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ALDEMIRO REZENDE DANTAS JÚNIOR

A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS


Elementos de identificação e cotejo com institutos
assemelhados

DOUTORADO EM DIREITO CIVIL

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA


SÃO PAULO – 2006
ALDEMIRO REZENDE DANTAS JÚNIOR

A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS


Elementos de identificação e cotejo com institutos
assemelhados

Tese apresentada à Banca


Examinadora da Faculdade
de Direito da Pontifícia
Universidade Católica de
São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do
título de Doutor em Direito
Civil, sob a orientação do
Professor Doutor Sílvio
Luís Ferreira da Rocha.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA


SÃO PAULO - 2006
255

2. Violações típicas da boa-fé.

2.1. Considerações gerais.

O objetivo precípuo do presente estudo, como desde o início já o


dissemos, é o exame dos elementos característicos e das conseqüências da
chamada teoria dos atos próprios (venire contra factum proprium), fazendo
dela um cotejo com outros institutos assemelhados, todos eles tendo em
comum o fato de que se constituem em violações dos comportamentos que, a
partir do exame à luz da boa-fé, seriam aqueles esperados para o caso concreto
que está sendo apreciado.
Tendo em vista tal objetivo, e levando em conta precisamente o
fato de que a boa-fé é o elemento que se mostra como fator de ligação entre os
diversos institutos a serem cotejados, foi que começamos nossa análise a partir
de algumas digressões sobre a boa-fé, traçando um rápido panorama sobre a
evolução da mesma, desde a bona fides dos romanos, com caráter subjetivo,
até chegarmos à boa-fé como uma norma de conduta, de caráter objetivo, que
impõe aos sujeitos a observância dos deveres colaterais, consistindo estes na
adoção de um comportamento que se mostre adequado e necessário ao
atingimento do resultado final esperado para o negócio.
No presente capítulo, continuaremos a analisar essas violações
dos comportamentos apurados como sendo os adequados para cada caso
concreto, mas agora o enfoque principal deixa de ser na boa-fé em si mesma249

249
Mas não se pode perder de vista que, na realidade, essa divisão da matéria “conforme padrões” é,
acima de tudo, para mais fácil compreensão do tema e grupamento das soluções de situações que se mostrem
similares umas às outras, pois na realidade continua-se a tratar da própria boa-fé, eis que as situações dela
derivadas, a toda evidência, não perdem suas características, ou seja, continuam a ter os mesmos efeitos e o
mesmo alcance do princípio geral da boa-fé. Nesse sentido, pode-se dizer que “las consecuencias o las
derivaciones inmediatas del principio general de la buena fe, construidas doctrinal o jurisprudencialmente,
256

e passa a se concentrar nas violações, que são reunidas conforme alguns


padrões que se manifestam com maior freqüência, nos negócios jurídicos, e
que receberam denominações específicas da doutrina. Esse é o caso do próprio
venire contra factum proprium, que de modo extremamente sintético pode ser
descrito como sendo a infração do dever de coerência, que se manifesta como
um subproduto do dever de lealdade, conforme veremos adiante.
Nosso exame, contudo, começará pela figura mais ampla do
abuso do direito, que na realidade se constitui em instituto de maior
generalidade, e por isso capaz de abranger diversas outras violações de caráter
mais restrito (inclusive o venire), também configuradas a partir de
comportamentos-tipos. Com efeito, e desde logo adiantando o tema do
subitem seguinte, pode-se observar que as legislações em geral definem o
abuso do direito como uma violação dos limites impostos pela boa-fé, ou seja,
trata-se de uma desobediência genérica à conduta aferida a partir da boa-fé.
Dentro dessa descrição genérica, contudo, enquadram-se outras, que têm
características mais específicas e bem definidas, e que também implicam em
violação dos limites impostos pela boa-fé, inclusive o venire contra factum
proprium.
Antes de nos lançarmos na análise dessas figuras mencionadas,
que se constituem em violações específicas do comportamento que deveria ser
adotado, conforme as imposições decorrentes da boa-fé, mais algumas
observações, de cunho geral, se fazem indispensáveis.

en torno a particulares situaciones de intereses, de carácter típico, tienen el mismo valor y el mismo alcance
que el principio general de que dimanan y en que inmediatamente se fundan”. Cf. DÍEZ-PICAZO, La
doctrina de los propios actos, pp. 139-140, apud José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p.
38. Aliás, é exatamente por essa razão, ou seja, porque continua a se tratar de análise do princípio da boa-fé,
que logo em seguida veremos, nesse mesmo item referente às violações típicas da boa-fé, os institutos
jurídicos nos quais são agrupadas essas violações, tais como o venire contra factum proprium, o abuso do
direito, a exceptio doli, etc.
257

Em primeiro lugar, como bem observa DÍEZ-PICAZO250, a


norma que ordena que se tenha um comportamento conforme os ditames da
boa-fé é um princípio geral do direito, e por essa razão tem o caráter de fonte
secundária do Direito, ou seja, dentre outras funções servindo como elemento
de integração das lacunas da lei. Desse modo, não havendo norma especial
que se mostre adequada para a solução daquele caso concreto que se encontra
em exame, tal princípio deve ser aplicado para a solução do litígio.
Em segundo lugar, convém recordar que a boa-fé pode se
apresentar sob as mais diversas modalidades, em cada um dos casos concretos,
sendo certo que a divisão precisa entre os diversos deveres acessórios só existe
mesmo para fins didáticos, pois é muito comum que, em uma situação real,
um determinado dever acessório esteja abrangendo um outro, como logo em
seguida exemplificaremos.
De um modo genérico e abrangente, há quem prefira apontar que
o comportamento que viola o princípio da boa-fé é aquele que se apresenta
como desleal, qualquer que seja o modo pelo qual essa deslealdade se
concretize, sendo que o que de fato vai interessar é que as conseqüências, para
a outra parte, sejam bastante graves. Nesse sentido a lição de Béatrice
Jaluzot 251.
Além disso, como mencionamos brevemente, acima, não existe
uma separação rígida, clara e perfeitamente delineada, entre os diversos
deveres colaterais, por isso que tal separação apenas cumpre finalidade
didática. Comentamos, retro, por exemplo, separadamente, sobre os deveres
acessórios de proteção e de informação (item 1.8). Muitas situações podem

250
DÍEZ -PICAZO, La doctrina de los propios actos, p. 39, apud José Luis de Los Mozos, El Principio
de La Buena Fe, p. 38.
251
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 89, n° 325.
258

ocorrer, no entanto, em que a informação deve ser prestada, por um dos


sujeitos ao outro, sob pena de sérios danos à pessoa ou ao patrimônio.
Seria o caso, por exemplo, das informações necessárias para o
manuseio seguro de uma máquina que funciona sob pressão, informações
essas sem as quais há o sério risco até mesmo de forte e grave explosão. Ora,
como determinar se, em tal caso, estamos diante do dever acessório de
informação ou do dever de proteção? Simplesmente não é possível esse
enquadramento preciso, pois a situação apresenta traços que permitem
classificá-la tanto em um quanto em outro dos dois deveres acessórios, que no
caso se mesclam de modo inseparável.
De qualquer modo, por outro lado se percebe que o que se mostra
mais do que suficiente é que se possa identificar se houve ou não, no caso,
situação na qual se poderá apontar que foi violado o princípio da boa-fé. Uma
vez identificada tal violação, haverá de se mostrar completamente irrelevante,
para qualquer finalidade prática que seja, determinar-se se o dever lateral
violado foi o de proteção ou o de informação.

2.2. O abuso do direito.

Antes do exame do instituto em si mesmo, tracemos algumas


breves considerações sobre a denominação do mesmo. O problema é que
encontramos, com alguma freqüência, no texto de alguns ilustres autores, a
referência ao “abuso de direito”252, o que, com todo o respeito devido a tão

252
Dentre outros: Renan Lotufo, Código Civil Comentado – v. 1, p. 187 e ss.; Cristiano Chaves de
Farias, Direito Civil – Teoria Geral, p. 468; Sílvio Venosa, Direito Civil – Parte Geral, p. 492; J. Franklin
Alves Felipe e Geraldo Magela Alves, O Novo Código Civil Anotado, p. 44; Maria Helena Diniz, Curso de
Direito Civil Brasileiro – v. 1, p. 462. Esta última e ilustre autora, inclusive, usa indistintamente as expressões
“abuso do direito” e “abuso de direito”, ambas na p. 462, da obra citada. Com a mesma imprecisão
259

eminentes juristas, não se mostra adequado, eis que mais correto se mostraria
falar em “abuso do direito”.
Com efeito, como veremos em detalhes, logo em seguida, a figura
do abuso do direito se relaciona, invariavelmente, com um direito subjetivo,
que ao ser exercido por seu legítimo titular, ultrapassa certos limites (um dos
quais é a boa-fé, daí o nosso interesse no tema). Poder-se-ia falar, portanto, de
modo mais completo, em “abuso no exercício do direito”, por parte de seu
titular. Em outras palavras, quando se usa a expressão “abuso do direito”, fica
claro que se trata de um direito (subjetivo) que foi exercido de modo irregular,
por seu titular.
Por outro lado, a expressão “abuso de direito” pode causar a
(falsa) impressão de que se trata de um abuso que integra o direito, ou seja,
um abuso que é tolerado e regido pelo direito, o que a toda evidência se
mostraria uma expressão contraditória em si mesma, pois se o comportamento
se mostrar abusivo, é evidente que não estará dentro do campo protegido pelo
direito, será por este rejeitado, e não regido.
Mesmo em linguagem corriqueira, do quotidiano, quando se fala
que alguma coisa é de direito, quer-se sempre significar que tal coisa está
amparada pelo direito, encontra respaldo nas normas jurídicas. Assim, por
exemplo, quando A tem um crédito contra B, já vencido, e resolve cobrá -lo, é
comum que A diga algo como “é de direito que eu cobre o que B me deve”, e,
quem quer que o ouça, imediatamente compreenderá que A pretendeu dizer
que a cobrança que pretende fazer está amparada pelas normas jurídicas.
Da mesma forma, quando se comenta, em relação a um
trabalhador, que “é de direito que receba o pagamento dos dias que

terminológica, usando as duas expressões, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Novo Curso de
Direito Civil – Parte Geral, v. 1, p. 467.
260

trabalhou”, o sentido, facilmente captado por qualquer ouvinte, é que o direito


dá amparo a que esse trabalhador receba o pagamento que lhe é devido,
referente aos dias em que efetivamente trabalhou.
Por último, embora infinitas situações pudessem ser ainda
mencionadas, tome-se, à guisa de comparação, como um derradeiro exemplo,
a expressão “Instituto de direito”, na qual fica fácil de perceber que se está a
referir a um instituto, seja ele qual for, que é regido e protegido pelas normas
jurídicas, o que não ocorre com o abuso, que por isso não pode ser de direito,
mas sim do direito.
Não foi sem razão, portanto, que o ilustre Pontes de Miranda253
anotou que “a expressão ‘abuso de direito’ é incorreta. Existe ‘estado de fato’
e ‘estado de direito’; porém, não ‘abuso de fato’ ou ‘abuso de direito’. Abusa-
se de algum direito, do direito que se tem. Leis falam de ‘abuso de direito’,
expressão que aparece em certos juristas desatentos à terminologia científica
e indiferentes à sua exatidão. ‘Abuso do direito’, ou abuso do exercício do
direito é que é. Recebemo-la dos livros franceses e, lá, só se usa ‘abus du
droit’.”.
No mesmo sentido a lição de Rizzatto Nunes254, que aponta ser
correta a expressão abuso do direito, e não abuso de direito. E o mesmo se
pode apontar, ainda, em relação à obra clássica de Pedro Baptista Martins 255,
que desde o título já se vale da expressão correta.
E nem se argumente, em sentido contrário, que a própria lei usa a
expressão “abuso de direito” (Código de Processo Civil, art. 273, II), pois é
certo que nem mesmo a lei poderá passar por cima das barreiras lingüísticas
para transformar em certo o errado. A expressão usada pelo texto legal, abuso

