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A POSITIVIDADE COMBATIVA

Pedro Fauth Manhães Miranda*

O Direito não é o mais eficaz dos instrumentos para se chegar à


Justiça Social, se não for o menos. Não há como chegar a diferente
conclusão em face da atuação do Poder Judiciário, que é o órgão
encarregado de dizer o Direito: o estudante que furta três livros de uma
biblioteca é preso 1, mas o político que pratica o “mensalão” pode renunciar
ao seu mandato e concorrer às próximas eleições (!); o MST, movimento que
reivindica um pedaço de terra para plantar e viver, tem o seu direito ao
contraditório e ampla defesa constantemente diminuído quando réu em um
processo, enquanto que os policiais que assassinam os integrantes desse
movimento são absolvidos2.

Frente a esta situação, é lógico que o Direito é apenas direito para


aqueles que podem pagar bons advogados ou têm leis e normas injustas ao
seu lado, enquanto que ele é torto para os pobres e para os que têm os seus
direito básicos esquecidos. Não há justiça, e a igualdade perante a lei, tão
lembrada pelo nosso ordenamento jurídico, não existe de fato!

Tal é o pensamento de boa parte dos brasileiros indignados com a


situação atual da Justiça. Todavia, não é o nosso. As pessoas que afirmam
que “O Direito é injusto” ou que “O Direito é feito para a elite” confundem o
Direito com sua aplicação e é nela que reside a fonte das indignações acima
exemplificadas. A Positividade Combativa, tema a ser tratado neste texto
tem como objetivo aplicar o Direito de forma mais justa, com a aplicação
mais direta dos princípios. Todavia, antes de adentrarmos na discussão sobre
este tema, é necessário distinguir o Direito de sua aplicação.

O que é Direito?

Tal pergunta não pode ser respondida em algumas linhas ou mesmo


em centenas de páginas. Ao longo da História, inúmeros filósofos e juristas

*
Acadêmico do 3º Ano do Curso de Direito Matutino da Universidade Estadual de londrina. E-mails:
pedro_fmm@yahoo.com.br ou pedrofmm@pop.com.br.
1
http://www.imprensapopular.com/see.asp?codnews=1813
2
http://www.terra.com.br/istoe/politica/156026.htm

1
tentaram respondê-la, mas nenhum conseguiu fazê-lo de maneira que fosse
compartilhada e aceita por todos.

No código romano de doutrinas (Digesto), por exemplo, há a seguinte


definição: "O direito civil é composto apenas pela interpretação dos
jurisprudentes; não está escrito".

Para Max Weber, entretanto, “direito é aquilo que o legislador,


democraticamente legitimado ou não, estabelece como direito, seguindo um
processo institucionalizado juridicamente3”.

Hans Kelsen, o expoente do juspositivismo, afirmava que “Direito é a


lei”, sendo que o seu operador teria apenas a função de aplicar a norma
positivada ao caso concreto.

Para nós, entretanto, as definições do que é Direito são muito


extremistas, tratando de apenas algumas características ou elementos seus
(jurisprudência, processo legislativo, a lei em si etc). A definição de tal
instituto deve ser abrangente, de modo que não se limite apenas a certos
elementos que o compõem, mas não tão genérica, a ponto de afirmar que
"Direito é o que é devido a outrem, segundo uma igualdade" (São Tomás de
Aquino), pois desse modo não seria possível traçar-lhe limites.

A lei escrita, positivada, é elemento que constitui o Direito. Isto é


certo. Mas, e quanto às decisões tomadas por um certo juiz ou Tribunal
(jurisprudências) que serviram de base para uma outra sentença? E quanto à
carga valorativa construída durante a vida, que o julgador traz para o
julgamento, sem a qual ele não poderia sequer interpretar o que é, por
exemplo, a função social e a igualdade perante a lei (princípios normatizados
na Constituição Federal)?

