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A FILOSOFIA DE POLÍCIA COMUNITÁRIA: REFLEXÕES SOBRE A

MOBILIZAÇÃO SOCIAL PARA PROMOÇÃO DA CIDADANIA E SEUS REFLEXOS


NOS PROCESSOS DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL 

Jairo Leandro de Souza


Marcos Erico Hoffmann

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar, por meio de revisão bibliográfica, a
filosofia de Polícia Comunitária como meio de mobilização social para a promoção
da cidadania. Além disso, avalia o papel do agente de segurança pública no
contexto pós-ditadura militar e quais as contribuições que essa aproximação entre
polícia e sociedade podem trazer para o processo de investigação criminal. Nesse
sentido, é possível verificar que a filosofia de Polícia Comunitária vem se
desenvolvendo no Brasil a partir da Constituição de 1988, enfrentando algumas
dificuldades, dentre as quais, resquícios do autoritarismo que vigorava no regime
antecedente. Nesse aspecto, verificou-se que o agente de segurança pública precisa
se adequar aos novos paradigmas pautados no respeito aos Direitos Humanos e
individuais, com consciência da dimensão pedagógica de suas ações. No âmbito da
investigação criminal, sendo esse um processo, em parte, dependente de provas
testemunhais, informações e denúncias, torna-se natural que a construção de uma
relação de confiança e parceria com a sociedade é fator de suma importância para a
atuação da polícia investigativa. Dessa forma, os Conselhos Municipais de
Segurança (CONSEGs) surgem como espaços de construção de cidadania e de
fortalecimento dos laços de confiança mútua. A ideia é que favoreçam também os
processos de investigação, tendo na sociedade efetivos parceiros na luta contra o
crime. Diante do exposto, percebe-se a importância da mobilização social nas
questões de segurança pública, não apenas como meio de inserção e
responsabilização do cidadão, mas também como auxílio na busca de paz e
segurança na sociedade, de forma ampla.


Artigo apresentado como requisito parcial para a conclusão do curso de Especialização em Gestão da
Segurança Pública e Investigação Criminal Aplicada da Academia da Polícia Civil de Santa Catarina –
ACADEPOL-IES.

Escrivão de Polícia Civil, Graduado e Licenciado em Letras pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).
E-mail: jairopcsc@gmail.com.

Professor orientador. Psicólogo policial civil, mestre em Administração Pública e doutor em Psicologia pela
UFSC. Docente de Graduação e de Pós-Graduação. E-mail: marcoserico@yahoo.com.br.
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Palavras-chave: Polícia de proximidade. Policiamento orientado para o problema.


Mobilização Social. Investigação.

Abstract: This article aims to analyze, through a bibliographical review, the


philosophy of Community Policing as a means of social mobilization for the promotion
of citizenship. In addition, it assesses the role of the public security agent in the post-
military dictatorship context and what contributions this approach between police and
society can bring to the criminal investigation process. In this sense, it is possible to
verify that the philosophy of Community Policing has been developing in Brazil since
the 1988 Constitution, facing some difficulties, among which, remnants of
authoritarianism that prevailed in the previous regime. In this aspect, it was verified
that the public security agent needs to adapt to the new paradigms based on respect
for Human and individual Rights, with awareness of the pedagogical dimension of
their actions. In the scope of criminal investigation, which is a process, in part,
dependent on testimonial evidence, information and denunciations, it is natural that
the construction of a relationship of trust and partnership with society is a very
important factor for the police action research. In this way, the Municipal Safety
Councils (CONSEGs) emerge as spaces for building citizenship and strengthening
ties of mutual trust. The idea is that they also favor the investigation processes,
having in society effective partners in the fight against crime. In view of the above, we
can see the importance of social mobilization in public security issues, not only as a
means of insertion and accountability of the citizen, but also as an aid in the search
for peace and security in society in a broad way.

Keywords: Proximity police. Problem-oriented policing. Social Mobilization.


Investigation.