253
Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, t. I, arts. 1°-45, pp. 382-383.
254
Luiz Antônio Rizzatto Nunes, Manual de Introdução ao estudo do direito, p. 144.
255
Pedro Baptista Martins, O Abuso do Direito e o Ato Ilícito, passim.
261

de direito, apenas significa que o legislador também deve se juntar às fileiras


dos muitos que usam com erronia a expressão. Aliás, nosso legislador nunca
serviu como parâmetro para aferição do apuro técnico, e tanto é assim que
esse mesmo legislador pátrio, na Lei de Greve (Lei nº 7.783/89), já se refere
ao abuso do direito, em franca contradição consigo mesmo.
Ainda em relação à denominação dessa figura, convém uma
segunda observação. É que a boa-fé, como já vimos, em sua função essencial
de critério limitador, impõe limites não apenas em relação ao exercício dos
direitos, mas também quanto ao cumprimento de deveres e, de modo ainda
mais amplo, em relação a todas as condutas capazes de gerar conseqüências
jurídicas (veja-se, retro, o item 1.8). Cabe, então, indagar o porquê de apenas
se fazer referência ao exercício dos direitos, silenciando-se sobre essa questão
dos deveres e sobre as demais condutas do sujeito.
Na realidade, essa denominação restrita, que não corresponde à
realidade mais ampla do papel limitador da boa-fé, decorre de circunstâncias
históricas 256. O que ocorreu foi que, no século XIX, o liberalismo e o
individualismo foram elevados à máxima potência pelo Direito, o que fez com
que os direitos subjetivos fossem considerados quase que como sendo
absolutos, ou, pelo menos, com uma amplitude muito grande, o que levou a
excessos claramente inaceitáveis no exercício de tais direitos, mostrando a
necessidade de que fossem impostos alguns limites.
Nesse sentido, pode-se dizer, com Alvino Lima257, que com a
teoria do abuso do direito foi modelado um novo conceito de dir eito subjetivo,
que buscou exatamente se contrapor à noção clássica, vale dizer, buscou-se a
revisão de um conceito já secular, que se baseava no individualismo e no

256
Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, pp. 219-220.
257
Alvino Lima, Culpa e Risco, pp. 215-216.
262

absolutismo dos direitos258. Contra tal noção de direitos subjetivos absolutos,


veio a ser construída a idéia de que existe uma missão social do direito.
Dessa forma, como veremos logo em seguida, ainda no presente
item, os tribunais começaram a tratar do tema a partir da análise, nos casos
concretos que lhes eram apresentados, de situações nas quais se verificava que
o titular de um direito o havia exercido de um modo inaceitável, e embora não
lhe fosse negado o direito em questão, era-lhe negado exercê-lo daquele
modo, e por isso a decisão era desfavorável ao próprio titular do direito.
Assim, foi tão-somente pelo fato da necessidade de limitações ter sido
constatada em situações referentes ao exercício de direitos que essa figura
recebeu denominação restritiva, abrangente de apenas um dos seus vários
aspectos.
Além disso, convém alertar que, embora a figura do abuso do
direito encontre o seu campo primordial de atuação no domínio das relações
contratuais 259, na realidade a mesma é aplicável a todos os direitos subjetivos,
inclusive em relação ao exercício do direito de ação. Com efeito, como ensina
Pedro Baptista Martins 260,

“o exercício da demanda não é um direito absoluto, pois que se acha,


também, condicionado a um motivo legítimo. Quem recorre às vias judiciais
deve ter um direito a reintegrar, um interesse legítimo a proteger, ou pelo
menos, como se dá nas ações declaratórias, uma razão séria para invocar a
tutela jurídica. Por isso, a parte que intenta ação vexatória incorre em
responsabilidade, porque abusa de seu direito. E esse abuso pode verificar-
se também no exercício da defesa...”.

258
O dogma do absolutismo dos direitos subjetivos, explica Josserand, foi reforçada, em França, a patir
da Revolução Francesa, notadamente com a Declaração dos Direitos do Homem, pois o direito revolucionário
estava impregnado de um individualismo intenso, pois considerava o homem como um fim em si mesmo,
mais do que como um elemento integrante da comunidade; como um indivíduo, mais do que como a célula
primeira da sociedade. Cf. Louis Josserand, Cours de Droit Civil Positif Français, v. I, p. 118, n° 161.
259
Pedro Baptista Martins, O Abuso do Direito e o Ato Ilícito, p. 5.
260
Pedro Baptista Martins, O Abuso do Direito e o Ato Ilícito, p. 71.
263

No mesmo sentido a opinião de Cléber Lúcio de Almeida 261, Juiz


do Trabalho das Minas Gerais, que ensina que o exercício do direito de ação
tem como pressuposto a necessidade de proteção jurídica, como se encontra
insculpido no art. 3º, do Código de Processo Civil brasileiro. Logo, se a
efetiva proteção jurídica não for o objetivo daquele que busca o Judiciário,
estará configurado o abuso do direito de ação, uma vez que tal direito, de
modo claro e inegável, estará sendo exercido com desvio de sua finalidade.
Um outro esclarecimento, que deve ser trazido desde logo, é o
que se refere ao foco a ser dado no presente item deste estudo. É que a teoria
do abuso do direito causou o surgimento de duas correntes doutrinárias
opostas, uma que o abordou sob o aspecto subjetivo, e outra que o considerou
sob o ponto de vista objetivo.
Para os adeptos da primeira corrente, o abuso do direito ocorre
quando o seu respectivo titular exercita seu direito sem que tenha necessidade
de fazê-lo, apenas movido pela intenção de prejudicar; para a segunda, no
entanto, para que se configure o abuso, é suficiente que ocorra o exercício
anormal do direito, ou seja, que não esteja de acordo com sua finalidade
econômica ou com sua função social262.
No entanto – e este é o esclarecimento a ser dado –, no presente
trabalho apenas examinaremos a figura do abuso do direito sob o prisma
objetivo, ou seja, considerando-se a a finalidade econômica e social do direito
subjetivo, pois foi essa a posição adotada de modo claro e expresso pelo nosso
Código Civil, em seu artigo 187, embora não se possa deixar de observar que
ainda existem resquícios, em nosso Diploma Civil, da teoria subjetiva, como

261
Cléber Lúcio de Almeida, Abuso do Direito no processo do trabalho, p. 37.
262
Francisco Amaral, Os Atos Ilícitos. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e
Martins Filho, Ives Gandra da Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof.
Miguel Reale, p. 161.
264

ocorre em relação ao artigo 1.228, § 2º, sobre o qual teceremos alguns


comentários adiante.
Feitas essas pequenas ressalvas, prossigamos.
A questão do abuso do direito foi tratada, no Código Civil pátrio,
no artigo 187, o qual estabelece que também comete ato ilícito o titular de um
direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu
fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Expressamente,
como se vê, nosso Código Civil indicou como ilícito o exercício abusivo do
direito, ao lado do ato ilícito previsto no artigo anterior (art. 186). E esclareça-
se que o artigo 186 trata do ato intrinsecamente ilícito, ou seja, ilícito em si
mesmo, por violar seus limites internos, enquanto o artigo 187 se refere ao ato
extrinsecamente ilícito, ou seja, que o é por ter violado seus limites
externos263.
Como se vê, a idéia que se destaca como básica é a de que os
direitos subjetivos têm limites ao seu exercício 264, limites esses que podem ser

263
A distinção é feita por Josserand, que ensina que “le refus de contracter peut revêtir plus qu’un
caractère abusif; il peut se présenter à nous comme un acte illégal, intrinsèquement illicite”. Cf. Louis
Josserand, L’Esprit des Droits et de leur Reativité – Théorie dite de l’Abus des Droits, p. 127.
264
Nesse sentido, ensinam Diez-Picazo e Antonio Gullon que “Definido el derecho subjetivo como una
situación de poder que el ordenamiento jurídico atribuye o concede a la persona como un cauce de
realización de legítimos intereses y fines dignos de la tutela jurídica, resulta evidente que este poder tiene que
estar de algún modo limitado, pues sin límites sería la justificación de la absoluta arbitrariedad”. Cf. Luis
Diez-Picazo y Antonio Gullon, Sistema de Derecho Civil – v. 1 – Introdución – Derecho de La persona –
Negocio Jurídico, p. 517. No mesmo sentido, ainda, a lição de Béatrice Jaluzot, para quem “La conséquence
juridique essentielle qu’entraîne l’abus de droit et qui donne tout son sens à l’institution est la limitation des
droits subjectifs... La notion d’abus de droit ne peut resteur cohérente que si l’on respecte l’idée générale qui
la gouverne: elle permet au juge de contrôler l’exercise des droits subjectifs”. Cf. Béatrice Jaluzot, La bonne
foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 406, n°s 1418 e 1420. Mas
a autora, na mesma obra (p. 408, n° 1426), faz interessante observação, no sentido de que a figura do abuso
do direito, quando coloca limites ao exercício do direito subjetivo de uma pessoa, ao mesmo tempo faz nascer
um novo direito para a outra. Assim, por exemplo, quando se proíbe a um dos contratantes o exercício do
direito de resilir unilateralmente o contrato, ao mesmo tempo se está dando ao outro o direito de ver o
contrato prosseguir. Nesse mesmo sentido é a lição de Menezes Cordeiro, que ao colocar em cotejo as figuras
da suppressio e da surrectio, na demonstração de que aquela é a conseqüência, o subproduto desta, ensina que
“quando, porém, o beneficiário incorra numa vantagem específica e autônoma, há, para ele, um direito
subjetivo novo: ocorre um fenômeno de surrectio. Paralelamente, sendo esse direito novo um direito relativo,
adstringe-se a contraparte a um dever. Da mesma forma, o titular-exercente pode, por força das regras que
vedam o abuso do direito, ver um direito seu de tal forma coarctado pela restrição ou, simplesmente,
265

impostos não apenas pela boa-fé, mas por parâmetros outros, como os bons
costumes e a finalidade econômica ou social. A boa-fé e os bons costumes não
estão vinculados a cada direito subjetivo, sendo de natureza genérica, face ao
seu conteúdo normativo, enquanto a finalidade econômica ou social, a toda
evidência, está diretamente ligada ao direito de que se trata.
Para Louis Josserand 265, os direitos subjetivos são produtos
sociais, concedidos pela sociedade, mas que não nos são atribuídos
abstratamente e para que os usemos de modo discricionário, pois cada um
deles tem uma razão de ser e está animado de um certo espírito, que não pode
ser desconsiderado por seu titular, e sempre que tais direitos são exercidos,
devemos nos conformar a esse espírito e permanecer dentro das linhas em que
o direito foi instituído, pois caso contrário estaríamos desviando o direito de
sua destinação, ou seja, estaríamos cometendo abuso capaz de nos atribuir a
correspondente responsabilidade.
Em relação à finalidade econômica e social do direito subjetivo,
já em 1960 ensinava Alvino Lima 266 que, além dos limites objetivos, que são
fixados pela lei, os direitos subjetivos também possuem limites de ordem
teleológica ou social, e que a teoria do abuso do direito nada mais é do que a
manifestação concreta dessas idéias. Dizia o mestre que, em vez do direito-

incompatibilizado com um novo direito surgido na esfera da contraparte beneficiária, que caiba falar de uma
verdadeira extinção”. Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, p. 826.
Mas é de se observar que o ilustre autor português inverte os termos da equação, vale dizer, aponta que
primeiro surge o direito da contraparte, e a partir daí é que os direitos do sujeito que se mostrarem
incompatíveis com esse direito recém-surgido poderão sofrer redução ou mesmo ser extintos. A questão será
retomada no item 2.5, quando examinarmos as figuras da suppressio e da surrectio, e para lá remetemos o
leitor.
265
Louis Josserand, Cours de Droit Civil Positif Français, v. II, p. 224, n° 224. “Les droits subjectifs,
produits sociaux, concédés par la société, ne nous sont pas attribués abstraitement et pour que nous en usions
discrétionnairement, ‘ad nutum’; chacun d’eux a sa raison d’être, sa mission à accomplir; chacun d’eux est
animé d’un certain esprit qu’il n’appartient pas à son titulaire de méconnaitre ou de travestir; lorsque nous
les exerçons, nous devons nous conformer à cet esprit et demeurer dans la ligne de l’institution; sans quoi,
nous détornerions le droit de sa destination, nous en abuserions, nous commettrions une faute de nature à
engager notre responsabilité”.
266
Alvino Lima, Culpa e Risco, p. 217.
266

poder, como prerrogativa soberana concedida ao seu titular, o que se tem é o


direito-função, concedido à pessoa para que possa auferir todos os proveitos
que a lei lhe confere, mas desde que o faça sem ofender aos interesses da
comunhão social267.
Complementa essa idéia a lição de Francisco Amaral268, segundo
a qual deve-se entender como fim econômico ou social “a função instrumental
própria de cada direito subjetivo”, sendo essa função instrumental que
justifica que esse mesmo direito tenha sido atribuído ao seu titular e que
condiciona o seu exercício. Em outras palavras, ainda na lição do ilustre
Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, essa concepção parte da
idéia de que os direitos subjetivos são atribuídos para que sirvam de
instrumento à realização de interesses, e por isso só podem ser exercidos em
atenção a essa instrumentalidade, sob pena de se configurar o abuso.
Pode-se ainda acrescentar, a partir do artigo 187, supra transcrito,
que a boa-fé referida no mesmo, claramente, é a boa-fé objetiva, ou seja, a
boa-fé norma comportamental. Com efeito, o que se vê no texto legal é que o
abuso não decorre da intenção que moveu o titular do direito ao exercê-lo, mas
do exercício em si mesmo, ou seja, a norma legal apanhou o comportamento
do titular do direito, impondo-lhe que, por ocasião do seu exercício, adote
conduta que esteja situada dentro dos limites impostos pelos diversos fatores
mencionados, dentre os quais a boa-fé. Não é demais recordar que uma das

