Você está na página 1de 114

JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO

O DIREITO
INTRODUÇÃO E TEORIA GERAL

Um a P e r sp e c tiv a L u so -B ra sileira

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN LISBOA


TÍTULO

A Regra Jurídic a
CAPÍTULO ! 1

Caracterização

108. A regra como critério

I — Estudando anteriormente a ordem jurídica, dissemos que esta,


em todo o caso, se exprime por regras. Ocorre agora estudar especifica­
mente a regra jurídica. E aqui, algumas reflexões de base vão-nos levar a
afastar das ideias correntes.
Toda a regra é necessariamente um critério: com esse critério podemos
ordenar e apreciar os fenômenos. Como toda a regra, a regra jurídica
pode ser considerada um critério de apreciação.
Mas esse critério pode ser ainda:
— de conduta
— de decisão

A regra jurídica será regra de conduta se der o critério por que se pau­
tarão condutas humanas; será regra de decisão se der o critério pelo qual
o intérprete resolve os casos a que se aplica.
A regra jurídica è sempre um critério de decisão. M ediante ela o intér­
prete chegará sempre a soluções jurídicas dos casos.
A regra jurídica é normalmente um critério de conduta, mas não o é sempre.
Se bem que a maior parte das regras tenha função orientadora das condutas
182

humanas, regras há em que esse escopo está completamente ausente. Estão


nesse caso:
— as regras que produzem efeitos jurídicos automáticos
— as regras retroactivas
— as regras sobre regras, como a lei que revoga, suspende ou reactiva
outra lei.

Sendo assim, é errado falar das regras jurídicas como «normas de conduta»
pois assim se omitiriam sectores muito importantes dentro destas regras (1).

II — A regra jurídica é portanto um critério para a decisão de casos


concretos: de facto, essa decisão só é possível se o intérprete possui um cri-
$
tério de decisão. Mas nem todo o critério de decisão de um caso é uma
regra jurídica.
Os critérios de decisão podem ser:
— materiais
— formais

Critérios materiais de solução são os critérios normativos. Mas há


também critérios formais, como a equidade. Nesta hipótese, como veremos,
em vez de se trazer um paradigma dos casos e sua solução, dá-se uma orien­
tação que permita, através de meras valorações, alcançar em concreto uma
solução.
A regra jurídica pode pois ser caracterizada como um critério material
de decisão de casos concretos.

109. Estrutura

I — Para apreendermos o significado da regra jurídica devemos pro­


ceder a uma análise estrutural. Toda a regra jurídica se pode decompor
em dois elementos (2). Estes designam-se por vezes antecedente e conse­
qüente, mas as designações são inexpressivas, pois, se indicam uma con­
jugação dos dois elementos, nada adiantam quanto ao seu significado intrín­
seco. Mais substancial é distinguir uma previsão e uma estatuição.
Em toda a regra jurídica se prevê um acontecimento ou estado de coisas,
e se estatuem conseqüências jurídicas para o caso de a previsão se verificar

(1) Sobre a concepção de Binding, que distinguia norm a e regra, e sobre num erosas
outras concepções da norma jurídica, cfr. Kaufm ann, Teoria da N orm a Jurídica, 25 e 59 e segs.
(2) Sobre a análise lógica da regra jurídica, cfr. Lourival V ilanova, Lógica Jurídica,
86 e segs.
183

historicamente. À previsão de cada regra se cham a a fa cti species, no seu


sentido de figura ou modelo dum «facto»; a estatuição é oefeito jurídico
(por ex. a obrigação de indemnizar) que a norm a associa à verificação da
facti species (por ex. a danificação de coisa alheia) (1).

II — Vamos deixar de lado os efeitos jurídicos, que terão de ser consi­


derados em lugares futuros da nossa exposição. Diremos agora algumas
palavras sobre a fa c ti species.
A designação que usamos não é em geral utilizada entre nós.
1) Falam alguns em «tipo legal» mas a expressão é equívoca, pois
traz confusão com a teoria do tipo, como processo de concretização, de que
falámos atrás; há também tipos de efeitos jurídicos, por exemplo, o que bas­
taria para se banir a designação.

2) A expressão «hipótese normativa» não seria incorrecta, mas é de


difícil aceitação.

3) Recorrem outros a expressões estrangeiras consagradas: seja o


alemão Tatbestand, seja o italiano fattispecie.

Chegados a este ponto, parece-nos inteiramente preferível o latim medieval


fa cti species.

III — À fa cti species estará sempre associado um carácter dinâmico?


Ou ela consistirá antes numa situação, portanto em algo de estático?
Como os elementos propriamente dinâmicos são os factos, distinguem
alguns dentro da facti species a situação inicial e o facto, cujo sobrevir pro­
vocaria a aplicação da norma. Mas assim complica-se inutilmente a análise,
pois em certos casos não é fácil a distinção destes dois elementos. A Cons­
tituição de Caracala atribuiu a cidadania rom ana (efeito jurídico) aos provin­
ciais, sem que nenhum a mutação fosse necessária para a sua aplicação.
A previsão normativa ficou aqui inteiramente preenchida pela situação
preexistente. D outras vezes o elemento dinâmico é muito visível e é pelo
contrário a situação preexistente que é dificilmente detectável (2).
Parece-nos por isso não devermos admitir distinções demasiado rigo­
rosas. Basta que digamos que a fa c ti species pode incluir situações ou factos,

(1) Mas os textos jurídicos podem adoptar a ordem inversa. A ssim , o art. 88 do
C ód. Proc. Civil brasileiro dispõe qUe « é com petente a autoridade judiciária brasiSeira
q u an d o ...» . A descrição dos casos constitui a previsão, e a estatuição é a competência da
autoridade judiciária brasileira.
(2) Por exem plo, o art. 130 do C ódigo Civil brasileiro dispõe que não vale o acto,
que deixar de revestir a forma determinada em lei. Só o a c to , elem ento dinâm ico, é previsto.
i3
184

cumulativa ou disjuntivamente: quer uns quer outros podem pertencer à


previsão normativa.

IV — Enfim, quando se fala em fa c ti species, e se esclarece que esta


consiste em factos e/ou situações, isso significa que a fa cti species consiste
em realidades de facto, por oposição a realidades normativas? A previsão
será de acontecimentos ou situações naturais, ainda não juridicamente valo­
rados?
Temos de estar desde o início prevenidos contra a ambigüidade da
palavra facto. Normalmente, quando em direito se fala em fa c to , isso não
quer dizer que se trate de uma realidade fáctica, naturalística. Tal não
se verifica aqui também.
A fa c ti species que preenche a previsão normativa pode reportar-se já
a situações valoradas por outras regras, que daquela são pressuposto; mas
pode também ter por pressuposto realidades meramente fácticas, como o
nascimento ou a morte. A regra que estabelece as conseqüências do não
pagamento de uma dívida tem como situação preexistente uma situação
jurídica, a obrigação de alguém pagar uma dívida. É o que se passa na nor­
malidade dos casos: a facti species pressupõe já uma situação juridicamente
valorada, a que se ligam ulteriores efeitos jurídicos, para o caso de sobrevir
determinado facto jurídico.

110. Hipoteticidade

I — De todo o modo é sempre incorrecto dizer-se que há efeitos jurídicos


«legais» ou que derivam directamente duma norma. Tudo o que assenta
numa regra, deriva directamente da verificação histórica duma situação ou
acontecimento que corresponda à- previsão normativa. N enhum a regra
jurídica se aplica por si (1): a regra que estabelecer que todos os que atra­
vessam a fronteira têm de fazer declarações para efeitos fiscais só se aplica
se houver passagem de fronteira, e se ninguém a passasse não se aplicaria
de todo. Quando se diz que um efeito «deriva directamente da lei» ou da
regra, o que se quer significar é que esse efeito não é condicionado por um
facto voluntário, mas então é condicionado por factos ou situações de ordem
diversa. Veremos depois quais as modalidades com que devemos contar.

II Quer isto dizer que as várias regras que exprimem a ordem ju rí­
dica podem também, em determinado sentido, considerar-se hipotéticas

(1) Salvas justam ente as normas sc'jre norm as, com o a que suspende ou revoga
norm a interior.
185

— mas num sentido totalmente diferente do que nos ocupou quando excluí­
mos que das ordens normativas derivassem imperativos hipotéticos (1).
São hipotéticas porque, pairando sobre a vida social, só se aplicam
quando se produz um facto que corresponda à sua própria previsão. Publi­
cada uma lei que pune o lenocínio (provocação ou favorecimento da corrupção
de outrem), ela não se aplica autom aticam ente — só se aplica quando um
lenocínio for efectivamente praticado. E como o pressuposto da aplicação
das regras é com frequência um acto humano (por exemplo, eu só sou atin­
gido pelas obrigações que atingem o vendedor se efectivamente vender algo)
isso significa que a aplicação de uma regra, que está sempre dependente da
verificação de certos pressupostos, pode conter entre esses pressupostos
um acto de vontade. Mas um a vez realizados esses pressupostos, aplicada
a regra, a imperatividade revela-se plenamente, para nada interessando já
a vontade do sujeito de estar ou não vinculado. As regras são pois de apli­
cação condicionada, mas imperativas quando efectivamente se verifiquem
os seus pressupostos.

111. Comando e imperativo impessoal

I — Para a visão corrente do direito, as regras jurídicas são imperativos.


A visão imperativística do direito, muito antiga já, recebeu formulação
coerente na obra do jurista alemão Thon.
Neste sentido a regra jurídica participa, para a maioria dos autores,
da natureza do comando. Há até quem apresente o comando como a noção
mais geral, vindo as regras a integrar-se em determinado passo da classifi­
cação dos comandos (2).
Tocámos já ligeiramente este ponto (supra, n.° 16), ao falar da impera­
tividade, como característica da ordem jurídica, tendo mantido o tema inde­
pendente da análise da essência da regra jurídica. Mas avançámos já que
nem toda a regra pode ser reduzida a um imperativo.

II — Como é natural, não nos movem as mesmas preocupações que


movem aqueles que reduzem as regras jurídicas a normas condicionais, ou
imperativos hipotéticos. Mas supomos que há antes de mais na teoria
imperativística, como ela é norm alm ente acolhida, um antropomorfismo
que é extremamente prejudicial, nomeadamente quando se diz que a norma
é um comando do legislador. N a realidade, o direito é uma ordem objectiva

(1) Supra, n.° 16.


(2) Cfr. por exem plo D ias M arques, Introdução. n.os 20 e segs.
186

da sociedade, em grande parte independente de actuação voluntária. Mesmo


a regra legal é um dado objectivo, em que a entidade legislador é uma espécie
de abstracção, e que de todo o modo se apaga após o processo da feitura
da lei.
Com este ponto se relaciona o problema dos destinatários da regra
jurídica. Se a regra fosse um comando ou ordem os destinatários teriam
sempre de existir; mas muitas vezes não se encontra ninguém nesta
situação.
Por isso Jhering sustentou que os destinatários seriam os entes públicos
encarregados de aplicar o direito. Isto representa um desconhecimento da
vida real da comunidade, pois o direito é a própria ordem da sociedade,
e assfrn seria concebida como mero reflexo das ligações entre os entes públicos.
A regra jurídica é um juízo, que entra por força dum facto criador para
o universo das significações objectivas da sociedade, e não uma ordem a
um subordinado. Com Santi Romano (1) diremos que é alheia à noção de
destinatário.

III — Por isso, de várias partes tem sido tentada um a revisão, e há


quem diga que as regras jurídicas não são imperativos mas juízos de valor;
outros sustentam que as regras jurídicas são determinações (2).
Recentemente, o tema recebeu contributos importantes. Mediante
uma revisão, chega-se a posições em que, mantendo-se em bora a qualificação
como imperativo, a assimilação ao comando é já abandonada. Assim,
Olivecrona caracteriza a regra jurídica como um imperativo impessoal ou
independente (3) e Bobbio qualifica-a como uma proposição preceptiva,
fundando-se numa larga análise lógica (4).
Como é evidente, o problema não é de palavras. Uma vez revista
neste sentido a noção de imperativo não teríamos nenhum obstáculo em
acolhê-la. Acentuaríamos uma vez mais que o imperativo não se reduz
a um comando ou a uma ordem, e traduz unicamente a exigência de efectivação
que dá o sentido objectivo da regra.

(1) N orm e giuridiche (dcstinatari delle), em F rammenti d i un dizionario giuridico,


135 e segs.
(2) A fórmula de Reinach — ainda que não a totalidade da sua posição — tem
m uito de útil. D izendo que as normas são determ inações, traduz sim ultaneam ente este
sentido objectivo da norma e a forma com o se refracta nos m em bros do agregado social.
Cfr. L os fundamentos aprioristicos dei derecho civil, 166 e segs.
(3) Law as fa c t, em Interpretations o f m odem legal philosophies, E ssays in honor o f
Roscoe Pound, 546 e segs.
(4) Teoria delia norma giuridica, 123-176.
187

112. A regra jurídica não é um imperativo

I — Mesmo com esta correção, somos porém levados a rejeitar a quali­


ficação da regra jurídica como um imperativo.
A qualificação como imperativo só se adequaria às regras de conduta.
Não teria sentido para todas as outras categorias de regras que referimos
{supra, n.° 108) em que a regra jurídica é apenas um critério de decisão —
a não ser que nos contentássemos com a observação de que este critério de
valoração ou de decisão é imperativo. Isto seria verdadeiro, mas far-nos-ia
cair definitivamente fora do ponto em discussão.

II — Exemplos:
1) Regras meramente qualificativas.
Possivelmente, haverá que contar com uma categoria de regras que
podemos designar meramente qualificativas.
A ordem jurídica necessita de delimitar os elementos com que trabalha,
e sobre os quais estabelece as suas valorações. Assim, são elementos prévios
a essa valoração as pessoas, as coisas, as acções...
As regras respeitantes à personalidade jurídica ou à capacidade, as
regras que definem e classificam as coisas, as regras que caracterizam as acções
humanas, são verdadeiras normas jurídicas, e todavia destinam-se unica­
mente a qualificar, a dar precisão aos elementos de base, tornando-os capazes
de suportar as valorações ulteriores (ulteriores, num ponto de vista lógico).
O exame desta matéria é todavia dificultado pela objecção de que essas
regras não são autônomas (1), e antes fariam parte de regras preceptivas,
únicas que se deveriam tom ar em conta. N ão entraremos no exame deste
problema.
2) Regras que produzem automaticamente efeitos jurídicos.
Numerosas regras produzem efeitos no mundo do direito independen­
temente de qualquer tarefa humana de aplicação.
Assim as regras que estabelecem efeitos jurídicos automáticos, como
a perda de um lugar, de uma condecoração, da qualidade de sócio, etc.,
aplicam-se logo que se verifica o seu pressuposto fáctico e não parecem ser
adequadamente descritas como imperativos (2).

(1) Cfr. em Enneccerus, § 27/1, a enum eração de várias «proposições jurídicas incom ­
pletas».
(2) Englobam -se aqui portanto todas as regras que provocam uma alteração na
ordem jurídica por efeito da superveniência de um facto não voluntário.
188

3) Regras sobre regras


Mais radicalmente ainda, as regras sobre regras (1), como a norma revo-
gatória, que se limita a eliminar outra regra, nada têm que permita quali­
ficá-las como um imperativo (2). N ão encontramos aqui sequer a exigência
de efectivação, embora objectivãmente entendida, que nos dá o pressuposto
mínimo de legitimidade desta qualificação.

III — Mesmo no respeitante às regras de conduta, não suportam a


qualificação como imperativos as regras permissivas. Examinaremos esta
categoria no capítulo seguinte (n.° 118).
0 que dissemos basta para que não admitamos que toda a regra ju rí­
dica se cifre num imperativo, mesmo tendo em conta a revisão a que a teoria
imperativística foi modernamente sujeita.

113. Generalidade

1 — Procurando agora algumas características da regra jurídica tom ada


por si, logo nos surgem em primeiro plano a generalidade e a abstracção.
Frequentemente elas são referidas como sinônimos; noutros casos são utili­
zadas para exprimir realidades diversas. Vejamos se, e em que termos,
elas são de admitir.
O primeiro problema que temos de defrontar é o da alegada existência
de regras vinculando pessoas determinadas. Assim, se duas empresas esti­
pulam os termos em que se devam efectuar futuramente os fornecimentos,
os pagamentos, ou quaisquer outros aspectos juridicamente relevantes,
teríamos uma regra contratual. O contrato, designado justamente norm a­
tivo, seria fonte de regras entre aqueles sujeitos determinados que nele inter­
vém. Fazendo-se eco desta orientação, o art. 1100/V do Cód. Proc. Civil
brasileiro fala em «normas legais ou contratuais».
Parece-nos que esta equiparação é de rejeitar. Para designar as esti-
pulações firmadas pelas partes, mesmo que destinadas a pautar condutas
futuras, basta que falemos em preceito contratual. A regra ou norma ju rí­
dica, tal como nos interessa, é necessariamente típica — pressupõe um tipo
ou fa cti species, nos termos anteriormente referidos. Ora a fa c ti species
é heterónoma, não é fruto da autonom ia das vontades, o que afasta desde
logo as pretensas regras contratuais. Por outro lado, não se refere a pessoas
determinadas, e nisto consiste a generalidade.

(1) O Recht uber Recht de Zitelmann.


(2) Engisch, Introdução, 29-30, realiza uma tentativa de conciliação que nos não
parece convincente.
189

II — A generalidade contrapõe-se à individualidade. É geral o preceito


respeitante aos cidadãos, individual o respeitante ao cidadão X ; geral o
preceito sobre chefes de repartição, individual o preceito respeitante ao chefe
da l.a repartição de certa Direcção-Geral.
Mas só com este enunciado de hipóteses já começamos a defrontar difi­
culdades. São então individuais todos os preceitos respeitantes ao Presi­
dente da República constantes da Constituição Política? Teremos de concluir
que sempre que haja uma só entidade em dada situação o preceito a ela
respeitante é necessariamente individual?
Supomos que não, e que o que interessa para a generalidade é que a
lei fixe uma categoria, e não uma entidade individualizada. Se o preceito
refere a categoria Presidente da República a lei é geral; se refere a pessoa
determ inada que em certo momento é o seu suporte, é individual.

III — Impõe-se pois uma distinção entre generalidade e pluralidade.


Se se dispõe que três governadores são chamados à capital, há um a plura­
lidade de implicados, mas não temos um preceito geral. Por outro lado,
ficamos prevenidos contra a generalidade e pluralidade aparentes: se se deter­
mina que são dissolvidas, por irregularidades graves, as empresas conces­
sionárias de instalações nucleares, e há um a só nessas condições, o preceito
é individual, não obstante a roupagem genérica de que se reveste.
Mas não desaparecem com isto todas as dificuldades. Se se determinar
que todos os governadores são chamados à capital, temos um preceito geral
ou individual? Supomos que, nestes casos de fronteira, a distinção depende
só de se saber se se têm em vista as pessoas individualmente determinadas
que num momento dado preenchem aquela categoria, ou a categoria tom ada
por si, sejam quem forem as pessoas que a preencham.
Como estas dificuldades não parecem insuperáveis, assentamos que a
generalidade é característica essencial da regra jurídica, de acordo com a
orientação dominante (1).
Note-se porém que a qualificação pela generalidade não tem sentido
nas regras sobre regras, a não ser por mediatamente estas se referirem a regras
genéricas.

(1) E é esta tam bém a posição que a lei portuguesa reflecte em vários lugares. L ogo
o art. 1.» d o C ódigo Civil considera leis todas as disposições genéricas... T am bém o
art. 721/3 d o C ódigo de Processo Civil caracteriza co m o substantivas as disposições
gen éricas... Enfim , é ainda pela generalidade qu e a lei caracteriza portarias e outros
dip lom as que m anda publicar n o jornal oficial.
190

114. Abstracção

I — Mais difícil é apurar se a abstração é característica da regra jurídica.


Como dissemos, vários autores não distinguem generalidade e abstracção;
noutros casos fala-se de generalidade para englobar também a abstracção (1).
O abstracto contrapõe-se ao concreto. Mas o concreto é por sua vez
um conceito ambíguo, podendo distinguir-se nele uma pluralidade de sen­
tid o s— o real, o específico, o individual (2). Quando se fala da abstracção
como característica da regra jurídica quer-se normalmente dizer que os
factos e as situações previstas pela regra não hão-de estar já concretizados;
são factos ou situações que de futuro podem surgir ou não surgir. Assim,
se se ordena que todos entreguem as armas, que possuirem, nos postos de
polícia, temos generalidade mas não abstracção, pois a situação a que o
preceito se aplica está já concretizada; se se m andar que as armas que forem
adquiridas sejam apresentadas nos mesmos postos então já há abstracção,
pois a disposição está aparelhada para execução futura.

II — Poderia pensar-se que a abstracção seria imposta pela própria


natureza da facti species (3). Mas pensamos pelo contrário que atendendo
a esta, temos dois elementos definitivos para negar que a abstracção seja
característica da regra jurídica — o que nos dispensa de analisar os difíceis
problemas de fronteiras que, tal como para a generalidade, se levantam
para a abstracção.

1) A facti species abrange factos e/ou situações. Estas últimas não


são acontecimentos, são estados, que podem estar já plenamente realizados.
Neste caso é evidente que a regra jurídica não é caracterizada pela abstracção.
Assim, o preceito que retire a nacionalidade, imediatamente, a certa cate­
goria de pessoas, ou que ordene a mobilização de mancebos de certa idade,
só naquela ocasião, é normativo. Mais vastamente, todas as disposições
que produzam um efeito imediato ou um efeito de uma só vez são normativas,
desde que tenham generalidade (4).

(1) Cfr. M arcello Caetano, D ireito Constitucional, n.° 111; D ireito A dm inistrativo, ],
n .os 35, 37 e 180.
(2) Cfr. Engisch, Konkreúsierung.
(3) N este sentido D ias Marques, Introdução, n.os 20 e 21, para quem a própria ab s­
tracção da fa c ti species normativa levaria a que a aplicação da norm a fosse virtualm ente
plural, e até indefinida.
(4) Só poderíamos continuar a falar de abstracção com o característica da regra
jurídica se tivéssem os daquela um entendim ento diverso do corrente — se considerássem os
abstracta toda a regra que se nã° referisse a uma situação histórica dada, a uma situação
191

2) Há regras jurídicas retroactivas, como veremos a propósito da suces­


são de leis. A regra exclusivamente retroactiva, portanto a que se destine
somente a atingir um a situação passada não tem abstracção, por definição,
pois não está aparelhada para resolver casos futuros que se venham a p ro ­
duzir.
Podemos ficar por aqui, pois tudo o que dissemos está perfeitamente
assente nas nossas premissas. A regra, como critério de decisão de casos
concretos, funciona da mesma forma quer respeite a casos actualmcnte veri­
ficados, quer a casos a produzir de futuro.

115. Bilateralidade

I — Também se aponta como característica da norm a jurídica a bila­


teralidade. Seria próprio da regra jurídica relacionar entre si dois ou mais
sujeitos, criar relações entre eles, de m aneira que as posições duns seriam
a contrapartida das posições dos outros. Por isso nos surge o conceito de
relação jurídica, que para esta orientação seria a configuração universal de
tudo aquilo que é juridicamente valorado (1).
Não pensamos que isto seja verdade. Nem toda a regra jurídica importa
a relacionação de sujeitos dados. Basta recordar os exemplos que há pouco
apresentámos sobre as regras que não conteriam imperativos para concluir­
mos que o direito nem sempre actua através do estabelecimento de relações.
Mas se passarmos às regras preceptivas a nossa posição só sai fortalecida.
Consideremos os deveres penais. A regra penal impõe deveres aos
sujeitos, não porque pressuponha uma relação com sujeitos dados, mas
porque pretende pautar em geral a conduta de cada pessoa. Em certos
crimes não encontramos até uma vítima determ inada, como nos que punem
actos contra os animais ou o desrespeito pelos mortos. N ão há aí que falar
em relação jurídica.
Se em vez das posições passivas, os deveres, considerarmos agora as
posições activas, da mesma form a não encontram os sempre uma relação
entre pessoas determinadas. A propriedade, que é um caso flagrante, define-se
tendo apenas em vista um a pessoa e um a coisa. Falar de bilateralidade

individual. N essa altura, a abstracção estaria afinal contid a na generalidade, pois desde
que não houvesse a consideração das características do ca so concreto haveria abstracção
e generalidade.
Esta é a parte de verdade dos autores que falam em generalidade e abstracção sem
distinguir um a e outra.
(1) Sobre toda esta matéria, veja-se o que expusem os em A s Relações Jurídicas
Reais, n .os 5 e segs.
192

não tem aqui sentido, pois não há sujeitos passivos da propriedade, há apenas
estranhos.
Isto não impede, nomeadamente neste último caso, que toda a pessoa
tenha o dever genérico de não violar a propriedade alheia. Todavia, este
dever, como o nome indica, é genérico, de modo que não se estabelece uma
relação jurídica entre o proprietário e cada uma das outras pessoas. Há
quando muito uma ligação teleológica entre as propriedades que a ordem
jurídica reconhece e os deveres genéricos que por outro lado impõe, mas
esse nexo teleológico não se traduz em concretas relações jurídicas entre o
proprietário e cada uma das outras pessoas.

ií — No fundo, o que os autores pretendem quando falam de bilate-


ralidade ou correlatividade pode exprimir-se utilmente falando em socia­
bilidade ou alteridade da regra jurídica. A vai oração normativa da situação
de uma pessoa tem de ser uma valoração socialmente relevante, e impõe-se
ao respeito de todas as outras pessoas, como tudo o que é jurídico.
É neste sentido que nos parece im portante falar, como faz Miguel
Reale (1), em bilateralidade ou proporcionalidade atributiva. De facto,
a regra jurídica não se ocupa de posições individuais senão para demarcar
uma posição socialmente relevante de um sujeito. Por isso, as regras ju rí­
dicas, ao menos mediatamente, garantem superordenações e impõem subor­
dinações. Este elemento de atribuição de posições socialmente relevantes
fá-las distanciar das regras morais, e com porta um elemento útil para a deter­
minação do próprio conceito de direito. /

( l) Cfr. por último Lições, págs. 50-52.


CAPÍTULO 2

Classificação das Regras Jurídicas

116. Interesse deste capítulo

As regras jurídicas são multidão. O seu estudo deverá fazer-se pelo


respectivo conteúdo, a propósito dos vários ramos do direito.
Mas justamente o grande núm ero das regras jurídicas aconselha a que
antes disso façamos grandes divisões, segundo variados critérios, de maneira
a apreendermos quais os tipos ou categorias que depois iremos encontrar
no âinbito de cada ramo do direito.
Esse trabalho de classificação tem duas vantagens fundam entais:

1) Permite arrum ar melhor o objecto de análise, pois o grande número


de regras torna imprescindível operar divisões;

2) Permite progredir no conhecimento das regras através da carac­


terização das várias modalidades que se forem delineando.

Esta última é a maior vantagem, e é graças a ela que a tarefa de classi­


ficação não se reduz a uma operação formal. Será aliás a preocupação
de retirar alguma coisa de cada term o em análise que im porá a limitação
das classificações que iremos utilizar. Em abstracto, o núm ero de classi­
ficações é infindável; em concreto, devemos limitar-nos àquelas que nos
revelem termos que ofereçam a susceptibilidade de um aprofundam ento
adicional.
194

117. Regras principais e derivadas

Quando de uma regra preexistente se retira uma norma ulterior, pode


denominar-se a primeira principal e a segunda derivada.
Assim se passa quando há interpretação enunciativa, que estudaremos
mais tarde (1). Podemos por isso dispensarmo-nos de longas considerações
sobre esta classificação.
Por exemplo, podem obter-se, a partir de uma regra dada, regras deri­
vadas, tendo em conta o princípio de que a lei que reconhece um direito
legitima os meios indispensáveis para o seu exercício. A regra principal é
aquela que outorga o direito: o que o legislador queria dizer era apenas, e
só, qhe outorgava esse direito. Mas por dedução lógica, não contrariada
pela finalidade do preceito, podemos chegar até outras regras, diversas da
regra principal mas dela derivadas.

118. Regras preceptivas, proibitivas e permissivas

I — As regras jurídicas, vimo-lo já, podem ser divididas em regras de


conduta e regras de mera valoração. A classificação que passamos a analisar
respeita exclusivamente às regras de conduta.

II — As regras de conduta podem distinguir-se em preceptivas, proibi­


tivas e permissivas.
Regras preceptivas são as que impõem uma conduta. Por exemplo,
as normas que impõem o cumprimento do serviço militar, ou a entrega de
certos produtos em armazéns gerais, são preceptivas.
Regras proibitivas são as que vedam determinadas condutas. G rande
parte das normas penais são proibitivas.
Regras permissivas são as que permitem certa conduta. Assim, a norm a
que atribui ao proprietário faculdades de uso, fruição e disposição das coisas
que lhe pertencem, é uma regra permissiva; como permissiva é a regra que
autoriza a feitura de testamento (2).
Esta última categoria é a mais contestada. Para alguns só aparente­
mente há regras permissivas, pois estas mais não seriam que uma outra face,
ou um subproduto, das categorias anteriormente referidas, ou pelo menos
uma restrição a uma proibição preexistente. Supomos porém que não é

(1) Cfr. D ias Marques, Introdução, n.° 69, 7.


(2) Enneccerus fala a este propósito de «proposições jurídicas de concessão» (§ 27/11).
195

assim: as permissões não são necessariamente recíprocas de proibições, e


mesmo quando o sejam a regra permissiva é independente da outra. O que
dissemos a propósito da bilateralidade (1) ilustra suficientemente esta afir­
mação (2).

119. Regras interpretativas e inovadoras

I — Regra interpretativa é a que se limita a fixar o sentido juridicamente


relevante de um preceito, existente ou futuro.
A regra interpretativa pode ainda destinar-se a fixar o sentido de:
— fontes do direito
— negócios jurídicos

A primeira categoria há-de ser devidamente analisada quando estudarmos


a interpretação autêntica: porque interpretação autêntica é a que é realizada
por lei interpretativa. Dada a importância desta noção, exporemos no
número seguinte a matéria da lei interpretativa.
Mas para além das regras jurídicas que interpretam fontes do direito
há regras interpretativas de negócios jurídicos. Destas teremos ocasião de
falar em breve, a propósito das regras dispositivas.

