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ANÁLISE TEÓRICO-PRÁTICO DA

ILICITUDE NA COMPARTICIPAÇÃO
Hermenegildo Da Silva
(Advogado Estagiário e Docente Universitário)

1
SUMÁRIO

• Resumo;
• Introdução;
• Conceito de ilicitude e comparticipação;
• Crimes específicos;
• Qualidades e relações pessoais do agente;
• Tipos de tipicidade aplicável aos agentes do facto típico;
• Análise do artigo 26.º do Código Penal;
• Considerações finais;
• Recomendações.

2
RESUMO

Consideramos que o tema “ilicitude na comparticipação” seja recente,


complicado e, ao mesmo tempo, interessante na medida que procura
tocar – e, sejamos franco, toca - em questões bastante práticas quer da
dogmática jurídico-penal quer da dogmática jurídico-constitucional no
seu todo. Ao folhar o Código Penal Angolano, especificamente na sua
Parte Geral, o artigo 26.º desperta e atiça em nós que nos importamos um
pouco com as “complexidades penais” uma necessidade de encontrarmos
a melhor hermenéutica cujo fito seria encontrar o seu sentido e alcance.
Várias são as interpretações que se tem lido e/ou ouvido em sede do
nosso árduo trabalho nas salas de aula – enquanto docente de Direito
Penal – como também dos penalistas de fino porte seja nacional como
internacional. São, certamente, legítimas algumas interpretações, mas
outras nem tanto. Vale que vale? Sim, valem, Acredito que Popper tem
razão ao vaticinar que “eu posso estar errado e você certo, mas juntos
podemos chegar à verdade”. Mas, tudo bem, de que complexidade penal
nos estamos a referir? Referimo-nos quando, para um determinado crime,
exige-se do agente uma qualidade ou relação específica e, na prática do
crime, o agente fê-lo com outra pessoa que não possui essa qualidade
nem essa relação. Em que termos poderão ser julgados o “intraneus” e o
“extraneus”, ou seja, o que tem a qualidade e relação que fundamenta ou
não a ilicitude e aquele despido dessa exigência legal? Qual será a
muldura penal de ambos? O detendor da qualidade e relação especial
e/ou específica exigida por lei será responsabilizado, gozará dos mesmo
privilégios que àquela agente desprovido de tais qualidades e relações?
Sobre isso, vamos deixar algumas linhas soltas.

Palavras-Chave: Ilicitude, Comparticipação, Crimes Específicos, Formas


de Autoria, Responsabilidade Penal.

3
INTRODUÇÃO

Os tempos actuais exigem que nos concentremos em certos


aspectos da Parte Geral do Código Penal e isso justifica que apresentemos
os aspectos teórico-prático do artigo 26.º do CP.

Com o advento no Novo Código Penal e, digamos, a “morte” - que


pode ressuscitar caso a necessidade exija - do vetusto Código Penal de
1886, várias coisas mudaram. Isto é a consequência normal das alterações
legislativa. Elas tendem a adequar-se ao modo de viver e de operar da
sociedade – aqui, obviamente, da sociedade angolana – que irá de vigorar.

As legislações são manifestações de vontade política e/ou da classe


dominante. Incorrer-se-ia em um juízo improbo aquele jurista que
confudisse Lei com Direito. O Direito é anterior à lei, não se veste de
vontade política e tem aplicação universal.

Em volta disto, afirma o Prof. Dr. Eduardo Vera-Cruz:

“O Direito não cobre tudo nem serve para tudo. Hoje,


há um abuso do Direito. Um abuso do nome do
Direito, levando as regras para patamares de
conflitualidade onde o Direito não pode estar porque
não há possibilidade que ele esteja. O Direito volta à
sua origem. O Direito volta à regra de justiça. O
Direito volta à retórica que ninguem ensina.
Ninguém ensina nada, a não ser cometários de leis,
comentários de jurisprudência e isso é
importantíssimo, mas só pode ser bem julgado quem
tem formação de base sólida e de princípios”.

Quão lapidar são as palavras acima escritas. Na medida em que, a


pura interpretação da lei ínsita no artigo artigo 26.º do NCPA, pode nos
levar a sérios problemas práticos. Daí que não basta comentar leis. É
curial também ler, em cada lei, a essência do Direito. Olhar nos princípios

4
que fundamentam a criação dessa lei – especificamente deste artigo – o
senso de justiça que deva norteiar todo o aplicar da regra jurídica 1.