267
No mesmo sentido é o entendimento de Antônio Chaves, para quem “os direitos subjetivos, produtos
concedidos, pela sociedade, não nos são atribuídos abstratamente, e para que deles usemos
discricionariamente, ad nutum; cada um deles tem sua razão de ser, sua missão a cumprir, cada um deles é
animado de um certo espírito, que seu titular não pode desconhecer ou disfarçar. Quando exercemos,
devemos conformar-nos com esse espírito e permanecer na linha da intuição, sem o que desviaríamos o
direito do seu destino, abusaríamos dele, cometeríamos uma falta de natureza e comprometeríamos nossa
responsabilidade”. Cf. Antônio Chaves, Responsabilidade Pré Contratual, p. 124.
268
Francisco Amaral, Os Atos Ilícitos. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e
Martins Filho, Ives Gandra da Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof.
Miguel Reale, p. 162.
267

funções essenciais da boa-fé é exatamente servir como critério limitador do


exercício dos direitos (veja-se, acima, o item 1.8).
E ainda convém que se observe que, em se tratando de limites
impostos a direitos subjetivos, além dos que se encontram previstos no
dispositivo legal mencionado (art. 187, Código Civil brasileiro), a toda
evidência também existem outros limites, trazidos pelas normas que criam
cada um desses direitos subjetivos. Para que se chegue a tal conclusão, basta
que se recorde que os direitos subjetivos nada mais são do que uma liberdade
de atuação que a lei confere ao sujeito, para que possa auferir vantagens, mas
que o faz desde logo impondo limites, ou seja, a própria norma legal que
reconhece ao sujeito a faculdade de agir (facultas agendi) já o faz dizendo
quais são os limites dentro dos quais deve se dar essa mesma atuação 269.
Como didaticamente esclarece Delia Rubio 270, a respeito dessa
temática da limitação dos direitos subjetivos, a mesma pode ocorrer por
diversos caminhos, como as restrições concretas referentes a cada espécie de
direito (seria o caso, por exemplo, das restrições à propriedade em virtude das
relações de vizinhança), as restrições administrativas quanto ao exercício de

269
Nesse sentido, referindo-se precisamente aos limites impostos aos direitos subjetivos, esclarecem
Diez-Picazo e Antonio Gullon que “¿Cuáles son estos límites a que debe someterse o entenderse sometido el
derecho subjetivo? Hay, en primer lugar, unos límites a los que se puede llamar ‘naturales’, toda vez que
derivan de la natureza propia de cada derecho y de la manera como es configurado de acuerdo con la
función económica o social que a través de él se trata de realizar. El derecho aparece definido en la ley en
virtud de esta naturaleza y la definición legal implica ya el establecimiento de sus linderos o confines...Al
lado de los límites que hasta ahora hemos mencionado, es posible encontrar unos límites genéricos
aplicables a todos los derechos, y que se fundamentan en la idea misma de lo que el derecho sea y de la
finalidad para cual es concedido o atribuido al particular. Estos límites genéricos o institucionales se apoyan
sobre estas bases: 1ª. El ejercicio del derecho debe hacerse conforme a las convicciones éticas imperantes en
la comunidad. 2ª El ejercicio de un derecho debe ajustarse a la finalidad económica o social para la cual ha
sido concedido o atribuido al titular. La primera consideración lleva a la exigencia de que el ejercicio de un
derecho subjetivo se ajuste a los dictados de la buena fe. La segunda impone la prohibición del abuso del
derecho. Cf. Luis Diez-Picazo y Antonio Gullon, Sistema de Derecho Civil – v. 1 – Introdución – Derecho de
La persona – Negocio Jurídico, pp. 517-519.
270
Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, p. 222.
268

certas atividades, ou as restrições municipais quanto ao direito de construir, e


assim por diante.
Tratando sobre o tema, diz Pietro Perlingieri271 que a noção do
abuso do direito não se exaure na configuração dos limites de cada poder,
devendo-se ainda observar a correlação à mais ampla função da situação
global, da qual esse mesmo poder é expressão, sendo por isso possível
apresentar uma grande variedade de comportamentos em relação a cada
situação e à sua concreta função.
À guisa de exemplo do que foi dito nos três parágrafos anteriores,
sobre essa diversidade de limites possíveis, veja-se que o proprietário de um
terreno, quando vai exercer seu direito subjetivo de construir nesse seu
imóvel, sofre, dentre outras, duas restrições: a) não poderá abrir janela a
menos de metro e meio da linha divisória; b) não poderá erguer alta coluna,
próxima à linha divisória, que não tenha qualquer outra finalidade além de
impedir a iluminação e a ventilação da construção existente no terreno
vizinho.
A primeira restrição é inerente ao direito subjetivo de construir,
ou seja, nasce junto com ele, faz parte de sua gênese, pois já consta do proprio
texto legal que o reconheceu. A segunda, no entanto, não está mencionada na
origem genética desse direito, mas decorre da previsão genérica do artigo 187,
ou seja, decorre da consideração sobre a abusividade do modo como está
sendo exercido o direito de construir.
Assim, pode-se facilmente concluir que cada direito subjetivo
encontra duas ordens de limitações, uma que faz parte da sua gênese, ou seja,
o direito já nasceu enquadrado dentro de limites previstos na própria lei que o

271
Pietro Perlingieri, Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional (trad. Maria
Cristina De Cicco), p. 122.
269

criou, e outra que se encaixa na questão dos parâmetros vistos acima, que
servem para demarcar o campo onde termina o exercício regular e onde
começa o exercício abusivo do direito.
Mas deve-se observar que, quando são ultrapassados os limites
previstos na própria lei que criou o direito subjetivo, o que se tem,
tecnicamente, não é o abuso do direito, mas uma ilegalidade. A explicação se
faz necessária porque é muito comum que se encontre, em decisões judiciais, a
referência ao abuso do direito, quando na verdade o que se tem é a pura e
simples violação da norma legal explícita, a ilegalidade manifesta. Assim, por
exemplo, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que

PROCESSO CIVIL - EMBARGOS DE DECLARAÇÃO - CABIMENTO -


ART. 535 CPC. EMBARGOS PROTELATÓRIOS - MULTA (CPC, ART.
538).
- Não pode ser conhecido recurso que sob o rótulo de embargos
declaratórios, pretende substituir a decisão recorrida por outra. Se não há
contradição ou omissão a suprir, os embargos declaratórios merecem
rejeição.
- O abuso do direito ao recurso, contribuindo para inviabilizar, pelo excesso
de trabalho, o Superior Tribunal de Justiça, presta um desserviço ao ideal de
Justiça rápida e segura.
- Se os embargos declaratórios envolvem intuito protelatório, aplica-se a
multa cominada pelo Art. 538, Parágrafo Único, do CPC.272

Na ementa acima, como se vê, tratou-se da apresentação de


Embargos Declaratórios de cunho procrastinatório, situação que já se encontra
expressamente prevista no Código de Processo Civil, nos artigos 535 e
seguintes, tanto em relação aos contornos precisos de cabimento do recurso
em questão (art. 535) quanto em relação às conseqüências jurídicas quando
tais contornos são ignorados, com o cabimento da multa respectiva (CPC, art.

272
EDcl no AgRg no REsp 164648/MG; Embargos de Declaração no Agravo Regimental no Recurso
Especial 1998/0011629-0, 1ª T. Ac. unânime. Relator Min. Humberto Gomes de Barros, j. 03/08/1999, p. DJ
13.09.1999, p. 42.
270

538, parágrafo único). Logo, parece-nos que se mostra completamente


desnecessário o recurso à figura do abuso do direito. Por outro lado, somos
forçados a reconhecer que, no caso, não se vislumbra qualquer conseqüência
jurídica em decorrência de se ter feito a referência à figura do abuso, em vez
de simplesmente ser apontada a infração à norma legal. Tratou-se, portanto, de
simples reforço lingüístico.
Antes de prosseguirmos, importante observação se mostra
necessária. É que, como acabamos de ver, os limites dos direitos subjetivos,
cuja transposição implica na figura do abuso do direito, estão sempre ligados
às finalidades desse mesmo direito, ou seja, à “causa” em virtude da qual esse
direito foi atribuído ao seu titular. Por essa razão, ensina Josserand 273 que
existem alguns poucos direitos que não são motivados, ou seja, não possuem
uma causa específica (“não causais”), pois em si mesmos contêm sua própria
finalidade, e por isso escapam à disciplina do abuso do direito, tendo caráter
absoluto, e por isso seus titulares podem exercê-los para todos os fins, para
qualquer que seja o objetivo, ainda que malicioso, sem riscos de serem
responsabilizados por isso.
Como exemplos de tais direitos que seriam absolutos, aponta o
respeitado jurista francês, como exemplos, o direito dos ascendentes de não
autorizarem o casamento do seu descendente menor, o direito do ascendente
de deserdar os seus filhos, nos casos legais, o do co-proprietário, de requerer a
partilha dos bens indivisos, etc.
Cometeremos, neste ponto, a enorme imprudência de discordar de
tão ilustre e conhecido autor, pois nos parece que mesmo tais direitos são
passíveis de incidência na figura do abuso, mesmo porque não existe, no nosso
entendimento, direito que possa ser livremente usado com objetivo malicioso.
273
Louis Josserand, Cours de Droit Civil Positif Français, v. I, p. 120, n° 164.
271

É verdade, desde logo se adianta que com isso concordamos, que seus titulares
não poderão ser civilmente responsabilizados, em caso de exercício
inadequado, o que por si só não significa que não possa haver abuso, mas tão-
somente quer dizer que, nesses casos, o combate ao abuso poderá ser feito
através do desfazimento judicial da situação criada em virtude do exercício
abusivo.
Assim, por exemplo, suponha-se que os pais decidiram não
autorizar o casamento do seu descendente menor apenas com o intuito de não
vê-lo emancipar-se, passando a partir daí a gerir o seu próprio patrimônio.
Ora, é evidente que o filho menor, em tal caso, poderá sempre recorrer ao juiz
para obter o suprimento judicial à autorização negada, de modo a contornar
essa negativa despropositada dos seus próprios pais, como aliás se encontra
expresso no artigo 1.519, do nosso Código Civil, que explicitamente se refere
à negativa injusta da autorização. Da mesma forma, se um dos condôminos
requer a súbita divisão do bem comum, apenas com a finalidade de atrapalhar
o negócio que estava sendo entabulado por outro condômino, em relação à sua
quota ideal, causando-lhe grave prejuízo, parece-nos que este último poderá
requerer ao juiz que a indivisão seja mantida por mais algum tempo (desde
que seja breve), até a conclusão do negócio em curso.
Prossigamos.
A expressão “abuso do direito” foi cunhada pelo jurista belga
Laurent274, em 1883, após estudar uma série de decisões das cortes francesas,
ainda no século XIX, nas quais era reconhecido o direito do réu, mas apesar
disso o mesmo era condenado, por ter exercido esse direito de um modo tido
por irregular. Assim, por exemplo, um determinado proprietário resolveu

