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A OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA COMO CATEGORIA AUTÔNOMA

A OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA COMO CATEGORIA AUTÔNOMA


Revista de Direito Privado | vol. 52/2012 | p. 73 - 86 | Out - Dez / 2012
DTR\2012\451292

Maurício Requião
Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal da Bahia. Professor universitário na
Faculdade Baiana de Direito e no Centro Universitário Jorge Amado. Advogado.

Área do Direito: Civil


Resumo: Este texto apresenta argumentos pela classificação da obrigação pecuniária como
categoria autônoma. Para tanto, aborda-se sua importância no sistema obrigacional e negocial,
dando ênfase aos seus traços distintivos em relação a outros tipos de obrigação. Por fim, se
analisa seu tratamento pela legislação de direito material e processual vigentes, destacando a
incongruência entre as classificações realizadas.

Palavras-chave: Obrigação pecuniária - Valor - Pagamento - Direito material - Direito


processual.
Abstract: This paper presents arguments supporting the classification of pecuniary obligation as
an autonomous category. In such intent, it is shown its importance in the obligational and
business system, emphasizing its distinctive aspects. At last, its regulation by the Brazilian's
substantive and procedural law is analyzed, highlighting the incongruity between them.

Keywords: Pecuniary obligation - Value - Payment - Substantive law - Procedural law.


Sumário:

1. INTRODUÇÃO - 2. IMPORTÂNCIA DA OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA - 3. DINHEIRO E OBRIGAÇÃO


PECUNIÁRIA - 4. CLASSIFICAÇÃO DA OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA - 5. OBRIGAÇÕES PECUNIÁRIAS
E SEU ADIMPLEMENTO NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO - 6. DISCREPÂNCIA NA CLASSIFICAÇÃO
DAS OBRIGAÇÕES PECUNIÁRIAS ENTRE O CÓDIGO CIVIL E O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - 7.
CONCLUSÃO - 8. REFERÊNCIAS