O estudo começa por bifurcar os termos ilicitude e


comparticipação. Pois, com eles, há um “nomen iuris” ilicitude na
comparticipação.

Tocamos, de igualmente modo, em um assunto intrisecamente


ligado ao tema, que é a classificação dos tipos de tipicidade quanto ao
agente, concretamente os crimes específicos – que são próprios e
impróprios – bem como os crimes de mão própria.

Adiante, olharemos a qualidade e relação exigida no tipo penal não


incriminador sem desprimor de vislumbrar, depois, quais os crimes que
estes agentes possam cometer – quer fazendo parte da parte especial,
quer tratando-se de legislações avulsas que tenham natureza penal.

Curamos de olhar, claro, a moldura penal aplicável ao “intraneus”


e ao extraneus” para que, desta forma, possamos apresentar a nossa
hermenêutica do artigo 26.º do NCPA tendo em conta os princípios gerais
do Direito, e não muito a ideia legislativa que tem sido mais política do
que jurídica.

Encerraremos com o epílogo e as recomendações para que, esse


módico estudo, possa ajudar na construção de um Direito Penal mais

1
Preferimos, tal como José de Oliveira Ascensão in O Direito – Introdução e
Teoria Geral, 13ª Edição, Almedina Editora, 2016, pág. 239-493/494, a expressão
regra jurídico a norma jurídico por ser mais abrangente e não se circunscrever -
tão-somente – a conduta geral, abstrata, imperativa e sancionatória. Diz
Ascensão “a referência à norma jurídica, mais que à regra, está solidamente
assente na ciência jurídica portuguesa. É possível que haja aqui uma influência
germânica, directa ou indirectamente: die Normen forma sempre um dos temas
predilectos de meditação dos juristas alemães. (...) Neste termos seria mais
adequado falar em regra jurídica que em norma jurídica, para ir ao encontro da
linguagem corrente. A regra se empresta um acento mais determinante. A regra
jurídica pode assim ser caracterizada como um critério de qualificação e decisão
de casos concretos.

5
humano, civilizado e justo. Este é o nosso simples contributo à ciência
jurídico-penal angolana enquanto eterno aprendizes do Direito Penal.

Adverte-se que, todo o artigo que não for descriminado a lei, refere-
se a Lei n.º 38/20, de 11 de Novembro que aprova o Código Penal
Angolano.

6
1. DA MATÉRIA CONCEPTUAL

Olhando para o artigo 26.º, que tem como epígrafe “Ilicitude na


comporticipação” permite-nos separar as termos e apresentar os
conceitos.

1.1 Ilicitude

O conceito de ilicitude viaja no tempo. A forma acabada que temos,


hoje, conceituado ilicitude é diferente do passado. Aliás, a maioria dos
conceitos penais apresenta essa flexibilidade temporal e, de forma
apertada, espacial.

A teoria do facto punível evoluiu rapidamente e, do melhor que


possamos tirar dele, são as três concepções que procuraram definir cada
elemento da infracção penal2.

Pois bem, na concepção clássica – cujo traço caracterizador desta


escola é o naturalismo positivista, ou seja, a equiparação do direito com
a exactidão científica própria das ciências da natureza – a ilicitude é

2
Não é tarefa fácil conceituar infracção penal. Fácil é apresentar, de forma
holística, os seus elementos, mas nos vamos arriscar.
A infracção penal em sentido formal vinha sendo regulado no artigo 1.º
do CP 86. Ela é vista como contrariedade de um comportamento aos parâmetros
delineados pela lei penal. Em sentido formal, a infracção é uma conduta
desobediente, que nega os valores que o Estado afirma, usando uma premissa
da dialética Hegeliana.
A infracção penal em sentido material é vista como toda a conduta que
cause danosidade social. Não basta que seja contrária, é crucial que o facto lese
ou põe em perigo de lesão bens jurídicos fundamentais à vida em sociedade.
Em sentido técnico-jurídico, a infracção penal é um facto humano que
coincide com o modelo descrito na previsão da lei penal, lesivo de interesses
sociais juridicamente tutelados e cometido com culpa. Se virmos bem, é a
aglutinação do sentido formal e material, ou seja, da contrariedade da conduta
humana/típica/ilícita/culposa (elementos da infracção penal, ressalvando a
punibilidade para alguns autores) que, necessariamente, lesa ou põe em perigo
de lesão de bens jurídicos.