1 INTRODUÇÃO

Contemporaneamente, percebe-se que a participação ativa do cidadão,


característica própria das sociedades democratizadas, inclusive nas questões
relacionadas à segurança pública, tem sido fundamental para a melhoria e o
sucesso das ações de enfrentamento da criminalidade. A Constituição Federal de
1988, em seu artigo 144, já enfatiza e propicia a responsabilização também do
cidadão, quando preconiza que a Segurança Pública é dever do Estado, direito e
responsabilidade de todos, o que denota a importância da participação da sociedade
na preservação da ordem pública.
Nessa perspectiva, a implementação da filosofia de Polícia Comunitária
apresenta-se como modelo e alternativa pertinente, tendo em vista que possibilita à
sociedade a participação ativa no processo de manutenção e melhoria da segurança
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pública, discutindo e propondo soluções, acompanhando suas aplicações e,


consequentemente, melhorando a qualidade de vida da comunidade. Entretanto,
sabe-se que, apesar da relevância dessa filosofia de aproximação entre sociedade e
polícia em face de um Estado Democrático, muitos são os obstáculos para sua
implantação, seja por dificuldades internas nas próprias instituições de segurança,
ou quanto a dificuldades no processo de mobilização social.
No Brasil, consoante Nazareno Marcineiro (2009), os Estados membros são
incentivados pelo Ministério da Justiça, através da Secretaria Nacional de Segurança
Pública, a adotarem uma prática policial que esteja em conformidade com os
postulados pela filosofia de Polícia Comunitária. Dessa forma, o conhecimento de tal
filosofia tem sido abordado nos cursos de formação de agentes da segurança
pública. Objetivam desenvolver práticas policiais que estejam voltadas para interagir
com a comunidade e em consonância com o que preconiza a Constituição Federal
no que tange às questões relacionadas aos direitos humanos.
Os Conselhos Comunitários de Segurança (CONSEGs) figuram como a
principal ferramenta de interação com a comunidade, sendo que suas reuniões
ocorrem mensalmente. Esse espaço, porém, não deve ser entendido como exclusivo
balcão de reivindicações e cobranças da comunidade para com a polícia. Mas sim
como um lugar de elaboração de estratégias, sugestões e avaliações que visam à
melhoria da qualidade de vida. Ou seja, compreendido como uma modalidade em
que comunidade e polícia sejam beneficiadas.
O presente trabalho objetiva analisar a importância da proximidade entre
polícia e sociedade, mediante a aplicação da filosofia de Polícia Comunitária no
contexto da Polícia Civil. A pertinência de tal filosofia para a configuração de um
Estado democrático na construção da cidadania e promoção dos Direitos Humanos
evidencia os benefícios dessa interação para a atividade policial, especificamente no
que se refere à investigação criminal.
A Polícia Civil se caracteriza por ser um órgão repressivo e investigativo,
dependente em parte de provas testemunhais e de informações angariadas no
processo de investigação para obter êxito em seu trabalho. Neste estudo, pretende-
se evidenciar, por meio de pesquisa bibliográfica, os efeitos e contribuições
decorrentes da aproximação entre polícia e sociedade para a investigação criminal.
Há efeitos e contribuições pontuais e práticos, eventualmente de longo prazo, frutos
de um processo evolutivo, de educação e de crescente confiança da comunidade no
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trabalho da polícia. O policial precisa ter consciência de todos esses processos e


suas possibilidades, inclusive de seu papel no processo de construção democrática.
(CORBARI, 2009)
Nessa perspectiva, Ricardo Brisola Balestreri (2003) salienta a existência de
uma dimensão pedagógica no agir policial, a qual poderá, consequentemente, torná-
lo promotor dos Direitos Humanos. Na medida em que age com nobreza, firmeza
moralmente reta e respeito, o policial servirá como exemplo para a população e, até
mesmo, para o próprio criminoso. Dessa forma, os CONSEGs também podem ser
considerados espaços de aprendizados quanto a direitos e deveres dos cidadãos
até então desconhecidos.
Mostra-se extremamente relevante, portanto, entender e reconhecer a
importância da implementação da filosofia de polícia comunitária e como esta
filosofia vem sendo aplicada na instituição polícia civil. Da mesma forma, a
conscientização do papel do policial como promotor da cidadania e qual a
importância da aproximação entre polícia e comunidade para o processo de
investigação criminal. A ideia é que proporcionemos à instituição uma visão pontual
sobre o assunto e favoreçamos a elaboração de estratégias que promovam a
interação polícia/comunidade, buscando otimizar o trabalho da Policia Civil em sua
atividade fim.