1. INTRODUÇÃO
Neste texto se analisará e defenderá a utilidade da classificação das obrigações pecuniárias como
um tipo específico e independente, em se partindo do critério da análise da natureza da
prestação. Tal estudo se justifica, principalmente, por conta da não presença desta categoria no
Código Civil (LGL\2002\400) de 2002 que, ao classificar as obrigações de acordo com a natureza
da prestação, as dividiu em obrigação de dar coisa certa, de dar coisa incerta, de fazer e de não
fazer.
Alguns fatores de ordem legal e doutrinária apontam para a utilidade dessa classificação.
Primeiro, do ponto de vista do direito material, porque a despeito de não constar de modo
expresso no capítulo voltado à classificação das obrigações, está presente a obrigação pecuniária
em toda a sistemática obrigacional, ao menos como sombra quando se considera sua utilidade
diante do inadimplemento das obrigações. Ademais, o próprio Código Civil (LGL\2002\400) de
2002, ao regulamentar a teoria geral do adimplemento, a tratou de modo apartado em alguns
momentos.
Não fosse tal fator suficiente, há ainda que se considerar a mais precisa classificação realizada
na vigente legislação processual em matéria de execução, que acertadamente apresenta
modalidade distinta a ser aplicada às obrigações pecuniárias.
2. IMPORTÂNCIA DA OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA
Pode-se definir obrigação pecuniária como sendo aquela em que a prestação devida é a
transferência de determinado valor monetário. Na obrigação pecuniária, “o que deve
determinada soma de dinheiro tem que proporcionar ao credor a possibilidade de dispor do valor
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patrimonial incorpóreo expresso através do importe nominal da obrigação”.
É, seguramente, obrigação das mais comumente encontradas na prática, sendo quase
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onipresentes nas relações obrigacionais. Até porque o dinheiro funciona no sistema econômico
como meio geral de troca, mediante a materialização em signos monetários de um valor
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patrimonial.
Apenas a partir da existência do dinheiro é que se possibilitou, por exemplo, a evolução do
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sistema de troca para o de compra e venda. A obrigação pecuniária é da essência de vários
outros contratos como, exemplificativamente, o de locação e o mútuo feneratício. É motora
também das operações bancárias em geral e dos títulos de crédito.
Ademais, nas situações em que se torna impossível o cumprimento da obrigação por culpa do
devedor, diante da impossibilidade da tutela específica se substituirá o objeto devido pelo
pagamento de indenização por perdas e danos que, em regra, se constituirá como obrigação
pecuniária.
Todos estes fatores sobrelevam e clarificam a importância das obrigações pecuniárias no sistema
obrigacional como um todo e já seriam mais do que suficientes para justificar o tratamento em
apartado de tal obrigação.
3. DINHEIRO E OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA
Larenz trabalha a ideia do dinheiro partindo tanto do seu valor nominal, como do seu valor
funcional. O valor nominal seria aquele que lhe é outorgado pela entidade emissora. Já o valor
funcional, pode ser medido tanto com base no poder aquisitivo desse dinheiro, ou seja, levando
em conta a relação entre este valor e o dos outros bens, como também com base no seu valor
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de câmbio em relação a moedas de outros sistemas monetários.
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Antunes Varela, por sua vez, criticando o uso da expressão valor da moeda, realiza análise
sobre o dinheiro em que repete algo do proposto por Larenz, elaborando maior número de
distinções. Para o autor, valor nominal, facial ou extrínseco, é o valor de circulação, que em
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regra se exprime em unidades de sistema monetário ou em fração deste.
Valor metálico ou intrínseco “é o valor do metal ou da liga metálica contida em cada espécie
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monetária”. A moeda tem valor metálico ou intrínseco quando é cunhada com metal precioso, já
que em tais casos possui não somente o valor oficialmente estabelecido, mas também um valor
decorrente do próprio material que a compõe. Em contraste, temos a situação do papel-moeda,
