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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, COMUNICAÇÃO LETRAS E ARTES


CURSO DE FILOSOFIA

Diogo Hohl Orsi

Hannah Arendt em diálogo com a tradição metafísica

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

São Paulo
2023
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Diogo Hohl Orsi

Hannah Arendt em diálogo com a metafísica

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à


Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como requisito parcial para obtenção do título de
BACHAREL em Filosofia, sob a orientação da
Prof. Dra. Dulce Mára Critelli.

São Paulo
2023
Dedico este trabalho à minha companheira Ana Paula Salviatti, cujo brilhantismo me inspirou e
me inspira cotidianamente, e cujo incentivo e apoio foram imprescindíveis para que este trabalho
se materializasse, e ao Tito, cuja existência tem orientado toda a minha vida nos últimos dois anos.
Agradecimento

Agradeço à Ana Paula, por todo o incentivo e ajuda para que eu pudesse concluir a minha
primeira graduação e perseguir uma mudança de carreira a essa altura da minha vida.
Agradeço a todos os professores da PUC/SP pelos ensinamentos, paciência e interlocução ao
longo de toda a graduação, particularmente, em ordem meramente alfabética, aos caros
Anderson Nakano, Dulce Critelli, Jonnefer Barbosa, Luiz Marcos Silva e Mario Porta.
E – e se a realidade é mesmo que nada existiu?! quem sabe nada me aconteceu? Só
posso compreender o que me acontece mas só acontece o que eu compreendo – que
sei do resto? o resto não existiu. Quem sabe nada existiu!
- A paixão segundo G.H., Clarice Lispector
Resumo

Este trabalho constitui uma investigação epistemológica acerca do estatuto da realidade ao longo
de autores selecionados da história da Filosofia ocidental, desde o advento da metafísica na Grécia
antiga até a abordagem fenomenológica no início do século XX. Neste percurso, utilizaremos a
posição retrospectiva privilegiada de Hannah Arendt não apenas para interlocução com a tradição
filosófica, mas também como expediente para evidenciar as influências e pressupostos filosóficos
desta autora.

Abstract

This paper is an epistemological investigation into the statute of reality in selected authors of
the history of Western Philosophy, from the advent of metaphysics in ancient Greece to the
conception of the phenomenological method in the early 20th century. In our trajectory, we will
call upon the privileged retrospective position of Hannah Arendt not only as interlocutor with
the philosophical tradition, but also as a means to identify the influences and assumptions of
this author.
Sumário

Agradecimento ........................................................................................................................................ 4
Resumo .................................................................................................................................................... 6
Prólogo .................................................................................................................................................... 8
Introdução ............................................................................................................................................. 10
Capítulo 1 O surgimento da Metafísica na Antiguidade ....................................................................... 12
Capítulo 2 Assimilação da tradição metafísica pela filosofia cristã ...................................................... 17
Capítulo 3 A metafísica na modernidade e o problema da realidade do mundo exterior...................... 20
Capítulo 4 A tentativa de resposta ao ceticismo filosófico ................................................................... 22
Capítulo 5 A fenomenologia ................................................................................................................. 30
Conclusão .............................................................................................................................................. 35
Referências ............................................................................................................................................ 36
Prólogo
“Ao formularem as irrespondíveis questões de significado, os
homens se afirmam como seres que interrogam”
– Hannah Arendt1

Em seu ensaio Filosofia e Política, Hannah Arendt nos lembra do ponto de partida da
filosofia, conforme nos conta Platão na obra Teeteto: um espanto (ARENDT, 1993, p. 110).
Não qualquer espanto, por certo, mas um tipo peculiar que toca a alma do potencial filósofo de
uma maneira diferente a que toca a de outros indivíduos, “o espanto diante daquilo que é como
é”2. Digo “potencial” filósofo, pois não necessariamente aquele tocado por esta experiência de
maravilhamento se dedicará a pensá-lo refletidamente3; mas aqueles que o fizerem – estes sim
– estarão adentrando os caminhos sinuosos da filosofia. A esse espanto, nos lembra Arendt, os
gregos davam o nome de thaumadzein. Ainda segundo a autora, este espanto experimentado
pelo futuro filósofo não pode ser perfeitamente traduzido em palavras, mas, quando tentamos
fazê-lo, o resultado não são afirmações, mas sim perguntas, a constatação da falta de
conhecimento, de estar diante do inexplicável. Ou seja, se este é realmente o início da filosofia,
ela termina no mesmo lugar em que começou, na mudez do maravilhamento que não pode ser
expressado verbalmente; na constatação socrática, incompreendida pelo tribunal que lhe
condenaria, de que, ao fim e ao cabo, a maior sabedoria é o reconhecimento da própria
ignorância.

O espanto que ensejou a investigação ora apresentada não possui uma origem única, mas
surgiu ao longo de quatro anos de graduação, durante os quais, à medida que progrediam meus
estudos e a minha caminhada acadêmica, finos e incômodos grãos de areia encontravam o seu
caminho para dentro dos meus sapatos. Ao longo da jornada, os grãos agruparam-se em
pedriscos, que tomaram formas particulares, metafísicas, transcendentais, ontológicas,
epistêmicas, existenciais. No caminho, ainda, um profundo processo de autoconhecimento por
via da psicanálise freudo-lacaniana amalgamou-se ao pedrisco, que já não era nem tão grande
que não me permitisse continuar caminhando, nem tão pequeno que me permitisse ignorar a
sua existência.

1
ARENDT, 2019, p. 79
2
Vale observar aqui a influência da filosofia heideggeriana e do seu “ser dos seres” na leitura que Arendt faz da
tarefa da filosofia, como nota DOLAN (2000, p. 268)
3
A bem da verdade, o não-filósofo não só não dá continuidade ao espanto, como o faz o filósofo, mas efetivamente
recusa-se a espantar-se (ARENDT, 1993, Filosofia e Política).

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Este trabalho, enfim, mostrou-se como uma oportunidade de descalçar os sapatos e
analisar mais de perto aquilo que me incomodava. E me espantei; com seu tamanho, com sua
incômoda pontiagudez, com o reflexo de mim mesmo que vi em sua superfície. Objetivamente,
este trabalho busca traduzir este espanto, na medida do possível, a partir das perguntas que
inspiraram alguns filósofos da tradição metafísica acerca do nosso conhecimento da realidade
e as suas consequências, tomando como apoio de interlocução o pensamento de Hannah Arendt.

Em nosso percurso, partiremos das primeiras teorias metafísicas e epistemológicas,


ainda na antiguidade grega, passando por sua recepção pelo cristianismo, a virada científica dos
séculos XVII-XIX e finalmente o movimento fenomenológico, já no século XX. Neste
contexto, veremos em que medida a filosofia arendtiana se relaciona a esta tradição de mais de
dois milênios, seja em concordância ou em contraposição.

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Introdução

A existência humana parece ter sido desde há muito tempo permeada por uma
necessidade de explicação daquilo que nos cerca. Seja por medo, como nos casos das mitologias
que buscavam explicar os fenômenos naturais que aterrorizaram os seres humanos por milênios,
seja por desejo de conhecimento, como no caso dos primeiros filósofos que buscaram
compreender a origem de todo o Cosmos, ou ainda por ambição política ou ideológica, como
no caso dos mitos fundacionais de diversos povos ao longo da história, ou das leis
transcendentais que nortearam os movimentos totalitários do século XX.
Seja qual for o caso, é inegável o papel desempenhado pela incerteza diante da infinitude
de possibilidades que se apresentam diante de um ser racional capaz de se projetar
prospectivamente, e pela consequente busca por suprimi-la e retomar a segurança e a
estabilidade do mundo presente. Assim, quando a mera explicação mitológica de elementos da
realidade que não estavam ao alcance do homem deixou de ser suficiente, o homem buscou
outros meios para compreendê-la e controla-la. Um dos primeiros mecanismos desenvolvidos
pelo homem para obter controle sobre o que, de outro modo, lhe ameaçava foi a técnica, os
instrumentos, as ferramentas, os artefatos, enfim, tudo aquilo que poderia abrigar-lhe das
incertezas do mundo ao seu redor (dos elementos naturais, de outros animais ou até mesmo do
próprio homem).
Com o tempo, no entanto, não satisfeito em dominar apenas a técnica instrumental que
lhe garantisse assegurasse contra a incerteza do mundo exterior, o homem passou a reivindicar
o conhecimento das explicações, das causas dessas incertezas. Foi assim que os primeiros
filósofos da Antiguidade passaram a se indagar se não haveria causas imperceptíveis aos
limitados sentidos humanos, causas que transcendessem a nossa capacidade de conhecimento
sensível e que exigissem do ser humano o máximo empenho daquilo que, quiçá, lhe tornava
único entre todos os seres: sua racionalidade. Somente através desta capacidade única do ser
humano é que se poderia finalmente conhecer as causas e respostas das perguntas últimas que
os mais diversos homens se fizeram ao longo da sua existência: “o que somos?”, “de onde
viemos?”, “para onde vamos?”.
Faremos, a seguir, um percurso por alguns dos principais autores que buscaram superar
tal insegurança existencial através de diversas fundamentações do conhecimento e da existência
humanos, e cuja influência na obra de Hannah Arendt é incontestável, seja diretamente (como
nos casos de Husserl e Heidegger, com quem Arendt estudou) ou como interlocutores (como é
o caso de Sócrates, Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Descartes e Kant). Observamos desde

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já que a seleção de pensadores busca meramente exemplificar as diversas abordagens do mesmo
problema e não oferecer um percurso sequencial ou uma análise exaustiva do tema ao longo
dos mais de dois milênios que separam a Grécia antiga do movimento fenomenológico no
século XX.
Além de sua relação com o pensamento de Hannah Arendt, a escolha dos autores se deu
em vista de eles oferecerem ocasião para discutir importantes paradigmas da teoria do
conhecimento e interpretações das contradições existenciais humanas ao longo da história.
Neste sentido, nossa análise começará pelas diversas tentativas de dirimir incertezas
epistemológicas acerca dos assuntos humanos, a partir da conciliação entre dois tipos de
conhecimento: intelectual e sensível.

