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APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELO DELEGADO DE

POLÍCIA

Pabline Evelyn Coelho Lemke Schrader

Resumo: O termo princípio da insignificância diz respeito à exclusão do âmbito penal de


condutas que, embora formalmente típicas, carecem de tipicidade material. Isto porque são
considerados alguns vetores estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal como a mínima
ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, reduzidíssimo
grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada. A
aplicabilidade do princípio da insignificância é pacífica pelo Poder Judiciário, todavia,
questiona-se sobre a possibilidade de sua aplicabilidade pelo delegado de polícia que, para
alguns, só analisa a tipicidade formal do delito e, para outros, considera também a tipicidade
material. Neste artigo, pretende-se demonstrar a legitimidade e adequação da possibilidade de
constatação da tipicidade material pelo delegado de polícia, com o intuito de evitar uma
desnecessária persecução penal, descongestionando o judiciário e preservando a
razoabilidade, a proporcionalidade e a dignidade humana.

Palavras-chave: Princípio da Insignificância. Tipicidade. Vetores de reconhecimento.


Delegado de Polícia.

1 Introdução

Este artigo discorre sobre a possibilidade do delegado de polícia aplicar o


princípio da insignificância em sua atividade, quando presentes a existência dos vetores de
interpretação estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal, sendo eles: a) mínima
ofensividade da conduta do agente, b) nenhuma periculosidade social da ação, c)
reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) inexpressividade da lesão
jurídica provocada. Assim, o delegado de polícia passaria a analisar também a tipicidade
material da conduta, não somente a tipicidade formal. Existem debates doutrinários e
jurisprudenciais acerca do assunto, mas ainda há necessidade de aprimoramento da discussão.

Artigo apresentado como requisito parcial para a conclusão do curso de Especialização em Gestão da
Segurança Pública e Investigação Criminal Aplicada da Academia da Polícia Civil de Santa Catarina –
ACADEPOL-IES.
Pós-Graduanda em Gestão da Segurança Pública e Investigação Criminal Aplicada pela ACADEPOL,
formada em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina, Escrivã de Polícia Civil do Estado de Santa
Catarina. E-mail: pabline@pc.sc.gov.br.
Na conjectura atual do Estado Democrático de Direito não há mais espaço para o
formalismo exacerbado, visto que se mostra extremamente prejudicial tanto às instituições de
segurança pública como para à sociedade, pois tende a retardar uma mais justa e célere
atuação do Estado frente às demandas sociais. Isto porque, antes da ação penal ser interposta
há necessariamente, um trabalho de polícia judiciária que, em detrimento de casos mais
graves, perde-se considerável tempo em torno de delitos que, pela insignificância dificilmente
serão objetos de sentença condenatória. O tempo despendido por policiais tanto para as
oitivas, como para intimações, bem como os recursos utilizados nessas práticas como, por
exemplo, o excesso de papéis, certamente acaba faltando em outras atividades que, por serem
mais gravosas e prementes, necessitariam de um olhar mais dedicado por parte de todos os
agentes do sistema de segurança pública. É neste contexto, de um direito penal mínimo,
voltado à fortificação dos direitos individuais, como a liberdade, bem como a defesa de uma
atuação estatal mais eficiente, é que se defende a aplicação do princípio da insignificância,
por parte do delegado de polícia.
O assunto será estruturado em sete seções. A primeira refere-se ao conceito de
princípios como normas jurídicas os quais, em razão de sua positividade e vinculatividade,
são aplicáveis ao caso concreto. A segunda seção trata de alguns princípios penais
constitucionais que fundamentam a existência do princípio da insignificância. A terceira seção
faz um breve histórico do conceito de tipicidade, abordando as principais teorias, e
finalizando pela teoria adotada pelo Código Penal – Teoria Finalista. A quarta seção refere-se
ao princípio da insignificância, com ramificações que lhe são pertinentes, como sobre sua
fundamentação ideológica, a tipicidade formal e material, os requisitos necessários para sua
concreta aplicabilidade, entendimentos jurisprudenciais sobre casos concretos. Após, a sexta
seção busca explicar os critérios para o reconhecimento do princípio da insignificância sendo
os vetores (a) mínima ofensividade da conduta do agente, (b) nenhuma periculosidade social
da ação, (c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) inexpressividade
da lesão jurídica provocada. Por fim, a sétima seção discorre sobre os argumentos favoráveis
à aplicação do princípio da insignificância pelo Delegado de Polícia, com a formalização
material e processual, visto que é o delegado de polícia o primeiro garantidor da legalidade do
procedimento de investigação preliminar.
Concluindo-se, serão expostas as últimas considerações sobre o tema examinado,
trazendo resumida narrativa do trabalho, com o desfecho sob a ótica da autora.
2 Princípios como normas jurídicas

Em face da temática abordada, faz-se necessário, antes de adentrar nas referências


ao princípio da insignificância, definir que atualmente os princípios jurídicos deixaram de ser
apenas aquelas diretrizes que “prescrevem fins a serem atingidos e servem de fundamento
para aplicação do ordenamento constitucional”.1 Hoje, além do seu clássico papel de
regulamentação das regras positivas, os princípios passaram a ser encarados como autênticas
normas jurídicas, as quais, em razão de sua positividade e vinculatividade, são aplicáveis ao
caso concreto.
Pode-se dizer que são aplicáveis em razão da sua positividade aqueles princípios
expressamente previstos no ordenamento jurídico, aos quais é atribuída a força de lei, como o
da legalidade, da igualdade e da humanidade.
Da mesma forma, os princípios que não são formalmente previstos no texto legal,
considerados implícitos2, também são aplicáveis, podendo-se dizer que estão insertos no
ordenamento por um processo hermenêutico que se dá com o auxílio da doutrina, da
jurisprudência. Nesse grupo, são exemplos os princípios da intervenção mínima e da
insignificância.3 (sem grifos no original).
Esse também é o entendimento de Eros Grau ao afirmar que tanto os princípios
expressos como os implícitos são normas jurídicas4.
Em consonância com o acima exposto, tem-se que os princípios são os elementos
basilares do ordenamento jurídico, pois vinculam todas as normas, tanto constitucionais como
infraconstitucionais, assim como sua forma de aplicação e interpretação das mesmas. Por