Lembrando que o objetivo não é definir taxativamente o que é Direito,


mas apenas delimitar o seu conceito, norteando o nosso debate, poderíamos
enquadrá-lo na seguinte frase:

3
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade – volume II. Rio de
Janeiro; Tempo Brasileiro: 1997. p; 193.

2
Direito é tudo aquilo que pode ser invocado pelo seu intérprete ou
operador, para a formação de sua convicção acerca do caso concreto,
visando sempre a Justiça Social e o Bem Comum.

Não se faz necessário determinar quem são o intérprete e o operador


em questão. Pode ser um juiz, advogado, estudante, professor, doutrinador
ou qualquer outra pessoa que esteja exercendo a função de análise do
Direito.

A definição acima afirma que os componentes do Direito são o


ordenamento jurídico todo (Constituição, leis nacionais e internacionais,
princípios...), jurisprudência, doutrina e os valores trazidos pelo seu
intérprete, em face da sua vivência.

O ordenamento jurídico é o conjunto de entes normativos entre os


quais existe certa ordem e coerência lógica. Tal “ordem coerente” é
explicada por Hans Kelsen. De acordo com ele, as leis devem se posicionar
seguindo uma classificação, de acordo com a importância do seu conteúdo,
como em uma pirâmide. No topo dessa pirâmide está a norma fundamental
“que não depende de nenhuma outra norma superior, e sobre a qual repousa
a unidade do ordenamento. (...) Todas as fontes do direito podem ser
remontadas a uma única norma4”. A norma basilar em questão é a
Constituição Federal, a qual cria limites materiais a todas e quaisquer leis ao
impor que estas devem seguir o seu texto, sob pena de
inconstitucionalidade.

Importante observar que mesmo dentro da Constituição, há uma


hierarquia a ser respeitada, sendo que os princípios figuram no seu topo, já
que constituem a base para todas as outras normas do ordenamento. Há, até
mesmo, uma outra hierarquia, a qual se dá entre os princípios. Esta última,
apesar de importante, não será tratada aqui, pois a discussão a que este
texto se presta é sobre a aplicação dos princípios em geral, sendo que todos
eles devem seguir regras comuns para serem aplicados, e nenhuma outra
além delas será abordada.

4
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 6ª edição. Brasília; Editora Universidade de
Brasília, 1995. p. 49.

3
Já que todas as outras leis e decisões judiciais devem respeitar a
Constituição, devem também se subordinar aos seus princípios, ou seja, a
prevalência dos direitos humanos, a igualdade perante a lei, a honra, a
dignidade da pessoa humana, a liberdade de locomoção, a função social da
propriedade, o direito à vida, à paz, à democracia, à religião, à liberdade de
pensamento, dentre todos os outros princípios garantidos por ela.

Partindo da obrigação de que todo o resto do ordenamento jurídico


deve respeitar os princípios mencionados, como é possível afirmar que ele é
injusto? Nenhuma lei que vise a dignidade humana e o direito à vida pode
ser injusta. É certo que existem leis contra estes e outros princípios, mas
estas não fazem parte do ornamento jurídico “legal” e deveriam ser
declaradas inconstitucionais, se não no seu todo, ao menos quanto aos
dispositivos “ilegais” para determinado caso concreto. Entretanto, o que
ocorre atualmente é o efeito denominado por alguns de “baixa
constitucionalidade”, que é a criação generalizada de leis inconstitucionais,
sendo que tais leis continuam servindo em sua totalidade de base para as
decisões do Poder Judiciário, Poder este que deveria se opor a estas normas.
Segundo o nosso entendimento, deveriam ser consideradas como integrantes
do ordenamento apenas as “verdadeiras” leis e normas, ou seja, as que não
confrontassem princípios constitucionais, direitos humanos e fundamentais.
Desse modo, o ordenamento teria apenas dispositivos justos e socialmente
igualitários.