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Capítulo 1 O surgimento da Metafísica na Antiguidade

Na tradição da Filosofia ocidental, atribui-se geralmente à Platão e à sua Teoria das


Formas – ou das ideias (eidos) – a noção de que o intelecto racional gozaria de privilégio
epistemológico em relação à experiência sensível. Segundo tal teoria – que Hannah Arendt mais
tarde chamaria de “falácia metafísica” (ARENDT, 2019, p. 39) –, o mundo percebido pelos
sentidos não passaria de mera cópia, imperfeita, de um mundo inteligível, verdadeiro. Para
Platão, o mundo sensível, das coisas ou objetos “perceptíveis” é múltiplo, mutável e particular,
sendo que os seres ali existentes participam das ideias (ou seja, as têm como sua causa
ontológica), essas, sim, verdadeiras essências de tudo o que é; já as ideias, ao contrário das
coisas sensíveis, seriam eternas, unas, imutáveis e suprassensíveis. Decorre desta diferença
ontológica entre os dois mundos uma consequência crucial para a filosofia antiga: a sua tarefa
central passaria a ser adquirir conhecimento de tais ideias suprassensíveis, ou, em outras
palavras, da verdade ou da essência daquilo que a cercava.
É importante notar ainda, para os fins da nossa investigação, que, em uma época em que
não havia ainda uma clara distinção entre as atividades filosófica e política (Sócrates talvez
tenha sido o último representante deste amálgama de interesses4), a busca por verdades
absolutas no campo onto-epistemológico acabaria por transgredir os limites da atividade
política, que por sua vez encontrava-se marcada por um cenário de crise da polis grega. É neste
contexto que Arendt recorre frequentemente ao momento arquetípico do julgamento – e
condenação – de Sócrates para exemplificar este embate entre filosofia e política e suas
consequências:

E é nessa situação que Platão concebeu sua tirania da verdade, segundo a qual o que
deve governar a cidade não é o temporariamente bom – de que os homens podem ser
persuadidos –, mas sim a eterna verdade – de que os homens não podem ser
persuadidos. (ARENDT, 1993, p. 95)

O que Arendt chama de “tirania da verdade” seria justamente o esforço platônico por
impor aos assuntos mundanos da polis, marcados pela impermanência das opiniões (doxai) dos
cidadãos de Atenas, a perenidade que a filosofia buscava ao tentar conhecer as essências
eternas, por sua vez encobertas por este mesmo mundo sensível. Tal posição será duramente
criticada por Arendt, para quem a radicalidade platônica – e o seu legado – acabariam por

4
Ver ARENDT, 1993, Filosofia e Política, pp. 91-92

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destruir um aspecto fundamental da política ateniense: o embate de opiniões plurais acerca de
um mundo compartilhado tendo em vista o acordo (que em última instância constituiria a
realidade, ou “objetividade”, para estes indivíduos). A esse respeito, Arendt nota que, ainda em
Sócrates, tais opiniões não eram vistas como mera “fantasia subjetiva e arbitrariedade”, como
julgou Platão posteriormente, “tampouco alguma coisa absoluta e válida para todos”:

O pressuposto [de Sócrates] era de que o mundo se abre de modo diferente para cada
homem, de acordo com a posição que ocupa nele; e que a propriedade do mundo de
ser o ‘mesmo’, o seu caráter comum (koinon, como diziam os gregos, qualidade de
ser comum a todos), ou ‘objetividade’ (como diríamos do ponto de vista subjetivo da
filosofia moderna), reside no fato de que o mesmo mundo se abre para todos e que a
despeito de todas as diferenças entre os homens e suas posições no mundo – e
consequentemente de suas doxai (opiniões) –, ‘tanto você quanto eu somos humanos’.
(ARENDT, 1993, pp. 96-97)

Neste sentido, notamos como a filosofia platônica após a condenação de Sócrates se


tornaria marcada por uma rígida distinção entre as – depreciadas – perspectivas individuais
(doxai) de cada cidadão da polis e uma verdade única e transcendente que estaria disponível
apenas a alguns poucos sábios. E, de fato, diante da crença na existência de um mundo composto
por verdades eternas e imutáveis – noção que será posta em xeque a partir da revolução
científica na modernidade –, a única saída para Platão foi condenar as opiniões baseadas em
perspectivas individuais, pois, como nota novamente Critelli (1996, p. 13), “O reconhecimento
da relatividade da perspectiva é, simultânea e necessariamente, o reconhecimento da
relatividade da verdade”, o que seria inconcebível para Platão, já que a unicidade da verdade é
justamente o que constitui a episteme metafísica.
Notamos, neste sentido, uma característica marcante da filosofia platônica, que marcou
significativamente a própria sistematização da filosofia em uma disciplina de conhecimento: a
relação aparentemente indissociável entre a metafísica (o que é? e como é?) e a epistemologia
(o que se pode conhecer? e como se pode conhecer?), relação que passará a ser questionada a
partir da modernidade. Neste sentido, nota White:

A sua [de Platão] opinião sobre o que existe está substancialmente vinculada a ideias
sobre como dar conta do conhecimento, e a sua concepção do que é o conhecimento
toma forma a partir de convicções sobre o que existe e que seja conhecível.5 (WHITE,
2006, p. 277, tradução nossa)

5
“His views about what there is are largely controlled by ideas about how knowledge can be accounted for, and
his thinking about what knowledge is takes its character from convictions about what there is that is knowable.”

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É diante deste arcabouço teórico que Aristóteles, “o discípulo mais autêntico de Platão”6,
formalizará e estruturará, pela primeira vez, os limites e escopo da filosofia, buscando delimitar
com maior precisão os seus objetos e também as condições para o seu conhecimento. É neste
contexto que o filósofo estagirita escreve o tratado que passou a ser conhecido posteriormente
como Metafísica, no qual formaliza as suas próprias concepções do que seriam os objetivos
fundamentais de uma ciência que buscasse lidar com objetos sitos para “além da física” (daí
“meta-física”), dentre os quais destacam-se o estudo do “ser enquanto ser” (ontologia), o estudo
da substância (ousiologia) e o estudo das causas (etiologia)7.
É assim que, logo no primeiro livro deste tratado, Aristóteles propõe uma hierarquia de
conhecimentos, com ênfase na primazia da razão intelectual sobre os sentidos, já que a primeira
seria capaz de determinar a causa das coisas (objetivo da metafísica) e, consequentemente,
permitir ao seu portador o acúmulo de sabedoria:

Ademais, consideramos que nenhuma das sensações seja sapiência. De fato, se as


sensações são, por excelência, os instrumentos de conhecimento dos particulares,
entretanto não nos mostram o porquê de nada: não dizem, por exemplo, por que o fogo
é quente, apenas assinalam o fato de ele ser quente.
Portanto, é lógico que quem por primeiro descobriu alguma arte, superando os
conhecimentos sensíveis comuns, tenha sido objeto de admiração dos homens,
justamente enquanto sábio e superior aos outros[...] (ARISTÓTELES, Metafísica,
981b, 10-15)

Assim como em Platão, a discussão epistemológica em Aristóteles encontra-se


fortemente vinculada às suas posições ontológicas. A este respeito, Aristóteles discordará da
posição idealista de seu mestre quanto à existência autônoma de ideias universais, eternas e
perfeitas das quais participam tudo o que existe no mundo sensível. Em outras palavras, o
estagirita rejeitará a teoria platônica de dois mundos separados (sensível e inteligível). Ao
contrário, Aristóteles adotará uma posição materialista, conferindo privilégio ao que existe
singularmente como o caminho exclusivo para se chegar ao conhecimento das formas
universais e imutáveis que Platão buscava. Estas, por sua vez, ao contrário do que supunha
Platão, não existiram separadamente daquilo que está acessível ao filósofo no mundo sensível.
Quanto aos motivos que levaram Aristóteles a considerar equivocada a posição de seu mestre,
dirá Bernhardt (1973, p. 131): “Essa separação gravemente errônea é explicável: Platão sofreu

6
Como nos conta Diogenes Laertios (2008, p. 129)
7
O quarto tema é a teologia que, de certa forma, é consequência do estudo das causas, tendo Deus como a causa
primeira, o motor imóvel ou o incausado.