II — Regra inovadora é a que altera de certo modo a ordem jurídica


preexistente; inova, como resulta da própria expressão. Como se depreende
facilmente, as normas inovadoras constituem a esmagadora maioria das
normas jurídicas. É pois dispensável dar exemplos destas.

120. A lei interpretativa

I — Lei interpretativa é a que realiza a interpretação autêntica, de que


falaremos infra, n.° 259.
Acentue-se apenas que a interpretação autêntica é um a interpretação nor­
mativa. Toda a interpretação autêntica é veiculada por um a fonte do direito.
A emissão de uma lei interpretativa é o processo usual de realização
da interpretação autêntica.

(1) Cfr. supra, n.° 115. >


(2) C om o m odalidade das regras permissivas tem os as regras perm issivas/subor-
dinantes, que são aquelas em que a permissão dada a um a pessoa tem com o contrapartida
necessária a sujeição im posta a outra das conseqüências daquele agir. É o que se passa nas
regras que atribuem os cham ados direitos potestativos, co m o o de o condôm ino haver para
si, dando o tanto pelo tanto, a fracção da coisa com um que foi alienada a terceiros.
196

II — Para uma lei ser interpretativa terá de satisfazer vários requisitos.


Desde logo, a fonte interpretativa deve ser posterior à fonte interpretada:
doutra maneira já estava integrada nela, fazia um com essa fonte.
E uma intenção de esclarecer dúvidas que está na base da grande gene­
ralidade dos casos, e justifica historicamente este procedimento.
Suponhamos que um decreto-lei sobre actividade bancária estabelece
importantes restrições quanto ao tráfico de divisas estrangeiras. Suscita-se
o problema da aplicação daquele regime às casas de câmbios, pretendendo
uns que elas estão excluídas porque o decreto-lei respeita aos bancos, outros
que as abrange também porque substancialmente a actividade cam biária que
bancos e casas de câmbio realizam é idêntica. Há opiniões nos dois sentidos:
há mesmo decisões judiciais contraditórias. Para evitar uma instabilidade
que a todos prejudica, e diversidade de consideração de casos iguais, surge
um novo decreto-lei que esclarece o anterior, declarando qual das inter­
pretações é a verdadeira. Temos então uma lei interpretativa, realizando
interpretação autêntica, vinculativa para todos.

III — Não basta ainda. Para termos interpretação autêntica é também


necessário que a nova lei tenha por fim interpretar a lei antiga. N ão basta
pois que em relação a um ponto duvidoso surja uma lei posterior que consagre
uma das interpretações possíveis para que se possa dizer que há interpretação
autêntica: tal lei pode ser inovadora.
Como se sabe então que a lei é interpretativa?
1) Antes de mais pela declaração expressa do legislador no texto do
diploma.
2) Tem igualmente significado a afirmação expressa do carácter inter-
pretativo constante do preâmbulo do diploma. Puseram-no alguns em
dúvida, mas a dúvida não tem razão de ser perante a posição que adoptam os
quanto ao valor interpretativo do preâmbulo (1). Se o texto, assim esclare­
cido, pode ser tomado como interpretativo não há razão para afastar esta
qualificação; se se não ajusta temos de concluir que a intenção do legislador
de produzir uma lei interpretativa foi uma intenção que se não traduziu nos
factos.
3) Se a fonte expressamente nada determinar, o carácter interpretativo
pode resultar ainda do texto, quando for flagrante a tácita referência da
nova fonte a uma situação normativa duvidosa preexistente. N ão vemos
razão para exigir que o carácter interpretativo seja expressamente afirmado,
quando a retroactividade não tem de o ser.

(1) Infra, n.° 212/U1.


197

Isto não impede que a fonte não se presuma interpretativa: veremos a


seguir que a lei interpretativa é retroactiva, e o carácter retroactivo da lei não
se presume. Significa apenas que a presunção no sentido do carácter não
interpretativo pode ser afastada quando militarem razões em contrário (1).

IV — Temos enfim o último requisito da interpretação autêntica: a nova


fonte não deve ser hierarquicamente inferior à fonte interpretada. Esclare­
ceremos este aspecto quando tratarm os da interpretação autêntica.

121. Regras autônomas e não autônomas

I — É costume distinguir as regras jurídicas em autônomas e não autô­


nomas (2). A regra autônom a é a que tem por si um sentido completo,
a não autônoma é a que só o obtém em combinação com outras regras.
Comecemos por observar que esta classificação só tem interesse se refe­
rida verdadeiramente a regras e não a textos ou artigos legais. Muitas
vezes é necessário conjugar vários textos legais para encontrar a norma,
o dever ser deles resultante, portanto, com a respectiva previsão e estatuição.
Estabelece por exemplo o corpo do art. 66 do Código Penal português:
«A suspensão do exercício do emprego terá a duração de três meses a três
anos». N ão há aqui uma regra, mas apenas um trecho de regulamentação
que terá de ser conjugado com outros trechos para se atingir a regra.
Veja-se também o art. 460 do Código Civil brasileiro.
Mas não é para estas figuras que aponta a classificação em análise.
Pressupõe-se a existência de verdadeiras regras, que todavia não são autô­
nomas, por só ganharem total sentido regulador se confrontadas com outras
regras.

II — Parece assim que não serão verdadeiras regras não autônomas,


porque não chegam a ser regras:
1) As classificações legais, como a classificação das coisas (3). Estas
poderão dar-nos esclarecimentos que se integram com as restantes referências
legais para compor as autênticas normas mas, por si, só arrum am a matéria
legal, não estabelecem um dever ser;
2) As definições legais, como a noção de doação (4). Em si, uma

(1) Fazem os uma aplicação destes vários princípios no n osso artigo O Código Civil
de 1966 é Interpretativo do D ireito A nterior?
(2) Cfr. G alvão Teles, Introdução, 11, n.° 98; Engisch, Introdução, 28. Cfr. tam bém
Enneccerus, P a rte general, § 27/T.
(3) Arts. 43 e segs. do C ód. Civil brasileiro e art. 202 do Cód. Civil Português.
(4) Art. 1165 do C ód. Civil brasileiro e art. 940 do Cód. Civil português.
198

definição é sem dúvida um elemento de orientação mas não é decisiva: se se


verificar que há contradição entre um certo instituto jurídico, tal como resulta
do regime que para ele foi estabelecido, e a definição legal, aquele prevalece
sobre esta, pois o regime vincula, e a definição orienta apenas. Tal con­
tradição verifica-se com frequência, pois definir é uma operação extrema­
mente delicada, e o legislador não se engana menos que as outras pessoas.
Por isso se recomenda de há m uito que se evitem as definições. Diz-se:
omnis definitio in jure periculosa est.
N ão queremos dizer que se não possa concluir que certa definição é
vinculativa. Isso acontecerá quando dos próprios termos da definição
resultar um dado regime jurídico, portanto uma regulamentação directa
duma situação. Então já o intérprete não poderá afastar a definição por
incorrecta, pois ela virá revestida de directa imperatividade.
Nos casos correntes, porém, a definição serve só para orientar sobre
a posição legal, em confronto com o restante material normativo. E como
uma definição não representa uma regra, tão-pouco poderá ser considerada
uma regra jurídica não autônoma.
3) Também as regras meramente qualificativas seriam afinal, para a
generalidade dos autores, «proposições jurídicas incompletas»: cfr. supra,
n.° 112.
4) Nas mesmas condições parecem estar as disposições restritivas
ou ampliativas de preceitos anteriores, ou outras disposições análogas.
Também elas não representam verdadeiras regras.
Assim, estabelece o art. 364 do Código Penal português, integrado
na regulamentação das ofensas corporais: «As disposições dos artigos ante­
cedentes desta secção são aplicáveis àqueles que, voluntariamente e com
intenção de fazer mal, ministrarem a outrem de qualquer modo substâncias
que, não sendo em geral por sua natureza mortíferas, são contudo nocivas
à saúde». Esta disposição não regulamenta nada por si. O seu sentido
é apenas fixar o âmbito dos preceitos anteriores, em conjunto, para evitar
escusadas repetições. Não representa pois uma regra.

III — Pelo contrário, já nos parecem representar verdadeiras normas


não autônomas o que podemos designar em geral por regras remissivas.
Há uma regra remissiva sempre que numa regra o antecedente, ou o
conseqüente, não estão directamente determinados: o seu sentido completo
só se obtém através do exame de outra norma, para que a regra remissiva
aponta.
Veremos no número seguinte quais são as categorias mais importantes
de regras remissivas.
199

122. As regras remissivas

I — Regras de devolução
A principal categoria de regras remissivas é constituída por aquilo a
que podemos chamar as regras de devolução. E regra de devolução a que
não regula directamente determinada matéria, antes remete para outra regra
que contém a regulamentação aplicável.
O Direito Internacional Privado traz-nos a grande massa das regras de
devolução.
Tomemos por exemplo o art. 43 do Código Civil português: «À gestão
de negócios é aplicável a lei do lugar em que decorre a principal actividade
do gestor». Prevêem-se pois situações em que alguém, sem autorização,
se intromete na gestão de negócios alheios, mas não se diz quais as conse­
qüências de tal facto: antes se indica um elemento — o lugar onde decorre
a principal actividade do gestor — capaz de individuar determinada lei, e
essa lei nos indicará qual o regime jurídico definitivamente aplicável.
O art. 43 contém uma regra — diz qual a lei que deve ser aplicável — mas
o seu sentido completo só se obterá através da remissão para a lei nela
indicada.
Também o direito transitório form al {infra, n.° 247/IIÍ) nos faculta
numerosos exemplos de regras de devolução. Como veremos, as dificul­
dades resultantes de haver situações que podem em abstracto ser regula­
das pela lei antiga ou pela lei nova são resolvidas pela opção por uma das
leis. No direito transitório formal não se regula pois directamente a situação,
ao contrário do que se passa no direito transitório material, antes se remete
a regulamentação para uma das leis em presença.
Fora destes casos, em que deparam os com as chamadas normas de
conflitos, ainda podemos encontrar numerosas hipóteses de normas de devo­
lução. Assim, é muito freqüente estabelecer-se em legislação avulsa que
às infracções previstas é aplicável a pena do crime de desobediência quali­
ficada. Omite-se então a fixação material da conseqüência jurídica, mas
indica-se o critério formal que permitirá determ inar qual é essa conseqüência.
O legislador procede assim muitas vezes por economia de preceitos, mas
este expediente deve quanto possível ser evitado, porque na prática torna-se
frequentemente muito difícil apurar quais as disposições que são efectiva-
mente reclamadas por semelhantes regras (1).

(1) Sobre num erosos outros problem as suscitados pelas regras de rem issão, e nom ea­
dam ente sobre a distinção da remissão em estática e dinâm ica, cfr. D ias Marques, Intro­
dução, n.° 39.

*4
200

II — Ficções
A regra de devolução funciona mediante a identificação dos conseqüentes:
a A deve aplicar-se o mesmo conseqüente que está estabelecido para B. Mas
pode obter-se o mesmo resultado através da identificação dos antecedentes:
dir-se-á então que A = B, e se A é igual a B necessariamente se lhe aplica
o conseqüente que para B está estabelecido.
Quando assim se procede está-se no caminho das ficções. Foi um
caminho muito trilhado no século passado, na legislação e sobretudo na
doutrina. Resolviam-se as dificuldades dizendo-se que, por ficção, se supunha
que duas realidades diversas eram idênticas. É um mau processo, porque
se as realidades são diversas, diversas continuam.
Se o legislador recorre a ficções o intérprete tem de aceitar o conteúdo
preceptivo da norma, que é o de regular a situação A da mesma forma que
a situação B. Deve-se todavia observar que, com mais naturalidade e melhor
técnica, os mesmos resultados se obteriam com uma regra de devolução.
De todo o modo, a ficção dá-nos um exemplo de uma regra não autô­
nom a: ela não regula por si directamente, antes tem de ser com binada com
a primeira regra para se obter o regime aplicável.
Contém uma ficção o art. 2752 do Código Civil português: «Se a veri­
ficação da condição for impedida, contra as regras da boa fé, por aquele a
quem prejudica, tem-se por verificada; se for provocada, nos mesmos ter­
mos, por aquele a quem aproveita, considera-se como não verificada».
É claro que verificação e não verificação da condição são factos diametral­
mente opostos, mas a lei, para fazer aplicar os efeitos da produção ou da
não produção da condição aos casos da não produção ou da produção resul­
tantes de uma conduta contrária à boa fé entrou pelo caminho da ficção e
identificou realidades inversas. Contém também uma ficção o art. 242 do
mesmo Código.

III — Presunções absolutas


Presunções absolutas, ou presunções juris et de jure, são as que se esta­
tuem sem possibilidade de prova em contrário. Opõem-se às chamadas
presunções relativas, ou juris tantum, que para este efeito não interessam.
Por exemplo, o art. 243 do Código Civil português prevê a situação do
terceiro de boa fé, que adquire um bem na ignorância de um negócio simulado
sobre ele; mas o n.° 3 determina: «Considera-se sempre de má fé o terceiro
que adquiriu o direito posteriormente ao registo da acção de simulação,
quando a este haja lugar». Há aqui, parece, uma presunção juris et de jure:
o terceiro, mesmo que esteja de boa fé, está inibido de o provar, pois a lei
presume a má fé sem possibilidade de prova em contrário. Ao proceder
assim a lei funda-se na própria presunção de conhecimento que deriva da
inscrição dum facto no registo.
201

A presunção absoluta é muito semelhante à ficção, apenas variando o


modo técnico da sua apresentação. Também aqui se realiza praticamente
a identificação de antecedentes, característica da ficção, uma vez que se
exclui a possibilidade de se dem onstrar que a realidade é diversa. E o resul­
tado é o mesmo: da situação derivarão fatalmente as mesmas conseqüências
que derivam daquela cuja verificação se presume. Há por isso, ainda neste
caso, uma regra remissiva.

123. Regras injuntivas e dispositivas

I — Regras injuntivas são as que se aplicam haja ou não declaração


de vontade dos sujeitos nesse sentido; dispositivas são as que têm entre os
seus pressupostos um a determinada posição da vontade das partes quanto
a essa aplicação.
Exemplos de regras injuntivas encontram-se facilmente nas que regulam
o trânsito, a previdência social, o estado de sítio... Se bem que haja excepções,
estes domínios são em geral muito pouco sensíveis às manifestações de von­
tade das partes quanto à sua aplicação. Quem circula de automóvel tem
mesmo de ostentar as luzes regulamentares, e ninguém lhe pergunta se deu
o seu consentimento à aplicação daquela regra.

II — Regras dispositivas são as que só se aplicam se as partes suscitam


ou não afastam a sua aplicação.
Assim, estabelece o art. 196 do Código Comercial brasileiro: «Não
havendo estipulação em contrário, as despesas do instrumento da venda,
e as que se fazem para se receber e transportar a coisa vendida, são por conta
do comprador». Expressamente se diz que o preceito só se aplica tal qual
na falta de estipulação em contrário. As partes têm pois a possibilidade de
fixar regime diverso.
As regras dispositivas podem ser permissivas, interpretativas e suple­
tivas. Destas espécies falaremos infra, n.° 125.
Às regras dispositivas se chama também por vezes facultativas.

III — Não se deve confundir a classificação das normas em injuntivas


e dispositivas com a distinção que se costuma fazer de todo o direito em
público e privado.
Apreciaremos mais tarde essa distinção, quando tratarm os dos ramos
do direito. Facilmente verificaremos que nos ramos considerados de direito
público predominam as regras injuntivas, e nos ramos considerados de
direito privado predominam as regras supletivas. Mas predomínio não
quer dizer coincidência. Também no direito público há regras dispositivas
202

(por exemplo, são admitidos negócios jurídicos em que as partes afastam a


aplicação normal duma regra de direito público).
Ainda mais evidente, e freqüente, é a existência de regras injuntivas no
âm bito do direito privado. Por exemplo, as regras que estabelecem os tipos
de sociedades comerciais (anônima, por quotas, em nome colectivo, etc.)
são atribuídas ao direito privado, e todavia são regras injuntivas: os interes­
sados podem escolher o tipo de sociedade comercial que desejam, mas não
podem alterar no fundamental esse tipo. Dados os interesses gerais que
estão em causa, não é livre a modelação do tipo de sociedade que em certas
circunstâncias particulares se pudesse afigurar o preferível.

IV — Como se sabe se uma regra é injuntiva ou dispositiva?


Antes de mais, é necessário verificar o que o legislador declara. Assim,
diz-nos o art. 1449 do Código Civil brasileiro, respeitante ao contrato de seguro:
«Salvo convenção em contrário, no acto de receber a apólice pagará o segu­
rado o prêmio, que estipulou». Expressamente se esclarece que esta dis­
posição é supletiva. Veja-se também o art. 784 do Código Civil português,
expressamente subordinado à epígrafe: «Regras supletivas»: e as regras
supletivas constituem, como veremos, a mais importante categoria de regras
dispositivas.
Mas semelhante critério não é suficiente, nem necessário.
N ão é suficiente porque, apesar de serem muito numerosos os preceitos
em que se consagra o carácter injuntivo ou dispositivo duma regra, são ainda
mais numerosos aqueles em que o legislador nada diz; e nada nos autoriza
a inferir do silêncio, imediatamente, a qualificação da disposição. Antes,
é necessário verificar caso por caso se a regra é ou não essencial à
fisionomia daquele instituto, se pode ou não ser posta de parte sem que
se rom pa o equilíbrio dos interesses que foram tidos em conta pelo
legislador.
Tão-pouco semelhante critério pode ser considerado necessário. E claro
que quando o legislador afirma que certa regra é ou não dispositiva, há um a
tom ada legal de posição nesse sentido. Mas também aqui o legislador pode
ter dito mais do que queria, e o intérprete ser obrigado a restringir a decla­
ração demasiado ampla. Por exemplo, a tom ar à letra o art. 1445 do Código
Civil português, quase todas as disposições reguladoras do usufruto seriam
supletivas, pois só se aplicariam na falta ou insuficiência do título consti­
tutivo. N a realidade, é de supor que entre elas encontremos mais de uma
disposição injuntiva, através da qual o legislador tenha querido evitar os
resultados desfavoráveis que se poderiam produzir se houvesse um abandono
completo do instituto à vontade das partes.
A análise e a valoração de cada preceito revela-se afinal 0 elemento
decisivo. Escusado acentuar todavia a delicadeza deste método, e as difi­
203

culdades que caso por caso se podem suscitar (1). Desejável seria que o
legislador ampliasse consideravelmente o esclarecimento da índole das dis­
posições que estabelece.

124. Regras injuntivas

I — Frequentemente se chama às regras injuntivas normas imperativas (2).


Preferimos não acom panhar esta terminologia, pois falar em regras
imperativas, por oposição a dispositivas, podia dar lugar a confusões graves.
É que, vimos já, toda a regra jurídica é imperativa por definição. Não
o são menos as regras dispositivas. Isso torna-se claro se olharmos para
o momento da aplicação da regra. Se não tiver havido a convenção pre­
vista no art. 182 do Cód. Civil português, por exemplo, o preceito aplica-se
com a normal imperatividade de tudo o que é jurídico.
O problema está todo no antecedente da regra. Como pressuposto
da aplicação desta pode encontrar-se um a manifestação da vontade das
partes, suscitando a aplicação da regra ou repelindo-a. O facto nada tem
de anóm ado — depáramos com ele já ao falar da hipoteticidade da norm a
jurídica (supra, n.° 110). Dissemos que uma vez verificados estes pressu­
postos e aplicada portanto a regra a imperatividade desta é plena, para
nada interessando então a vontade do sujeito de estar ou não vinculado.
Por isso afastamos a term inologia legal, e falamos de regras injuntivas,
como é corrente na doutrina, e não de regras imperativas.

II — Se se praticar um acto jurídico que atinja disposição injuntiva


verifica-se normalmente a «sanção» própria do acto ilícito, ou seja, a inva­
lidade. M as podemos ir mais longe, e esclarecer que os negócios jurídicos
celebrados contra disposição legal de carácter injuntivo são nulos, salvo
nos casos em que outra solução resulte da lei (3). A sanção da violação
de disposição injuntiva é a nulidade e não a anulabilidade, e só assim não
acontecerá quando a lei consagrar outra solução (4). É realmente próprio

(J) Por exem plo, o art. 1678/2 do C ód. Civil português especifica os casos em que
a adm inistração dos bens do casal pertence à m ulher, m as não esclarece se a regra é injuntiva
ou supletiva. Só o exam e das várias alíneas nos poderá permitir chegar a uma conclusão,
que aliás pode variar de caso para caso. A ssim , a alínea f ) deve considerar-se injuntiva,
pois se funda em aspectos pessoais; a regra da alínea dj é dispositiva, pois os cônjuges podem
prever de maneira diversa ao regular em convenção antenupcial o regime de separação.
(2) É a posição do C ódigo Civil português, nos arts. l.° /3 , 294 e 2084.
(3) É a solução expressa d o art. 294 d o C ódigo Civil português, que se refere a dis­
posição «imperativa».
(4) Sobre estas noções, recorde-sc o que dissem os, supra, n.° 26.
204

do carácter particularmente grave da violação de disposição injuntiva o


recurso a esta reacção.

III — Dissemos há pouco que se não deviam confundir as regras injun-


tivas com as regras de direito público.
Também se não devem confundir as regras injuntivas com as regras de
interesse e ordem pública. Esta qualificação foi usada pelo art. 10 do Código
Civil de Seabra e em conseqüência oposta pela doutrina à de regras de inte­
resse privado ou de mero interesse particular (aliás com pouca uniformidade).
De todo o modo, as expressões são infelizes. Para não cairmos em confusão
terminológica, preferimos omitir esta classificação, pois nos parece que todo
o seu,sentido útil está contido nas restantes distinções.

IV — Regra injuntiva e ordem pública internacional: diversidade do


âmbito de aplicação.
A ordem pública internacional é um conceito essencial em Direito Inter­
nacional Privado, pelo que remetemos o seu exame para a altura em que
referirmos este (infra, n.° 266/1V).
Basta dizer por agora que a ordem pública internacional representa um
último e insuperável limite à aplicação da lei estrangeira. Por força do
direito internacional privado, o direito estrangeiro pode ser declarado com­
petente para reger determinada situação. Mas há um a excepção: pode
dar-se a hipótese de aquela lei estrangeira se revelar incompatível com os
princípios fundamentais que com andam a comunidade. Assim aconteceria
se a aplicação da lei estrangeira levasse no caso concreto a declarar alguém
escravo, ou a instituir a poligamia. Nestes casos, a aplicação da lei norm al­
mente competente não é admitida.
Daqui já resulta porém que a ordem pública internacional não tem a
mesma incidência que as regras injuntivas. A aplicação da lei estrangeira
faz-se plenamente, mesmo com prejuízo de regras injuntivas existentes na
nossa lei. Se se declara uma lei estrangeira competente para reger deter­
minada sociedade comercial, essa competência não se detém pelo facto de
a lei estrangeira prever tipos de sociedades comerciais diversos dos admitidos
pela ordem jurídica nacional. E só num círculo muito mais restrito de
casos, quando são postos em causa princípios básicos da comunidade, que a
ordem pública internacional intervém, como última defesa, e exclui a apli­
cação da lei normalmente competente.
205

125. Regras dispositivas: permissivas, interpretativas e supletivas

I — Regras permissivas
Sustentámos (supra, n.° 118) a existência dum a categoria de regras
permissivas. As regras permissivas são por natureza regras dispositivas.
Assim, a regra que permite o casamento, que é um a regra tipicamente
permissiva, não se aplica independentemente de um a manifestação de von­
tade das partes nesse sentido. H á uma série de efeitos jurídicos predispostos,
oferecidos à vontade das pessoas, mas que se não concretizam independen­
temente dessa vontade. O mesmo diremos da emancipação. Só após a
manifestação de vontade é que esses efeitos se aplicam e então, como disse­
mos, com inteira imperatividade (1).

II — Regras interpretativas
Distinguimos (2) as regras jurídicas em interpretativas e inovadoras.
As regras interpretativas (como aliás tam bém as inovadoras) podem ser
injuntivas ou dispositivas. Por outro lado, as regras interpretativas podem
sê-lo de fontes do direito ou de negócios jurídicos. Com binando estas clas­
sificações, apuramos qual a modalidade de regras interpretativas que nos
interessa neste momento.
São regras interpretativas injuntivas as que interpretam fontes do direito;
dispositivas, as que interpretam negócios particulares. No primeiro caso,
porque fixam o entendimento das fontes, fixam-no objectivamente, sem
atender à vontade das partes. No segundo caso, porque visam esclarecer
os termos que os particulares usaram porque quiseram, fazem-no dispositi-
vamente: assim como podiam não ter feito a declaração, tam bém os parti­
culares podem fazê-la usando os term os em sentido diverso do que se prevê
na norma interpretativa. Vejamos um exemplo:
Alguém morre com testamento em que beneficia um a generalidade de
pessoas: os pobres, os hospitais, as congregações religiosas, qualquer outra
categoria. Surgirão dificuldades para delimitar a extensão daquela cate­
goria. A lei intervém então, esclarecendo que a disposição beneficia as
pessoas existentes no lugar em que o testador tinha domicílio à data da
morte (3).

(1) As regras permissivas tam bém podem prever meras faculdades, com o a actuação
de facto do proprietário sobre a coisa. T am bém estas regras devem ser qualificadas com o
dispositivas.
(2) Supra, n.° 119.
(3) Arts. 1669 do C ódigo Civil brasileiro e 2225 do C ódigo C ivil português.
206

Temos aqui uma regra interpretativa dispositiva. Ela permite esclarecer


a disposição do autor da sucessão, mas não é injuntiva. Assim como o
autor da sucessão tem liberdade para beneficiar ou não aquelas entidades,
também a tem para demarcar de outro modo o respectivo círculo. Pode o
autor da sucessão preferir beneficiar todas as congregações religiosas do
país, ou só os hospitais particulares, ou preferir qualquer outra determinação.
Se o fizer, expressa ou implicitamente, a sua vontade afasta a aplicação da
regra interpretativa legal.

III — Regras supletivas


Esta é a mais importante categoria de regras dispositivas, pelo que lhe
dedicaremos um número especial.

126. Regras supletivas

I — As partes não estão em condições de estabelecer uma regulamen­


tação completa dos seus negócios, e mesmo que o pudessem fazer não seria
prático repetir em todas as ocasiões os mesmos preceitos. A lei acode
então a esta deficiência, estabelecendo em todas as categorias de negócios
mais importantes um regime normal, que se aplicará sempre que as partes
nada disponham em contrário.
Celebra-se por exemplo uma com pra e venda. Em geral, as partes
limitam-se a indicar o que é específico daquela compra e venda — o preço,
a coisa vendida, o vencim ento...— deixando tudo o resto para as regras
normais da compra e venda, que são automaticamente aplicáveis no seu
silêncio.

II — Alguns distinguem ainda, dentro das normas supletivas, consoante


estas integram uma manifestação de vontade deficiente das partes ou, mais
radicalmente, intervém quando as partes não produziram qualquer m ani­
festação de vontade; outros estabelecem mesmo com estas regras uma cate­
goria autônoma (1). Estariam neste caso as regras sobre sucessão legítima,
há pouco referidas, que só intervém na ausência de disposições testamen-
tárias, e as regras respeitantes ao regime de bens do casamento, que se apli­
cam quando os nubentes não celebram a convenção antenupcial (2).

(1) Cfr. Barbero, Sistema, n.° 6.


(2) Mas note-se que mesmo então a lei portuguesa fala em regime supletivo (art. 1717).
N outros casos supletivo tem também o sentido de subsidiário. O art. 156 do C ódigo Civil
português, por exem plo, fala em regime supletivo para significar o regime subsidiariam ente
aplicável.
207

III — Há uma controvérsia teórica em torno do fundamento das normas


supletivas.
Para a doutrina clássica, que perfilha o subjectivismo próprio do
séc. xix, esse fundamento está na vontade presumível ou tendencial das
partes. É de presumir que as partes, se tivessem previsto aquela situação,
a tivessem regulado daquela maneira. A aplicação das regras supletivas
baseia-se portanto ainda, embora indirectamente, na mesma vontade das
partes, que fundamenta o restante conteúdo do negócio.
A doutrina moderna evoluiu, também neste sector, para um a posição
objectivista, e supomos que com razão. O legislador não estabeleceu a
regra supletiva para homenagear a vontade das partes; estabeleceu-a, sim,
porque considerou que aquele era o processo mais adequado de resolver
aquela situação, seja ou não de presumir que as partes teriam regulado da
mesma forma se tivessem considerado expressamente aquele ponto. Isto
não basta para que a valoração da lei se superiorize à valoração contrária
das partes, mas leva a que, nada tendo as partes declarado, a valoração
legal retome a primazia.

127. Regras gerais, especiais e excepcionais. Remissão desta última categoria

1 — É freqüente esta classificação tripartida das regras. Ao carácter


normal, próprio da regra chamada geral, se contraporiam as outras duas
categorias. As regras excepcionais, porém, dados os problemas complexos
que trazem, serão examinadas (infra, n.° 225) a propósito da interpretação
enunciativa. Vamos por isso limitar-nos à contraposição com as regras
especiais.
Uma regra é especial em relação a outra quando, sem contrariar subs­
tancialmente o princípio nela contido, a adaptar a circunstâncias particula­
res (1).
Comecemos por observar que a especialidade é uma característica rela­
tiva. A regra A pode ser especial em relação à regra B, mas ser geral em
relação à regra C, se esta realizar uma especificação ulterior, tendo em conta
novas circunstâncias (2).