2 A POLÍCIA COMUNITÁRIA E A MOBILIZAÇÃO SOCIAL PARA A


CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS:
RESPEITAR PARA SER RESPEITADO

Desde que o homem passou a viver em sociedade percebeu-se a


necessidade da adoção de um código de convivência. Caso contrário, imperaria a lei
do mais forte em detrimento do mais fraco. Para assegurar o cumprimento desse
código de convivência, surgiu a necessidade de se criar grupamentos de pessoas
que fizessem valer as leis vigentes, atualmente compreendidas como as forças de
segurança pública. As instituições policiais buscam, por meio de suas ações e
atribuições, garantir a preservação da ordem pública. Segundo Marcineiro e
Pacheco (2005, p. 44) pode ser entendida como uma “situação real, e não apenas
jurídica, que representa a forma de convívio social onde imperam o interesse
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público, a estabilidade das instituições e os direitos individuais e coletivos das


pessoas”.
Portanto, no Brasil, com o Estado Democrático de Direito, a preservação da
ordem pública mediante a aplicação da lei vigente não pode ser exercida pelas
autoridades de forma truculenta e arbitrária, mas sim, com respeito às garantias
individuais, manifestação da pluralidade cultural e respeito aos direitos humanos.
Marcineiro (2009) assevera que as forças de segurança precisam desenvolver
estratégias que incluam o cidadão no processo de construção da ordem desejada,
respeitando os direitos e garantias individuais.
A participação da sociedade nas questões referentes aos problemas
relacionados à segurança pública constitui fator primordial para o sucesso nessa
seara. Nesse ponto, cabe ressaltar que a Constituição Federal de 1988, em seu
artigo 144, já enfatiza e propicia a responsabilização também do cidadão, quando
preconiza que a Segurança Pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de
todos, o que garante a participação popular na construção da paz social.
Nesse aspecto, uma polícia de proximidade mediante a implementação da
filosofia de polícia comunitária vem sendo desenvolvida nas forças de segurança
pública, objetivando promover uma aproximação com a sociedade de forma que
ambos juntos, polícia e sociedade, possam desenvolver estratégias para a resolução
de problemas inerentes a segurança pública. Consoante Scardueli e Casagrande
(2011, p. 32), a filosofia de Polícia Comunitária “proclama a interação entre polícia e
comunidade, nesse aspecto, torna-se o alicerce fundamental na resolução de
problemas de segurança pública...”. Para Trojanowicz e Bucqueroux a definição de
Polícia Comunitária consiste em:

Uma filosofia e uma estratégia organizacional que proporciona uma nova


parceria entre a população e polícia. Baseia-se na premissa de que tanto a
polícia quanto a comunidade devem trabalhar juntas para identificar,
priorizar, e resolver problemas contemporâneos tais como crime, drogas,
medo do crime, desordens físicas e morais, e em geral a decadência do
bairro, com objetivo de melhorar a qualidade geral da vida na área.
(TROJANOWICZ e BUCQUEROUX, 2003, p.4).

A filosofia de Polícia Comunitária vislumbra a ação policial voltada para a


resolução de problemas realçando a participação da comunidade nesse processo.
Nessa perspectiva, o Policiamento Orientado para o Problema (POP), utilizado no
policiamento comunitário, diferencia-se do policiamento tradicional na medida em
que reconhece que a ocorrência é frequentemente o sintoma de um problema.
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Assim, após obter informações durante a ocorrência, além de outras fontes e de


pesquisas, o policial passa a ter uma visão clara e ampla do problema,
reconhecendo assim, quais causas ocultas estão gerando as ocorrências,
possibilitando a elaboração de estratégias e ações diretas para a resolução dos
problemas. (CURSO NACIONAL DE MULTIPLICADOR DE POLÍCIA
COMUNITÁRIA, 2012).
Como parte do POP, surge na década de 1970 nos Estados Unidos da
América o método S.A.R.A, composto de quatro fases (Scanning, Analysis,
Response e Assessment), que traduzido para a língua portuguesa é denominado
I.A.R.A (Identificação, Análise, Resposta e Avaliação). Na primeira fase, o policial
identifica um problema recorrente e similar que vem ocorrendo em determinada
região. Nessa fase objetiva-se realizar um levantamento preliminar para confirmar a
existência do problema. Na segunda fase, da análise, é determinada a extensão do
problema, onde o propósito é estudar a fundo o problema de forma a poder
identificar suas causas. Após a identificação e análise, tem início a terceira fase,
correspondente ao desenvolvimento e implementação de uma resposta para o
problema. Na quarta e última fase ocorre a avaliação da efetividade das respostas
por parte dos policiais. (CURSO NACIONAL DE MULTIPLICADOR DE POLÍCIA
COMUNITÁRIA, 2012).
Todavia, o Brasil ainda encontra imensas dificuldades no que concerne à
polícia de proximidade e aplicabilidade da filosofia de Polícia Comunitária no âmbito
da segurança pública. Decorre, em parte, do resquício de autoritarismo que ainda
ecoa, oriundo do período do regime ditatorial (1964-1984), no qual o Brasil figurou
como grande violador dos Direitos Humanos. No período, as forças policiais foram
usadas como o principal instrumento do Estado para sua imposição de poder. Nesse
período de arbitrariedades, o Estado, que teria por obrigação garantir a efetivação
dos Direitos Humanos à população, tornou-se seu principal violador, principalmente
com a utilização de suas forças de segurança. As consequências disso macularam
profundamente a credibilidade e a imagem das polícias, como ainda pode ser
observado nos dias de hoje. Conforme Magalhães:

Com o advento da ditadura militar no Brasil, e em nome da Segurança


Nacional, instalou-se um complexo sistema repressivo para combater a
subversão e, ao mesmo tempo, reprimir preventivamente qualquer atividade
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considerada suspeita por se afigurar como potencialmente perturbadora da


ordem. (MAGALHÃES, 1997, p.2).

É notável que naquela época a atuação policial encarregou-se de criar no


inconsciente coletivo da sociedade uma imagem negativa e distorcida do que
realmente deve ser o papel do profissional de segurança pública na sociedade atual.
Nesse aspecto, também os policiais foram contaminados por uma cultura autoritária
que ecoa até os dias de hoje. Por esse viés, RESENDE apud SANTOS, afirma que:

Em 1984, após o fim da ditadura militar, restou apenas o contexto histórico


brasileiro de um abismo entre os Direitos Humanos e a atividade policial,
que relatam constantemente relatos de violência na atividade policial e a
imagem de ruins profissionais generalizando todo o corpo policial, mas
temos que reconstruir esse paradigma de antagonismo, pois a policia e os
Direitos humanos devem se aproximar a fim de atuarem juntos em beneficio
da sociedade e do cidadão de bem. (RESENDE, 2017, p.1 apud SANTOS,
2018, p. 5)

É importante ressaltar que o uso progressivo da força não pode ser


confundido com truculência. O agente da segurança pública, no momento da ação
policial, representa a presença do Estado, o qual tem o dever de promover o respeito
aos Direitos Humanos. O policial precisa agir de forma técnica, legal e consciente de
seu papel na sociedade. Ao agir de forma truculenta, o policial acaba se igualando
ao criminoso, o que é injustificado sob qualquer ponto de vista. Balestreri (1998, p.9)
explicita que: “A fronteira entre a força e a violência é delimitada, no campo formal,
pela lei, no campo racional pela necessidade técnica e, no campo moral, pelo
antagonismo que deve reger a metodologia de policiais e criminosos”.

A fim de que haja mobilização social, é preciso que, no âmbito da segurança


pública, o Estado atue sempre dentro da legalidade e com total respeito aos Diretos
Humanos. É premente que sejam criados novos paradigmas, desvinculando de vez
a figura do policial truculento e autoritário do período ditatorial, tornando-o um
verdadeiro promotor de direitos, um exemplo positivo para a sociedade. Oliveira
(2009, p. 25), assevera que, para se adequar à nova realidade e resgatar a
confiança da população, houve a necessidade da adoção de novos rumos. Dentre
eles, a “substituição na formação antiga militarizada com padrões do exército, onde
o criminoso era visto como inimigo de Estado, para uma formação profissional de
polícia dentro da filosofia de Direitos Humanos”. Nesse aspecto, as academias de
polícia possuem importância fundamental e devem propiciar aos futuros policiais um
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estudo aprofundado e sério frente aos direitos humanos que desconstrua a máxima
de que tais direitos servem apenas para “proteger bandidos”, pensamento este ainda
existente em alguns segmentos das forças de segurança pública.
Sendo a ação policial dotada de caráter pedagógico, essa distorção de
significado referente aos direitos humanos acaba sendo internalizada pela própria
sociedade, que acaba por entender erroneamente que Direitos Humanos servem
realmente apenas para “proteger bandidos” e não para assegurar princípios básicos
inerentes à dignidade da pessoa humana. Ora, se o Estado que deveria promover os
Direitos Humanos os viola cotidianamente por meio de suas instituições, no caso, as
ações policiais, a população acaba por entender natural e justificada tal conduta,
gerando assim uma cultura de violência na qual os fins justificam os meios,
desprovendo o ser humano de qualquer direito básico. É necessário, portanto, que o
agente de segurança pública se conscientize de seu papel de promotor de direitos,
agindo de maneira firme, porém legal e humana, sem abusos ou desrespeito,
independente da situação.