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em sua juventude a influência do mobilismo heraclitiano e, em consequência, jamais pôde
encontrar no próprio mundo sensível os elementos estáveis dos quais a ciência faz seu objeto”.
Façamos uma breve digressão para compreendermos melhor a crítica aristotélica a
Platão. Bernhardt chama a atenção para um dos problemas primordiais da filosofia, em um
período ainda anterior a Sócrates, qual seja, a disputa de posições cosmológicas e físicas entre
Parmênides e Heráclito. De maneira resumida, enquanto o primeiro defendia a impossibilidade
de existência de movimento (imobilismo), já que isso acarretaria na impossibilidade de
qualquer conhecimento da natureza, pois tudo se transformaria a todo o tempo, o último vê a
contradição e o devir como elementos constitutivos de uma realidade agonística, em que “a
desordem é ordem” e a “mudança tem sua constância e se produz em equilíbrio dinâmico”
(BERNHARDT, pp. 38-39). Ora, se assumida a posição de que a realidade encontra-se em
constante transformação, a busca por conhecimento tem de pressupor que este esteja acessível
em algum lugar que transcenda a realidade sensorial, local que Platão chamou de “mundo
inteligível”.
Como vimos, ao rejeitar a distinção entre dois mundos, mas conservar a noção de
conhecimento como a ciência do que é necessário e universal, Aristóteles terá de dar uma nova
solução para a possibilidade de conhecimento transcendente dos universais a partir de um
mundo sensível aparentemente contraditório. A solução será realizar distinções internas ao ser,
que passam a ser entendidos por Aristóteles como compostos, ao mesmo tempo, por aspectos
materiais e imateriais, matéria e forma, ou seja, entre uma essência constante (substância ou
ousia) passível de conhecimento e atributos mutáveis (acidentes) vinculados a esta essência.
No entanto, embora esta primeira distinção seja suficiente para evitar a não contradição e
garantir o conhecimento de cada ser individualmente, a relação entre os seres deverá ser
garantida por uma segunda distinção entre dois modos de ser: ato e potência.
Além de permitir que Aristóteles dê conta da aparente contradição do movimento no
mundo sensível, ao conceber que os seres aparentam materialmente o que está em ato, mas
conservam em si um aspecto imaterial na forma de potência, que pode ou não vir a ato,
mantendo assim a sua identidade, a distinção entre ato e potência terá reflexos ainda em uma
teoria da ação, pois cada agente deverá ter, em potência ativa, a capacidade de agir, enquanto
cada receptor da ação deverá ter, em potência passiva, a capacidade de receber tal ação.

Uma potência é assim uma capacidade de tornar-se outra, isto é, de já ser por si
mesma, de antemão, de alguma maneira portadora de uma determinação que não se
possui, todavia, efetivamente; ou ainda, sem movimento real, o modo de união de uma

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base ativa ou passivamente determinável com uma determinação distinta dela (Ibid.,
p. 141)

É neste sentido que, em sua Ética a Nicômaco, obra que contém os principais elementos
do pensamento aristotélico sobre a ação humana, o filósofo reitera o privilégio epistemológico
do racional sobre o sensível ao transpor, por analogia, a primazia da ação (práxis) – imaterial –
sobre a fabricação (poiesis) – material (ver ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 1140 b4). Com
isso, é novamente à Metafísica, e à sua inaugural distinção ontológica dos modos de ser entre
Ato e Potência, que Aristóteles recorrerá para fundamentar tal primazia8, ao propor a existência
de uma relação diretamente proporcional entre o grau de perfeição da ação (Ato) e o seu
distanciamento da materialidade (Potência)9.
Acerca da interpretação aristotélica da relação entre a perfeição da ação e a sua
materialidade, diz Santos Tabosa:

As ações perfeitas são aquelas que são mais imateriais, pois dependem
especificamente da atuação da alma e, portanto, são mais independentes da
realidade exterior do sujeito. [...] As ações perfeitas se caracterizam quando o fim
último é o próprio exercício da faculdade, como, por exemplo, o ver, pois o fim da
vista é a visão e não se produz nenhuma obra diferente da vista; ao contrário, em
outros casos, onde se produz algo, como por exemplo, o construir; da arte de construir
deriva, além da ação de construir, a casa. (SANTOS TABOSA, 2019, p. 52-53, grifo
nosso)

Notamos, assim, nas filosofias platônica e aristotélica o que Hannah Arendt chamaria de
“consagrado ressentimento do filósofo contra a condição humana de possuir um corpo”
(ARENDT, 2020, p. 20), e que levaria a uma crescente radicalização da separação entre o
homem e o mundo em que ele habita, manifesto em três diferentes – embora intrinsicamente
relacionadas – áreas da filosofia: epistemologia, ética e metafísica. No campo epistemológico,
o privilégio do conhecimento inteligível sobre o sensível. No campo ético, a primazia da ação
(atividade-fim) sobre a fabricação (atividade-meio). No campo metafísico, a superioridade da
forma em relação à matéria.

8
Para mais sobre a relação entre a Metafísica e a Ética aristotélicas, ver Ato e Potência. Implicações éticas de uma
doutrina metafísica em PERINE, 2006, p. 69
9
Sobre a relação entre a ética aristotélica e a sua teoria das substâncias, ver PERINE, 2006, p. 61

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Capítulo 2 Assimilação da tradição metafísica pela filosofia cristã

Não foi, portanto, coincidência a absorção do pensamento, primeiro de Platão e depois


de Aristóteles, pelo projeto dos filósofos cristãos da Antiguidade Tardia e da Idade Média, tais
como Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino. Tal assimilação, contudo, combinada à exegese
teológica das Escrituras, levou a um acirramento da antiga distinção entre corpo e alma, e a um
rebaixamento ainda maior dos sentidos em relação ao intelecto, uma vez que o corpo passou a
ser entendido como uma conexão com o mundo material, ao qual os seres humanos teriam sido
rebaixados após o pecado original, ao passo que o intelecto era visto como a via de
transcendência desta condição e reaproximação da verdadeira natureza humana junto ao divino.
Assim, nota Arendt: “O cristianismo, com a sua crença em um outro mundo cujas alegrias se
prenunciam nos deleites da contemplação, conferiu sanção religiosa ao rebaixamento da vita
activa à sua posição derivada, secundária;[...]” (ARENDT, 2020, p. 20).
A este respeito, temos em Santo Agostinho, particularmente, um esforço bastante
elaborado de reinterpretar a herança da filosofia antiga – sobretudo platônica – com vistas a
fundamentar teoricamente e consolidar as principais doutrinas do cristianismo, transmitidas nos
três séculos anteriores:

No célebre livro VII das Confissões, Agostinho declara ter havido um período em sua
vida em que se tornou platônico, até que reconheceu as insuficiências no platonismo
que, segundo ele, o cristianismo não continha. Nesse ponto, a ausência naquele se
refere principalmente a uma mediação entre a realidade sensível e a suprassensível.
(SILVA FILHO, 2021, p.11)

Entre tais doutrinas, destacam-se a reflexões do filósofo de Hipona acerca da existência


do mal, do livre arbítrio, da Trindade divina, da imortalidade da alma e dos meios para se buscar
a transcendência ao divino. Como consequência desta recepção, teremos em Agostinho o que
será uma das maiores heranças filosóficas à civilização ocidental, transmitida por quase dois
milênios através do cristianismo: um acirramento do privilégio do intelecto sobre a
sensibilidade, ou da transcendência sobre a imanência, como veremos adiante.
Além disso, assim como Platão, Agostinho buscou dar conta da insegurança inerente à
existência humana, cuja análise detida aponta constantemente para contradições (sejam elas
metafísicas, ontológicas ou epistemológicas). No entanto, enquanto Platão buscou resolver tais
contradições concebendo um mundo inteligível, acessível aos seres humanos e que guardasse
uma verdade una que permitisse o conhecimento inequívoco da realidade, Agostinho

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interpretou a contradição existencial humana como uma fratura em sua natureza originalmente
divina, em decorrência do que o filósofo chamou de “pecado original”, em linha com a tradição
cristã e a sua exegese do Gênesis10.

Aliás, o que Agostinho também pretende apresentar como factum ao longo da análise
de sua história pessoal, nas Confissões, e ao longo da história do gênero humano, n’A
cidade de Deus, é precisamente que o ser humano vive em contradição consigo
mesmo, que os projetos humanos de imanência são contraproducentes, que não só não
realizam o que projetam, como realizam o contrário mesmo do que projetam. Os
vários planos de contradição humana são ainda explicitados por meio do conflito
paulino entre querer e fazer, por maio do paradoxo do homem que quer o que não faz
e faz o que não quer, quer ser e acredita ser o que não pode ser e é o que não quer ser.
(SILVA FILHO, 2021)

É neste sentido que, em uma de suas principais obras, A Cidade de Deus, Agostinho faz
uma reflexão ontológica sobre a essência da alma humana, derivada – assim como em Platão –
de questões epistemológicas, tomando por expediente a explicação do infinito desejo humano
por conhecimento. Segundo o filósofo, a criatura racional, motivada por sua arrogância e
ambição desregrada, desejando “ser” o que “não é” – ou seja, vivendo em contradição
ontológica –, se vê envolta em uma cadeia interminável de desejo por conhecimento das coisas
do mundo exterior. Em decorrência de tal desejo desmedido (cupiditas) por coisas externas a
si, e por amor às suas delícias e por medo de perdê-las, a alma a elas se amalgama
(AGOSTINHO, Da Trindade, X, v, 7) como se fora da mesma natureza que tais coisas – diga-
se, de natureza material. Como resultado, a alma passa a se enganar sobre a sua verdadeira
natureza imaterial e reconhecer-se como sendo de uma natureza corpórea, pois

[...] uma vez que são corpos aquelas coisas que, pelos sentidos da carne, amou
exteriormente e com as quais se envolveu numa espécie de laço de prolongada
familiaridade, e não pode levar consigo esses mesmos corpos para o seu íntimo, como
que para uma região de natureza incorpórea, enrola e leva consigo as imagens deles
criadas em si mesma e a partir de si mesma (AGOSTINHO, Da Trindade, X, v, 7).

