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Mas não se pode perder de vista que, na realidade, essa divisão da matéria “conforme padrões” é,
acima de tudo, para mais fácil compreensão do tema e grupamento das soluções de situações que se mostrem
similares umas às outras, pois na realidade continua-se a tratar da própria boa-fé, eis que as situações dela
derivadas, a toda evidência, não perdem suas características, ou seja, continuam a ter os mesmos efeitos e o
mesmo alcance do princípio geral da boa-fé. Nesse sentido, pode-se dizer que “las consecuencias o las
derivaciones inmediatas del principio general de la buena fe, construidas doctrinal o jurisprudencialmente,
256
en torno a particulares situaciones de intereses, de carácter típico, tienen el mismo valor y el mismo alcance
que el principio general de que dimanan y en que inmediatamente se fundan”. Cf. DÍEZ-PICAZO, La
doctrina de los propios actos, pp. 139-140, apud José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p.
38. Aliás, é exatamente por essa razão, ou seja, porque continua a se tratar de análise do princípio da boa-fé,
que logo em seguida veremos, nesse mesmo item referente às violações típicas da boa-fé, os institutos
jurídicos nos quais são agrupadas essas violações, tais como o venire contra factum proprium, o abuso do
direito, a exceptio doli, etc.
257
250
DÍEZ -PICAZO, La doctrina de los propios actos, p. 39, apud José Luis de Los Mozos, El Principio
de La Buena Fe, p. 38.
251
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 89, n° 325.
258
252
Dentre outros: Renan Lotufo, Código Civil Comentado – v. 1, p. 187 e ss.; Cristiano Chaves de
Farias, Direito Civil – Teoria Geral, p. 468; Sílvio Venosa, Direito Civil – Parte Geral, p. 492; J. Franklin
Alves Felipe e Geraldo Magela Alves, O Novo Código Civil Anotado, p. 44; Maria Helena Diniz, Curso de
Direito Civil Brasileiro – v. 1, p. 462. Esta última e ilustre autora, inclusive, usa indistintamente as expressões
“abuso do direito” e “abuso de direito”, ambas na p. 462, da obra citada. Com a mesma imprecisão
259
eminentes juristas, não se mostra adequado, eis que mais correto se mostraria
falar em “abuso do direito”.
Com efeito, como veremos em detalhes, logo em seguida, a figura
do abuso do direito se relaciona, invariavelmente, com um direito subjetivo,
que ao ser exercido por seu legítimo titular, ultrapassa certos limites (um dos
quais é a boa-fé, daí o nosso interesse no tema). Poder-se-ia falar, portanto, de
modo mais completo, em “abuso no exercício do direito”, por parte de seu
titular. Em outras palavras, quando se usa a expressão “abuso do direito”, fica
claro que se trata de um direito (subjetivo) que foi exercido de modo irregular,
por seu titular.
Por outro lado, a expressão “abuso de direito” pode causar a
(falsa) impressão de que se trata de um abuso que integra o direito, ou seja,
um abuso que é tolerado e regido pelo direito, o que a toda evidência se
mostraria uma expressão contraditória em si mesma, pois se o comportamento
se mostrar abusivo, é evidente que não estará dentro do campo protegido pelo
direito, será por este rejeitado, e não regido.
Mesmo em linguagem corriqueira, do quotidiano, quando se fala
que alguma coisa é de direito, quer-se sempre significar que tal coisa está
amparada pelo direito, encontra respaldo nas normas jurídicas. Assim, por
exemplo, quando A tem um crédito contra B, já vencido, e resolve cobrá -lo, é
comum que A diga algo como “é de direito que eu cobre o que B me deve”, e,
quem quer que o ouça, imediatamente compreenderá que A pretendeu dizer
que a cobrança que pretende fazer está amparada pelas normas jurídicas.
Da mesma forma, quando se comenta, em relação a um
trabalhador, que “é de direito que receba o pagamento dos dias que
terminológica, usando as duas expressões, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Novo Curso de
Direito Civil – Parte Geral, v. 1, p. 467.
260
253
Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, t. I, arts. 1°-45, pp. 382-383.
254
Luiz Antônio Rizzatto Nunes, Manual de Introdução ao estudo do direito, p. 144.
255
Pedro Baptista Martins, O Abuso do Direito e o Ato Ilícito, passim.
261
256
Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, pp. 219-220.
257
Alvino Lima, Culpa e Risco, pp. 215-216.
262
258
O dogma do absolutismo dos direitos subjetivos, explica Josserand, foi reforçada, em França, a patir
da Revolução Francesa, notadamente com a Declaração dos Direitos do Homem, pois o direito revolucionário
estava impregnado de um individualismo intenso, pois considerava o homem como um fim em si mesmo,
mais do que como um elemento integrante da comunidade; como um indivíduo, mais do que como a célula
primeira da sociedade. Cf. Louis Josserand, Cours de Droit Civil Positif Français, v. I, p. 118, n° 161.