274
Cf. Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand
et japonais, p. 427, n° 1489.
272

construir, em seu terreno, uma falsa chaminé, que para nada lhe serviria, mas
tão-somente tinha a finalidade de vedar a claridade em uma janela do imóvel
vizinho. Entendeu o tribunal que construir era um direito do proprietário, mas
fazê-lo naquelas condições equivalia a exercer de modo irregular esse mesmo
direito.
A figura do abuso do direito, como hoje o conhecemos, não
encontra suas raízes históricas no direito romano. É que os romanos, com o
seu senso eminentemente prático, não buscavam teorizações genéricas, com
conceitos que se mostrassem aplicáveis a todos os temas jurídicos. Muito pelo
contrário, o que se via no direito romano era a adoção de soluções jurídicas
específicas para cada tipo de situação, ou seja, institutos localizados, válidos
apenas para os casos que apresentassem em comum uma determinada
característica.
É possível encontrarmos semelhanças do abuso do direito com
alguns institutos isolados do direito romano, tais como a aemulatio, a exceptio
doli e as relações de vizinhança 275, mas nenhum desses, repete-se, foi marcado
por uma generalização que lhes permitisse atingir todo o campo das relações
sociais reguladas pelo direito, vale dizer, nenhum desses institutos poderia ser
considerado como sendo um limite genérico, válido para todos os direitos
subjetivos.
A aemulatio era o exercício de um direito que não trazia qualquer
utilidade para o seu titular, e apenas era impulsionado pela intenção de causar
prejuízo a outrem, ou seja, era de cunho marcadamente subjetivo, centrando-
se no aspecto psicológico da intenção do agente 276. Os atos de emulação

275
Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, p. 673.
276
Não se pode deixar de observar que há autores que vêem nessa “intenção de prejudicar” (animus
nocendi) o critério mais antigo para a identificação do abuso do direito, sendo evocado pela doutrina e pela
jurisprudência dos mais diversos países. Nesse sentido, por exemplo, é a opinião de Béatrice Jaluzot, La
273

tiveram grande repercussão nas relações de vizinhança, constituindo-se em


importante limitação ao direito de propriedade, não sendo despiciendo
recordar que o nosso Código Civil, ainda hoje, ao tratar do direito de
propriedade, de modo expresso proibiu os atos de emulação 277, como se vê no
artigo 1.228, § 2º, que se refere aos atos que não tragam ao proprietário
qualquer comodidade ou utilidade e que sejam animados pela intenção de
prejudicar outrem278.
A exceptio doli, no direito romano, correspondia às atuais
exceções substanciais, ou seja, uma defesa indireta alegada pelo réu, na qual
não se negava o mérito do direito invocado pelo autor, mas apontavam-se
razões de outra ordem para obstaculizá-lo. Essas razões tinham um conteúdo
substantivo, isto é, diziam respeito à própria substância do comportamento do
autor, que havia agido de modo doloso. Essa figura, que ainda hoje encontra
grande aplicação prática, foi absorvida pela figura mais ampla do abuso do
direito, e por isso não costuma ser mencionada expressamente, nas diversas
decisões dos tribunais onde se pode identificá-la.

bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 413, n° 1447. O
que nos parece oportuno esclarecer é que os contornos do abuso do direito, como hoje é conhecido, são
completamente distintos da figura da aemulatio, e foi por isso que mencionamos, acima, que as origens da
figura não se encontram no direito romano, precisamente por serem diferentes as características dos institutos
que eram encontrados neste. E tanto é assim que a própria Béatrice Jaluzot reconhece, na mesma obra, pouco
mais à frente, que a intenção de prejudicar é um critério que se mostrou insuficiente, e que hoje é rejeitado
pela maior parte dos sistemas jurídicos (p. 414, n° 1450).
277
Na realidade, o Diploma Civil apenas repete posição que ainda se mostra bastante influente entre
nós, uma vez que, como bem aponta Cristiano de Sousa Zanetti, Responsabilidade pela ruptura das
negociações no direito civil brasileiro, p. 108, “o recurso à boa-fé para fundamentar o abuso do direito não
pode ser encontrado na tradição brasileira que, muito apegada ao direito francês, sempre procurou
caracterizar o instituto com arrimo na teoria dos atos emulativos...”.
278
Embora, como apontamos acima, existam nítidas diferenças entre a aemulatio romana e a figura
atual do abuso do direito, não se pode deixar de observar que a opinião dos juristas medievais, sobre a
ilicitude dos atos de emulação – notadamente no direito de vizinhança – se constituiu em precedente imediato
e importante da teoria do abuso do direito, pois trouxe a lume a tese da necessidade de limitação do exercício
dos direitos subjetivos conforme os limites decorrentes de sua própria finalidade social e econômica, sendo,
pois, o primeiro passo para a superação da concepção absolutista do direito subjetivo. Cf. Francisco Amaral,
Os Atos Ilícitos. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e Martins Filho, Ives Gandra da
Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof. Miguel Reale, pp. 160-161.
274

Assim, por exemplo, figure-se a hipótese na qual uma empresa


construtora, depois de ter oferecido ao público em geral a aquisição das
unidades autônomas de um condomínio edilício recém-construído, e vindo a
celebrar diversos compromissos de compra e venda em relação a tais
unidades, contrai uma dívida e oferece em garantia hipotecária o terreno onde
foi erguido o condomínio e as construções nele feitas.
O credor, embora tendo conhecimento de que vários dos
promitentes compradores já estão ocupando as unidades autônomas,
comparece ao registro imobiliário e verifica que não foram registrados os
compromissos de venda e compra, e por essa razão aceita a garantia
hipotecária, vindo a registrar sua hipoteca no Cartório do Registro Imobiliário.
Essa situação acima descrita, que é de ocorrência prática
corriqueira, atribui ao credor hipotecário, em caso de não pagamento da
dívida, a possibilidade de excutir o imóvel hipotecado, inclusive em relação
àquelas unidades autônomas que já estão ocupadas pelos promitentes
compradores cujos compromissos não foram registrados?
Um exame formal da situação, tão-somente à letra do texto legal,
levaria à resposta positiva, pois a hipoteca, sendo direito real, adere ao imóvel
e atribui ao seu titular, o credor, a preferência sobre qualquer outro direito
subjetivo (exceto os direitos reais registrados há mais tempo, o que no caso
não existe), permitindo-lhe, pois, levar o imóvel à venda e ter preferência, no
pagamento, sobre todos os demais credores, como se vê no artigo 1.422, do
Código Civil.
No entanto, nessa mesma situação acima hipotetizada, são
inúmeras as decisões do Superior Tribunal de Justiça nas quais se reconheceu
que o mutuante, sendo notório que várias das unidades autônomas já haviam
sido negociadas com os promitentes compradores (e estavam sendo por eles
275

ocupadas) antes mesmo da constituição da hipoteca, não poderia fazer com


que seu direito de credor hipotecário viesse a prevalecer sobre os direitos dos
possuidores dos imóveis, promitentes compradores, ainda que tais direitos não
fossem reais, mas meramente pessoais, eis que não havia sido feito o registro.
Sobre o tema, em relação à posição do STJ, já escrevemos, alhures, que

“ E também decidiu a Corte Superior, na mesma linha indicada no


parágrafo anterior, que quando é celebrado o contrato de financiamento da
construtora, é a instituição financeira que deve buscar se inteirar das
condições do imóvel, verificando se os mesmos já foram alienados ao
público (pois a isso de destinam) e se o preço já foi parcial ou totalmente
pago pelos adquirentes, que são terceiros de boa-fé 279 . Não fazendo tal
verificação, terá procedido a instituição financeira de modo negligente, não
podendo pois argüir que os compromissos de compra e venda não estavam
registrados 280 ”. 281

É possível identificar em tais decisões, como se vê, a exceptio


doli, pois o credor, sabendo (ou devendo saber) desde logo que as unidades
autônomas já haviam sido negociadas com terceiros, que por elas já estavam
pagando, agiu com dolo ao recebê-las como parte de sua garantia, que apenas
se poderia estender às unidades que ainda não houvessem sido prometidas aos
adquirentes. Logo, a defesa dos promitentes compradores não poderá negar os
direitos do credor hipotecário, que estão expressamente previstos na lei, mas
deverá impor-lhes o obstáculo do comportamento doloso, a exceptio doli.
No entanto, dentro do aspecto histórico que no momento nos
interessa, o que se verifica é que a exceptio doli, embora possa facilmente
receber uma generalização que lhe confira aplicabilidade em áreas diversas do

279
STJ, 4ª Turma, Ac. unânime, REsp 287774/DF, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, j. 15.02.01,
DJ 02.04.01, p. 302.
280
STJ, 4ª Turma, Ac. unânime, REsp 329968/DF, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, j.
09.10.01, DJ 04.02.02, p. 394.
281
Aldemiro Rezende Dantas Júnior, Comentários ao Código Civil, v. XIII (Coord. Arruda Alvim e
Thereza Alvim), p. 521, comentário ao artigo 1.473.
276

direito, entre os romanos era usada em situações específicas, de modo


casuístico, e portanto não pode ser apontada como sendo a origem do abuso do
direito, que se constitui limitação genérica aos direitos subjetivos. De qualquer
modo, em relação ao instituto da exceptio doli, dele falaremos em maiores
detalhes, adiante, para que possa ser cotejado com a figura do venire contra
factum proprium.
E quanto às relações de vizinhança, finalmente, é certo que aqui
se tem um grande foco de concentração de situações onde o comportamento
de um dos vizinhos influirá negativamente na órbita dos outros, o que a cada
dia mais se agrava pelo fato de que as pessoas moram cada vez mais
concentradas, cada vez mais próximas umas das outras, face à grande
proliferação dos condomínios em edificações. Trata-se de campo fértil,
portanto, para o surgimento do abuso do direito.
No entanto, não se pode deixar de observar que as relações de
vizinhança, ao contrário do que ocorre com a aemulatio e com a exceptio doli,
não se constituem em um instituto jurídico propriamente dito, mas tão-
somente em um âmbito de convívio social, para o qual o ordenamento jurídico
destinou inúmeras regras, como podemos ver nos artigos 1.277 a 1.313, do
Código Civil, lembrando ainda que diversas outras normas expressas também
interferem nessas relações, impondo-lhes limites, como é o caso, por exemplo,
dos “regulamentos administrativos”, expressamente indicados pelo artigo
1.299 do mesmo Código.
Nessas condições, cabe recordar o que já dissemos acima, no
sentido de que a violação dos limites impostos pela lei não deve ser
enquadrada como sendo caso de abuso do direito, mas sim de manifesta
ilegalidade. Logo, no campo das relações de vizinhança, pelo fato de
existirem, em grande quantidade, essas normas que se inserem na limitação
277

genética dos direitos subjetivos dos vizinhos, torna-se restrito o cabimento do


abuso do direito, uma vez que este não se confunde com a violação das
referidas normas, embora sua ocorrência seja possível, em relação às situações
de vizinhança para as quais não haja sido feita a expressa limitação pela lei.
De todo modo, mais uma vez em relação ao aspecto histórico, é
certo que no direito romano as relações de vizinhança traziam uma série de
limitações aos comportamentos dos vizinhos – como até hoje o fazem –, mas
que apenas o faziam para aquelas hipóteses específicas e casuísticas, não
tendo qualquer caráter de generalidade de aplicação. Também não se encontra
aí, portanto, a origem histórica do abuso do direito. É importante, contudo,
continuarmos nossa investigação, inclusive para que se possa aferir se a figura
do abuso do direito que se encontra no artigo 187, do nosso Código Civil, é a
mesma que foi assim batizada por Laurent, no estudo da jurisprudência
francesa.
O Código Civil francês não trouxe qualquer dispositivo legal que
possa ser entendido como a positivação, em França, do abuso do direito. É
certo que o referido Código trouxe inúmeras limitações aos direitos subjetivos,
mas já vimos que tais limitações não se confundem com o abuso do direito,
que se refere a limites de outra ordem. Em outras palavras, é evidente que o
Código de Napoleão, ao criar direitos subjetivos, o fez prevendo limites, como
sói ocorrer com todos os direitos subjetivos, que são sempre limitados, mas
sendo que tais limites, que se integram à gênese de cada direito, e por isso são
específicos para o mesmo, não são idênticos aos do abuso do direito, que são
genéricos, e com eles não se confundem.
O abuso do direito, portanto, surge como construção dos próprios
tribunais franceses, que não puderam se valer de textos legais, eis que estes
simplesmente não existiam, e nem da recepção do direito romano, que não
278