(1) N ote-se que por vezes se fala em lei espfecial para designar sim plesm ente a lei
específica ou extravagante.
(2) Por isso tem razão D ias M arques quando trata esta matéria co m referência,
não às classificações das normas mas às relações entre as normas jurídicas (Introdução,
n.° 42). Mas já representam verdadeiras classificações as distinções das regras em com u n s
208

II — A especialidade pode ser característica de todo um ram o do direito,


ou de institutos jurídicos ou disposições particulares.
1) — No que respeita à especialidade entre ramos do direito, é típica
a relação existente entre o Direito Civil e Direito Comercial.
O Direito Comercial não é um direito excepcional em relação ao Direito
Civil: não representa uma excepção em relação aos princípios fundamentais
deste. O Direito Comercial justifica-se pela consideração das condições
particulares do comércio, como a celeridade, as exigências do crédito e o
fim lucrativo. Como o direito civil dificilmente servia estas condições, o
Direito Comercial adapta o Direito Civil à vida comercial, especializando-o
de harmonia com aquelas necessidades. O Direito Comercial é, em con­
junto,,um direito especial, em relação ao Direito Civil.
Com isso fica também dem onstrado que o Direito Comercial não é
um direito excepcional, uma vez que esta adaptação se faz por concretização
e não por negação dos princípios do Direito Civil. Mas por outro lado,
nada impede que no Direito Comercial se encontrem verdadeiras disposições
excepcionais, nos casos em que a adaptação só foi possível através da inver­
são de princípios do Direito Civil.

III — 2) Por outro lado, há também a especialidade entre institutos


jurídicos, e entre disposições particulares.
No Processo Civil aparece-nos um exemplo muito nítido.
Em princípio, quando se recorre a tribunal, abre-se às partes o chamado
processo comum: os trâmites estão regulados de maneira uniforme seja qual
for o objecto da acção.
Mas para certas finalidades houve que realizar uma adaptação nos
termos do processo, de modo a perm itir atingir, ou permitir atingir mais
adequadamente, o objectivo visado. Prevê por isso a lei uma longa série
de processos ou procedimentos especiais, diversos entre si e diversos do
processo comum. Por exemplo, a prestação de contas: aquele que pre­
tende exigir que outrem preste contas tem à sua disposição um processo
mais adequado que o processo comum.
Este processo permite-nos até ilustrar o que dissemos há pouco sobre
a relatividade desta qualificação de uma situação com o especial. Porque
a lei prevê um processo normal de prestação de contas, e um processo espe-
cialíssimo (é qualificação que foi adoptada por cultores desta matéria) para
as contas de entidades como o tutor e o curador. As regras sobre o pro-

e particulares, e em universais e locais, de que falaremos a seguir; e verem os que há razão


para adoptar conceitos am plos de regra geral e especial que abranjam tam bém aquelas m od a­
lidades. Isto nos impele a manter a colocação tradicional da matéria.
209

cesso normal de prestação de contas são pois especiais em relação às regras


do processo comum, mas são normas gerais em relação às regras que realizam
a ulterior concretização do processo relativo às contas do tutor, curador e
semelhantes.

128. Regras comuns e particulares

Por outro critério podem distinguir-se das regras comuns as regras


particulares (1). A terminologia é convencional. Chamaremos particulares
às regras que se aplicam apenas a certas categorias de pessoas; às regras
que pelo contrário se aplicam à generalidade das pessoas chamaremos regras
comuns, aproveitando o facto de a terminologia não estar ainda hipotecada
a um a determinada acepção.
Em certas épocas históricas as regras de direito particular predominaram:
as leis variavam consoante as categorias de pessoas a que se destinavam.
Tínhamos os chamados privilégios. Hoje, as leis são comuns, visam na
grande maioria dos casos todo e qualquer um — pensemos nas leis fiscais,
penais, etc. Em certos países há regras particulares, ainda, sobretudo,
para a regência de certas comunidades religiosas — aplicáveis só aos muçul­
manos, por exemplo.
N o Brasil há ainda todavia uma vasta zona em que regem normas de
direito particular. Referimo-nos ao estatuto dos silvícolas, que se mantém
(Constituição, art. 8.°/XVlI/al. o).
Por efeito das regras particulares cria-se o que se chama um estatuto
pessoal. E próprio das pessoas naquela situação um regime jurídico, que
as acompanha. É claro que então é necessário estabelecer outras regras
em que se determine como se hão-de processar as relações com pessoas de
estatuto diverso (2).

129. Regras universais, gerais e locais

I — Em todas as ordens jurídicas haverá que distinguir, das regras que


se aplicam a todo o território nacional as regras que se aplicam só a zonas
delimitadas. Estas últimas chamam-se locais; às primeiras chamaremos

(1) Cfr. Enneccerus-Nipperdey, P arte general, § 44, II.


(2) N ote-se que não são particulares, mas sim especiais, as regras que regulam certa
profissão ou m odo de vida, pois atendem à circunstância objectiva da actividade, profissional
ou outra, e não às características subjectivas dum grupo social.
210

universais ou nacionais, para não recorrer a qualificativos que ficaram já


comprometidos nas anteriores classificações.
E fácil apresentar exemplos de regras locais — todas as constantes de
posturas de câmaras municipais, por exemplo. N a verdade, as normas
resultantes da actividade de órgãos locais são necessariamente normas locais.
A competência destes está restrita aos limites da sua circunscrição, pelo
que nunca poderiam produzir normas universais.
Mas também da actividade dos órgãos da administração central podem
resultar regras locais. Assim acontece na legislação referente a uma zona
só do país — a legislação para uma zona de catástrofe, por exemplo. São
freqüentes as regras locais com esta origem.

II — Na ordem jurídica portuguesa devemos entrar em conta com um


terceiro termo, as regras gerais. Estas são conseqüência directa do regio­
nalismo incompleto, consagrado na Constituição (arts. 6.°/2 e 227 e seguintes).
No espaço português estão constituídas as regiões dos Açores e da
M adeira (1), e a legislação própria dessas regiões não pode deixar de ser
considerada local. Mas o espaço continental não está organizado regional­
mente. A legislação que vigorar aí somente não é universal; mas tão-pouco
é local. Ocupa uma posição privilegiada dentro do espaço português e é
por isso designada legislação geral (2).
Na ordem jurídica brasileira só temos de distinguir regras universais
e locais. A estrutura federal não impede que sob este ponto de vista as
leis se inscrevam ou numa ou noutra modalidade. Leis estaduais e leis
municipais produzem em todo o caso regras locais, como as produzem as
leis referentes aos territórios ou ao distrito federal.

III — A este propósito faz-se também a contraposição das regras cen­


trais às regras locais. Queremos todavia observar que o qualificativo central
é dotado de grande ambigüidade.
Ele pode designar o poder central. É assim central, no Brasil, tudo
o que respeita ao Estado federal e aos seus órgãos, incluindo os órgãos locais
e autárquicos federais. O critério é então muito diverso do' que nos permi­
tiu distinguir regras universais e locais.
Noutros casos, fala-se de central para qualificar os órgãos centrais do
poder, excluídos os órgãos locais e possivelmente os órgãos autárquicos.
Nesta acepção já estamos mais próximos da que permitiu a classificação

(1) Além de M acau, que tem estatuto próprio.


(2) C om o é natural, esta qualificação nada tem que ver com a distinção das regras
em gerais e especiais.
211

das regras em universais e locais, mas não há confusão possível. Para a


classificação que nos ocupa só nos interessa o âmbito de aplicação da regra.
Se esse âmbito é local, a regra é local, quer emane de um órgão local quer
de um órgão central. Se esse âmbito é nacional a regra é universal, seja
autárquico ou não o órgão do poder central de que emana.

130. Relações entre estas categorias de regras

I — À caracterização das regras como universais, gerais ou locais estão


ligados efeitos práticos importantes.
O direito local deve ser provado, e o restante direito não. Compreen-
sivelmente, pois o juiz não pode estar ao par de todos os sistemas locais nem
tem de estar familiarizado com eles. É pois adequado que se imponha às
partes este contributo para a sua determinação. Isso não dispensa, como
já sabemos, a iniciativa do juiz para procurar obter oficiosamente o conhe­
cimento da fonte.
Este princípio da necessidade da prova é estabelecido pelos arts. 337
do Código de Processo Civil brasileiro e 348 do Código Civil português:
mas enquanto este manda provar o direito local o primeiro submete a esse
ónus o direito estadual e municipal.
De facto, não é todo o direito local, em sentido técnico que deve ser
provado, e o art. 348 deve ser objecto de um a interpretação restritiva, ou
pelo menos declarativa restrita; veremos a propósito da interpretação o
sentido exacto destes termos. Com efeito, seria estranho que se devesse
fazer também a prova de diplomas emanados de órgãos centrais — um
decreto-lei respeitante à região do vinho do Porto, uma lei sobre o nordeste...
Estes são mblicados em jornal oficial, nestes casos até com as formas mais
solenes, e nada justificaria uma posição dim inuída no corpo das leis. Só
os diplomas emanados de órgãos locais escapam ao conhecimento normal
e devem ser provados.
Pensamos porém que essa prova deve recair sobre todos os diplomas
emanados de órgãos locais — quer pertençam à administração local quer
à administração estatal. As razões que justificam as condições especiais
de prova são as mesmas.

II — Mais difícil é determinar a relação entre as regras gerais e locais,


ou entre regras aplicáveis a locais diversos.,
Assim, pode perguntar-se se, estando determ inada m atéria regulada
no Continente português mas não num a região, a regra geral pode ser aí
aplicada por analogia. É um problema específico da ordem jurídica por­
tuguesa.
212

Supomos que nestes termos o problema estaria mal colocado. Recorre-se


à analogia quando se não encontra uma fonte que regule aquele caso, mas sim
um caso análogo. Aqui, seria o próprio caso que seria regulado por lei geral.
N a realidade, o que se pergunta é se as regras gerais são direito subsi­
diário em relação aos vários espaços regionais: se podem pretender apli­
car-se em segunda linha, quando a matéria não estiver expressamente pre­
vista naqueles. Tendemos a um a resposta afirmativa, sempre que a norma
geral não se funde em considerações específicas do espaço continental, ou
não contrarie as orientações gerais do direito daquela região (1).

III — Pelo contrário, o direito local não é utilizável fora do círculo


especial que o justifica; não é subsidiário em relação a outras circunscrições.
Como é sempre justificado por circunstâncias locais, não pode pretender
aplicação quando estas se alteram. As várias circunscrições locais são
espaços juridicamente fechados, não servindo por isso como direito subsi­
diário em relação a outros espaços juridicamente fechados (2).
Mas impõem-se duas precisões importantes.
Quando falamos em direito local referimo-nos aqui ao direito emanado
de órgãos locais, qualquer que seja a natureza destes. O direito emanado
de órgãos centrais, mesmo que local no seu âm bito de aplicação, pode ser
usado para integrar lacunas de outras leis centrais. Assim, as lacunas exis­
tentes num a lei sobre turismo na Amazônia poderão ser integradas através
duma lei sobre turismo no Centro-Oeste.
Por outro lado, se a aplicação de uma regra local, autonomam ente
tom ada, não é possível noutra ordem local, não se deve todavia esquecer
que todas as regras, centrais ou locais, compõem a ordem jurídica. Quando
pretendemos caracterizar os princípios gerais desta a todas elas teremos por­
tanto de recorrer (3).
Quando pois algum caso deva ser resolvido pelo recurso aos princípios
gerais, e nada imponha um princípio específico do espaço em causa, é para
os princípios gerais da ordem jurídica que haverá que recorrer, e esses resul­
tam da contribuição de todas as formas jurídicas que esta inclui. Desta
forma indirecta, o direito de cada espaço, mesmo local, pode ser relevante
nos espaços restantes.

(1) O regionalism o incompleto não elim ina pois a tendência de aplicação das regras
não locais sempre que não se verificar obstáculo a essa aplicação.
Sz o caso não estiver previsto directam ente mas houver regra geralanáloga, com as
mesmas reservas e cautelas deve ser adm itida a aplicação analógica na região em causa.
(2) N em ao espaço correspondente às leis gerais em Portugal.
(3) É da m esm a forma, quando se dever caracterizar o espírito do sistem a, nos
term os do art. 10/3 do C ódigo Civil português.
213

131. Lei geral não revoga lei especial: remissão

I — Voltemos agora um pouco atrás. H á um outro aspecto da relação


entre lei geral e lei especial que se reveste de considerável importância: é o
que respeita à revogação. Devemos saber se, em princípio, a lei geral revoga
a lei especial, ou a lei especial a geral.
Vamos deixar a matéria para momento posterior, em que consideremos
especificamente a revogação. Veremos {infra, n.° 156) que é verdadeiro o
princípio de que a lei geral não revoga lei especial, aliás expressamente con­
tido no art. 7.°/3 do Código Civil português.
E veremos mais: veremos que esse princípio é também aplicável à relação
da lei comum com a lei particular, e da lei universal com a lei local.
Que repercussão terá esse facto quanto à classificação das regras em
gerais e especiais?

II — A conseqüência parece ser a de impor a admissão de um conceito


mais vasto de regra geral e regra especial, de modo que o art. 7.°/3 do Código
Civil português se aplicará, directamente e não por analogia quer às regras
especiais em sentido estrito, quer às regras particulares, quer às regras locais.
A identidade total da ratio justifica este entendimento amplo.
Portanto, sempre poderemos distinguir, de especialidade em sentido
amplo, a especialidade:
— material
— pessoal
— territorial (1).

(1) N um sentido já diverso, e que vai além do que exam inám os até agora, dispõe
o art. 52/2 do D ecreto-L ei português n.° 49368, de 10 de N ovem bro de 1969, que as dis­
posições desse estatuto que constituam direito excepcional só podem ser revogadas por
disposição expressa, com m enção precisa das disposições afectadas.
CAPÍTULO 1

Generalidades

199. Noções prévias

I — G raças à análise anterior, apurám os quais as fontes do direito que


actuam na nossa ordem jurídica. M as conhecer as fontes não é ainda
conhecer as regras. Sabemos que a fonte não é a regra: é antes, no seu
sentido precípuo, o modo de revelação da regra. Isto significa que, um a
vez individualizadas as fontes, se abre um novo capítulo, que é o da deter­
m inação das regras.
Efectivamente, a norm a é, na generalidade dos casos, o interm ediário
indispensável para se chegar à solução dos casos concretos: estes devem
ser resolvidos segundo regras. Temos pois de estudar os processos mediante
os quais se poderão obter regras, a partir do m aterial existente.

II — Distinguiremos três processos fundam entais:


1) A interpretação
2) A «interpretação enunciativa»
3) A integração das lacunas
Indicaremos nos números seguintes em que consiste cada um destes
processos, salvo no que respeita à interpretação enunciativa. Diremos
apenas que esta representa um processo lógico de obtenção de um a nova
regra a p artir de um a regra dada: e remetemos para o capítulo dedicado
a esta m atéria a análise específica.
338

200. Interpretação

I — A actividade que nos perm ite, a partir da fonte, chegar à regra


que ela alberga, é a interpretação. É regulada no art. 9.° do Código Civil
português. A Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro omite proposi­
tadam ente toda a disposição sobre o tema.
Mas a interpretação não é um a tarefa especificamente jurídica. Em
todos os ramos da cultura se põe o problem a de extrair um sentido de certas
exteriorizações, em bora variem depois, consoante as ciências, os cânones que
com andam essa tarefa. A interpretação representa assim um a parte funda­
mental da metodologia de qualquer ciência do espírito.
\jm grande jurista, Betti, ultrapassou mesmo os limites da sua disci­
plina e escreveu uma monumental «Teoria G eral da Interpretação» (1) em
que se abordam os problemas comuns a toda a interpretação e se estudam
modalidades particulares de interpretação, como a interpretação histórica,
a interpretação filológica, a interpretação dram ática, a interpretação musi­
cal, etc.

II — N o que respeita à interpretação jurídica, dissemos que ela visa


também , através de uma exteriorização, apurar um sentido. H á de carac­
terístico a exteriorização de que se parte ser uma fonte, e o resultado que se
procura atingir representar uma norma. Estamos no dom ínio daquilo a
que Betti chama a «interpretação em função normativa».
A fonte pode na verdade apresentar-se como um facto, de certa maneira
qualificado. Do facto transita-se para um sentido intrínseco, um dever
ser que se acoita no facto. Podemos observar que com isto a tarefa da
interpretação reproduz aquele movim ento fundam ental que caracteriza
toda a ordem jurídica. Dissemos logo de início que esta é antes de mais
facto, mas tem o sentido de um dever ser. A interpretação jurídica tom a
também como ponto de partida o facto, mas para chegar até ao sentido que
nele está ínsito, o dever ser.

201. As lacunas

I — Caracterizámos já as fontes do direito, nom eadam ente a lei.


Em cada ordem jurídica haverá um núm ero variável de leis — poucas
no Reino Unido, muitas em França... O grau de porm enorização das leis

(1) Teoria gene rale delia interpretazione.


339

é também diverso: na A lem anha há a tendência para se chegar nas leis a


pormenores de regulam entação, enquanto noutros países se aspira apenas
a um a fixação dos princípios gerais.
Seja qual for a técnica que se seguir, o certo é que as leis são im poten­
tes para regular todas as situações da vida que exigem disciplina jurídica.
Surgirão sempre hipóteses, que podem até ser m uito num erosas, que não
são objecto de qualquer específica previsão. Diz-se então que há um a lacuna,
Como é natural, não há lacuna da lei quando a própria lei indica um
direito subsidiariamente aplicável. E o que se passa quando o Código
Comercial m anda aplicar subsidiariamente o direito civil. Pode por isso
haver uma lacuna do Código Comercial que não seja um a lacuna da lei em
geral, desde que na lei civil se encontre um a norm a aplicável àquele caso (1).

II — Poderá estranhar-se que a ordem jurídica contenha lacunas, que


não preveja logo todas as situações relevantes. Mas a lacuna é urna fata­
lidade. Há numerosas razões que concorrem para a existência de lacunas:

1) Deficiência de técnica legislativa


E extremamente difícil prever logo de início todas as situações possíveis.
As falhas de previsão são freqüentes, até em pontos de grande relevância.

2) Intenção de não regular desde logo


Sobretudo em matérias novas, o legislador, conscientemente, deixa
por vezes certos pontos por regular. Pode fazê-lo por duas razões:
a) por se tratar de matéria ainda muito fluida, e ser arriscado encerrá-la
desde logo num regime rígido. Deixam-se então certos sectores à reacção
da prática, apesar das dificuldades que assim se suscitam a est?. E que o
legislador confia mais na capacidade de acom odação da vida que nas suas
próprias valorações;
b) por querer deixar aos órgãos de aplicação do direito, e sobretudo
aos tribunais, um espaço livre em que se pensa ser útil que eles dêem o seu
contributo, através da integração da lacuna.

3) Imprevisibilidade

A evolução incessante* das circunstâncias faz com que a lei feita hoje
se vá aplicar am anhã em condições muito diversas. E pode acontecer mesmo
que situações de todo imprevisíveis no m om ento da elaboração da lei exijam
depois tratam ento próprio. A circulação aérea requer disciplina, mas quando

(1) Sobre a relação de subsidiariedade entre regras em geral, cfr. D ias M arques,
Introdução ao E studo do D ireito, n.° 40.
surgiu provocou uma lacuna, pois as leis sobre a circulação terrestre ou
m arítim a não lhe eram em geral aplicáveis.
Basta a referência a esta últim a categoria de casos para dem onstrar o
que atrás dissemos, quanto à inevitabilidade da existência de lacunas da lei.

4) Interpretação ab-rogante
Enfim, a actuação da interpretação ab-rogante, de que falaremos em
m omento posterior, pode revelar a existência de lacunas, quando conduzir
à liquidação dos preceitos em contraste, ou do preceito para que se não
encontra um sentido.

JI1 — Mesmo quando se verifica um a lacuna, o caso concreto deve


ser resolvido. É então necessário integrar a lacuna. Esta tarefa é regu­
lada fundamentalmente pelos arts. 10 do Código Civil português e 4.° da
Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro, e os processos que se nos apre­
sentam são processos normativos: deve-se primeiro buscar uma regra, e
por meio dela resolver os casos omissos. A integração das lacunas surge
por isso como processo de determinação da norm a aplicável. D ela fala­
remos em m omento posterior.
Mas a lacuna pode ser também resolvida pela interpretação enunciativa,
a que dedicaremos o capítulo III.

202. Interpretação, integração e aplicação

I — N ão queremos deixar de observar desde já que de interpretação


se fala em direito em sentido amplo e em sentido restrito.
Em sentido restrito, a interpretação opõe-se à integração das lacunas,
enquanto que em sentido amplo a interpretação abrange quer aquela quer esta.
O jurista pode abordar o material norm ativo movido por duas preo­
cupações muito diversas: ou chegar à solução do caso concreto, ou deter­
m inar o sentido dum a fonte. Se actua com o objectivo de encontrar a
solução dum caso faz interpretação em sentido am plo: se é directam ente
solicitado por uma fonte, por exemplo, se está a tom ar conhecimento do
último número do jornal oficial, faz interpretação em sentido restrito.
A interpretação em sentido amplo é a busca, dentro do ordenam ento,
da regra aplicável a uma situação real ou suposta. O intérprete terá então
de passar em revista determinadas fontes até chegar a uma de duas conclusões
— a de que há ou a de que não há regra que directam ente contemple o caso.
Se há, fixa-se na fonte que traz essa norm a, e faz interpretação em sentido
restrito. Se não há, deverá proceder à integração dessa lacuna do sistema,
ou fazer interpretação enunciativa. Em todos os casos, porém , para se
341

poder chegar à afirmação de que há ou não regra aplicável pressupõe-se a


prévia interpretação (em sentido restrito) das fontes que o intérprete foi
sucessivamente examinando.
Vê-se por este processo com o a interpretação em sentido am plo pode
desembocar na interpretação em sentido restrito. Mas o intérprete pode
iniciar directam ente esta, se tom a a segunda atitude indicada: se tom a a
fonte, para captar o respectivo sentido.

II — Norm alm ente, quando se fala apenas em interpretação, quer-se


significar a interpretação em sentido restrito, contrapondo-a à integração.
Assim procede também a lei (1), ao menos na generalidade dos casos. E efec­
tivamente, há a necessidade de diferenciar profundam ente este processo da
integração, e nenhum a term inologia há que perm ita dispensar esta.
Interpretação será, neste sentido, a tarefa que se apoia sempre num a
fo n te existente, e procura justam ente fixa r o sentido desta. Quando quiser­
mos referir a interpretação em sentido am plo falaremos antes na determ inação
da regra, com o fizemos na epígrafe deste capítulo.
Q uanto à integração, não há por natureza uma fonte em que o intér­
prete se possa apoiar, e todavia há um a situação que reclama um a solução
jurídica. Diz-se que há um a lacuna. Pressupõe-se que o jurista conhece
as regras existentes e procura, por processos admitidos pelo ordenam ento
jurídico, a m aneira de resolver a situação lacunosa. Fala-se então em inte­
gração, pois se visa «integrar» o sistema de norm as existente.

III — Tam bém a determinação da regra aplicável se não confunde com


a própria aplicação.
Pela prim eira busca-se determ inar quais as regras existentes no ordena­
m ento jurídico, através do exame do conjunto de fontes que actuam naquele
ordenam ento.
A aplicação da regra confunde-se por vezes com esta operação, mas
indevidamente. Para haver aplicação tem de se pressupor conhecida a
regra, portanto a aplicação é logicam ente posterior à determ inação da regra.
O que se procura então é realizar a aplicação da norm a ao caso concreto,
na fórm ula corrente, vencendo as dificuldades que este último momento
pode trazer. N ão vale a pena aprofundarm os agora esta fórm ula, pois é
m atéria de que nos ocuparemos no capítulo dedicado à aplicação do direito (2).

(1) Cfr. arts. 9 .” e 10.° do C ó d ig o C ivil português.


(2) E sta distinção tam bém está fundada na lei portuguesa. A ssim , o art. 8.°/3
fala em «interpretação e aplicação uniform es do direito», distinguindo pois duas actividades.
Para além disso, os arts. 12 e 13 referem um a form a particular de aplicação, a aplicação
das leis no tem po, que separam perfeitam ente dos p rocessos de determ inação da regra
aplicável.
342

203. Aspectos comuns

I — Estes são os três processos pelos quais se procede à determ inação


da regra aplicável. Tendo em atenção a relação entre a norm a e as fontes,
diremos que na interpretação a regra está expressa nas fontes, na interpretação
enunciativa a regra está implícita e na integração a regra não está nem expressa
nem implícita nas fontes.
Estes processos serão estudados em especial nos capítulos seguintes.

II — Mas devemos fazer ainda uma observação de ordem geral: estes-


processos tanto podem ter como ponto de partida a lei com o qualquer outra
fonte do direito.
N ormalmente, fala-se apenas de interpretação da lei ( 1), com o se fosse
a única fonte do direito a dever ser interpretada. M as esta posição não
se justifica. Toda a fonte do direito representa do mesmo m odo um a exte­
riorização que tem o sentido de conter um a regra, e em todos os casos é
necessário, por interpretação, determ inar qual é essa regra.
O ponto de partida é assim m uito variado. Temos o texto ou fórmula,
escrito ou oral, no caso da lei, mas que contém um dado sentido: da mesma
form a podemos ter práticas sociais, como no costume (2). Se a jurispru­
dência for fonte do direito, a fonte pode estar na decisão do tribunal, ou no
conjunto de decisões jurisprudenciais. Há portanto sempre um material
de base, capaz de suportar a análise tendente a chegar a um elemento que
já não é fáctico — a regra.

III — Também no que respeita à integração se fala só em lacunas da


lei (3), mas indevidamente, traduzindo aqui um a orientação legalista.
O nosso ponto de vista deve ser mais vasto: o que se deve ter em conta são
as lacunas de todo o sistema jurídico.
Com efeito, pode haver lacuna da lei e não haver um a lacuna do sistema
jurídico. Basta que outra fonte do direito, o costume, por exemplo, traga
a regra aplicável àquela situação. Nessa altura, sempre há na ordem ju rí­
dica uma regra. Pode falar-se de lacuna da lei, mas o problem a não será
de integração, no sentido técnico que aqui nos ocupa, mas de aplicação
directa de um a regra, cuja origem não é legal, àquela situação que não é

(1) É esta a epígrafe do art. 9.° do C ódigo Civil português.


(2) Larenz, M ethodenlehre, II, 3, 3, c), trata expressam ente da interpretação do
costum e.
(3) Veja-se a epigrafó do art. 10 do C ó d ig o Civil português e o art. 4.° da Lei de
Introdução ao C ódigo Civil brasileiro.
343

regulada por lei. Já referimos este fenômeno, ao falar do costume praeter


legem. Ele interessa às relações entre regras de diversas proveniências, e
não propriam ente à integração.
0 problema só surge quando não há, em todo o sistema jurídico, regra
que contemple especificamente aquela situação.

IV — Mais ainda: como veremos, a integração dum a lacuna pode fazer-se


por analogia com um a regra actual.
Essa regra tanto pode ser legal como consuetudinária, ou qualquer
outra existente no ordenam ento jurídico (1).

204. Interpretação doutrinai e autêntica

1 — Esta é a primeira grande distinção que temos de ter presente, e


que nos perm itirá num primeiro momento deixar de fora a interpretação
autêntica, que obedece a princípios muito especiais. O critério reside antes
de mais na força norm ativa da interpretação.
Interpretação doutrinai é a que não tem qualquer repercussão sobre
as fontes em causa. Refere-se-lhe o Código Civil português no art. 6.°
(é a interpretação realizada por qualquer pessoa) e no art. 8.°/3 (é a inter­
pretação realizada pelo julgador). A expressão interpretação doutrinai
não deve pois ser entendida com o a interpretação a cargo da doutrina —
qualquer pessoa, ou o técnico de direito, ou o executor de um acto adm inis­
trativo, ou o juiz, todos fazem interpretação doutrinai (2).

II — Interpretação autêntica é a que é realizada por uma fonte que não


é hierarquicamente inferior às fontes interpretadas.
Esta fórmula está em parte dependente do que dissemos sobre a hierar­
quia das fontes de direito, mas supomos que pode ser compreendida por
si. Ela é a que corresponde à previsão do art. 13/1 do Código Civil por­
tuguês, que nos dá, a propósito de um caso particular, o critério desta inter-

(1) R ecentem ente, um acórd ão do Suprem o Tribunal de Justiça português excluiu


a aplicação por analogia de um a ssento (A c. de 18 de Abril de 1969, B .M .J., n .° 186, 190)
m as erroneam ente. Veja-se a ano ta çã o crítica de V az Serra, na Rev. Leg. Jur., 103, 360.
(2) Para fugir a esta am bigüidade, poderia distinguir-se interpretação autêntica,
interpretação doutrinai e interpretação vinculativa, sen do a últim a a que se im pusesse a
outras pessoas, co m o no ca so do art. 8.°/3: a interpretação que aí se tem de fazer destina-se
a uma decisão vinculativa. C o m o a nossa finalidade é porém distinguir a interpretação
autêntica, não vale a pena autonom izar este n o v o term o. T am bém contra a tripartição,
G uilherm e M oreira, Instituições, vol. I, pág. 38: é dentro da interpretação doutrinai que
ele distingue a privada e a judicial.
344

pretação: lei interpretativa é a que realiza interpretação autêntica, e há inter­


pretação autêntica quando a nova lei se integra na lei interpretada.
Como a compreensão da interpretação autêntica está dependente de
noções que só posteriormente serão ministradas e a sua utilidade principal
se relaciona com o problem a da vigência temporal da lei, deixamos o estudo
mais aprofundado dos seus requisitos para esse capítulo.

III — Se bem que de interpretação autêntica se fale norm alm ente com
referência à interpretação em sentido restrito, ela abrange na realidade toda
a interpretação em sentido amplo, e por isso a consideram os neste lugar.
Neste sentido a fonte que procede à interpretação autêntica está subordinada
a<5 conjunto das fontes vigentes.
Quando dissemos atrás que o assento realiza interpretação autêntica,
tínham os em vista este facto, que nos perm itiu qualificar o assento como
lei interpretativa.
E nestes termos também parece poder-se aceitar a qualificação feita
por Betti da actuação dos jurisconsultos rom anos cujas opiniões eram vin-
culativas como interpretação autêntica (1), pois a doutrina era um a fonte,
mas subordinada ao conjunto de fontes preexistentes.

