Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O DIREITO
INTRODUÇÃO E TEORIA GERAL
Um a P e r sp e c tiv a L u so -B ra sileira
A Regra Jurídic a
CAPÍTULO ! 1
Caracterização
A regra jurídica será regra de conduta se der o critério por que se pau
tarão condutas humanas; será regra de decisão se der o critério pelo qual
o intérprete resolve os casos a que se aplica.
A regra jurídica è sempre um critério de decisão. M ediante ela o intér
prete chegará sempre a soluções jurídicas dos casos.
A regra jurídica é normalmente um critério de conduta, mas não o é sempre.
Se bem que a maior parte das regras tenha função orientadora das condutas
182
Sendo assim, é errado falar das regras jurídicas como «normas de conduta»
pois assim se omitiriam sectores muito importantes dentro destas regras (1).
109. Estrutura
(1) Sobre a concepção de Binding, que distinguia norm a e regra, e sobre num erosas
outras concepções da norma jurídica, cfr. Kaufm ann, Teoria da N orm a Jurídica, 25 e 59 e segs.
(2) Sobre a análise lógica da regra jurídica, cfr. Lourival V ilanova, Lógica Jurídica,
86 e segs.
183
(1) Mas os textos jurídicos podem adoptar a ordem inversa. A ssim , o art. 88 do
C ód. Proc. Civil brasileiro dispõe qUe « é com petente a autoridade judiciária brasiSeira
q u an d o ...» . A descrição dos casos constitui a previsão, e a estatuição é a competência da
autoridade judiciária brasileira.
(2) Por exem plo, o art. 130 do C ódigo Civil brasileiro dispõe que não vale o acto,
que deixar de revestir a forma determinada em lei. Só o a c to , elem ento dinâm ico, é previsto.
i3
184
110. Hipoteticidade
II Quer isto dizer que as várias regras que exprimem a ordem ju rí
dica podem também, em determinado sentido, considerar-se hipotéticas
(1) Salvas justam ente as normas sc'jre norm as, com o a que suspende ou revoga
norm a interior.
185
— mas num sentido totalmente diferente do que nos ocupou quando excluí
mos que das ordens normativas derivassem imperativos hipotéticos (1).
São hipotéticas porque, pairando sobre a vida social, só se aplicam
quando se produz um facto que corresponda à sua própria previsão. Publi
cada uma lei que pune o lenocínio (provocação ou favorecimento da corrupção
de outrem), ela não se aplica autom aticam ente — só se aplica quando um
lenocínio for efectivamente praticado. E como o pressuposto da aplicação
das regras é com frequência um acto humano (por exemplo, eu só sou atin
gido pelas obrigações que atingem o vendedor se efectivamente vender algo)
isso significa que a aplicação de uma regra, que está sempre dependente da
verificação de certos pressupostos, pode conter entre esses pressupostos
um acto de vontade. Mas um a vez realizados esses pressupostos, aplicada
a regra, a imperatividade revela-se plenamente, para nada interessando já
a vontade do sujeito de estar ou não vinculado. As regras são pois de apli
cação condicionada, mas imperativas quando efectivamente se verifiquem
os seus pressupostos.
II — Exemplos:
1) Regras meramente qualificativas.
Possivelmente, haverá que contar com uma categoria de regras que
podemos designar meramente qualificativas.
A ordem jurídica necessita de delimitar os elementos com que trabalha,
e sobre os quais estabelece as suas valorações. Assim, são elementos prévios
a essa valoração as pessoas, as coisas, as acções...
As regras respeitantes à personalidade jurídica ou à capacidade, as
regras que definem e classificam as coisas, as regras que caracterizam as acções
humanas, são verdadeiras normas jurídicas, e todavia destinam-se unica
mente a qualificar, a dar precisão aos elementos de base, tornando-os capazes
de suportar as valorações ulteriores (ulteriores, num ponto de vista lógico).
O exame desta matéria é todavia dificultado pela objecção de que essas
regras não são autônomas (1), e antes fariam parte de regras preceptivas,
únicas que se deveriam tom ar em conta. N ão entraremos no exame deste
problema.
2) Regras que produzem automaticamente efeitos jurídicos.
Numerosas regras produzem efeitos no mundo do direito independen
temente de qualquer tarefa humana de aplicação.
Assim as regras que estabelecem efeitos jurídicos automáticos, como
a perda de um lugar, de uma condecoração, da qualidade de sócio, etc.,
aplicam-se logo que se verifica o seu pressuposto fáctico e não parecem ser
adequadamente descritas como imperativos (2).
(1) Cfr. em Enneccerus, § 27/1, a enum eração de várias «proposições jurídicas incom
pletas».
(2) Englobam -se aqui portanto todas as regras que provocam uma alteração na
ordem jurídica por efeito da superveniência de um facto não voluntário.
188
113. Generalidade
(1) E é esta tam bém a posição que a lei portuguesa reflecte em vários lugares. L ogo
o art. 1.» d o C ódigo Civil considera leis todas as disposições genéricas... T am bém o
art. 721/3 d o C ódigo de Processo Civil caracteriza co m o substantivas as disposições
gen éricas... Enfim , é ainda pela generalidade qu e a lei caracteriza portarias e outros
dip lom as que m anda publicar n o jornal oficial.
190
114. Abstracção
(1) Cfr. M arcello Caetano, D ireito Constitucional, n.° 111; D ireito A dm inistrativo, ],
n .os 35, 37 e 180.
(2) Cfr. Engisch, Konkreúsierung.
(3) N este sentido D ias Marques, Introdução, n.os 20 e 21, para quem a própria ab s
tracção da fa c ti species normativa levaria a que a aplicação da norm a fosse virtualm ente
plural, e até indefinida.
(4) Só poderíamos continuar a falar de abstracção com o característica da regra
jurídica se tivéssem os daquela um entendim ento diverso do corrente — se considerássem os
abstracta toda a regra que se nã° referisse a uma situação histórica dada, a uma situação
191
115. Bilateralidade
individual. N essa altura, a abstracção estaria afinal contid a na generalidade, pois desde
que não houvesse a consideração das características do ca so concreto haveria abstracção
e generalidade.
Esta é a parte de verdade dos autores que falam em generalidade e abstracção sem
distinguir um a e outra.
(1) Sobre toda esta matéria, veja-se o que expusem os em A s Relações Jurídicas
Reais, n .os 5 e segs.
192
não tem aqui sentido, pois não há sujeitos passivos da propriedade, há apenas
estranhos.
Isto não impede, nomeadamente neste último caso, que toda a pessoa
tenha o dever genérico de não violar a propriedade alheia. Todavia, este
dever, como o nome indica, é genérico, de modo que não se estabelece uma
relação jurídica entre o proprietário e cada uma das outras pessoas. Há
quando muito uma ligação teleológica entre as propriedades que a ordem
jurídica reconhece e os deveres genéricos que por outro lado impõe, mas
esse nexo teleológico não se traduz em concretas relações jurídicas entre o
proprietário e cada uma das outras pessoas.