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que é dotado de valor intrínseco desprezível, servindo como meio de pagamento somente
graças à atribuição de valor nominal que lhe é realizada. Atualmente não há mais muito sentido
em se discutir o valor metálico da moeda, vez que não é mais prática comum a emissão de
moeda com valor intrínseco.
Pela mesma razão, perde também utilidade prática a noção de valor corrente. Diz-se valor
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corrente do valor que a moeda reveste nas transações. Não se trata aqui de distinção entre
moedas de diferentes sistemas, mas sim entre moedas num mesmo sistema monetário que
possuem diferença entre si no que diz respeito ao valor intrínseco. A distinção se daria entre o
valor nominal e o valor corrente, na medida em que num sistema que coexistam moedas com
mesma unidade monetária (portanto mesmo valor nominal), mas diferentes valores intrínsecos
(papel-moeda e libra-ouro, por exemplo), a de maior valor intrínseco teria também maior valor
corrente, dada a predileção dos sujeitos quanto a ela, pelas óbvias razões, tal qual a própria
valorização do metal ao longo do tempo.
O valor aquisitivo tem o mesmo sentido do valor funcional como trabalhado por Larenz. Trabalha
Antunes Varela ainda com a ideia de valor aquisitivo interno, que corresponderia à já apontada
ideia do valor do dinheiro acerca da aquisição de mercadorias ou serviços, e valor aquisitivo
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externo, que se mede pela comparação entre uma dada moeda e as moedas estrangeiras.
4. CLASSIFICAÇÃO DA OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA
Por conta da ausência de classificação legal, há na doutrina opiniões das mais variadas acerca do
enquadramento da obrigação pecuniária. Alguns autores a tratam conjuntamente, ou como
subtópico, dos estudos relativos à obrigação de dar coisa certa. Neste sentido, Washington de
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Barros Monteiro e Carlos Roberto Gonçalves.
Outros autores as colocam como uma categoria diferenciada de obrigação de dar, independente
da classificação seja de dar coisa certa, seja de dar coisa incerta. Nesse sentido Sílvio de Salvo
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Venosa, Maria Helena Diniz e mais recentemente, tendo revisto classificação anterior, a dupla
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Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona.
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Caio Mário da Silva Pereira também classifica as obrigações pecuniárias como categoria
independente. Entretanto não a classifica partindo do critério da natureza da prestação, de modo
que não a considera como um subtipo das obrigações de dar, afirmando antes que a
classificação da obrigação em pecuniária se guia pelo critério da análise dos elementos não
fundamentais da obrigação.
Também pela independência das obrigações pecuniárias, mas num sentido um pouco mais
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diverso, Orlando Gomes não se refere a elas ao tratar das categorias das obrigações,
afirmando apenas que são espécie de prestação especial da modalidade das obrigações de dar.
Embora de fato se aproximem das obrigações de dar, especialmente daquelas de dar coisa
incerta, as obrigações pecuniárias constituem categoria autônoma. Assemelham-se àquelas,
pois, também nestas, o cumprimento da obrigação, ao menos tradicionalmente, envolve a
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entrega de coisa. Tanto é assim que o Código Civil (LGL\2002\400) argentino regulamentou as
obrigações pecuniárias (las obligaciones de dar sumas de dinero) como categoria autônoma, de
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igual modo ocorrendo no Código Civil (LGL\2002\400) português e no italiano.
Como na obrigação pecuniária o que é devido é determinada quantia de dinheiro, o seu
pagamento, em última instância, envolve a entrega das cédulas ou moedas correspondentes ao
valor devido. É certo também, que no atual estado negocial, muitas obrigações pecuniárias
podem ser travadas sem que haja, de fato, a entrega do dinheiro.
Muitas vezes o que ocorre é tão simplesmente a transmissão do crédito entre contas bancárias,
sem que haja a presença do característico traço das obrigações de dar, qual seja o da entrega da
coisa, aqui representada pela cédula ou moeda. A despeito disso, a transmissão do crédito gera
para o credor o direito a, em querendo, resgatar da instituição bancária o valor devido, o que
