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POLÍCIA
1 Introdução
Artigo apresentado como requisito parcial para a conclusão do curso de Especialização em Gestão da
Segurança Pública e Investigação Criminal Aplicada da Academia da Polícia Civil de Santa Catarina –
ACADEPOL-IES.
Pós-Graduanda em Gestão da Segurança Pública e Investigação Criminal Aplicada pela ACADEPOL,
formada em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina, Escrivã de Polícia Civil do Estado de Santa
Catarina. E-mail: pabline@pc.sc.gov.br.
Na conjectura atual do Estado Democrático de Direito não há mais espaço para o
formalismo exacerbado, visto que se mostra extremamente prejudicial tanto às instituições de
segurança pública como para à sociedade, pois tende a retardar uma mais justa e célere
atuação do Estado frente às demandas sociais. Isto porque, antes da ação penal ser interposta
há necessariamente, um trabalho de polícia judiciária que, em detrimento de casos mais
graves, perde-se considerável tempo em torno de delitos que, pela insignificância dificilmente
serão objetos de sentença condenatória. O tempo despendido por policiais tanto para as
oitivas, como para intimações, bem como os recursos utilizados nessas práticas como, por
exemplo, o excesso de papéis, certamente acaba faltando em outras atividades que, por serem
mais gravosas e prementes, necessitariam de um olhar mais dedicado por parte de todos os
agentes do sistema de segurança pública. É neste contexto, de um direito penal mínimo,
voltado à fortificação dos direitos individuais, como a liberdade, bem como a defesa de uma
atuação estatal mais eficiente, é que se defende a aplicação do princípio da insignificância,
por parte do delegado de polícia.
O assunto será estruturado em sete seções. A primeira refere-se ao conceito de
princípios como normas jurídicas os quais, em razão de sua positividade e vinculatividade,
são aplicáveis ao caso concreto. A segunda seção trata de alguns princípios penais
constitucionais que fundamentam a existência do princípio da insignificância. A terceira seção
faz um breve histórico do conceito de tipicidade, abordando as principais teorias, e
finalizando pela teoria adotada pelo Código Penal – Teoria Finalista. A quarta seção refere-se
ao princípio da insignificância, com ramificações que lhe são pertinentes, como sobre sua
fundamentação ideológica, a tipicidade formal e material, os requisitos necessários para sua
concreta aplicabilidade, entendimentos jurisprudenciais sobre casos concretos. Após, a sexta
seção busca explicar os critérios para o reconhecimento do princípio da insignificância sendo
os vetores (a) mínima ofensividade da conduta do agente, (b) nenhuma periculosidade social
da ação, (c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) inexpressividade
da lesão jurídica provocada. Por fim, a sétima seção discorre sobre os argumentos favoráveis
à aplicação do princípio da insignificância pelo Delegado de Polícia, com a formalização
material e processual, visto que é o delegado de polícia o primeiro garantidor da legalidade do
procedimento de investigação preliminar.
Concluindo-se, serão expostas as últimas considerações sobre o tema examinado,
trazendo resumida narrativa do trabalho, com o desfecho sob a ótica da autora.
2 Princípios como normas jurídicas
1
ÁVILA, Humberto. Teoria do Princípios. 4ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 15.
2
Na Constituição Brasileira a existência desses princípios implícitos é expressamente reconhecida na cláusula
constitucional de reserva prevista em seu art. 5º, § 2º, pela qual, ‘os direitos e garantias expressos nesta
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil for parte (SILVA, Ivan Luiz. Princípio da
insignificância no direito penal. Curitiba: Juruá, 2006, p. 100).
3
ROBERTI, Maura. Intervenção Mínima como Princípio no Direito Penal Brasileiro. Porto Alegre, Sérgio
Antônio Fabris Editor, 2001, p.54-55.