(1) Fazem os uma aplicação destes vários princípios no n osso artigo O Código Civil
de 1966 é Interpretativo do D ireito A nterior?
(2) Cfr. G alvão Teles, Introdução, 11, n.° 98; Engisch, Introdução, 28. Cfr. tam bém
Enneccerus, P a rte general, § 27/T.
(3) Arts. 43 e segs. do C ód. Civil brasileiro e art. 202 do Cód. Civil Português.
(4) Art. 1165 do C ód. Civil brasileiro e art. 940 do Cód. Civil português.
198
I — Regras de devolução
A principal categoria de regras remissivas é constituída por aquilo a
que podemos chamar as regras de devolução. E regra de devolução a que
não regula directamente determinada matéria, antes remete para outra regra
que contém a regulamentação aplicável.
O Direito Internacional Privado traz-nos a grande massa das regras de
devolução.
Tomemos por exemplo o art. 43 do Código Civil português: «À gestão
de negócios é aplicável a lei do lugar em que decorre a principal actividade
do gestor». Prevêem-se pois situações em que alguém, sem autorização,
se intromete na gestão de negócios alheios, mas não se diz quais as conse
qüências de tal facto: antes se indica um elemento — o lugar onde decorre
a principal actividade do gestor — capaz de individuar determinada lei, e
essa lei nos indicará qual o regime jurídico definitivamente aplicável.
O art. 43 contém uma regra — diz qual a lei que deve ser aplicável — mas
o seu sentido completo só se obterá através da remissão para a lei nela
indicada.
Também o direito transitório form al {infra, n.° 247/IIÍ) nos faculta
numerosos exemplos de regras de devolução. Como veremos, as dificul
dades resultantes de haver situações que podem em abstracto ser regula
das pela lei antiga ou pela lei nova são resolvidas pela opção por uma das
leis. No direito transitório formal não se regula pois directamente a situação,
ao contrário do que se passa no direito transitório material, antes se remete
a regulamentação para uma das leis em presença.
Fora destes casos, em que deparam os com as chamadas normas de
conflitos, ainda podemos encontrar numerosas hipóteses de normas de devo
lução. Assim, é muito freqüente estabelecer-se em legislação avulsa que
às infracções previstas é aplicável a pena do crime de desobediência quali
ficada. Omite-se então a fixação material da conseqüência jurídica, mas
indica-se o critério formal que permitirá determ inar qual é essa conseqüência.
O legislador procede assim muitas vezes por economia de preceitos, mas
este expediente deve quanto possível ser evitado, porque na prática torna-se
frequentemente muito difícil apurar quais as disposições que são efectiva-
mente reclamadas por semelhantes regras (1).
(1) Sobre num erosos outros problem as suscitados pelas regras de rem issão, e nom ea
dam ente sobre a distinção da remissão em estática e dinâm ica, cfr. D ias Marques, Intro
dução, n.° 39.
*4
200
II — Ficções
A regra de devolução funciona mediante a identificação dos conseqüentes:
a A deve aplicar-se o mesmo conseqüente que está estabelecido para B. Mas
pode obter-se o mesmo resultado através da identificação dos antecedentes:
dir-se-á então que A = B, e se A é igual a B necessariamente se lhe aplica
o conseqüente que para B está estabelecido.
Quando assim se procede está-se no caminho das ficções. Foi um
caminho muito trilhado no século passado, na legislação e sobretudo na
doutrina. Resolviam-se as dificuldades dizendo-se que, por ficção, se supunha
que duas realidades diversas eram idênticas. É um mau processo, porque
se as realidades são diversas, diversas continuam.
Se o legislador recorre a ficções o intérprete tem de aceitar o conteúdo
preceptivo da norma, que é o de regular a situação A da mesma forma que
a situação B. Deve-se todavia observar que, com mais naturalidade e melhor
técnica, os mesmos resultados se obteriam com uma regra de devolução.
De todo o modo, a ficção dá-nos um exemplo de uma regra não autô
nom a: ela não regula por si directamente, antes tem de ser com binada com
a primeira regra para se obter o regime aplicável.
Contém uma ficção o art. 2752 do Código Civil português: «Se a veri
ficação da condição for impedida, contra as regras da boa fé, por aquele a
quem prejudica, tem-se por verificada; se for provocada, nos mesmos ter
mos, por aquele a quem aproveita, considera-se como não verificada».
É claro que verificação e não verificação da condição são factos diametral
mente opostos, mas a lei, para fazer aplicar os efeitos da produção ou da
não produção da condição aos casos da não produção ou da produção resul
tantes de uma conduta contrária à boa fé entrou pelo caminho da ficção e
identificou realidades inversas. Contém também uma ficção o art. 242 do
mesmo Código.
culdades que caso por caso se podem suscitar (1). Desejável seria que o
legislador ampliasse consideravelmente o esclarecimento da índole das dis
posições que estabelece.
(J) Por exem plo, o art. 1678/2 do C ód. Civil português especifica os casos em que
a adm inistração dos bens do casal pertence à m ulher, m as não esclarece se a regra é injuntiva
ou supletiva. Só o exam e das várias alíneas nos poderá permitir chegar a uma conclusão,
que aliás pode variar de caso para caso. A ssim , a alínea f ) deve considerar-se injuntiva,
pois se funda em aspectos pessoais; a regra da alínea dj é dispositiva, pois os cônjuges podem
prever de maneira diversa ao regular em convenção antenupcial o regime de separação.
(2) É a posição do C ódigo Civil português, nos arts. l.° /3 , 294 e 2084.
(3) É a solução expressa d o art. 294 d o C ódigo Civil português, que se refere a dis
posição «imperativa».
(4) Sobre estas noções, recorde-sc o que dissem os, supra, n.° 26.
204
I — Regras permissivas
Sustentámos (supra, n.° 118) a existência dum a categoria de regras
permissivas. As regras permissivas são por natureza regras dispositivas.
Assim, a regra que permite o casamento, que é um a regra tipicamente
permissiva, não se aplica independentemente de um a manifestação de von
tade das partes nesse sentido. H á uma série de efeitos jurídicos predispostos,
oferecidos à vontade das pessoas, mas que se não concretizam independen
temente dessa vontade. O mesmo diremos da emancipação. Só após a
manifestação de vontade é que esses efeitos se aplicam e então, como disse
mos, com inteira imperatividade (1).
II — Regras interpretativas
Distinguimos (2) as regras jurídicas em interpretativas e inovadoras.
As regras interpretativas (como aliás tam bém as inovadoras) podem ser
injuntivas ou dispositivas. Por outro lado, as regras interpretativas podem
sê-lo de fontes do direito ou de negócios jurídicos. Com binando estas clas
sificações, apuramos qual a modalidade de regras interpretativas que nos
interessa neste momento.