terminaria efetivando a tradição.
Embora possuam, portanto, tratamento mais assemelhado ao das obrigações de dar, com estas
não se confundem por diversas razões. Primeiro, porque na obrigação pecuniária a coisa a ser
entregue, ou seja, o dinheiro, funciona tão somente como suporte. Isso significa que o credor
quer o dinheiro não para dar um uso direto à cédula, mas sim pelo valor que ela representa. Nas
outras obrigações de dar, ao revés, o credor quer receber a coisa por conta da utilidade direta
que ela lhe terá, como é o caso de um automóvel, um livro, ou um computador. Estas são coisas
que têm valor em si, vinculado à sua destinação prática, enquanto que o dinheiro funciona
apenas como suporte para valor que lhe é atribuído.
Embora haja coisas além do dinheiro que também funcionem como suporte, como o caso da tela
para o quadro, no caso daquele a representação é sua única funcionalidade. Nesse sentido é que
já se afirmou que:
“Na tela célebre, o valor da coisa e o da pintura são diferentíssimos, mas o valor da pintura é
real, no sentido de que é o valor que as coisas obtém, pelo que fisicamente representam, e a
pintura é valor físico. Na cédula de dinheiro, não: o valor do papel ou do que ele fisicamente
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representa é inconfundível com o valor ideal que se lhe confere como dinheiro (…).”
O dinheiro, portanto, funciona apenas como suporte, valor ideal, que é atribuído e só existe por
conta da determinação governamental sobre aquela unidade monetária. A título de argumento
neste sentido, pense-se nas cédulas e moedas de um dos inúmeros sistemas monetários já
utilizados no Brasil, que hoje não possuem qualquer valor atribuído, possuindo no máximo valor
real como item de colecionador. Deixaram estas cédulas de ser dinheiro e se transformaram
meramente em coisas.
Por conta desta falta de importância da coisa em si, é que se distancia das demais obrigações de
dar. É verdade que se aproxima mais das obrigações de dar coisa incerta, do que das de dar
coisa certa, afinal, quando se diz que, por exemplo, uma pessoa deve cem reais, tem-se aí,
assim como na obrigação de dar coisa incerta, determinados o gênero e a quantidade da coisa
devida. Pouco importa se o pagamento se realizará com a cédula que a pessoa tem na carteira,
ou com aquela que possui depositada num banco. Não há, portanto, a concretude da coisa que
seria necessária para classificá-la como obrigação de dar coisa certa.
A despeito dessa proximidade com a obrigação de dar coisa incerta, não guarda com ela
comunhão. Neste sentido note-se que a escolha, elemento que tem fundamental importância na
obrigação de dar coisa incerta, não possui qualquer relevância quando se trata de obrigação
pecuniária. Primeiro porque não possui qualquer sentido a aplicação do princípio do meio termo,
já que, como aponta Clóvis do Couto e Silva, não há motivo para se falar “em moeda ou nota de
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qualidade média”. Não importa aqui a coisa em si (moeda ou nota), mas sim o valor que lhe é
atribuído. Ademais, como não há escolha na obrigação pecuniária, não se aplicará jamais o efeito
de convertê-la em obrigação de dar coisa certa, de modo que o prejuízo pela perda ou
deterioração da coisa correrá sempre por conta do devedor, até o efetivo adimplemento.
É por conta desta distinção entre a coisa e o valor que se formula a doutrina da separação dos
planos, defendendo-se, inclusive, a não aplicabilidade de qualquer aspecto de transmissão de
propriedade no pagamento das obrigações pecuniárias, o que faria com que tivessem
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regulamentação meramente obrigacional.
Esta separação absoluta entre o valor e a coisa, entretanto, não se dá de modo pleno, já que
apesar dessa visão do dinheiro como totalmente separado da sua forma permitir “considerações
interessantes, tendo em vista sua função, não podem obscurecer a circunstância de que o
dinheiro é bem móvel consumível e, por esse motivo, sujeito às regras de transmissão de
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propriedade, notadamente à tradição”.
Se por um lado, a despeito da separação entre o valor e a coisa, não é possível, em absoluto, se
desprezar o aspecto da tradição como meio de pagamento, é certo que em muitas situações ela
não será fator essencial no adimplemento das obrigações pecuniárias. Como já apontado, no