4
Os princípios, todos eles – os explícitos e os implícitos – constituem norma jurídica. Também os princípios
gerais de direito – e não será demasiada a insistência, aqui, em que se trata de princípios de um determinado
direito – constituem, estruturalmente, normas jurídicas. Norma jurídica é gênero que alberga, como espécie,
regras e princípios – entre eles estes últimos incluídos tanto os princípios explícitos quanto os princípios gerais
do direito. Acerca desta tendência “pós-positivista” que reconhece a aplicação direta ao caso concreto dos
princípios implícitos, Ruy Espíndola leciona: [...] Essa tendência tem sido chamada de pós-positivista. Seus
postulados vão muito além: entendem os princípios como normas jurídicas vinculantes, dotados de efetiva
juridicidade, como quaisquer outros preceitos encontráveis na ordem jurídica; consideram as normas de direito
como gênero, do qual os princípios e as regras são espécies jurídicas. Essas colocações constituem apenas
postulados dessa inovadora e progressista corrente do pensamento jurídico contemporâneo. (GRAU, Eros.
Ensaio e Discurso Sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 3º ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 45).
terem este caráter de norma jurídica, pode-se dizer que são diretamente aplicáveis ao caso
concreto em razão de sua positividade (expressos) e vinculatividade (implícitos).
Diante disto, para melhor identificar os princípios jurídicos, vale destacar a
distinção entre os princípios e regras realizada por Ronald Dworkin e Robert Alexy. Para
tanto, será utilizado em relação à obra de Ronald Dworkin a interpretação de Humberto Ávila
e Andréia Cezne5.
Segundo Ávila, Ronaldo Dworkin distingue princípios e regras, por meio do
critério da aplicação e do conflito entre elas. Para Dworkin, as regras são aplicadas de forma
“tudo ou nada” (all or nothing), ou seja, ocorrendo as condições para incidência as regras são
válidas e, portanto, aplicáveis ou são inválidas e não aplicáveis. E, caso continue o conflito
das regras, o choque será solucionado pela exclusão de algumas delas do ordenamento
jurídico6.
Por sua vez, continua Dworkin, os princípios não determinam necessariamente a
decisão, mas proporcionam os fundamentos a serem aplicados a ela. Por esta razão a colisão
entre os princípios é resolvida pelo critério, ou dimensão, do ‘peso ou importância’
(dimensiono of weight), em que dependendo do caso concreto aplica-se o princípio que tiver
maior peso ou importância7.
De modo semelhante se dá a distinção entre princípios e regras de Robert Alexy,
que parte da teoria dworkiana e desenvolve a sua com algumas peculiaridades. Primeiramente
Alexy parte da premissa de que norma jurídica é o gênero da qual fazem parte os princípios e
as regras como espécie. Senão vejamos as próprias palavras de Alexy8.
Aqui las reglas y los princípios serán resumidos bajo el concepto de norma. Tanto
las reglas como los princípios son normas porque ambos dicen lo que debe ser.
Ambos pueden ser formulados, con la ayuda de las expresiones deónticas básicas del
mandato, las permisión y las prohibición. Los princípios, al igual que las reglas, son
razones para juicios concretos de deber ser, aun cuando sean razones de um tipo
muy diferente. La distinción entre reglas y princípios es pues una distinción entre
dos tipos de normas.
5
Robert Alexy faz parte de um elenco de autores que acabaram por criar teses que mudaram consideravelmente
a visão de ciência do direito. A partir de inúmeras críticas ao positivismo jurídico, elaborou-se um novo modelo
de pensar o direito; inauguram, portanto, uma nova “escola do direito”, a do pós-positivismo. (AMORIM,
Letícia Balsamão. A distinção entre regras e princípios segundo Robert Alexy: esboço e críticas. Revista de
Informação Legislativa, Brasília, ano 42, n.165, p.123-134, jan./mar. 2005).
6
ÁVILA, 2005, p.28.
7
ÁVILA, loc. cit.
8
Aqui as regras e os princípios serão resumidos categorias do conceito de norma. Tanto as regras como os
princípios são normas jurídicas porque ambos dizem o que deve ser. Ambos podem ser formulados, com a ajuda
das expressões deónticas básicas do mandamento, as permissões e as proibições. Os princípios, são iguais as
regras, são razões para juízos concretos de dever ser, quando senão razões de um tipo muito diferente. A
distinção entre regras e princípios é pois uma distinção dentre dois tipos de normas (ALEXY, Robert. Teoria de
Los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estudos constitucionales, 1993, p.83).