1
ÁVILA, Humberto. Teoria do Princípios. 4ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 15.
2
Na Constituição Brasileira a existência desses princípios implícitos é expressamente reconhecida na cláusula
constitucional de reserva prevista em seu art. 5º, § 2º, pela qual, ‘os direitos e garantias expressos nesta
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil for parte (SILVA, Ivan Luiz. Princípio da
insignificância no direito penal. Curitiba: Juruá, 2006, p. 100).
3
ROBERTI, Maura. Intervenção Mínima como Princípio no Direito Penal Brasileiro. Porto Alegre, Sérgio
Antônio Fabris Editor, 2001, p.54-55.
4
Os princípios, todos eles – os explícitos e os implícitos – constituem norma jurídica. Também os princípios
gerais de direito – e não será demasiada a insistência, aqui, em que se trata de princípios de um determinado
direito – constituem, estruturalmente, normas jurídicas. Norma jurídica é gênero que alberga, como espécie,
regras e princípios – entre eles estes últimos incluídos tanto os princípios explícitos quanto os princípios gerais
do direito. Acerca desta tendência “pós-positivista” que reconhece a aplicação direta ao caso concreto dos
princípios implícitos, Ruy Espíndola leciona: [...] Essa tendência tem sido chamada de pós-positivista. Seus
postulados vão muito além: entendem os princípios como normas jurídicas vinculantes, dotados de efetiva
juridicidade, como quaisquer outros preceitos encontráveis na ordem jurídica; consideram as normas de direito
como gênero, do qual os princípios e as regras são espécies jurídicas. Essas colocações constituem apenas
postulados dessa inovadora e progressista corrente do pensamento jurídico contemporâneo. (GRAU, Eros.
Ensaio e Discurso Sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 3º ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 45).
terem este caráter de norma jurídica, pode-se dizer que são diretamente aplicáveis ao caso
concreto em razão de sua positividade (expressos) e vinculatividade (implícitos).
Diante disto, para melhor identificar os princípios jurídicos, vale destacar a
distinção entre os princípios e regras realizada por Ronald Dworkin e Robert Alexy. Para
tanto, será utilizado em relação à obra de Ronald Dworkin a interpretação de Humberto Ávila
e Andréia Cezne5.
Segundo Ávila, Ronaldo Dworkin distingue princípios e regras, por meio do
critério da aplicação e do conflito entre elas. Para Dworkin, as regras são aplicadas de forma
“tudo ou nada” (all or nothing), ou seja, ocorrendo as condições para incidência as regras são
válidas e, portanto, aplicáveis ou são inválidas e não aplicáveis. E, caso continue o conflito
das regras, o choque será solucionado pela exclusão de algumas delas do ordenamento
jurídico6.
Por sua vez, continua Dworkin, os princípios não determinam necessariamente a
decisão, mas proporcionam os fundamentos a serem aplicados a ela. Por esta razão a colisão
entre os princípios é resolvida pelo critério, ou dimensão, do ‘peso ou importância’
(dimensiono of weight), em que dependendo do caso concreto aplica-se o princípio que tiver
maior peso ou importância7.
De modo semelhante se dá a distinção entre princípios e regras de Robert Alexy,
que parte da teoria dworkiana e desenvolve a sua com algumas peculiaridades. Primeiramente
Alexy parte da premissa de que norma jurídica é o gênero da qual fazem parte os princípios e
as regras como espécie. Senão vejamos as próprias palavras de Alexy8.

Aqui las reglas y los princípios serán resumidos bajo el concepto de norma. Tanto
las reglas como los princípios son normas porque ambos dicen lo que debe ser.
Ambos pueden ser formulados, con la ayuda de las expresiones deónticas básicas del
mandato, las permisión y las prohibición. Los princípios, al igual que las reglas, son
razones para juicios concretos de deber ser, aun cuando sean razones de um tipo
muy diferente. La distinción entre reglas y princípios es pues una distinción entre
dos tipos de normas.

5
Robert Alexy faz parte de um elenco de autores que acabaram por criar teses que mudaram consideravelmente
a visão de ciência do direito. A partir de inúmeras críticas ao positivismo jurídico, elaborou-se um novo modelo
de pensar o direito; inauguram, portanto, uma nova “escola do direito”, a do pós-positivismo. (AMORIM,
Letícia Balsamão. A distinção entre regras e princípios segundo Robert Alexy: esboço e críticas. Revista de
Informação Legislativa, Brasília, ano 42, n.165, p.123-134, jan./mar. 2005).
6
ÁVILA, 2005, p.28.
7
ÁVILA, loc. cit.
8
Aqui as regras e os princípios serão resumidos categorias do conceito de norma. Tanto as regras como os
princípios são normas jurídicas porque ambos dizem o que deve ser. Ambos podem ser formulados, com a ajuda
das expressões deónticas básicas do mandamento, as permissões e as proibições. Os princípios, são iguais as
regras, são razões para juízos concretos de dever ser, quando senão razões de um tipo muito diferente. A
distinção entre regras e princípios é pois uma distinção dentre dois tipos de normas (ALEXY, Robert. Teoria de
Los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estudos constitucionales, 1993, p.83).
Para Alexy, o ponto crucial para a distinção entre princípios e regras, é que:

los princípios son normas que ordenan que algo sea realizado en la mayor medida
posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. 9 Por isso, são
mandatos de optimización en diferentes grado y que la medida debida de su
cumplimiento no sólo depende de las posibilidades reales sino también de las
jurídicas10.

Por outro lado, a colisão de princípios ocorre quando algo é permitido por um
princípio e vedado por outro, neste caso, segundo o autor deverá ser resolvido pela
11
ponderação dos princípios, ou seja, “uno de los princípios tiene que ceder ante el outro” .
Portando, faz-se uma ponderação dos interesses opostos, e um dos princípios cede lugar ao
outro dependendo das circunstâncias de cada caso12.
Em suma, Robert Alexy identifica os princípios em razão de sua aplicação
ponderada diante do caso concreto, ou seja, podem ser cumpridos em distintos graus.
Enquanto as regras incidem de forma “tudo ou nada”. Isso por que:

Los conflitos de reglas se llevan a cabo em la dimensión de la validez; la colison de


princípios – como solo pueden entrar en colisón princípios validos – tiene lugar más
allá de la dimensíon de la validez, es dimensión del peso 13.

Como se vê, ocorrendo colisão entre os princípios, tal resolve-se no sistema de


peso relativo a cada um, ponderando-os, em utilização ao princípio da proporcionalidade.
Porém, quanto às regras, apenas podem conflitar quanto à validade ou não, e nunca quanto ao
seu valor.
Em remate, tem-se que os princípios, em especial o da insignificância, devem
incidir ao caso concreto mediante um juízo de ponderação entre o bem jurídico que, em tese,

9
Os princípios são normas que determinam que se realize algo na maior medida do possível, em relação às
possibilidades fáticas e jurídicas (ALEXY, loc. cit).
10
Por isso, são mandamentos de otimização, ou seja, podem ser cumpridos em distintos graus e seu
cumprimento depende de condições fáticas e jurídicas. Progredindo em suas explanações afirma que a distinção
entre princípios e regras desponta com mais nitidez na colisão de princípios e no conflito de regras. No conflito
de regras o autor soluciona introduzindo uma cláusula de exceção que elimina o conflito; ou caso não seja
possível incluir uma cláusula de exceção, a solução é declarar inválida uma delas, sendo eliminada do
ordenamento jurídico a regra inválida( ALEXY, loc. cit).
11
Um dos princípios tem que ceder lugar ao outro. (ALEXY, 1993, p. 89).
12
Assim, para a solução do caso concreto aplicar-se-á o princípio que tem maior peso diante daquelas
circunstâncias, ou seja, “en los casos concretos los princípios tienen diferente peso y que prima el principio com
mayor peso”. Entretanto, diferente das regras, na relação de precedência dos princípios “no significa declarar
invalido al principio desplazado ni que en el principio desplazado haya que introduzir una clausula de
excepción”. (ALEXY, loc. cit)
13
No conflito de regras leva-se em consideração a dimensão de validade, já na colisão dos princípios, como só
pode entrar na colisão princípios válidos, a dimensão é a de peso (ALEXY, loc. cit).
foi lesionado e o direito de alguém que pode ser privado de sua liberdade (gravidade da pena
aplicada).
Após esta breve distinção entre princípios e regras, convém frisar o conceito de
princípio jurídico para Celso Antônio Bandeira de Mello:

Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, seu verdadeiro


alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas
compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e
inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo,
no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos
princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo
unitário que há por nome sistema jurídico positivo [...] Violar um princípio é muito
mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção aos princípios implica
ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de
comandos. É mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o
escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema,
subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço
lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isso porque, como ofendê-lo, abatem-se as
vigas que sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada14.