Quanto aos outros componentes do Direito (doutrina, jurisprudência e


valores), eles também devem estar subordinados à Constituição sob pena de
serem considerados ilegais. Existem, é claro, doutrinadores que têm a
petulância de afirmar, por exemplo, que o marido ao forçar a esposa a ter
relações sexuais com ele não estaria cometendo o crime de estupro, pois
estaria no exercício regular dos seus direitos. Porém tais doutrinas só
existem porque também há jurisprudências e valores que caminham no
mesmo sentido! Todos estes elementos devem ser repudiados pelo intérprete
jurídico, pois não respeitam o livre-arbítrio das mulheres, conquistado depois
de tanto tempo e perseverança.

4
Portanto, os elementos que forem contrários a princípios jurídicos e
direitos básicos, não são considerados por nós sequer componentes do
Direito, mas sim leis, jurisprudências, doutrinas ou valores “ilegais”,
estranhos ao Direito justo.

A aplicação do Direito.

A sociedade é incrédula em relação ao Direito, porque a sua aplicação


pelo Judiciário que é desumana e ilegal. No momento da aplicação do Direito
ao caso concreto, o intérprete deve analisar a situação colocada à sua frente.
Se ela se encaixa no mundo jurídico, ou seja, deve ser julgada pelo Direito,
ele deverá se perguntar: “Quais são os elementos do Direito que devem ser
utilizados para julgar este caso?”. À sua disposição estão, como já afirmado,
as leis, as jurisprudências, as doutrinas e os valores, havendo os “legais” e
os “ilegais”.

A aplicação do Direito é correta, portanto, até o momento em que são


considerados como seus, os elementos “legais”. Porém, se no andamento da
sua interpretação, o operador jurídico invoca elementos “ilegais”, a aplicação
do Direito fica contaminada, tornando-se equivocada e torta. O caso concreto
é analisado de acordo com a aplicação que lhe é conferida pelo operador do
Direito em questão, cabendo a ele, e tão somente a ele, dá-lo um
julgamento valorativo, com base no seu livre convencimento.

Positividade Combativa.

È nesse momento, o da aplicação do Direito, da interpretação do caso


concreto, que entra a Positividade Combativa. Esta teoria busca a obediência
aos princípios normatizados na nossa Constituição Federal, mesmo que para
isso as normas inferiores tenham que ser contrariadas (observemos que isto
não atenta contra a pirâmide normativa de Kelsen5).

Norberto Bobbio, ao discorrer sobre métodos que preenchem as


lacunas deixadas pelas leis, cita a heterointegração e autointegração,

5
Deve ficar claro que a Positividade Combativa se baseia em Kelsen apenas quanto à construção
da pirâmide normativa, para embasar a força jurídica da Constituição, repudiando totalmente sua
teoria positivista (extremamente legalista e antiquada).

5
terminologias criadas por Carnelutti. A segunda nos interessa em especial,
visto que possui muita similaridade com a Positividade Combativa: “consiste
na integração cumprida através do mesmo ordenamento, no âmbito da
mesma fonte dominante, sem recorrência a outros ordenamentos e com o
mínimo recurso a fontes diversas da dominante6”. A referida fonte dominante
é a Lei, sobretudo a Constituição.

Ambas as teorias acreditam que a resposta para a aplicação mais justa


do Direito pode ser encontrada no próprio ordenamento jurídico, pois se os
princípios fossem respeitados haveria uma evolução na aplicação do Direito,
visto que todas as decisões jurídicas seriam baseadas no bem comum e na
justiça social, mesmo que resultassem em sentenças contrárias a normas
infraconstitucionais.

Para exemplificar uma aplicação jurídica que não se baseie na


Positividade Combativa e outra que o faça, imaginemos dois juízes. Ambos
irão julgar condutas idênticas, a saber: a tomada de um pedaço de terra
correspondente a 5% de um latifúndio improdutivo, praticada pelos
integrantes do Movimento dos Sem-Terra.