2.1 POLÍCIA COMUNITÁRIA: ASPECTOS HISTÓRICOS

Historicamente, o Japão figura como o local onde ocorreram as mais antigas


manifestações de policiamento comunitário, as quais datam de 1879. Uma ampla
rede de postos policiais denominados Kobans e Chuzaishos possibilitava a interação
entre a força policial e a comunidade. Entretanto, a primeira organização policial
moderna pautada em uma filosofia de Polícia Comunitária foi a Guarda
Metropolitana de Londres, idealizada pelo Primeiro Ministro Inglês Sir Robert Peel
em 1829. Segundo Nazareno Marcineiro (2009), serviram de embasamento para a
criação de diversas polícias no mundo.
Entre os anos de 1914 e 1919, o Comissário de Polícia de Nova Iorque Arthur
Woods passou a preconizar, em uma série de conferências em Yale, a importância
social do trabalho da polícia, assim como a dignidade e valor público de suas
atuações. Iniciava-se, assim, uma primeira versão de policiamento comunitário nos
Estados Unidos. Woods afirmava que uma sociedade esclarecida no que tange a
questões de segurança pública beneficiaria a missão policial de duas maneiras:
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[...] o público ganharia um respeito maior pelo trabalho policial se o cidadão


entendesse as complexidades, as dificuldades e o significado dos deveres
do policial; e, através dessa compreensão, o público estaria disposto a
promover recompensas pelo desempenho policial consciente e eficaz.
(SKOLNICK e BAYLEY, 2017, p.57).

A partir da década de 1960, nos Estados Unidos, ocorre um aumento da


criminalidade, perturbação da ordem pública e distúrbios urbanos, que motivaram
diversos estudos acerca da função policial. Concluíram que, conforme Nazareno
Marcineiro (2009), a preservação da ordem pública depende das relações
comunitárias. Perceberam, implicitamente, a necessidade da comunitarização da
polícia. Nas décadas de 1970 e 1980, a Polícia Comunitária ganhou força, sendo
adotada por diversos países de várias maneiras diferentes, ainda que enfrentando
diversas dificuldades.
No Brasil, a filosofia de Polícia Comunitária surgiu na década de 1980,
coincidindo com a redemocratização efetivada pela promulgação da Constituição de
1988, a qual vislumbra os Direitos Humanos como princípio norteador e
fundamental. Passa a dar ênfase à proteção dos direitos e liberdades individuais.
Com isso, vem se tentando estabelecer relações de credibilidade e confiança entre
polícia e comunidade, a fim de propiciar o desenvolvimento de, segundo Marcineiro
(2009, p. 112) “trabalhos de resultados de curto e longo prazo juntamente com a
comunidade, por meio de métodos que estimulem a responsabilidade, amparados
pelo princípio da ética e da legalidade”. Nessa perspectiva, percebe-se que a
aproximação entre polícia e sociedade deve ser fomentada constantemente,
objetivando ampliar os laços de confiança, pois assim amplia-se a percepção policial
e da sociedade nas questões sociais e inerentes à segurança.

3 CONSELHOS COMUNITÁRIOS DE SEGURANÇA

Os Conselhos Comunitários de Segurança (CONSEGs ), criados em santa


Catarina mediante o Decreto Estadual n° 2.136, de 12 de março de 2001, figuram
como uma das principais ferramentas de interação entre polícia e sociedade. Suas
reuniões são realizadas mensalmente, as quais contam com a participação de
grupos de pessoas da sociedade civil e representantes das polícias civil e militar,
denominados de membros natos.
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Segundo definição exarada no livro Curso Nacional de Multiplicador de Polícia