Disso se conclui “a natureza principiológica do Princípio da Insignificância, pois,


a exemplo de outros princípios jurídicos, é um mandado de otimização que exige seu
cumprimento dentro das possibilidades fáticas existentes”. Além do mais, cabe destacar que o
princípio possui “uma dimensão de peso, que em caso de colisão principiológica, permite a
ponderação sobre as condições para sua aplicação ou não” 15.
Feitas estas considerações acerca dos princípios como norma jurídica, torna-se
necessário discorrer brevemente sobre os princípios penais constitucionais.

3 Princípios penais constitucionais

A Constituição Federal16 possui inúmeros princípios penais, entre eles alguns


estão expressos e outros implícitos. Esses princípios expressos e implícitos constituem o
núcleo essencial da matéria penal, limitando o jus puniendi do Estado, resguardando as
liberdades e os direitos fundamentais do indivíduo, orientando a política legislativa criminal,
propondo diretrizes de interpretação e de aplicação da lei penal conforme a Constituição e as
exigências próprias de um Estado Democrático de Direito.

14
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 1995, p. 450. apud ESPÍNDOLA,
2002, p.116-117.
15
SILVA, 2006, p. 101.
16
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 39º ed. São Paulo: Saraiva,
2018.
Neste sentido, Maura Roberti explica que “os princípios penais da Constituição
Federal têm como consequência a limitação ao poder do legislador, na medida em que
determinam o conteúdo da norma penal” 17.
Partindo da premissa de que há princípios penais constitucionais expressos e
implícitos, e que ambos configuram a base constitucional do direito penal moderno, vale citar
os princípios básicos do Direito Penal na concepção de Luiz Flávio Gomes, o qual entende
que da Constituição Federal deve-se extrair doze princípios constitucionais:

1º) Princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos; 2º) Princípio da intervenção


mínima; 3º) Princípio da materialização ou exteriorização voluntária do fato; 4º)
Princípio da legalidade do fato; 5º) Princípio da ofensividade do fato; 6º)Princípio da
responsabilidade pessoal do agente; 7º) Princípio da responsabilidade subjetiva do
agente; 8º) Princípio da culpabilidade; 9º) Princípio da igualdade; 10º) Princípio da
dignidade; 11º) Princípio da humanidade da pena; 12º) Princípio da
proporcionalidade da pena ou da razoabilidade ou da proibição de excesso 18.

Em que pese à importância da observância conjunta de todos os princípios básicos


acima citados para haver um Direito Penal garantista, não serão todos eles abordados nesta
pesquisa, mas somente os que tem maior relação com o tema deste trabalho: O Princípio da
Insignificância.

3.1 Princípio da intervenção mínima

Nas palavras de Luiz Régis Prado, o conceito de princípio da intervenção mínima


é fruto do direito penal e da concepção material de Estado de Direito Democrático, e surge
como uma orientação político-criminal que visa restringir o ius puniendi do Estado. Esta
restrição propõe uma lei penal como ultima ratio, ou seja, “só deve atuar na defesa dos bens
jurídicos imprescindíveis para coexistência pacífica dos homens e que não podem ser
eficazmente protegidos de forma menos gravosa” 19.
Segundo este doutrinador a fragmentariedade decorre do princípio da intervenção
mínima ou subsidiariedade. E por este caráter fragmentário a função da lei penal não é a

17
ROBERTI, 2001, p. 61.
18
GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal: Parte Geral: Introdução. V.1, 3ª ed. São Paulo: Revistas dos
Tribunais, 2006, p.99.
19
Segundo Luiz Régis Prado: a fragmentariedade decorre do princípio da intervenção mínima ou
subsidiariedade. E por este caráter fragmentário a função da lei penal não é a proteção absoluta aos bens
jurídicos, mas apenas aquelas “consideradas socialmente intoleráveis”, ou seja, “apenas as ações ou omissões
mais graves endereçadas contra bens valiosos podem ser objeto de criminalização”. Conclui o autor que o
Direito Penal continue com “uma tutela seletiva do bem jurídico, limitada àquela tipologia agressiva que se
revela dotada de indiscutível relevância quanto à gravidade e intensidade da ofensa (PRADO, Luiz Regis. Curso
de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1. 6º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 139).
proteção absoluta aos bens jurídicos, mas apenas aquelas “consideradas socialmente
intoleráveis”, ou seja, “apenas as ações ou omissões mais graves endereçadas contra bens
valiosos podem ser objeto de criminalização”. Conclui o autor que o Direito Penal continue
com “uma tutela seletiva do bem jurídico, limitada àquela tipologia agressiva que se revela
dotada de indiscutível relevância quanto à gravidade e intensidade da ofensa” 20.
De forma didática, Gomes, ensina que “o princípio da intervenção mínima, que
está na base do direito penal mínimo, possui dois aspectos relevantes: (a) fragmentariedade;
(b) subsidiariedade”. Para explicar o sentido da fragmentariedade no direito penal, o autor
divide em: “(a) somente bens jurídicos mais relevantes devem merecer a tutela penal; (b)
exclusivamente os ataques mais intoleráveis é que devem ser punidos penalmente” 21.
Em relação ao segundo aspecto da intervenção mínima, assevera que o Direito
Penal tem caráter subsidiário porque só deve intervir quando os demais ramos do direito não
conseguiram solucionar satisfatoriamente o conflito. Em suma, é a ultima ratio22.
Em resumo, o princípio da intervenção mínima estabelece que o direito penal só
deve atuar na defesa dos bens jurídicos mais relevantes e imprescindíveis à convivência
pacífica em sociedade (caráter fragmentário) e somente quando os demais ramos do Direito
revelarem-se incapazes de dar proteção a estes bens jurídicos ameaçados (caráter subsidiário),
o que limita o poder de punir do Estado.
Neste sentido, em consonância com o princípio da intervenção mínima, surge o
princípio da insignificância que propõe retirar a tipicidade de condutas que produzam como
resultado lesões mínima, ínfimas e irrisórias. Restringindo, desta forma, o âmbito de
incidência do Direito Penal.

3.2 Princípio da ofensividade

Sobre ele César Roberto Bitencourt ensina que “para que se tipifique algum
crime, em sentido material, é indispensável que haja, pelo menos, um perigo de lesão
concreto, real e efetivo de dano a um bem jurídico penalmente protegido”. Ainda, segundo
este doutrinador, o princípio da ofensividade visa ter seus reflexos em dois âmbitos de
incidência, sendo o primeiro de “servir de orientação à atividade legiferante, fornecendo
substratos políticos-jurídicos para que o legislador adote, na elaboração do tipo penal, a

20
PRADO, loc.cit.
21
GOMES, Direito Penal: Parte Geral: Introdução. 2006, p.100.
22
Ibid., p. 101.
exigência indeclinável de que a conduta proibida represente ou contenha verdadeiro conteúdo
ofensivo a bens jurídicos socialmente relevantes;” e o segundo de “servir de critério
interpretativo, constrangendo o intérprete legal a encontrar em cada caso concreto
indispensável lesividade ao bem jurídico protegido” 23.
Como se vê, a primeira função, assim como no princípio da intervenção mínima, o
princípio da ofensividade visa estabelecer um limite ao legislador, ou seja, ao ius puniendi
estatal. Já a segunda surge quando o legislador não observou a sua função, momento em que
cabe ao intérprete ou aplicador da lei realizá-la, suprindo a falha do legislador e declarando a
conduta, em tese ilícita, fato atípico24.