O primeiro juiz alega que a conduta agride a legalidade proibidora do


esbulho possessório, contida no artigo 161, § 1º, inc. II, do Código Penal7,
aplicando a pena máxima de seis meses e multa a todos os integrantes do
movimento que praticaram o delito.

O segundo juiz argumenta que o MST comete tais atos porque o


Estado, que deveria propiciar condições para que seus integrantes
obtivessem um pedaço de terra para plantar e morar, não cumpre com as
suas obrigações, levando-os a buscarem um meio para conseguir a
efetivação dos seus direitos. Além disso, afirma que eles agem dessa forma
com base no princípio da dignidade da pessoa humana e no da função social
da propriedade, ambos presentes no texto constitucional (artigos 1º, inciso
III e 5º, inciso XXIII, respectivamente), excluindo a tipicidade do crime e
dando ganho de causa aos integrantes do MST.

6
BOBBIO, op. cit., p. 147.
7
Art. 161. (...) Pena - detenção, de um a seis meses, e multa. § 1º - Na mesma pena incorre
quem: (...) II - invade, com violência a pessoa ou grave ameaça, ou mediante concurso de mais de
duas pessoas, terreno ou edifício alheio, para o fim de esbulho possessório.

6
O primeiro, portanto, ficou restrito ao ordenamento jurídico, ou seja,
tão somente ao Direito positivado, empregando-se de dispositivos que se
tornam ilegais quando não aplicados em conformidade com princípios (o
artigo 161 do Código Penal é justo apenas quando aplicado àquele que
merece receber a punição prevista, por não ser obrigado a adentrar em
propriedade alheia para sobreviver). Indivíduos como este, defensores do
legalismo a todo custo, mesmo que em detrimento da justiça social, fazem
do Direito uma instituição conservadora do status quo. O segundo julgador,
contudo, foi além e julgou o caso com base na situação vivida pelos sem-
terra e em princípios, que apesar de expostos na Constituição, não são
conceituados pelo legislador e exigem uma interpretação além da usual. Ele
utilizou a Positividade Combativa para sentenciar o caso.

Amílton Bueno de Carvalho nos ensina que a Positividade Combativa


atua “para que as conquistas democráticas que já foram erigidas à condição
de lei tenham efetiva concretização, ante a crescente tendência do
descumprimento das normas que representam vitórias populares8”.

Todavia, para boa parte dos operadores do Direito, exemplificada aqui


pelo primeiro julgador, os princípios não possuem a mesma obrigatoriedade
das outras normas. Seriam apenas ilustrativos do ordenamento jurídico, ou
mesmo “perfumaria jurídica”, como chegam a afirmar alguns docentes
conhecidos do nosso meio.

Não há como legislar ou decidir justamente sem seguir o núcleo


constitucional, ou seja, a sua ideologia, representada pelos princípios, visto
que eles são imperativos de justiça, de honestidade ou de alguma outra
dimensão moral, já acatada pela sociedade, como afirma Ronald Dworkin.
Desse modo, os princípios devem possuir a mesma obrigatoriedade das
outras normas.

No mesmo sentido, Norberto Bobbio exprime sua clássica


argumentação: “se são normas aquelas das quais os princípios gerais são
extraídos, através de um procedimento de generalização sucessiva, não se

8
CARVALHO, Amílton Bueno de. Direito Alternativo – Teoria e Prática. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,
2004. p. 60.

7
vê por que não devam ser normas também eles: se abstraio da espécie
animal obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas9”.

Alguns doutrinadores afirmam, contudo, que apenas as regras são


suscetíveis de aplicação direta, enquanto que os princípios devem ser
mediados por instrumentos legais destinados ao seu norteamento. Tal não é
nosso entendimento, pois o princípio da igualdade, por exemplo, se encontra
disseminado pela legislação nacional, mas nem por isso é vedado ao operador
jurídico invocá-lo quando se referir a direitos básicos que não se encontram
na nossa legislação (ex: não há leis ou sequer direitos básicos voltados para
os homossexuais, mas isso não quer dizer que o princípio da igualdade não os
atinja ou que tais pessoas não possam ser defendidas com base nele). Se for
possível que ainda haja alguém contrário a essa idéia e que fundamente sua
tese na “segurança jurídica” e na necessidade de se ater à lei, vejamos o que
dispõe o texto constitucional em seu artigo 5º, § 1º:

“As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais


[princípios da Constituição] têm aplicação imediata”.