Para Alexy, o ponto crucial para a distinção entre princípios e regras, é que:
los princípios son normas que ordenan que algo sea realizado en la mayor medida
posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. 9 Por isso, são
mandatos de optimización en diferentes grado y que la medida debida de su
cumplimiento no sólo depende de las posibilidades reales sino también de las
jurídicas10.
Por outro lado, a colisão de princípios ocorre quando algo é permitido por um
princípio e vedado por outro, neste caso, segundo o autor deverá ser resolvido pela
11
ponderação dos princípios, ou seja, “uno de los princípios tiene que ceder ante el outro” .
Portando, faz-se uma ponderação dos interesses opostos, e um dos princípios cede lugar ao
outro dependendo das circunstâncias de cada caso12.
Em suma, Robert Alexy identifica os princípios em razão de sua aplicação
ponderada diante do caso concreto, ou seja, podem ser cumpridos em distintos graus.
Enquanto as regras incidem de forma “tudo ou nada”. Isso por que:
9
Os princípios são normas que determinam que se realize algo na maior medida do possível, em relação às
possibilidades fáticas e jurídicas (ALEXY, loc. cit).
10
Por isso, são mandamentos de otimização, ou seja, podem ser cumpridos em distintos graus e seu
cumprimento depende de condições fáticas e jurídicas. Progredindo em suas explanações afirma que a distinção
entre princípios e regras desponta com mais nitidez na colisão de princípios e no conflito de regras. No conflito
de regras o autor soluciona introduzindo uma cláusula de exceção que elimina o conflito; ou caso não seja
possível incluir uma cláusula de exceção, a solução é declarar inválida uma delas, sendo eliminada do
ordenamento jurídico a regra inválida( ALEXY, loc. cit).
11
Um dos princípios tem que ceder lugar ao outro. (ALEXY, 1993, p. 89).
12
Assim, para a solução do caso concreto aplicar-se-á o princípio que tem maior peso diante daquelas
circunstâncias, ou seja, “en los casos concretos los princípios tienen diferente peso y que prima el principio com
mayor peso”. Entretanto, diferente das regras, na relação de precedência dos princípios “no significa declarar
invalido al principio desplazado ni que en el principio desplazado haya que introduzir una clausula de
excepción”. (ALEXY, loc. cit)
13
No conflito de regras leva-se em consideração a dimensão de validade, já na colisão dos princípios, como só
pode entrar na colisão princípios válidos, a dimensão é a de peso (ALEXY, loc. cit).
foi lesionado e o direito de alguém que pode ser privado de sua liberdade (gravidade da pena
aplicada).
Após esta breve distinção entre princípios e regras, convém frisar o conceito de
princípio jurídico para Celso Antônio Bandeira de Mello:
14
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 1995, p. 450. apud ESPÍNDOLA,
2002, p.116-117.
15
SILVA, 2006, p. 101.
16
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 39º ed. São Paulo: Saraiva,
2018.
Neste sentido, Maura Roberti explica que “os princípios penais da Constituição
Federal têm como consequência a limitação ao poder do legislador, na medida em que
determinam o conteúdo da norma penal” 17.
Partindo da premissa de que há princípios penais constitucionais expressos e
implícitos, e que ambos configuram a base constitucional do direito penal moderno, vale citar
os princípios básicos do Direito Penal na concepção de Luiz Flávio Gomes, o qual entende
que da Constituição Federal deve-se extrair doze princípios constitucionais:
17
ROBERTI, 2001, p. 61.
18
GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal: Parte Geral: Introdução. V.1, 3ª ed. São Paulo: Revistas dos
Tribunais, 2006, p.99.