3.3 Princípio da proporcionalidade

Segundo Zaffaroni, “outro fundamento do princípio da insignificância reside na


ideia da proporcionalidade que a pena deve guardar em relação à gravidade do crime”. E
prossegue, “nos casos de ínfima afetação do bem jurídico, o conteúdo do injusto é tão
pequeno que não subsiste qualquer razão para a imposição da reprimenda”. Isso porque,
25
s“ainda a mínima pena seria desproporcional à insignificância social do fato” . Assim, por
ser fundamento do princípio da insignificância, passa-se a tecer algumas considerações acerca
deste princípio.
Com efeito, no Estado de Direito Democrático o princípio da proporcionalidade
vincula o operador jurídico a tratar de alcançar o justo equilíbrio entre interesses em conflito
na relação entre crime e pena, pois “deve existir sempre uma medida de justo equilíbrio -
abstrata (legislador) e concreta (juiz) entre a gravidade do ilícito praticado, do injusto penal
(desvalor da ação e desvalor do resultado), e a pena cominada ou imposta” 26.
Como se vê, “impõe-se sempre um juízo de ponderação entre a restrição à
liberdade que vai ser imposta (os custos disso decorrente) e o fim perseguido pela punição (os
benefícios que se pode obter). Os bens em conflito devem ser sopesados” 27.
Desse modo, o princípio da proporcionalidade, entre os demais princípios que
limitam o ius puniendi estatal, serve de fundamento ao princípio da insignificância, uma vez

23
BITENCOURT, 2006, p. 27.
24
GOMES, op. cit. P. 99.
25
ZAFFARONI, Raúl Eugênio. Tratado de Derecho Penal. p. 554. apud MAÑAS, Carlos Vico. O Princípio
da Insignificância Como Excludente de Tipicidade. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 58.
26
PRADO, 2006, p. 141.
27
GOMES, Direito Penal: Parte Geral: Introdução. 2006, p.106 -107.
que este incide quando há desproporção entre a conduta de insignificante e a sanção penal
cominada para esse delito. Discorrendo sobre esta relação Odone Sanguiné anota que:

O fundamento do princípio da insignificância está na ideia de ‘proporcionalidade’


que a pena deve guardar em relação à gravidade do crime. Nos casos de ínfima
afetação ao bem jurídico, o conteúdo de injusto é tão pequeno que não subsiste
nenhuma razão para o pathos ético da pena. Ainda a mínima pena aplicada seria
desproporcional à insignificância social do fato28.

Por fim, vale destacar que é inegável seu caráter vinculante como garantia de
outros princípios e normas do Direito Penal, em especial como fundamento do princípio da
insignificância, como será visto nos tópicos subsequentes.

4 Evolução histórica e conceito de tipicidade

O conceito de tipicidade passou por diversas fases até a concepção atual. A par
disso, o objetivo desta seção é abordar o surgimento da tipicidade e a evolução da teoria do
delito, analisando quatro fases desse desenvolvimento: a teoria clássica ou causal-naturalista
de delito, a teoria neoclássica ou neokantista de delito, a teoria da ratio essendi da
antijuridicidade e, por fim, a teoria finalista de delito.

4.1 Teoria clássica ou causal-naturalista

A teoria clássica ou causal-naturalista de delito surgiu “no final do século XIX e


início do século XX Franz Von Liszt delineou o primeiro conceito dogmático de delito: ato
contrário ao Direito, culpável e sancionado com uma pena”. Deste conceito podem ser
sextraídos os requisitos do delito: “conduta (ato), antijuridicidade (contrário ao Direito) e
punibilidade abstrata (ato sancionado com uma pena). A culpabilidade era entendida como
requisito do injusto punível” 29 30.
Todavia, o critério objetivo-subjetivo “demonstrou ser insustentável, pois ao
afirmar que o injusto é puramente objetivo pressupôs a existência de conduta humana sem
28
SANGUINÉ, Odone. Observações Sobre o Princípio da Insignificância. Fascículos de Ciências Penais. Porto
Alegre: Sergio Antônio Fabris, Ano 3, V.3, n.1, jan./mar. 1990, p.36-50. apud SILVA, 2006, p. 129.
29
GOMES, Direito Penal: Parte Geral: Teoria Constitucionalista do Delito. V.3. São Paulo: Revistas dos
Tribunais, 2004, p.18.
30
Esta dogmática do delito apresentava uma estrutura bipartida denominada de objetivo – subjetivo. Neste
critério ação é tomada conjugadamente em dois aspectos: o primeiro, objetivo (causalidade), que reside na
antijuridicidade, consistia na mera conduta humana, movimento corporal causador de um resultado, como se
fosse um impulso, ato desprovido de vontade; e o segundo, subjetivo, em que está o valor da teoria causal, ou
seja, o vínculo psicológico, que constitui a culpabilidade (SANTOS, Juarez Cirino. A Moderna Teoria do Fato
Punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000, p. 6).
31
vontade” , visto que a vontade era requisito da culpabilidade. Diante disto surge a
necessidade de complementar esta teoria.
Assim, com o fito de melhorar a teoria causal, em 1906, Ernest Von Beling
acrescenta o conceito de tipicidade, que define como uma função meramente descritiva do
delito, ou seja, objetiva e neutra. Consequentemente, separa a tipicidade da antijuridicidade e
da culpabilidade. Portanto, o crime passou a ser definido como uma conduta típica,
antijurídica e culpável, em que após “constatada a adequação do fato à norma penal
incriminadora, passa-se a um segundo momento para análise valorativa da característica da
antijuridicidade. Posteriormente, é analisada a reprovabilidade da conduta, que constitui a
culpabilidade” 32.
Vê-se, assim, que foi com Beling que a tipicidade ganhou a função de definir os
delitos e a antijuricidade vista como a contrariedade ao direito. “A partir de Beling (que
complementou o sistema naturalista desenvolvido por Von Liszt) a parte objetiva do delito
passou a ser constituída de dois requisitos: a) tipicidade e b) antijuridicidade. E a parte
subjetiva esgotava-se na culpabilidade” 33. Como visto, valiosa a contribuição de Beling para
a teoria do delito ao acrescentar o conceito de tipicidade e, assim, construir a teoria tripartida
nos molde atuais, com exceção das peculiaridades dadas a cada um dos elementos atualmente
com a teoria finalista.
Destarte, define-se a teoria clássica ou causal-naturalista necessária ao
entendimento desta seção.

4.2 Teoria Neoclássica ou Neokantista

Com a teoria neoclássica ou neokantista de delito surge a fase do caráter indiciário


da antijuridicidade. Isto porque, Beling sofreu algumas críticas em razão de seu caráter
puramente descritivo da tipicidade e da antijuridicidade. Diante deste contexto, Max Ernest
Mayer reformula a teoria inicial de Beling. Embora mantenha a independência entre a
tipicidade e a antijuridicidade, Mayer atribui à tipicidade indícios de antijuridicidade ou de
ilicitude, isto é, se o fato concreto se amolda à descrição legal e abstrata de delito (tipicidade),
já surgem indícios de que este fato é antijurídico ou ilícito34.

31
GRECO, Rogério; ROCHA, Fernando Galvão. Estrutura Jurídica do Crime. Belo Horizonte: Mandamentos,
1999, p. 47.
32
BITENCOURT, 2006, p. 318.
33
GOMES, Direito Penal: Parte Geral: Teoria Constitucionalista do Delito. 2004, p.69.
34
SANTOS, Juarez Cirino. A Moderna Teoria do Fato Punível. 2000. p. 34.
Em síntese Juarez Cirino, destaca:

O modelo neoclássico de fato punível, fundado no método neokantiano de


observação/ descrição e de comportamento/valoração é produto da desintegração do
modelo clássico de fato punível e, simultaneamente, de sua reorganização
teleológica, conforme fins e valores do direito penal: a ação deixa de ser naturalista
para assumir significado valorativo, redefinida como comportamento humano
voluntário; a tipicidade perde a natureza descritiva e livre-de-valor para admitir
elementos normativos (documentos, motivo torpe, etc.) e subjetivos (a intenção de
apropriação, no furto, por exemplo); a antijuridicidade troca o significado formal
de infração da norma jurídica pelo significado material de danosidade social,
admitindo graduação do injusto conforme a gravidade do interesse lesionado; a
culpabilidade psicológica assume, também, significado normativo, com a
reprovação do autor pela formação de vontade contrária ao dever: se o
comportamento proibido pode ser reprovado, então pode ser atribuído à
culpabilidade do autor35.