7
quando na acção típica não intervém causas de exclusão e/ou justificação,
por exemplo, legítima defesa e estado de necessidade.

Na concepção neoclássica, a ilicitude consistia na contrariedade


material do facto à ordem jurídica.

Por seu turno, na concepção finalista a ilicitude é a aglutinação da


ofensa dos valores jurídicos penalmente tutelados e a falta social grave
do homem. Há, portanto, dois desvalor: da acção e do resultado 3.

Tais concepções são úteis no processo evolutivo do conceito de


ilicitude, aliás, sem o passado não se pode vislumbrar bem o presente.
Neste caso, o que é a ilicitude?

Podemos começar por desmontar a palavra. i⁼ não/contrário e


licitude⁼ conforme/de acordo à lei. Juntando, ilicitude significa não
conforme à lei, contrário à lei. A ilicitude é, por definição, todo o

3
A jeito de conceito, o desvalor da acção é a violação de um dever jurídico-
penal de forma dirigida intencionalmente a essa violação sem ter em conta o
resultado. Trata-se de uma dimensão do juízo de ilicitude que incide sobre a
acção do agente. É, como exemplifica Welzel, o caso de um carteirista que, com
intenção de furtar, introduz a mão no bolso da vítima, mas o bolso está vazio.
Ou, no artigo 20.º, o caso de punição da tentativa.
Por seu turno, o desvalor do resultado respeita à lesão ou perigo de lesão
de bens jurídicos, à materialização da violação do dever jurídico. O juízo de
ilicitude incide sobre o resultado. Se pegarmos o homicídio negligente previsto
no artigo 152.º, veremos que o desvalor da acção é a violação da regra da
ilicitude, a violação do dever de diligência; o desvalor do resultado consiste em
tirar a vida.

Há, sim, algumas distinções. A saber;

a) No desvalor da acção encontramos elementos subjectivos (dolo, culpa,


negligência) ao passo que no desvalor do resultado encontramos
elementos objectivos (sujeitos, nexo de causalidade, objecto
material...);
b) No desvalor da acção temos, por excelência, a tentativa do crime, por
seu turno, no desvalor do resultado temos, por dignidade, a
consumação do crime;
c) No desvalor da acção temos uma concepção pessoal, ao passo que, no
desvalor do resultado temos uma concepção objectiva.

8
comportamento humano que viola um tipo incriminador (aqueles que
estabelecem crimes-penas, estado de perigosidade criminal-medidas de
segurança e as suas agravantes) e não exista um tipo justificador (causas
que justificam a ilicitude previstas no artigo 30.º e diplomas avulsos).

Neste caso, para que uma conduta seja ilícita, é importante que ela
infringe um tipo incriminador e não lhe assiste causas que justifiquem
essa ilicitude. Caso exista causas de justificação e/ou exclusão, a conduta
que era indiciada como ilícita, tornar-se-á lícita. Esse é o esquema para
que possamos configurar um comportamento como ilícito, ou seja, não
basta que seja contrário a lei penal, é também necessário que não
concorrem causas que possam justificar esse comportamento.

É nesta linha de pensamento que anda, também, Américo Taipa de


Carvalho4 nos seguintes termos “o juízo de ilicitude sobre um facto
concreto é a síntese ou resultado da verificação do tipo legal (tipo
incriminador) e da inexistência de uma causa de justificação (causa de
exclusão da ilicitude ou tipo justificador). Uma acção típica, descrita num
tipo de crime, será, em princípio, ilícita. Pode, todavia, essa acção ter sido
praticada num contexto fáctico, a que a lei atribua uma eficácia
justificativa da acção típica; e, quando tal se verifica, a acção, apesar de
formalidade típica, não é ilícita. É nesse sentido que se fala,
adequadamente, na existência de uma relação de complementariedade
material e funcional entre o tipo legal e as causas de justificação na
formulação do juízo definitivo de ilicitude sobre o facto concreto”.