19
Segundo Luiz Régis Prado: a fragmentariedade decorre do princípio da intervenção mínima ou
subsidiariedade. E por este caráter fragmentário a função da lei penal não é a proteção absoluta aos bens
jurídicos, mas apenas aquelas “consideradas socialmente intoleráveis”, ou seja, “apenas as ações ou omissões
mais graves endereçadas contra bens valiosos podem ser objeto de criminalização”. Conclui o autor que o
Direito Penal continue com “uma tutela seletiva do bem jurídico, limitada àquela tipologia agressiva que se
revela dotada de indiscutível relevância quanto à gravidade e intensidade da ofensa (PRADO, Luiz Regis. Curso
de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1. 6º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 139).
proteção absoluta aos bens jurídicos, mas apenas aquelas “consideradas socialmente
intoleráveis”, ou seja, “apenas as ações ou omissões mais graves endereçadas contra bens
valiosos podem ser objeto de criminalização”. Conclui o autor que o Direito Penal continue
com “uma tutela seletiva do bem jurídico, limitada àquela tipologia agressiva que se revela
dotada de indiscutível relevância quanto à gravidade e intensidade da ofensa” 20.
De forma didática, Gomes, ensina que “o princípio da intervenção mínima, que
está na base do direito penal mínimo, possui dois aspectos relevantes: (a) fragmentariedade;
(b) subsidiariedade”. Para explicar o sentido da fragmentariedade no direito penal, o autor
divide em: “(a) somente bens jurídicos mais relevantes devem merecer a tutela penal; (b)
exclusivamente os ataques mais intoleráveis é que devem ser punidos penalmente” 21.
Em relação ao segundo aspecto da intervenção mínima, assevera que o Direito
Penal tem caráter subsidiário porque só deve intervir quando os demais ramos do direito não
conseguiram solucionar satisfatoriamente o conflito. Em suma, é a ultima ratio22.
Em resumo, o princípio da intervenção mínima estabelece que o direito penal só
deve atuar na defesa dos bens jurídicos mais relevantes e imprescindíveis à convivência
pacífica em sociedade (caráter fragmentário) e somente quando os demais ramos do Direito
revelarem-se incapazes de dar proteção a estes bens jurídicos ameaçados (caráter subsidiário),
o que limita o poder de punir do Estado.
Neste sentido, em consonância com o princípio da intervenção mínima, surge o
princípio da insignificância que propõe retirar a tipicidade de condutas que produzam como
resultado lesões mínima, ínfimas e irrisórias. Restringindo, desta forma, o âmbito de
incidência do Direito Penal.
Sobre ele César Roberto Bitencourt ensina que “para que se tipifique algum
crime, em sentido material, é indispensável que haja, pelo menos, um perigo de lesão
concreto, real e efetivo de dano a um bem jurídico penalmente protegido”. Ainda, segundo
este doutrinador, o princípio da ofensividade visa ter seus reflexos em dois âmbitos de
incidência, sendo o primeiro de “servir de orientação à atividade legiferante, fornecendo
substratos políticos-jurídicos para que o legislador adote, na elaboração do tipo penal, a
20
PRADO, loc.cit.
21
GOMES, Direito Penal: Parte Geral: Introdução. 2006, p.100.
22
Ibid., p. 101.
exigência indeclinável de que a conduta proibida represente ou contenha verdadeiro conteúdo
ofensivo a bens jurídicos socialmente relevantes;” e o segundo de “servir de critério
interpretativo, constrangendo o intérprete legal a encontrar em cada caso concreto
indispensável lesividade ao bem jurídico protegido” 23.
Como se vê, a primeira função, assim como no princípio da intervenção mínima, o
princípio da ofensividade visa estabelecer um limite ao legislador, ou seja, ao ius puniendi
estatal. Já a segunda surge quando o legislador não observou a sua função, momento em que
cabe ao intérprete ou aplicador da lei realizá-la, suprindo a falha do legislador e declarando a
conduta, em tese ilícita, fato atípico24.
23
BITENCOURT, 2006, p. 27.
24
GOMES, op. cit. P. 99.
25
ZAFFARONI, Raúl Eugênio. Tratado de Derecho Penal. p. 554. apud MAÑAS, Carlos Vico. O Princípio
da Insignificância Como Excludente de Tipicidade. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 58.