259
Pedro Baptista Martins, O Abuso do Direito e o Ato Ilícito, p. 5.
260
Pedro Baptista Martins, O Abuso do Direito e o Ato Ilícito, p. 71.
263
261
Cléber Lúcio de Almeida, Abuso do Direito no processo do trabalho, p. 37.
262
Francisco Amaral, Os Atos Ilícitos. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e
Martins Filho, Ives Gandra da Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof.
Miguel Reale, p. 161.
264
263
A distinção é feita por Josserand, que ensina que “le refus de contracter peut revêtir plus qu’un
caractère abusif; il peut se présenter à nous comme un acte illégal, intrinsèquement illicite”. Cf. Louis
Josserand, L’Esprit des Droits et de leur Reativité – Théorie dite de l’Abus des Droits, p. 127.
264
Nesse sentido, ensinam Diez-Picazo e Antonio Gullon que “Definido el derecho subjetivo como una
situación de poder que el ordenamiento jurídico atribuye o concede a la persona como un cauce de
realización de legítimos intereses y fines dignos de la tutela jurídica, resulta evidente que este poder tiene que
estar de algún modo limitado, pues sin límites sería la justificación de la absoluta arbitrariedad”. Cf. Luis
Diez-Picazo y Antonio Gullon, Sistema de Derecho Civil – v. 1 – Introdución – Derecho de La persona –
Negocio Jurídico, p. 517. No mesmo sentido, ainda, a lição de Béatrice Jaluzot, para quem “La conséquence
juridique essentielle qu’entraîne l’abus de droit et qui donne tout son sens à l’institution est la limitation des
droits subjectifs... La notion d’abus de droit ne peut resteur cohérente que si l’on respecte l’idée générale qui
la gouverne: elle permet au juge de contrôler l’exercise des droits subjectifs”. Cf. Béatrice Jaluzot, La bonne
foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 406, n°s 1418 e 1420. Mas
a autora, na mesma obra (p. 408, n° 1426), faz interessante observação, no sentido de que a figura do abuso
do direito, quando coloca limites ao exercício do direito subjetivo de uma pessoa, ao mesmo tempo faz nascer
um novo direito para a outra. Assim, por exemplo, quando se proíbe a um dos contratantes o exercício do
direito de resilir unilateralmente o contrato, ao mesmo tempo se está dando ao outro o direito de ver o
contrato prosseguir. Nesse mesmo sentido é a lição de Menezes Cordeiro, que ao colocar em cotejo as figuras
da suppressio e da surrectio, na demonstração de que aquela é a conseqüência, o subproduto desta, ensina que
“quando, porém, o beneficiário incorra numa vantagem específica e autônoma, há, para ele, um direito
subjetivo novo: ocorre um fenômeno de surrectio. Paralelamente, sendo esse direito novo um direito relativo,
adstringe-se a contraparte a um dever. Da mesma forma, o titular-exercente pode, por força das regras que
vedam o abuso do direito, ver um direito seu de tal forma coarctado pela restrição ou, simplesmente,
265
impostos não apenas pela boa-fé, mas por parâmetros outros, como os bons
costumes e a finalidade econômica ou social. A boa-fé e os bons costumes não
estão vinculados a cada direito subjetivo, sendo de natureza genérica, face ao
seu conteúdo normativo, enquanto a finalidade econômica ou social, a toda
evidência, está diretamente ligada ao direito de que se trata.
Para Louis Josserand 265, os direitos subjetivos são produtos
sociais, concedidos pela sociedade, mas que não nos são atribuídos
abstratamente e para que os usemos de modo discricionário, pois cada um
deles tem uma razão de ser e está animado de um certo espírito, que não pode
ser desconsiderado por seu titular, e sempre que tais direitos são exercidos,
devemos nos conformar a esse espírito e permanecer dentro das linhas em que
o direito foi instituído, pois caso contrário estaríamos desviando o direito de
sua destinação, ou seja, estaríamos cometendo abuso capaz de nos atribuir a
correspondente responsabilidade.
Em relação à finalidade econômica e social do direito subjetivo,
já em 1960 ensinava Alvino Lima 266 que, além dos limites objetivos, que são
fixados pela lei, os direitos subjetivos também possuem limites de ordem
teleológica ou social, e que a teoria do abuso do direito nada mais é do que a
manifestação concreta dessas idéias. Dizia o mestre que, em vez do direito-
incompatibilizado com um novo direito surgido na esfera da contraparte beneficiária, que caiba falar de uma
verdadeira extinção”. Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, p. 826.
Mas é de se observar que o ilustre autor português inverte os termos da equação, vale dizer, aponta que
primeiro surge o direito da contraparte, e a partir daí é que os direitos do sujeito que se mostrarem
incompatíveis com esse direito recém-surgido poderão sofrer redução ou mesmo ser extintos. A questão será
retomada no item 2.5, quando examinarmos as figuras da suppressio e da surrectio, e para lá remetemos o
leitor.