Vemos aqui um claro exemplo do referido rebaixamento da experiência sensorial em


relação à intelectual na obra agostiniana, além do refinamento e da reinterpretação da filosofia
platônica à luz da emergência do cristianismo. Neste sentido, o filósofo cristão realiza uma
distinção muito cara à sua obra – e claramente influenciada pela tradição platônica e aristotélica
– entre interioridade e exterioridade. A esse respeito, o filósofo atribui como condição para a

10
A este respeito, ver SILVA FILHO, 2020, p. 32

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transcendência (ou para um retorno a Deus) uma aproximação da interioridade e um
consequente afastamento da exterioridade11. Para o filósofo de Hipona, a transcendência, a
partir do conhecimento – ainda que imperfeito – de Deus na própria alma, só pode ser alcançada
a quem permitir à sua alma despir-se destas imagens de objetos sensíveis, amalgamados à alma
pelo desejo desmedido.
Como resultado deste movimento de transcendência em direção à própria interioridade,
a criatura racional se reaproximaria da sua natureza imaterial e, consequentemente, da
completude do seu ser fraturado, permitindo que a sua alma (enquanto subiectum) possa
comportar o conteúdo transcendente que lhe é peculiar por natureza12.
Resumidamente, vemos em Agostinho – e consequentemente em toda a tradição
filosófica ocidental posterior, sob a influência do cristianismo – novamente um esforço de dar
conta das contradições da existência humana (sobretudo da questão da liberdade), através do
aprofundamento da análise da contradição paulina entre querer e fazer 13. Entretanto, é
importante notar que Agostinho rompe, com isso, de maneira importante com a filosofia antiga
ao conceber para o ser humano a liberdade de existir em desacordo com a sua própria natureza,
como nota Silva Filho:

Até então na história, nunca uma filosofia havia elaborado uma concepção tão radical
de liberdade, nunca havia conferido ao ser humano poder inaugurar um regime de
existência em ruptura com a sua essência ou natureza [...], ou que o ser humano
pudesse fraturar a própria natureza [...]. (SILVA FILHO, 2021, p. 26-27)

Ressaltamos, contudo, o caráter ontológico da liberdade agostiniana, inerente aos


homens desde o seu nascimento e não como reflexo das suas ações no mundo, o que será
frontalmente confrontado por uma análise da liberdade em base fenomenológica, tanto para
Hannah Arendt quanto – e talvez ainda mais notadamente – para Jean-Paul Sartre. Com isso, a
dúvida que Descartes lançará, mais de um milênio mais tarde, sobre as possibilidades de

11
Como nota Silva Filho (2022, p. 21), em sua tese de doutoramento (O conceito de amor em Santo Agostinho),
Hannah Arendt irá explorar a aparente contradição entre o projeto agostiniano e os preceitos cristãos de “amar a
Deus acima de todas as coisas” e, ao mesmo tempo, “amar ao próximo como a si mesmo”, “porquanto um com
imperativo de cultivar relação de si a si com Deus para fora do mundo; outro com imperativo de cultura relação
de si ao outro no mundo”.
12
SILVA FILHO, 2020, p. 252; e 2021, p. 127
13
A este respeito e sobre como Arendt buscará resgatar a experiência pré-cristã/filosófica da liberdade, nota Villa:
“A identificação cristã/filosófica entre liberdade e vontade acabará por obscurecer a realidade fenomênica da
mundanidade da liberdade, com ‘consequências fatais’ para a teoria política.” (VILLA, 2001, p. 118, tradução
nossa)

19 / 38
conhecimento – e até mesmo sobre a existência – deste mundo exterior ganhará contornos não
só epistemológicos, mas também éticos, como veremos a seguir.

Capítulo 3 A metafísica na modernidade e o problema da realidade do mundo exterior

A filosofia moderna é marcada, por um lado, pela tradição de mais de um milênio de


filosofia cristã e a sua notada distinção entre corpo e alma, como já visto, e, por outro, pela
emergência de instrumentos e ferramentas que, ao potencializar os sentidos humanos e permitir
acesso inédito a realidades antes tidas como “suprassensíveis”, promoverá uma revolução
epistemológica.
A recepção das doutrinas metafísicas da Antiguidade fez reemergir na Modernidade um
antigo problema, com o acréscimo de uma perniciosa camada. O problema era um o qual vários
filósofos, de Parmênides a Aristóteles, haviam buscado superar: a possibilidade de se obter
conhecimento do mundo exterior pelo indivíduo, ou – mais precisamente – por sua alma ou
mente. Como vimos, na Antiguidade, a resposta passou sobretudo pelas tentativas de
conciliação entre a física (tudo está em constante movimento ou transformação), a ontologia (a
mutabilidade ou perenidade do ser) e a epistemologia (como conhecer algo em constante
mudança), tendo como zênite a solução ontológica aristotélica, que cindiu o ser em dois modos,
Ato e Potência, permitindo conciliar a necessária estabilidade do conhecimento com um mundo
que nos aparece em constante movimento.
No entanto, a camada acrescentada pela modernidade – refletindo as novas exigências
epistemológicas introduzidas pelo modelo de ciência (sobretudo da física) decorrente das
descobertas de Copérnico e Galileu – mostrou-se ainda mais perniciosa que o problema
epistemológico anterior. Como nota Arendt, a primeira reação dos filósofos às novas
descobertas científicas foi um “subjetivismo radical” (ARENDT, 2019, p. 64), que fez emergir,
consigo, e talvez de maneira inédita, os primeiros questionamentos acerca do que chamamos
de realidade. Agora, mais do que lidar com as possibilidades de conhecimento do mundo à
nossa volta, com o qual temos de lidar cotidianamente em todas as nossas atividades, emergia
uma dúvida ainda maior: como ter certeza de que o que experimentamos através dos nossos
cinco sentidos é, sequer, real?
Investigaremos, a seguir, as origens do problema do realismo na modernidade e diversas
tentativas de resposta a este problema, de Kant a Heidegger14.

14
Nos referimos ao artigo de 1912 intitulado O problema da realidade na filosofia moderna (Das Realitatsproblem
in der modernen Philosophie) e ao §43 de Ser e Tempo.

20 / 38
Foi o racionalismo de Descartes – filósofo e matemático cuja “geometria analítica” viria
a revolucionar as ciências exatas – e a sua herdada primazia da razão sobre a experiência que
reviu os papeis da filosofia e da metafísica no campo do conhecimento. No século XVII,
inspirado pela certeza demonstrável dos axiomas matemáticos, o filósofo francês buscou
empregar a matemática como sistema epistemológico, tendo como axioma primordial a
metafísica.
Dentre as consequências desta revisão do papel da filosofia, na Sexta Parte do seu
Discurso sobre o Método, Descartes delega à filosofia a função de suporte de uma prática
científica “útil à vida”, e não mais de contemplação como na Antiguidade e Idade Média,
ajudando a tornar os homens “como que senhores e possuidores da natureza” (DESCARTES,
1973, Discurso sobre o Método, p. 71). Tal posição, que elevaria a obra humana acima das
atividades teoréticas (como a filosofia) e práticas (como a política) é o que levaria à
transformação do homem, na era moderna, de um animal rationale em um homo faber, “um
fazedor de instrumentos e um produtor de coisas” (ARENDT, 2020, p. 284):

Somente a convicção da era moderna de que o homem só pode conhecer aquilo que
ele mesmo faz, de que suas capacidades supostamente superiores dependem da
fabricação e de que ele é, portanto, basicamente um homo faber e não um animal
rationale, trouxe à baila as implicações muito mais antigas da violência inerentes a
todas as interpretações do domínio dos assuntos humanos como uma esfera da
fabricação. (ARENDT, 2020, p.282)

Entretanto, talvez a principal revolução causada pela posição cartesiana em relação à


filosofia e às ciências se deu no campo da epistemologia. A filosofia racionalista, ainda sob
forte influência da tradição filosófica cristã, passaria a privilegiar princípios racionais claros e
distintos – ou seja, uma Metafísica com exatidão matemática – para, só então, buscar
compreender os objetos sensíveis investigados pelas ciências, posição que fica clara na analogia
que Descartes faz entre a filosofia e uma árvore, “cujas raízes são a Metafísica, o tronco a Física,
e os ramos que saem do tronco são todas as outras ciências” (DESCARTES, 1997, Princípios
da Filosofia, p. 22).
Talvez a manifestação mais famosa da posição epistemológica racionalista seja aquela
encontrada na primeira Meditação cartesiana, na qual Descartes descreve a sua busca por
encontrar princípios indubitáveis para fundamentar o seu conhecimento. Ali, após identificar a
falta de confiabilidade dos dados obtidos pelos sentidos, que por vezes lhe enganaram no
passado, o filósofo francês levanta a hipótese de que toda a nossa experiência sensível não passe
de um sonho, uma vez que não existem “marcas assaz certas por onde se possa distinguir

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nitidamente a vigília do sono” (DESCARTES, 1973, Meditações, p. 94), sendo impossível
saber com certeza se qualquer experiência sensível aconteceu realmente ou se foi sonhada. Este
é resumidamente o argumento cético (antes das posteriores considerações teológicas de
Descartes), que levará o filósofo a afirmar, na segunda Meditação, que a única certeza da qual
ele não pode duvidar é a da existência deste “eu” que duvida (o cogito cartesiano).