Ora essa, o próprio ordenamento jurídico põe fim a essa discussão.


Desse modo, não há o que ser argumentado por parte dos legalistas, pois os
que não seguem os princípios constitucionais é que estão violando norma
superior expressa e abalando a segurança jurídica! São eles os criadores do
Direito ilegal.

A diferença entre regras e princípios, portanto, não está na


possibilidade de aplicações imediatas, pelo contrário, este é um ponto em
comum, mas sim porque a regra é utilizada para regular um número
determinado de atos e fatos (devido a sua abstração reduzida e maior
densidade semântica), enquanto que os princípios permeiam por todos os
atos e fatos, comportando uma série infinita, ou quase, de aplicações (por
terem elevados grau de abstração e conteúdo axiológico, além da baixa
densidade semântica).

“Inclusive quando os princípios não estejam retomados e


desenvolvidos por preceitos mais precisos e específicos (regras), é possível –

9
BOBBIO, op. cit., p. 158.

8
embora dificilmente operacional – deduzir e atender diretamente pretensões
com fundamento exclusivo nesses princípios jurídicos10” (grifo nosso). Desse
modo, além de imediato, o emprego dos princípios na interpretação do
Direito pode ser exclusivo, embasado tão somente neles. Embora isso seja
possível, faz-se necessário esclarecer que a melhor alternativa é a criação de
leis protetoras dos princípios, pois “sem tais, o princípio tende servir como
adorno (poucos ousam dar efetividade a eles sem normas infras). Daí porque
se tem como boa a legalidade 11”, pois ela apenas dá um rumo ao
pensamento jurídico, não sendo limitativa (ex: o Estatuto da Criança e do
Adolescente aborda apenas ramificações dos direito de cidadania e de
igualdade, sem defini-los taxativamente).

Mas e quanto aos princípios não agasalhados por lei infra; que não
possuem sequer um norte a ser seguido? Como aplicá-los? Não há lei que
conceitue ou disponha sobre a aplicação do princípio da dignidade da pessoa
humana. Segundo o artigo 6º da Declaração Universal dos Direitos do
Homem, claramente recepcionada pelo nosso Direito, “todo homem tem o
direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei”,
mas não há dispositivo algum que determine quais são as condutas que
reconhecem e as que não reconhecem o homem como pessoa perante a lei.
Este não é um defeito dos princípios exemplificados, mas sim uma
propriedade intrínseca a eles, pois mesmo os princípios abordados por leis
ainda possuem um alto grau de abstração.

A generalidade do princípio pode ser vista como uma impossibilidade


para sua aplicação, pois ela deve se dar de acordo com a definição de justiça
dada pela sociedade, sendo que o justo para fulano pode não ser para
sicrano. Essa pluralidade de definições é chamada de poliformia dos
princípios constitucionais, mas ela não deve ser encarada como obstáculo à
utilização dos mesmos. Cármen Lúcia A. Rocha afirma que “a poliformia dos
princípios constitucionais não propicia a multiplicidade conceitual simultânea
(...). Os princípios têm um significado considerado institucional e

10
ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. Segunda tiragem. Porto Alegre;
Sergio Antonio Fabris Editor: 2003. p. 22.
11
CARVALHO, op. cit., p. 62.

9
formalmente válido e vigente em dado momento. A mutação havida no
Direito é que substancia um novo entendimento a ser nele vislumbrado12”.