265
Louis Josserand, Cours de Droit Civil Positif Français, v. II, p. 224, n° 224. “Les droits subjectifs,
produits sociaux, concédés par la société, ne nous sont pas attribués abstraitement et pour que nous en usions
discrétionnairement, ‘ad nutum’; chacun d’eux a sa raison d’être, sa mission à accomplir; chacun d’eux est
animé d’un certain esprit qu’il n’appartient pas à son titulaire de méconnaitre ou de travestir; lorsque nous
les exerçons, nous devons nous conformer à cet esprit et demeurer dans la ligne de l’institution; sans quoi,
nous détornerions le droit de sa destination, nous en abuserions, nous commettrions une faute de nature à
engager notre responsabilité”.
266
Alvino Lima, Culpa e Risco, p. 217.
266
267
No mesmo sentido é o entendimento de Antônio Chaves, para quem “os direitos subjetivos, produtos
concedidos, pela sociedade, não nos são atribuídos abstratamente, e para que deles usemos
discricionariamente, ad nutum; cada um deles tem sua razão de ser, sua missão a cumprir, cada um deles é
animado de um certo espírito, que seu titular não pode desconhecer ou disfarçar. Quando exercemos,
devemos conformar-nos com esse espírito e permanecer na linha da intuição, sem o que desviaríamos o
direito do seu destino, abusaríamos dele, cometeríamos uma falta de natureza e comprometeríamos nossa
responsabilidade”. Cf. Antônio Chaves, Responsabilidade Pré Contratual, p. 124.
268
Francisco Amaral, Os Atos Ilícitos. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e
Martins Filho, Ives Gandra da Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof.
Miguel Reale, p. 162.
267
269
Nesse sentido, referindo-se precisamente aos limites impostos aos direitos subjetivos, esclarecem
Diez-Picazo e Antonio Gullon que “¿Cuáles son estos límites a que debe someterse o entenderse sometido el
derecho subjetivo? Hay, en primer lugar, unos límites a los que se puede llamar ‘naturales’, toda vez que
derivan de la natureza propia de cada derecho y de la manera como es configurado de acuerdo con la
función económica o social que a través de él se trata de realizar. El derecho aparece definido en la ley en
virtud de esta naturaleza y la definición legal implica ya el establecimiento de sus linderos o confines...Al
lado de los límites que hasta ahora hemos mencionado, es posible encontrar unos límites genéricos
aplicables a todos los derechos, y que se fundamentan en la idea misma de lo que el derecho sea y de la
finalidad para cual es concedido o atribuido al particular. Estos límites genéricos o institucionales se apoyan
sobre estas bases: 1ª. El ejercicio del derecho debe hacerse conforme a las convicciones éticas imperantes en
la comunidad. 2ª El ejercicio de un derecho debe ajustarse a la finalidad económica o social para la cual ha
sido concedido o atribuido al titular. La primera consideración lleva a la exigencia de que el ejercicio de un
derecho subjetivo se ajuste a los dictados de la buena fe. La segunda impone la prohibición del abuso del
derecho. Cf. Luis Diez-Picazo y Antonio Gullon, Sistema de Derecho Civil – v. 1 – Introdución – Derecho de
La persona – Negocio Jurídico, pp. 517-519.
270
Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, p. 222.
268
271
Pietro Perlingieri, Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional (trad. Maria
Cristina De Cicco), p. 122.
269
criou, e outra que se encaixa na questão dos parâmetros vistos acima, que
servem para demarcar o campo onde termina o exercício regular e onde
começa o exercício abusivo do direito.
Mas deve-se observar que, quando são ultrapassados os limites
previstos na própria lei que criou o direito subjetivo, o que se tem,
tecnicamente, não é o abuso do direito, mas uma ilegalidade. A explicação se
faz necessária porque é muito comum que se encontre, em decisões judiciais, a
referência ao abuso do direito, quando na verdade o que se tem é a pura e
simples violação da norma legal explícita, a ilegalidade manifesta. Assim, por
exemplo, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que
272
EDcl no AgRg no REsp 164648/MG; Embargos de Declaração no Agravo Regimental no Recurso
Especial 1998/0011629-0, 1ª T. Ac. unânime. Relator Min. Humberto Gomes de Barros, j. 03/08/1999, p. DJ
13.09.1999, p. 42.
270
É verdade, desde logo se adianta que com isso concordamos, que seus titulares
não poderão ser civilmente responsabilizados, em caso de exercício
inadequado, o que por si só não significa que não possa haver abuso, mas tão-
somente quer dizer que, nesses casos, o combate ao abuso poderá ser feito
através do desfazimento judicial da situação criada em virtude do exercício
abusivo.
Assim, por exemplo, suponha-se que os pais decidiram não
autorizar o casamento do seu descendente menor apenas com o intuito de não
vê-lo emancipar-se, passando a partir daí a gerir o seu próprio patrimônio.