São regras interpretativas injuntivas as que interpretam fontes do direito;
dispositivas, as que interpretam negócios particulares. No primeiro caso,
porque fixam o entendimento das fontes, fixam-no objectivamente, sem
atender à vontade das partes. No segundo caso, porque visam esclarecer
os termos que os particulares usaram porque quiseram, fazem-no dispositi-
vamente: assim como podiam não ter feito a declaração, tam bém os parti
culares podem fazê-la usando os term os em sentido diverso do que se prevê
na norma interpretativa. Vejamos um exemplo:
Alguém morre com testamento em que beneficia um a generalidade de
pessoas: os pobres, os hospitais, as congregações religiosas, qualquer outra
categoria. Surgirão dificuldades para delimitar a extensão daquela cate
goria. A lei intervém então, esclarecendo que a disposição beneficia as
pessoas existentes no lugar em que o testador tinha domicílio à data da
morte (3).
(1) As regras permissivas tam bém podem prever meras faculdades, com o a actuação
de facto do proprietário sobre a coisa. T am bém estas regras devem ser qualificadas com o
dispositivas.
(2) Supra, n.° 119.
(3) Arts. 1669 do C ódigo Civil brasileiro e 2225 do C ódigo C ivil português.
206
(1) N ote-se que por vezes se fala em lei espfecial para designar sim plesm ente a lei
específica ou extravagante.
(2) Por isso tem razão D ias M arques quando trata esta matéria co m referência,
não às classificações das normas mas às relações entre as normas jurídicas (Introdução,
n.° 42). Mas já representam verdadeiras classificações as distinções das regras em com u n s
208
(1) O regionalism o incompleto não elim ina pois a tendência de aplicação das regras
não locais sempre que não se verificar obstáculo a essa aplicação.
Sz o caso não estiver previsto directam ente mas houver regra geralanáloga, com as
mesmas reservas e cautelas deve ser adm itida a aplicação analógica na região em causa.
(2) N em ao espaço correspondente às leis gerais em Portugal.
(3) É da m esm a forma, quando se dever caracterizar o espírito do sistem a, nos
term os do art. 10/3 do C ódigo Civil português.
213
(1) N um sentido já diverso, e que vai além do que exam inám os até agora, dispõe
o art. 52/2 do D ecreto-L ei português n.° 49368, de 10 de N ovem bro de 1969, que as dis
posições desse estatuto que constituam direito excepcional só podem ser revogadas por
disposição expressa, com m enção precisa das disposições afectadas.
CAPÍTULO 1
Generalidades
200. Interpretação
201. As lacunas
3) Imprevisibilidade
A evolução incessante* das circunstâncias faz com que a lei feita hoje
se vá aplicar am anhã em condições muito diversas. E pode acontecer mesmo
que situações de todo imprevisíveis no m om ento da elaboração da lei exijam
depois tratam ento próprio. A circulação aérea requer disciplina, mas quando
(1) Sobre a relação de subsidiariedade entre regras em geral, cfr. D ias M arques,
Introdução ao E studo do D ireito, n.° 40.
surgiu provocou uma lacuna, pois as leis sobre a circulação terrestre ou
m arítim a não lhe eram em geral aplicáveis.
Basta a referência a esta últim a categoria de casos para dem onstrar o
que atrás dissemos, quanto à inevitabilidade da existência de lacunas da lei.
4) Interpretação ab-rogante
Enfim, a actuação da interpretação ab-rogante, de que falaremos em
m omento posterior, pode revelar a existência de lacunas, quando conduzir
à liquidação dos preceitos em contraste, ou do preceito para que se não
encontra um sentido.
III — Se bem que de interpretação autêntica se fale norm alm ente com
referência à interpretação em sentido restrito, ela abrange na realidade toda
a interpretação em sentido amplo, e por isso a consideram os neste lugar.
Neste sentido a fonte que procede à interpretação autêntica está subordinada
a<5 conjunto das fontes vigentes.
Quando dissemos atrás que o assento realiza interpretação autêntica,
tínham os em vista este facto, que nos perm itiu qualificar o assento como
lei interpretativa.
E nestes termos também parece poder-se aceitar a qualificação feita
por Betti da actuação dos jurisconsultos rom anos cujas opiniões eram vin-
culativas como interpretação autêntica (1), pois a doutrina era um a fonte,
mas subordinada ao conjunto de fontes preexistentes.
(1) Posição repudiada por Raul Ventura, D ireito Romano, 109, por partir de pres
su p o sto s diversos.
CAPITULO 2
i
Interpretação
se discute qual a solução de dado caso: «então isso não está na lei?» Mas
esta insegurança relativa é uma fatalidade resultante da generalidade que é
característica da previsão normativa.
Cabe antes de mais à interpretação resolver estes problem as. P ar
tindo da fórmula, deverá determinar qual o sentido autêntico da disposição
legal. E inútil é acentuar como é delicada esta tarefa que perm itirá res
ponder com objectividade e precisão a cada um a das dúvidas suscitadas.
Isto mesmo sem entrar em conta com problem as relacionados já com a apli
cação, de que falaremos depois.
208. A letra
(1) Código C ivil C om entado, 8.a ed ., art. 5.°/n.° 3 e 'a r t. 6.°/n.° 1 (da L ei de Intro
dução).
350
III — Do que dissemos deriva que do exame literal do texto não resulta
a solução de todos os problemas de interpretação. Desde logo porque o
elemento literal pode ser ambíguo. H á palavras com várias acepções; e da
conjugação de palavras, mesmo unívocas, podem resultar várias acepções
literais possíveis.
Assim, se a lei fala em móvel, o que se deve entender por tal? Será,
na acepção mais corrente, uma peça de m obiliário? Será, no sentido técnico-
-jurídico mais preciso, toda a coisa que não estiver integrada na terra ou
noutro imóvel com carácter de perm anência? Utilizar-se-á alguma outra
acepção de que a palavra é susceptível, por exemplo, será móvel tudo o que
se possa deslocar espacialmente sem detrim ento? A mera consideração da
letra não nos resolve estes problemas: só outros elementos perm itirão um a
resposta. Isto quer dizer que a letra não permite mais, nos casos normais,
do que chegar a um catálogo de sentidos igualmente possíveis.
(1) São freqüentes as rectificações, publicadas nos jornais oficiais, a textos legisla
tivos anteriorm ente vindos a lume. Supom os que a essas rectificações se aplica o regim e
que posteriorm ente indicarem os com o próprio da lei interpretativa. Cfr. tam bém o que
dissem os a propósito da publicação {supra, n.° 151).
(2) O art. 9.0/2 do C ódigo Civil português diz-n os que não pode ser considerado
pelo intérprete um pensam ento le g is la tiv o que não encontre na letra um m ínim o de corres
pondência, ainda que imperfeitamente expresso. Especifica-se: correspondência verbal,
mas nào poderia tratar-se de outra, p °'s a Ietra é um conjunto de palavras.
351
(1) A regra consta do art. 9.°/3 do C ódigo C ivil português. É todavia necessário
não exagerar o alcance deste preceito. Sem elhante presunção não dispensa todas as outras
tarefas de interpretação q Ue referiremos, e só em conju nto com os seus resultados pode
ser devidam ente utilizadu. N ã o se esqueça ainda qu e do m esm o preceito consta outra
presunção, respeitante ao espírito, a que aquela se subordina: a de que o legislador c o n
sagrou as soluções m ais acertadas.