A nosso ver, tal opinião é muito extremista, pois considera como válido
para determinada época e lugar apenas um conceito sobre os princípios.
Consideramos que pode haver, sim, mais de uma definição para eles, visto
que são realmente muito abrangentes e, em grande parte, carentes de
legislação protetora. Entretanto, tais conceituações não podem ser
excludentes, ou seja, há limitações, pois é impossível que usemos o mesmo
princípio, como o do devido processo legal tanto para justificar como para
condenar condutas protelatórias (neste caso, apenas a condenação seria
válida). Desse modo, o aplicador do Direito tem de restringir a conceituação
e utilização dos princípios em vista da justiça, progresso social, bem comum,
direitos constitucionalmente garantidos (vida, lazer, trabalho...) e mesmo
outros princípios constitucionais.

Gomes Canotilho resume bem esta questão: “os princípios não


permitem opções livres (...); permitem, sim, preojecções ou irradiações
normativas com um certo grau de discricionariedade (indeterminabilidade),
mas sempre limitadas pela juridicidade objectiva dos princípios 13”.

Desse modo, os princípios obrigam o aplicador do Direito a se utilizar


deles, se não de forma direta e/ou exclusiva, pois estas alternativas apenas
serão viáveis quando estritamente necessárias, ao menos como nortes a
serem seguidos. E é esta aplicação obrigatória dos princípios que irá forçar a
utilização de apenas elementos legais na interpretação jurídica, culminando
no enfraquecimento do Direito ilegal.

Devemos exigir do aplicador jurídico uma medida razoável de bom


senso; que olhe para a sua função e perceba que no processo não figuram
tão somente autor e réu, requerente e requerido, mas sim pessoas comuns
que dependem dele para a efetivação dos seus direitos, e que, muitas vezes,
têm numa ação comum a vida em jogo.

Não acreditamos que a Positividade Combativa possa salvar sozinha o


Direito de se transformar em um “latifúndio improdutivo” (Lédio Rosa de

12
ROCHA, 1994 apud ROTHENBURG, op. cit., p. 21.
13
CANOTILHO, 1993 apud ROTHENBURG, op. cit., p. 18.

10
Andrade). Falta conceituar aos três poderes o que é coerência, vergonha,
educação e bom senso, pois ao que tudo indica nenhum de seus membros
sabe o que tais palavras significam. Mas falta, principalmente, consciência
para a sociedade. Consciência do seu poder de exigir uma aplicação justa do
Direito, dentre outras milhões de reivindicações necessárias para mudar o
rumo da História.

Enquanto fingimos que os problemas acima expostos não nos atingem


e que não somos seus criadores, difundamos, ao menos, a obediência aos
princípios constitucionais básicos. Já um começo para a concretização de
uma utopia, longe de ser alcançada, mas não inatingível: a de que a
aplicação do Direito pode ser justa!

BIBLIOGRAFIA

BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 6ª edição. Brasília;


Editora Universidade de Brasília, 1995.

CARVALHO, Amílton Bueno de. Direito Alternativo – Teoria e Prática. Rio de


Janeiro: Lúmen Júris, 2004.

FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito – técnica,


decisão, dominação. 3ª edição. São Paulo; Atlas, 2001.

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade –


volume I. Rio de Janeiro; Tempo Brasileiro: 2003.

______. Direito e Democracia: entre facticidade e validade – volume II. Rio


de Janeiro; Tempo Brasileiro: 1997.

HERKENHOFF, João Baptista. Direito e Utopia. São Paulo; Acadêmica: 1990.

ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. Segunda tiragem.


Porto Alegre; Sergio Antonio Fabris Editor: 2003.

SARLET, Ingo Wolfgang. O Direito Público em Tempos de Crise – estudos em


homenagem a Ruy Ruben Ruschel. Poro Alegre; Livraria do Advogado: 1999.

http://www.imprensapopular.com/see.asp?codnews=1813. Acesso em:


11/10/05.

http://www.terra.com.br/istoe/politica/156026.htm. Acesso em: 11/10/05.

11

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