(1) Posição repudiada por Raul Ventura, D ireito Romano, 109, por partir de pres­
su p o sto s diversos.
CAPITULO 2
i

Interpretação

205. A interpretação é sempre necessária

I — Toda a fonte necessita de interpretação para que revele a regra


que encerra.
H á um a certa tendência para confundir «interpretação» e «interpretação
complexa», e supor que se a fonte é clara não há motivo para falar de inter­
pretação. H á mesmo um brocardo que traduz esta orientação: in claris
non fit interpretatio. Perante um texto categórico da lei, por exemplo, o
intérprete limitar-se-ia a tom ar conhecimento.
Mas esta posição é contraditória nos seus próprios term os, pois mesmo
para concluir que a disposição legal é evidente foi necessário um trabalho
de interpretação, em bora quase instantâneo, e é com base nele que se afirma
que o texto não suscita problem as particulares. Se toda a fonte consiste
num a m atéria e procura transm itir um sentido ou conteúdo intelectual, a
que chamaremos o seu espírito, tem sempre de haver um a tarefa intelectual,
por mais simples que seja, como condição para extrair da m atéria o espírito
que a m atéria esconde.

II — Devemos acrescentar que a ignorância deste processo leva a supor


que são raros os problemas trazidos pela interpretação. Parece, nom eada­
mente no que às leis respeita, que a solidez e a segurança do texto afastam
as dificuldades. Por isso o leigo reage mal quando o jurista lhe afirma que
346

se discute qual a solução de dado caso: «então isso não está na lei?» Mas
esta insegurança relativa é uma fatalidade resultante da generalidade que é
característica da previsão normativa.
Cabe antes de mais à interpretação resolver estes problem as. P ar­
tindo da fórmula, deverá determinar qual o sentido autêntico da disposição
legal. E inútil é acentuar como é delicada esta tarefa que perm itirá res­
ponder com objectividade e precisão a cada um a das dúvidas suscitadas.
Isto mesmo sem entrar em conta com problem as relacionados já com a apli­
cação, de que falaremos depois.

III — Nesta base, é compreensível que a interpretação seja um a tarefa


sempre presente, pois é condição imprescindível da determ inação de toda
a regra.
Por isso são absurdas certas posições que historicam ente se repetem,
do im perador Justiniano a autocratas modernos, e pelas quais se proíbe
a interpretação da lei. Faz-se assim porque se desconfia sempre do intér­
prete, e se tem a convicção de que na lei ficou transparente o sentido que se
quis imprimir. Por alturas da Revolução Francesa estiveram tam bém na
m oda orientações semelhantes: certos autores pretendiam excluir a inter­
pretação para que o arbítrio dos tribunais não se viesse substituir à segurança
da lei revolucionária. Mas, como dissemos, esta posição é antes de mais
errônea logicamente, pois sem interpretação não se consegue nunca retirar
do texto o sentido que encerra e, portanto, saber qual é a regra.

206. Interpretação e ordenamento

I — A interpretação parte pois dum elemento determ inado, dum a fonte,


e procura exprimir a regra que daquela é conteúdo. M as isto não nos pode
fazer esquecer que a interpretação é necessariamente um a tarefa de conjunto:
pano de fundo da interpretação é sempre o ordenam ento em globo. O sen­
tido de cada fonte está em necessária conexão com o de todas as outras,
pelo que será adulterado se o pretendermos tom ar isoladam ente.
Por isso pôde dizer Santi Rom ano que «o que vulgarm ente se chama
interpretação da lei... é sempre interpretação, não de um a lei ou norm a
singular, mas de um a lei ou norma que se exam ina atendendo à posição
que ocupa no ordenamento jurídico em globo: o que quer dizer que o que
efectivamente se interpreta é esse ordenam ento e, com o conseqüência, a
norm a singular» (1).

(1) Framm enti, pág. 124.


347

De facto, a interpretação é sempre revelação de um trecho da ordem


global, pelo que esta é condição da relevância de cada elemento, e determina
o seu significado. Para dar um exemplo, quando códigos europeus foram
postos em vigor em países asiáticos ou africanos o sentido objectivo do texto
sofreu necessariamente alterações: as fórmulas legais, integrando-se na ordem
total, ganharam desta, por repercussão, um sentido frequentemente m uito
diverso do originário (1).

II — N ão devemos porém chegar ao exagero de esquecer que a inter­


pretação tem como ponto de partida uma dada fonte do direito, cujo sentido
se procura justam ente apurar — seja esta um a lei, um costume, um a decla­
ração doutrinária... N ada adiantaria perder este precioso ponto de refe­
rência em troca dum a indistinção, afirmando-se incolorm ente que o objecto
de cada tarefa interpretativa seria sempre o ordenam ento. O ordenamento
é o traço de ligação de todos os elementos, mas cada esforço de interpretação
arranca dum a fonte dada, e recorre aos outros elementos na medida em que
forem relevantes para a finalidade em vista (2).
E bom fixarmo-nos nesta base de bom senso até porque o resultado
da interpretação pode ser negativo: pode chegar-se à conclusão de que naquela
«fonte» nenhum a regra se encontrava.

III — Para com preenderm os devidamente esta últim a afirmação, deve­


mos recordar que dissemos já que a interpretação jurídica se qualifica como
um a interpretação em função norm ativa (3). Efectivamente, a interpretação
jurídica não se destina a um a recognição de um qualquer conteúdo já pensado,
mas destina-se a form ular princípios para a acção, regras. Pode por isso
chegar-se à conclusão de que da «fonte» em análise não resulta qualquer
regra. N ão basta pois dizer o que é, tem de se dizer o que resulta de novo
p ara a ordem jurídica.
Adiante, ao estudarm os a cham ada interpretação ab-rogante, teremos
oportunidade de esclarecer melhor estes princípios. De todo o modo, esta
vinculaçao da ciência jurídica à determinação de regras p ara com andar a
acção hum ana justifica por si a qualificação, que já lhe atribuím os, de ciência
prática.

(1) Cfr. a nossa Tipicidade, n.° 72, IV.


(2) Por isso repudiám os já , supra, n.° 133, a identificação da fonte do direito com
a ordem social, tendo tom ado antes c o m o pon to de partida os elem entos singulares que
pod em os abstrair no tod o, e que são ju stam en tç as fontes.
(3) Cfr. a este propósito Betti, T eoria, II, § 54.
348

207. Regras legais sobre interpretação

I — Vejamos agora como se realiza a interpretação.


Somos imediatamente impressionados pelo facto de as próprias leis
incluirem frequentemente disposições sobre a m aneira de fazer a interpre­
tação. Estas disposições são aplicáveis em princípio a toda a ordem jurídica,
mesmo quando referidas aos códigos civis: já acentuámos que as disposições
gerais contidas no início do Código Civil ou da Lei de Introdução têm carácter
genérico.
Deve-se preliminarmente discutir qual a exacta valia jurídica destas
regras.
*
II — Autores houve que afirmaram que os preceitos legais sobre inter­
pretação não representariam afinal verdadeiras regras jurídicas, mas meras
regras técnicas (1) ou conclusões doutrinárias (2). A interpretação seria
aquilo que é, independentemente da posição que porventura tome o legis­
lador: far-se-ia necessariamente seguindo as regras lógicas, os cânones gerais
do pensamento jurídico. E o absurdo da consagração legal resultaria de
as próprias disposições sobre a interpretação deverem ser interpretadas,
o que só se pode fazer à luz das regras de interpretação prévias à lei.
Mas a polêmica parece estar ultrapassada (3). Cremos na verdade
que os princípios teóricos sobre a interpretação não impõem um a solução
única, mas sim caminhos possíveis.
Cabe à lei determinar qual o método a adoptar em definitivo. Assim,
o art. 9.°/l do Código Civil português determ ina que na interpretação devem
ter-se em conta as circunstâncias em que a lei foi elaborada: mas poderia
ter tom ado orientação oposta, que seria igualmente vinculativa para o
intérprete.
O facto de a própria regra sobre interpretação dever ser interpretada
é um a objecção meramente formal e que nem nos parece ser verdadeira,
pois a interpretação é função de conjunto. N ão podemos m arcar um antes
e um depois, dado que os vários elementos a que se recorre reagem uns sobre
os outros durante todo o processo até se atingir o resultado final.

(1) Relata esta orientação José H. Saraiva, A postilha, n.H 24.


(2) Carlos M axim iliano, H erm enêutica, n.os 100 e seguintes. C ontra, A líp io Sil­
veira, H erm enêutica, I, n.os 2 e 3.
(3) É elucidativo que Betti, o autor qu e m elhor co lo co u o problem a geral da interpre­
tação, defenda vivam ente o carácter imperativo destas regras, acentuando que os critérios
ind icados por lei são realmente vincutotivos para o intérprete. Cfr. Interpretazione delia
legge e degli a tti giuridici, § 39.
349

III — O problem a tem im portância perante o direito brasileiro. A crí­


tica de Dias Ferreira ao art. 11 do Código Civil português de 1867, consi­
derando-o mais próprio de livro de ensino do direito que de livro de leis foi
acolhida por Clóvis Beviláqua, que tam bém escreve que «não com petia ao
Código dar as regras de interpretação, a que deve obedecer o juiz» (1). Em
conseqüência, a Lei de Introdução de 1942 eliminou os antigos arts. 5.° e 6.°,
não contendo nenhum a disposição que se refira exclusivamente à interpre­
tação em sentido restrito (veremos a seguir o que pensar do art. 5.°). Mas
a supressão é devida a esta posição doutrinária, e não a m udança de enten­
dimento.
Pelo contrário, o Código Civil português, na esteira do Código Civil
italiano e desde logo do Código de Seabra, contém regras sobre interpretação.
É fundamental a do art. 9.°, que estabelece elementos sobre os quais se pode
arquitectar um sistema completo de interpretação.

208. A letra

I — Com o se faz a interpretação? A que elementos se pode recorrer?


N ote-se que o que está em causa é a interpretação doutrinária: a interpretação
autêntica deixou de nos interessar no âm bito deste capítulo.
Todos reconhecerão que o ponto de partida da interpretação tem de
estar na letra. Logo o art. 9.°/l do Código Civil português fala na letra
e no pensamento legislativo, como aspectos diferentes. O legislador exprimiu
assim o que correntemente se designa por letra e espírito, como elementos
da interpretação de qualquer texto. Isto m ostra aliás que é a interpretação
da lei que está em causa neste preceito, abandonando-se outras fontes do
direito, como o costume. Estes princípios são todavia aplicáveis, directa­
mente ou por analogia, a todas as categorias de leis materiais e à jurispru­
dência vinculativa.

II — A interpretação do texto não pode deixar de assentar nas palavras


desse texto, veículo indispensável para a comunicação de um sentido. Cada
palavra tem o seu significado ou os seus significados: e com o a sua conju­
gação não é arbitrária, do conjunto de palavras — do texto — logo resul­
tarão um ou vários sentidos possíveis. Se tom arm os um texto num a língua
desconhecida, o conjunto das palavras nada nos diz: mas de um texto em
língua portuguesa desprende-se im ediatam ente um sentido. Só em casos

(1) Código C ivil C om entado, 8.a ed ., art. 5.°/n.° 3 e 'a r t. 6.°/n.° 1 (da L ei de Intro­
dução).
350

extremos este não resultará, e o intérprete terá de se resignar a concluir que


o texto não é veículo adequado de qualquer conteúdo. Assim acontecerá
se por salto tipográfico ou gralha o texto apresentar um a obscuridade insa­
nável (1).
A letra não é só o ponto de partida, é tam bém um elemento irremovível
de toda a interpretação (2). Quer isto dizer que o texto funciona tam bém
como limite da busca do espírito. Os seus possíveis sentidos dão-nos com o
que um quadro muito vasto, dentro do qual se deve procurar o entendim ento
definitivo da lei. Para além disto porém não se estaria a interpretar a lei
mas a postergá-la, chegando-se a sentidos que não encontrariam na letra
qualquer apoio.
Esta conclusão não nos deve levar à afirmação oposta, de que a inter­
pretação se deve lim itar à escolha de um dos possíveis sentidos literais do
texto. Em breve veremos que se pode preferir à letra, o sentido que a letra
traiu. Mas terá de se assentar na valoração de elementos que o texto, mesmo
que defeituosamente, refere. Se se prescinde totalmente do texto já não
há interpretação da lei, pois já não estaremos a pesquisar o sentido que se
alberga em dada exteriorização.

III — Do que dissemos deriva que do exame literal do texto não resulta
a solução de todos os problemas de interpretação. Desde logo porque o
elemento literal pode ser ambíguo. H á palavras com várias acepções; e da
conjugação de palavras, mesmo unívocas, podem resultar várias acepções
literais possíveis.
Assim, se a lei fala em móvel, o que se deve entender por tal? Será,
na acepção mais corrente, uma peça de m obiliário? Será, no sentido técnico-
-jurídico mais preciso, toda a coisa que não estiver integrada na terra ou
noutro imóvel com carácter de perm anência? Utilizar-se-á alguma outra
acepção de que a palavra é susceptível, por exemplo, será móvel tudo o que
se possa deslocar espacialmente sem detrim ento? A mera consideração da
letra não nos resolve estes problemas: só outros elementos perm itirão um a
resposta. Isto quer dizer que a letra não permite mais, nos casos normais,
do que chegar a um catálogo de sentidos igualmente possíveis.

(1) São freqüentes as rectificações, publicadas nos jornais oficiais, a textos legisla­
tivos anteriorm ente vindos a lume. Supom os que a essas rectificações se aplica o regim e
que posteriorm ente indicarem os com o próprio da lei interpretativa. Cfr. tam bém o que
dissem os a propósito da publicação {supra, n.° 151).
(2) O art. 9.0/2 do C ódigo Civil português diz-n os que não pode ser considerado
pelo intérprete um pensam ento le g is la tiv o que não encontre na letra um m ínim o de corres­
pondência, ainda que imperfeitamente expresso. Especifica-se: correspondência verbal,
mas nào poderia tratar-se de outra, p °'s a Ietra é um conjunto de palavras.
351

IV — Mas — mais grave ainda — letra e espírito podem não coincidir.


Com o veremos de seguida, impõe-se então o sacrifício da letra.
São portanto muito graves as limitações que a letra defronta. Mas
há um elemento favorável à letra: deve-se presum ir, não só que o legislador
consagrou as soluções mais acertadas, com o ainda que soube exprimir o
seu pensamento em termos adequados. Quer isto dizer que não podem os
com ligeireza afirmar que há um a infelicidade de expressão: devemos partir
do princípio que o texto exprime o que é natural que as palavras exprimam,
pelo que se pode afirmar que o entendim ento literal será normalmente aquele
que virá a ser aceite (1).

209. O pensamento legislativo. Objectivismo

I — Além da letra, devemos considerar o sentido ou espírito da lei.


Mas também o entendimento deste suscita dificuldades graves.
É que neste domínio se defrontam um a orientação subjectivista e um a
orientação objectivista. Para a primeira, o sentido da lei será o sentido do
legislador; para a segunda, o sentido da lei é um sentido objectivo, que não
está condicionado por aquilo que o legislador possa ter pensado.
Esta contraposição não é específica da interpretação jurídica. Podemos
dizer que toda a obra hum ana pode ser apreciada tendo-se em conta, ou o
sentido que o seu criador pretendeu transm itir, ou o sentido que dela objec-
tivamente se desprende. Assim, um texto literário pode ser apreciado subjec­
tivamente, perguntando-se o que o autor quis dizer (e então são indispen­
sáveis largos conhecimentos da personalidade do criador e da circunstância
histórica) ou objectivamente, perguntando-se o que significa por si, ao ponto
de a intenção do autor ficar reduzida a um elemento secundário de inter­
pretação. A obra pode efectivamente ter transcendido a intenção do seu
autor, ou pelo contrário ter ficado aquém desta. Tam bém o executante
musical pode fazer uma interpretação objectiva ou subjectiva de uma ob ra...
Qualquer destes elementos pode ser tido em conta, devendo apenas obser­
var-se que modernamente, ao menos na generalidade dos casos, a busca
do sentido imanente na obra se tende a preferir à do sentido subjectivo do
seu autor.

(1) A regra consta do art. 9.°/3 do C ódigo C ivil português. É todavia necessário
não exagerar o alcance deste preceito. Sem elhante presunção não dispensa todas as outras
tarefas de interpretação q Ue referiremos, e só em conju nto com os seus resultados pode
ser devidam ente utilizadu. N ã o se esqueça ainda qu e do m esm o preceito consta outra
presunção, respeitante ao espírito, a que aquela se subordina: a de que o legislador c o n ­
sagrou as soluções m ais acertadas.
352

II — Também no direito a querela entre objectivismo e subjectivism o


é grande. No século passado, o subjectivismo dom inou largam ente. Os
intérpretes empenhavam-se por isso em descobrir todos os elementos, como
relatórios, passos da discussão parlam entar, etc., donde se pudesse inferir
qual o sentido que o legislador quisera atribuir à lei.
Essa posição foi hoje em geral desalojada pelo objectivismo. À posição
subjectivista, pelo menos tal como praticada no século passado, opõe-se
várias ordens de críticas.
1) A vontade do legislador é com frequência incognoscível: muitos
antecedentes do texto não são públicos ou não são susceptíveis de prova.
2) Noutros casos há uma intervenção de várias pessoas na feitura
da lèi: qual das intenções, que podem ser inteiramente divergentes, deve
ser considerada a intenção do legislador? Se há um projecto, que é dado
a conhecer e sujeito a discussão pública, que é em endado, que é debatido
pelas Câmaras (1), alterado e enfim aprovado, que é prom ulgado pelo Chefe
do Estado, onde se encontra a vontade do legislador? Com o será possível,
no meio de tantos intervenientes, determ inar qual é a intenção decisiva? (2).

III — Por nossa parte, aderimos sem reservas à tese objectivista, como
é hoje orientação dominante.
Para além das razões já atrás apontadas, parece-nos decisivo o facto
de a lei só valer uma vez integrada na ordem social. É um a fórm ula pro-

(1) É norm alm ente sujeito a com prom issos em que fórm ulas idênticas são utilizadas
para objectivos diversos.
(2) O art. 9.° do C ódigo Civil português contrapõe à letra o «pensam ento legislativo».
É uma fórmula que não é habitual. Que posição podem os considerar acolhid a?
D issem o s já que a expressão pensam ento legislativo é am bígua. Se considerarm os
os antecedentes deste trecho, veremos que a am bigüidade é inten cional: não se quis tom ar
partido na querela objectivism o-subjectivism o.
N o A nteprojecto de M anuel de A ndrade aparecia um art. 9.°/IV d on d e se inferia
a orientação subjectivista: «Os cham ados trabalhos preparatórios ou m ateriais da lei não
têm qualquer autoridade enquanto não devidam ente publicados» (cfr. Boi. M in. Just.,
n.° 102, 145). D aqui se retiraria que estes materiais, com a publicação, passavam a ter
autoridade.
D isp o siçã o sem elhante se manteve até ao Projecto de C ódigo C ivil, m as foi criticada,
não só por considerações de praticabilidade co m o por nã o parecer justificada esta co n sa ­
gração im plícita do subjectivism o. Foi por isso elim inada do texto definitivo.
C o m o resultado, não há hoje nenhum elem ento donde se possa inferir um a o p ção
por algum a das posições em presença O então M inistro da Justiça, A n tu n es V arela, na
sua com un icação à Assem bleia N acional de 26 de N ovem bro de 1966, se bem que tenha
exprim ido decididam ente a sua preferência pela orientação subjectivista acen tuou que o
C ó d ig o , «colocando-se deliberadamente acim a da velha querela entre subjectivistas e objec-
tivistas», não consagrava nenhuma orientação: D o Projecto ao Código C ivil, n.os 5 e 6.
Esta com un icação está publicada no M in. Just., n.° 161.
353

duzida para vigorar aí, e que contém um sentido condicionado pela reper­
cussão nessa ordem. Esta integração da lei na ordem social im porta o
apagar do legislador após o acto de criação norm ativa, tornando-se mais
im portante verificar qual o sentido que tom a na ordem social que visa com ­
por, do que o sentido pretendido por quem a fez.

210. Actualismo

I — Pode ainda entender-se que o sentido da lei é:


— o sentido actual
— o sentido histórico, portanto o sentido próprio do momento
da criação da lei.
Assim se distingue uma orientação actualista dum a orientação histo-
ricista.
Esta querela não se confunde com a anterior. Pode haver um objec-
tivismo actualista (que procura o sentido objectivo da lei, na circunstância
actual) ou historicista (que procura o sentido objectivo da lei, mas no momento
da criação desta). Também o subjectivismo pode ser actualista ou histori­
cista (1).

II — As orientações historicistas também são m odernam ente objecto


de muitas críticas. Nota-se sobretudo que teriam de se considerar inapli-
cáveis no momento presente muitas das leis que todos entendem em vigor,
porque as circunstâncias de hoje eram imprevisíveis na altura da sua for­
mação. Quer dizer, temos de considerar lacunoso tudo o que o legislador
não pôde prever no momento da elaboração da lei. A previsão do contrato
de transporte não abrangeria o transporte aéreo, as disposições sobre res­
ponsabilidade civil do Código Civil brasileiro não se aplicariam aos acidentes
provocados pela energia nuclear... Reduzir-se-ia assim m uito consideravel­
mente o círculo das leis aplicáveis: o legislador não pode acom panhar a
evolução rápida das circunstâncias actuais, nem a pode prever, pelo que
com grande frequência teríamos de concluir que em relação a matérias im por­
tantíssimas não haveria afinal lei nenhum a.
É certo que para algumas correntes modernas o que acabam os de dizer
em tom de crítica albergaria afinal um a vantagem. Justam ente se as cir­
cunstâncias posteriores, que não possam ter sido previstas, caírem fora do
âm bito da lei, haverá lacuna e portanto m aior liberdade na sua superação,

(1) Veja-se o esquem a que José H. Saraiva (A p o stilh a, 9o) elaborou para ilustrar
a situação das várias escolas, em bora os term os não sejam rigorosam ente os que nos ocupam .
354

mediante o recurso aos processos que a seguir referiremos, a propósito da


integração das lacunas da lei. N ão deixa em todo o caso de ser estranho
que a multiplicação das lacunas possa ser concebida com o um mérito de
um a teoria sobre a interpretação da lei. Pelo menos, não se evita que a
insegurança que tal acarreta deva ser tom ada com o um a desvantagem da
solução proposta.
Mesmo no domínio que em qualquer caso é abrangido, a lei seria um
elemento necessariamente desactualizado, porque sempre dependente de um
circunstancialismo passado. Pode-se objectar que isto é a verdade, que
retrata a própria essência da legislação: o que se não pode é evitar que con­
cluamos que esta é um a conseqüência desfavorável da teoria historicista,
e que é afinal afastada pelas interpretações actualistas.
*
III — D ada a orientação que defendemos, o actualismo surge-nos com o
forçoso. Se afirmamos o primado da ordem social, se indicamos que a
lei só tem sentido quando integrada nessa ordem, estam os a fazer um a afir­
mação actualista. A justificação que damos é perm anente, e não válida
apenas no momento da formação da lei. A lei, um a vez criada, situa-se
numa ordem social, que é necessariamente viva, aberta a todos os estímulos
que nela provocam as alterações históricas. A fórm ula em que a lei se con­
substancia está fixada, mas o sentido dessa fórm ula pode variar, consoante
as incidências do condicionalismo donde arrancam as suas significações.
Um subjectivista que quisesse justificar o actualismo diria que a vontade
do legislador que deve ser tomada em conta não é a do legislador passado,
que emitiu a lei, mas a do legislador actual, que não a revoga porque pensa
que a fórm ula é adequada ainda para ordenar a vida social. N ós diremos
que o sentido objectivo da lei, tal como o podemos apreciar hoje, é o único
que conta, por vermos na ordem social a justificação daquela fonte.

IV — Pode estranhar-se que nos declaremos sem rodeios objectivistas


e actualistas quando é freqüente afirmar-se que a tendência m oderna vai
no sentido da superação das querelas tradicionais.
N a verdade, não cremos que superação possa ser confundida com ecle­
tismo, ou com indistinção dos vários termos. N as novas maneiras de con­
ceber a interpretação parece-nos que se inscreve justam ente o afastam ento
da ficção do pensamento do legislador como o critério da interpretação
certa, bem como a aceitação duma orientação actualista (1).

(1) N o que a este últim o aspecto respeita, supom os encontrar n o texto do art. 9.°,/]
do C ódigo Civil português a sua consagração. Entre os elem entos a qu e se m anda atender
na interpretação da lei estão as condições específicas do tem po em que é aplicada. E sta
355

211. A interpretação evolutiva

I — Aqui se inscreve o problem a da cham ada «interpretação evolutiva».


Ela foi afirmada, há já largos decênios, para exprimir este fenômeno da
relevância do evoluir das circunstâncias no conteúdo das regras jurídicas,
mesmo sem alteração da fonte. Esta pretensa evolução tem sido com batida,
como se não representasse mais que a maneira hipócrita de frustrar o sentido
da lei; mas tem também tido defensores ilustres, como Carnelutti, que afirma
que «não só a interpretação pode evoluir como não pode deixar de evoluir» (1).
A afirmação de um a interpretação evolutiva foi todavia com batida
por Santi Rom ano. Relacionando esta m atéria com a necessidade de inter­
pretar tendo em consideração o conjunto do ordenam ento (já referimos atrás
este aspecto) conclui que aquilo a que se cham ou evolução da interpretação
é afinal a evolução do ordenam ento, pois as norm as estão em estreita relação
com a essência da vida institucional, cuja evolução se repercute nelas (2).
Esta posição foi por sua vez severamente criticada por Betti, que a viu
como dependente de um a concepção do conhecimento como um a recepção
passiva de um a verdade já completa, e lhe contrapõe uma posição activa
do intérprete, que é cham ado a criar, a desenvolver o sentido da norm a.
Por isso a interpretação é evolutiva, porque a evolução resulta «de obra
persistente de interpretação e de aplicação» (3).

II — Betti terá razão na sua concepção do conhecimento, mas não


necessitamos de analisar este ponto. Por outro lado, deixa demasiado
na sombra que a fórm ula legal se situa necessariamente num circunstancia-
lismo que é indispensável para a sua com preensão, e que portanto o inter­
prete encontra efectivamente um a realidade em movimento quando procede
à obra de interpretação.
Por isso, também nós diremos que não é correcto falar de interpretação
evolutiva, porque a interpretação é sempre a mesma, e o que varia é o seu
objecto. Que a interpretação contenha em si um elemento de criação, adm i­
timos; que o labor dos juristas seja um dos factores que provoque a alteração

referência é totalm ente incom preensível fora dum entend im ento actualista. Porque um
actualista pode explicar que entre os elem entos auxiliares da interpretação figurem ele­
m entos históricos, com o verem os, m as para um historicista é inteiram ente aberrante que o
sentido de uma fonte possa variar por efeito de circunstâncias posteriores: ele estará imuta-
velm ente fixado desde o início.
(1) Teoria, pág. 286.
(2) Fram m enti, pág. 125.
(3) Cfr. Interpretazione delia legge e sua efficicnza evolutiva, pág. 184.
356

do ordenamento, admitimos. Mas o que evolui é antes de mais esse ordena­


m ento, e a fórmula tem objectivamente o sentido que lhe é dado pelo condi-
cionalismo em que se integra. Este varia constantemente, e faz variar o
resultado da interpretação; porém, isto, não porque a interpretação varie,
mas porque varia o objecto desta.

III — Podemos por isso dizer que a própria ordem jurídica, adaptando-se,
adapta a lei a necessidades novas (1). Por isso o intérprete procede correc­
tam ente, e não com hipocrisia, quando se preocupa com o sentido actual
da lei e abstrai de qual terá sido quando ela foi criada, há um século talvez.
Esta orientação é nuclear, e podemos dizer até que, longe de menosprezar
a lei, é frequentemente condição da sua sobrevivência, evitando que seja
eliminada pelo desuso.
É pois lícito considerar que o sentido de ontem deixou de ser o sentido
de hoje; ou que um texto reveste hoje um significado que o seu autor his­
tórico nunca poderia ter tido em vista. Assim se permite a adaptação de
velhas fórmulas a novas necessidades, e se evita ou se atenua o fenômeno,
sempre de recear, do envelhecimento das estruturas norm ativas (2).

212. Elementos gramatical e lógicos

I — H á a possibilidade de se verificar uma discrepância entre o que


resulta do elemento gramatical e o sentido ou espírito da lei (3).
M as antes de considerar em particular as hipóteses de tensão entre
letra e espírito, temos de verificar qual o seu significado.