352
III — Por nossa parte, aderimos sem reservas à tese objectivista, como
é hoje orientação dominante.
Para além das razões já atrás apontadas, parece-nos decisivo o facto
de a lei só valer uma vez integrada na ordem social. É um a fórm ula pro-
(1) É norm alm ente sujeito a com prom issos em que fórm ulas idênticas são utilizadas
para objectivos diversos.
(2) O art. 9.° do C ódigo Civil português contrapõe à letra o «pensam ento legislativo».
É uma fórmula que não é habitual. Que posição podem os considerar acolhid a?
D issem o s já que a expressão pensam ento legislativo é am bígua. Se considerarm os
os antecedentes deste trecho, veremos que a am bigüidade é inten cional: não se quis tom ar
partido na querela objectivism o-subjectivism o.
N o A nteprojecto de M anuel de A ndrade aparecia um art. 9.°/IV d on d e se inferia
a orientação subjectivista: «Os cham ados trabalhos preparatórios ou m ateriais da lei não
têm qualquer autoridade enquanto não devidam ente publicados» (cfr. Boi. M in. Just.,
n.° 102, 145). D aqui se retiraria que estes materiais, com a publicação, passavam a ter
autoridade.
D isp o siçã o sem elhante se manteve até ao Projecto de C ódigo C ivil, m as foi criticada,
não só por considerações de praticabilidade co m o por nã o parecer justificada esta co n sa
gração im plícita do subjectivism o. Foi por isso elim inada do texto definitivo.
C o m o resultado, não há hoje nenhum elem ento donde se possa inferir um a o p ção
por algum a das posições em presença O então M inistro da Justiça, A n tu n es V arela, na
sua com un icação à Assem bleia N acional de 26 de N ovem bro de 1966, se bem que tenha
exprim ido decididam ente a sua preferência pela orientação subjectivista acen tuou que o
C ó d ig o , «colocando-se deliberadamente acim a da velha querela entre subjectivistas e objec-
tivistas», não consagrava nenhuma orientação: D o Projecto ao Código C ivil, n.os 5 e 6.
Esta com un icação está publicada no M in. Just., n.° 161.
353
duzida para vigorar aí, e que contém um sentido condicionado pela reper
cussão nessa ordem. Esta integração da lei na ordem social im porta o
apagar do legislador após o acto de criação norm ativa, tornando-se mais
im portante verificar qual o sentido que tom a na ordem social que visa com
por, do que o sentido pretendido por quem a fez.
210. Actualismo
(1) Veja-se o esquem a que José H. Saraiva (A p o stilh a, 9o) elaborou para ilustrar
a situação das várias escolas, em bora os term os não sejam rigorosam ente os que nos ocupam .
354
(1) N o que a este últim o aspecto respeita, supom os encontrar n o texto do art. 9.°,/]
do C ódigo Civil português a sua consagração. Entre os elem entos a qu e se m anda atender
na interpretação da lei estão as condições específicas do tem po em que é aplicada. E sta
355
referência é totalm ente incom preensível fora dum entend im ento actualista. Porque um
actualista pode explicar que entre os elem entos auxiliares da interpretação figurem ele
m entos históricos, com o verem os, m as para um historicista é inteiram ente aberrante que o
sentido de uma fonte possa variar por efeito de circunstâncias posteriores: ele estará imuta-
velm ente fixado desde o início.
(1) Teoria, pág. 286.
(2) Fram m enti, pág. 125.
(3) Cfr. Interpretazione delia legge e sua efficicnza evolutiva, pág. 184.
356
III — Podemos por isso dizer que a própria ordem jurídica, adaptando-se,
adapta a lei a necessidades novas (1). Por isso o intérprete procede correc
tam ente, e não com hipocrisia, quando se preocupa com o sentido actual
da lei e abstrai de qual terá sido quando ela foi criada, há um século talvez.
Esta orientação é nuclear, e podemos dizer até que, longe de menosprezar
a lei, é frequentemente condição da sua sobrevivência, evitando que seja
eliminada pelo desuso.
É pois lícito considerar que o sentido de ontem deixou de ser o sentido
de hoje; ou que um texto reveste hoje um significado que o seu autor his
tórico nunca poderia ter tido em vista. Assim se permite a adaptação de
velhas fórmulas a novas necessidades, e se evita ou se atenua o fenômeno,
sempre de recear, do envelhecimento das estruturas norm ativas (2).
(1) Veja-se um exem plo desta índole na nossa Tipicidade, n.° 72.
(2) C lóvis Beviláqua encontra a razão da interpretação evolutiva em m om en tos que
parece poderem reconduzir-se à occasio legis e ao elem ento teleológico, de que a seguir
falarem os: «O que interessa é determinar o fundam ento e a finalidade da lei, o porque e o
para quê. E acontece que este segundo m om ento não raro se m odifica sem determ inar
alteração no dispositivo da lei, que com as m esm as palavras passa a ter con teú d o diferente
do prim itivo. Tam bém o primeiro m om ento sofre o influxo da evolu ção, m as não com a
m esm a frequência»: Re v. Forense, X X X V II (1921), pág. 412.
(3) O art. 9.° do C ódigo Civil português abre justam ente com a afirm ação de que a
interpretação não deve limitar-se à letra da lei, m as reconstituir a partir dos textos o pensa
m ento leg isla tiv o ... Quer dizer, directamente se reconhece a tensão entre letra e espírito,
e se prefere o espírito: com a reserva apenas de que esse espírito deve encontrar na letra
um m ín im o de correspondência (n.° 2). O sentido é pois o que mais interessa, é o verda
deiro objectivo da interpretação.
A possibilidade duma divergência entre a letra e o espirito está ainda prevista no art. ] 1 ,
em que se fula de « in te r p r e ta ç ã o extensiva». Tam bém o C ódigo Penal português refere
esta figura. Posteriorm ente a examinaremos.
357
(1) E m esm o reconh ecendo que aqui não está cm causa apenas a lexicologia, mas
tam bém a sintaxe.
(2) A ssim , se se depara na lei com a palavra servidão, da consideração gramatical
resulta só que tanto pode significar escravatura co m o um direito lim itado de g o z o de prédio
alh eio; m as logo o espírito actua, determ inando o sentido efectivo naquela previsão.
(3) O art. 9 .°/l do C ó d ig o Civil português aponta neste sentido ao contrapor ao
elem ento gram atical três aspectos que devem ser tom ados em conta para desvendar o pensa
m ento legislativo. Esses aspectos podem ser relacionados (em bora a correspondência não
seja perfeita) com esta tripartição doutrinária.
358
(1) Cfr. Oswaldo Bandeira de M elo, D ireito A dm inistrativo, n.ü 332; Carlos Maxi-
m iliano, Hermenêutica, n.° 324, que aplica os m esm os princípios aos títulos, às epígrafes
e às rubricas da lei.