Assim, de acordo com a teoria neoclássica ou neokantista, torna-se imperioso


caracterizar o ato típico como ilícito para aplicação de uma sanção, ou seja, se a conduta
preencher os requisitos descritivos da tipicidade haverá indícios (ratio cognoscendi) de que a
conduta é antijurídica. Portanto, a tipicidade deixa de ser meramente neutra e ganha esse
caráter valorativo de indício de ilicitude. Para esta teoria, ocorrendo o fato típico com indícios
de antijuridicidade, esta condição somente poderia ser afastada mediante uma causa de
justificação (excludente de ilicitude).

4.3 Teoria da ratio essendi da antijuridicidade

A terceira fase da ratio essendi da antijuridicidade, surge com o outro crítico da


teoria de Beling. Foi Edmund Mezger, que desenvolveu a proposta de Mayer acerca dos
elementos normativos do tipo e elementos subjetivos do injusto, sendo que ambos
“decretaram definitivamente a falência do conceito de tipo descritivo-objetivo de Beling”.
Apesar de semelhante à teoria de Mayer, a teoria de Mezger (Tratado de Direito Penal -
1930), coloca que a tipicidade não é mero indício da antijuridicidade, mas sim a essência
(ratio essendi) desta. Portanto, para ele a tipicidade não tem existência própria, perde sua
autonomia, apenas está incluída na antijuridicidade36.
Cabe, neste ponto, ressaltar que esta teoria também recebeu críticas justamente
por unir a tipicidade e a antijuridicidade, o que faz concluir que todas as condutas típicas são
também ilícitas. Entretanto, tal teoria logo veio a ser acrescida pela de Welzel, conforme se
verifica a seguir.

35
SANTOS, A Moderna Teoria do Fato Punível. 2000. p. 6-7.
36
BITENCOURT, 2006, p. 320.
4.4 Teoria finalista

Welzel elaborou a teoria finalista do delito, que veio adicionar à teoria causalista
uma finalidade para ação, sendo que para ele a “ação é compreendida como o exercício da
37
atividade finalista” . Essa conduta “se baseia na capacidade da vontade de prever as
consequências de sua intervenção no curso causal e determiná-lo, conforme essa previsão, na
direção de um objetivo” 38, em outras palavras, apresenta-se como uma “atividade consciente
e faz com que a conduta se caracterize como conduta dirigida e orientada ao objetivo” 39. Com
efeito, para Welzel “a vontade não pode ser separada de seu conteúdo, isto é, de sua
finalidade, posto que toda conduta humana deve ser voluntária e toda vontade tem um fim” 40.
Dessa maneira, para esta teoria o crime continua sendo um fato típico, antijurídico
e culpável, porém reestruturado. Como visto acima, a ação humana é o ponto principal da
estrutura analítica do delito e é entendida como uma atividade consciente acerca do objetivo.
Já a segunda mudança na estrutura do delito é constatada na alteração da posição do dolo e da
culpa, que passam a fazer parte da conduta ou do fato típico, e não mais a culpabilidade.
Nestes termos segue o silogismo esclarecedor de Gomes: “se toda ação é finalista
(é dirigida a um fim), conclui-se que a finalidade a ela (ação) pertence”. Por sua vez, “se
finalidade (direcionada à realização dos requisitos do fato típico) é igual a dolo (saber o que
faz e querer o que faz), infere-se então que o dolo pertence à ação (leia-se: à conduta e ao fato
típico)”. Portanto, altera-se também o próprio conceito de dolo que antes do finalismo era
entendido como “consciência e vontade de realizar a conduta assim como consciência da
ilicitude dessa conduta” 41.
Assim, com o advento da teoria finalista parte-se primeiramente da consciência e
vontade de realizar a conduta para se compor e caracterizar a tipicidade. Neste raciocínio,
segue-se com consciência da ilicitude como elemento da culpabilidade, passando de requisitos
subjetivos para normativo, e encerra-se como a consciências da ilicitude potencial como
suficiente para demonstrar a culpabilidade.
Desta forma “a culpabilidade apresenta-se como reprovação pessoal do autor do
fato punível e fundamenta-se no fato de que o indivíduo detinha o poder conter-se diante dos

37
TAVARES, Juarez. Teorias do Delito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 58.
38
GRECO, Rogério; ROCHA, Fernando Galvão. Estrutura Jurídica do Crime. 1999, p. 61.
39
TAVARES, op. cit., p. 59.
40
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 6ª ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 344.
41
GOMES, Direito Penal: Parte Geral: Teoria Constitucionalista do Delito. 2004, p.22.
impulsos determinantes da prática do ilícito e não o fez”. Então, no tocante à relação
tipicidade-antijuridicidade, volta-se a teoria de Mayer, e a ocorrência do fato típico é apenas
indício de que a conduta seja antijurídica, portanto, “a antijuridicidade retrata a relação
existente entre a conduta e o ordenamento jurídico, que expressa a desconformidade da
primeira com o segundo” 42.
Em suma, são as contribuições de Welzel que perduram até os dias atuais, quais
sejam, além de definir que toda ação ser finalista, também redistribuiu dos elementos dolo e
culpa, que passam a constituir o tipo, ou seja, integram a descrição da conduta se dolosa ou
culposa.
Enfim, como visto nas sucintas linhas acima a definição atual de crime como uma
conduta típica, antijurídica e culpável, é produto da elaboração inicial da doutrina alemã, que
ao longo dos anos vem desenvolvendo e aperfeiçoando os diversos elementos que compõem o
delito. Feitas estas considerações passa-se a análise do princípio da insignificância
propriamente dito.

5 Conceito de princípio da insignificância

Foi com Claus Roxin que surgiu a ideia do princípio da insignificância (das
Geringfügikeitsprinzip) no sistema penal, como forma de validação geral para a determinação
do injusto, mediante o recurso da interpretação restritiva dos tipos penais43. De acordo com o
autor este princípio serve como regra auxiliar de interpretação da lei penal para a
determinação (ou não) do injusto. Neste sentido seguem as palavras de Roxin:

Principio de la insignificancia, que permite en la mayoría de los tipos excluir desde


un principio daños de poca importancia: maltrato no es cualquier tipo de dano de la
integridad corporal, sino solamente uno relevante; análogamente deshonesto en el
sentido del Código Penal es sólo la acción sexual de una cierta importancia,
injuriosa en una forma delictiva es solo la lesión grave a la pretensíon de respecto 44.

