social, para aqueles que dirigiram o esforço colonial, foi um im-
beu o Prêmio Nobel da Paz em 1994. Nesse mesmo ano, houve eleições
portante aliado na construção de um imaginário de controle e domínio
na África do .Sul e Mandela foi eleito presidente com mais de 60% dos
votos, que, dessa vez, incluíam a participação de negros. sobre as populações não europeias. Assim, a trajetória da história do
Ao contrário do que se previa, não houve tumultos durante o plei- colonialismo no continente africano deve ser vista como uma das mais
to, e, nos anos seguintes, Mandela pôde determinar o fim do regime do profundas crises civilizacionais da experiência humana sobre a Terra.
apartheid e a instauração paulatina de um governo de unidade nacio- Um continente outrora materialmente rico e culturalmente diverso en-
nal sem revanchismos. Desde a ascensão ao poder de Nelson Mandela, contra-se hoje severamente empobrecido e submetido a estereótipos so-
o Congresso Nacional Africano passou a controlar a política e a recons- ciais que reforçam olhares de exotismo e depreciação. No entanto, essa
trução do país, conquistando o respeito da opinião pública internacio- história não conta apenas sobre vítimas, mas também sobre resistências,
nal e vitórias políticas que demonstram a mudança da imagem da África contatos, trocas e conflitos.
do Sul. Uma das conquistas foi sediar a Copa do Mundo de 2010, sendo Há algumas décadas, uma vigorosa historiografia africana escrita
o primeiro país africano a fazê-lo, por senegaleses, nigerianos, angolanos, egípcios e também por ingle-
Ainda que o cenário político, econômico e social da África do Sul ses, americanos e franceses procura desfazer o mito da "vítímízação" es- .
tenha se tornado mais positivo, alguns problemas não desaparecem com pecialmente associado ao colonialismo europeu imposto ao continente
a mesma rapidez com que se alastram. Os novos desafios sul-africanos nos séculos XIX e XX. É inegável que a ocupação europeia foi, salvo
concentram-se em segurança pública, controle dos índices de contágio raras exceções, bárbara e violenta; no entanto, as populações africanas
de doenças como a Aids, além da responsabilidade de ser uma liderança sempre procuraram uma resposta à ação invasiva sobre seu território.
regional atuante em favor dos países africanos no jogo político interna- Mesmo evitando o eurocentrismo, a história da África Contempo-
cional. O apartheid pertence, oficialmente, ao passado, mas as consequên- rânea tem como traumático ponto de partida a ocupação sistemática do
cias de um longo período de práticas racistas e discriminatórias conti- .continente pelos países ocidentais em processo de transformação para a
nuam fazendo parte do presente. sociedade capitalista industrial. A renovada presença europeia na África
é indissociável da Revolução Industrial pela qual passaram essas nações,

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