apresentava qualquer instituto a partir do qual tivesse havido a generalização


das características do instituto, como vimos. Surge, contudo, sem que
houvesse uma fundamentação muito clara, ora esteando-se na necessidade de
respeitar os direitos alheios, ora na desconsideração da finalidade prevista pela
lei, na criação do direito, e ora havendo mesmo quem negasse a possibilidade
de existência do abuso do direito, sob o argumento que pode ser assim
sintetizado: se é abuso, está fora do direito, e se é direito, não é abuso.
Veio de Planiol282 a negativa mais contundente, apontando o
mestre que as doutrinas que insistiam em afirmar que o uso de um direito
poderia se transformar em um abuso e constituir uma falta, estavam
inteiramente esteadas em uma linguagem insuficientemente estudada, pois a
fórmula “uso abusivo dos direitos” seria uma logomaquia, porque quando se
usa de um direito, o ato é necessariamente lícito; e quando tal ato é ilícito, é
porque já foi ultrapassado o campo do direito, e o titular agiu sem direito,
naquilo que a Lei Aquilia chamava de injúria.
Josserand 283, contudo, no nosso entendimento com ampla
vantagem, respondeu a essas críticas de Planiol, apontando que a contradição
e a logomaquia por ele apontadas não existem, e para afastá-las é suficiente
que se recorde que a palavra “direito” possui dois sentidos completamente

282
Marcel Planiol, Traité Élémentaire de Droit Civil, t. II, p. 282, n° 871. “Les jurisconsultes et les
législateurs modernes ont au contrairie une tendance à considérer l’usage d’un droit comme pouvant devenir
un abus, et par suite constituer une faute. Ils parlent volontiers de l’usage abusif des droits... Cette nouvelle
doctrine repose tout entière sur un language innsuffisamment étudié; sa formule ‘usage abusif des droits’est
une logomachie, car si j’use de mon droit, mon acte est licite; et quand il est illicite, c’est que je dépasse mon
droit et que j’agis sans droit, ‘injuria’, comme disait la loi Aquilia ”.
283
Louis Josserand, Cours de Droit Civil Positif Français, v. II, p. 231, n° 436. “Cependant, cette
contradiction et cette logomachie n’existent point; pour les faire se dissiper il suffit de se rappeler que le mot
‘droit’ a deux sens très différents; tantôt il designe l’ensemble de la règle sociale, la ‘juricité’, et tantôt il
s’applique à un droit subjective, isolément envisagé. C’est dans cette seconde acception seulment, qu’il peut
être question d’abus. Il y a droit et droit; l’acte abusif est celui qui, accompli en vertu d’un droit subjectif
dont les limites ont été respectées, est cependant contrairie au droit envisagé dans sons ensemble; on peut
avoir pour soi tel droit déterminé et avoir cependant contre soi le droit tout entier; c’est à cette situation que
correspondent l’adage summum jus summa injuria et la théorie de l’abus.
279

diferentes, tanto servindo para designar o conjunto de regras sociais, quanto


para indicar um determinado direito subjetivo, isoladamente considerado. E é
só nessa segunda acepção que se pode questionar o abuso. O ato abusivo seria
aquele ligado a um direito subjetivo cujos limites internos foram respeitados,
mas que se mostra contrário ao direito enquanto conjunto de regras. O titular
pode ter por si o direito determinado, e contra si todo o conjunto em que
consiste o direito.
Essas observações servem para destacar que, no seu nascimento,
nos tribunais franceses, o abuso do direito não era uma conseqüência de uma
conduta exigida pela boa-fé, ou pelo menos não havia qualquer associação
feita pela doutrina entre o comportamento abusivo e a boa-fé.
Da França, a figura do abuso do direito foi recebida na Alemanha,
e inclusive incluída expressamente no Código Civil alemão, ao contrário do
que ocorreu no país de onde se originou. No entanto, a inclusão no BGB foi
feita em uma regra tímida, o que se explica pelo fato de que esse Código,
sendo elaborado depois que os tribunais franceses já haviam se defrontado
com diversas situações que levaram ao surgimento da figura do abuso do
direito, aproveitou para inserir várias limitações aos direitos subjetivos na
própria norma que os criava, notadamente nas relações de vizinhança, o que
tornava menos necessário o recurso à figura do abuso do direito284.

284
Mas há outras diferenças significativas no modo como o abuso do direito é visto na França e na
Alemanha. Assim, por exemplo, observe-se que os direitos contratuais podem ser provenientes diretamente
das vontades das partes contratantes, ou seja, sua fonte é a autonomia privada, ou podem ser provenientes da
lei, apresentando-se como disposições previstas pelo legislador para aquele tipo específico de contrato. Em
relação à primeira categoria de direitos, ou seja, aqueles que provêm da vontade das partes, não há qualquer
divergência quanto à sua limitação pela figura do abuso do direito. No entanto, em relação à segunda, vale
dizer, aqueles que têm origem diretamente na lei, enquanto a jurisprudência alemã não vê qualquer obstáculo
à sua limitação em virtude do abuso do direito, os juízes franceses entendem que essa limitação não é
possível, pois os direitos cuja origem se encontra diretamente na lei não estariam sujeitos aos limites
decorrentes da figura do abuso do direito. Cf. Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude
comparative de droit français, allemand et japonais, p. 410, n° 1434. Veja-se que essa questão apresenta
grande interesse prático, o que pode ser facilmente demonstrado com o cotejo de dois dispositivos do Código
Civil brasileiro: a) o artigo 575, do referido Código, prevê que o locatário, se não restituir a coisa ao término
280

Dessa forma, a figura do abuso do direito chegou ao Código Civil


alemão no artigo 226, segundo o qual “o exercício de um direito é
inadmissível se ele tiver por fim, somente, causar um dano a outrem” 285. Tem-
se aí, como se vê, uma norma de cunho objetivo, pois não há qualquer
referência à intenção ou à culpa do titular do direito subjetivo, mas sim à
característica do direito em si mesmo, que foi exercido com o objetivo de
causar dano a outrem. Mas a maior vantagem foi o fato de tal dispositivo ter
sido incluído na Parte Geral do Código Civil, o que o desvinculou das relações
de vizinhança ou de qualquer outro ramo específico do direito, permitindo sua
invocação, portanto, para todo o direito privado.

do contrato, apesar de notificado pelo locador, pagará o aluguel que este vier a arbitrar, mas o parágrafo único
esclarece que, se esse valor arbitrado para o aluguel for manifestamente excessivo, o juiz poderá reduzi-lo,
embora sem perder de vista o seu caráter de penalidade; b) no artigo 582, por sua vez, referente ao contrato de
comodato, prevê o Código Civil que o comodatário constituído em mora pagará, até restituir o bem, o aluguel
que for arbitrado pelo comodante, sem que seja feita qualquer ressalva quanto ao valor arbitrado de modo
excessivo. A questão que se coloca, portanto, é a de se saber se o comodante, ao exercer seu direito,
diretamente decorrente da lei, de fixar o valor do aluguel, estará limitado pela figura do abuso do direito ou
se, ao contrário, poderá exercê-lo livremente, sem qualquer restrição, uma vez que quando o legislador quis
impor limites, o fez de modo claro, como se vê no artigo 575, referente ao contrato de locação. Segundo a
visão da jurisprudência francesa, em se tratando de direito cuja fonte direta é a lei, não se aplica a figura do
abuso do direito; conforme a jurisprudência alemã, contudo, o controle judicial se mostra cabível, podendo o
juiz reduzir o valor arbitrado de modo manifestamente excessivo, por se caracterizar a figura do abuso do
direito. Entre nós, as opiniões doutrinárias são divididas. Para Caio Mário da Silva Pereira, por exemplo, o
aluguel deverá ser pago na quantia fixada pelo comodante, “mesmo que em cifra exageradamente elevada,
pois não se trata de retribuição correlativa da utilidade, mas de uma pena a que se sujeita o contratante
moroso” (Instituições de Direito Civil, v. III, p. 238). Na lição de Paulo Nader, contudo, embora a lei não
sinalize qualquer parâmetro para o aluguel, este “deverá corresponder ao valor da época e do lugar, não se
justificando uma cifra elevada” (Curso de Direito Civil – Contratos, p. 347). De nossa parte, pensamos que
ambos estão equivocados. Em relação à opinião de Caio Mário, o fato de não se tratar de retribuição, mas sim
de uma penalidade, claramente não se mostra suficiente para que se entenda que o comodante pode fixar
livremente o valor, ainda que em quantia exageradamente elevada, e tanto assim que o Código Civil, alguns
artigos antes (art. 575, parágrafo único), refere -se à redução do valor manifestamente excessivo, mas sem
perder de vista que se trata de uma penalidade, ou seja, aponta de modo claro para a conciliação entre as duas
figuras, a da penalidade e a da vedação ao abuso do direito. E quanto à lição de Paulo Nader, basta que se
observe que, se for fixado o valor correspondente ao aluguel da coisa, naquela época e lugar, estará
simplesmente sendo arbitrada uma retribuição, transformando-se de modo forçado o comodato em aluguel e
perdendo-se de vista o caráter de penalidade. Pensamos, portanto, que Caio Mário está equivocado por
admitir a fixação de valor exageradamente elevado, enquanto Paulo Nader está equivocado por admitir a
fixação de valor muito baixo, insuficiente para funcionar como retribuição e penalidade. Assim, o que nos
parece é que o valor deverá ser sempre moderadamente (e não exageradamente) superior ao do que
corresponderia ao aluguel da coisa, ou seja, deverá ser um valor tal que, simultaneamente: a) implique em
uma retribuição pelo uso da coisa; b) imponha ao comodatário moroso uma penalidade; c) não seja tão
elevado ao ponto de caracterizar o abuso do direito.
285
Tradução de Souza Diniz, Código Civil Alemão.
281

No entanto, a regra trazida pelo BGB apresentou um grave e


evidente inconveniente, que foi o de fazer menção ao exercício do direito cujo
fim somente tem o objetivo de infringir dano a outrem, e por isso não satisfez
às necessidades da vida social, pois é certo que, quase sempre, é possível
encontrar mais de um objetivo possível para o mesmo exercício de um direito,
e se tal ocorrer, a dicção expressa do Código alemão impede que o
comportamento possa ser caracterizado como sendo abusivo.
Caracterizada tal insuficiência, começaram os alemães a buscar
fundamentos mais adequados para a caracterização do abuso do direito, e em
um primeiro momento buscaram socorro no artigo 826, do próprio Código
Civil, segundo o qual “quem, de um modo atentatório contra os bons
costumes, causar, dolosamente um dano a um outro, estará obrigado, para
com o outro, à indenização do dano” 286. A idéia, declaradamente, era a de
complementar as deficiências do artigo 226 287. Passa-se, então, a considerar
como elemento central do abuso do direito a figura dos bons costumes.
Contornou-se, assim, o problema do “escopo único”, que tanto
dificultou a utilização do artigo 226. No entanto, outros três problemas
surgiram, de igual ou maior gravidade. Em primeiro lugar, o artigo 826 exigia
que tivesse havido atuação dolosa, o que impedia que também fossem
considerados abusivos atos onde houvesse negligência ou imprudência, ou nos
quais não houvesse meios de demonstrar o dolo do agente.
Em segundo lugar, a solução legal era dirigida para a indenização
do dano, e não para a cessação do abuso, sendo certo que, muitas vezes,
interessa muito mais à vítima que o abuso termine do que a indenização do
prejuízo. Ou seja, a solução mais adequada, em grande parte dos casos, seria a