Ora, é evidente que o filho menor, em tal caso, poderá sempre recorrer ao juiz
para obter o suprimento judicial à autorização negada, de modo a contornar
essa negativa despropositada dos seus próprios pais, como aliás se encontra
expresso no artigo 1.519, do nosso Código Civil, que explicitamente se refere
à negativa injusta da autorização. Da mesma forma, se um dos condôminos
requer a súbita divisão do bem comum, apenas com a finalidade de atrapalhar
o negócio que estava sendo entabulado por outro condômino, em relação à sua
quota ideal, causando-lhe grave prejuízo, parece-nos que este último poderá
requerer ao juiz que a indivisão seja mantida por mais algum tempo (desde
que seja breve), até a conclusão do negócio em curso.
Prossigamos.
A expressão “abuso do direito” foi cunhada pelo jurista belga
Laurent274, em 1883, após estudar uma série de decisões das cortes francesas,
ainda no século XIX, nas quais era reconhecido o direito do réu, mas apesar
disso o mesmo era condenado, por ter exercido esse direito de um modo tido
por irregular. Assim, por exemplo, um determinado proprietário resolveu
274
Cf. Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand
et japonais, p. 427, n° 1489.
272
construir, em seu terreno, uma falsa chaminé, que para nada lhe serviria, mas
tão-somente tinha a finalidade de vedar a claridade em uma janela do imóvel
vizinho. Entendeu o tribunal que construir era um direito do proprietário, mas
fazê-lo naquelas condições equivalia a exercer de modo irregular esse mesmo
direito.
A figura do abuso do direito, como hoje o conhecemos, não
encontra suas raízes históricas no direito romano. É que os romanos, com o
seu senso eminentemente prático, não buscavam teorizações genéricas, com
conceitos que se mostrassem aplicáveis a todos os temas jurídicos. Muito pelo
contrário, o que se via no direito romano era a adoção de soluções jurídicas
específicas para cada tipo de situação, ou seja, institutos localizados, válidos
apenas para os casos que apresentassem em comum uma determinada
característica.
É possível encontrarmos semelhanças do abuso do direito com
alguns institutos isolados do direito romano, tais como a aemulatio, a exceptio
doli e as relações de vizinhança 275, mas nenhum desses, repete-se, foi marcado
por uma generalização que lhes permitisse atingir todo o campo das relações
sociais reguladas pelo direito, vale dizer, nenhum desses institutos poderia ser
considerado como sendo um limite genérico, válido para todos os direitos
subjetivos.
A aemulatio era o exercício de um direito que não trazia qualquer
utilidade para o seu titular, e apenas era impulsionado pela intenção de causar
prejuízo a outrem, ou seja, era de cunho marcadamente subjetivo, centrando-
se no aspecto psicológico da intenção do agente 276. Os atos de emulação
275
Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, p. 673.
276
Não se pode deixar de observar que há autores que vêem nessa “intenção de prejudicar” (animus
nocendi) o critério mais antigo para a identificação do abuso do direito, sendo evocado pela doutrina e pela
jurisprudência dos mais diversos países. Nesse sentido, por exemplo, é a opinião de Béatrice Jaluzot, La
273
bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 413, n° 1447. O
que nos parece oportuno esclarecer é que os contornos do abuso do direito, como hoje é conhecido, são
completamente distintos da figura da aemulatio, e foi por isso que mencionamos, acima, que as origens da
figura não se encontram no direito romano, precisamente por serem diferentes as características dos institutos
que eram encontrados neste. E tanto é assim que a própria Béatrice Jaluzot reconhece, na mesma obra, pouco
mais à frente, que a intenção de prejudicar é um critério que se mostrou insuficiente, e que hoje é rejeitado
pela maior parte dos sistemas jurídicos (p. 414, n° 1450).
277
Na realidade, o Diploma Civil apenas repete posição que ainda se mostra bastante influente entre
nós, uma vez que, como bem aponta Cristiano de Sousa Zanetti, Responsabilidade pela ruptura das
negociações no direito civil brasileiro, p. 108, “o recurso à boa-fé para fundamentar o abuso do direito não
pode ser encontrado na tradição brasileira que, muito apegada ao direito francês, sempre procurou
caracterizar o instituto com arrimo na teoria dos atos emulativos...”.
278
Embora, como apontamos acima, existam nítidas diferenças entre a aemulatio romana e a figura
atual do abuso do direito, não se pode deixar de observar que a opinião dos juristas medievais, sobre a
ilicitude dos atos de emulação – notadamente no direito de vizinhança – se constituiu em precedente imediato
e importante da teoria do abuso do direito, pois trouxe a lume a tese da necessidade de limitação do exercício
dos direitos subjetivos conforme os limites decorrentes de sua própria finalidade social e econômica, sendo,
pois, o primeiro passo para a superação da concepção absolutista do direito subjetivo. Cf. Francisco Amaral,
Os Atos Ilícitos. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e Martins Filho, Ives Gandra da
Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof. Miguel Reale, pp. 160-161.
274
279
STJ, 4ª Turma, Ac. unânime, REsp 287774/DF, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, j. 15.02.01,
DJ 02.04.01, p. 302.