26
PRADO, 2006, p. 141.
27
GOMES, Direito Penal: Parte Geral: Introdução. 2006, p.106 -107.
que este incide quando há desproporção entre a conduta de insignificante e a sanção penal
cominada para esse delito. Discorrendo sobre esta relação Odone Sanguiné anota que:
Por fim, vale destacar que é inegável seu caráter vinculante como garantia de
outros princípios e normas do Direito Penal, em especial como fundamento do princípio da
insignificância, como será visto nos tópicos subsequentes.
O conceito de tipicidade passou por diversas fases até a concepção atual. A par
disso, o objetivo desta seção é abordar o surgimento da tipicidade e a evolução da teoria do
delito, analisando quatro fases desse desenvolvimento: a teoria clássica ou causal-naturalista
de delito, a teoria neoclássica ou neokantista de delito, a teoria da ratio essendi da
antijuridicidade e, por fim, a teoria finalista de delito.
31
GRECO, Rogério; ROCHA, Fernando Galvão. Estrutura Jurídica do Crime. Belo Horizonte: Mandamentos,
1999, p. 47.
32
BITENCOURT, 2006, p. 318.
33
GOMES, Direito Penal: Parte Geral: Teoria Constitucionalista do Delito. 2004, p.69.
34
SANTOS, Juarez Cirino. A Moderna Teoria do Fato Punível. 2000. p. 34.
Em síntese Juarez Cirino, destaca:
35
SANTOS, A Moderna Teoria do Fato Punível. 2000. p. 6-7.
36
BITENCOURT, 2006, p. 320.
4.4 Teoria finalista
Welzel elaborou a teoria finalista do delito, que veio adicionar à teoria causalista
uma finalidade para ação, sendo que para ele a “ação é compreendida como o exercício da
37
atividade finalista” . Essa conduta “se baseia na capacidade da vontade de prever as
consequências de sua intervenção no curso causal e determiná-lo, conforme essa previsão, na
direção de um objetivo” 38, em outras palavras, apresenta-se como uma “atividade consciente
e faz com que a conduta se caracterize como conduta dirigida e orientada ao objetivo” 39. Com
efeito, para Welzel “a vontade não pode ser separada de seu conteúdo, isto é, de sua
finalidade, posto que toda conduta humana deve ser voluntária e toda vontade tem um fim” 40.
Dessa maneira, para esta teoria o crime continua sendo um fato típico, antijurídico
e culpável, porém reestruturado. Como visto acima, a ação humana é o ponto principal da
estrutura analítica do delito e é entendida como uma atividade consciente acerca do objetivo.
Já a segunda mudança na estrutura do delito é constatada na alteração da posição do dolo e da
culpa, que passam a fazer parte da conduta ou do fato típico, e não mais a culpabilidade.
Nestes termos segue o silogismo esclarecedor de Gomes: “se toda ação é finalista
(é dirigida a um fim), conclui-se que a finalidade a ela (ação) pertence”. Por sua vez, “se
finalidade (direcionada à realização dos requisitos do fato típico) é igual a dolo (saber o que
faz e querer o que faz), infere-se então que o dolo pertence à ação (leia-se: à conduta e ao fato
típico)”. Portanto, altera-se também o próprio conceito de dolo que antes do finalismo era
entendido como “consciência e vontade de realizar a conduta assim como consciência da
ilicitude dessa conduta” 41.
Assim, com o advento da teoria finalista parte-se primeiramente da consciência e
vontade de realizar a conduta para se compor e caracterizar a tipicidade. Neste raciocínio,
segue-se com consciência da ilicitude como elemento da culpabilidade, passando de requisitos
subjetivos para normativo, e encerra-se como a consciências da ilicitude potencial como
suficiente para demonstrar a culpabilidade.
Desta forma “a culpabilidade apresenta-se como reprovação pessoal do autor do
fato punível e fundamenta-se no fato de que o indivíduo detinha o poder conter-se diante dos
37
TAVARES, Juarez. Teorias do Delito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 58.