42
GRECO, Rogério; ROCHA, Fernando Galvão. Estrutura Jurídica do Crime. 1999, p.63.
43
LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípio da Insignificância no Direito Penal: análise à luz das Leis
9.099/95 (Juizados Especiais Criminais), 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro) e da Jurisprudência atual.
2.ed. São Paulo, 2000. p. 87.
44
Princípio da insignificância que permite na maioria dos casos excluir desde um início de dano de pouca
importância: maus tratos não são qualquer tipo de dano à integridade física, senão somente um relevante;
analogicamente obsceno no sentido do código penal é somente a ação sexual de uma certa importância, injurioso
em uma forma delitiva é somente a lesão grave. Às pretensão de respeito (ROXIN, Claus. Política Criminal y
Sistema del Derecho Penal. Barcelona: Bosch, 1972. p.53. apud LOPES, Teoria Constitucional do Direito
Penal. 2000, p. 509).
Desta forma Roxin parte da premissa de que o Direito Penal só deve ir até onde
seja realmente necessário para a proteção do bem jurídico. Portanto, para o autor em casos de
lesões ínfimas, estas, apesar de formalmente típicas, devem ser excluídas do tipo por meio do
princípio da insignificância.
Em que pese a Constituição não ter agasalhado expressamente este princípio, cabe
reconhecer que o fez de maneira implícita. Como bem coloca Ribeiro Lopes, “nenhum
instrumento legislativo ordinário ou constitucional o define ou acata formalmente, podendo
ser inferido na exata proporção em que se aceitam limites para interpretação constitucional e
das leis em geral” 45. Trata-se de criação doutrinária e jurisprudencial.
Apesar disso, vale ressaltar que o Princípio da Insignificância foi recepcionado no
art. 240, § 1°, do Código Penal Militar, ao definir que no caso de furto simples o juiz poderá
considerar como infração disciplinar.
Assim, não obstante ser um princípio implícito observa-se que a doutrina e a
jurisprudência têm conseguido estabelecer critérios razoáveis para sua conceituação e o
reconhecimento destas condutas devem ser consideradas insignificantes, com base na natureza
fragmentária e subsidiária do Direito Penal. Assim, Vico Mañas conceitua o princípio da
insignificância integrando a concepção material de tipicidade com a visão político-criminal de
descriminalização de condutas sem relevância jurídica para o Direito Penal. E define:

O princípio da insignificância, portanto, pode ser definido como instrumento de


interpretação restritiva, fundado na concepção material do tipo penal, por intermédio
do qual é possível alcançar, pela via judicial e sem macular a segurança jurídica do
pensamento sistemático, a proposição político-criminal da necessidade de
descriminalização46 de condutas que, embora formalmente típicas, não atingem de
forma relevante os bens jurídicos protegidos pelo direito penal. 47

A concepção material do tipo, em consequência, é o caminho cientificamente


correto para que se possa obter a necessária descriminalização de condutas que, embora
formalmente típicas, não mais são objetos de reprovação social, nem produzem danos
significativos aos bens jurídicos protegidos pelo direito penal48.
No que tange a concepção material de crime, Carlos Vico Mañas49 expõe:

45
LOPES, Princípio da Insignificância no Direito Penal. 2000, p. 49.
46
“O que se passa efetivamente no tema do princípio da insignificância não e, se não impropriamente, um
processo de descriminalização, mas em câmbio, mais acertadamente, uma técnica de desconsideração judicial da
tipicidade. [...] A diferença mais significativa que se pode opor aos processos de descriminalização e de
desconsideração da tipicidade é que o primeiro é de índole legislativa, enquanto o segundo é de natureza judicial,
mas diverso da despenalização”. (LOPES, Princípio da Insignificância no Direito Penal. 2000, p.121).
47
MAÑAS, Carlo Vico. O Princípio da Insignificância como Excludente de Tipicidade. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 58.
48
MAÑAS, loc. cit.
49
MAÑAS, 1994, p. 54.
Para dar validade sistemática à irrefutável conclusão político-criminal de que o
direito penal só deve ir até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico, não
se ocupando de bagatelas, é preciso considerar materialmente atípicas as condutas
lesivas de inequívoca insignificância para a vida em sociedade.

Por sua vez, Assis Toledo, fornece os elementos necessários para formação do
conceito de princípio da insignificância, segundo o autor, é “a gradação qualitativa e
quantitativa do injusto, permite que o fato penalmente insignificante seja excluído da
tipicidade penal” por configurar um ataque mínimo de escassa ofensividade50.
Em contra partida, Diomar Ackel Filho conceitua o princípio da insignificância
como “aquele que permite infirmar a tipicidade de fatos que, por sua inexpressividade,
constituem ações de bagatela, desprovida de proporcionalidade, de modo a não merecerem
51
valoração da norma penal, exsurgindo, pois como irrelevantes” . Dessa maneira, com base
nos conceitos expostos extrai-se que o princípio da insignificância surge como um movimento
político-criminal de interpretação restritiva do tipo penal, sob o enfoque de que para haver a
configuração do tipo penal, é imprescindível que haja dano e seja este materialmente lesivo
para o bem jurídico.
Vale consignar, por fim, que este trabalho de cunho acadêmico utiliza-se da
expressão “princípio da insignificância” como expressão sinônima de “crime de bagatela”,
por acreditar que ambos os sentidos se equivalem semântica e juridicamente.
Compreendida a relação entre lesão efetiva e grave a um bem jurídico protegido e
a necessidade de intervenção penal, incontroverso o reconhecimento do princípio da
insignificância, passa-se a análise dos critérios de aplicação.

6 Critério de aplicação do princípio da insignificância

Partindo do entendimento consolidado tanto pela doutrina como pela


jurisprudência de que a aplicação do princípio da insignificância não se verifica no plano
abstrato, visto que é insuficiente a análise do tipo em seu sentido formal. Somente a partir das
especificidades de um caso concreto é que o intérprete (aplicador) poderá mensurar as
repercussões jurídicas e sociais e decidir acerca de sua incidência ou não ao caso concreto.
Como visto anteriormente mesmo sem expressa previsão legal, o número de
decisões dos tribunais superiores reconhecendo a aplicação do princípio por considerar que

50
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1994, p.134.
51
SILVA, 2006, p. 94.
ínfimos prejuízos a bens jurídicos não devem ser objeto de tutela penal, não obstante as
condutas sejam consideradas formalmente típicas, antijurídicas e culpáveis.
O Supremo Tribunal Federal em acórdão proferido no habeas corpus 84.412-
0/SP, no ano de 2004, estabeleceu os critérios para o reconhecimento do princípio da
insignificância, tornando-se a decisão paradigma para as decisões de todo o Poder Judiciário.
Do corpo do acórdão se depreende:

O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os


postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria
penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada
na perspectiva de seu caráter material. Tal postulado considera necessária, na
aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais
como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma
periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do
comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em
seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário
do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados,
a intervenção mínima do Poder Público em matéria penal 52.

Como se depreende do paradigmático julgado acima, quatro são os requisitos que


devem ser analisados para aplicação ou não do princípio da insignificância ao caso concreto.
No tocante à alínea “a” mínima ofensividade da conduta do agente, entende-se que o requisito
almeja aferir o potencial ofensivo da conduta do agente frente ao bem jurídico protegido, ou
seja, é uma análise potencial de riscos que a conduta do agente poderia ter causado à vítima.
E, neste caso, quando o risco analisado é mínimo tem-se como preenchido o requisito da
alínea “a”.
Por sua vez, em relação à alínea “b” nenhuma periculosidade social da ação,
analisa-se a consequência coletiva e social de que pode derivar a ação criminosa do agente.
Ou seja, verifica-se se os danos causados se restringem ao patrimônio da vítima, sem
quaisquer riscos ou efeitos sociais relevantes.
O penúltimo vetor de referência que deve ser observado diz respeito a alínea “c”
reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento do agente. Não obstante a ideia de
que a prática de um ilícito penal já seja um comportamento reprovável, é necessário mais.
Neste aspecto, busca-se uma análise sobre os motivos do delito e as circunstâncias pessoais do
criminoso (a culpabilidade do agente), os quais denotem uma reprovabilidade da ação
praticada.