280
STJ, 4ª Turma, Ac. unânime, REsp 329968/DF, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, j.
09.10.01, DJ 04.02.02, p. 394.
281
Aldemiro Rezende Dantas Júnior, Comentários ao Código Civil, v. XIII (Coord. Arruda Alvim e
Thereza Alvim), p. 521, comentário ao artigo 1.473.
276
282
Marcel Planiol, Traité Élémentaire de Droit Civil, t. II, p. 282, n° 871. “Les jurisconsultes et les
législateurs modernes ont au contrairie une tendance à considérer l’usage d’un droit comme pouvant devenir
un abus, et par suite constituer une faute. Ils parlent volontiers de l’usage abusif des droits... Cette nouvelle
doctrine repose tout entière sur un language innsuffisamment étudié; sa formule ‘usage abusif des droits’est
une logomachie, car si j’use de mon droit, mon acte est licite; et quand il est illicite, c’est que je dépasse mon
droit et que j’agis sans droit, ‘injuria’, comme disait la loi Aquilia ”.
283
Louis Josserand, Cours de Droit Civil Positif Français, v. II, p. 231, n° 436. “Cependant, cette
contradiction et cette logomachie n’existent point; pour les faire se dissiper il suffit de se rappeler que le mot
‘droit’ a deux sens très différents; tantôt il designe l’ensemble de la règle sociale, la ‘juricité’, et tantôt il
s’applique à un droit subjective, isolément envisagé. C’est dans cette seconde acception seulment, qu’il peut
être question d’abus. Il y a droit et droit; l’acte abusif est celui qui, accompli en vertu d’un droit subjectif
dont les limites ont été respectées, est cependant contrairie au droit envisagé dans sons ensemble; on peut
avoir pour soi tel droit déterminé et avoir cependant contre soi le droit tout entier; c’est à cette situation que
correspondent l’adage summum jus summa injuria et la théorie de l’abus.
279
284
Mas há outras diferenças significativas no modo como o abuso do direito é visto na França e na
Alemanha. Assim, por exemplo, observe-se que os direitos contratuais podem ser provenientes diretamente
das vontades das partes contratantes, ou seja, sua fonte é a autonomia privada, ou podem ser provenientes da
lei, apresentando-se como disposições previstas pelo legislador para aquele tipo específico de contrato. Em
relação à primeira categoria de direitos, ou seja, aqueles que provêm da vontade das partes, não há qualquer
divergência quanto à sua limitação pela figura do abuso do direito. No entanto, em relação à segunda, vale
dizer, aqueles que têm origem diretamente na lei, enquanto a jurisprudência alemã não vê qualquer obstáculo
à sua limitação em virtude do abuso do direito, os juízes franceses entendem que essa limitação não é
possível, pois os direitos cuja origem se encontra diretamente na lei não estariam sujeitos aos limites
decorrentes da figura do abuso do direito. Cf. Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude
comparative de droit français, allemand et japonais, p. 410, n° 1434. Veja-se que essa questão apresenta
grande interesse prático, o que pode ser facilmente demonstrado com o cotejo de dois dispositivos do Código
Civil brasileiro: a) o artigo 575, do referido Código, prevê que o locatário, se não restituir a coisa ao término
280
do contrato, apesar de notificado pelo locador, pagará o aluguel que este vier a arbitrar, mas o parágrafo único
esclarece que, se esse valor arbitrado para o aluguel for manifestamente excessivo, o juiz poderá reduzi-lo,
embora sem perder de vista o seu caráter de penalidade; b) no artigo 582, por sua vez, referente ao contrato de
comodato, prevê o Código Civil que o comodatário constituído em mora pagará, até restituir o bem, o aluguel
que for arbitrado pelo comodante, sem que seja feita qualquer ressalva quanto ao valor arbitrado de modo
excessivo. A questão que se coloca, portanto, é a de se saber se o comodante, ao exercer seu direito,
diretamente decorrente da lei, de fixar o valor do aluguel, estará limitado pela figura do abuso do direito ou
se, ao contrário, poderá exercê-lo livremente, sem qualquer restrição, uma vez que quando o legislador quis
impor limites, o fez de modo claro, como se vê no artigo 575, referente ao contrato de locação. Segundo a
visão da jurisprudência francesa, em se tratando de direito cuja fonte direta é a lei, não se aplica a figura do
abuso do direito; conforme a jurisprudência alemã, contudo, o controle judicial se mostra cabível, podendo o
juiz reduzir o valor arbitrado de modo manifestamente excessivo, por se caracterizar a figura do abuso do
direito. Entre nós, as opiniões doutrinárias são divididas. Para Caio Mário da Silva Pereira, por exemplo, o
aluguel deverá ser pago na quantia fixada pelo comodante, “mesmo que em cifra exageradamente elevada,
pois não se trata de retribuição correlativa da utilidade, mas de uma pena a que se sujeita o contratante
moroso” (Instituições de Direito Civil, v. III, p. 238). Na lição de Paulo Nader, contudo, embora a lei não
sinalize qualquer parâmetro para o aluguel, este “deverá corresponder ao valor da época e do lugar, não se