(2) Estão neste caso os sumários de decisões jurisprudenciais vinculativas, publi
cados em colectâneas oficiais, c mesmo os sum ários dos diplom as legais publicados em jo r
nais oficiais. M anifestam um entendimento oficial do texto do diplom a, mas não fazem
fé, nem participam da especial autoridade dos elem entos sem i-vinculativos que acim a
referimos.
359
213. Sistemático
(!) Sobre esta matéria cfr. D ias M arques, Introdução, n.° 68/4.
24
360
214. Histórico
II — Precedentes normativos.
Podemos distinguir precedentes:
— históricos
— comparativos
Temos pois, quer as regras que vigoraram no passado, e que são objecto
da História do Direito, quer as regras estrangeiras que vigoravam na época
da formação da lei e tiveram influência sobre ela. Já atrás dissemos como,
em certo sentido, se fala em fontes do direito para abranger estes elementos,
e como os resultados daquelas ciências permitem explicar as fontes actuais.
Isto significa que estes elementos têm função auxiliar da interpretação.
(I) O art. 9 .°/l do C ódigo Civil português remete para «as circunstâncias em que
a lei foi elaborada». A m en çã o das circunstâncias, sendo m u ito vasta, permite englobar
tod o este conteúdo.
362
estes trabalhos perdem valor decisivo, mas não deixam com isso de repre
sentar elementos auxiliares da interpretação. Muitas vezes um texto ap a
rece-nos como totalmente incompreensível, e é o exame deste elemento his
tórico que permite outorgar-lhe um sentido, que lhe tire a marca do absurdo,
e proporcione o seu aproveitamento.
Com isto em nada se desmente o actualismo. Pode-se presumir que o
sentido actual corresponde ao sentido inicial, se não aparecer nenhum a
razão em contrário — mas largamente se pode recorrer a quaisquer outros
elementos que convençam do contrário. Os trabalhos preparatórios não
têm nenhuma posição privilegiada na lista dos elementos auxiliares da inter
pretação.
215. Teleológico
(]) É este até o aspecto para que preferentemente aponta o art. 9.° do C ódigo Civil
Português.
363
(1) Arts. 1437 do C ódigo Civil brasileiro e 434 do C ódigo C om ercial português.
(2) Veja-se um apontam ento neste sentido em A liara, L e nozioni fon dam en tali, I,
110 - 112 .
364
simplesmente em fins da lei, mas quis acentuar que toda a lei tem fins sociais,
pois toda a lei se destina a trazer uma vantagem social. N ão é demais recordar
o ambiente anti-individualista imperante no momento em que esta lei foi
promulgada em abono desta interpretação.
Pelo contrário, a referência ao bem comum escapa a qualquer destes
contributos parcelares que encontramos nos chamados elementos da inter
pretação. A sua incidência vai-se fazer sentir, como veremos imediatamente
de seguida, como um controle exterior do próprio sentido da fonte e por
tanto já em matéria dos resultados da interpretação.
IV — Em conclusão:
1) o art. 5.° respeita, quer à interpretação, quer à aplicação da lei;
2) no respeitante à interpretação, consagra o elemento teleológico e
uma directriz de cúpula, mediante a referência ao bem comum;
3) embora mencione especificamente o juiz, o art. 5.° aplica-se igual
mente à interpretação e aplicação extra-judiciais.
d) Para fazer ressaltar esta distinção, op õ e G eny, M éthode, I, 305 e II, 120-121,
à ratio legis — considerações morais, políticas, sociais c econôm icas — a ratio iuris, que é
a síntese destas e traduz uma concepção puramente jurídica. M as é desaconselhável
utilizar neste sentido a expressão ratio legis.
367
III — Supomos que este problema deve ter solução diferente em Por
tugal e no Brasil.
Em Portugal, há um importante precedente: sob a epígrafe «restrição»,
a interpretação restritiva constava do art. 9.° do Anteprojecto de Manuel
de Andrade sobre Fontes do D ireito: «É consentido restringir o preceito
da lei quando, para casos especiais, ele levaria a conseqüências graves e
imprevistas que certamente o legislador não teria querido sancionar» (1).
Mas esse texto foi eliminado e não tem correspondente no Código Civil
português (2).
Sendo assim, a interpretação correctiva é inadmissível na ordem ju rí
dica portuguesa. Porque, ou o trecho do Anteprojecto referia um fenômeno
que cabe dentro da interpretação restritiva ou, se levasse a afastar o verda-
deiro*sentido da lei, estaria em contradição com o art. 8.°/2 e com a estrutura
geral da ordem jurídica portuguesa, que assenta numa prioridade do dado
normativo sobre os juízos de razoabilidade do intérprete. Por mais dese
jável que se apresente uma alteração do sistema normativo, essa alteração
pertence às fontes do direito, não ao intérprete. Este capta o sentido da
fonte como ele objectivamente se apresenta no momento actual, não lhe
antepõe qualquer outro sentido. Razões extremamente ponderosas de
segurança e de defesa contra o arbítrio alicerçam esta conclusão.
(1) Cfr. tn n eccem s-N ip p erd ey , § 54, que fala em interpretação modificativa do
direito ou restrição; R ecasens Siches, ínierpretación, baseandô-se no carácter circunstancial
da regra jurídica, que responde a certas situações concretas, e não a outras; e A lípio Sil
veira, Herm enêutica, I, n .u 5, que fala em «Interpretação m odificativa», mas cujos exem plos
são m ais de interpretação restritiva.
370
(1) Para análogo problema no D ireito R om ano cfr. Raul Ventura, D ireito Romano,
n .° 4 4 .
(2) Assim Miguel G alvão Teles, Eficácia, n.° 8 e nota 49.
371
220. Requisitos
(1) Espínola, L ei de Introdução, págs. 294 e 295, adm ite ainda a interpretação
ab-rogante em caso de contradição de uma regra com um princípio de direito, no que nos
parece ir longe demais. N o limite, significaria a elim inação da regra excepcional, em
sentido substancial (infra, n .os 225 e 221.
372
III — Note-se: nem sempre este esquema pode ser utilizado, pois nem
sempre encontramos uma escala de significados de amplitude crescente.
Se encontramos a palavra interpelação, e concluímos que se trata da inti
mação feita pelo credor ao devedor para que pague, e não da pergunta diri
gida ao Governo por um membro de um a Câmara legislativa, fazemos inter
pretação declarativa, pois o sentido que ao preceito atribuímos cabe dentro
das palavras utilizadas pelo legislador; mas não há nenhuma escala que
permita catalogar esta interpretação de lata ou restrita.
374
(1) C om o dissem os, o próprio art. 9.°/1 do C ódigo C ivil português funda positi
vam ente esta indispensável operação, ao opor à letra o pensam ento legislativo e preferir
este últim o: consagra-se assim , quer a interpretação extensiva,, quer a interpretação res-
•tritiva.