38
GRECO, Rogério; ROCHA, Fernando Galvão. Estrutura Jurídica do Crime. 1999, p. 61.
39
TAVARES, op. cit., p. 59.
40
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 6ª ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 344.
41
GOMES, Direito Penal: Parte Geral: Teoria Constitucionalista do Delito. 2004, p.22.
impulsos determinantes da prática do ilícito e não o fez”. Então, no tocante à relação
tipicidade-antijuridicidade, volta-se a teoria de Mayer, e a ocorrência do fato típico é apenas
indício de que a conduta seja antijurídica, portanto, “a antijuridicidade retrata a relação
existente entre a conduta e o ordenamento jurídico, que expressa a desconformidade da
primeira com o segundo” 42.
Em suma, são as contribuições de Welzel que perduram até os dias atuais, quais
sejam, além de definir que toda ação ser finalista, também redistribuiu dos elementos dolo e
culpa, que passam a constituir o tipo, ou seja, integram a descrição da conduta se dolosa ou
culposa.
Enfim, como visto nas sucintas linhas acima a definição atual de crime como uma
conduta típica, antijurídica e culpável, é produto da elaboração inicial da doutrina alemã, que
ao longo dos anos vem desenvolvendo e aperfeiçoando os diversos elementos que compõem o
delito. Feitas estas considerações passa-se a análise do princípio da insignificância
propriamente dito.
Foi com Claus Roxin que surgiu a ideia do princípio da insignificância (das
Geringfügikeitsprinzip) no sistema penal, como forma de validação geral para a determinação
do injusto, mediante o recurso da interpretação restritiva dos tipos penais43. De acordo com o
autor este princípio serve como regra auxiliar de interpretação da lei penal para a
determinação (ou não) do injusto. Neste sentido seguem as palavras de Roxin:
42
GRECO, Rogério; ROCHA, Fernando Galvão. Estrutura Jurídica do Crime. 1999, p.63.
43
LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípio da Insignificância no Direito Penal: análise à luz das Leis
9.099/95 (Juizados Especiais Criminais), 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro) e da Jurisprudência atual.
2.ed. São Paulo, 2000. p. 87.
44
Princípio da insignificância que permite na maioria dos casos excluir desde um início de dano de pouca
importância: maus tratos não são qualquer tipo de dano à integridade física, senão somente um relevante;
analogicamente obsceno no sentido do código penal é somente a ação sexual de uma certa importância, injurioso
em uma forma delitiva é somente a lesão grave. Às pretensão de respeito (ROXIN, Claus. Política Criminal y
Sistema del Derecho Penal. Barcelona: Bosch, 1972. p.53. apud LOPES, Teoria Constitucional do Direito
Penal. 2000, p. 509).
Desta forma Roxin parte da premissa de que o Direito Penal só deve ir até onde
seja realmente necessário para a proteção do bem jurídico. Portanto, para o autor em casos de
lesões ínfimas, estas, apesar de formalmente típicas, devem ser excluídas do tipo por meio do
princípio da insignificância.
Em que pese a Constituição não ter agasalhado expressamente este princípio, cabe
reconhecer que o fez de maneira implícita. Como bem coloca Ribeiro Lopes, “nenhum
instrumento legislativo ordinário ou constitucional o define ou acata formalmente, podendo
ser inferido na exata proporção em que se aceitam limites para interpretação constitucional e
das leis em geral” 45. Trata-se de criação doutrinária e jurisprudencial.
Apesar disso, vale ressaltar que o Princípio da Insignificância foi recepcionado no
art. 240, § 1°, do Código Penal Militar, ao definir que no caso de furto simples o juiz poderá
considerar como infração disciplinar.
Assim, não obstante ser um princípio implícito observa-se que a doutrina e a
jurisprudência têm conseguido estabelecer critérios razoáveis para sua conceituação e o
reconhecimento destas condutas devem ser consideradas insignificantes, com base na natureza
fragmentária e subsidiária do Direito Penal. Assim, Vico Mañas conceitua o princípio da
insignificância integrando a concepção material de tipicidade com a visão político-criminal de
descriminalização de condutas sem relevância jurídica para o Direito Penal. E define:
45
LOPES, Princípio da Insignificância no Direito Penal. 2000, p. 49.