justificando uma cifra elevada” (Curso de Direito Civil – Contratos, p. 347). De nossa parte, pensamos que
ambos estão equivocados. Em relação à opinião de Caio Mário, o fato de não se tratar de retribuição, mas sim
de uma penalidade, claramente não se mostra suficiente para que se entenda que o comodante pode fixar
livremente o valor, ainda que em quantia exageradamente elevada, e tanto assim que o Código Civil, alguns
artigos antes (art. 575, parágrafo único), refere -se à redução do valor manifestamente excessivo, mas sem
perder de vista que se trata de uma penalidade, ou seja, aponta de modo claro para a conciliação entre as duas
figuras, a da penalidade e a da vedação ao abuso do direito. E quanto à lição de Paulo Nader, basta que se
observe que, se for fixado o valor correspondente ao aluguel da coisa, naquela época e lugar, estará
simplesmente sendo arbitrada uma retribuição, transformando-se de modo forçado o comodato em aluguel e
perdendo-se de vista o caráter de penalidade. Pensamos, portanto, que Caio Mário está equivocado por
admitir a fixação de valor exageradamente elevado, enquanto Paulo Nader está equivocado por admitir a
fixação de valor muito baixo, insuficiente para funcionar como retribuição e penalidade. Assim, o que nos
parece é que o valor deverá ser sempre moderadamente (e não exageradamente) superior ao do que
corresponderia ao aluguel da coisa, ou seja, deverá ser um valor tal que, simultaneamente: a) implique em
uma retribuição pelo uso da coisa; b) imponha ao comodatário moroso uma penalidade; c) não seja tão
elevado ao ponto de caracterizar o abuso do direito.
285
Tradução de Souza Diniz, Código Civil Alemão.
281
286
Tradução de Souza Diniz, Código Civil Alemão.
287
Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, p. 693.
282
289
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 432, n°s 1503 e 1504. “Progressivement la jurisprudence allemande en est venue à rattacher la
doctrine de l’abus de droit à la bonne foi, plus exactment au § 242 BGB... En concurrence avec la bonne foi
venait la notion de contravention aux bonnes moeurs du § 138 BGB qui offrait elle aussi um fondement
adéquat. Cependant, la question a été tranchée par la jurisprudence du Tribunal d’Empire dans une série de
décisions rendues durant la seconde guerre mondiale et la Cour fédérale s’appuie depuis lors sur la bonne foi
et le § 242. Les raisons de ce rattachement sont que seule la notion de bonne foi était à même d’embrasser
tous les cas dans lesquels la jurisprudence avait appliqué l’abus de droit: alors qu’il ne pouvait être question
du § 226 en raison de sa condition trop étroite, l’intention de nuire, et que le § 826 n’embrasse pas tous les
cas, en particulier ceux d’un abus de droit simplement objectif et sans faute, et aussi parce que tout abus de
droit n’est pas une violation des bonnes moeurs, le § 242 a été considere comme seul fondement juridique
pour l’interdiction de l’abus de droit, en t ant que limite à l’exercice des droits”.
284
290
Nesse sentido, por todos, veja-se a lapidar obra de Pedro Baptista Martins, O Abuso do Direito e o
Ato Ilícito, p. 92.
291
Tradução de Souza Diniz, Código Civil suíço.
285
culturais atualizados do povo alemão. Por essa razão, a doutrina alemã teve
enorme influência no Direito Civil grego, uma vez que serviu de base para que
os gregos absorvessem o direito romano adaptado para os tempos atuais.
Em 1946, finalmente, os gregos adotaram o seu próprio Código
Civil, sendo evidente que a elaboração do mesmo foi fortemente influenciada
pela doutrina originária da Alemanha, que já havia sido recebida pela forma
descrita no parágrafo anterior, e por isso o Código Civil alemão foi o ponto de
referência do Código Civil grego. Só que, na década de 40, em pleno século
XX, a doutrina alemã, como vimos retro, já havia interpretado e modificado o
conteúdo do Código Civil alemão, e por isso os gregos se utilizaram não
apenas do texto original do BGB, mas o fizeram considerando as
interpretações doutrinárias e jurisprudenciais, referentes às dificuldades que
haviam surgido na prática e que a doutrina e a jurisprudência já haviam
superado.
Ora, vimos há pouco que os alemães, em relação à figura do
abuso do direito, haviam passado, sucessivamente, do ato que só pudesse ter o
objetivo de causar dano a outrem (art. 226) para os bons costumes (art. 826) e
a boa-fé (art. 242), e nesta última fase se encontrava o direito alemão
(impondo os limites do abuso do direito com base nos bons costumes e na
boa-fé) quando foi elaborado o Código grego, que ainda buscou, no projeto do
Código Civil italiano, a referência à finalidade social e econômica do
direito292. Desse modo, o artigo 281, do Código Civil grego, estabeleceu que
“o exercício é proibido quando exceda manifestamente os limites impostos
pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo escopo social ou econômico do
direito”.