CAPÍTULO 3
í
i
Interpretação enunciativa
III — Assim, diz-se que a lei que proíbe o menos proíbe o mais (argu
mento a minori ad maius)'. Se uma lei sobre actividade cambiária proíbe
essa actividade aos estrangeiros, podemos inferir que também o comércio
bancário lhes é vedado: esta proibição também está logicamente contida
na primeira. O intérprete limita-se aqui a desvelar uma nova regra que
necessariamente deriva da anterior.
Pelo contrário, a regra que permite o mais, permite o menos (argumento
a maiori ad minus). Quem está autorizado a entrar em competições des
portivas pode também treinar; quem pode caçar pode apoderar-se das peças
abatidas; e assim por diante. Salvo disposição excepcional em contrário,
o intérprete pode concluir por estas novas regras, tom ando como ponto
de partida a regra que a interpretação revelou.
(1) Sobre o valor interpretativo da lógica jurídica cfr. Villar Palasi, Derecho A dm i
nistrativo, 575 e segs. e a apreciação constante de Études de logique juridique (sob a direcção
de Charles Perelman), 124 e segs. Cfr. também Klug, Juristische Logik.
(2) Supra, n.° 127.
379
(1) É o ca sa do art. 52/2 do estatuto aprovado pelo D ecreto-L ei português n.° 49368,
de 10 de N ovem bro de 1969, que estabelece que as disposições desse estatuto que consti-
tuarn direito excepcional só podem ser revogadas por disposição expressa, com menção
precisa das disposições afectadas.
380
(1) A Filosofia do D ireito actual tem -se interessado com a análise da valia lógica
d<3 argum ento a cóntrariq, chegando a conclusões, ou negativas, ou m u ito restritivas, c fr .
por exem plo- K lug, Juristische Logik.
382
228. Conclusão
(1) Caiani, Analogia, n.° 16. N o m esm o sentido Betti, Interpretazibne, §§ 23 e 24.
Contra a identificação de direito excepcional e ius singulare, Carlos M axim iliano, H er
menêutica, n.° 274.
A integração das lacunas
I — Não basta dizer que lacuna é o caso não previsto pelo direito, ou
não regulado normativamente. Porque a maior parte das situações da vida
não são previstas nem reguladas pelo direito. Debalde procuraremos nas
leis regras sobre passos de dança, ou lançamento de satélites espaciais, ou
preparação para o casamento. Nem o direito adianta nada se alguém se
queixa de que o vizinho não o cum prim enta quando se cruza com ele na rua.
E apesar disso, não dizemos então que há uma lacuna. Se fosse soli
citado para resolver casos dessa ordem o tribunal limitar-se-ia a declarar
que a hipótese está extra muros da ordem jurídica. Se quisermos, consi
derando que toda a actuação que não tem relevância jurídica específica é
genericamente tomada como lícita, diremos que defrontamos aqui actuações
que não são im postas nem relevantes, são meramente lícitas.
(1) N o mesmo sentido vai o art. 126 do C ódigo de Processo Civil brasileiro.
(2) Doutrina de longe dominante entre os autores que se ocupam do problem a.
Cfr. por exem plo Eduardo Espínola e Eduardo Espínola F ilho, L ei de Introdução, págs. 8 a 10.
387
(1) Sobre os problemas que nesta fase se suscitam é fundamental o estudo de Canaris,
D ie Feststellung von Lücken im Gesetz.
389
II — Lacunas ocultas.
Até por vezes, a função da interpretação é mais delicada. Há regras
aparentemente genéricas, que parecem cobrir todo um sector mas, através
da interpretação restritiva, verifica-se que não foi explicitada uma excepção
ou restrição que deveria existir de harmonia com o próprio sentido da lei.
Temos de concluir que aquele caso não está abrangido pela regra.
Ao menos na generalidade das hipóteses, isto significará que o caso é lacunoso.
A interpretação restritiva conduziu aqui à descoberta duma lacuna (1).
Assim aconteceria por exemplo se a lei determinasse, em regra aparentemente
genérica, a forma de celebração do casamento, e se viesse depois a apurar
que não era aplicável aos casamentos in articulo mor tis: haveria lacuna quanto
à forma de celebração destes. Fala a doutrina nestes casos em lacunas
escondidas, ou ocultas.
III — Mas por outro lado a integração não se confunde com a inter
pretação, em sentido restrito. Está em causa sobretudo a interpretação
extensiva. Já dissemos uma palavra neste sentido, mas convém reexaminar
globalmente o problema.
(1) Supra, n.° 226, onde concluím os pela im possibilidade de utilização do argu-
rnento a contrario.
(2) Interpretaiione delia legge.
w
391
III — Mas mesmo no plano das construções jurídicas nos parece mais
correcta a distinção entre interpretação extensiva e analogia, apesar das
dificuldades de aplicação que dissemos já que se suscitam quando em con
creto desejamos saber se estamos perante uma ou outra situação. O cri
tério é em si seguro: num caso estamos ainda a extrair a regra, implícita
num texto imperfeito; no outro nada encontramos implícito, porque há
uma lacuna. E pensamos que os autores que negam esta orientação se
encerram no seguinte dilema:
— ou reduzem a lei à letra, e por isso têm de considerar lacunoso tudo
. o que a letra já não abrange;
(1) Sobre esta matéria, e sobre outros processos que com este se podem relacionar,
com o a restrição ou a interpretação correctiva, cfr. a nossa Tipicidade, n.° 88.
(2) Art. 9 .°/l do C ódigo Civil português, por exem plo. M esm o quando a lei com anda
a interpretação literal, com o no referido art. 111 do C ódigo Tributário N acional (brasi
leiro), o que na realidade estabelece é a exclusão da interpretação extensiva.
(3) Carnelutti, Teoria generale dei diritto, n.os 39 e 40, e no seu seguim ento D ias
M arques, Introdução, n.° 77, falam em hetero-integração e auto-integração. R ejeitam os
estas expressões porque estão com prom etidas por uma polem ica que não é essencial a este
f o m e n t o de análise.
393
bem diversa: dá-se uma alteração da normal hierarquia das fontes do direito (1),
permitindo-se que um diploma de grau inferior vá, para este efeito, partilhar
do campo do diploma de nível mais elevado, uma vez que se lhe permite
regular genericamente matérias omissas naquele primeiro diploma (2).
235. A equidade
(1) Sem a qual seria vedado ao diplom a dc grau hierárquico inferior integrar o de
grau superior. A ssim , o regulamento não pode suprii as lacunas da lei, mas apenas esp e
cificá-la se a matéria não for reservada à lei: cfr. Them istocles Brandão C avalcanti, Teoria,
Págs. 146-147.
(2) C om o é natural, o facto de afirmarmos que não se trata verdadeiramente de
um processo de integração de lacunas não im pede que por outro lado se critique a sua
oportunidade.
395
(1) É curioso observar a este propósito que no art. 8.° da C onsolidação das Leis
d o Trabalho se manda, na falta dc disposições legais ou contratuais recorrer, além de
outras figuras, à «equidade e outros princípios e norfrias gerais’do direito». A equidade é
assim qualificada com o princípio geral do direito. O preceito é tod o ele tecnicam ente
m uito im perfeito, confunde a-determ inação das fontes e a integração das lacunas, e suscita
as maiores dificuldades de aplicação.