(1) Veja-se um exem plo desta índole na nossa Tipicidade, n.° 72.
(2) C lóvis Beviláqua encontra a razão da interpretação evolutiva em m om en tos que
parece poderem reconduzir-se à occasio legis e ao elem ento teleológico, de que a seguir
falarem os: «O que interessa é determinar o fundam ento e a finalidade da lei, o porque e o
para quê. E acontece que este segundo m om ento não raro se m odifica sem determ inar
alteração no dispositivo da lei, que com as m esm as palavras passa a ter con teú d o diferente
do prim itivo. Tam bém o primeiro m om ento sofre o influxo da evolu ção, m as não com a
m esm a frequência»: Re v. Forense, X X X V II (1921), pág. 412.
(3) O art. 9.° do C ódigo Civil português abre justam ente com a afirm ação de que a
interpretação não deve limitar-se à letra da lei, m as reconstituir a partir dos textos o pensa­
m ento leg isla tiv o ... Quer dizer, directamente se reconhece a tensão entre letra e espírito,
e se prefere o espírito: com a reserva apenas de que esse espírito deve encontrar na letra
um m ín im o de correspondência (n.° 2). O sentido é pois o que mais interessa, é o verda­
deiro objectivo da interpretação.
A possibilidade duma divergência entre a letra e o espirito está ainda prevista no art. ] 1 ,
em que se fula de « in te r p r e ta ç ã o extensiva». Tam bém o C ódigo Penal português refere
esta figura. Posteriorm ente a examinaremos.
357

II — Frequentemente se fala num a interpretação literal, contraposta


a uma interpretação lógica, que se seguiria àquela. Mas verdadeiram ente
não nos parece correcto que se fale em duas interpretações diversas, quando
a tarefa da interpretação é una.
Antes devemos distinguir um a apreensão literal do texto, que é o pri­
meiro e necessário m om ento de toda a interpretação da lei, pois a letra é
o ponto de partida. Procede-se já a interpretação, mas nenhum a inter­
pretação fica ainda com pleta: há só uma primeira reacção em face da fonte,
e não o apuram ento do seu sentido. Mesmo que se chegue a afirmar que
o sentido do texto é de facto coincidente com a impressão literal (1) é neces­
sária um a tarefa de interligação e valoração, que escapa ao dom ínio literal.
Inversamente, não há nenhum a interpretação lógica que se separe da
análise do texto, pois após aquela prim eira impressão todo o progresso no
cam inho da apreensão do significado do texto se faz mediante uma interacção
constante do texto e de outros elementos de esclarecimento, até se chegar
à determ inação do espírito. A apreensão do sentido literal é imediatamente
acom panhada de um a elaboração intelectual mais am pla (2).
Estas dificuldades evitam-se se falarmos, não numa interpretação literal
e num a interpretação lógica, mas num elemento gramatical ou literal e em
elementos lógicos da interpretação, operação incindível. O elemento gram a­
tical é a letra, com o seu significado intrínseco; os elementos lógicos são
todos os restantes aspectos a que se pode recorrer para determ inar o
sentido.
Utilizamos o plural, elementos lógicos, por serem vários. M elhor
ainda seria não utilizar o qualificativo lógico, que não dá a noção exacta;
mas está já consagrado pelo uso.
É tradicional a tripartição doutrinária dos elementos lógicos nos sub-
elementos:
— sistemático
— histórico
— teleológico (3)

(1) E m esm o reconh ecendo que aqui não está cm causa apenas a lexicologia, mas
tam bém a sintaxe.
(2) A ssim , se se depara na lei com a palavra servidão, da consideração gramatical
resulta só que tanto pode significar escravatura co m o um direito lim itado de g o z o de prédio
alh eio; m as logo o espírito actua, determ inando o sentido efectivo naquela previsão.
(3) O art. 9 .°/l do C ó d ig o Civil português aponta neste sentido ao contrapor ao
elem ento gram atical três aspectos que devem ser tom ados em conta para desvendar o pensa­
m ento legislativo. Esses aspectos podem ser relacionados (em bora a correspondência não
seja perfeita) com esta tripartição doutrinária.
358

III — Elementos formalmente incluídos na fonte.


Não poderemos porém supor que estas categorias esgotam todos os
tipos de elementos a que podemos recorrer para apurar o sentido de um
texto. Pertencem por exemplo aos elementos lógicos as afirmações form al­
mente incluídas pelo legislador na própria fonte, sem todavia possuirem
carácter vinculativo directo. Estão neste caso os preâmbulos das leis (1)
e as soluções dos casos concretos que culminam na pronúncia de decisão
jurisprudencial vinculativa.
Em ambos os casos não representam comentários laterais, têm uma
autoridade que os faz ocupar melhor posição que os elementos históricos.
Podem servir assim de auxílio precioso para a interpretação de um texto.
Não esqueçamos que neles intervém ou convêm todas as entidades cuja
pronúncia é indispensável para a produção da regra.
Estes elementos, apesar da sua grande autoridade, não têm o mesmo
valor do texto. Em si, não têm o sentido de determinação, que é o próprio
de um a fonte do direito, mas o de esclarecimento (preâmbulo) ou de análise
de um caso com vista à sua solução e à declaração da máxima de decisão
que o rege. Por isso, se houver contradição é o que está no articulado ou
no texto da decisão judicial, conforme os casos, que prevalece.

IV — Têm já significado diverso textos cujos autores não são os mesmos


que os da parte dispositiva, embora tenham também carácter oficial e se
destinem a esclarecer fontes do direito (2).
Também as exposições oficiais de motivos, publicadas a propósito de
novos diplomas, e que por vezes vêm incluídas em publicações oficiais destes,
não têm o mesmo valor, a não ser que se revistam da mesma forma espe­
cífica de publicação que é exigida para a própria fonte do direito e provenham
dos mesmos autores. Se é este o caso, é-lhes aplicável o que se disse para
os preâmbulos dos diplomas legais.
Passamos agora a uma análise individualizada dos elementos sistemático,
histórico e teleológico.

(1) Cfr. Oswaldo Bandeira de M elo, D ireito A dm inistrativo, n.ü 332; Carlos Maxi-
m iliano, Hermenêutica, n.° 324, que aplica os m esm os princípios aos títulos, às epígrafes
e às rubricas da lei.
(2) Estão neste caso os sumários de decisões jurisprudenciais vinculativas, publi­
cados em colectâneas oficiais, c mesmo os sum ários dos diplom as legais publicados em jo r ­
nais oficiais. M anifestam um entendimento oficial do texto do diplom a, mas não fazem
fé, nem participam da especial autoridade dos elem entos sem i-vinculativos que acim a
referimos.
359

213. Sistemático

I — A interpretação deve ter em conta «a unidade do sistema jurídico»


(art. 9.°/l). Repetidamente acentuámos já que toda a fonte se integra
numa ordem, que a regra é modo de expressão dessa ordem global. Por
isso a interpretação duma fonte não se faz isoladamente, atendendo por
exemplo a um texto como se fosse válido fora do tempo e do espaço; resulta
pelo contrário da inserção desse texto num conjunto jurídico dado.
As relações que se estabelecem entre as várias disposições (1) podem
ser de:
— subordinação
— conexão
— analogia

II — Por via de subordinação relaciona-se o preceito isolado com os


princípios gerais do sistema jurídico, permitindo-se apurar a incidência que
esses princípios têm para o esclarecimento daquela fonte.

III — Por via de conexão, situa-se a fonte no sistema em que se integra.


Nenhum preceito pode ser interpretado isoladamente do contexto.
É natural que cada trecho duma lei surja como um momento do desenrolar
lógico de um plano, logo não se coloca casualmente dentro daquele con­
junto. Cada um dos números dum artigo só é compreensível se o situarmos
perante todo o texto do artigo, cada artigo perante os que o antecedem ou
imediatamente o seguem. Atender ao contexto é situar uma disposição.
Assim, suponhamos que se suscita a dúvida sobre a interpretação da
palavra pode, usada quando se admite a acção de investigação de paterni­
dade ou maternidade ilegítima. Significar-se-á uma mera possibilidade de
interposição da acção da investigação de paternidade ou maternidade ile­
gítima nesse prazo, que não exclua que o seja também em momento pos­
terior, ou uma limitação de possibilidade de actuar judicialmente, de modo
que a acção já não poderá ser proposta, uma vez decorrido esse prazo?
O confronto com as disposições anteriores permite uma resposta cate­
górica: estabelece-se até quando se pode instaurar a acção, logo o sen­
tido do preceito não é o de indicar que também dentro de um ano após a
cessação dos factos que contempla a acção se pode propor, mas o de limi­
tar àquele período a propositura da acção., Logo, a segunda hipótese atrás
enunciada é que é a verdadeira.

(!) Sobre esta matéria cfr. D ias M arques, Introdução, n.° 68/4.
24
360

Também se pode falar de um a conexão remota. Para além desta con-


catenação do preceito com aqueles que imediatamente o antecedem ou o
seguem interessa determinar o seu lugar no conjunto das fontes. Tem muito
interesse o sistema geral de um diploma, particularm ente se ele é longo,
para situar exactamente cada preceito.
Um exemplo desta ordem. Tomemos o princípio geral de que, por
morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento
da morte, independentemente da apreensão material da coisa (arts. 495
do Código Civil brasileiro e 1255 do Código Civil português).
Pode daqui inferir-se que é desnecessária a aceitação para o herdeiro
adquirir posse dos bens do falecido? O exame do contexto revela-nos que
semelhante ilação seria precipitada.
*
As disposições em causa surgem em matéria de posse, logo o natural
é que procurem apenas resolver o problema da continuidade da posse, esta­
belecendo que esta se não quebra com o fenômeno morte. Mas o saber-se
se é ou não necessária a aceitação para a aquisição da posse por parte dos
sucessíveis (isto é, os que podem vir a suceder) é problem a cuja solução se
deve procurar antes no capítulo do Direito das Sucessões; o contexto dá-nos
aqui uma indicação negativa sobre o problema em causa.
Por vezes, o contexto permite ultrapassar as variações de terminologia
a que o legislador pode ter sido levado por um a excessiva preocupação de
elegância, para não repetir muitas vezes a mesma palavra: o contexto revela
que se trata ainda do mesmo instituto, e não de um preceito autônomo, por
acaso ali perdido.

IV — Por via da analogia buscam-se semelhanças entre preceitos, inde­


pendentemente do sistema próprio da fonte em causa.
De analogia fala-se particularmente como de um método de integração
de lacunas do direito. Dele falaremos no capítulo seguinte. Mas a ana­
logia é um fenômeno geral, que também se manifesta na interpretação,
através dos chamados lugares paralelos.
Por lugares paralelos devemos entender as normas respeitantes a insti­
tutos ou hipóteses de qualquer modo relacionados com a fonte que se pre­
tende interpretar. A semelhança da situação ou da apresentação faz supor
que o regime jurídico também é semelhante. Assim, na interpretação do
contrato de mandato, os lugares paralelos que surgem a propósito do con­
trato de empreitada não podem deixar de ser tidos em conta.
Outro exemplo: a lei permite que a prescrição (causa de perda de um
direito por um continuado não exercício) seja invocada pelos credores e
por terceiros com legítimo interesse na sua declaração (arts. 174/III do
Código Civil brasileiro e 305/1 do Código Civil português).
361

Temos aqui uma hipótese anômala, em que alguém pode substituir-se


ao sujeito na actuação jurídica. Tal situação suscita, como é natural, muitas
dificuldades.
Para a solução destas dificuldades é necessário ter em conta os lugares
paralelos. Há outros casos em que igualmente se permite um a intervenção
desta ordem. Os arts. 1586 do Código Civil brasileiro e 2067 do Código
Civil português, por exemplo, permitem aos credores do herdeiro que repu­
diou a herança aceitá-la em nome do repudiante. Ressalvando-se embora
as diferenças dos dois casos, há um lugar paralelo de que se podem extrair
úteis ensinamentos.
Notemos que um a correcta utilização dos lugares paralelos leva a atender
à ordem jurídica no seu conjunto, e não só à ordem legal.

214. Histórico

I — Devem-se também ter em conta todos aqueles dados ou aconteci­


mentos históricos que expliquem a lei (1). Podemos por isso distinguir
dentro do elemento histórico:
— precedentes normativos
— trabalhos preparatórios
— occasio legis

II — Precedentes normativos.
Podemos distinguir precedentes:
— históricos
— comparativos
Temos pois, quer as regras que vigoraram no passado, e que são objecto
da História do Direito, quer as regras estrangeiras que vigoravam na época
da formação da lei e tiveram influência sobre ela. Já atrás dissemos como,
em certo sentido, se fala em fontes do direito para abranger estes elementos,
e como os resultados daquelas ciências permitem explicar as fontes actuais.
Isto significa que estes elementos têm função auxiliar da interpretação.

III — Trabalhos preparatórios


Dissemos atrás em que consistem estes, e qual a relevância que lhes foi
atribuída pelas correntes subjectivistas. Sob uma orientação objectivista,

(I) O art. 9 .°/l do C ódigo Civil português remete para «as circunstâncias em que
a lei foi elaborada». A m en çã o das circunstâncias, sendo m u ito vasta, permite englobar
tod o este conteúdo.
362

estes trabalhos perdem valor decisivo, mas não deixam com isso de repre­
sentar elementos auxiliares da interpretação. Muitas vezes um texto ap a­
rece-nos como totalmente incompreensível, e é o exame deste elemento his­
tórico que permite outorgar-lhe um sentido, que lhe tire a marca do absurdo,
e proporcione o seu aproveitamento.
Com isto em nada se desmente o actualismo. Pode-se presumir que o
sentido actual corresponde ao sentido inicial, se não aparecer nenhum a
razão em contrário — mas largamente se pode recorrer a quaisquer outros
elementos que convençam do contrário. Os trabalhos preparatórios não
têm nenhuma posição privilegiada na lista dos elementos auxiliares da inter­
pretação.

" IV — Occasio legis.


Assim se designa todo o circunstancialismo social que rodeou o apare­
cimento da lei (1). Vimos já que, impropriamente embora, também estas
circunstâncias são por vezes designadas fontes do direito.
A importância deste elemento é particularm ente sensível na legislação
de emergência. Suponhamos que sobrevêm uma vaga de terrorismo, e que
em conseqüência é promulgada legislação extremamente severa sobre des-
locações de pessoas e veículos. Passada essa vaga, a legislação fica em vigor,
mas aplicada a circunstâncias normais, enquanto não for revogada. Isto
cria necessariamente um desfasamento. O intérprete não pode deixar de
ponderar o circunstancialismo muito especial que forçou o aparecimento
dessa legislação e interpreta-a à luz desse condicionalismo. Pode assim
excluir a aplicação a hipóteses que, embora formalmente abrangidas, estariam
fora do seu espírito.
Mais difusamente embora, a occasio legis tem de ser atendida em todos
os outros casos como elemento auxiliar. Quase sempre é o aguilhão da
necessidade prática que vence a inércia legislativa. Não pode deixar de
se atender à marca que esta necesidade deixou na lei que provocou.

215. Teleológico

I — Enfim, considerou-se como elemento a ponderar na interpretação


o que podemos chamar a justificação social da lei. A finalidade proposta
é tida em conta para que a ela seja adequada a norma resultante.

(]) É este até o aspecto para que preferentemente aponta o art. 9.° do C ódigo Civil
Português.
363

Todo o direito é finalista. Toda a fonte existe para atingir fins ou


objectivos sociais. Por isso, enquanto se não descobrir o para quê duma
lei, não se está em condições de proceder ã sua interpretação.
Por exemplo, há um preceito em matéria de seguros, segundo o qual
o segurado não pode, sob pena de nulidade, fazer segurar segunda vez pelo
mesmo tempo e risco objecto já seguro pelo seu inteiro valor (1).
Para resolver as dificuldades de interpretação das disposições respec­
tivas não pode deixar de se perguntar para que se estabeleceu semelhante
proibição. Foi porque se quis impedir que o seguro se torne para o segu­
rado um negócio lucrativo. Verificado o risco que justificara o seguro,
o segurado teria direito a perceber duas indemnizações, que lhe assegurariam
portanto o dobro do que efectivamente perdera. A lei visa impedi-lo.
O seguro tem por função pôr uma pessoa a coberto de riscos, não outorgar-lhe
um meio parasitário de adquirir, transformando-se numa espécie de jogo.
É ainda finalidade da lei prevenir fraudes que doutra forma frequentemente
se verificariam — o segurado poderia sucumbir à tentação de causar ele
próprio a destruição da coisa segura, para receber mais do que o seu valor
efectivo. Estas considerações serão essenciais para se apurar o sentido do
preceito em causa, esclarecendo as conseqüências jurídicas resultantes.

II — Podíamos falar, a propósito deste elemento, em elemento socio­


lógico (2), pois é ele que nos dá a relevância da integração social da fonte
do direito. As condições que se tomam em conta são, vimo-lo, as condições
actuais: procura-se perante essas condições um a relevância sociológica,
e esta será um dos elementos a ponderar antes de chegar à determinação
definitiva do sentido da lei.

III — Quer o direito português quer o direito brasileiro incluem textos


de carácter genérico onde se consagra a relevância do elemento teleológico.
O direito português fá-lo ao m andar considerar «as condições espe­
cíficas do tempo em que é aplicada» a lei (art. 9.°/l). Directamente, este
preceito consagra o actualismo, como vimos, mas dele poderemos também
inferir que a justificação social da lei é tida em conta como elemento da
interpretação.
O direito brasileiro prevê esta matéria em disposição que, pela sua im por­
tância e complexidade, será objecto de exame autônomo.

(1) Arts. 1437 do C ódigo Civil brasileiro e 434 do C ódigo C om ercial português.
(2) Veja-se um apontam ento neste sentido em A liara, L e nozioni fon dam en tali, I,
110 - 112 .
364

216. O art. 5 ° da Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro

I — Dispõe este preceito: «Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos


fins sociais do direito e às exigências do bem comum».
O texto é talvez demasiado sonante. Acolhe considerações que se
fazem no dia a dia sem grande definição. Transform ado porém em pre­
ceito de lei ele há-de ganhar um preciso sentido jurídico. Só assim a regra
dele constante poderá ser utilizada. Para evitar superficialidade, seremos
obrigados a uma análise detida.
A prescrição é dirigida ao juiz. Mas como na grande maioria dos casos
da vida a aplicação é extra-judicial, e o que é direito não deixa de o ser pela
intefvenção do tribunal, temos de supor que o que está em causa é um prin­
cípio geral de aplicação do direito: todo o intérprete terá de atender àqueles
elementos, e não apenas o juiz.

II — Os padrões dados são os fins sociais a que ela (a lei) se dirige e as


exigências do bem comum.
Pode-se perguntar se estes dois elementos não são redutíveis a um só;
nomeadamente, se os fins sociais da lei não estão contidos entre as exigências
do bem comum.
Já referimos atrás a categoria do bem comum (1). Ele consiste no
conjunto de condições sociais necessárias à plena realização das pessoas.
O bem comum é assim o bem da comunidade e simultaneamente o bem das
pessoas que desta participam. Não é admissível nenhuma contradição
entre os dois termos. Não pode assim haver um entendimento individua-
lístico, segundo o qual ao bem das pessoas é subordinado o da comunidade,
como não pode haver um entendimento colectivista, segundo o qual o bem
do grupo sufocaria os bens dos seus membros. O bem comum é uma síntese
ética.
Por isso se tem de perguntar se todos os fins sociais não estarão já neces­
sariamente compreendidos na referência ao bem comum.
Mas não é assim. Como resulta do próprio texto, os fins sociais são
os daquela lei, especificamente considerada; enquanto que o bem comum
é uma consideração extra-legal, genericamente vinculante (2).
Portanto, a referência aos fins sociais da lei é a própria referência ao
subelemento teleológico da interpretação. O legislador poderia ter falado

(1) Supra, n.os 41 e 192.


(2) Parece ir neste sentido Alipio Silveira, Hermenêutica, 256; e parece contrariá-lo
Oscar Tenório, L ei de introdução, \12.
365

simplesmente em fins da lei, mas quis acentuar que toda a lei tem fins sociais,
pois toda a lei se destina a trazer uma vantagem social. N ão é demais recordar
o ambiente anti-individualista imperante no momento em que esta lei foi
promulgada em abono desta interpretação.
Pelo contrário, a referência ao bem comum escapa a qualquer destes
contributos parcelares que encontramos nos chamados elementos da inter­
pretação. A sua incidência vai-se fazer sentir, como veremos imediatamente
de seguida, como um controle exterior do próprio sentido da fonte e por­
tanto já em matéria dos resultados da interpretação.

III — Mas o art. 5.° refere-se expressamente à aplicação da lei. Ora,


como vimos, a aplicação é diversa da interpretação. A aplicação pressupõe
até logicamente que a interpretação está realizada.
Sendo assim, parece que todo o esforço empregado foi inútil, pois o
art. 5.° respeita à aplicação e não à interpretação da lei.
Mas não cremos que também esta pretensa objecção seja verdadeira.
A distinção entre interpretação e aplicação só recentemente logrou defini­
tivamente impor-se. Anteriormente, falava-se de ambas as operações indis­
criminadamente. E deste entendimento nos dá testemunho a doutrina
brasileira, que nunca pôs em dúvida que o art. 5.° respeitasse à interpretação.
Devemos recordar que o art. 5.°, indevidamente embora, põe em pri­
meiro plano o juiz. Este deverá aplicar, mas para poder aplicar tem antes
de mais de interpretar. Pretende o texto que, desde logo na interpretação,
o juiz tenha em conta os fins sociais da lei, como tenha em conta também
as exigências do bem comum (1).
Com isto não se esgota o sentido do texto. Também na aplicação
estes dois critérios deverão intervir. Mas isso terá ocasião de ser consi­
derado no capítulo respectivo.

IV — Em conclusão:
1) o art. 5.° respeita, quer à interpretação, quer à aplicação da lei;
2) no respeitante à interpretação, consagra o elemento teleológico e
uma directriz de cúpula, mediante a referência ao bem comum;
3) embora mencione especificamente o juiz, o art. 5.° aplica-se igual­
mente à interpretação e aplicação extra-judiciais.

(1) R ecorde-se a este propósito o que W róblewski, Interprétation, 63 e segs., cham a


a «ideologia da interpretação jurídica».
366

217. A ratio legis

I — Da conjugação de todos estes elementos resulta o sentido, espírito


ou razão da lei, que é o elemento decisivo para se fazer a interpretação.
Tradicionalmente, designa-se este sentido por ratio legis: o art. 9.° do Código
Civil português fala em «pensamento legislativo», em acepção que será, ao
menos no fundamental, coincidente com esta.
Será pois a ratio legis que nos perm itirá enfim iluminar os pontos obscu­
ros e chegar à norma que se encerra na fonte. Não se confunde com o
elemento teleológico da interpretação; este pode ser concebido como o
motivo de política legislativa que ditou a regra, enquanto que a ratio legis
se sèpara daquelas considerações para dar uma razão ou sentido intrínseco
da lei (1).
Com base nesta ratio se determinará o tratam ento a dar à letra. O prin­
cípio absoluto é o da preferência do espírito sobre a letra: aqui como noutras
ciências vale a afirmação de que a letra mata, o espírito vivifica. Vimos
atrás qual a limitação desta prevalência do espírito, de tal modo que se não
pode falar de um espírito que não encontre na letra um mínimo de corres­
pondência verbal: veremos a seguir discriminadamente quais as modalidades
que apresenta a relacionação letra-espírito.

II — Directamente dedicada a este resultado final da interpretação


encontramos, no art. 9.°/3 do Código Civil português, a presunção que
«o legislador consagrou as soluções mais acertadas». A ratio legis será
pois o resultante de todos os elementos, mas iluminada por uma pretensão
de máxima racionalidade, que permitirá escolher entre possibilidades diver­
gentes de interpretação.
Em sentido fundamentalmente coincidente, mas recorrendo até a uma
categoria mais rica, o art. 5.° da Lei de Introdução manda atender neste
momento decisivo, como vimos, às exigências do bem comum. A síntese
deverá pois ser realizada de maneira a apurar, dentre os vários sentidos
possíveis, aquele que melhor corresponda às exigências do bem comum.
Mas a referência ao bem comum implica ainda um controle extrínseco dos
próprios resultados da interpretação, como veremos de seguida.

d) Para fazer ressaltar esta distinção, op õ e G eny, M éthode, I, 305 e II, 120-121,
à ratio legis — considerações morais, políticas, sociais c econôm icas — a ratio iuris, que é
a síntese destas e traduz uma concepção puramente jurídica. M as é desaconselhável
utilizar neste sentido a expressão ratio legis.
367

Com isto terminamos a análise dos elementos a que podemos recorrer


para fazer a interpretação e entramos num tema diverso —- o dos resultados
da interpretação.

218. A interpretação correctiva

I — Pode acontecer que, como resultado da interpretação, concluamos


que a lei tem um sentido nocivo. A razão da lei será contrária a interesses
que se pretendem superiores, e a fonte pode ser taxada de injusta ou inopor­
tuna, representando um elemento negativo naquela comunidade. Como
proceder então?
Fala-se nestas hipóteses em interpretação correctiva: o intérprete poderia
afastar a norm a inadequada, considerando que o legislador certamente a
não teria querido se tivesse previsto este resultado.
Observamos que há quem fale de interpretação correctiva para abranger
as figuras da interpretação restritiva e extensiva, significando pois apenas a
«correcção» da letra (1).

II — A defesa da interpretação correctiva encontra-se já em Aristóteles,


como manifestação da equidade, e aliás conjuntamente com a do método
de integração que, teremos ocasião de ver, é por ele propugnado. Para
Aristóteles a lei, dada a sua inevitável generalidade, limita-se aos casos mais
correntes, sem dissimular as lacunas que deixa. Isto estaria na natureza
das coisas. Por isso, quando, perante um caso particular, vemos que o
legislador cala, ou se enganou por ter falado em termos absolutos, é impres­
cindível corrigi-lo e suprir o seu silêncio, como ele mesmo teria feito se esti­
vesse presente (2).
O problema é ainda mais linear para um partidário da escola do direito
livre, ou de certas orientações extremas da jurisprudência dos interesses
— para eles, a fonte errônea deverá sempre ser sacrificada. Mas no mesmo
sentido vão os partidários da criação jurisprudencial do direito, a quem não
impressionam as críticas às incertezas do processo (3).

(1) N este sentido D ias M arques, Introdução, n.° 69.


(2) É tica a Nicóm aco, livro V, cap. X (ou cap. XIV).
(3) A ssim , Stein reconhece essas incertezas, mas afirma por outro lado que a racio­
nalidade funcional do Estado de direito é prolongada ou transformada em racionalidade
substancial. D eixa de se apresentar co m o sistem a, tornou-se um pensam ento problem ático
(Iseue Jw istisch e W ochenschrift, 1964, 1752). N ó s direm os porém que, ou se fala numa
interpretação contra legem, o que é um contra-senso, pois não é já interpretação; ou se apre-
368

III — Supomos que este problema deve ter solução diferente em Por­
tugal e no Brasil.
Em Portugal, há um importante precedente: sob a epígrafe «restrição»,
a interpretação restritiva constava do art. 9.° do Anteprojecto de Manuel
de Andrade sobre Fontes do D ireito: «É consentido restringir o preceito
da lei quando, para casos especiais, ele levaria a conseqüências graves e
imprevistas que certamente o legislador não teria querido sancionar» (1).
Mas esse texto foi eliminado e não tem correspondente no Código Civil
português (2).
Sendo assim, a interpretação correctiva é inadmissível na ordem ju rí­
dica portuguesa. Porque, ou o trecho do Anteprojecto referia um fenômeno
que cabe dentro da interpretação restritiva ou, se levasse a afastar o verda-
deiro*sentido da lei, estaria em contradição com o art. 8.°/2 e com a estrutura
geral da ordem jurídica portuguesa, que assenta numa prioridade do dado
normativo sobre os juízos de razoabilidade do intérprete. Por mais dese­
jável que se apresente uma alteração do sistema normativo, essa alteração
pertence às fontes do direito, não ao intérprete. Este capta o sentido da
fonte como ele objectivamente se apresenta no momento actual, não lhe
antepõe qualquer outro sentido. Razões extremamente ponderosas de
segurança e de defesa contra o arbítrio alicerçam esta conclusão.

IV — A estes princípios deve-se aditar um a excepção, resultante já das


nossas considerações anteriores: se o sentido da fonte se revelar contrário
ao Direito Natural, é o Direito N atural que deverá prevalecer, pois não há
nenhuma segurança que mereça ser com prada com a negação dos princípios
fundamentais da convivência social. A intervenção do Direito N atural
dá-se pois logo após a determinação do sentido da fonte, podendo levar à
rejeição deste. E uma hipótese evidentemente rara, mas que temos de ter
sempre presente como salvaguarda do valer do sistema. No que respeita
aos seus pressupostos, funcionamento e conseqüências, remetemos para quanto
atrás ficou dito.

senta com o fonte do direito a própria jurisprudência, e disto vim os já anteriormente o


que pensar.
(1) Art. 9.°/V. Supom os que este texto referia a interpretação correctiva, mas
reconhecem os que a afirmação é contestável, dada a instabilidade term inológica e c o n ­
ceituai: cfr. o que dissem os em Tipicidade, n.° 88. N o R elatório do Anteprojecto acentua-se
que se trata apenas de «cerceamentos periféricos» em casos particulares; e cita-se Ennec-
cerus-N ipperdey, § 54 (tradução castelhana), cuja consulta ganha aqui particular relevo.
Para estes, tratar-se-ia duma actividade simétrica à da analogia.
(2) Vejam-se as considerações em itidas a propósito daquele por José H. Saraiva,
Apostilha, n.° 39.
369

V — Já na ordem jurídica brasileira a conclusão deve ser diversa. A tra­


dição dessa ordem jurídica, em que a «norma» está longe de ter o prestígio
que noutras tem, e o art. 5.° da Lei de Introdução ao Código Civil, com a
sua referência ao bem comum, impelem-nos neste sentido. Devemos todavia
demarcar com precisão este domínio. N ão se trata de deixar o julgador a
legibus solutus: o absolutismo jurisprudencial é causa de estagnação do
direito, fomentando a impreparação dos juizes, e acaba por beneficiar sempre
o forte contra o fraco. O caminho exacto está na progressãb daquela orien­
tação de Aristóteles, há pouco assinalada. Q uando o legislador, presa da
necessária generalidade das suas declarações, emite uma prescrição lata
demais, em que abrange casos que não teria abrangido se tivesse podido
considerar as conseqüências nocivas da sua intervenção ou, dito por outras
palavras, quando a lei é demasiado absoluta, por a aplicação a certos casos
que não são os que ditaram a regra ir contra o bem comum — então o intér­
prete deve restringir o âmbito da lei para evitar esses resultados absurdos (1).
Diremos pois que a interpretação correctiva é admissível, mas nunca
pode significar afastamento da lei. Apenas será possível quando a apli­
cação da lei a certas hipóteses compreendidas no seu âm bito mas que não
pertencem ao núcleo de casos que justificaram a norm a produz conseqüências
contrárias ao bem comum. É então possível a restrição da lei.
Conseqüência da restrição é a subordinação dessa categoria de casos
a outras regras que se lhe revelem então aplicáveis. N ão se encontrando
essas regras, a conseqüência da restrição é a demarcação de uma lacuna.