292
Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, p. 715.
286
seu exercício deve ser limitado pelo interesse social a que devem servir 293. É
interessante notar que muda por completo o enfoque dos direitos subjetivos,
que deixam de ser vistos sob o prisma de sua estrutura e passam a ser
considerados sob a ótica de sua função, vale dizer, tais direitos são
funcionalizados aos valores eleitos pelo ordenamento294.
Na verdade, o que se pode constatar é que, uma vez revelada pela
doutrina alemã a íntima ligação entre a boa-fé e a figura do abuso do direito,
os Códigos Civis em geral se valeram da primeira para poder apresentar um
conceito para o segundo, ou seja, para caracterizar o abuso do direito em
função da boa-fé, sendo que aquele começa a partir do ponto em que cessam
as condutas admissíveis, pois estas se encontram no domínio da boa-fé, e além
delas já se adentra pelo campo do abuso do direito.
Usando interessante descrição feita pela doutrina 295, pode-se dizer
que, representando-se o caminho de um certo comportamento jurídico, ambas
as figuras, a boa-fé e o abuso do direito, encontram-se no mesmo ponto limite.
Contudo, antes desse ponto têm-se os comportamentos pautados pela boa-fé,
que se faz presente em todo o setor das condutas admissíveis, enquanto que,
além desse mesmo ponto, tem-se a presença do abuso em todo o trajeto, sendo
ultrapassado o limite dos comportamentos aceitáveis pelo Direito.
Só a título de melhor esclarecimento do que já foi visto
anteriormente, e aproveitando essa mesma figura utilizada no parágrafo
anterior, veja-se que a boa-fé não se limita a esse ponto mencionado, além do
qual se terá o abuso do direito, mas está presente em todo o caminho
percorrido até que seja atingido tal ponto, ou seja, estará presente em todos os
293
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 418, n° 1461.
294
Gustavo Tepedino, Temas de Direito Civil, p. 9, nota de rodapé nº 8.
295
Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, p. 223.
288
296
Nesse sentido, mas especificamente em relação à figura do abuso do direito, ensina Pedro Baptista
Martins que “o abuso do direito pode manifestar-se em qualquer de suas fases: pré-contratual, contratual e
pós-contratual”. Cf. Pedro Baptista Martins, O Abuso do Direito e o Ato Ilícito, p. 38.
297
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 706.
298
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 719.
289
pelo réu, sendo assim classificada porque não tem por finalidade negar a
existência do direito do autor. Muito pelo contrário, quando o réu se defende
argüindo exceção substancial, está reconhecendo que tal direito existe, mas ao
mesmo tempo está apontando que o pedido deve ser julgado improcedente, em
virtude da existência de algum elemento extrínseco que pode ser oposto ao
autor, impedindo, modificando ou mesmo extinguindo a eficácia do seu
direito299.
A exceptio doli, ou exceção de dolo, portanto, significa, como o
próprio nome indica, uma defesa indireta, da qual o réu poderá se valer para
repelir a pretensão do autor, embora sem negar-lhe o direito, tendo por suporte
o fato de que tal direito foi exercido de modo doloso, tendo havido
comportamento que implicou em violação da boa-fé, por parte do seu titular.
No caso da exceção de dolo, o “elemento extrínseco” que poderá ser oposto
contra o autor consistirá no dolo deste, ou seja, a pretensão do autor será
repelida sob o argumento de que o mesmo agiu de modo doloso. Representa,
de certo modo, “a proteção de um direito contrário ao exercitado pelo autor
e, em tal sentido, um instrumento de flexível proteção da eqüidade e da boa-
fé” 300.
Dito em outras palavras, a exceptio doli foi um meio processual
genérico de defesa, criado pelos romanos para obstaculizar as ações que se
fundavam no dolo do autor, sendo depois ampliada para abranger qualquer
atuação que se mostrasse iníqua ou contrária à bona fides, o que levou a
apresentar conteúdo difuso, capaz de abranger um grande número de
hipóteses, cujo ponto em comum é precisamente a presença do dolo do autor,
299
Ovídio A. Baptista da Silva, Curso de Processo Civil, v. 1: Processo de Conhecimento, p. 319.
300
Alfonso de Cossío y Corral, El dolo en el derecho civil, p. 210.
290
301
Anderson Schreiber, A Proibição de Comportamento Contraditório – Tutela da confiança e venire
contra factum proprium, pp. 169-172.
302
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 722.
291
303
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 428, n° 1492.
304
Alfonso de Cossío y Corral, El dolo en el derecho civil, pp. 243-244. O ilustre autor espanhol aponta
que buscar para a exceção de dolo um fundamento objetivo, que esteja fora da intenção do agente, pode
parecer contraditório (p. 244). Na verdade, não parece contraditório, é amplamente contraditório.