pagamento de muitas obrigações pecuniárias o que ocorrerá será tão somente a transferência da
titularidade do crédito junto à instituição bancária, fator que por si já adimple a obrigação e
libera o devedor, independentemente daquele valor vir a ser efetivamente sacado pelo credor.
Não se apresenta a tradição como elemento essencial, mas sim acidental, no adimplemento das
obrigações pecuniárias.
5. OBRIGAÇÕES PECUNIÁRIAS E SEU ADIMPLEMENTO NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO
Apesar da ausência de seção específica para regulamentar as obrigações pecuniárias, é tão
inegável sua caracterização como modalidade específica das obrigações, que o legislador dedicou
alguns artigos especificamente para regulamentar questões atinentes ao pagamento de tais
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obrigações.
Assim é que resta estabelecido, nos termos do art. 315, que, em regra, o pagamento das
obrigações pecuniárias deverá se dar com base no seu valor nominal, em moeda corrente no
país. Estabelece-se o nominalismo, o que implica que o adimplemento das obrigações
pecuniárias se dará levando em conta o valor nominal e não o valor funcional do débito. A
fixação do nominalismo como regra favorece ao devedor, já que se houver baixa no valor
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funcional do dinheiro, tal prejuízo será suportado pelo credor.
O nominalismo é figura comum nos ordenamentos jurídicos, sendo adotado também no italiano
(art. 1.277), português (art. 550) e argentino (art. 619), por exemplo. Ele atende a demandas
não apenas de direito privado, mas também de direito público, na medida em que é instrumento
útil para a manutenção da estabilidade monetária e da ordem econômica, trazendo segurança a
partir da existência da moeda que serve como medida de valor fixo e uniforme ao longo do
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tempo.
Até porque, como aponta Antunes Varela:
“Por um lado, não é fácil determinar o coeficiente de valorização (ou desvalorização) da moeda,
cuja aplicação garanta a exacta manutenção do valor aquisitivo da prestação devida; não parece
mesmo possível fixá-lo sem uma dose, mais ou menos, larga de arbítrio por parte do julgador.
As diferentes mercadorias que se podem adquirir com dinheiro não pesam igualmente no custo
de vida das diferentes pessoas e das diversas camadas da população e, em relação a muitas
delas, é extremamente difícil precisar os termos da sua valorização ou desvalorização em face da
moeda.
Por outro lado, ainda que fosse possível determinar com suficiente rigor a evolução do valor da
moeda, a actualização das prestações pecuniárias conduziria frequentes vezes a resultados
injustos, quer porque nem sempre o devedor terá investido a soma devida em valores estáveis,
capazes de resistirem à desvalorização, quer porque nem sempre também o credor o teria feito,
se tivesse a soma em seu poder. Tentar saber como as coisas se passaram em cada caso,
precisando inclusivamente a culpa do devedor na falta de colocação devida dos seus capitais, só
viria agravar as dificuldades da questão, sem grande segurança de se alcançarem os resultados
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mais justos.”
É certo, entretanto, que sua aplicabilidade depende de uma moeda razoavelmente estável, sob o
risco de haver injusta desproporção entre o valor inicial e final da prestação monetária devida.
Por esta razão, inclusive, foi alvo de muita discussão a sua inclusão no Código Civil (LGL\2002
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\400) de 2002, especialmente em se levando em conta os grandes índices inflacionários
existentes no país durante sua tramitação.
Assim é que, a despeito da fixação do nominalismo como regra do art. 315, vigora também no
ordenamento brasileiro o valorismo, pelo qual se estabelece a correção do valor devido, para que
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até o momento do pagamento seja mantido o seu valor real, ou seja, funcional.
Justamente por conta das vicissitudes do nominalismo, é que há também no ordenamento
brasileiro regras que permitem sua relativização. Informa o art. 316, que, em se tratando de
obrigação de cumprimento sucessivo, se poderá estipular o aumento progressivo das prestações.
Esta medida visa garantir o equilíbrio contratual, permitindo a criação de cláusula pelas partes
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que autorize modificação do valor devido quando ocorra fato que altere tal equilíbrio.