286
Tradução de Souza Diniz, Código Civil Alemão.
287
Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, p. 693.
282

de estipular um comportamento a ser seguido pelo sujeito, mas a solução do


texto legal sempre apontava para a solução das perdas e danos, caso a conduta
adequada não tivesse sido adotada.
Por último, havia a imprecisão conceitual sobre o que se deveria
entender por “bons costumes”, uma vez que não estava preenchido o conteúdo
do mesmo pelo direito, mostrando-se por isso indispensável o recurso a
elementos metajurídicos, providência essa que não era – e não é – bem vista
pelos juristas alemães, sempre notabilizados pelo pragmatismo.
Assim, também o artigo 826, embora tenha servido de base para a
solução de inúmeros casos concretos, veio a se mostrar insuficiente para a
largueza da vida real, pois diversas hipóteses, nas quais havia comportamento
claramente inadmissível, ficaram de fora do seu alcance, em virtude dos
problemas acima relatados. Continuou a busca, portanto, por uma outra norma
legal que se mostrasse mais adequada, e que veio a ser encontrada no artigo
242, do BGB, segundo o qual “o devedor está obrigado a executar a
prestação como a boa-fé, em atenção aos usos e costumes, o exige”288.
O artigo 242, portanto, apresentava algumas vantagens bastante
óbvias, podendo-se apontar, em primeiro lugar, o fato de ser esteado em uma
regra aberta, capaz de abarcar uma grande generalidade de situações, em vez
de ficar limitada a uma situação específica. Além disso, não traçava
considerações subjetivas em relação ao agente, não se preocupando em buscar
se o comportamento do mesmo havia sido doloso ou culposo ou qual teria sido
a intenção do agente ou o escopo do ato. Por último, a solução alvitrada pelo
texto legal passava pela imposição, ao sujeito, de uma conduta adequada para
o caso concreto, conforme os ditames da boa-fé e os costumes referentes
àquele tipo de negócio.
288
Tradução de Souza Diniz, Código Civil Alemão.
283

E assim foi que, dos bons costumes, passou-se a considerar a boa-


fé como o elemento central para a determinação dos limites que, uma vez
ultrapassados, estaria caracterizado o abuso do direito. Béatrice Jaluzot289
resume essa evolução da seguinte forma:

“Progressivamente, a jurisprudência alemã veio a vincular a doutrina do


abuso do direito à boa-fé, mais exatamente ao artigo 242 do BGB... em
concorrência com a boa-fé, era a noção de violação dos bons costumes, do
artigo 138 do BGB, que também oferecia um fundamento adequado.
Contudo, a questão foi delineada pela jurisprudência do Tribunal do Império
em uma série de decisões tomadas durante a segunda guerra mundial, e a
partir daí a Corte federal se apoiou na boa- fé do artigo 242. As razões dessa
vinculação foram que só a noção de boa-fé era capaz de abranger todos os
casos nos quais a jurisprudência havia aplicado o abuso do direito: enquanto
não podia ser aplicado o artigo 226, em razão de sua condição muito estreita,
a intenção de prejudicar, e que o artigo 826 não abrangia todos os casos,
particularmente aqueles de abuso do direito simplesmente objetivo e sem
culpa, e também porque nem todo abuso do direito é uma violação dos bons
costumes, o artigo 242 foi considerado como o único fundamento jurídico
para a interdição do abuso do direito, na medida em que limita o exercício
dos direitos” (tradução livre).

E é certo que essa evolução viria a influenciar, posteriormente, a


recepção, pelo Código Civil brasileiro (e vários outros, pelo mundo afora), das
idéias alemães sobre o abuso do direito, ainda que, curiosamente, nada conste
sobre as mesmas no Código Civil alemão (pelo menos, não com a clareza dos

289
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 432, n°s 1503 e 1504. “Progressivement la jurisprudence allemande en est venue à rattacher la
doctrine de l’abus de droit à la bonne foi, plus exactment au § 242 BGB... En concurrence avec la bonne foi
venait la notion de contravention aux bonnes moeurs du § 138 BGB qui offrait elle aussi um fondement
adéquat. Cependant, la question a été tranchée par la jurisprudence du Tribunal d’Empire dans une série de
décisions rendues durant la seconde guerre mondiale et la Cour fédérale s’appuie depuis lors sur la bonne foi
et le § 242. Les raisons de ce rattachement sont que seule la notion de bonne foi était à même d’embrasser
tous les cas dans lesquels la jurisprudence avait appliqué l’abus de droit: alors qu’il ne pouvait être question
du § 226 en raison de sa condition trop étroite, l’intention de nuire, et que le § 826 n’embrasse pas tous les
cas, en particulier ceux d’un abus de droit simplement objectif et sans faute, et aussi parce que tout abus de
droit n’est pas une violation des bonnes moeurs, le § 242 a été considere comme seul fondement juridique
pour l’interdiction de l’abus de droit, en t ant que limite à l’exercice des droits”.
284

outros Códigos Civis, como é o caso do art. 187, do Código brasileiro).


Vejamos como se deu essa recepção.
Cabe observar, de início, que o nosso Código Civil anterior, de
1916, não se referia expressamente ao abuso do direito, apenas trazendo
disposição, no artigo 160, I, segundo a qual não se constituía em ato ilícito
aquele que se apresentava como o exercício regular de um direito. A partir
dessa disposição legal, extraiu a nossa doutrina 290 a conclusão de que,
contrario sensu, o exercício irregular desse mesmo direito, que seria o abuso
do direito, constituiria ato ilícito.
Adotou o nosso Código Civil antigo, portanto, a mesma falta de
clareza do Código Civil suíço, cujo artigo 2º, segunda parte, dispõe que “O
abuso evidente de um direito não encontra proteção legal” 291. Com efeito,
facilmente se percebe que em ambos os códigos faltou a apresentação de
qualquer parâmetro, que pudesse permitir ao juiz, no caso concreto, a aferição
segura sobre se teria ou não havido o abuso, uma vez que não houve sequer
uma pista sobre quais seriam as características para a identificação do mesmo.
O Código Civil pátrio se limitou a mencionar o exercício irregular, enquanto
o suíço apenas se referiu à figura do abuso do direito, ambos se mostrando
incompletos, portanto.
Necessário, neste ponto, um deslocamento até a Grécia, País onde
vigorou, em todo o século XIX e nos primeiros quarenta anos do século XX, o
Corpus Iuris Civilis, recebido dos romanos. Ocorre que a doutrina alemã,
como já vimos linhas atrás, foi dominada, no século XIX, pela chamada
Escola Histórica, que havia tomado como ponto de partida, para o estudo do
Direito Civil o direito romano, mas cuidando de mesclá-lo com os valores

290
Nesse sentido, por todos, veja-se a lapidar obra de Pedro Baptista Martins, O Abuso do Direito e o
Ato Ilícito, p. 92.
291
Tradução de Souza Diniz, Código Civil suíço.
285

culturais atualizados do povo alemão. Por essa razão, a doutrina alemã teve
enorme influência no Direito Civil grego, uma vez que serviu de base para que
os gregos absorvessem o direito romano adaptado para os tempos atuais.
Em 1946, finalmente, os gregos adotaram o seu próprio Código
Civil, sendo evidente que a elaboração do mesmo foi fortemente influenciada
pela doutrina originária da Alemanha, que já havia sido recebida pela forma
descrita no parágrafo anterior, e por isso o Código Civil alemão foi o ponto de
referência do Código Civil grego. Só que, na década de 40, em pleno século
XX, a doutrina alemã, como vimos retro, já havia interpretado e modificado o
conteúdo do Código Civil alemão, e por isso os gregos se utilizaram não
apenas do texto original do BGB, mas o fizeram considerando as
interpretações doutrinárias e jurisprudenciais, referentes às dificuldades que
haviam surgido na prática e que a doutrina e a jurisprudência já haviam
superado.
Ora, vimos há pouco que os alemães, em relação à figura do
abuso do direito, haviam passado, sucessivamente, do ato que só pudesse ter o
objetivo de causar dano a outrem (art. 226) para os bons costumes (art. 826) e
a boa-fé (art. 242), e nesta última fase se encontrava o direito alemão
(impondo os limites do abuso do direito com base nos bons costumes e na
boa-fé) quando foi elaborado o Código grego, que ainda buscou, no projeto do
Código Civil italiano, a referência à finalidade social e econômica do
direito292. Desse modo, o artigo 281, do Código Civil grego, estabeleceu que
“o exercício é proibido quando exceda manifestamente os limites impostos
pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo escopo social ou econômico do
direito”.

292
Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, p. 715.
286

Em 1966 entrou em vigor a segunda codificação civil portuguesa,


que recebeu, em seu artigo 334, o artigo 281 do Código Civil grego. Com
efeito, lê-se no artigo 334, do Código Civil luso, que “é ilegítimo o exercício
de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos
pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse
direito”, recebendo de modo muito claro e nítido a influência do mencionado
dispositivo do Código Civil grego.
O artigo 187, do Código Civil brasileiro, por sua vez, foi
claramente inspirado no artigo 334 do Código Civil português, inclusive com
a classificação do ato abusivo como ato ilícito (ilegítimo). Em doutrina,
convém que se alerte, discute-se se o abuso do direito é ou não ato ilícito. Para
nós, no entanto, a discussão se mostra estéril, pois cabe à lei definir quais são
os limites da licitude, e a norma legal foi expressa em mencionar que o abuso
do direito ultrapassa tais limites, devendo pois ser considerado como ato
ilícito. De ato ilícito, então, se trata, e passaremos ao largo da referida
polêmica, por falta de interesse para o presente trabalho.
Também o Código Civil argentino, adotando a mesma linha de
conceituação, aponta em seu artigo 1.071 que “la ley no ampara el ejercicio
abusivo de los derechos. Se considerará tal al que contraríe los fines que
aquélla tuvo em mira al reconocerlos o al que exceda los límites impuestos
por la buena fe, la moral y las buenas costumbres”.
O que se verifica é que, de modo concreto, a identificação do
abuso do direito, no nosso Código Civil e no argentino, adotou o critério da
função social do direito, ou seja, estará caracterizado o abuso do direito toda
vez que um determinado direito tiver sido desviado de sua função social, uma
vez que os direitos subjetivos existem essencialmente, dentro de um interesse
social, e não apenas dentro do interesse de seus titulares, e por essa razão o
287

seu exercício deve ser limitado pelo interesse social a que devem servir 293. É
interessante notar que muda por completo o enfoque dos direitos subjetivos,
que deixam de ser vistos sob o prisma de sua estrutura e passam a ser
considerados sob a ótica de sua função, vale dizer, tais direitos são
funcionalizados aos valores eleitos pelo ordenamento294.
Na verdade, o que se pode constatar é que, uma vez revelada pela
doutrina alemã a íntima ligação entre a boa-fé e a figura do abuso do direito,
os Códigos Civis em geral se valeram da primeira para poder apresentar um
conceito para o segundo, ou seja, para caracterizar o abuso do direito em
função da boa-fé, sendo que aquele começa a partir do ponto em que cessam
as condutas admissíveis, pois estas se encontram no domínio da boa-fé, e além
delas já se adentra pelo campo do abuso do direito.
Usando interessante descrição feita pela doutrina 295, pode-se dizer
que, representando-se o caminho de um certo comportamento jurídico, ambas
as figuras, a boa-fé e o abuso do direito, encontram-se no mesmo ponto limite.
Contudo, antes desse ponto têm-se os comportamentos pautados pela boa-fé,
que se faz presente em todo o setor das condutas admissíveis, enquanto que,
além desse mesmo ponto, tem-se a presença do abuso em todo o trajeto, sendo
ultrapassado o limite dos comportamentos aceitáveis pelo Direito.
Só a título de melhor esclarecimento do que já foi visto
anteriormente, e aproveitando essa mesma figura utilizada no parágrafo
anterior, veja-se que a boa-fé não se limita a esse ponto mencionado, além do
qual se terá o abuso do direito, mas está presente em todo o caminho
percorrido até que seja atingido tal ponto, ou seja, estará presente em todos os

293
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 418, n° 1461.
294
Gustavo Tepedino, Temas de Direito Civil, p. 9, nota de rodapé nº 8.
295
Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, p. 223.
288

comportamentos adotados pelo sujeito do negócio jurídico. É por isso que


comentamos, por exemplo (veja-se, retro, o item 1.8), que a boa-fé permeia
não apenas o momento da celebração ou o da execução do contrato, mas
também os momentos que o antecedem e aqueles que se seguem à sua
extinção296.
Na realidade, contudo, como bem esclarece Menezes Cordeiro 297,
o abuso do direito representa um gênero, que toma por base as condutas
situadas além das que são ditadas pela boa-fé, e que é formado por diversas
espécies, todas elas tendo suporte na boa-fé, mas cada uma tendo suas próprias
peculiaridades, e para a solução dos casos reais não é na figura do abuso do
direito que se encontram as soluções, mas nessas espécies que com ele têm em
comum a ordenação pela boa-fé. O abuso do direito, portanto, sob essa ótica,
apenas serve como ponto de referência para que sejam reunidas de modo
sistemático essas espécies, cujo estudo faremos em seguida, examinando de
modo mais detalhado, contudo, a figura do venire contra factum proprium,
que nos servirá de parâmetro para a comparação com as demais espécies
ligadas ao abuso do direito.