219. A interpretação ab-rogante

1 — Podemos chegar também à interpretação ab-rogante. Aí o intér­


prete não m ata a regra, verifica que ela está morta. Após a busca do sentido
possível, tem de concluir que há uma contradição insanável, donde não
resulta nenhuma regra útil. A fonte tem pois de ser considerada como
inexistente.
Insistimos que não há nenhuma correcção da lei, nem nenhuma cessação
de vigência duma regra. O que acontece é que, por ter escapado ao legislador
uma incongruência na regulamentação ou um a incompatibilidade entre
vários textos, há desde o início uma falta de sentido. O intérprete contenta-se

(1) Cfr. tn n eccem s-N ip p erd ey , § 54, que fala em interpretação modificativa do
direito ou restrição; R ecasens Siches, ínierpretación, baseandô-se no carácter circunstancial
da regra jurídica, que responde a certas situações concretas, e não a outras; e A lípio Sil­
veira, Herm enêutica, I, n .u 5, que fala em «Interpretação m odificativa», mas cujos exem plos
são m ais de interpretação restritiva.
370

em reconhecer, no termo da sua tarefa, que esse texto proclamado como


lei nunca conteve, apesar das aparências, nenhum a regra; e, se há.conflito
de fontes, pode chegar a considerar as duas fontes estéreis, afinal (1).

II — Estas situações são raríssimas. E são-no, não propriamente


pelo cuidado posto na legiferação, mas em conseqüência do que podemos
chamar o princípio do aproveitamento das leis (semelhante a um análogo
princípio do aproveitamento dos negócios jurídicos, de que se ouvirá falar
mais tarde) e da presunção de racionalidade da legislação. O intérprete,
partindo do princípio de que a lei é acertada, procurará de todos os modos
chegar a um sentido útil, e só em último recurso se resignará a desaproveitar
a fonte, admitindo que dela nada de útil resultou. Tão restritiva é esta
orieiítação que não sabemos que haja algum caso em que se possa adm itir
uma interpretação ab-rogante no seio do Código Civil — o que não quer
dizer que ela não venha ainda a ser descoberta.

III — Distinguem-se duas modalidades de interpretação ab-rogante:


— lógica
— valorativa
A primeira dá-se quando se chega a um a impossibilidade prática de
solução: adaptando observações feitas em domínio paralelo, podemos dizer
que a situação pode exprimir-se pela expressão: «Não pode ser assim!».
A segunda surge-nos quando as valorações subjacentes às disposições em
causa forem incompatíveis entre si; podemos exprimi-la pela expressão:
«Não deve ser assim!».
H á divergências quanto à admissibilidade dum a incompatibilidade
valorativa como fundamento de interpretação ab-rogante. É muito fre­
qüente o intérprete detectar, no seio do mesmo diploma, regras que expri­
mem valorações diversas e até contraditórias. Por isso alguns só a admitem
quando a incompatibilidade for particularm ente grave (2).
Devemos distinguir. No que respeita a Portugal, tendemos a pensar
que ela não é admissível em caso nenhum. Se o legislador pôs simultanea­
mente em vigor duas regras, a valoração do intérprete não se pode substi­
tuir à do legislador, preferindo uma, ou considerando as duas liquidadas:
tem de admitir a coexistência de regras que exprimem valorações diversas,
pela mesma razão por que não pode fazer interpretação correctiva: porque
não pode antepor um critério próprio ao critério da ordem jurídica objectiva.

(1) Para análogo problema no D ireito R om ano cfr. Raul Ventura, D ireito Romano,
n .° 4 4 .
(2) Assim Miguel G alvão Teles, Eficácia, n.° 8 e nota 49.
371

IV — Já na ordem jurídica brasileira nos parece que o problem a deve


ser colocado de maneira diversa, por razões análogas àquelas que nos leva­
ram a admitir aí a interpretação correctiva.
Dissemos que no Brasil, por força do art. 5.°, o resultado normal da
interpretação está sujeito ainda a um controle extrínseco, fundado em consi­
derações de bem comum.
Então, se a contradição valorativa entre duas regras for de tal maneira
gritante que atinja o bem comum, pode o intérprete, iluminado por aquela
noção, sacrificar a regra que a contraria (1). A conseqüência normal da
interpretação ab-rogante será então a descoberta de uma lacuna.

220. Requisitos

I — Limitando-nos às hipóteses de interpretação ab-rogante lógica,


devemos observar que para haver interpretação ab-rogante não é necessária
a existência de uma pluralidade de disposições contraditórias. Um a única
disposição é objecto de interpretação ab-rogante sempre que do texto não
se conseguir retirar sentido normativo algum — maxime, quando não tiver
em absoluto nenhum sentido. A declaração de que o que foi posto como
lei, portanto com função directora da ordem social, não encerra uma norma,
é sempre interpretação ab-rogante.

II — Limitando-nos todavia às hipóteses de interpretação ab-rogante


em conseqüência da relacionação de fontes, potencial ou efectiva, vemos
que esta nos pode surgir em duas situações:
1) Quando a lei nova remete para um regime que não existe. Assim,
se tivesse sido abolido o registo automóvel, deveria ser objecto de inter­
pretação ab-rogante a lei nova que impusesse ao proprietário do automóvel
que pretendesse recorrer a juízo a apresentação do título de registo de
propriedade.
Mas mesmo aqui temos de ser muito prudentes, pois por vezes a lei
prevê um instituto que só posteriormente será introduzido. Se é de concluir
que é esse o sentido da lei, a aplicação da lei nova ficará suspensa da ulterior
alteração legislativa, mas ela é válida. Simplesmente, se essa legislação
complementar não surgir, a regra não mais será aplicável.

(1) Espínola, L ei de Introdução, págs. 294 e 295, adm ite ainda a interpretação
ab-rogante em caso de contradição de uma regra com um princípio de direito, no que nos
parece ir longe demais. N o limite, significaria a elim inação da regra excepcional, em
sentido substancial (infra, n .os 225 e 221.
372

2) A outra hipótese verifica-se quando, no seio do mesmo diploma,


há duas disposições inconciliáveis, ou quando são inconciliáveis disposições
de diplomas diversos, mas publicados simultaneamente.
Pode perguntar-se ainda se há interpretação ab-rogante quando se con­
frontam leis que foram publicadas em datas diversas, mas devem entrar
em vigor simultaneamente (1). Mas o problema não se coloca aí, pois
então actua o princípio de que a lei posterior revoga a lei anterior, e a data
relevante para este efeito é a da publicação (quando a lei fica perfeita) e não
a da entrada em vigor.
Por maioria de razão, não há problemas de incompatibilidade entre
leis publicadas e entradas em vigor em momentos diversos, pois só interessa
saber se há ou não revogação, não se justificando que se fale de interpretação
1 *
ab-rogante.
0 problema é verdadeiramente grave se duas leis tiverem sido publi­
cadas na mesma altura, se aparecerem por exemplo no mesmo número do
jornal oficial. Será então decisiva a ordem da publicação? Supomos
que não. A data da publicação é a mesma, a mesma a pretensão de apli­
cação, e a ordem ou a numeração dos diplomas é destituída de efeitos ju rí­
dicos. Se houver incompatibilidade deve-se falar realmente de interpre­
tação ab-rogante.

III — Verificados estes pressupostos, o intérprete deve declarar a lei


morta. Na hipótese de a nova lei pressupor um regime que não existe, é
esse trecho que é eliminado do sistema. Na hipótese de haver duas leis
incompatíveis discute-se qual a conseqüência. H á quem pretenda que as
duas ficam liquidadas, não se podendo aproveitar nenhuma. H á quem
pretenda, pelo contrário, que se deve aproveitar alguma delas. Esta é em
princípio a solução e só se não encontrarmos critério nenhum de prevalência
nos teremos de resignar a considerar mortas as duas disposições.

221. A interpretação declarativa

1 — Passemos aos casos normais. Quando se pergunta se a letra da


lei está de harmonia com o seu espírito, verifica-se que pode haver ou não
coincidência. Consoante o resultado, fala-se então em interpretação:
— declarativa
— extensiva
— restritiva

(1) Responde afirmativamen^e P'res de Lima, Rev. L eg. Jur., -101/335.


373

Há interpretação declarativa quando o sentido da lei cabe dentro da


sua letra: o sentido literal, ou um dos sentidos literais, exprime aquilo que,
definitivamente, se apura ser o que ela pretende exprimir.

II — Mas dentro^da interpretação declarativa ainda devemos distinguir


a interpretação:
— lata
— restrita
— média
Como dissemos, a letra pode ser susceptível de diversos entendimentos:
pode haver um a ambigüidade que a análise literal não logre superar. Se
apurarmos que um desses entendimentos deve definitivamente ser acolhido,
a interpretação é quanto ao seu resultado declarativa, mas deverá ser quali­
ficada de lata, restrita ou média, consoante o significado escolhido. Aliás,
antes devíamos falar em interpretações declarativas médias, pois pode haver
vários entendimentos intermédios possíveis.
Por exemplo, o art. 1520 do Código Civil brasileiro determina quais
as conseqüências dos danos causados para evitar um perigo, quando esse
perigo ocorrer por «culpa de terceiro».
Culpa é palavra ambígua. Mesmo atendendo só aos significados jurídicos,
vemos que por culpa ora se entende a negligência, ora o dolo ou intenção,
ora quer o dolo quer a negligência, ora a característica da reprovabilidade
pessoal do agente. Em nenhum dos casos se pode dizer que a palavra
«culpa» foi indevidamente utilizada, mas é sempre necessário esclarecê-la.
Se concluirmos que naquele caso culpa é negligência, ou é dolo, diremos que
a interpretação é declarativa restrita; se concluirmos que é reprovabilidade,
faremos interpretação declarativa lata. Todos os significados que entre
estes se abranjam dão origem a interpretações declarativas médias: podem
ser inumeráveis.

III — Note-se: nem sempre este esquema pode ser utilizado, pois nem
sempre encontramos uma escala de significados de amplitude crescente.
Se encontramos a palavra interpelação, e concluímos que se trata da inti­
mação feita pelo credor ao devedor para que pague, e não da pergunta diri­
gida ao Governo por um membro de um a Câmara legislativa, fazemos inter­
pretação declarativa, pois o sentido que ao preceito atribuímos cabe dentro
das palavras utilizadas pelo legislador; mas não há nenhuma escala que
permita catalogar esta interpretação de lata ou restrita.
374

222. A interpretação extensiva

I — O intérprete pode concluir que 0 legislador queria dizer uma coisa


e as palavras traíram-no, levando-o a exprimir realidade diversa. Se o
sentido ultrapassa o que resultaria estritamente da letra, deve-se fazer inter­
pretação extensiva. Para obedecer à lei, o intérprete deve procurar uma
formulação que traduza correctamente a regra expressa pela lei. Isto, só
por si, seria suficiente para com provar o que afirmamos desde o início:
norma e lei são coisas diversas. Aqui, para se respeitar a regra, vai-se refor­
mular o texto com que, incorrectamente, a lei pretendia exprimi-la.
Vê-se que a interpretação extensiva se distingue profundamente da
interpretação declarativa lata, pois agora o sentido não cabe dentro do texto
publicado; e distingue-se também da analogia, como dissemos, e teremos
ocasião de comprovar no capítulo seguinte.

II — Por exemplo, dispõe o art. 2181 do Código Civil português:


«Não podem testar no mesmo acto duas ou mais pessoas, quer em proveito
recíproco, quer em favor de terceiro».
Assim se exclui o chamado testamento de mão comum. O legislador
quis ser categórico, e por isso especificou as modalidades que não eram
admitidas. Mas escapou uma, que a letra não abrange: podem os inter-
venientes dispor simultaneamente em favor de pessoas diferentes. Assim, A
e B testam simultaneamente, mas A em favor de C e B em favor de D.
É evidente que o sentido do preceito é excluir em absoluto a intervenção
de mais de um disponente no acto testamentário (1). O texto deve pois
ser corrigido, para traduzir com fidelidade o pensamento legislativo. Da
mesma forma se deverá proceder em todas as hipóteses em que o legislador
só referiu a espécie quando tinha em vista o gênero.
Quando dizemos que o texto deve ser corrigido, devemos evitar enten­
dimentos grosseiros. É claro que o texto em si não se muda, pois mudá-lo
cabe ao legislador e não ao intérprete. O que queremos dizer é que a regra
que do texto se retira deve ter uma formulação corrigida, que não coincide
com a utilizada pelo legislador.

223. A interpretação restritiva

I — Aplica-se este processo quando se chega à conclusão de que a


lei utiliza uma fórmula demasiado ampla, pois o seu sentido é mais limi-

(1) Cfr. o nosso D ireito das Sucessões (lições), 253.


tado. Deve-se proceder então à operação inversa: restringir o texto para
exprimir o verdadeiro sentido da lei (1).
A prática jurídica tem demonstrado considerável relutância em adm i­
tir esta operação. Formou-se um brocardo, que circula como moeda válida
no foro: ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus. Tal afirmação
não tem qualquer verdade, pois ela levaria a que nos sujeitássemos inteira­
mente à letra da lei. Pode aparecer uma afirmação genérica, e verificar-se
depois que a regra supõe uma distinção que o texto omitiu fazer.

II — Tomemos um exemplo muito simples. O art. 175/§ 1.° da Cons­


tituição brasileira dispõe: «O casamento é indissolúvel». Mas é óbvio que
o casamento é dissolúvel, pela morte de um dos cônjuges: ninguém nega
que o viúvo pode contrair novo casamento, sem receio de bigamia. O sen­
tido da regra é claro, não obstante a fórmula muito ampla que foi adoptada:
o que se quer dizer é que o casamento é indissolúvel por divórcio. Por
interpretação restritiva proclamamos assim o verdadeiro sentido, preferindo
o espírito à letra da lei.
Só assim obedecemos efectivamente às valorações da lei. E por esta
capacidade de dar o justo valor aos preceitos em causa que se distingue um
jurista e um homem que pode até porventura conhecer muitas leis...

(1) C om o dissem os, o próprio art. 9.°/1 do C ódigo C ivil português funda positi­
vam ente esta indispensável operação, ao opor à letra o pensam ento legislativo e preferir
este últim o: consagra-se assim , quer a interpretação extensiva,, quer a interpretação res-
•tritiva.
CAPÍTULO 3
í
i

Interpretação enunciativa

224. Identificação da categoria

I — A expressão «interpretação enunciativa» é utilizada para designar


um segundo processo de determinação de regras jurídicas. Mas não se
confunde com o processo anteriormente examinado porque não há aqui
interpretação em sentido técnico ou estrito: não se trabalha com um a fonte
a fim de extrair dela uma regra.
O uso do termo «interpretação» não deve todavia causar dificuldade
pois, como dissemos inicialmente, há um sentido amplo da palavra em que
interpretação e determinação das regras se confundem.

II — A interpretação enunciativa pressupõe a prévia determinação


de uma regra. Muitas vezes, a partir dessa regra consegue-se chegar até
outras que nela estão implícitas, e que suprem assim a falta de expressa pre­
visão das fontes. O que caracteriza a interpretação enunciativa é limitar-se
a utilizar processos lógicos para este fim.
Em todo o caso, há um mínimo indispensável para que se possa falar
de interpretação enunciativa: é que o resultado seja uma nova regra, e não
mera especificação da regra anterior.

III — Assim, diz-se que a lei que proíbe o menos proíbe o mais (argu­
mento a minori ad maius)'. Se uma lei sobre actividade cambiária proíbe
essa actividade aos estrangeiros, podemos inferir que também o comércio
bancário lhes é vedado: esta proibição também está logicamente contida
na primeira. O intérprete limita-se aqui a desvelar uma nova regra que
necessariamente deriva da anterior.
Pelo contrário, a regra que permite o mais, permite o menos (argumento
a maiori ad minus). Quem está autorizado a entrar em competições des­
portivas pode também treinar; quem pode caçar pode apoderar-se das peças
abatidas; e assim por diante. Salvo disposição excepcional em contrário,
o intérprete pode concluir por estas novas regras, tom ando como ponto
de partida a regra que a interpretação revelou.

IV — A admissibilidade da chamada interpretação enunciativa é for-


temênte contestável. Sobretudo porque se pode dizer que em todos estes
casos há implícita uma valoração, ao menos com função de controle, que
impede que se afirme que a nova regra se obteve por processos exclusivamente
lógicos (1).
Mas a importância do problema é desproporcionadam ente m aior no
caso do chamado argumento a contrario sensu. A este nos dedicaremos.
Vamos começar por referir a categoria «regras excepcionais», que tínhamos
remetido para este momento (2), pois estas se encontram no âmago do
problema.

225. As regras excepcionais

I — Duas normas podem ter entre si a relação regra-excepção: à regra


estabelecida pela primeira opõe-se a excepção, que para um sector mais ou
menos amplo de situações é aberta pela segunda. A excepção é pois neces­
sariamente de âmbito mais restrito que a regra, e contraria a valoração ínsita
nesta, para atingir finalidades particulares.
A regra excepcional se opõe ao que designaremos regra geral. A ter­
minologia é convencional: nomeadamente, não deve levar a pôr em causa
a generalidade, que é característica de toda a regra jurídica, excepcional
ou não. Mais uma vez é necessário utilizar um a mesma palavra para expri­
mir ideias diferentes.

II — Exemplo de regra excepcional é a que contraria o princípio soli­


damente assente no Processo Civil, que estabelece que a sentença não pode

(1) Sobre o valor interpretativo da lógica jurídica cfr. Villar Palasi, Derecho A dm i­
nistrativo, 575 e segs. e a apreciação constante de Études de logique juridique (sob a direcção
de Charles Perelman), 124 e segs. Cfr. também Klug, Juristische Logik.
(2) Supra, n.° 127.
379

condenar em quantidadç superior ou em objecto diverso daquilo que as partes


pedirem. É o pedido das partes que.determ ina o âm bito da decisão..
Mas no procésso português do trabalho abre-se um a excepção radical,
inspirada essencialmente no desejo de proteger a parte que surge como mais
fraca, o trabalhador: o tribunal deve mesmp condenar em quantidade superior
ou em ©bjecto diverso do pedido quando isso resulte da aplicação de norm as
injuntivas (art. 69 do Código de Processo do Trabalho).
Estabelece por seu turno o-art. 1170 do Código Civil brasileiro: «Às pes­
soas que não puderem contratar é facultado, não obstante, aceitar doações
puras».
Temos outra regra excepcional. Para se obter o efeito útil de aqui­
sição dos bens pelo incapaz vão-se subverter todos os princípios respeitantes
à capacidade de exercício, permitindo-se a prática de válidos actos jurídicos
pelos absolutamente incapazes, inclusivé.
A utilidade desta classificação residiria, para além de outros efeitos
estabelecidos em leis especiais (1), nos seguintes aspectos, aliás relacionados
entre si:
1) D a regra excepcional poderia, pela utilização do argumento a con­
trario, extrair-se a regra geral: isto seria justam ente modalidade da inter­
pretação enunciativa. A utilização do argumento a contrario seria um dos
processos de determinação da regra aplicável.
2) A regra excepcional não poderia ser aplicada analogicamente.
Vamos analisar estes dois aspectos em separado; e teremos ocasião
de verificar que este enunciado não pode ser aceite sem se abrirem im por­
tantes distinções.

226. Regra excepcional e argumento a contrario.

I — A determinação do carácter excepcional dum a regra.


A utilização do argumento a contrario tem como pressuposto a demons­
tração do carácter excepcional do preceito em causa.
O problema enuncia-se assim: como proceder se preceito nenhum con­
tiver o enunciado de uma regra, e um caso singular for contemplado por
preceito apropriado?

(1) É o ca sa do art. 52/2 do estatuto aprovado pelo D ecreto-L ei português n.° 49368,
de 10 de N ovem bro de 1969, que estabelece que as disposições desse estatuto que consti-
tuarn direito excepcional só podem ser revogadas por disposição expressa, com menção
precisa das disposições afectadas.
380

Por exemplo: o art. 1095 do Código Civil brasileiro dispõe, em m até­


ria de arras ou sinal que', se se tiver estipulado o direito ao arrependimento,
o arrependido, se for quem tiver recebido as arras, as restituirá em dobro.
Tratar-se-á de uma excepção? Poderá a contrario concluir-se que
em todos os restantes casòs de arras vigora à regra oposta, de que o arre­
pendido não está vinculado a restituir as arras recebidas? Ou pelo con­
trário, haverá aqui apenas a afloração de um princípio geral, de modo que
a regra será aplicável também a outras categorias de arras?

II — Este é o árduo problema prévio que defronta o argumento a con­


trario, e que nos levou justamente a postergar o exame das regras excep­
cionais até este momento (1).
O argumento a contrario é também um argumento meramente lógico,
como todos os que se compreendem na interpretação enunciativa. Pode
ser expresso assim: se, para determinado caso, se estabelece um a disposição
excepcional, dele pode-se inferir a regra que funciona para todos os outros
casos.
Tomemos por exemplo o art. 1571 do Código Civil português, que
dispõe: «A impossibilidade de exercer a servidão não im porta a sua extinção
enquanto não decorrer o prazo da alínea b) do n.° 1 do artigo 1569». Prevê-se
portanto a situação de alguém ter um direito sobre uma coisa, e todavia não
o poder exercer por efeito de uma dada situação dos lugares, como se alguém
tem uma servidão de matos e o mato foi destruído por um incêndio, ou uma
servidão de passagem e a passagem não se pode fazer por alteração do ter­
reno. A lei diz-nos que em caso de impossibilidade a servidão não se extin­
gue, enquanto não decorrer um lapso de 20 anos.
Mas a mesma situação pode verificar-se noutros direitos sobre as coisas.
Se num usufruto, por exemplo, a fruição da coisa for impossível por o terreno
se ter tornado arenoso, deve entender-se que a regra é a do art. 1571 — o usu­
fruto só se extingue após 20 anos — ou pelo contrário que o art. 1571 é
um a excepção, e a regra é inteiramente a oposta — o usufruto extingue-se
se houver impossibilidade de exercício?
Aplicando ao exemplo o argumento a contrario diríamos que, se o legis-
lador estabeleceu para um caso dado um regime — o de que, havendo impossi­
bilidade de exercício, a extinção não se daria antes de 20 anos — a contrario
se poderia inferir a regra para todos os outros casos — a de que a impossi­
bilidade de exercício acarreta a extinção imediata do direito sobre a coisa.

III — Mas atenção: o argumento a contrario só funciona quando depa­


ramos uma regra excepcional. Ora, aplicando este argumento ao art. 1571

(1) Supra, n.° 127.


381

antes de demonstrar que se trata de disposição excepcional estaríamos a


proceder de maneira anticientífica. Porque, consoante essa disposição
• for ou não excepcional, assim deveremos concluir que a regra é o oposto
do que o art. 1571 estabelece, ou inversamente, que a regra é a que o
art. 1571 estabelece, ou melhor, é a que no art. 1571 aflora. Quer dizer,
num caso ou noutro esse preceito contraria ou manifesta uma regra
geral.
Aqui é que residem justam ente todas as dificuldades e todas as fraquezas
do argumento a contrario. N ão basta a verificação do caso individual,
é necessário saber se essa previsão é excepcional. Muitas vezes tudo redunda
afinal numa tautologia: tira-se da disposição excepcional a regra quando
essa disposição foi considerada excepcional porque contraria justam ente
a regra x ( l) .

IV — Só se pode fazer interpretação enunciativa, com base no argu­


mento a contrario, quando a disposição em causa explicitamente consagrar
o seu carácter excepcional.
Assim acontecerá quando a disposição expressamente indica que só se
aplica às hipóteses que especifica.
N outros casos, menos claros, pode-se mesmo assim concluir que a
disposição se auto-limitou a um dado círculo de situações.
Temos então ainda a excepcionalidade fo rm a l. É pois lícito, a partir
de semelhante disposição, concluir que todas as restantes hipóteses são abran­
gidas por regra de sentido oposto.
De todo o modo, as possibilidades de utilização do argumento a con­
trario acabam por se revelar bem limitadas. E as dificuldades ainda aum en­
tam se considerarmos que, mesmo que a fórmula legal proclame aparente­
mente o carácter excepcional, podem razões ponderosas, tiradas do regime
legal, levar à interpretação restritiva do trecho. Também aqui, as palavras
da lei não nos oferecem um am paro seguro: e portanto, não nos podemos
abandonar exclusivamente à lógica.

227. A proibição da analogia. O ius singulare

I — Por outro lado, dissemos, tem-se associado à qualificação duma


regra como excepcional a proibição da analogia.

(1) A Filosofia do D ireito actual tem -se interessado com a análise da valia lógica
d<3 argum ento a cóntrariq, chegando a conclusões, ou negativas, ou m u ito restritivas, c fr .
por exem plo- K lug, Juristische Logik.
382

A justificação deste princípio é fácil. Se há uma regra e uma excepção,


e surge um caso cuja regulamentação se procura, esse caso é naturalm ente
abrangido pela regra, como regra que é. A excepção está deliftiitada para
os casos para que foi estabelecida e não tem elasticidade para abranger novas
situações.
Mas èsta simplicidade é enganadora. Surgem casos que apresentam
mais semelhanças com os regulados de modo excepcional que com os cons­
tantes da regra geral. A proibição da analogia, observa severamente Car-
nelutti, eqüivale a qualificar todos os casos que não sejam idênticos ao regu­
lado pela regra excepcional como casos opostos ( 1).

II — Na verdade, esta é um a conseqüência da supressão da categoria


natiíral da analogia. Este resultado é extremamente insatisfatório se, para
qualificarmos uma regra como excepcional, nos bastarmos com o simples
facto de ela contrariar outra regra de âmbito mais vasto que aquela. Aca­
baríamos por tirar conseqüências definitivas da mera técnica da legiferação,
consoante o legislador apresentasse primeiro uma figura como regra, ficando
portanto automaticamente as restantes qualificadas como excepções, ou
pelo contrário delimitasse simplesmente os casos que são regulados de uma
maneira, e os que o são de outra. No primeiro caso consideraríamos que
a regra oposta seria excepcional e não admitiríamos a analogia, enquanto
no segundo a admitiríamos já.
A categoria regra excepcional necessita de ser fundada num suporte
mais sólido.
É a história que nos permite aprofundar o sentido desta categoria.

III — O ius singulare.


Na origem encontramos um texto de Paulo, em D. 1.3.16.: Ius singulare
est quod contra tenorem rationis p ro p te r aliquam u tilitatem auctoritate cons-
tituentium introductum est. No aspecto que fundamentalmente nos interessa,
qualificam-se pois como singulares as regras em que, para atingir uma uti­
lidade especial, se foi contra um princípio fundamental do direito — contra
rationis iuris, como noutro trecho se afirma. Não basta pois a mera con­
tradição de uma outra regra, é necessário ainda que se vá contra os «prin­
cípios gerais informadores de qualquer sector do sistema jurídico» (2).
É justamente a propósito da analogia que se trata do ius singulare;
pelo que se pode dizer que o ius singulare representa um limite à normal

(1) Teoria, n.° 39.


(2) Raul Ventura, D ireito Romano, pág. 205. Leiam-se os n .us 61 a 63, que são
dedicados a esta matéria. Cfr. Savigny, Traité, § XVI.
383

aplicação da analogia. A particularidade dâ sua rqtio não permitia a exten­


são a outros casos. ■ * • '

• IV — Parece de facto, apesar das evidentes dificuldades da análise,


que em cada momento é possível determ inar os princípios que «inspiram
a nórmalidáde da disciplina jurídica, conferindo-lhe Tmidade,' racionalidade
e coerência» (1). Sendo assim, também é possível determinar quais as regras
ou institutos que historicamente os contrariam.
Temos então uma excepcionalidade, não já formal, mas substancial.
É óbvio que ela não serve à determinação da norm a aplicável, pois a veri­
ficação da excepcionalidade da disposição corre parelha com a determinação
da própria regra geral. Mas serve para a determinação do âmbito em que
poderá ser adm itida a exclusão da analogia.

V — N ão será porém necessário acentuar a delicadeza e a falibilidade


deste processo, que é aliás contrapartida do seu carácter valorativo. Não
basta uma apreciação da norma isoladamente tom ada: impõe-se uma valo­
ração de conjunto daquela regra e de toda a ordem jurídica, que permite
determinar se corresponde às orientações fundamentais desta ou se pelo
contrário delas se afasta por razões específicas do caso concreto.
Os efeitos da excepcionalidade substancial respeitam à integração das
lacunas e não à interpretação enunciativa. São por isso examinados no
capítulo seguinte.

228. Conclusão

N a referência corrente à regra excepcional estão confundidas duas


espécies com características diferentes e incidências práticas diferentes também.
A regra formalmente excepcional autoriza a utilização do argumento
a contrario.
A regra substancialmente excepcional — ius singulare — implica a proi­
bição da analogia.
Só casualmente uma regra será passível de ambas as qualificações.
A uniformidade terminológica é por isso causa de confusão conceituai.
O segundo aspecto já nada tem que ver com a interpretação enunciativa.

(1) Caiani, Analogia, n.° 16. N o m esm o sentido Betti, Interpretazibne, §§ 23 e 24.
Contra a identificação de direito excepcional e ius singulare, Carlos M axim iliano, H er­
menêutica, n.° 274.
A integração das lacunas

229. O dever de integrar as lacunas

I — O terceiro processo de determinação da regra surge com a inte­


gração das lacunas. Indicámos (supra, n.° 201) o significado geral deste pro­
cesso. Nomeadamente, dissemos já que a existência de lacunas é uma
fatalidade.
Como proceder então, quando o tecido normativo não contém a previsão
de um caso da vida?
A solução ingênua seria a de considerar que, se não se encontra regra
específica, a situação não pode ser resolvida em term os jurídicos. O juiz,
por exemplo, colocado perante uma hipótese desta índole, m andaria embora
as partes, com o fundamento de que ela seria extrajurídica.
Logo encontramos porém o art. 8.°/l do Código Civil português e o
art. 126 do Código do Processo Civil brasileiro (1), que excluem em abso­
luto este entendim ento: o juiz não pode abster-se de julgar invocando a falta
da lei. Portanto, mesmo então a situação deve ser juridicam ente resolvida.
Temos pois de saber quais os processos mediante os quais se pode chegar
a essa solução.

(1) Preceito correspondente constava já do art. 5.° da primitiva Lei de Introdução


ao C ódigo Civil brasileiro. .
386

Os processos genericamente previstos por lei são os do art. 4.° da Lei


de Introdução ao Código Civil brasileiro (1) e os do art. 10 do Código Civil
português. Estes processos são em princípio aplicáveis, a todos os ramos do
direito, porque os princípios gerais constantes das. Leis de Introdução ou
das disposições iniciais dos Códigos Civis são, por força d e'um a longa tra­
dição, princípios fundamentais de toda a ordem jurídica. '.'!só~hão se apli­
carão naqueles ramos do direito ou naquelas matérias em que disposição
especial excluir a sua aplicação (2).