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Incluso dentre estas possibilidades está a correção monetária para atualização do valor, em
que pese tal opinião não ser unânime na doutrina, havendo quem entenda que a correção
monetária já estaria implícita no próprio art. 315, e que por ser mera atualização de valor não
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implicaria no aumento da prestação, com o que não se concorda. Todo aumento no valor da
prestação, ainda que para a manutenção do seu valor funcional ou real, modifica seu valor
nominal, sendo, portanto, em sentido amplo, aumento da prestação devida e exceção ao
nominalismo.
Também a ocorrência de evento externo inesperado ou com efeitos inesperados é fato que
autoriza o aumento da prestação. Saliente-se que nesse caso embora o evento ou o efeito deste
tenha sido inesperado, a previsão do aumento já deve ter sido estipulada pelas partes, através
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da sua autonomia, do contrário se trata de hipótese a se enquadrar no art. 317.
Por fim, pode o aumento na prestação ocorrer por conta de alterações internas do próprio
contrato já previstas pelas partes. Jorge Cesar Ferreira da Silva aponta como exemplo o
aumento “a cláusula contratual que, em contrato de know-how ou de transferência de
tecnologia, prevê o aumento de royalties se a demanda pelo bem produzido a partir do know-
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how ou da tecnologia transferida for superior a determinada soma”.
Fixou-se ainda no art. 318 o curso forçado da moeda, que determina que o pagamento das
obrigações pecuniárias no território brasileiro deverá se dar na moeda em curso, corrente, sendo
vedado de modo expresso a convenção que determine pagamento em outro ou moeda
estrangeira. Trata-se de medida não apenas de ordem privada, mas também pública, protetiva
da moeda nacional. Ao se fixar seu curso forçado, evita-se o seu desprezo em relação a moedas
estrangeiras de maior valor, o que, por conseguinte, impede sua crescente desvalorização pelo
desuso.
Há divergência na doutrina sobre se a proibição se refere unicamente ao pagamento em moeda
estrangeira, ou se a limitação também abrange a possibilidade de que o contrato seja firmado
tendo esta como base, ou seja, à utilização da moeda estrangeira como elemento valorativo,
indexador.
Há quem argumente que a proibição se aplicaria a todas as situações, apontando como principal
fundamento a própria redação do art. 318, que diz que a moeda estrangeira não poderá ser
utilizada como meio para compensar a diferença entre o valor desta e da nacional, o que
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implicaria na proibição do seu uso também como elemento de indexação. Outra parte da
doutrina, por sua vez, argumenta em favor da possibilidade de se estipular a moeda estrangeira
como moeda de conta, acreditando que desde que o pagamento se dê na moeda nacional não se
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estará ferindo o seu curso forçado.
A regra do curso forçado, entretanto, não é absoluta, havendo exceções, como as previstas no
art. 2.º do Dec.-lei 857/1969, dentre outras enumeradas por Judith Martins-Costa, como:
“(…) aos contratos e títulos referentes a importação e exportação de mercadorias; aos contratos
de financiamento ou prestação de garantias relativos às operações de bens de produção
nacional, vendidos a crédito para o exterior; aos contratos de compra e venda de câmbio em
geral; aos empréstimos e quaisquer outras obrigações cujo credor ou devedor seja pessoa
residente e domiciliada no exterior, excetuados os contratos de locação de imóveis situados em
território nacional; os contratos que tenham por objeto a cessão, transferência, delegação,
assunção ou modificação das obrigações referidas nos contratos de empréstimo antes
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referidos.”
Resta claro, dessa maneira, que apesar de não ter o legislador dedicado seção específica para
tratar das obrigações pecuniárias, reconheceu a sua independência, tendo regulamentado em
apartado questões que dizem respeito diretamente ao adimplemento deste tipo de obrigação.
6. DISCREPÂNCIA NA CLASSIFICAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES PECUNIÁRIAS ENTRE O
CÓDIGO CIVIL E O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Somado a tais traços de direito material, dentro da sistemática legal nacional há ainda mais um