52
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC n. 84.412-0/SP. Disponível em
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=79595. Acesso em 02/11/2018.
Por fim, como último critério mencionado no acórdão do STF está a alínea “d”
inexpressividade da lesão jurídica provocada, oportunidade em que o intérprete deve avaliar o
desvalor do resultado e sendo ele inexpressivo, ínfimo, preenchido está tal requisito.
Importante frisar que tais vetores apesar de serem objetivos, apresentam um grau
de subjetividade do aplicador, fato este que acarreta em diferentes interpretações na doutrina e
na jurisprudência.
Outro ponto a ser destacado é que tais vetores são cumulativos e servem de
balizas ao intérprete, sem exaurir outras circunstancias do caso concreto de acordo com o
valor da ação.

7 Aplicação do princípio da insignificância pelo Delegado de Polícia

Como visto nas seções anteriores apesar do princípio da insignificância não ter
base expressa no Código Penal, é francamente aceito tanto na doutrina como por nossos
tribunais. Com efeito, trata-se o princípio da insignificância de uma eficaz forma de corrigir
distorções causadas pela incriminação genérica de condutas.
Conforme anteriormente mencionado, a norma penal, por sua generalidade, acaba
por punir de forma igualitária, ínfimas ou grandiosas lesões ao mesmo bem jurídico tutelado,
o que muitas vezes pode causar exageros punitivos. Ou seja, em determinadas circunstâncias,
a aplicação por subsunção direta dessa norma geral será desproporcional, já que a conduta
praticada pelo agente, apesar de formalmente típica, pode ser penalmente insignificante. E,
para evitar esse tipo de exagero punitivo que se faz necessário o surgimento de um instituto
moderador, como é a insignificância penal, sendo o fiel da balança nas situações fáticas em
que a aplicação irrestrita da lei penal afigura-se como um exagero.
Pois bem. Se o intento do princípio da insignificância é evitar a punição excessiva
de fatos inexpressivos, nada mais razoável do que o delegado de polícia aplicá-lo. Isto porque,
cabe ao delegado de polícia atuar como primeiro filtro da própria irracionalidade potencial do
sistema penal, ou seja, da generalidade dos comportamentos abrangidos como um fato típico.

Sendo o Delegado de Polícia o primeiro garantidor da legalidade do procedimento


de investigação preliminar, a instauração de inquérito policial visando à apuração de
fatos claramente atípicos caracteriza constrangimento ilegal. A norma jurídica, em
perspectiva ordenada corresponde a uma resposta única e irrepetível a partir de
determinada situação social, mediante uma construção interpretativa53.

53
DE PAULA, Alan Pinheiro. Segurança Pública Brasileira e a Aplicação do Princípio da Insignificância
pelo Delegado de Polícia. (Dissertação de Mestrado). Mestrado em Ciência Jurídica, UNIVALI, Itajaí, 2018. p.
88.
O entendimento não poderia ser diferente, visto que inexiste previsão expressa em
lei limitando a análise do delegado de polícia a tipicidade formal. Ora, o delegado de polícia
titular de uma carreira jurídica, tem atribuição e capacidade técnica de analisar os elementos
do fato típico e assim definir se um determinado comportamento se enquadra ou não como
fato típico.
Não parece aceitável que o delegado de polícia prenda em flagrante quem tenha
praticado um fato considerado materialmente insignificante. Logo, exigir a prática de um ato
administrativo encarcerador é desarrazoado. Por consequência, se o fato narrado é desprovido
de tipicidade, não há razão para qualquer lavratura flagrancial. Ou a tipicidade (formal e
material) está presente desde a captura em flagrante do indivíduo, protraindo-se até o trânsito
em julgado, ou nunca esteve presente.
Até porque, por ser o delegado de polícia o responsável pela instauração de um
procedimento policial, e, como se sabe, a mera instauração destes procedimentos, por si só, já
representam um inegável constrangimento ao status dignitatis do investigado. Nada mais
adequado que seja esta autoridade que primeiramente faça o juízo de valor quando à
existência da tipicidade penal deste suposto comportamento delituoso e assim tenha não só o
poder como o dever de aplicar o princípio da insignificância e se abster de lavrar o auto de
prisão em flagrante ou mesmo de baixar a portaria de instauração de inquérito policial.
Neste sentido:

Na sistemática processual penal, o delegado de polícia atua na primeira fase da


persecução penal, reunindo elementos informativos para subsidiar eventual ação
penal. Operando de forma imparcial, clarividente a discricionariedade do delegado
de polícia de acordo com sua apreciação no caso concreto54. [...]
O início de uma provável ação penal decorre, na maioria das vezes, de um inquérito
policial instruído pelo delegado de polícia. Estando a ação penal condicionada à
existência de materialidade delituosa e de indicativos de autoria, não pode o
inquérito policial ser instaurado sem o mínimo de lastro probatório.
Desta maneira, a partir da justa causa é que a coação se torna lícita. Diante da
flagrante ausência de justa causa, com exemplo a atipicidade do delito e, sendo
instaurado inquérito policial, é clarividente o abuso, sendo o trancamento do
procedimento investigativo55.

À luz do conceito de tipicidade e do conceito de princípio da insignificância, que


foi exaustivamente abordado nos tópicos anteriores, seria um exagero o delegado de polícia
prender um indivíduo em flagrante, por um fato absolutamente atípico, sob o argumento de
que somente um juiz pode constatar tal ausência de adequação típica material. Ora, é um

54
Ibid., p. 85.
55
DE PAULA, 2018, p. 86.
silogismo claro e direto, se não há fato típico a se apurar desde o início, por óbvio, também
não haverá crime a se flagrantear. Dentro de todo conceito de ordenamento jurídico,
segurança jurídica, carreira jurídica, questiona-se, como pode um delegado de polícia autuar
em flagrante delito um indivíduo em face de um fato que não é criminoso? Autuar por mero
formalismo jurídico seria absolutamente ilegal, talvez, até passível de uma responsabilização
administrativa.
Sobre este ponto vale destacar a observação de Carlos Vico Mañas56:

Evidenciado pelo princípio da insignificância a característica fragmentária do


Direito Penal, não se mostra razoável em sua aplicação subsidiária no primeiro
momento da persecução penal por um fato sem relevância jurídica.

Desta forma, se a autoridade policial puder constatar que estão manifestamente


presentes os vetores para aplicação do princípio da insignificância, deve deixar de autuar o
autor do fato em flagrante delito, procedendo, somente à documentação por meio de uma
Verificação Preliminar de Inquérito (VPI) ou, se assim entender, um Inquérito Policial.
Acerca do reconhecimento dos vetores pelo Delegado de Polícia, colaciona-se:

Ao ser submetida a notícia de fato ao delegado de polícia, notadamente a de


cognição imediata, ou seja, aquela em que se toma conhecimento em virtude de suas
funções, com exemplo, um registro de ocorrência ou requerimento do ofendido,
deverá o operador do direito verificar a presença ou não dos vetores estabelecidos
pelo Supremo Tribunal, como analisado alhures.
Se entender que o fato é materialmente atípico, diante do reconhecimento do
princípio da insignificância, não terá o Delegado de Polícia justa causa para
instauração de inquérito Policial, devendo ser fundamentada sua decisão e remetida
ao Ministério Público, detentor da “opinio delicti” 57.