292
Por essa razão, há quem aponte que a exceptio doli foi atingida
pelo desinteresse da doutrina e da jurisprudência 305, importando mais pelo
relevante papel histórico que desempenhou, enquanto se tentava fincar as
fundações de normas esteadas na boa-fé, uma vez que hoje encontra maior
aplicação a análise de violações mais específicas e mais precisamente
delimitadas da boa-fé, e que por isso encontram aplicação concreta de modo
mais científico, em vez de, como ocorria com a exceptio doli, apenas servir de
reforço lingüístico para decisões já anteriormente tomadas, em casos de
violação da boa-fé.
De modo semelhante, aponta Jaluzot306 que os autores começaram
a descrever as duas teorias, a exceptio doli e o abuso do direito, como sendo
duas aparições paralelas, que se identificavam reciprocamente em sua
essência, e com isso as duas teorias foram progressivamente sendo
assimiladas, o que acabou por resultar na substituição progressiva da
terminologia usada na Alemanha, ou seja, os juristas alemães descartaram a
expressão latina e passaram a usar a tradução literal da noção francesa do
abuso do direito.
E também os tribunais alemães passaram a invocar a teoria
francesa, para justificar suas decisões, chegando a apontar de modo expresso
que o abuso do direito, que fora desenvolvido a partir da exceptio doli
generalis e da figura correspondente no direito francês, era reconhecido de um
modo geral. E a terminologia latina começa a ser abandonada.
Na realidade, desde a entrada em vigor do Código Civil alemão,
em 1900, a aplicabilidade da exceptio doli já havia sofrido um baque, eis que o
BGB simplesmente não tratou da mesma, o que desde logo levou a doutrina a
305
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 741.
306
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, pp. 428-429, n°s 1493 e 1494.
293
307
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , pp. 723-730.
308
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 733.
294
expectativa de que outra seria a conduta a ser adotada por ocasião do segundo.
Nas palavras de Béatrice Jaluzot 309, todo comportamento será contrário à boa-
fé se for qualificado como contraditório, o que ocorre quando se mostra
contrário a um comportamento anterior da mesma pessoa.
O primeiro comportamento, portanto, é o “factum proprium”, e o
segundo, é o “venire”. Quando os dois são contraditórios, ou seja, quando o
venire (segundo comportamento) se mostra contrário ao factum proprium, é
que poderá ser caracterizada a figura do venire contra factum proprium,
dependendo ainda, contudo, da presença de outros elementos, como veremos
em seguida.
A proibição do venire310, como facilmente se pode identificar,
refere-se à proteção da boa-fé 311, ou melhor, refere-se à necessidade de que
cada um dos sujeitos de um negócio jurídico adote conduta que seja
consentânea com a boa-fé, o que, em última análise, como já vimos, retro,
significa que cada um desses sujeitos deverá respeitar os deveres laterais que
surgem em todos os negócios jurídicos, e que são impostos exatamente em
função da necessidade de observância da boa-fé. E qual seria esse dever
acessório, a ser observado, e cuja inobservância estaria a caracterizar o venire?
309
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 89, n° 326. “Tout comportement sera contraire à la bonne foi s’il est qualifié de contradictoire
c’est-à-dire s’il est contraire à um comportement antérieur de la même personne”. (Tradução livre).
310
Mas desde logo observando que por vezes, levando em conta outros valores, a própria lei permite,
expressamente, esse comportamento contraditório, ou seja, nem sempre é proibido o venire contra factum
proprium. Assim, por exemplo, os pais, tutores ou curadores que já se manifestaram no sentido de conceder a
autorização para o casamento do menor púbere, podem revogá-la enquanto não se der a celebração do
matrimônio (Código Civil, art. 1.518), ou seja, podem adotar um segundo comportamento que é exatamente o
oposto do primeiro, tendo força para desfazê-lo. Da mesma forma, a autorização dada pelos pais, para que seu
filho seja adotada, pode ser revogada enquanto não tiver sido publicada a sentença que constitui a adoção (art.
1.621, § 2º). E outros exemplos poderiam ser citados, como veremos adiante.
311
No entanto, convém ressaltar que essa ligação tão estreita entre a boa-fé e o venire contra factum
proprium não se mostra assim tão pacífica, sendo contestada por autores de nomeada. Nesse sentido, por
exemplo, José Luis de Los Mozos, após afirmar que não há dúvidas acerca da relação entre atos próprios e
boa-fé, alerta que na especial conduta contraditória que informa a doutrina dos atos próprios, intervêm outros
ingredientes, que não decorrem da simples aplicação da boa-fé, e que por essa razão não se pode reconduzir
essa matéria (a doutrina dos atos próprios) a qualquer dos tipos de boa-fé, objetiva ou subjetiva, por mais que
se pretenda fazer generalizações. Cf. José Luis de Los Mozos, El principio de la buena fe, pp. 183-184.
296
312
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, pp. 89-90, n°s 327 e 328.
299