Comunitária, da Secretaria Nacional De Segurança Pública (2012, p.325) os
Conselhos Comunitários de Segurança são entidades de direito privado,
independentes e que “têm por objetivos mobilizar e congregar forças da comunidade
para a discussão de problemas locais de segurança pública, no contexto municipal,
ou em subdivisão territorial de um município”. Para Marcineiro (2009, p.204),
CONSEGs são “Um grupo de pessoas interessadas em fazer algo em prol da
segurança pública, em prol da comunidade e em apoio à polícia, discutindo e
analisando os problemas de segurança do bairro, propondo soluções e
acompanhando sua aplicação”. O artigo 2º do Regulamento Dos Conselhos
Comunitários De Segurança explicita que:

Conselhos Comunitários de Segurança são entidades de apoio às Polícias


Estaduais nas relações com a comunidade para a solução integrada dos
problemas de segurança pública com base na filosofia da Polícia
Comunitária, vinculados, por adesão, às diretrizes emanadas da Secretaria
de Estado da Segurança Pública, por intermédio da Comissão
Coordenadora dos Assuntos dos Conselhos Comunitários de Segurança.
(SANTA CATARINA. COORDENADORIA ESTADUAL DE POLÍCIA
COMUNITÁRIA DE SANTA CATARINA)

De maneira prática, as reuniões dos CONSEGs, podem operacionalizar ações


para a resolução de problemas cotidianos que refletem na segurança pública, como
a carência de iluminação pública ou a ausência de linhas regulares de ônibus,
aspectos esses referentes à exclusão social (SCARDUELI e CASAGRANDE, 2011).
Contudo, as contribuições dessa aproximação para a área de segurança pública
podem ultrapassar tais contribuições, incidindo diretamente como meio de auxílio
para a resolução de crimes no processo de investigação. Ao estabelecer uma
relação de confiança e credibilidade com a comunidade a polícia poderá se valer de
verdadeiros parceiros na luta pela manutenção da paz social, e não apenas
espectadores.

A polícia necessita da cooperação das pessoas na luta contra o crime; os


cidadãos necessitam comunicar com a polícia para transmitir informações
relevantes. O processo de parceria comunitária possui três lados: confiança
facilita um maior contato com a comunidade que, por sua vez, facilita a
comunicação que leva a uma maior confiança e assim por diante.
(CURSO NACIONAL DE MULTIPLICADOR DE POLÍCIA COMUNITÁRIA,
DA SECRETARIA NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2012, p.383).
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Em Santa Catarina, a Diretoria de Segurança Cidadã (DISC), criada em 2007


através da Lei 381, de 31 de março de 2007, passou a englobar em 2011 a
Coordenadoria Estadual de Polícia Comunitária e a Comissão Coordenadora dos
Assuntos dos CONSEGs. Dentre as finalidades da DISC estão o fomento de
discussões a respeito do crime e da violência e identificação dos fatores geradores,
a aproximação órgãos da segurança pública e sociedade civil e a garantia de um
espaço de participação social na discussão e resolução dos problemas do crime e
da violência (co-produção da segurança pública). Segundo a Diretora da DISC,
Delegada Vanessa De Oliveira Corbari, atualmente há 354 CONSEGs instituídos no
estado de Santa Catarina. Entretanto, apenas 140 deles estão ativos, o que aponta
para a dificuldade de manutenção desses Conselhos.

No contexto da Polícia Civil, à qual compete o exercício da atividade de


Polícia Judiciária, investigativa, a aproximação com a sociedade é fator de suma
importância. No processo de investigações, as provas testemunhais e informações
fornecidas pela comunidade são cruciais para a resolução de um evento criminal.
Em um contexto onde impera a desconfiança e a aversão da população para com as
forças policiais, dificilmente se receberá ajuda. Nesse aspecto, Jerome Skolnick e
David Bayley, destacam:

A fim de resolver um crime, a polícia deve obter informações dos


moradores das comunidades onde os crimes ocorreram. Mas, se os
moradores forem hostis e suspeitarem da polícia, a probabilidade de
fornecerem informações é menor. (SKOLNICK e BAYLEY, 2017, p.68).