Neste sentido, nota Honkasalo:

É fácil concluir que, se o conhecimento deve possuir bases indubitáveis, então ele
deve se basear na perspectiva da primeira pessoa, seja do singular ou do plural. Na
história da filosofia ocidental, desde Descartes, este passo tornou-se um ponto em
comum. Conceitos filosóficos tais como o ‘ego’, o ‘sujeito’, o ‘nós metafísico’, o ‘ego
transcendental’, e ‘subjetividade transcendental’ todos compartilham da visão
epistemológica em primeira pessoa, em vários níveis teóricos15 (HONKASALO,
2010, p. 95, tradução nossa)

O que, porém, Descartes acaba fazendo – inadvertidamente – em suas Meditações é


lançar dúvida sobre todo o conhecimento humano – inclusive o conhecimento cotidiano, sobre
o qual não costumamos refletir –, enquanto busca um “ponto arquimediano” sólido a partir do
qual possa reconstruir todo o conhecimento. O problema é que não fica claro o sucesso de
Descartes em encontrar tal ponto, seja ele o cogito ou Deus, de maneira que o que resta é um
legado do que o filósofo Richard Bernstein chama de “Ansiedade Cartesiana”, “um temor da
loucura e do caos onde nada é fixo, onde não conseguimos nem tocar o fundo nem nos manter
na superfície” (BERNSTEIN, 1983, p. 18, tradução nossa).

Capítulo 4 A tentativa de resposta ao ceticismo filosófico

Para Barry Stroud (2020), no clássico A significação do ceticismo filosófico ([1984]), as


consequências do ceticismo cartesiano não podem ser subestimadas, motivo pelo qual o autor
empenha-se – embora reconheça o seu limitado sucesso – em avaliar diversas respostas ao
ceticismo filosófico ao longo da história da filosofia. Segundo Stroud, se aceita nos seus termos,
a conclusão cética nos levaria a duvidar de todos os procedimentos que empreendemos

15
“It is easy to draw the conclusion that if knowledge is to be grounded on an indubitable basis, then it must be
grounded in the first-person perspective or the first-person plural. In the history of Western philosophy from
Descartes onward this step is common. Philosophical conceptions such as the “ego,” the ‘subject,’ the
‘metaphysical We,’ the ‘transcendental ego,’ and ‘transcendental subjectivity’ all share the epistemological first-
person view on various theoretical levels.”

22 / 38
cotidianamente acerca da realidade à nossa volta, fazendo-nos duvidar da existência de
quaisquer outras pessoas, objetos ou eventos com que interagimos cotidianamente. Ainda
segundo o autor, diante de tais consequências “verdadeiramente desastrosas[...] Não há
nenhuma maneira fácil para acomodar a si próprio às suas profundas implicações negativas”
(Ibid., p. 82).
Similar destaque à dúvida cartesiana é dado por Hannah Arendt em A Condição
Humana16 (1958)17, em que a filósofa atribui à dúvida “a mesma posição central que, em todos
os séculos anteriores, era ocupada pelo thaumadzein grego, a admiração diante de tudo o que é
como é” (ARENDT, 2020, p. 339). Arendt reconhece ainda que um dos legados do ceticismo
cartesiano para a modernidade foi o que ela chama de “pesadelo da não realidade”, uma
“dissolução da realidade objetiva em estados subjetivos da mente ou, antes, em processos
mentais subjetivos” (Ibid., p. 350). Ainda a este respeito, a pensadora destaca como mais uma
consequência da dúvida cartesiana a internalização do que ela chama de “senso comum”:

Pois o senso comum, que fora antes aquele sentido por meio do qual todos os outros,
com as suas sensações estritamente privadas, se ajustavam ao mundo comum, tal
como a visão ajustava o homem ao mundo visível, tornou-se então uma faculdade
interior sem qualquer relação com o mundo. (ARENDT, 2020, p. 351)

Como nota Critelli, a busca cartesiana por um ponto arquimediano externo ao ser
humano que fosse capaz de garantir segurança epistemológica independente da subjetividade e
da dúvida de si mesmo acabou lançando “para fora de si mesmo [...] a possibilidade de qualquer
domínio da realidade” (CRITELLI, 1996, p. 14).
Neste sentido, Arendt e Stroud concordam que tais consequências estariam relacionadas
mais diretamente à perda de um mundo compartilhado e do senso comum18, que funcionaria,
para a primeira, como um sexto sentido reunindo e presidindo os outros cinco, os quais, por sua
vez, são responsáveis por ajustar “o homem à realidade que o rodeia” (ARENDT, 2020, p. 340).

A propriedade mundana que corresponde ao sexto sentido é a realidade [realness][...].


(ARENDT, 2019, p. 68)

16
Ver “O advento da dúvida cartesiana” (ARENDT, 2020, p. 339-353)
17
Honkasalo (2010) observa que, pela posição de Arendt como teórica política, a sua importante crítica filosófica
ao que a comentadora chama de “fundamentalismo epistemológico” (a busca empirista e racionalista por certezas
absolutas), nos últimos capítulos da Condição Humana e nos primeiros capítulos da Vida do Espírito tem recebido
pouca atenção de comentadores.
18
Voltaremos a este tema abaixo ao tratar da influência de Kant em Arendt.

23 / 38
O common sense, que os franceses tão sugestivamente chamam de “bom-senso”, le
bon sens –, nos desvenda a natureza do mundo enquanto este é um mundo comum; a
isso devemos o fato de nossos cinco sentidos e seus dados sensoriais, estritamente
pessoais e “subjetivos”, se poderem ajustar a um mundo não subjetivo e “objetivo”
que possuímos em comum e compartilhamos com outros. (ARENDT, 2016, p. 275-
276)

Diante do cenário de perda absoluta da capacidade de confiar no que pensávamos


conhecer sobre um mundo externo compartilhado, a própria realidade é posta em dúvida, uma
vez que “se não podemos confiar nos sentidos, nem no senso comum, nem na razão, então é
possível que tudo o que tomamos pela realidade não passe de um sonho” (ARENDT, 2020, p.
343).
Para Arendt, como já discutido, a origem da desconfiança cética estaria relacionada ao
desenvolvimento dos instrumentos de pesquisa pelas ciências naturais a partir do século XVII,
que teriam radicalizado a desconfiança transmitida desde a antiguidade acerca da capacidade
dos nossos sentidos de garantirem conhecimento universal e necessário. Segundo a autora, a
nova perspectiva oferecida por tais instrumentos que pretendiam oferecer uma medida precisa
da “verdadeira realidade” teria sido responsável por lançar desconfiança nas demais percepções
do mundo à nossa volta, baseadas nos nossos próprios sentidos desassistidos de tais
instrumentos:

Em sua busca pela ‘verdadeira realidade’, os cientistas perderam a confiança no


mundo das ‘meras’ aparências, nos fenômenos que se revelam por conta própria aos
sentidos e à razão humana. [...] e este efeito, para usar a imagem de Eddignton, pode
ter ‘tanta semelhança’ ao que eles são quanto ‘um número de telefone tem em relação
ao proprietário da linha’. Mesmo assim, parece haver pouca dúvida quanto à sua
‘verdadeira realidade’;[...] O problema é apenas que o descobridor da ‘verdadeira
realidade’ por trás das meras aparências permanece preso a um mundo de aparências;
ele não pode ‘pensar’ em termos daquilo que ele agora concebe como a verdadeira
realidade, ele não consegue comunicá-la utilizando uma linguagem, e a sua própria
vida permanece presa a um conceito de tempo que, demonstravelmente, não pertence
à ‘verdadeira realidade’, mas é ele mesmo mera aparência[...]. (ARENDT, 1968, p. 7,
tradução nossa)19

19
“The scientists in their search for ‘true reality’ lost confidence in the world of ‘mere’ appearances, in the
phenomena as they reveal themselves of their own accord to the human senses and reason.[…] and this effect, in
the telling image of Eddignton, may ‘have as much resemblance’ to what they are as a ‘telephone number has to
a subscriber’. And still, there seems to be no doubt that this is ‘true reality’;[…] The trouble is only that the
discoverer of the ‘true reality’ behind the mere appearances remains bound to a world of appearances; he cannot
‘think’ in terms of what he now conceives as true reality, he cannot communicate in language about it, and his
own life remains bound to a time concept that demonstrably does not belong to ‘true reality’ but is – as Einstein’s
famous twin paradox, based on the ‘clock paradox’ established – mere appearance”. Uma versão em português
deste trecho, com pequenas modificações, aparece no ensaio O Ponto Arquimediano, em ARENDT, 2021.

24 / 38
No contexto desta revolução epistemológica das ciências naturais, que influenciou – se
não “determinou” – o pensamento filosófico ao longo dos séculos XVII e XVIII, culminando
no Iluminismo europeu, é imprescindível analisarmos ainda as contribuições de mais um
filósofo, que representa as “últimas consequências” da virada introduzida por Descartes
(PORTA, 2023, p. 167) e cuja influência no pensamento arendtiano é determinante: Immanuel
Kant.
Como visto até aqui, uma das grandes diferenças entre a epistemologia platônica e a
cartesiana se deu em suas formas de ceticismo. Enquanto Platão permanecia cético com relação
ao objeto do conhecimento, estabelecendo uma clara hierarquia epistemológica entre objetos
sensíveis e inteligíveis, na qual somente objetos imutáveis e eternos podem ser alvo de
conhecimento, o ceticismo cartesiano – sob influência das novas descobertas científicas –
concentrou-se na dúvida com relação às capacidades do sujeito do conhecimento. Já a posição
filosófica de Kant, como nota Stroud (2020), pretende provar um duplo realismo (metafísico e
epistemológico), que combateria ao mesmo tempo o ceticismo cartesiano20 (quanto à existência
do mundo exterior) e o platônico (quanto aos objetos do conhecimento):

“O realismo que Kant quer provar é uma concepção complexa e poderosa. Ele envolve
mais do que a simples ideia de coisas que existem no espaço independentemente
daqueles que as percebem e independentemente da capacidade de alguém conhecer a
sua existência. Esse é o que se poderia chamar de aspecto metafísico do realismo.
Mas o realismo de Kant também tem um aspecto epistêmico; ele implica algo sobre
o nosso acesso às coisas que existem de maneira independente. Para Kant, nossa
percepção e, portanto, nosso conhecimento das coisas exteriores é direto,
imediato e não problemático.” (STROUD, 2020, p. 201, grifo nosso)

Neste sentido, nota ainda Porta:

“Se temos em mente a tese platônica central, nós precisamos dizer que em Kant se
efetua uma inversão radical com respeito a Platão, pois justamente para Kant não só
é possível ciência do fenômeno, mas só é possível ciência do fenômeno”. (PORTA,
2023, p. 162)

Devemos, portanto, analisar de que forma Kant compreende o que Porta chama de
“fenômeno”, no contexto do seu exame da possibilidade da Metafísica como ciência e,
consequentemente, dos limites do conhecimento humano, em sua Crítica da Razão Pura.