Sintetiza Figueiredo Dias5 “os tipos incriminadores constituem uma


via provisória de fundamentação da ilicitude, os tipos justificadores uma
via definitiva de exclusão da ilicitude prima facie indiciada pela
subsunção da acção concreta a um tipo incriminador”.

4
Cfr. Direito Penal, Coimbra Editora, 2ª Edição, 2011, pág. 330 e seguintes.
5
“Vide” Direito Penal, 2ª Edição, Coimbra Editora, Agosto de 2007.

9
1.2 Comparticipação

A primeira nota que é necessário deixar clara é que há


compartipação quanto intervêm várias pessoas no crime.

No olhar clínico de Henriques Eira e Guilhermina Fortes 6, “a


comparticipação consiste no envolvimento de vários agentes na prática
do facto jurídico ilícito-criminal. Em sentido amplo, a expressão
comparticipantes abrange autoresm instigadores e cúmplices”.

A lei, se vir a alínea d) do artigo 24.º, não autonomiza a figura do


instigador, tratando-o como uma forma de autoria. A diferença entre o
instigador e o cúmplice está no auxílio determinante. No primeiro, o
auxílio é determinante, ao passo que no segundo o auxílio não é
determinante.

Seguindo os mesmos autores, “o problema fundamental nesta


matéria – quando há vários agentes do mesmo crime – consiste em apurar
quem deve ser considerado autor 7 e quem deve ser considerado
cúmplice”.

A comparticipação pressupõe que o crime foi cometido por duas


ou mais pessoas em forma de autoria ou cumplicidade. O que pode
acontecer é que, uma dessas pessoas, tenha uma qualidade ou relação
especial e a outra, não a tenha. E, aqui, nasce o diabo!

1.3 Crimes Específicos

A título doutrinário, os crimes específicos, quanto aos tipos de


tipicidade, estão na classificação quanto aos agentes.

Os crimes específicos são aqueles cujo cometimento é reservado a


determinadas pessoas, ou seja, a lei exige uma qualidade ou um dever

6 Cfr. Dicionário de Direito Penal e Processo Penal, 3ª Edição, Quid Iuris


Sociedade Editora, 2010, pág. 134.
7 O NCPA apresenta a classificação da autoria no seu artigo 24.º. Assim sendo, a

alínea a) refere-se a autoria materia e/ou imediata; a alínea b) cura da autoria


mediata; a alínea c) trata da co-autoria e, como já dissemos, a alínea d) olha para
ainstigação.

10
especial ao agente como se de um “intuitu personae” se tratasse. É o caso
da qualidade de funcionário público no crime de peculato (art. 362.º).

Os crimes específicos podem bifurcar-se em próprios e impróprios;


nos primeiros, a qualidade ou o dever especial do agente fundamentam a
ilicitude e a sua responsabilidade, v.g. o caso do profissional de saúde que
se recusa a prestar assistência médico-medicamentosa nos termos do art.
209.º, prevaricação segundo reza o art. 349.º e denegação de justiça de
acordo o art. 348.º; ao passo que no segundo, o dever especial e a
qualidade do agente não fundamentam a ilicitude nem a
responsabilidade, mas servem, tão-somente, para as agravar, v.g. o art.
405.º sobre o abuso de confiança qualificado, o art. 150.º cujas
circunstâncias modificativas estão nas suas alíneas 8.

Reveste-se de grande importância neste momento a obra de Teresa


Beleza9 que, em linhas gerais, “distingue-se, em função das qualidades ou
relações especiais apontadas no nº 1, entre crimes especiais ou
específicos próprios ou puros (em que aqueles fundamentam a ilicitude
do facto) e crimes especiais ou específicos impróprios ou impuros (em
que aquelas fazem variar o grau do ilícito).

1.4 Qualidades e Relações Especiais do Agente

A ilicitude do facto depende da qualidade e relação especial do


agente que, em bom rigor, comunicam-se aos outros comparticipantes.
Desenhando, a qualidade ou relação de um agente comunica-se ao outro

8
Na esteira de FIGUEIREDO DIAS, o crimes específicos têm de decisivo o dever
especial que recai sobre o autor, não a posição do autor de onde este dever
resulta. Por isso, pode haver crimes específicos que não contenham, ao menos
de forma expressa, elementos típicos do autor, antes se limitando a descrever a
situação de onde resulta o dever especial (cf., v.g., o art. 208.º que incrimina a
omissão de auxílio). O estudo dos crimes específicos tem aplicação prática
sobretudo na matéria da comparticipação e as suas implicações jurídico-penais
e erro sobre objecto nos termos dos artigos 14.º, 20.º a 27.º.
9 Ilicitamente Comparticipando – O Âmbito de Aplicação do Art. 28.º do Código

Penal (Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correira, III, 589).