(2) Questão-de-facto — Q ueslão-de-D ireito, pág. 317.
396
(1) À equidade mandam todavia recorrer, nos ramos respectivos, o referido art. 8.°
da C onsolidação das Leis do Trabalho e o art. 108 do C ódigo Tributário N acional (brasileiro).
397
III — Esta é a posição legal. Mas a posição legal não está imune da
crítica que em geral desferimos às afirmações legais sobre relação entre lei
e costume. Assentam elas no pressuposto de uma superioridade da lei que
está longe de podermos ter por assente. O fenômeno do desuso já nòs
(1) Cfr. A lípio Silveira, Analogia, pág. 240. O art. 108 do C ódigo Tributário N a c io
nal brasileiro, atrás referido, impõe expressam ente a utilização hierárquica dos critérios
que consagra.
398
237. A analogia
III — A integração duma lacuna pode fazer-se por analogia com qual
quer regra actual. Essa regra tanto pode ser legal, como consuetudinária,
como jurisprudencial: toda a regra do ordenamento jurídico é utilizável (2).
(1) C oncorre tam bém neste sentido o art. 5." da Lei de Introdução a o C ódigo Civil
brasileiro. ' >
(2) Um acórdão do Suprem o Tribunal de Justiça de Portugal excluiu a aplicação
por analogia de um assento (acórdão de 18 de Abril de 1969, Boi. Min. Just. n.° 186/190)
mas erroneamente. Veja-se a anotação desfavorável de Vaz Serra, na Rev. Leg. Jur.,
103/360.
400
I — Regras excepcionais.
Assentámos atrás (1) na existência de regras substancialmente excepcio
nais, correspondentes ao ius singulare romano. Estas regras é que não
poderão ser aplicadas analogicamente.
O método da determinação substancial é o que nos parece conforme com
o estado das fontes no Brasil e em Portugal.
No Brasil, o art. 6.° da primitiva Lei de Introdução rezava: «A lei que
abre excepção a regras gerais, ou restringe direitos, só abrange os casos que
especifica». Essa disposição foi suprimida, e com isso a maioria dos autores
deixou simplesmente de referir a categoria do direito excepcional. Os que
o fazem, limitam-se à afirmação de que o mesmo princípio continua em
vigor (2). A supressão teria pois resultado da preocupação de excluir da
lei a®ras gerais sobre interpretação, consideradas ao tempo, como sabemos,
mais próprias de obras científicas.
É diferente a situação legislativa portuguesa. Perante preceito da lei
antiga, de várias maneiras se tentou delimitar um círculo mais restrito dentro
do qual a regra excepcional pudesse ser analogicamente aplicável (3). Ins
pirando-se nessas tentativas, o art. 11 do Projecto de Código Civil ainda
determinava que as normas excepcionais «não com portam aplicação analó
gica se as normas gerais correlativas contiverem princípios essenciais de ordem
pública». Esta restrição foi todavia suprimida do texto definitivo (4), pelo
que o problema ficou confiado à doutrina.
Isto significa que, quer no Brasil quer em Portugal, temos o campo
aberto para excluir da aplicação analógica as regras que contrariam prin
cípios fundamentais, informadores da ordem jurídica ou de um ram o do
direito em particular.
(J) Cfr. as C onstituições Poiíticas brasileira (art. i53/§ 16) e portuguesa (art. 29/1,
embora com a restrição constante do n.° 2).
(2) Cfr. Carlos M axim iliano, Herm enêutica, n .os 275 e segs.
(3) Art. 150/§ 2.° da C onstituição brasileira.
(4) Em sentido diverso A lípio Silveira, Herm enêutica, 1.° vol., págs. 231 a 241.
(5) Cfr. o capítulo introdutório da nossa A Tipicidade.
(6) Recorde-se a análise quase exaustiva de Engisch, em D ie ldee der K onkretisierung
in Recht und Rechtswissenschafl unserer Z e it, Heidelberga, 1953.
402
(1) T ivem os de examinar vários problem as ligados a enum erações e, mais vasta
m ente, a tipologias Jegais, no capítulo inicial do n o sso livro A Tipicidade. Ver ainda
Carlos M axim ilianó, H erm enêutica, n.° 283.
(2) Cfr. a nossa A Integração da s Lacunas da L ei e o N ovo Código Civil.
(3) N este sentido, por exem plo, Caio M ário dà Silva Pereira, Instituições de D ireito
Civil, vol. I.
404
III — Não nos parece que estas imaginárias objecções fossem de acolher.
Em primeiro lugar, deve-se acentuar que a diferença entre a analogia
da lei e de direito é uma diferença de grau. Não há nenhum a linha estanque
entre a utilização directa duma solução e o recurso a um princípio. Em
certo sentido, pode afirmar-se que todo o recurso a uma solução impõe a
aceitação do princípio que unifica o caso omisso e o caso regulado.
A medida que a imagem de uma disposição directamente aplicável se
vai esbatendo, o papel do princípio torna-se mais nítido; mas isso só significa
que a essência das duas modalidades é idêntica, e a distinção é de grau. Não
há motivo para admitir uma e repudiar a outra.
Ora os princípios, assim entendidos, merecem-nos o mesmo respeito
que toda a restante ordem normativa. As críticas modernas fazem afastar
certos processos de elaboração de princípios mas não afastam os princípios
em si, de que todos os autores se continuam a reclamar. Tende-se a ter
um a visão mais ampla e menos legalista da ordem jurídica sobre que assen
tariam esses princípios, o que só pode suscitar o nosso aplauso; mas não
se ultrapassa, supomos, a necessidade de princípios substanciais que expri-
mam a ordem jurídica e cuja aplicação permite a solução de casos omissos.
A estas conclusões não traz obstáculo o trecho do art. 10/3 do Código
(1) Assim , Óscar Tenório, Comentário à Lei de Introdução ao Código C ivil Brasileiro,
n.os 181 a 183, diz que a distinção, se bem que lhe pareça dever ser consagrada, não tem
valor perante o direito brasileiro, que se limita a falar no recurso à analogia. Mas o argu
m ento é insuficiente, pois com grande frequência o intérprete tem de recorrer a subdivisões
doutrinárias para esclarecimento de dispositivos legais.
405
Civil português, pois a sua referência à norma não significa uma estatuição
concreta, mas uma disposição assente na lei.
Quanto à correlação entre a analogia juris e os princípios gerais de direito
previstos na lei brasileira será seguidamente objecto de um exame atento.
(1) Sobre esta matéria cfr. Óscar T enório, Lei cie Introdução, sub art. 4.°; L im ongi
França, Princípios Gerais de D ireito; -Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho, A L ei
de Introdução, n .os 56 e seguintes.
406
Elas não se confundem com a analogia ju ris, pois então a previsão seria
ociosa. Se a diferença entre analogia legis e analogia ju ris é gradual, como
defendemos, a duplicação de categorias seria inútil, pois bastaria falar sim
plesmente em analogia.
muito interesse de iure condendo, mas não é o que está estabelecido no texto
em vigor.