20
À respeito da dúvida cartesiana quanto à existência do mundo exterior, diz Kant: “[...] permanece escandaloso,
para a filosofia e a razão humana universal, ter de aceitar por mera crença a existência das coisas fora de nós (das
quais, contudo, retiramos todo material para nossos conhecimentos, inclusive para nosso sentido interno) e, caso
seja do agrado de alguém duvidar de sua existência, não poder opor-lhe nenhuma prova suficiente.” (KANT, 2015.
p. 41)

25 / 38
Lidando em primeira mão com a revolução epistemológica produzida pela mecânica
newtoniana na física (tida por Kant como o modelo de ciência a ser seguido), Kant fez parte de
um movimento filosófico que se debruçou sobre a relação entre a filosofia (entendida como
metafísica) e as novas ciências:

A preocupação de Kant com a metafísica não era nem nova nem original, mas típica
dos filósofos da Alemanha na metade do século XVIII. A possibilidade da metafísica
já era um dos problemas centrais da filosofia alemã desde o fim do século XVII. Esse
problema surgiu quando a velha metafísica aristotélica, que dominara a vida
intelectual alemã no século XVII, foi jogada na defensiva pelo crescimento das novas
ciências. O método geométrico da física cartesiana e o método matemático-indutivo
de Newton solaparam tanto os conceitos quanto os métodos do velho aristotelismo.
(BEISER, 2009, pp. 46-47)

Assim, embora Kant não tenha sido o primeiro a vislumbrar os limites epistemológicos
intransponíveis entre a filosofia e a ciência, ou entre o pensamento especulativo da metafísica
e os novos critérios de conhecimento exigidos pela ciência de sua época, foi a partir de sua
Crítica da Razão Pura que a metafísica abandonaria finalmente suas pretensões de
conhecimento de ideias transcendentes ou meramente inteligíveis e se tornaria uma “ciência
dos limites da razão humana” (BEISER, 2009, p. 59).
A “grande novidade de Kant” (PORTA, 2023, p. 81) em sua “filosofia crítica”, que
inaugura o movimento filosófico chamado de Idealismo Alemão, foi a revisão epistemológica
conhecida como “inversão copernicana”, assim apelidada por sua analogia21 à novidade do
modelo cosmológico heliocêntrico de Copérnico. Na versão kantiana, a inversão se deu,
contudo, no âmbito do “centro epistêmico do universo” da filosofia, passando de girar em torno
do “objeto” (como fora na metafísica tradicional) para girar em torno das condições de
possibilidade de conhecimento do “sujeito”. A esta nova posição filosófica, Kant chamou de
“filosofia transcendental”:

Ora, a noção de ‘transcendental’ é introduzida por Kant em estreita relação com a


ideia de uma reflexão que explicite e fundamente aquilo que é pressuposto da
possibilidade da experiência.[...] Nesse sentido, o objetivo da CRP [Crítica da Razão
Pura] é oferecer as bases de uma filosofia transcendental. Essa filosofia transcendental
dará um perfil muito peculiar às questões epistemológicas que se vinham colocando
com urgência desde Descartes e por toda a modernidade, fazendo que, nessa forma

21
A analogia é feita pelo próprio Kant: “Até hoje se assumiu que todo o nosso conhecimento teria de regular-se
pelos objetos[...]. É preciso verificar pelo menos uma vez, portanto, se não nos sairemos melhor, nas tarefas da
metafísica, assumindo que os objetos têm de regular-se por nosso conhecimento[...]. Isso guarda uma semelhança
com os primeiros pensamentos de Copérnico, que, não conseguindo avançar muito na explicação dos movimentos
celestes sob a suposição de que toda a multidão de estrelas giraria em torno do espectador, verificou se não daria
mais certo fazer girar o espectador e, do outro lado, deixar as estrelas em repouso. Pode-se agora, na metafísica,
tentar algo similar no que diz respeito à intuição dos objetos.” (KANT, 2015, pp. 29-30)

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peculiar de reflexão transcendental, a epistemologia passe a ser a base de toda a
filosofia (ou seja, que a metafísica já não será mais a disciplina fundamental da
filosofia. (PORTA, 2023, pp. 81-82)

Assim como em Platão são praticamente indissociáveis os objetivos epistemológicos


dos ontológicos, como já vimos, em Kant são igualmente indissociáveis os objetivos
epistemológicos dos morais, estes últimos marcadamente fundamentados pela demanda
iluminista pela substituição da autoridade injustificada da pré-modernidade por uma
justificação racional da “liberdade”. Neste sentido, Kant considerava uma tarefa essencial da
filosofia, além de encontrar uma explicação para a possibilidade do novo conhecimento
científico de sua época, estabelecer as bases racionais da liberdade “no poder legislador do
próprio intelecto humano” (GUYER, 2009, p.18).
Neste projeto, que levaria à revisão dos objetivos a que se propunha a filosofia há dois
milênios, Kant viu na distinção dos objetos do conhecimento entre dois aspectos, i.e. as coisas
como “fenômenos” e as “coisas em si mesmas”, a solução para atender o anseio iluminista pela
fundamentação da liberdade – e, consequentemente, da moralidade –, e evitar a aparente
contradição decorrente do determinismo resultante da mecânica newtoniana (contradição essa
conhecida como a terceira antinomia da razão pura, como veremos abaixo). Além disso, o
idealismo transcendental de Kant buscava oferecer uma terceira via às duas posições
epistêmicas vigentes de sua época: o ceticismo empirista e o racionalismo dogmático.
Como veremos no trecho abaixo, em que Kant expõe sucintamente alguns dos objetivos
de sua Crítica da Razão Pura, fica claro como o filósofo alemão ainda se encontrava tributário
da epistemologia que marcou a metafísica clássica – e que virá a ser criticada pela
Fenomenologia e por Hannah Arendt –, qual seja, a de que a aparência dos entes (ou os
fenômenos) ainda remeteriam a uma essência suprassensível, por sua vez localizada além das
possibilidades de conhecimento da razão humana.

[...] que, portanto, nós não possamos ter qualquer conhecimento das coisas em si
mesmas, mas apenas enquanto sejam objetos da intuição sensível, i.e.,
fenômenos: tudo isso será provado na parte analítica da Crítica; donde se segue
então, naturalmente, a limitação de todo conhecimento especulativo meramente
possível da razão a simples objetos da experiência. Do mesmo modo, porém, e isto
tem de ser bem enfatizado, ressalva-se aí que, mesmo sem poder conhecê-los, nós
temos de poder pensar esses mesmos objetos como coisas em si mesmas. Pois do
contrário se seguiria a absurda proposição de que o fenômeno existe sem algo que
nele apareça. Supondo agora que não fosse feita a distinção entre coisas como
objetos da experiência e as mesmas coisas como coisas em si mesmas, distinção
que a nossa Crítica fez de maneira necessária, então o princípio da causalidade,
e portanto do mecanismo natural na determinação das mesmas, teria de valer
para todas as coisas em geral como causas eficientes. Eu não poderia, neste caso,
dizer do mesmo ente, p. ex., a alma humana, que a sua vontade é livre e, ao mesmo

27 / 38
tempo, subordinada à necessidade da natureza, i.e., não livre, sem cair numa evidente
contradição, já que tomei a alma, nas duas proposições, com exatamente o mesmo
significado, qual seja, como coisa em geral (como coisa em si mesma); até porque não
me era de fato possível, sem uma crítica prévia, tê-las tomado de outro modo. (KANT,
2015, p. 34-35, B XXVI a B XXVIII, grifos nossos)

No trecho destacado, além de introduzir as noções metafísicas de fenômeno e coisa-em-


si mesma como dois elementos do conhecimento puro a priori (independente da experiência),
Kant faz ainda a primeira menção de um uso prático (moral) da razão pura, refletindo a forte
relação entre seus objetivos epistêmicos e morais. Assim, é possível compreender melhor o que
motivou Kant a essa importantíssima distinção dos objetos do conhecimento, como já
indicamos. Ao aplicar a distinção entre fenômeno e coisa-em-si, Kant buscou solucionar a
terceira das chamadas “antinomias da razão pura”, qual seja, conciliar o determinismo das leis
da natureza – imprescindível para validar a mecânica newtoniana – com a liberdade de um
primeiro princípio incausado, por sua vez racionalmente necessário para concebermos “uma
origem do mundo” (KANT, 2015, p. 381, B 478). Dito de outra forma, Kant encontra, assim,
uma forma de aceitar o determinismo resultante da mecânica newtoniana – manifesto no
aspecto fenomênico dos objetos – sem abrir mão da liberdade necessária para a imputabilidade
das ações humanas e, consequentemente, para a validade de princípios morais.
Cabe notar aqui que a distinção kantiana entre objetos que podem ser conhecidos
(fenômenos) e objetos que podem ser apenas pensados, mas não conhecidos (coisas-em-si) será
fundamental para o empreendimento de Hannah Arendt de analisar as atividades do espírito em
sua última obra (A vida do espírito), embora talvez nem o próprio Kant tivesse se dado conta
“da medida em que havia liberado a razão, a atividade de pensar” (ARENDT, 2019, p. 29),
como nota a própria autora:

A distinção que Kant faz entre Vernunft e Verstand, “razão” e “intelecto” [...] é crucial
para nossa empreitada. Kant traçou essa distinção entre as duas faculdades espirituais
após haver descoberto o “escândalo da razão”, ou seja, o fato de que nosso espírito
não é capaz de um conhecimento certo e verificável em relação a assuntos e questões
sobre os quais, no entanto, ele mesmo não se pode impedir de pensar. [...] Assim, a
distinção entre as duas faculdades, razão e intelecto, coincide com a distinção entre
duas atividades espirituais completamente diferentes: pensar e conhecer; e dois
interesses inteiramente distintos: o significado, no primeiro caso, e a cognição, no
segundo. (ARENDT, 2019, p. 29)

Temos, com isso, em Kant, duas inovações que influenciarão sobremaneira os filósofos
posteriores a ele: i) a distinção dos objetos do conhecimento em fenômenos e coisas-em-si; ii)

28 / 38
a inversão da prioridade epistemológica, passando do objeto para as condições de conhecimento
do sujeito transcendental.
Porta (2023, pp. 165-166) observa que, nas gerações seguintes, a filosofia kantiana (mais
precisamente o seu foco no sujeito epistemológico, ou o seu aspecto “transcendental”) seria
radicalizada em duas direções antagônicas: por um lado, o neokantismo, apoiado sobre o
método transcendental kantiano e, por outro, a fenomenologia, apoiada no apelo kantiano às
“estruturas da subjetividade” (como veremos no capítulo seguinte).
A este respeito, é notável, mais uma vez, a influência de Kant sobre Arendt, evidente na
peculiar interpretação que a autora faz da terceira crítica kantiana (Crítica da Faculdade de
Julgar)22 como fundamento de uma eventual filosofia política em Kant23. Em seu ensaio Crise
na cultura: sua importância social e política (1960), Arendt defende que, a partir do fenômeno
do “gosto”, Kant teria descoberto o juízo como uma “faculdade especificamente política” ao
permitir aos sujeitos transcender a sua própria perspectiva e ver as coisas “na perspectiva de
todos aqueles que porventura estejam presentes” (ARENDT, 2016, p. 275).
Ainda segundo Arendt, tal faculdade se apoiaria em um modo do pensamento que Kant
chamara de “mentalidade alargada” (eine erweiterte Denkungsart)24 e que consistia em permitir
ao sujeito se colocar no lugar do outro. A essa faculdade especificamente kantiana, Arendt
corresponde a noção ordinária de senso comum, que, como já tratamos, corresponderia a um
sexto sentido capaz de desvendar a natureza objetiva do mundo a cada indivíduo a despeito de
seus sentidos subjetivos:

O common sense[...] nos desvenda a natureza do mundo enquanto este é um mundo


comum; a isso devemos o fato de nossos cinco sentidos e seus dados sensoriais,
estritamente pessoais e ‘subjetivos’, se poderem ajustar a um mundo não subjetivo e
‘objetivo’ que possuímos em comum e compartilhamos com outros. O julgamento é
uma, se não a mais importante atividade em que ocorre esse compartilhar-o-mundo.
(ARENDT, 2016, p. 276)

22
Observamos que a terceira parte da obra póstuma de Arendt, A Vida do Espírito, seria dedicada à atividade do
Julgar. Contudo, a autora faleceu antes que pudesse concluir tal obra, deixando como legado apenas anotações
pessoais, um curso ministrado sobre a filosofia política kantiana e comentários em outros ensaios.
23
Como notará Dana Villa a respeito da apropriação fenomenológica que Arendt faz da Crítica do Juízo de Kant
em termos de uma teoria política, “O apelo [de Arendt] à estética de Kant destaca não apenas o aspecto fenomênico
da ação política, mas também o ser do espaço da aparência – o mundo público.” (VILLA, 2001, p. 113, tradução
nossa)
24
KANT, Crítica do Juízo, §4 apud ARENDT, 2016, p. 274

29 / 38
Capítulo 5 A fenomenologia

Agora que alcançamos de maneira segura o campo do conhecimento puro, podemos


realizar um estudo deste conhecimento e estabelecer uma ciência do fenômeno puro,
uma fenomenologia. (HUSSERL, 1999, p. 35, tradução nossa)

Em que consiste o elemento individualizador da Fenomenologia, já que esta não é


nem Lógica nem Psicologia? Manifesta-se aqui uma disciplina filosófica inteiramente
nova e que possui dignidade e nível próprios? (HEIDEGGER, 1973, p. 496)

Como já indicado, a filosofia kantiana e a sua proposta de reorientação do papel da


filosofia à reflexão sobre o sujeito do conhecimento terá uma recepção particular na virada do
século XIX para o XX25. E, embora Kant tenha sido o primeiro a “descobrir, esclarecer e
dirimir” (ARENDT, 2019, p. 61) a existência de semblâncias da razão, ou seja, a falácia
metafísica de que existiriam “coisas-em-si” no mundo das aparências da mesma forma em que
nós existimos, o filósofo setecentista ainda permaneceu preso à tradição metafísica que
concebia a própria existência de uma realidade inteligível suprassensível e inatingível por nossa
razão. E é justamente a ideia da existência de objetos de conhecimento para além dos limites
dos nossos sentidos que será veementemente rejeitada por um novo movimento filosófico no
início do século XX.
É assim que, na virada do século, o matemático Edmund Husserl, que voltara seus
interesses para a filosofia e epistemologia sob a influência de Franz Brentano, abriria caminho
para uma nova forma de se fazer filosofia e interpretar a realidade, chamada por ele mesmo de
fenomenologia.
Não pretendemos nesta seção resumir em poucas páginas o que é a fenomenologia e a
sua importância dentro da filosofia, tarefa que seria impossível sem incorrermos em
reducionismos deletérios. Pela amplitude e variedade de autores englobados pelo movimento
fenomenológico, pode ser inclusive difícil, à primeira vista, vislumbrar a conexão entre obras
como as Investigações Lógicas (1900) de Husserl, Ser e Tempo (1927) de Heidegger, O Ser e
o Nada (1943) de Sartre e A Condição Humana (1958) de Hannah Arendt, como observa o

25
“Com certeza, não devemos nos esquecer que, em sua fase tardia, Husserl se viu simpático e de acordo
precisamente com a Crítica da Razão Pura de Kant[...]. Há certamente muito na Crítica da Razão Pura que se dá
à interpretação da fenomenologia tardia de Husserl.” (SPIEGELBERG, 1965, p. 12, tradução nossa)

30 / 38
próprio fenomenólogo Merleau-Ponty no Prefácio de sua Fenomenologia da Percepção
(1945)26.
De fato, o próprio Husserl, geralmente tido como o “fundador” do movimento
fenomenológico27, no início do século XX – além de ter passado por uma mudança significativa
de posição, de um realismo que se opunha ao modelo cartesiano a um idealismo que se
aproximava do modelo epistemológico kantiano – demonstrou-se descontente com a
continuidade que esperava do seu projeto dada por seu discípulo mais promissor, Martin
Heidegger, cuja fenomenologia hermenêutica se desenvolveu “em uma direção radicalmente
diferente daquela proposta por Husserl” (SOARES e PORTA, 2022, p. 18)28. Não obstante tal
distanciamento entre os dois, a própria Hannah Arendt – discípula de Heidegger – estudaria
mais tarde com Husserl por um semestre, em meados dos anos 1920.
Diante do rápido avanço da ciência no século XIX, levando a um afastamento cada vez
maior da intuição sensível e, consequentemente, da “visão cotidiana do mundo” (SOARES e
PORTA, 2022, p. 15), a fenomenologia husserliana buscará responder à necessidade de
restabelecer o contato direto do sujeito do conhecimento com o seu objeto e oferecer finalmente
uma alternativa à dúvida cética. Tal projeto culminará na tentativa de Husserl de “re-vincular a
ciência ao mundo da vida cotidiana e evidenciar o seu fundamento nele” (Ibid., p. 15).
Contudo, embora a própria Hannah Arendt tenha estudado com Husserl, é notório que a
sua principal influência filosófica veio não de Husserl, mas de seu aluno “desertor”, Martin
Heidegger, sob cuja mentoria a pensadora estudara por mais de cinco anos. É com29 e contra30
Heidegger ainda – embora quase nunca explicitamente –, que Arendt desenvolve grande parte
de suas considerações propriamente filosóficas, inclusive a sua própria resposta
fenomenológica ao problema do mundo exterior, como veremos adiante. Diante disso, nos

26
Também Spiegelberg, em sua obra The Phenomenological Movement: A Historical Introduction, nota que “As
dificuldades em se definir precisamente o que é a fenomenologia são quase famigeradas.” (SPIEGELBERG, 1965,
p. 1, tradução nossa)
27
Ver SOARES e PORTA, 2022, Husserl e a Fundação da Fenomenologia, pp. 8-18
28
Evidência deste rompimento pode ser encontrada na história do verbete “Phenomenology” da Encyclopedia
Britannica, encomendado a Husserl, e cujas contribuições feitas por Heidegger acabaram sendo completamente
descartadas por seu mestre na versão final do texto (Ver a Introdução de Richard E. Palmer às Palestras de
Amsterdam, de Husserl, em HUSSERL, 1997)
29
Como nota Villa (2001, p. 114), além de haver um paralelo entre os projetos de Arendt e Heidegger do ponto de
visto metodológico, a abordagem ontológica de Heidegger à questão da liberdade dará a Arendt um elemento
central do seu pensamento político: pensar a mundanidade da liberdade.
30
A recepção da filosofia heideggeriana por Arendt é marcada por duas radicais inversões: i) de uma filosofia
existencial centrada no eu para um projeto filosófico orientado pela pluralidade humana, e ii) que tal orientação
seja pautada pela condição humana da natalidade e não da mortalidade, como defendia Heidegger.