fator que aponta para a independência das obrigações pecuniárias em relação às demais
obrigações de dar. Refere-se aqui à incongruência entre as classificações das obrigações quanto
à natureza do objeto presentes no Código Civil (LGL\2002\400) e as diversas espécies de
execução presentes no Código de Processo Civil (LGL\1973\5).
É que, além de indicar uma espécie de execução correspondente a cada uma das classificações
presentes no Código Civil (LGL\2002\400) (dar coisa certa, dar coisa incerta, fazer e não fazer),
traz o Código de Processo Civil (LGL\1973\5) uma outra espécie de execução, intitulada
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“execução para entrega de quantia certa”, que diz respeito a nada mais nada menos do que a
execução de obrigações pecuniárias.
Ao realizar a classificação das espécies de obrigação, Fredie Didier Jr. dá relevo à distinção entre
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a execução para a entrega de coisa distinta de dinheiro e aquela para a entrega de quantia
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certa, ou seja, dinheiro. Ademais, por conta da já destacada circunstância de diante do
inadimplemento das obrigações das mais diversas espécies, servir o dinheiro como meio de
resolução das obrigações mediante o pagamento das perdas e danos, pode-se afirmar que “a
tutela em pecúnia é notabilizada por servir como uma espécie de coringa em relação a todas as
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outras”.
Por conta das características diferenciadas da obrigação pecuniária em relação às outras
espécies de obrigações é que se torna necessária a existência de um processo de execução
específico.
Não há como se pensar que a execução da obrigação pecuniária siga exatamente o mesmo
procedimento das obrigações de dar, já que naquela, ao contrário destas, pouco importa a coisa
em si materialmente falando (a cédula de dinheiro, por exemplo), mas sim o valor por ela
referido. Nas obrigações pecuniárias o que importa é o pagamento da quantia predeterminada, o
valor, sendo, conforme já dito, de pouca relevância a coisa em si, consubstanciada no papel-
moeda.
Tanto é assim que muitas vezes, no processo de execução ocorre simplesmente o bloqueio na
conta bancária do executado, que afeta o crédito deste junto ao banco, transferindo a quantia
para o exequente, sem que em nenhum momento se proceda à individualização da coisa em si,
antes trabalhando apenas com a transmissão do crédito que possuía o executado junto ao
banco. Em suma, para os sujeitos envolvidos na relação obrigacional importa tão somente que o
pagamento ou bloqueio de valor em conta bancária guarde correspondência com o valor integral
da dívida.
Note-se, portanto, que a nossa intenção em classificar as obrigações pecuniárias como uma
categoria à parte das obrigações de dar coisa certa e de dar coisa incerta não tem sua motivação
unicamente em motivos de rigor acadêmico, mas principalmente de ordem prática, posto que,
como fica bem claro mediante o estudo conjugado do direito material e processual, a execução –
bem como o pagamento voluntário – da obrigação pecuniária apresenta aspectos distintos das
duas outras classificações relativas às obrigações de dar.
7. CONCLUSÃO
A despeito da inexistência de seção específica que a regulamente, é clara a independência da
obrigação pecuniária enquanto tipo diferenciado a partir da classificação quanto à natureza da
prestação.
Não se defende aqui necessariamente a criação de seção específica no Código Civil (LGL\2002
\400) com o intuito de mudar a regulamentação sobre o tema, mas tão somente posição
doutrinária e jurisprudencial que atente para as importantes diferenças entre as obrigações
pecuniárias e as demais modalidades.
A existência da execução específica para pagamento de quantia certa na legislação processual,
apresentando procedimento diferenciado para tal tipo de obrigação, contribui para minorar na
prática os efeitos da ausência de uma classificação expressa no diploma material.
Haver ou não capítulo ou seção que trate expressamente da obrigação pecuniária no Código Civil
(LGL\2002\400) não é o ponto fulcral. O que não se pode é pretender aplicar às obrigações
pecuniárias tratamento equivalente àquele aplicado às obrigações de dar coisa certa ou incerta,
sob pena de não serem obtidas soluções adequadas ao desenvolvimento e cumprimento da
obrigação em questão.
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1. LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1958. t. I, p.