2.2.1. A exceptio doli.

Ensina Menezes Cordeiro 298 que a exceção, em Direito


substantivo, é a situaçao na qual a pessoa que se encontra adstrita a um dever
pode, licitamente, recusar a efetivação da pretensão correspondente. Na lição
de Ovídio da Silva, vemos que a exceção é uma defesa indireta apresentada

296
Nesse sentido, mas especificamente em relação à figura do abuso do direito, ensina Pedro Baptista
Martins que “o abuso do direito pode manifestar-se em qualquer de suas fases: pré-contratual, contratual e
pós-contratual”. Cf. Pedro Baptista Martins, O Abuso do Direito e o Ato Ilícito, p. 38.
297
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 706.
298
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 719.
289

pelo réu, sendo assim classificada porque não tem por finalidade negar a
existência do direito do autor. Muito pelo contrário, quando o réu se defende
argüindo exceção substancial, está reconhecendo que tal direito existe, mas ao
mesmo tempo está apontando que o pedido deve ser julgado improcedente, em
virtude da existência de algum elemento extrínseco que pode ser oposto ao
autor, impedindo, modificando ou mesmo extinguindo a eficácia do seu
direito299.
A exceptio doli, ou exceção de dolo, portanto, significa, como o
próprio nome indica, uma defesa indireta, da qual o réu poderá se valer para
repelir a pretensão do autor, embora sem negar-lhe o direito, tendo por suporte
o fato de que tal direito foi exercido de modo doloso, tendo havido
comportamento que implicou em violação da boa-fé, por parte do seu titular.
No caso da exceção de dolo, o “elemento extrínseco” que poderá ser oposto
contra o autor consistirá no dolo deste, ou seja, a pretensão do autor será
repelida sob o argumento de que o mesmo agiu de modo doloso. Representa,
de certo modo, “a proteção de um direito contrário ao exercitado pelo autor
e, em tal sentido, um instrumento de flexível proteção da eqüidade e da boa-
fé” 300.
Dito em outras palavras, a exceptio doli foi um meio processual
genérico de defesa, criado pelos romanos para obstaculizar as ações que se
fundavam no dolo do autor, sendo depois ampliada para abranger qualquer
atuação que se mostrasse iníqua ou contrária à bona fides, o que levou a
apresentar conteúdo difuso, capaz de abranger um grande número de
hipóteses, cujo ponto em comum é precisamente a presença do dolo do autor,

299
Ovídio A. Baptista da Silva, Curso de Processo Civil, v. 1: Processo de Conhecimento, p. 319.
300
Alfonso de Cossío y Corral, El dolo en el derecho civil, p. 210.
290

em algum momento de sua atuação301, sendo certo, contudo, como veremos


logo em seguida, que essa indefinição conceitual acabou por levar ao
abandono dessa exceptio.
Em sua origem, no Direito romano, a exceção de dolo cumpria
um duplo papel, dividindo-se em exceptio doli praeteriti (ou specialis) e
exceptio dolis praesentis (ou generalis). A primeira, exceptio doli specialis,
era apontada pelo réu quando o dolo do autor havia ocorrido no momento em
que a relação jurídica material se formara, ou seja, em um momento anterior à
ação (em momento pretérito). A segunda, exceptio doli generalis, por sua vez,
indicava o dolo em que havia ocorrido o autor no momento em que se deu a
discussão da causa (ou seja, no momento presente, em relação à ação) 302.
Sem maiores investigações pode-se concluir que a exceptio doli
specialis perdeu a sua finalidade, a partir do surgimento da figura dos vícios
da vontade, na formação do negócio jurídico. Com efeito, em se tratando de
dolo de um dos sujeitos, no momento mesmo em que se deu o surgimento da
relação material, ou seja, no momento em que ocorreu o negócio jurídico,
parece evidente que essa espécie de exceptio foi absorvida pela figura do dolo,
de um modo geral, podendo esse surgir, também, sob a forma de dolo de
aproveitamento, no caso específico do estado de perigo. Restou apenas,
portanto, a figura da exceptio dolis generalis.
Na realidade, a exceptio doli foi usada, notadamente pela
jurisprudência alemã, para abranger situações diversificadas, às quais não se
conseguia dar uma unidade sistemática, e acabou se transformando em mero
sinônimo de resistência a um direito cujo titular agiu em desconformidade
com a boa-fé. Tal idéia, como se vê, é por demais ampla, pois não se esclarece

301
Anderson Schreiber, A Proibição de Comportamento Contraditório – Tutela da confiança e venire
contra factum proprium, pp. 169-172.
302
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 722.
291

de modo preciso em que consistiria essa violação da boa-fé, ou seja, qual o


parâmetro a ser considerado para aferir essa atuação desconforme.
Como explica Béatrice Jaluzot 303, enquanto nos tribunais
franceses a jurisprudência referente à boa-fé se esteava no abuso do direito, na
Alemanha, ao contrário, o fundamento primeiro era a exceptio doli generalis.
O grande desenvolvimento da jurisprudência nesses dois países levou à
aproximação das duas teorias, mas sendo que o instituto do Direito romano
não garantia os fundamentos teóricos suficientes para as decisões, e mesmo se
tratava de uma qualificação inadequada, pois em muitos casos a presença da
exceptio era reconhecida sem que tivesse havido um comportmento doloso, ou
seja, um comportamento conscientemente ilícito, ou mesmo que nem se
tratasse de uma exceção, que as partes pudessem relevar, mas sim de um
obstáculo jurídico que o juiz poderia considerar ex officio.
E nem se diga, como pretenderam alguns doutrinadores de
escol304, sustentar que mediante o recurso à exceptio doli não se buscaria
sancionar uma conduta culposa, mas sim evitar-se um resultado imoral e
injusto, o que se apresentaria como uma situação objetiva, e não de cunho
subjetivo. Em palavras mais claras, a exceção de dolo teria um fundamento de
natureza objetiva, situado fora da intenção do agente. Data venia, pretender
falar-se em dolo fora do âmbito das intenções, significa das duas uma: ou se
trata de mero jogo de palavras, ou, então, trata-se de qualquer outra coisa, mas
não de exceção de dolo, sob pena de termos um absurdo similar ao do abuso
do direito sem o exercício de um direito.

303
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 428, n° 1492.
304
Alfonso de Cossío y Corral, El dolo en el derecho civil, pp. 243-244. O ilustre autor espanhol aponta
que buscar para a exceção de dolo um fundamento objetivo, que esteja fora da intenção do agente, pode
parecer contraditório (p. 244). Na verdade, não parece contraditório, é amplamente contraditório.
292

Por essa razão, há quem aponte que a exceptio doli foi atingida
pelo desinteresse da doutrina e da jurisprudência 305, importando mais pelo
relevante papel histórico que desempenhou, enquanto se tentava fincar as
fundações de normas esteadas na boa-fé, uma vez que hoje encontra maior
aplicação a análise de violações mais específicas e mais precisamente
delimitadas da boa-fé, e que por isso encontram aplicação concreta de modo
mais científico, em vez de, como ocorria com a exceptio doli, apenas servir de
reforço lingüístico para decisões já anteriormente tomadas, em casos de
violação da boa-fé.
De modo semelhante, aponta Jaluzot306 que os autores começaram
a descrever as duas teorias, a exceptio doli e o abuso do direito, como sendo
duas aparições paralelas, que se identificavam reciprocamente em sua
essência, e com isso as duas teorias foram progressivamente sendo
assimiladas, o que acabou por resultar na substituição progressiva da
terminologia usada na Alemanha, ou seja, os juristas alemães descartaram a
expressão latina e passaram a usar a tradução literal da noção francesa do
abuso do direito.
E também os tribunais alemães passaram a invocar a teoria
francesa, para justificar suas decisões, chegando a apontar de modo expresso
que o abuso do direito, que fora desenvolvido a partir da exceptio doli
generalis e da figura correspondente no direito francês, era reconhecido de um
modo geral. E a terminologia latina começa a ser abandonada.
Na realidade, desde a entrada em vigor do Código Civil alemão,
em 1900, a aplicabilidade da exceptio doli já havia sofrido um baque, eis que o
BGB simplesmente não tratou da mesma, o que desde logo levou a doutrina a

305
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 741.
306
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, pp. 428-429, n°s 1493 e 1494.
293

discutir acerca da sua sobrevivência no direito germânico. Apesar desse


silêncio, principalmente em virtude de sua tradição, a jurisprudência alemã
continuou a fazer referência à exceptio, mesmo após a entrada em vigor do
Código Civil, pois se este, por um lado, não a mencionou, por outro, também
não a afastou. Só que a exceptio se apresentava muito ampla, muito fluida, e a
doutrina começa a apontar que os casos onde a mesma era invocada, em sua
maioria, nada mais eram do que hipóteses de interpretação da lei, e não,
verdadeiramente, hipótese da exceptio307, o que conduziu à sua absorção pela
figura do abuso do direito, acima mencionada.
Os tribunais que continuavam a fazer referência à exceptio doli
generalis, na realidade, valiam-se da valoração dos problemas concretos à luz
das normas legais que constavam do Código Civil alemão, notadamente as que
se referiam à boa-fé e aos bons costumes e, depois de atingida a solução,
faziam uma referência à exceptio, como reforço dos argumentos expendidos.
Ou seja, usava-se um conceito central, codificado, para atender às situações
periféricas da vida real, e depois se mencionava a exceptio doli, que apenas
servia como reforço lingüístico. Não havia, portanto, a preocupação de
deduzir da própria figura da exceptio as soluções possíveis para cada situação
concreta308.
Por todas essas razões, as referências à exceptio doli generalis
começaram a rarear na jurisprudência. Desse modo, tendo a figura
desaparecido dos tribunais, sobreveio também, como conseqüência, a escassez
doutrinária, pois deixou-se de pesquisar o tema porque o mesmo não era mais
visto em debate nos tribunais, em casos concretos. De fato, atualmente, há
pouca ou quase nenhuma referência doutrinária ao instituto da exceptio doli,

307
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , pp. 723-730.
308
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 733.
294

decorrendo principalmente, como já comentamos, supra, da mesma ter sido


fundida com a figura do abuso do direito, sendo esta que é mencionada em
situações nas quais se mostra dificil a sistematização do desrespeito à boa-fé,
sem a preocupação de reconhecimento da exceptio doli.
A exceptio doli, de fato, é figura de amplitude e generalidade
significativas, e por isso a sua topologia adequada é aqui, como um subitem
do abuso do direito. De qualquer modo, no aspecto que nos interessava, que
era o de um cotejo com a figura do venire contra factum proprium, já
podemos apontar com facilidade a crucial diferença entre ambas, consistente
no fato de que a exceptio doli pressupõe, como é evidente, o dolo do sujeito,
exigência essa que não se encontra no venire, como passaremos a examinar
logo em seguida.