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deteremos a seguir em alguns dos aspectos da obra heideggeriana que influenciaram o
pensamento de Hannah Arendt31.
Como notam Soares e Porta (2022), Heidegger acreditou que o método de seu antecessor
ainda seria insuficiente para satisfizer a pretensão da fenomenologia de se ater estritamente ao
fenômeno (“às coisas mesmas”), uma vez que partiria do pressuposto – compartilhado com toda
a tradição filosófica ocidental – do “primado absoluto da atitude teórica ante o mundo”
(SOARES e PORTA, 2022, p. 19).
Como solução, Heidegger propõe um rompimento mais radical com a metafísica
tradicional em favor de uma “ontologia fundamental”, deixando de concentrar-se “nos entes
particulares do mundo” para se dedicar à investigação do “ser per se” (REYNOLDS, 2014, p.
37). Dentro deste objetivo, Heidegger privilegiará aquele ser único para quem a própria questão
do ser é um tema, o homem, ou Dasein (ser-aí ou pre-sença, dependendo da tradução), e
explicitar suas estruturas fundamentais, ou seus existenciais (CARDINALLI, 2022).
Na Introdução acrescentada em 1949 ao seu ensaio Que é metafísica?, Heidegger
esclarece, citando de sua própria obra, que “A ‘essência’ do ser-aí consiste em sua existência”
(HEIDEGGER, 1973, p. 257), de modo que a palavra “existência” é utilizada em sua obra para
designar um “modo de ser”, particularmente do ser humano, ou do Dasein. Neste sentido,
Heidegger afirma que existir é o modo de ser do homem. Ao contrário do rochedo, da árvore e
do anjo, que são, “somente o homem existe” (Ibid.).
Ao propor que a condição ontológica fundamental do Dasein é o próprio fato da sua
existência no mundo (ser-no-mundo é o primeiro e o principal conjunto de existenciais
discutido por Heidegger em Ser e Tempo), o filósofo, ao mesmo tempo, rompe com a prioridade
epistemológica que conduzira ao ceticismo cartesiano, e retoma a relação indissociável entre
ontologia e epistemologia que esteve na gênese do projeto de filosofia na antiguidade grega,
como discutido no Capítulo 1.
Com reflexos significativos posteriormente na obra de Hannah Arendt, a perspectiva de
investigação do Dasein como ser-no-mundo, ou seja, como uma condição pré-ontológica do ser
humano, permite a Heidegger ainda responder à dúvida cética, da qual tratamos nos Capítulos
3 e 4, acerca da realidade do mundo exterior. Neste sentido, a resposta de Heidegger é contestar
o próprio pressuposto da dúvida, uma vez que somente o próprio Dasein enquanto ser-no-
mundo, e, portanto, indissociável do mundo (o que autoevidencia a realidade do mundo), é que

31
Para fins de esclarecimento, notamos aqui a existência, mas optamos deliberadamente por não discutir, as
controvérsias envolvendo o relacionamento afetivo entre Hannah Arendt e Martin Heidegger, ou o envolvimento
do último com o partido nazista alemão. Para mais, ver ROSE HILL, 2021, 2. Shadows, pp. 33-42.

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poderia vir a se propor tal dúvida (HEIDEGGER, 2005, §43). Assim, diria Heidegger sobre a
prova da existência de um mundo exterior, que Kant considerara um “escândalo”32:

O ‘escândalo da filosofia’ não reside no fato dessa prova ainda inexistir e sim no fato
de sempre ainda se esperar e buscar essa prova. Tais expectativas, intenções e
esforços nascem da pressuposição, ontologicamente insuficiente, de algo com relação
ao qual um ‘mundo’ simplesmente dado deve-se comprovar independente e exterior.
Insuficientes não são as provas. O modo de ser desse ente que prova e exige provas é
que é subdeterminado. [...] A pre-sença [Dasein], entendida corretamente, resiste a
tais provas porque ela já sempre é, em seu ser, aquilo que as provas posteriores
supõem como o que se deve necessariamente demonstrar. (HEIDEGGER, 2005, p.
271)

À respeito desta influência de Husserl e Heidegger, destacamos que Hannah Arendt abre
o primeiro livro (“O pensar”) de sua publicação póstuma A Vida do Espírito ([1977] 2019) –
considerado por alguns como “o seu livro mais fenomenológico” (LOIDOLT, 2018, p. 69) –
com um capítulo intitulado “A natureza fenomênica do mundo”, no qual expressa em suas
próprias palavras noções centrais à fenomenologia husserliana, como a noção de
intencionalidade (“toda consciência é consciência de algo”) e a da coincidência entre ser e
aparecer:

Nada poderia aparecer [...] se não existissem receptores de aparências: criaturas vivas
capazes de conhecer, reconhecer e reagir [...] não apenas ao que está aí, mas ao que
para elas aparece e que é destinado à sua percepção. Neste mundo em que chegamos
e aparecemos vindos de lugar nenhum, e do qual desaparecemos em lugar nenhum,
Ser e Aparecer coincidem. (ARENDT, 2019, p. 35)

Ainda neste primeiro item d’A Vida do Espírito, encontramos a solução


fenomenológica utilizada por Arendt para responder ao ceticismo cartesiano: considerar a
interpretação solipsista do cogito cartesiano como um raciocínio non sequitur, ou seja, uma
falácia lógica. O principal argumento de Arendt contra esta falácia é o de que a própria
expressão de tal cogito depende de uma conexão incontornável entre o pensamento e o mundo
exterior33: uma linguagem que “pressuponha a existência de uma comunidade de falantes que
compartilhem um mundo e um sistema linguístico em comum” (HONKASALO, 2010, p. 96).
Daí a constatação de Arendt de que a suposta res cogitans cartesiana apenas poderia aparecer
no mundo quando os seus conteúdos, os pensamentos ou cogitationes, são “manifestadas em

32
Vide nota de rodapé 20
33
Temos aqui um paralelo à refutação heideggeriana do “problema do mundo exterior” em Ser e Tempo (§43),
discutida anteriormente.

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um discurso falado ou escrito que já é destinado e que pressupõe ouvintes e leitores como
receptores.” (ARENDT, 2019, p. 36)

Neste ponto, é possível observar uma grande aproximação entre as respostas de Arendt
e Heidegger ao mesmo problema, embora Arendt acrescente uma camada ao ser-no-mundo
heideggeriano que será crucial à sua obra: não apenas somos-no-mundo, mas necessariamente
aparecemos no mundo diante de outros seres humanos através de um discurso que revela quem
somos. A partir deste acréscimo à ontologia fundamental de seu antigo mestre, Arendt poderá
explorar, por exemplo, temos fundamentais à sua obra, tais como as relações indissociáveis
entre política e liberdade, entre ação e pluralidade, e entre a realidade percebida e a presença
constante de outros que a testemunhem em um mundo compartilhado.

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Conclusão
Do ponto de vista fenomenológico, a relatividade da perspectiva do saber e da verdade
do ser abre-se como ponto inseguro, mas próprio do existir (ser). Contrariamente, a
tentativa empreendida para a superação desta insegurança é o que instaura o modo de
pensar (metafísico) ocidental (CRITELLI, 1996, p. 13)

Ao longo deste trabalho, utilizamos a história da metafísica, sobretudo a contraposição


entre as abordagens epistemológica e ontológica da realidade, como ocasião para investigar as
maneiras com que diversos pensadores procuraram lidar, em última instância, com as
inseguranças e incertezas da existência humana, procurando dirimi-la através da obtenção de
um conhecimento cada vez maior da natureza, do mundo e do próprio ser humano.

Ainda, a partir desta investigação, desvelamos alguns dos pressupostos filosóficos de


Hannah Arendt, cuja relevância para a história da filosofia é frequentemente negligenciada em
favor de sua contribuição para a teoria política. Neste sentido, esperamos ter iluminado os
sólidos fundamentos conceituais empregados por Arendt, seja através de sua vigorosa crítica à
tradição metafísica, de Platão a Kant, passando por Aristóteles e Descartes, seja através da sua
recepção do movimento fenomenológico.

Finalmente, acreditamos ter demonstrado, lateralmente, que a discussão acerca da


realidade a partir da abordagem fenomenológica representa expediente privilegiado para uma
crítica à tradição filosófica e para uma análise de fenômenos humanos trans-históricos. Neste
sentido, este trabalho representa senão um primeiro passo de uma pesquisa mais ampla dos
fenômenos sociais do nosso tempo a partir desta nova lente que se revela.

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