De sua parte, Marcineiro (2009, p. 204), salienta a “importância da


participação popular no combate ao crime, pois as pessoas possuem informações de
extremo valor e relevância, sendo que conhecem as minúcias e as particularidades
do local onde residem”. Durante as reuniões dos CONSEGs é possibilitado ao
participante acesso direto aos membros natos representantes das polícias Civil e
Militar, oportunidade em que denúncias e informações referentes a crimes ocorridos
na comunidade podem ser repassadas.
Entretanto, caso tais informações possam trazer algum risco para o
denunciante ou terceiros, o artigo 21 – XVIII do Regulamento dos Conselhos
Comunitários de Segurança proíbe que tais informações e denúncias sejam
formuladas em público, bem como o artigo 43 do mesmo regulamento menciona que
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tais denúncias devem ser feitas diretamente aos membros natos ou ao presidente do
Conselho. Além disso, durante as reuniões é disponibilizada uma urna, na qual é
possível depositar denúncias e sugestões de forma anônima.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da análise de bibliografia pertinente ao tema Polícia


Comunitária, percebe-se que a mobilização social em questões relacionadas à
segurança pública é fator fundamental. Possibilita o pleno exercício da cidadania à
população para a construção da sociedade desejada, na medida em que
responsabiliza o cidadão, tornando-o co-produtor da segurança pública. Nesse
contexto, é notável a importância da filosofia de Policia Comunitária, a qual vem
sendo implementada e evoluindo no país após a Constituição Federal de 1988. Não
obstante, enfrenta dificuldades diversas, dentre as quais, os resquícios de
autoritarismo herdados do período militar, onde as forças de segurança serviram
como braço do Estado na manutenção do poder, época em que os direitos
individuais e direitos humanos foram amplamente desrespeitados.
Após o período ditatorial, foi preciso que ocorresse uma adequação das
forças de segurança pública aos novos tempos, pautadas em um Estado
Democrático de Direito, evolução esta que ainda está em desenvolvimento. Nessa
perspectiva, verificou-se a necessidade de que o policial se conscientize da
dimensão pedagógica de suas ações. Reconheça-se também como cidadão e
exerça seu papel de promotor de cidadania, agindo de forma técnica, sempre dentro
da legalidade e respeitando os direitos humanos. Assim, as instituições policiais irão
estabelecer gradativamente laços de confiança e respeito com a comunidade, a qual
passará a ser parceira ativa na luta contra o crime e pela paz social.
Os CONSEGs se apresentam como o palco ideal para o exercício da
cidadania e fortalecimento da parceria entre polícia e sociedade. Nesse local a
polícia obtém conhecimento das prioridades e problemas relacionados diretamente à
comunidade onde estão inseridos e a comunidade passa a entender as dificuldades
que permeiam a atividade policial. Nesse contexto, percebe-se que a Polícia Civil do
Estado de Santa Catarina tem se esforçado para cada vez mais para se aproximar
da sociedade. Alguns programas foram criados, como o Projeto Polícia Civil Por
Elas, que objetiva promover acolhimento e autonomia de mulheres em situação de
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vulnerabilidade social. Neste caso, a Polícia Civil atua em conjunto com a rede
intersetorial, por meio de um Grupo de Mulheres. Há também o Programa de
Fortalecimento de Vínculos com Adolescentes em Situação de Vulnerabilidade. Este
Projeto abriu as portas da Academia de Polícia Civil do estado de Santa Catarina
(ACADEPOL) para adolescentes do Norte da Ilha, onde são contempladas oficinas
com temas relacionados ao cotidiano dos adolescentes. Por exemplo, Mundo do
Trabalho para conhecer profissões, Inclusão Digital, Práticas Esportivas, Ética e
Cidadania.
Além disso, durante a pesquisa, foi possível concluir ainda que para a Polícia
Civil, no que tange à investigação criminal, a aproximação da sociedade revela-se
fundamental. Em grande parte, o processo investigativo depende de informações,
denúncias e cooperação em geral da comunidade onde ocorreu o delito, bem como
de provas testemunhais. Com união e respeito mútuo, a comunidade tende a auxiliar
de forma ativa a polícia durante as investigações. Salienta-se, entretanto, que a
presente pesquisa apenas lançou luz sobre o tema da Polícia Comunitária no
Contexto da Polícia Civil e suas contribuições para o processo de investigação.
Podem ser auspiciosas novas pesquisas sobre o tema, incluindo uma futura
pesquisa de campo com os policiais Civis membros natos dos CONSEGs do estado.
Seria muito importante levantar dados referentes ao funcionamento, importância e
contribuições dos CONSEGs para a Polícia Civil, especialmente no que tange à
investigação criminal.

REFERÊNCIAS

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