2.3. O venire contra factum proprium.

2.3.1. Considerações gerais.

A expressão venire contra factum proprium, que poderia ser


vertida para o vernáculo em tradução que se apresentaria em algo do tipo “vir
contra seus próprios atos”, ou “comportar-se contra seus próprios atos”, pode
ser apontada, em uma primeira aproximação, como sendo abrangente das
hipóteses nas quais uma mesma pessoa, em momentos distintos, adota dois
comportamentos, sendo que o segundo deles surpreende o outro sujeito, por
ser completamente diferente daquilo que se poderia razoavelmente esperar, em
virtude do primeiro.
Em outras palavras, há uma contradição entre os dois
comportamentos, pois a partir da análise do primeiro havia surgido a legítima
295

expectativa de que outra seria a conduta a ser adotada por ocasião do segundo.
Nas palavras de Béatrice Jaluzot 309, todo comportamento será contrário à boa-
fé se for qualificado como contraditório, o que ocorre quando se mostra
contrário a um comportamento anterior da mesma pessoa.
O primeiro comportamento, portanto, é o “factum proprium”, e o
segundo, é o “venire”. Quando os dois são contraditórios, ou seja, quando o
venire (segundo comportamento) se mostra contrário ao factum proprium, é
que poderá ser caracterizada a figura do venire contra factum proprium,
dependendo ainda, contudo, da presença de outros elementos, como veremos
em seguida.
A proibição do venire310, como facilmente se pode identificar,
refere-se à proteção da boa-fé 311, ou melhor, refere-se à necessidade de que
cada um dos sujeitos de um negócio jurídico adote conduta que seja
consentânea com a boa-fé, o que, em última análise, como já vimos, retro,
significa que cada um desses sujeitos deverá respeitar os deveres laterais que
surgem em todos os negócios jurídicos, e que são impostos exatamente em
função da necessidade de observância da boa-fé. E qual seria esse dever
acessório, a ser observado, e cuja inobservância estaria a caracterizar o venire?
309
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 89, n° 326. “Tout comportement sera contraire à la bonne foi s’il est qualifié de contradictoire
c’est-à-dire s’il est contraire à um comportement antérieur de la même personne”. (Tradução livre).
310
Mas desde logo observando que por vezes, levando em conta outros valores, a própria lei permite,
expressamente, esse comportamento contraditório, ou seja, nem sempre é proibido o venire contra factum
proprium. Assim, por exemplo, os pais, tutores ou curadores que já se manifestaram no sentido de conceder a
autorização para o casamento do menor púbere, podem revogá-la enquanto não se der a celebração do
matrimônio (Código Civil, art. 1.518), ou seja, podem adotar um segundo comportamento que é exatamente o
oposto do primeiro, tendo força para desfazê-lo. Da mesma forma, a autorização dada pelos pais, para que seu
filho seja adotada, pode ser revogada enquanto não tiver sido publicada a sentença que constitui a adoção (art.
1.621, § 2º). E outros exemplos poderiam ser citados, como veremos adiante.
311
No entanto, convém ressaltar que essa ligação tão estreita entre a boa-fé e o venire contra factum
proprium não se mostra assim tão pacífica, sendo contestada por autores de nomeada. Nesse sentido, por
exemplo, José Luis de Los Mozos, após afirmar que não há dúvidas acerca da relação entre atos próprios e
boa-fé, alerta que na especial conduta contraditória que informa a doutrina dos atos próprios, intervêm outros
ingredientes, que não decorrem da simples aplicação da boa-fé, e que por essa razão não se pode reconduzir
essa matéria (a doutrina dos atos próprios) a qualquer dos tipos de boa-fé, objetiva ou subjetiva, por mais que
se pretenda fazer generalizações. Cf. José Luis de Los Mozos, El principio de la buena fe, pp. 183-184.
296

Se tomássemos como embasamento apenas este começo de


abordagem do tema, poderíamos ser tentados a mencionar um dever lateral de
coerência, uma vez que o venire contra factum proprium, conforme acabamos
de mencionar, abrange as situações onde há comportamentos contraditórios,
ou seja, nas quais não há coerência entre os dois comportamentos adotados,
em momentos distintos, em relação ao mesmo negócio jurídico e pelo mesmo
sujeito. Ou, em vez de um “dever de coerência”, poderíamos optar por um
mais claro e significativo “dever de não ser contraditório”.
Tais denominações, no entanto, haveriam de se mostrar tão
precipitadas quanto inverídicas, uma vez que não estariam espelhando o
aspecto que se revela como sendo o verdadeiro eixo de sustentação do venire.
Com efeito, como veremos em maiores detalhes, logo à frente,
em muitas ocasiões a falta de coerência do sujeito não é proibida e nem gera
conseqüências jurídicas quando vem a ser constatada. Dito de outra forma,
nem toda incoerência comportamental pode ser descrita como sendo caso de
venire, ou seja, nem toda conduta que venha a se revelar contraditória com
uma conduta anterior pode ser descrita como sendo hipótese de venire contra
factum proprium.
À guisa de rápido exemplo pode-se apontar a hipótese daquele
que envia, a pessoa ausente, proposta de contrato. É certo que esse proponente
poderá se retratar, enquanto a proposta não tiver chegado ao conhecimento
daquele a quem se destinava, ou se ambas, a proposta e a retratação, chegarem
juntas a esse mesmo destinatário.
Veja-se que o segundo comportamento, ou seja, a retratação, é
nitidamente contraditório em relação ao primeiro, a proposta, e tanto assim
que o desfaz por completo. E, no entanto, essa incoerência não é proibida e
nem vai gerar qualquer conseqüência jurídica, simplesmente prevalecendo a
297

retratação sobre a proposta, ou seja, prevalecendo o segundo comportamento


sobre o primeiro, eis que os dois são incompatíveis entre si, e portanto não
haveria como fazer-lhes a conciliação.
Logo, fica assim demonstrado que a referência a um eventual
dever de coerência (ou dever de não ser contraditório), na realidade, em
termos científicos, não significa absolutamente nada, eis que não permite
identificar o fenômeno sob estudo, por abordar apenas um invólucro maior, no
qual estão inseridas diversas outras espécies de violações da coerência. Não
serve, portanto, como paradigma para a busca que estamos a empreender.
A questão que se apresenta como sendo de nuclear importância,
portanto, é a identificação precisa dessa espécie de coerência ou, por outras
palavras, a apuração de quais são as situações nas quais a incoerência (a
contradição) não poderá ser tolerada.
Em relação ao tema, desde cedo adiantamos o que será
demonstrado logo adiante: a incoerência que se caracteriza como venire é tão-
somente aquela que destrói a confiança que havia surgido na outra parte, ou
seja, a partir do primeiro comportamento adotado por um dos sujeitos, o outro
passou a acreditar (a confiar) que em um segundo momento a conduta a ser
adotada seria no mesmo sentido da primeira, seria coerente com ela, e essa
crença vem a ser destruída pelo comportamento que se choca com o anterior.
Para que se chegue a tal conclusão, convém recordar o que já
vimos, retro (item 1.9), no sentido de que não se está buscando,
primordialmente, a repressão à má-fé de um dos sujeitos, mas sim a proteção à
boa-fé do outro. Ora, a questão da coerência é ligada à pessoa do sujeito cuja
atuação não será admitida, enquanto a confiança se refere ao outro sujeito,
cuja boa-fé se busca proteger. Em outras palavras, se a idéia central fosse a
repressão à incoerência, isso equivaleria à busca da punição à má-fé.
298

O que se buscará, portanto, é proteger a confiança do outro


sujeito, pois aí se estará voltando o foco para a proteção à boa-fé, e não para a
punição à má-fé. Pode-se dizer, portanto, que o venire contra factum proprium
tem como foco um elemento externo à pessoa que adota os dois
comportamentos que se mostram incoerentes, sendo tal elemento externo a
confiança que se formou no outro sujeito. A incoerência em si mesma,
portanto, se mostra irrelevante, apenas interessando as suas conseqüências
quanto ao outro sujeito, vale dizer, se houve ou não o surgimento da
confiança.
No dizer de Béatrice Jaluzot 312, um comportamento contraditório
será abusivo (e, portanto, não será tolerado) quando um elemento de confiança
havia surgido na outra pessoa, ou quando as circunstâncias particulares do
caso concreto fazem com que o exercício de um direito se apresente como
sendo desleal, sendo certo que o elemento temporal se apresenta como um
argumento de peso (embora não seja o único) para essa caracterização. Assim,
mais claramente será caracterizado o comportamento contraditório como
abusivo se a parte, durante longo tempo, se comportou de uma certa forma, e
subitamente mudou o seu comportamento.
Poderia ser enquadrada a proibição do venire dentro do dever de
lealdade, que por nós já foi examinado, mas ainda assim o espectro ficaria
muito amplo, pois é de um aspecto específico da lealdade que se trata, ou seja,
de não frustrar a confiança que foi criada no outro agente do negócio jurídico.
O que efetivamente se mostra mais adequado, portanto, é o falar-se em
proteção à confiança.

312
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, pp. 89-90, n°s 327 e 328.
299

E é importante destacar que o repúdio ao venire contra factum


proprium nada tem a ver com a questão do pacta sunt servanda, e sim com a
aparência, com o fato exterior (o comportamento inicialmente adotado) que
fez surgir a interior confiança por parte do outro sujeito 313. Se no caso
concreto se mostra razoável supor que dessa aparência resultou a formação da
confiança, no íntimo do outro sujeito, então a sua quebra será inadmissível,
sendo atraídas as regras do instituto em exame.
Neste ponto abriremos breve parêntese para alargar e
fundamentar a afirmação feita nos parágrafos imediatamente anteriores, no
sentido de que o comportamento contraditório será caracterizado como
abusivo. É que a figura do venire contra factum proprium, de fato, enquadra-
se na figura mais ampla do abuso do direito, ou seja, este constitui o gênero
mais amplo, enquanto o venire se apresenta como uma de suas espécies, ou
seja, como uma das situações de ocorrência concreta do abuso, o que pode ser
facilmente demonstrado.
Para tanto, basta que se observe que o abuso do direito, em
simplificada explicação, pode ser descrito como o exercício do direito de
modo contrário à boa-fé ou às suas finalidades social e econômica, como já
vimos. Ora, é evidente que a ocorrência do venire, quebrando a confiança que
foi despertada na outra parte, não apenas viola a boa-fé, mas além disso ainda
agride as finalidades do direito subjetivo, pois é claro que, diante dos
princípios da dignidade humana e da solidariedade social, não se poderia
conceber que um determinado direito subjetivo, qualquer que seja tal direito,
pudesse ter sido criado com a finalidade de frustrar as expectativas
legitimamente criadas pela contraparte. Logo, se frustrar as expectativas não
era a finalidade, mas apesar disso a frustração ocorreu, pode-se afirmar que foi
313
Vitor Frederico Kümpel, A teoria da aparência no novo Código Civil brasileiro, p. 44.
300

desatendida a finalidade para a qual o direito subjetivo havia sido reconhecido


à parte.
Assim, é fácil de concluir que toda ocorrência do venire contra
factum proprium, traduzindo uma agressão à boa-fé e um desvio da finalidade
para a qual o direito subjetivo havia sido reconhecido ao seu titular, poderá
sempre ser enquadrada como um caso de abuso do direito. Apenas se
complementa essa afirmação observando-se que, esse caso particular de
abuso, por ter características próprias e bem definidas, e por se tratar de
situação de ocorrência concreta freqüente, passa a ser estudado em separado,
por suas próprias características, que se destacam dentro da figura mais ampla
do abuso do direito, embora seja um caso peculiar deste.
Encerrando essas observações iniciais, convém realçar um
importante aspecto, que muitas vezes passa despercebido, quando se
examinam as questões ligadas à boa-fé, e para o qual já havíamos chamado a
atenção, poucas linhas atrás. É que, em verdade, a proibição do venire contra
factum proprium, muito mais do que destinada à proibição da conduta de má-
fé, na realidade destina-se, precipuamente, à proteção da confiança (rectius:
proteção da boa-fé), e essa diferença gera importantes conseqüências práticas,
conforme veremos mais adiante.
Assim, por exemplo, se um dos sujeitos não se comporta
conforme os ditames da boa-fé objetiva, assumindo comportamento
claramente contraditórios, mas o primeiro desses comportamentos, por alguma
razão, não havia feito surgir a confiança no espírito do outro sujeito, não se
terá aí hipótese de venire, pois o que de fato interessaria seria a quebra da
confiança, para caracterizá-lo, e não a simples contradição que poderia tê-la
quebrado, mas que na realidade não o fez.

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