11
agente para fundamentar a ilicitude do facto. Embora a lei coloca como
uma “possibilidade”.

Nos casos que contêm qualidades ou relações entre agentes podem


indicar-se as seguintes:

i) Qualidades proficionais: funcionário, médico, comerciante, advogado,


solicitador, perito;

ii) Qualidade que resultam da prática esporádica de actos que vinculam


a deveres especiais: testemunha, declarante;

iii) Possivelmente, qualidades derivadas da prática de crimes:


criminosos habituais;

iv) Relações familiares: ascendente, descendente, cônjuge;

v) Relações de trabalho, de dependência hierárquica, de guarda,


educação ou protecção;

vi) Relações com certas pessoas que fundamentam um dever jurídico


de pessoalmente evitar resultados danosos contidos em tipos legais de
crimes10.

Essas são, entre linhas, as qualidades e relações especiais de que


possa depender a ilicitude do facto e, necessariamente, possam
comunicar-se aos outros comparticipantes.

1.5 Moldura Penal

Acreditamos que a questão central, além da aferição do grau de


culpa e a comprovação desta comunicabilidade, o ponto tónico deve
recair da moldura penal aplicável aos diversos agentes. Saber qual é o
critério a utilizar para responsabilizar criminalmente um dos
comparticipantes é um trabalho de merecida atenção. Como se sabe, a
culpa, nos termos do n.º 1, artigo 42.º, é o pressuposto irrenunciável da
aplicação da pena. E cada um responde pela sua culpa de acordo o artigo

10 Cfr. n.º 2 do artigo 8.º.


12
27.º. Portanto, a molduta penal será de acordo a culpa de cada
comparticipante. Mais grau de culpa, mais a tendência da muldura penal
ser maior. Menos culpa, mais chance de uma moldura penal bagatelar.

1.6 Análise Teórico-Prático do Artigo 26.º

Após a desenvoltura feita, pensamos que já seja altura de


aterrarmos no artigo 26.º.

Como ponto prévio, há uma ponderação do Assento – no âmbito da


ordem jurídica portuguesa – de 19 de Dezembro de 1951 (faz muito
tempo, mas se reveste de importância trazer cá) onde se decidiu no
sentido de que as qualidades exigidas pelos artigos 312.º e 313.º do CP
86 são elementos constitutivos dos respectivos crimes e, logo, as sanções
ali estabelecidas serão aplicáveis aos autores materiais e aos autores
morais. O artigo 26.º apresenta essas raízes históricas.

Hoje, as coisas estão diferentes. Essas qualidades e relações apenas


fundamentam a ilicitude do facto, não são elementos constitutivos dos
respectivos crimes – quer sejam subjectivos quer objectivos. É certo que
este artigo leva-nos à teoria da acessoriedade limitada cuja regra é a da
comunicabilidade entre agentes. Desenhando, basta que um agente dos
agentes do crime tenha a qualidade e a relação do tipo penal para que os
outros também a tenham.

Da exegêse do n.º 1, artigo 26.º nota-se que essas qualidades e


relações comunicam-se apenas no âmbito da autoria e excluem deste
leque de comunicação os cúmplices nos termos do n.º 2 do artigo 26.º.

Se pegarmos na qualidade “funcionário público”, podemos


configurar o seguinte exemplo: se A for funcionário público e, no
exercício das suas funções, vier a cometer um crime em co-autoria com B,
que não possui a qualidade de funcionário público, esta qualidade que
apenas A possui, comunica-se a B e este, necessariamente, será
responsabilizado como se de funcionário público se tratasse. E punir com
essa qualidade e despido dessa qualidade é importante tendo em conta a
moldura penal aplicável a esses agentes.
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Acreditamos que, em termos práticos, essa comunicabilidade entre
agentes – autor para autor, co-autor para co-autor, enfim - trará injustiças
grintantes. Pois, perguntar-se-á: em que momento essa qualidade/relação
comunicou o outro agente? Qual o critério para se aferir essa
comunicação?