46
“O que se passa efetivamente no tema do princípio da insignificância não e, se não impropriamente, um
processo de descriminalização, mas em câmbio, mais acertadamente, uma técnica de desconsideração judicial da
tipicidade. [...] A diferença mais significativa que se pode opor aos processos de descriminalização e de
desconsideração da tipicidade é que o primeiro é de índole legislativa, enquanto o segundo é de natureza judicial,
mas diverso da despenalização”. (LOPES, Princípio da Insignificância no Direito Penal. 2000, p.121).
47
MAÑAS, Carlo Vico. O Princípio da Insignificância como Excludente de Tipicidade. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 58.
48
MAÑAS, loc. cit.
49
MAÑAS, 1994, p. 54.
Para dar validade sistemática à irrefutável conclusão político-criminal de que o
direito penal só deve ir até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico, não
se ocupando de bagatelas, é preciso considerar materialmente atípicas as condutas
lesivas de inequívoca insignificância para a vida em sociedade.
Por sua vez, Assis Toledo, fornece os elementos necessários para formação do
conceito de princípio da insignificância, segundo o autor, é “a gradação qualitativa e
quantitativa do injusto, permite que o fato penalmente insignificante seja excluído da
tipicidade penal” por configurar um ataque mínimo de escassa ofensividade50.
Em contra partida, Diomar Ackel Filho conceitua o princípio da insignificância
como “aquele que permite infirmar a tipicidade de fatos que, por sua inexpressividade,
constituem ações de bagatela, desprovida de proporcionalidade, de modo a não merecerem
51
valoração da norma penal, exsurgindo, pois como irrelevantes” . Dessa maneira, com base
nos conceitos expostos extrai-se que o princípio da insignificância surge como um movimento
político-criminal de interpretação restritiva do tipo penal, sob o enfoque de que para haver a
configuração do tipo penal, é imprescindível que haja dano e seja este materialmente lesivo
para o bem jurídico.
Vale consignar, por fim, que este trabalho de cunho acadêmico utiliza-se da
expressão “princípio da insignificância” como expressão sinônima de “crime de bagatela”,
por acreditar que ambos os sentidos se equivalem semântica e juridicamente.
Compreendida a relação entre lesão efetiva e grave a um bem jurídico protegido e
a necessidade de intervenção penal, incontroverso o reconhecimento do princípio da
insignificância, passa-se a análise dos critérios de aplicação.
50
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1994, p.134.
51
SILVA, 2006, p. 94.
ínfimos prejuízos a bens jurídicos não devem ser objeto de tutela penal, não obstante as
condutas sejam consideradas formalmente típicas, antijurídicas e culpáveis.
O Supremo Tribunal Federal em acórdão proferido no habeas corpus 84.412-
0/SP, no ano de 2004, estabeleceu os critérios para o reconhecimento do princípio da
insignificância, tornando-se a decisão paradigma para as decisões de todo o Poder Judiciário.
Do corpo do acórdão se depreende:
52
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC n. 84.412-0/SP. Disponível em
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=79595. Acesso em 02/11/2018.
Por fim, como último critério mencionado no acórdão do STF está a alínea “d”
inexpressividade da lesão jurídica provocada, oportunidade em que o intérprete deve avaliar o
desvalor do resultado e sendo ele inexpressivo, ínfimo, preenchido está tal requisito.
Importante frisar que tais vetores apesar de serem objetivos, apresentam um grau
de subjetividade do aplicador, fato este que acarreta em diferentes interpretações na doutrina e
na jurisprudência.
Outro ponto a ser destacado é que tais vetores são cumulativos e servem de
balizas ao intérprete, sem exaurir outras circunstancias do caso concreto de acordo com o
valor da ação.
Como visto nas seções anteriores apesar do princípio da insignificância não ter
base expressa no Código Penal, é francamente aceito tanto na doutrina como por nossos
tribunais. Com efeito, trata-se o princípio da insignificância de uma eficaz forma de corrigir
distorções causadas pela incriminação genérica de condutas.