178.

2. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller,


2003. vol. XXII, p. 123.

3. LARENZ, Karl. Op. cit., p. 174.

4. ALVIM, Agostinho. Da compra e venda e da troca. Rio de Janeiro/São Paulo: Forense, 1961. p.
274.

5. LARENZ, Karl. Op. cit., p. 174.

6. ANTUNES VARELA. Das obrigações em geral. 9. ed. Coimbra: Almedina, 1998. vol. I, p. 876.
7. Idem, p. 877.

8. Idem, ibidem.

9. Idem, p. 879.

10. Idem, p. 878.

11. Idem, p. 879.

12. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das obrigações – 1.ª parte.
32. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 73.

13. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro – Teoria geral das obrigações. 2. ed. São
Paulo: Saraiva, 2006. vol. II, p. 58.

14. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos
contratos. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 68.

15. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral das obrigações. 22. ed.
São Paulo: Saraiva, 2007. p. 84.

16. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil –
Obrigações. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 83; tendo considerado anteriormente, até pelo
menos a 7. ed., vol. II, p. 42, que seria a obrigação pecuniária subtipo de obrigação de dar coisa
certa.

17. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil – Teoria geral das obrigações. 21.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. vol. II, p. 119.

18. GOMES, Orlando. Obrigações. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 55.

19. O Código Civil (LGL\2002\400) argentino apresenta ainda uma distinção entre as
obligaciones de dar cosa incerta no fungible e obligaciones de dar cantidades de cosas
determinadas. A diferença entre ambas seria o grau de fungibilidade da coisa. Assim, por
exemplo, como aponta Guillermo A. Borda, numa obrigação em que o devedor está obrigado a
entregar um caballo criollo, tem-se obrigação de dar coisa incerta infungível; já na da entrega de
quantidades de coisas teria-se a fungibilidade absoluta, se caracterizando ainda por serem
sempre fixadas com base em cantidad, peso o medida, como na venda de 10 ejemplares de um
libro de tal edición; 200 quintales de trigo; 1000 toneladas de cárbon, 100 hectolitros de vino,
como aponta o mesmo autor. Esta distinção, entretanto, não nos parece útil, posto que os
efeitos de uma e de outra se apresentam por demais similares na prática. BORDA, Guillermo A.
Manual de obligaciones. 12. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2006.

20. O Código Civil (LGL\2002\400) português traz diversas subclassificações de obrigações


pecuniárias. Regulamenta em separado o que denomina como obrigações de quantidade,
obrigações de moeda específica e obrigações de moeda com curso legal apenas no estrangeiro.

21. Também o Código Civil (LGL\2002\400) italiano dedicou seção específica para tratar das
obrigações pecuniárias (arts. 1.277 a 1.284), embora tenha se preocupado menos com questões
classificatórias e mais com o modo de cumprimento e resolução destas obrigações.

22. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. cit., p. 126.

23. COUTO E SILVA, Clóvis do. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2007. p. 145.

24. Idem, p. 142.


25. Idem, p. 144.

26. Embora também o art. 317 tenha aplicação claramente voltada às obrigações pecuniárias,
não se tratará dele nesse texto, por se considerar que sua aplicação não é exclusiva a esse tipo
de obrigação. Neste sentido: LOTUFO, Renan. Código Civil (LGL\2002\400) comentado. São
Paulo: Saraiva, 2003. vol. 2, p. 228-229. Também não se trabalhará aqui com o art. 322, que
regulamenta capital e juros, pois os juros são assunto que por si só dariam origem a pelo menos
outro artigo e terminaria sendo tratado pobremente.

27. LARENZ, Karl. Op. cit., p. 175.

28. BORDA, Guillermo A. Op. cit., p. 194.

29. ANTUNES VARELA. Op. cit., p. 882-883.

30. MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil (LGL\2002\400): do direito das
obrigações. Do adimplemento e da extinção das obrigações. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2005. vol. V, t. I, p. 238.

31. Idem, p. 245.

32. SILVA, Jorge Cesar Ferreira da. Adimplemento e extinção das obrigações. São Paulo: Ed. RT,
2007. p. 153.

33. Idem, p. 153-154.

34. MARTINS-COSTA, Judith. Op. cit., p. 245.

35. SILVA, Jorge Cesar Ferreira da. Op. cit., p. 155.

36. Idem, p. 153.

37. Idem, p. 190.

38. COUTO E SILVA, Clóvis do. Op. cit.

39. MARTINS-COSTA, Judith. Op. cit., p. 318.

40. Verdade que a execução para entrega de quantia certa divide-se em duas categorias,
conforme seja o devedor solvente ou insolvente, mas esta divisão se deve unicamente por
diferença de procedimento levando em conta a solvência, não a natureza da prestação. De igual
modo a execução de prestação alimentícia, que possui procedimento apartado não pela natureza
da sua prestação, mas sim por conta da sua finalidade.

41. DIDIER JR., Fredie et al. Curso de direito processual civil: execução. 4. ed. Salvador: Jus-
Podivm, 2012. vol. 5, p. 411.

42. Idem, p. 513.

43. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo civil: execução. São
Paulo: Ed. RT, 2007. vol. 3, p. 233.

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