II — Os processos de integração previstos na lei são processos norm a­


tivos. Deve-se primeiro buscar um a regra aplicável àquele caso e por inter­
médio dela se chegará depois à solução dos casos omissos. Isto confirma
que a integração das lacunas é um dos processos de determinação das regras.
As lacunas podem ser também integradas por interpretação enunciativa,
como vimos no capítulo anterior.

III — Antes porém de passarmos à análise destes processos, devemo-nos


interrogar sobre o significado da própria categoria lacuna. E nomeadamente,
devemos distinguir a lacuna da situação e x tra ju ríd ica .

230. Lacuna e situação extrajurídica

I — Não basta dizer que lacuna é o caso não previsto pelo direito, ou
não regulado normativamente. Porque a maior parte das situações da vida
não são previstas nem reguladas pelo direito. Debalde procuraremos nas
leis regras sobre passos de dança, ou lançamento de satélites espaciais, ou
preparação para o casamento. Nem o direito adianta nada se alguém se
queixa de que o vizinho não o cum prim enta quando se cruza com ele na rua.
E apesar disso, não dizemos então que há uma lacuna. Se fosse soli­
citado para resolver casos dessa ordem o tribunal limitar-se-ia a declarar
que a hipótese está extra muros da ordem jurídica. Se quisermos, consi­
derando que toda a actuação que não tem relevância jurídica específica é
genericamente tomada como lícita, diremos que defrontamos aqui actuações
que não são im postas nem relevantes, são meramente lícitas.

I I — A lei, ao impor ao juiz o dever de julgar mesmo quando houver


lacuna, tem evidentemente em vista a verdadeira lacuna, e não a situação

(1) N o mesmo sentido vai o art. 126 do C ódigo de Processo Civil brasileiro.
(2) Doutrina de longe dominante entre os autores que se ocupam do problem a.
Cfr. por exem plo Eduardo Espínola e Eduardo Espínola F ilho, L ei de Introdução, págs. 8 a 10.
387

extrajurídica. Em amb&s' as hipóteses há falta de regra específica, mas só


o caso lacunoso deve aer juridicamente regulado. É explícito o art. 102/2
do Estatuto Judiciário português, que dispõe: «O juiz não pode abster-se
de julgar, invocando a falta ou a obscuridade da lei, desde que o caso sujeito
a apreciação jurisdicional deva ser juridicamente regulado».

III — Esta distinção corresponde ao sentir comum. O sentimento


jurídico corrente basta para que não aconteça porem-se em tribunal acções
referentes a matérias extrajurídicas. Mas, paradoxalmente, esta singeleza
prática não se alicerça numa distinção doutrinária precisa. A distinção
das lacunas e das situações extrajurídicas,. dos casos que devem ou njío
ser juridicamente resolvidos, é extremamente difícil. N ão há nenhuma
receita de efeito assegurado que perm ita a demarcação dos dois campos.

IV — Como proceder, então? O critério tem de tornar-se fundam ental­


mente valorativo.
Deve perguntar-se antes de mais se o caso, encarado pelo ponto de vista
da solução normativa que se pretende, respeitaria antes às ordens religiosa,
moral ou de cortesia, ou se pelo contrário revestirá os caracteres próprios
do jurídico. Entram em acção os princípios fundamentais sobre a distinção
do direito e das restantes ordens norm ativas.
Se se concluir que o caso pertence a outra ordem normativa, deve ser
afastado — e isto ainda que doutros lugares da lei resultasse que hipóteses
análogas teriam recebido tratam ento jurídico.
Se pelo contrário se concluir que o caso cabe dentro da descrição funda­
mental da ordem jurídica, ainda é necessário determinar se ele deve ser ju r i­
dicam ente regulado. Tem de se encontrar algum indício norm ativo que per­
mita concluir que o sistema jurídico requer a consideração e solução daquele
caso.

231. A lacuna e a sua determinação

1 — Com isto já podemos chegar a um a noção de lacuna. Podemos


adapt-ar para os nossos fins uma fórm ula corrente entre os autores alemães
e dizer que lacuna é uma inçompleição do sistema normativo que contraria
o plano deste. Necessário é porém que acentuemos que essa contradição
é objectiva, e que há lacunas no sistema jurídico propositadamente abertas
pelo legislador.
Daqui deriva que a própria afirmação da existência de lacunas resulta
de um a tarefa de vai oração; só valorando nós poderemos dizer se determ inada
388

não-regulamentação contraria ou não o plano^ou a concepção do sistema


jurídico (1).
Podemos fazer a comparação com uma obra de arquitectura. N ão
dizemos que tudo o que lá não está é lacuna — pode não estar e- nenhuma
razão haver para estar. Mas pode faltar um bocado — um corpo do edifício,
um a varanda, um telhado — que contrarie a própria traça do edifício, e
só então dizemos que há uma lacuna.
De facto, há lacuna quer quando falta a previsão de um caso que deve
ser juridicamente regulado, quer quando, havendo previsão, falta a esta-
tuição. No primeiro caso fala-se em lacuna da previsão, no segundo em
lacuna de regulamentação. Observe-se apenas que a remessa para um
critério formal de solução, como a equidade, não obsta a que se verifique
um a lacuna de regulamentação.

II — Para indagar da existência da lacuna, perguntamo-nos se o caso,


encarado pelo ponto de vista da solução normativa que se pretende, respeita
à ordem jurídica ou a qualquer outra ordem normativa. É pois necessário,
na própria fase de determinação da lacuna, encarar o caso de harm onia com
uma conseqüência jurídica que lhe estaria eventualmente associada.
Isto nos demonstra que determinação e integração de lacunas, se bem
que conceitualmente distintas, se podem realizar mediante a mesma ope­
ração intelectual. Assim acontece de facto na generalidade dos casos:
apurada a lacuna, confirmada está a hipotética solução a cuja luz o caso foi
considerado.
Por este caminho poderia até chegar-se à posição extrema: a determinação
e a integração da lacuna confundir-se-iam sempre na mesma operação.
Mas esta posição não seria verdadeira. Pelo menos em numerosos casos
de lacunas de regulamentação podemos adiantar a existência de lacuna sem
qualquer compromisso quanto à solução desta.
Assim, se há contradição entre soluções legais dadas a um determinado
caso podemos ter uma lacuna de regulamentação, dentro de uma das saídas
possíveis da figura da interpretação ab-rogante, mas podemos imediata­
mente afirmar que há uma lacuna. O mesmo se passa se a lei impõe um
fim, e falta o processo ou o órgão indispensáveis para a obtenção desse fim.
Temos então a chamada lacuna técnica, mas a determinação desta é inde­
pendente da respectiva integração.

(1) Sobre os problemas que nesta fase se suscitam é fundamental o estudo de Canaris,
D ie Feststellung von Lücken im Gesetz.
389

232. Integração e interpretação

I — Não nos podemos adiantar nos problemas suscitados no domínio


da descoberta ou detecção de lacunas. Vamos limitar-nos a apontar um
deles, e com isso conseguiremos já uma primeira relacionação desta matéria
com a da interpretação.
A primeira observação deve ser a de que a integração, supondo as ope­
rações de tratam ento do material normativo que referimos já, não se con­
funde com elas. Nomeadam ente, a integração supõe a interpretação (em
sentido técnico) mas não é ela própria a interpretação.
Supõe a interpretação, desde logo no momento da determinação da
lacuna: só após termos, pela interpretação, apurado qual o sentido das fontes
existentes, podemos concluir que o caso não está especificamente regulado.
Por exemplo, pode haver aparentemente lacuna, mas na realidade tudo se
resolver por interpretação extensiva.
Mas a integração supõe também a interpretação no momento da inte­
gração da lacuna. A integração por analogia, por exemplo, supõe a inter­
pretação cuidada das fontes que, por analogia, são declaradas aplicáveis.
Isto compreender-se-á por si, quando adiante estudarmos a analogia.

II — Lacunas ocultas.
Até por vezes, a função da interpretação é mais delicada. Há regras
aparentemente genéricas, que parecem cobrir todo um sector mas, através
da interpretação restritiva, verifica-se que não foi explicitada uma excepção
ou restrição que deveria existir de harmonia com o próprio sentido da lei.
Temos de concluir que aquele caso não está abrangido pela regra.
Ao menos na generalidade das hipóteses, isto significará que o caso é lacunoso.
A interpretação restritiva conduziu aqui à descoberta duma lacuna (1).
Assim aconteceria por exemplo se a lei determinasse, em regra aparentemente
genérica, a forma de celebração do casamento, e se viesse depois a apurar
que não era aplicável aos casamentos in articulo mor tis: haveria lacuna quanto
à forma de celebração destes. Fala a doutrina nestes casos em lacunas
escondidas, ou ocultas.

III — Mas por outro lado a integração não se confunde com a inter­
pretação, em sentido restrito. Está em causa sobretudo a interpretação
extensiva. Já dissemos uma palavra neste sentido, mas convém reexaminar
globalmente o problema.

(1) Cfr. a nossa Tipicidade, ir.° 87.


390

233. Integração e interpretação extensiva

I — Em princípio, a distinção dos dois processos é muito simples.


A interpretação dirige-se à determinação das regras, trabalhando sobre
a fonte. Pelo contrário, para haver integração tem de se partir da verificação
de que não há nenhuma regra, conclusão esta que pressupõe uma tarefa
de interpretação das fontes, como vimos.
O critério pode ser delineado com precisão, o que não quer dizer que
na prática não surjam problemas da maior complexidade. A interpretação
extensiva pressupõe que dada hipótese, não estando compreendida na letra
da lei, o está todavia no seu espírito: há ainda regra, visto que o espírito é
que é o decisivo. Quando há lacuna, porém, a hipótese não está com preen­
dida nem na letra nem no espírito de nenhum dos preceitos vigentes.
Retomemos um exemplo anterior. Dissemos que o Código Civil por­
tuguês regula em títulos diferentes a servidão e o usufruto. A propósito
da servidão, estabelece-se que a impossibilidade de exercer a servidão não
im porta a sua extinção (art. 1571). Para o usufruto não se encontra pre­
ceito semelhante (1).
Também a impossibilidade de exercer o usufruto provocará a sua
extinção? Não se pode dizer que, por interpretação extensiva, a citada
regra deve abranger também o usufruto? Que a letra da lei é demasiado
restrita, pois o pensamento legislativo seria outro?
Supomos que não se pode. Ao regular a servidão, o legislador não
disse menos do que queria por não referir o usufruto; só a servidão poderia
estar em causa, como resulta do elemento sistemático da interpretação.
A disposição referente ao usufruto deveria surgir no título do usufruto e
não surge. Logo há uma lacuna.
Se considerarmos pois que, de qualquer modo, a regra da servidão
pode ser aproveitada para o susufruto (e estamos apenas a sugeri-lo, rião
a afirmá-lo) estaremos a preencher a lacuna na regulamentação do usufruto
por analogia, e de modo algum a fazer interpretação extensiva.

II — As dificuldades adensam-se todavia pelo facto de haver quem,


como Betti (2) e outros autores do continente europeu, caracterize a inter­
pretação extensiva por esta se limitar a escolher um dos sentidos possíveis
do texto, e fale em integração logo que se transcendem os sentidos gramati-

(1) Supra, n.° 226, onde concluím os pela im possibilidade de utilização do argu-
rnento a contrario.
(2) Interpretaiione delia legge.
w

391

cais. Quer dizer, a interpretação extensiva confundir-se-ia com aquilo que


designamos interpretação lata, como modalidade de interpretação declara-
' tiva; e aquilo a que chamamos interpretação extensiva não se distinguiria
'da analogia para estes autores. Desde que tivéssemos de ultrapassar o
texto cairíamos no âmbito da analogia.
Se a*questão fosse meramente de escolha entre duas técnicas alterna­
tivas, escolheríamos sem hesitar a que distingue interpretação extensiva e
analogia, como operações possíveis sempre que é necessário ir além do texto.
Porque é essa técnica que é utilizada por lei.
Assim, o art. 10 do Código Civil português exclui a aplicação das nor­
mas excepcionais, mas admite a interpretação extensiva.
O art. 111 do Código Tributário Nacional brasileiro impõe a inter­
pretação «literal» de certas modalidades da legislação tributária negativa;
com o que se quer excluir, não apenas a extensão analógica, mas também
a interpretação extensiva.
Em matéria penal, resulta de várias disposições da lei portuguesa que
os preceitos incriminadores não são susceptíveis de analogia nem de inter­
pretação extensiva, enquanto que as disposições que estabelecem as penas
não são susceptíveis de analogia mas admitem interpretação extensiva (1).
O art. 3.° do Código de Processo Penal brasileiro admite «interpre­
tação extensiva e aplicação analógica».
N ão vemos como conseguirá a doutrina uniform izadora dar sentido a
estas disposições, que têm um evidente conteúdo preceptivo e exigem uma
técnica que as explique. Não vemos com que critério fará distinção dentro
daquilo a que se chama analogia, senão recorrendo justamente à doutrina
corrente.

III — Mas mesmo no plano das construções jurídicas nos parece mais
correcta a distinção entre interpretação extensiva e analogia, apesar das
dificuldades de aplicação que dissemos já que se suscitam quando em con­
creto desejamos saber se estamos perante uma ou outra situação. O cri­
tério é em si seguro: num caso estamos ainda a extrair a regra, implícita
num texto imperfeito; no outro nada encontramos implícito, porque há
uma lacuna. E pensamos que os autores que negam esta orientação se
encerram no seguinte dilema:
— ou reduzem a lei à letra, e por isso têm de considerar lacunoso tudo
. o que a letra já não abrange;

. (1) N o Brasil, faltando textos precisos sobre a adm issibilidade da interpretação


extensiva, tem -se respondido em sen tido afirm ativo, e com razão. Cfr. M agalhães N oro­
nha, D ireito Penal, n.u 36. F.m qualquer caso, vem os que a distinção é do uso quotidiano
da doutrina.
26
392

— ou consideram que estão inscritas na lei todas as soluções a que se


chegará com a utilização da analogia, mas então têm logicamente de concluir
que nesse caso não existia afinal lacuna.
Ambas as soluções são inadmissíveis. A lei tem um sentido objectivo,
e por isso não podemos proceder como se tudo se reduzisse à letra; mas
para além desse sentido há efectivamente lacuna, e só a integração nos pode
revelar uma regra nova, diversa da que está contida na fonte (1).
Com esta conclusão apenas obedecemos aos preceitos da lei sobre esta
matéria. A lei repudia uma interpretação que se cinja à letra (2); e clara­
mente separa esta operação (a reconstituição, a partir dos textos, do pensa­
mento legislativo) da integração das lacunas.

234. Processos extra-sistemáticos de integração

I — Se se detecta uma lacuna no tecido normativo, como resolver os


casos concretos que surgirem? Respondendo a esta pergunta estaremos
expondo os processos de integração das lacunas.
Esses processos podem ser
— extra-sistemáticos
— intra-sistemáticos (3)
Em qualquer caso a ordem jurídica nos tem de apontar o processo a
que podemos recorrer para ultrapassar a paragem provocada pela lacuna.
Mas, se o processo é intra-sistemático, a solução terá de ser conforme ao
conjunto de disposições vigentes; se o processo é extra-sistemático, pode
a solução extravasar dos dados actuais e fundar-se noutros critérios. Neste
caso, como o processo não é caracterizado pelo dado objectivamente con­
trolável da conformidade ao sistema, a unidade e objectividade das soluções
e a possibilidade da sua previsão pelas partes ficam comprometidas. Em
contrapartida, o método procurará justificar-se por uma maior adequação
à situação tal como se delineia historicamente.

(1) Sobre esta matéria, e sobre outros processos que com este se podem relacionar,
com o a restrição ou a interpretação correctiva, cfr. a nossa Tipicidade, n.° 88.
(2) Art. 9 .°/l do C ódigo Civil português, por exem plo. M esm o quando a lei com anda
a interpretação literal, com o no referido art. 111 do C ódigo Tributário N acional (brasi­
leiro), o que na realidade estabelece é a exclusão da interpretação extensiva.
(3) Carnelutti, Teoria generale dei diritto, n.os 39 e 40, e no seu seguim ento D ias
M arques, Introdução, n.° 77, falam em hetero-integração e auto-integração. R ejeitam os
estas expressões porque estão com prom etidas por uma polem ica que não é essencial a este
f o m e n t o de análise.
393

II — Os processos extra-'sistemáticos de solução podem ser:


— normativos
— discricionários
— equitativos
O procésso normativo consiste em m atar o problema da lacuna, através
da emissão de uma regra que preveja aquela situação. Um órgão com
competência legislativa terra a função de ditar a regra faltosa, à medida que
os casos omissos severificavam.
Se bem que se possam apresentar exemplos históricos neste sentido,
as desvantagens do sistema são manifestas, ppis a mistura da solução do
caso concreto e da função legislativa pode trazer más leis e más soluções
do caso concreto. Por outro lado, semelhante processo deixava toda a
vida jurídica dependente desta decisão, e impedia os interessados de saber
antecipadamente com o que poderiam contar. Não adm ira por isso que
o sistema tenha sido modernamente repelido.

III — A solução discricionária de casos omissosdar-se-ia quando a


dada entidade adm inistrativa fosse reconhecido o poder de resolver, fundada
em razões de conveniência, as situações para que não existisse regra; mas
de as resolver em concreto, e não pela emissão de- uma disposição genérica,
caso contrário estaríamos caídos na hipótese anterior. O Rei ou o Gover­
nador, ou quem fosse competente, resolveria no sentido A ou no sentido B.
Com isto não deixaria de haver lacuna no ordenam ento jurídico, pois só
se teria chegado à solução do caso concreto.
O sistema tem todos os inconvenientes do anterior, praticamente, e
não tem a vantagem de suscitar a definição da ordem normativa. Não
admira por isso que tenha sido também abandonado.

IV — Pode-se todavia perguntar se não haverá uma revivescência dos


processos mencionados. São numerosos os diplomas em que se atribui
a certo órgão o poder de integrar as lacunas. Publica-se por exemplo o
novo regime da fiscalização rodoviária e determina-se: «Os casos omissos
serão resolvidos por portaria do M inistro das Comunicações».
Pareceria que se prevê, mais que uma solução administrativa, uma solu­
ção legislativa, que aliás teria os maiores inconvenientes. Mas não é neces­
sário avançar na sua caracterização, porque supomos que, em rigor, não
se encontra aqui nenhum processo de integração da-lei.
Se ao M inistro tivesse sido atribuído o poder de integrar isto significaria
que os órgãos normais de aplicação do direito teriam de parar, enquanto
esse órgão se não pronunciasse. Mas não é assim, e as formas comuns de
integração não deixam de funcionar. O que se passa tem uma relevância
394.

bem diversa: dá-se uma alteração da normal hierarquia das fontes do direito (1),
permitindo-se que um diploma de grau inferior vá, para este efeito, partilhar
do campo do diploma de nível mais elevado, uma vez que se lhe permite
regular genericamente matérias omissas naquele primeiro diploma (2).

V — A solução equitativa merece uma referência à parte.

235. A equidade

I — A equidade representa o mais significativo processo extra-siste-


mático de integração de lacunas.
É costume referir a equidade exclusivamente à actuação dos tribunais,
mas sem razão. Se a lei dispõe que determinado litígio entre particulares
deve ser resolvido pela equidade — por exemplo, a demarcação de terrenos
vizinhos quando os títulos ou a posse de ambos forem inconcludentes — não
estabelece um processo só actuável pelo tribunal. Podem as partes, de boa
mente, ceder reciprocamente o necessário para que a demarcação se perfaça
com justiça. Isto nos mostra que o recurso a um processo extra-sistemático
de solução não significa a reserva da integração da lacuna a uma determi­
nada entidade exterior às partes, que ficaria com o poder de resolver em
definitivo.

II — A solução pela equidade é a solução de harmonia com as circuns­


tâncias do caso concreto, e não com quaisquer injunções, mesmo indirectas,
do sistema jurídico. A equidade, segundo a definição que referimos já,
é a justiça do caso concreto, ao qual se adapta plenamente, porque plena­
mente valora as circunstâncias de cada espécie.
A equidade não está necessariamente vinculada à matéria da integração
das lacunas do sistema jurídico. Pode a equidade funcionar também quando
há norm a — quando se permite para certos casos a substituição da deter­
minação legal por um ajuste equitativo, ou uma aplicação da norma que se
adeque às circunstâncias do caso concreto. Assim, se se permite que a
fixação do montante da indemnização seja realizada pelo juiz mediante

(1) Sem a qual seria vedado ao diplom a dc grau hierárquico inferior integrar o de
grau superior. A ssim , o regulamento não pode suprii as lacunas da lei, mas apenas esp e­
cificá-la se a matéria não for reservada à lei: cfr. Them istocles Brandão C avalcanti, Teoria,
Págs. 146-147.
(2) C om o é natural, o facto de afirmarmos que não se trata verdadeiramente de
um processo de integração de lacunas não im pede que por outro lado se critique a sua
oportunidade.
395

critérios de equidade, é essencialmente um momento de aplicação da regra


sobre responsabilidade civil que é subtraído a critérios de direito estrito
para ser submetido à equidade.

III — Perante a referência aos princípios gerais do direito, da primitiva


lei de introdução ao Código Civil brasileiro, houve quem pretendesse que
era afinal a equidade que se tinha em vista; e posições análogas têm sido
defendidas perante a nova le i(l). Também no domínio do antigo Código
Civil português houve quem pretendesse que a equidade era a solução con­
sagrada na lei: onde se dizia que em última análise se devia recorrer aos
princípios de direito natural, conforme as circunstâncias do caso, signifi­
cava-se que se devia resolver segundo a equidade. A posição mais estru­
turada neste sentido é a de Castanheira Neves, e é muito recente. Recorre
ele ao «próprio e autônom o sentido jurídico do caso concreto» (2), apresen­
tando aliás esta solução como a única admissível. E é curioso que o autor
interprete neste sentido a fórmula de Aristóteles, que como veremos está
na origem duma fórmula utilizada pelo Código Civil português actual. Isto
permite concluir que também a nova fórmula legal pode ser interpretada
por esta corrente como atributiva do poder de resolver o litígio de harmonia
com o que resulta do caso individual.

IV — Supomos que esta orientação:


— não é racionalmente necessária;
— contraria o disposto na lei.
A primeira afirmação comprovar-se-á pela exposição subsequente dos
processos de integração de lacunas que consideramos admitidos.
A segunda funda-se no art. 127 do Código de Processo Civil brasileiro,
em virtude do qual o juiz só decidirá pela equidade nos casos previstos em
lei; e no art. 4.° do Código Civil português, que prevê especificamente as
hipóteses em que os tribunais podem resolver segundo a equidade. Há
um acento restritivo na admissão destes casos em que os critérios normais
são arredados, e só muito secundariamente cabem lá hipóteses de integração
de lacunas.

(1) É curioso observar a este propósito que no art. 8.° da C onsolidação das Leis
d o Trabalho se manda, na falta dc disposições legais ou contratuais recorrer, além de
outras figuras, à «equidade e outros princípios e norfrias gerais’do direito». A equidade é
assim qualificada com o princípio geral do direito. O preceito é tod o ele tecnicam ente
m uito im perfeito, confunde a-determ inação das fontes e a integração das lacunas, e suscita
as maiores dificuldades de aplicação.
(2) Questão-de-facto — Q ueslão-de-D ireito, pág. 317.
396

N ão podemos por isso considerar a equidade um processo normal de


integração. Só o poderíamos fazer se isso resultasse das disposições gerais
sobre esta matéria; veremos que não é também o caso (l).

V — E compreende-se este regime. A resolução segundo a equidade


tem incontestavelmente a vantagem de perm itir no caso concreto uma m aior
adequação. Mas tem inconvenientes gravíssimos, como aliás todos os
processos extra-sistemáticos de integração.
Sem examinar em especial a equidade, há um inconveniente que não
queremos omitir, porque muito ligado à matéria da integração das lacunas.
Semelhante regime em nada contribuiria para a definição da ordem jurídica.
Após a solução dum caso litigioso tudo estaria na mesma, e cada novo caso
qué surgisse teria de ser decidido somente pelas suas particulares condições.
Assim posterga-se a certeza do direito, esquecendo-se a preocupação gene-
ralizadora que, a nosso ver muito acertadamente, o legislador impôs no
art. 8.° do Código Civil português, m andando ter em consideração todos os
casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação
e aplicação uniformes do direito.

VI — O art. 114 do antigo Código de Processo Civil brasileiro dispunha


que, quando autorizado a decidir pela equidade, o juiz aplicaria a norm a
que estabeleceria se fosse legislador. Este preceito foi suprimido pelo novo
Código de Processo Civil, mas o seu parentesco com o recurso do actual
Código Civil português à norma que o interprete criaria poderia levar a
confundir este processo com a equidade.
E uma hipótese que podemos repudiar inteiramente desde já, porque
a definição do art. 114 era equivocada, e por isso foi muito justam ente
suprimida.
Quando decide segundo a equidade, o juiz não decide segundo uma
norma, mas segundo as características do caso' concreto. Não abstrai,
procurando uma solução adequada a todos os casos daquele tipo — uma
regra — mas pelo contrário considera o caso nas suas particularidades,
de maneira a encontrar uma solução que a ele especificamente se adeque,
à luz do valor Justiça. A referência à procura dum a norma indiciaria uma
solução generalizadora, que frustraria afinal os objectivos que se pretendem
com o recurso legal à equidade.

(1) À equidade mandam todavia recorrer, nos ramos respectivos, o referido art. 8.°
da C onsolidação das Leis do Trabalho e o art. 108 do C ódigo Tributário N acional (brasileiro).
397

236. Processos intra-sistemáticos de solução. Ò costume

I — Restam-nos pois os processos intra-sistemáticos de solução, que são:


— a analogia (art. 4.° da Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro
e art. 10.° do Código Civil português); .
— os princípios gerais de direito (art. 4.° da Lei de Introdução);
— a norma que o intérprete criaria (art. 10.° do Código Civil português).
Mas o art. 4.° da Lei de Introdução refere também os costumes como
critério de integração de lacunas. A referência não é casual: a primitiva
lei de introdução previa apenas o recurso à analogia e aos princípios gerais
do direito. A lei de 1942 introduziu, entre aquelas duas previsões, a refe­
rência aos costumes. Temos portanto de averiguar qual o significado do
costume para a finalidade da integração.

II — Para o referido art. 4.° há um a hierarquia na aplicação dos cri­


térios de solução (1): ao costume só se pode recorrer se não houver norm a
análoga, e só se recorre aos princípios gerais do direito se a analogia e o
costume não derem a solução.
Isto resulta da adopção pela referida lei duma posição preconceituosa
de primado absoluto da lei sobre as restantes fontes do direito: a intervenção
do costume só seria admissível quando não. houvesse lei análoga que cobrisse
aquela situação. Estaria pois numa posição secundária. Em todo o caso,
primaria sobre os princípios gerais do direito, pois traz directamente um a
regra, enquanto que o princípio geral tem um carácter mais difuso.
Recordando a classificação clássica do costume, diremos que o que se
prevê aqui é o costume praeter legem, aquele que toca pontos não abran­
gidos pelas disposições legais. Sofreria aliás uma restrição ulterior, pois
seria preterido pelas disposições de leis análogas. E com isto por m aioria
de razão se exclui a relevância do costume contra legem: a lei não poderia
ser contrariada por meros costumes. Só quando a lei de todo silenciasse
é que o costume poderia fazer ouvir a sua voz.

III — Esta é a posição legal. Mas a posição legal não está imune da
crítica que em geral desferimos às afirmações legais sobre relação entre lei
e costume. Assentam elas no pressuposto de uma superioridade da lei que
está longe de podermos ter por assente. O fenômeno do desuso já nòs

(1) Cfr. A lípio Silveira, Analogia, pág. 240. O art. 108 do C ódigo Tributário N a c io ­
nal brasileiro, atrás referido, impõe expressam ente a utilização hierárquica dos critérios
que consagra.
398

demonstra uma igualdade fundamental de valia de lei e costume. Con­


cluímos em geral que estas fontes podem actuar em sentidos não coincidentes,
e que será só a «prova dos factos» que nos indicará qual delas conseguirá
afinal a supremacia.

I V — No que respeita especificamente à matéria da integração, deve­


mos dizer que a própria colocação dada ao problema pelo art. 4.° não pode
ser aceite. O costume não pode ser considerado meio de integração de
lacunas porque, se há costume, não há lacuna. Há lacuna quando deter­
minada situação não é regulada por regra positiva, assente em fonte do direito
vigente, e quando há um costume há uma regra costumeira, por definição.
A matéria não é pois lacunosa.
*0 equívoco deriva, quanto a nós, de se ter colocado a questão sob o
ponto de vista da integração das lacunas da lei (1). O costume serviria então
para integrar lacunas da lei. Mas o que interessa são as lacunas do direito
ou do ordenamento jurídico. Quando não há lei mas há costume, o costume
aplica-se pura e simplesmente, e se há fonte aplicável não há lacuna (2).
O problema da lacuna só se suscita, e só se pode pôr a hipótese de um a inte­
gração por analogia ou outro processo, quando um a determ inada situação
não for coberta por nenhuma das fontes existentes.

237. A analogia

1 — A analogia repousa na exigência, a que o pensamento actual é


extremamente sensível, do tratam ento igual de casos semelhantes. Se uma
regra estatui de certa maneira para um caso, é natural que, apesar do silêncio,
um caso análogo seja resolvido da mesma forma. Uma regra que disciplina
a administração das sociedades por quotas pode ser aplicável às sociedades
anônimas, havendo a mesma razão de decidir. O intérprete procederá
então de semelhante a semelhante, na feliz expressão das nossas O rdena­
ções (3).
Muitas vezes, o jurista prático tira indevidas conseqüências do silêncio
do legislador. Se se estabeleceu, dir-se-á, que o caso A é resolvido desta
form a e nada se diz para o caso B, isso significa que ele é resolvido de form a
diversa. Mas assim está-se a usar o argumento a contrario, que vimos que
é muito perigoso, pois só é legítimo se se demonstra o carácter excepcional

(!) É esta a própria epígrafe do art. 10 do C ódigo Civil português.