Conforme anteriormente mencionado, a norma penal, por sua generalidade, acaba
por punir de forma igualitária, ínfimas ou grandiosas lesões ao mesmo bem jurídico tutelado,
o que muitas vezes pode causar exageros punitivos. Ou seja, em determinadas circunstâncias,
a aplicação por subsunção direta dessa norma geral será desproporcional, já que a conduta
praticada pelo agente, apesar de formalmente típica, pode ser penalmente insignificante. E,
para evitar esse tipo de exagero punitivo que se faz necessário o surgimento de um instituto
moderador, como é a insignificância penal, sendo o fiel da balança nas situações fáticas em
que a aplicação irrestrita da lei penal afigura-se como um exagero.
Pois bem. Se o intento do princípio da insignificância é evitar a punição excessiva
de fatos inexpressivos, nada mais razoável do que o delegado de polícia aplicá-lo. Isto porque,
cabe ao delegado de polícia atuar como primeiro filtro da própria irracionalidade potencial do
sistema penal, ou seja, da generalidade dos comportamentos abrangidos como um fato típico.
53
DE PAULA, Alan Pinheiro. Segurança Pública Brasileira e a Aplicação do Princípio da Insignificância
pelo Delegado de Polícia. (Dissertação de Mestrado). Mestrado em Ciência Jurídica, UNIVALI, Itajaí, 2018. p.
88.
O entendimento não poderia ser diferente, visto que inexiste previsão expressa em
lei limitando a análise do delegado de polícia a tipicidade formal. Ora, o delegado de polícia
titular de uma carreira jurídica, tem atribuição e capacidade técnica de analisar os elementos
do fato típico e assim definir se um determinado comportamento se enquadra ou não como
fato típico.
Não parece aceitável que o delegado de polícia prenda em flagrante quem tenha
praticado um fato considerado materialmente insignificante. Logo, exigir a prática de um ato
administrativo encarcerador é desarrazoado. Por consequência, se o fato narrado é desprovido
de tipicidade, não há razão para qualquer lavratura flagrancial. Ou a tipicidade (formal e
material) está presente desde a captura em flagrante do indivíduo, protraindo-se até o trânsito
em julgado, ou nunca esteve presente.
Até porque, por ser o delegado de polícia o responsável pela instauração de um
procedimento policial, e, como se sabe, a mera instauração destes procedimentos, por si só, já
representam um inegável constrangimento ao status dignitatis do investigado. Nada mais
adequado que seja esta autoridade que primeiramente faça o juízo de valor quando à
existência da tipicidade penal deste suposto comportamento delituoso e assim tenha não só o
poder como o dever de aplicar o princípio da insignificância e se abster de lavrar o auto de
prisão em flagrante ou mesmo de baixar a portaria de instauração de inquérito policial.
Neste sentido:
54
Ibid., p. 85.
55
DE PAULA, 2018, p. 86.
silogismo claro e direto, se não há fato típico a se apurar desde o início, por óbvio, também
não haverá crime a se flagrantear. Dentro de todo conceito de ordenamento jurídico,
segurança jurídica, carreira jurídica, questiona-se, como pode um delegado de polícia autuar
em flagrante delito um indivíduo em face de um fato que não é criminoso? Autuar por mero
formalismo jurídico seria absolutamente ilegal, talvez, até passível de uma responsabilização
administrativa.
Sobre este ponto vale destacar a observação de Carlos Vico Mañas56:
56
MAÑAS, 1994, p.81.
57
DE PAULA, 2018, p. 89.
Ante o exposto, conclui-se que mais do que um poder do delegado de polícia, a
aplicação do princípio da insignificância é um dever e atribuição funcional no desempenho de
sua missão de garantir direitos fundamentais.
8 Considerações finais
Referências
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esboço e críticas. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 42, n.165, p.123-134,
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Vico. O Princípio da Insignificância Como Excludente de Tipicidade. São Paulo: Saraiva,
1994.