Serão então os princípios do direito romano, ou os princípios actual-
mente vigentes no sistema jurídico ocidental? Esta posição faria lembrar
a técnica do antigo direito português, com o seu recurso ao direito romano
ou ao direito das nações civilizadas como direito subsidiário.
E evidente o interesse do Direito Romano, ou do Direito Com parado
(que, aliás, teria sempre de se limitar ao nosso sistema jurídico), como inspi
radores na busca de soluções, dadas as evidentes afinidades. Mas não
vemos como fundamentar um recurso a estas ordens jurídicas alheias para
integrar a ordem jurídica brasileira. Nada nos permite esta ultrapassagem,
que valeria aliás como um cheque em branco dirigido a orientações que a
ordêm jurídica brasileira pode ter repudiado conscientemente.
A ordem jurídica brasileira trabalha com os seus próprios instrumentos.
Os processos de integração que prevê são verdadeiramente intra-sistemáticos,
próprios do sistema jurídico brasileiro. Ela basta-se a si mesma, como
todos os sistemas jurídicos modernos.
il) Têm em parte interesse os num erosos brocardos recolhidos por Carlos Maxi-
m iliano, Hermenêutica, 292 e seguintes.
(2) A Integração das Lacunas da L ei e o Novo Código Civil.
(3) Cfr. a obra fundamental de Esser, Grundsatz und N orm in der richterlichen Fort-
bildung des Privatrechts.
(4) W egweiser zu richterlicher Rechtsschocpfung, pág. 301. Cfr. também Jeaneau,
La nature des príncipes généraux du droit en droit français, pág. 203.
410
V — Temos pois, não uma doutrina eclética, que nos parece deslocada,
no entendimento dos princípios gerais do direito, mas uma doutrina suficien
temente maleável e compreensiva para abranger todas as hipóteses. Os prin-
cípios gerais do direito não são regras, são princípios formais, que se des
prendem, não apenas da ôrdem legislada, mas de toda a ordem jurídica.
Caminhamos pois para um entendimento amplo, próprio da doutrina m oderna
mais significativa, como a de Esser, Engisch, Larenz e Betti. Tais princípios
fundam-se em última análise nos princípios do Direito Natural, fundamento
de toda a ordem jurídica. Este quadro é suficientemente compreensivo
para dar uma resposta a todas as lacunas susceptíveis de integração.
(1) Sobre todos estes problemas, cfr. a nossa Integração, em que desenvolvidamente
os abordám os. ,
(2) Ética a N icóm aco, Livro V, cap. X (ou cap. X IV ). O trecho traz todavia parti
culares dificuldades por vir englobado na análise da equidade. Cfr. Raul Ventura, M anual
de D ireito Romano, I. O autor considera paralelamente a integração e a chamada inter
pretação correctiva. D e todo o m odo, este processo generalizador (segundo a n orm a...)
n ã o se confunde com um processo individualizador. a equidade.
413
O art. 10/3 do Código Civil português faz-se eco desta orientação, ao reconhe
cer expressamente a possibilidade de persistência da lacuna «na falta de
caso análogo». Reconhece-se que não há plenitude hermética e o sistema
não contém todas as soluções.
Não nos vale a pena discutir a afirmação de que se não pode falar verda
deiramente de lacuna quando a omissão é suprível por processos analógicos.
Basta-nos observar que o recurso aos princípios gerais do direito, no direito
brasileiro, ou à norma que o próprio intérprete criaria, no direito português,
pressupõe a existência de uma verdadeira lacuna. A regra que se elaborará,
para permitir a resolução do caso, não se pode dizer implícita no sistema,
pois a descoberta de um conteúdo substancial a partir de critérios formais
representa sempre, necessariamente, uma criação. Criação conforme ao
sistetna, criação em objectividade, sem dúvida; mas criação. Logo, não
se pode dizer que a regra estava implícita. Ela não existia, pura e simples
mente, e portanto não há plenitude do ordenamento jurídico.
III — Note-se que nem sequer se pode dizer que a plenitude do orde
nam ento se verifica como efeito da integração. A integração não altera
a situação normativa existente; após a integração, continua a haver lacuna.
Ela permitirá resolver um caso concreto pela determinação da regra apli
cável, mas essa regra conforme ao sistema é apenas suposta e não é efectiva-
mente aditada ao conjunto. Por isso, se surgir posteriormente um novo
caso daquela índole reabre-se o problema, e voltarão a funcionar os pro
cessos de integração.
Quer dizer, à luz da ordem jurídica portuguesa estes processos são gene
ralizadores, mas não são geradores de regras. A integração não é uma
fonte do direito.
Enfim, anotemos que bem pode acontecer que nem todas as lacunas
sejam susceptíveis de integração. Se por exemplo há uma lei que remete
para certo meio técnico, órgão ou processo que não existe na ordem jurídica,
essa lacuna não pode ser suprida. Supomos que aqui se enquadra o que
alguns chamaram o obstáculo técnico insuperável. Se por exemplo uma
lei sujeita a hipoteca as concessões do domínio público, mas a lei do registo
imobiliário não está aparelhada para englobar esta categoria de bens, temos
uma lacuna que não pode ser integrada, porque sem registo não haverá hipoteca.
São da mesma ordem certos problemas suscitados pela aplicação de
lei estrangeira, competente por força da regra de Direito Internacional Pri
vado, quando os meios técnicos deste ramo do direito não permitem afastar
a divergência dos quadros duma e doutra ordem jurídica.
permitam a resolução de todos osj casos que se defrontem (1). Nessa altura
não se trata de uma plenitude normativa da ordem jurídica, não se afirma
já que a ordem jurídica contém regras capazes de resolver todas as situa
ções. Por isso, á^uela concepção' de plenitude não tem que nos ocupar neste
momento.
245. A objectividade
(1) Veja-se o equacionam ento do problema por Luigi Caiani, Analogia, na Enci
clopédia dei d iritto, II (1958), n.° 3. Pelo contrário, parece-nos pobre a fórm ula de Carlos
C ossio: «não há lacunas do direito porque há juizes»: Las lacunas dei derecho, pág. 219.
(2) M esm o quando o tribunal superior é cham ado a rever uma decisão pronunciada
no exercício da equidade, não há uma revisão discricionária de uma decisão discricionária.
O tribunal julga por equidade à luz de um critério .objectivo — a Justiça, qu e ilumina o
circunstancialism o do caso concreto. N ã o há regra, mas há um critério reconhecível e
uma aplicação objectivam ente controlável pelo tribunal superior. N a discricionaridade,
pelo contrário, há outorga a um órgão do poder de decidir segundo considerações de opor
tunidade, inclusivam ente políticas, que o órgão jurisdicional nem tem de conhecer nem
está em condições de controlar.
416
■t
CAPÍTULO 5
Sucessão de leis:
âmbito da lei nova e da lei antiga
246. O problema