Entende-se que é preciso registrar o fato de alguma maneira para que,


posteriormente, possa haver a análise por parte do Ministério Público e do Poder Judiciário
acerca do arquivamento ou não destas peças de informação. Até porque, é nesta oportunidade
e, por meio destes instrumentos, que o delegado de polícia fundamentará sua decisão de forma
pormenorizada, abordando vetor a vetor, o porquê de sua decisão acerca da atipicidade
material da conduta.
A decisão do delegado de polícia, assim como de todas as autoridades de um
Estado Democrático de Direito, espera-se e exige-se que sejam sempre fundamentadas e
assim ainda que outra autoridade discorde do posicionamento do delegado de polícia, revela-
se totalmente descabida a responsabilização criminal, administrativa ou funcionalmente por
sua deliberação funcional motivada.

56
MAÑAS, 1994, p.81.
57
DE PAULA, 2018, p. 89.
Ante o exposto, conclui-se que mais do que um poder do delegado de polícia, a
aplicação do princípio da insignificância é um dever e atribuição funcional no desempenho de
sua missão de garantir direitos fundamentais.

8 Considerações finais

O sistema criminal em um Estado Democrático de Direito é informado por


princípios constitucionais que estabelecem e impõem limites ao jus puniendi estatal,
objetivando garantir os direitos e liberdades fundamentais do cidadão.
A lei escrita não exaure o Direito, eis que fazem parte do ordenamento jurídico
normas implícitas que são obtidas pela interpretação do texto legal. Por este motivo iniciou-
se a pesquisa por meio da abordagem do conceito de princípio como norma jurídica,
especificamente em relação aos princípios implícitos. Constatou-se que estes são aplicáveis ao
caso concreto, uma vez que estão vinculados aos demais princípios constitucionais, sendo,
portanto, também fundamento constitucional e funcionando como espécie de norma jurídica.
Buscou-se abordar, também, seu conceito e forma de aplicação por meio da ponderação ao
caso concreto.
Após conceituá-los como normas jurídicas, dentre os diversos princípios penais
constitucionais citados, foram destacados para este artigo os princípios da ofensividade,
proporcionalidade e intervenção mínima.
Como visto, o princípio da ofensividade dispõe que o fato cometido, para se
transformar em fato punível, deve afetar concretamente o bem jurídico protegido, dentre os
princípios estudados o que mais se destaca é o princípio da intervenção mínima. Isto porque,
assim como os demais princípios, limita o Direito Penal como última ratio legis, do qual
decorrem as duas características fundamentais para o princípio da insignificância – a
fragmentariedade e a subsidiariedade.
O caráter fragmentário dispõe que a proteção aos bens jurídicos se concentra
sobre fragmentos, que são os bens jurídicos mais relevantes, portanto, somente os ataques
mais intoleráveis é que devem ser sancionados pelo Direito Penal.
Por sua vez o caráter subsidiário do Direito Penal é sinônimo de ultima ratio, ou
seja, só deverá intervir quando todas as demais formas de solução são insuficientes.
Assim, o princípio da proporcionalidade que também está estreitamente ligado à
ideia político-criminal, visa exigir proporção entre os delitos e a gravidade das penas, sendo
que uma das formas de ponderação e proporção se dá com a aplicação do princípio da
insignificância. Em suma, todos estes princípios de cunho político-criminal, positivados ou
não, são fundamentos para a aplicação do princípio da insignificância e devem ser aplicados
por meio da ponderação, como ensinado por Robert Alexy.
Num segundo momento da pesquisa, examinou-se a evolução e o conceito de
tipicidade. Para tanto, foram analisadas as principais teorias desse desenvolvimento: a teoria
clássica ou causal-naturalista do delito, a teoria neoclássica ou neokantista do delito e, por
fim, a teoria finalista do delito. Conclui-se que houve a superação desse conceito meramente
formal, para a noção de tipicidade moderna, que engloba um valor lesivo concreto e relevante
para a configuração de um crime, ou seja, o caráter material da tipicidade.
Passou-se, então, à análise da origem do princípio da insignificância e seu
conceito, integrando a concepção material de tipicidade com a visão político-criminal de
descriminalização (destipificação) de condutas sem relevância jurídica para o Direito Penal.
Mais adiante, abordou-se sobre os critérios utilizados para aplicação do princípio
da insignificância na doutrina e na jurisprudência, o qual se passa a dar mais destaque a
seguir.
O entendimento sedimentado do Supremo Tribunal Federal para aplicação do
princípio da insignificância deve guardar consonância com os postulados da fragmentariedade
e da intervenção mínima como norteadora do jus puniendi Estatal. A partir deste viés
restritivo, deve o intérprete e aplicador da norma verificar se estão presentes quatro vetores
que orientam a aplicação do princípio da insignificância. São eles: a) mínima ofensividade da
conduta do agente, b) nenhuma periculosidade social da ação, c) reduzidíssimo grau de
reprovabilidade do comportamento e d) inexpressividade da lesão jurídica provocada.
O pensamento que ampara esse entendimento que vem sendo adotado é de que o
direito penal não consegue cumprir as suas funções de prevenir e ressocializar e, portanto, de
nada adianta punir com a máxima severidade toda e qualquer conduta formalmente típica, já
que essa perseguição penal total e desenfreada, nos casos de “crimes” dotados de
insignificância para a sociedade, somente seria causa de mais e maiores problemas sociais.
Não é demais dizer que o modelo de tipicidade formal foi superado pela tipicidade
material, não mais se contentando o direito com a simples subsunção do fato à norma, de
forma fria e cartesiana, porquanto atualmente o direito penal fica reservado às condutas
graves, que atinjam significativamente o bem jurídico tutelado, realmente justificando e
reclamando a sua utilização, que é sempre bastante gravosa. Resultado disso é a destipificação
das condutas que são apenas “aparentemente típicas”, não sendo materialmente típicas por
não importarem significativa lesão ao bem jurídico protegido pelo tipo.
A fragmentariedade e a subsidiariedade do Direito Penal são características que
lhe conferem o papel de direito de ultima ratio na solução dos conflitos, não se aplicando a
bens menos significantes, que podem, são e devem ser tutelados por outros ramos do Direito,
como o civil e o administrativo, ou seja, a conduta formalmente tipificada não deixa de ser
ilícita, pelo contrário, permanece ilícita e antijurídica, contudo, não mais objeto do direito
penal.
Toda essa construção doutrinária e jurisprudencial que ampara o princípio da
insignificância tem forte impacto nos furtos envolvendo coisas de valor irrisório, aos quais a
sanção penal seria, ou é (no atual entendimento), uma penalidade demasiadamente dura,
desproporcional, mesmo no seu menor grau. O direito penal, nesta concepção, deve ser
deixado para o resguardo dos bens mais importantes ao ser humano e à sociedade.
Por fim, abordou-se a legitimidade do Delegado de Polícia, como sendo a
primeira autoridade com atribuição de analisar uma notitia criminis e fazendo um juízo de
valor acerca da tipicidade formal e material, decidir se aquela ocorrência caracteriza-se como
um crime ou não.
Sob este viés conclui-se que a análise da existência da tipicidade material precisa
ser realizada desde o início da intervenção estatal, que se tem pela autoridade policial. Desta
forma, o delegado de polícia constatando a inexistência da tipicidade material, deve aplicar o
princípio da insignificância, não efetuando a prisão em flagrante e nem o indiciamento do
infrator.
Assim, espera-se que o Estado por meio das suas instituições de segurança
pública, não se valha de legalismos obsoletos, com o suposto objetivo de dar uma “sensação”
de segurança jurídica à sociedade, com procedimentos inócuos que tão somente servem para
inflacionar o número de procedimentos desnecessários em detrimento de uma atividade
policial mais enxuta, célere, eficiente e destinada ao seu objetivo principal de defesa da
dignidade humana.

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