Em outra latitude, o legislador Cabo-Verdiano, nos termos do artigo


28.º do Código Penal de Cabo-Verde, acaba por ser mais inovador e
resolver esse “possível” problema. O legislador penal condiciona a
comunicabilidade da qualidade e relação especial do agente ao
conhecimento dos outros comparticipantes de tais relações,
circunstâncias ou qualidades.

Não basta a comunicação, mas é necessário que os outros agentes


conheçam as qualidades e relações do agente. Aqui, sim, se pode
fundamentar a ilicitude do facto e responsabilizar os agentes. No fundo,
este conhecimento tem razão de ser por ser o elemento subjectivo do
próprio tipo penal incriminador e, de resto, de toda a culpabilidade do
agente. Se conhece, comunica-se. Se não conhece, não se comunica. Essa
é a opção legisliativa que nos parece mais civilizada, humana e justa.

O final do n.º 1 “salvo se outra for a intenção da lei ou coisa diferente


resultar da natureza do crime” apresenta-nos uma excepção à regra da
comunicação das qualidades, pois tratando-se de crimes militares e
crimes de mãos próprias11 não há comunicação das qualidades e/ou
relações.

O crime de mão própria tem merecido uma atenção especial da doutrina.


O mérito desta designação coube a BINDING e têm sido largamente estudados por
ROXIN na sua importante obra Täterschaft und Täterschaft. JAKOBS entende os
crimes de mão própria como aqueles que “o tipo de ilícito consiste na realização
física de uma acção reprovável, e em que a essência do ilícito radica numa atitude
defeituosa do agente relativamente aos seus deveres pessoalíssimos”.
Para TERESA BELEZA, os crimes de mão própria “são aqueles cuja
definição legal torna impensáveis em qualquer forma de autoria que não seja
directa, imediata, material, dado que a acção descrita só é susceptível de ser
praticada por mão própria, isto é, com o próprio corpo como o perjúrio, bigamia
e alguns crimes sexuais”.

14
De tudo quanto se disse, o artigo 26.º se apresenta de carácter
inovador e elimina, em parte, que agentes que tenham participado na
realização de um facto e, a princípio, não tenham a qualidade exigida para
preencher o tipo penal incriminador (pense no peculato e na prevaricação)
possam ser responsabilizados nessa qualidade caso o outro agente que
tenha essa qualidade exigida pelo tipo cometa o facto. Essa qualidade, na
linguagem da lei, comunica-se entre os agentes. Logo, a punição será
como se detentor desta qualidade se tratasse. Repetimos que, mais do
que a simples comunicação, exigir-se-ia o conhecimento destas
qualidades, enfim, talvez em uma próxima revisão da lei penal.

GERMANO MARQUES DA SILVA define estes crimes como sendo “aqueles


que só podem ser praticados pela própria pessoa que reúna as qualidades que a
lei exige como elemento do próprio crime”, embora pareça que esta definição
assemelha aos crimes específicos, se virmos bem.
FIGUEIREDO DIAS entende que os crimes de mão própria “são aqueles em
que o preceito legal quer abranger como autores apenas aqueles que levam a cabo
a acção através da sua própria pessoa, não através de outrem, querendo abranger
apenas os autores imediatos, ficando excluída a possibilidade da autoria mediata;
e mesmo co-autoria relativamente àqueles comparticipantes que não tenha
chegado a executar por próprias mãos a conduta típica”. Os crimes de mão livre
podem elevar-se a uma categoria autónoma de crimes? Há, no Código Penal,
crimes de mão livre? Neste quesito, corroboramos AMÉRICO TAIPA DE
CARVALHO nos seguintes termos e condições: “os chamados crimes de mão
própria não constituem uma categoria autónoma de crimes; se, no passado, houve
razões para autonomizar e atribuir um regime específico, em matéria de
comparticipação, a determinados crimes de dever, hoje, a partir da centralização
do direito penal no facto e na tutela de concretos bens jurídicos, deixa de haver
razão para tratar esses tradicionais crimes de mão própria com um regime
diferente dos normais crimes específicos...”.

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Referências Bibliográficas

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Beccaria, C. d. (1821). Dos delitos e das Penas.
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