(2) N este sentido, por exem plo, R otondi, lstitu zion i d i diritto p riva/o, n." 56.
(3) Livro 111, título 69.
399

da regra que fornece o ponto de partida. Em geral essa demonstração não


é possível pelo que, perante o silêncio do legislador, haverá antes que Fecorrer
à regra oposta, e fazer funcionar a analogia, dada a exigência do tratam ento
igual de casos semelhantes.

II — Determinar porém onde há verdadeiramente e onde não há an a­


logia é extremamente difícil, e por isso se exige toda a finura por parte do
intérprete. Não basta uma semelhança da descrição exterior da situação:
é necessário que haja semelhança sob o ponto de vista daquele efeito jurídico.
Por isso nos diz o art. 10 do Código Civil português que há analogia quando
no caso omisso procedem as razões justificativas da regulamentação do caso
previsto na lei. Daí a distinção da analogia lógica e da analogia jurídica:
esta, ultrapassando a mera verificação, tem carácter axiológico.
A referida fórmula é também um tanto exagerada, pois se procedessem
todas as razões justificativas da regulamentação do caso previsto não teríamos
um caso análogo, teríamos um caso idêntico. O caso omisso tem de ter
sempre alguma diversidade: é relativamente semelhante, mas é também
relativamente diverso. O que a analogia supõe é que as semelhanças são
mais fortes que as diferenças: há um núcleo fundamental nos dois casos que
exige a mesma estatuição. Se esse núcleo fundamental pesar mais que as
diversidades, podemos então afirmar que há analogia.
O que quer dizer que é sempre e só através dum a valoração, dirigida à
descoberta da essência daquela situação, que nós podemos chegar à afir­
mação de que há analogia: todos os processos meramente descritivos são
insuficientes (1).

III — A integração duma lacuna pode fazer-se por analogia com qual­
quer regra actual. Essa regra tanto pode ser legal, como consuetudinária,
como jurisprudencial: toda a regra do ordenamento jurídico é utilizável (2).

238. Proibições do uso da analogia

Apesar desta instante justificação da analogia, há certos casos em que


considerações mais fortes a excluem. Estão sobretudo em causa as regras
excepcionais e as regras penais positivas.

(1) C oncorre tam bém neste sentido o art. 5." da Lei de Introdução a o C ódigo Civil
brasileiro. ' >
(2) Um acórdão do Suprem o Tribunal de Justiça de Portugal excluiu a aplicação
por analogia de um assento (acórdão de 18 de Abril de 1969, Boi. Min. Just. n.° 186/190)
mas erroneamente. Veja-se a anotação desfavorável de Vaz Serra, na Rev. Leg. Jur.,
103/360.
400

I — Regras excepcionais.
Assentámos atrás (1) na existência de regras substancialmente excepcio­
nais, correspondentes ao ius singulare romano. Estas regras é que não
poderão ser aplicadas analogicamente.
O método da determinação substancial é o que nos parece conforme com
o estado das fontes no Brasil e em Portugal.
No Brasil, o art. 6.° da primitiva Lei de Introdução rezava: «A lei que
abre excepção a regras gerais, ou restringe direitos, só abrange os casos que
especifica». Essa disposição foi suprimida, e com isso a maioria dos autores
deixou simplesmente de referir a categoria do direito excepcional. Os que
o fazem, limitam-se à afirmação de que o mesmo princípio continua em
vigor (2). A supressão teria pois resultado da preocupação de excluir da
lei a&regras gerais sobre interpretação, consideradas ao tempo, como sabemos,
mais próprias de obras científicas.
É diferente a situação legislativa portuguesa. Perante preceito da lei
antiga, de várias maneiras se tentou delimitar um círculo mais restrito dentro
do qual a regra excepcional pudesse ser analogicamente aplicável (3). Ins­
pirando-se nessas tentativas, o art. 11 do Projecto de Código Civil ainda
determinava que as normas excepcionais «não com portam aplicação analó­
gica se as normas gerais correlativas contiverem princípios essenciais de ordem
pública». Esta restrição foi todavia suprimida do texto definitivo (4), pelo
que o problema ficou confiado à doutrina.
Isto significa que, quer no Brasil quer em Portugal, temos o campo
aberto para excluir da aplicação analógica as regras que contrariam prin­
cípios fundamentais, informadores da ordem jurídica ou de um ram o do
direito em particular.

II — Regras penais positivas.


As regras que definem os crimes e estabelecem as penas e respectivos
efeitos também não podem ser aplicadas por analogia (5).

(1) Supra, n.° 228.


(2) Cfr. por exem plo Oscar T enório, Com entário, n .ü 176.
(3) Cabral de M oncada, Lições de D ireito C ivil, 1.° voi., n.° 6, ai. d. A ssim procedia
a doutrina italiana: cfr. por exemplo R otond i, Istituzioni, n.° 54.
(4) Cfr. D o Projecto ao Código Civil (com unicação do M inistro A ntunes Varela
à Assem bleia N acional), n.° 7: ai dá-se com o justificação o ter-se considerado qüe se não
havia conseguido encontrar uma formulação satisfatória para o princípio que se visava
estabelecer.
(5) C ontrapõem -se a estas regras as regras penais negativas, com o as que estabelecem
as causas de justificação e de escusa. Sem elhante restrição não se lhes aplica. Engisch,
Der B egriff der Rechtsliicke, págs. 94 e 95, aponta o facto com o dem onstrativo de que não
há nenhum a proibição geral da analogia.
I
401

Razões muito fortes de defesa da liber.dade individual contra eventuais


abusos do poder impõem este princípio, chamado da tipicidade. As pró­
prias Constituições Políticas dos países integrados no sistema romanístico
de direito contêm a garantia de que ninguém será sentenciado criminalmente,
se não houver lei anterior que declare puníveis o acto ou omissão (1).
Observe-se todavia que a regra penal positiva não é aplicável analogica-
mente por força de preceito legal específico, e não por ter carácter excepcional,
ao contrário do que em tempos mais recuados se pensou.
Objecto desta proibição é a aplicação analógica, e não a interpretação
extensiva, da regra excepcional. O art. 11 do Código Civil português
é explícito neste sentido.

III — Como vimos, o art. 6.° da antiga Lei de Introdução brasileira


vedava ainda a aplicação analógica das leis que restringem direitos. Desta
previsão se fizeram vastas aplicações (2). Mas tudo isto foi afastado pela
nova lei por ter conotação individualística, pelo que hoje não é por a lei res­
tringir direitos que não pode ser aplicada por analogia.
Observe-se ainda que afirmações como a de que «ninguém será obrigado
a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei» (3), que esta­
belece o princípio da legalidade, não implicam de modo algum a exclusão
da analogia (4).

239. O significado das tipologias legais

I — O tipo na ciência actual.


Pode-se perguntar também se, quando a lei recorre a uma tipologia,
a utilização da analogia fica vedada.
A descrença nos conceitos trouxe para o primeiro plano da ciência
moderna a noção de tipo (5).
Correspondendo a uma das noções de tipo actualmente utilizadas (6),
o pensamento tipológico contrapõe tipo e conceito, porque o tipo evita a
rigidez do conceito. O tipo tem fronteiras por natureza fluida s. Resulta

(J) Cfr. as C onstituições Poiíticas brasileira (art. i53/§ 16) e portuguesa (art. 29/1,
embora com a restrição constante do n.° 2).
(2) Cfr. Carlos M axim iliano, Herm enêutica, n .os 275 e segs.
(3) Art. 150/§ 2.° da C onstituição brasileira.
(4) Em sentido diverso A lípio Silveira, Herm enêutica, 1.° vol., págs. 231 a 241.
(5) Cfr. o capítulo introdutório da nossa A Tipicidade.
(6) Recorde-se a análise quase exaustiva de Engisch, em D ie ldee der K onkretisierung
in Recht und Rechtswissenschafl unserer Z e it, Heidelberga, 1953.
402

de uma descrição de um elenco de características relevantes, mas as figuras


reais podem reunir um número maior ou menor dessas características, sem
deixarem de poder ser referidas a ele. Pelo contrário, um conceito é definido,
e as figuras que não possam subsumir-se à definição não podem integrar-se
no conceito.
A construção dos tipos tem, por vários caminhos, utilidade para a ciência
jurídica. O que não se pode é supor que os tipos, com o seu carácter neces­
sariamente fragmentário, possam alguma vez tornar desnecessária a utili­
zação de conceitos na metodologia jurídica.

II — O significado das tipologias.


Não é isto porém o que de momento nos interessa. Da utilização de
tipos passa-se à consideração das tipologias ou tipificações legais. A lei
tipifica quando prevê manifestações de um conceito, conseguindo desta
maneira especificar, e portanto avançar na concretização.
Não se confundem tipologia e enumeração. Podemos dizer que toda
a enumeração supõe uma tipologia mas que a inversa não é já verdadeira.
Uma tipologia legal pode existir mesmo quando se não encontra uma enume­
ra ç ã o — se resulta da conjugação de tipos referidos em lugares diferentes
da lei, por exemplo.
Quando o legislador tipifica, maxime quando enumera, e não esclarece
se a tipologia é taxativa ou enunciativa, devemos inferir daí o carácter excep­
cional da previsão, de modo que todos os restantes casos devam ficar excluí­
dos da analogia?
Por exemplo, o art. 1537 do Código Civil brasileiro dispõe:
«A indemnização, no caso de homicídio, consiste:
I — no pagamento das despesas com o tratam ento da vítima, seu funeral
e o luto da família, e
II — na prestação de alimentos às pessoas a quem o defunto os devia».

Devemos inferir daqui que a indemnização só consiste nestes ele­


mentos?
Outro exemplo: o art. 200 do Código Comercial brasileiro enuncia
cinco casos que devem ser considerados de tradição simbólica— portanto, de
aquisição da posse independentemente de entrega efectiva da coisa. Deve­
mos concluir daqui que mais nenhumas hipóteses podem ser qualificadas
como de tradição simbólica no domínio mercantil?
A conclusão seria precipitada. Não basta a lei apresentar vários casos
para se concluir pelo carácter taxativo desses casos. Pode a lei pretender
unicamente enunciar hipóteses. Em princípio deve até concluir-se pelo
i
403

carácter enunciativo das tipologias legais, só se lhes devendo atribuir outra


natureza quando razões especiais nos convençam nesse sentido (1’).

240. A analogia ju ris

I — Há uma modalidade de analogia que suscita especiais dificuldades (2).


Costuma distinguir-se a analogia:
— da lei, ou legis
— do direito, ou ju ris
Não são pacíficos os entendimentos quanto ao critério de distinção
destas duas categorias. Supomos que a distinção se deve fazer consoante
a analogia funciona pelo recurso a um a precisa solução normativa, que
pode ser transposta para o caso omisso, ou supõe a mediação de um prin­
cípio, elaborado a partir de várias regras singulares, só ele permitindo a
solução daquele caso (3). No primeiro caso utiliza-se uma disposição nor­
mativa; no segundo um princípio normativo que foi necessário elaborar
primeiro, e só através dele se chega à solução do caso.
Assim, de uma hipotética disposição que estabelecesse que as obrigações
contratuais se deviam exercer com boa fé, poderia por analogia legis con­
cluir-se que também as obrigações que não derivassem de contrato se deve­
riam exercer com boa fé, dada a proximidade das situações; mas já não
seria possível idêntica aplicação ao exercício de direitos não obrigacionais.
Para concluir que um direito de personalidade, por exemplo, deveria ser
exercido de boa fé teríamos de concluir primeiro pela existência de um prin­
cípio geral do dever de exercer com boa fé os direitos subjectivos. A extensão
que eventualmente se fizesse seria então justificada por uma analogia ju ris.

II — A admissibilidade de uma analogia ju ris, como processo de inte­


gração que se inclui ainda na analogia, poderá ser contestada. Antes de
mais, poderá perguntar-se se ela não é prejudicada afinal pelos outros dois
processos previstos na lei: os princípios gerais do direito da lei brasileira,
e a norma que o intérprete criaria do código português.
No que respeita aos p rin cípios g era is do direito, recorde-se que a figura
foi elaborada no século passado, por influência positivista, e dentro da preo-

(1) T ivem os de examinar vários problem as ligados a enum erações e, mais vasta­
m ente, a tipologias Jegais, no capítulo inicial do n o sso livro A Tipicidade. Ver ainda
Carlos M axim ilianó, H erm enêutica, n.° 283.
(2) Cfr. a nossa A Integração da s Lacunas da L ei e o N ovo Código Civil.
(3) N este sentido, por exem plo, Caio M ário dà Silva Pereira, Instituições de D ireito
Civil, vol. I.
404

cupação de demonstrar que o sistema poderia trazer a solução de todas as


hipóteses, mesmo não directamente previstas. Esses princípios seriam
extraídos dos preceitos legais, por processos essencialmente lógicos, proce­
dendo-se por abstracção crescente até se chegar aos princípios últimos, dom i­
nadores de todo o sistema. Ora, parece claro que desta maneira se vem
a absorver a problemática da analogia juris.
De facto, alguns autores brasileiros têm contestado a admissibilidade
da figura, ainda que não exactamente por esta razão (1).
Quanto aos autores portugueses não têm contestado a admissibilidade
da analogia juris. Nomeadamente, não a discutem os que sobre o tema
se pronunciaram no domínio do novo código. Mas como o art. 10 manda
resolver os casos omissos segundo a norma aplicável aos casos análogos, e
não segundo os princípios, pode perguntar-se se o código terá sacrificado
esta forma de analogia. Pode dizer-se que, desde que não houvesse solução
directamente aplicável, não haveria caso análogo, caindo-se consequente­
mente no âmbito do art. 10/3.

III — Não nos parece que estas imaginárias objecções fossem de acolher.
Em primeiro lugar, deve-se acentuar que a diferença entre a analogia
da lei e de direito é uma diferença de grau. Não há nenhum a linha estanque
entre a utilização directa duma solução e o recurso a um princípio. Em
certo sentido, pode afirmar-se que todo o recurso a uma solução impõe a
aceitação do princípio que unifica o caso omisso e o caso regulado.
A medida que a imagem de uma disposição directamente aplicável se
vai esbatendo, o papel do princípio torna-se mais nítido; mas isso só significa
que a essência das duas modalidades é idêntica, e a distinção é de grau. Não
há motivo para admitir uma e repudiar a outra.
Ora os princípios, assim entendidos, merecem-nos o mesmo respeito
que toda a restante ordem normativa. As críticas modernas fazem afastar
certos processos de elaboração de princípios mas não afastam os princípios
em si, de que todos os autores se continuam a reclamar. Tende-se a ter
um a visão mais ampla e menos legalista da ordem jurídica sobre que assen­
tariam esses princípios, o que só pode suscitar o nosso aplauso; mas não
se ultrapassa, supomos, a necessidade de princípios substanciais que expri-
mam a ordem jurídica e cuja aplicação permite a solução de casos omissos.
A estas conclusões não traz obstáculo o trecho do art. 10/3 do Código

(1) Assim , Óscar Tenório, Comentário à Lei de Introdução ao Código C ivil Brasileiro,
n.os 181 a 183, diz que a distinção, se bem que lhe pareça dever ser consagrada, não tem
valor perante o direito brasileiro, que se limita a falar no recurso à analogia. Mas o argu­
m ento é insuficiente, pois com grande frequência o intérprete tem de recorrer a subdivisões
doutrinárias para esclarecimento de dispositivos legais.
405

Civil português, pois a sua referência à norma não significa uma estatuição
concreta, mas uma disposição assente na lei.
Quanto à correlação entre a analogia juris e os princípios gerais de direito
previstos na lei brasileira será seguidamente objecto de um exame atento.

IV — Isto significa que a aplicação da analogia juris é necessariamente


mais complexa que a da analogia da iei, ou seja, que a analogia é tanto mais
delicada quanto maior for o afastamento entre caso omisso e um caso directa­
mente regulado. Sobretudo, devemos acentuar que mesmo a analogia da
lei assenta uma valoração, sendo sempre insuficientes os processos mera­
mente lógicos.
Foi isto que se esqueceu por vezes, e provocou as críticas que dissemos
já terem sido dirigidas à analogia de direito. Há a tendência de o intér­
prete, uma vez elaborado um princípio, procurar aplicá-lo automaticamente
a todos os casos omissos que ele pode abranger. Por muito instintiva que
seja esta tendência, não deixa de poder conduzir aos piores resultados, pois
é sempre necessária uma valoração final. Caso por caso temos de verificar
se a índole da situação não regulada4não nos deve levar a considerar que,
sendo embora formalmente enquadrada pelo princípio, substancialmente
lhe é estranha. Pois pode justamente aquela categoria de casos apresentar
particularidades juridicamente relevantes, que impedem a afirmação de uma
analogia.
Podemos até afirmar que todo o princípio enunciado o é sempre com
um carácter provisório. Por resultar de uma indução incompleta, a partir
dos casos que foram presentes ao intérprete, há sempre a necessidade de o
confirmar a cada novo caso que se apresenta.

V — Sustentamos assim a admissibilidade de uma analogia juris; mas


sustentamos também que esta se não confunde com os princípios gerais do
direito, nem com «a norma que o intérprete criaria», e destina-se a resolver
outras necessidades. É o que passamos a ver, examinando especificamente
estes dois critérios.

241. Princípios gerais do direito

I — Em que consistem verdadeiramente os princípios gerais de direito,


que o art. 4.° da Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro manda aplicar
no caso de se não encontrar disposição análoga nem costume? (1).

(1) Sobre esta matéria cfr. Óscar T enório, Lei cie Introdução, sub art. 4.°; L im ongi
França, Princípios Gerais de D ireito; -Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho, A L ei
de Introdução, n .os 56 e seguintes.
406

Elas não se confundem com a analogia ju ris, pois então a previsão seria
ociosa. Se a diferença entre analogia legis e analogia ju ris é gradual, como
defendemos, a duplicação de categorias seria inútil, pois bastaria falar sim­
plesmente em analogia.

II — Mas a essência do problema toca-se se lançarmos esta pergunta:


o princípio é uma regra?
Pressupomos a categoria regra ou norm a, com os seus momentos cons­
titutivos, e o seu conteúdo necessariamente material. Prevê-se um dado
tipo de facto e/ou situação e a este é normativamente associada uma con­
seqüência jurídica. A norma é um critério material de apreciação e solução
de casos concretos, não um critério formal, que não explicitaria o que ficaria
a caber a cada um.
Em abstracto, nada impediria que a expressão «princípio geral» fosse
entendida como referida a uma regra. A partir das disposições concretas
haveria uma regra de maior amplitude que se obteria, e que permitiria enqua­
drar, embora de maneira mais vaga, os casos concretos.
Mas a ser assim, seria a função da remissão legal para os princípios
gerais do direito que ficaria frustrada.
Na verdade, pretende-se com ela dar um critério último de decisão que
atinja o objectivo de não deixar sem resposta os casos da vida.
Ora, nem todas as lacunas se deixam superar por processos analógicos.
Sem ficção, não podemos pretender que as regras, quer as expressas quer
as induzidas, bastem para resolver todos os problemas. Lembremo-nos
daqueles ramos de direito que só tardiamente foram objecto de regulamentação
sistemática — o Direito Internacional Privado, por exemplo, no Brasil antes
de 1916 e em Portugal antes de 1966, seria contemplado por meia dúzia de
preceitos. Como pretender que poderíamos elevar-nos sempre a uma regra,
fundada nas disposições positivas, que permitisse resolver todos os casos
que fossem surgindo?
Podemos qualificar estas lacunas como rebeldes à analogia: a analogia,
mesmo a analogia juris, é insuficiente para as debelar. Nestes casos, quando
não se encontra nenhum preceito, ou princípio assente na mesma razão
fundamental de decidir, aplicável ao caso, é necessário recorrer a uma cate­
goria qualitativamente diversa que permite mesmo então salvaguardar a
preocupação da ordem jurídica de não denegar solução aos casos concretos.
A esse fim servem os princípios gerais do direito e a norma que o intérprete
criaria (1).

(1) Os autores indicam outros processos de superar as deficiências da analogia,


q u e não referimos em particular porque as leis que consideram os oferecem solução expressa.
A ssim , Larenz, em Richterliche Rechtsfortbildung ais methodisehes Problem, pág. 9, apre-
407

III — Mas os princípios gerais de direito não serão regras de Direito


Natural?
Assim o entendem numerosos autores brasileiros, criticados por outros
autores igualmente numerosos.
Algumas legislações, poucas, m andaram integrar as lacunas através ,
do Direito Natural. Citaremos neste sentido o Código Civil austríaco e
o Código Civil português de 1867, cujo art. 16 mandava resolver a lacuna,
cm última análise, pelos princípios de direito natural, conforme as circuns­
tâncias do caso. E curioso anotar a reacção dos positivistas perante estas
disposições. Como só prestam vassalagem à lei, não podem admitir o
Direito N atural — e com isso acabam por desrespeitar a lei. Onde está
escrito princípios de Direito Natural lêem princípios gerais do Direito, o
que não é obviamente o que a lei determina.
Mas na verdade, é impossível pensar que as lacunas sejam preenchidas
através do recurso a regras de Direito Natural. O Direito Natural tem
de facto regras, tem um conteúdo material, mas essas regras possuem grande
generalidade e abrangem matérias da m aior repercussão social. Como
supor então que elas nos pudessem dar a solução de lacunas, que abrangem
normalmente especificações e casos raros, quando não meros pormenores
técnicos, destituídos de qualquer conteúdo ético?

IV — Chegamos assim a uma conclusão: se queremos abranger nos


princípios gerais os casos que se não deixam integrar nas regras, legais ou
naturais, vigentes, esses princípios gerais do direito têm de ser concebidos,
não como princípios materiais ou normas, mas como princípios formais.
Assim, não determinam directamente condutas, mas estabelecem critérios
que permitem, mediante uma valoração, disciplinar as condutas.
Com isto fica definitivamente afastada a tentação de confundir os prin­
cípios gerais do direito com a analogia juris. Os critérios materiais esgo-
tam-se com a analogia. Para as lacunas rebeldes à analogia é porém neces­
sário o recurso aos critérios formais, que são de maior amplitude.

V — Qual é então a essência dos princípios gerais do direito?


Vamos deixar de parte posições que nos parecem claramente avessas
à lei brasileira, como as que acentuam a equidade ou os critérios subjectivos,
ou as que recorrem a técnicas aparentadas às do Código Civil suíço ou do
Código Civil português, que examinaremos a seguir. Tudo isto pode ter

senta com o m étodos de descoberta do direito baseados na Rechtcrkenntniss, não só a afia-


logia com o a redução teieológica e a natureza da situação (N a tu r der Sache), além *dos
princípios im anentes à ordem jurídica.
27
408

muito interesse de iure condendo, mas não é o que está estabelecido no texto
em vigor.
Serão então os princípios do direito romano, ou os princípios actual-
mente vigentes no sistema jurídico ocidental? Esta posição faria lembrar
a técnica do antigo direito português, com o seu recurso ao direito romano
ou ao direito das nações civilizadas como direito subsidiário.
E evidente o interesse do Direito Romano, ou do Direito Com parado
(que, aliás, teria sempre de se limitar ao nosso sistema jurídico), como inspi­
radores na busca de soluções, dadas as evidentes afinidades. Mas não
vemos como fundamentar um recurso a estas ordens jurídicas alheias para
integrar a ordem jurídica brasileira. Nada nos permite esta ultrapassagem,
que valeria aliás como um cheque em branco dirigido a orientações que a
ordêm jurídica brasileira pode ter repudiado conscientemente.
A ordem jurídica brasileira trabalha com os seus próprios instrumentos.
Os processos de integração que prevê são verdadeiramente intra-sistemáticos,
próprios do sistema jurídico brasileiro. Ela basta-se a si mesma, como
todos os sistemas jurídicos modernos.

VI — Para outros ainda, os princípios gerais do direito são aqueles


que decorrem das necessidades sociais. Consoante o que se apresentasse
socialmente desejável assim teríamos um princípio que permitiria a inte­
gração da lacuna.
Mas a ordem jurídica da sociedade não é uma mera ordem sociológica,
é uma ordem normativa. As necessidades sociais não são unívocas, e o
aplicador do direito não pode bastar-se com a sua própria concepção, nem
com concepções, maioritárias ou não, mas que não são normativas. Só
quando esses dados sociais se integram na ordem jurídica é que podem ser
tidos em conta na elaboração destes princípios gerais.
Nas ordens jurídicas soviéticas os princípios da política são imediata­
mente actuáveis, e sobrelevam até o direito legislado. Nos sistemas oci­
dentais não acontece assim. A orientação política tem de ser integrada
primeiro na ordem jurídica da sociedade e só então será actuante para se
chegar a novos resultados.

242. Concepção adoptada

I — Os princípios gerais do direito são pois antes de mais princípios


ou grandes orientações da ordem positiva, que a percorrem e vivificam, e
que têm assim a potencialidade de conduzir a novas soluções. Porque a ordem
jurídica não é um amontoado casual de elementos, é iluminada por grandes
orientações que lhe dão o travejamento básico e que, dissemos, como com ­
409

ponentes da lei, merecem o mesmo respeito e obrigatoriedade da própria


lei. Assim, o princípio da boa fé, o princípio da conservação dos negócios
jurídicos e tantos outros que têm sido elaborados (1).

II — Estes princípios não são normas, são princípios de carácter formal.


Mas note-se, falamos em princípios da ordem jurídica e não em princípios
da ordem legal.
De facto, eles são entendidos com frequência como tendo índole m era­
mente legal, mas parece-nos um entendimento demasiado restrito. Também
aqui devemos ser coerentes com a nossa visão da ordem jurídica como prévia
à legiferação. Já noutro lugar (2) escrevemos: «Se a elaboração do material
legislativo põe à luz a existência de princípios, a meditação sobre o conjunto
de elementos que formam um ordenamento enriquece o âmbito desses prin­
cípios, sem fazer alterar a sua natureza. Há princípios de direito de base
legal e outros que só se podem referir ao ordenamento no seu conjunto.
Uns e outros, enquanto princípios substanciais, podem fundar a analogia
do direito».
É por isso que, mesmo quando as leis ficam enquistadas em fórmulas
que se não actualizam, a ordem normativa da sociedade permanece em per­
pétua evolução. Assim, se bem que o Código Civil português de 1867 não
desse qualquer abertura ao princípio da boa fé ele entrara já, em tempos
recentes, a fazer parte da ordem jurídica portuguesa, como uma das coor­
denadas básicas da comunidade. Neste remodelar constante dos princípios
gerais, que acabam por se bastar a si mesmos, emancipando-se das fontes
em que se fundamentariam, é essencial o papel da jurisprudência (3).
No mesmo sentido vai a afirmação de Larenz: «Os princípios pertencem
verdadeiramente ao conteúdo do ‘direito positivo’, desde que por tal se
não entenda apenas a lei, mas sim a ordem jurídica vigente como um todo;
mas eles não brotam nem da lei nem da jurisprudência, antes estão subja­
centes a ambas» (4).

III — Determinados estes princípios, eles são tendencialmente apli­


cáveis mesmo a hipóteses não directamente reguladas: porque os princípios
pertencem à própria ordem jurídica, e têm por isso o mesmo carácter vin­

il) Têm em parte interesse os num erosos brocardos recolhidos por Carlos Maxi-
m iliano, Hermenêutica, 292 e seguintes.
(2) A Integração das Lacunas da L ei e o Novo Código Civil.
(3) Cfr. a obra fundamental de Esser, Grundsatz und N orm in der richterlichen Fort-
bildung des Privatrechts.
(4) W egweiser zu richterlicher Rechtsschocpfung, pág. 301. Cfr. também Jeaneau,
La nature des príncipes généraux du droit en droit français, pág. 203.
410

culativo que os restantes elementos desta. Devem pois aplicar-se directa­


mente e dar a solução dos casos omissos (1).
Simplesmente, essavaplicação não é cega. Caso por caso se verificará
se não há razões que a levem a excluir justam ente naquela situação, à luz
da ratio, da fundamentação última do princípio enunciado; ou se outros
princípios, também contidos na ordem jurídica, não se impõem nesse caso
e marcam outra solução. O que quer dizer que também aqui a actividade
do jurista não é meramente lógica, antes exige um trabalho complexo de
valoração, uma conjugação de elementos provenientes de quadrantes muito
diversos da ordem jurídica. Mas nada tem na realidade de estranho que
uma actividade, sensível ao aspecto valorativo logo no momento da inter­
pretação dos dados primários, o seja tam bém na fase terrninal da aplicação
das normas detectadas.

IV — Por último, compõem os princípios gerais de direito os princípios


do Direito Natural.
N ão há contradição entre esta proposição e a que fizemos há pouco,
de que a integração das lacunas se não pode fazer através das regras de Direito
Natural. É que aqui estão já afastadas as regras (materiais) de D ireito
Natural mas temos em conta os princípios (formais) desse direito. Também
o Direito Natural é perpassado de princípios formais, e esses princípios são
direito vigente como dissemos. Esses princípios permitem, em última
análise, chegar sempre à solução do caso: quanto mais não seja através do
recurso à Justiça, que é também um princípio formal do Direito Natural.
Era já neste sentido que se tinham de entender as legislações que man­
davam proceder à integração das lacunas mediante o recurso ao Direito
Natural (2).

V — Temos pois, não uma doutrina eclética, que nos parece deslocada,
no entendimento dos princípios gerais do direito, mas uma doutrina suficien­
temente maleável e compreensiva para abranger todas as hipóteses. Os prin-

(1) Cfr. Larcnz, Wegweiser.


(2) A ssim , o C ódigo Civil português de 1867, ao mandar, no art. 16, integrar as
lacunas rebeldes à analogia pelos «princípios do D ireito Natural, conform e as circuns­
tâncias do caso», apontava para um sistem a interessante, de que os intérpretes não se deram
conta suficientemente. Fala em princípios, não em regras: são os princípios formais que
estão cm causa. O intérprete, portanto, poderia elevar-se para além do direito legislado:
o recurso ao princípio da boa fé, por exem plo, encontra aqui justificação sólida. Mas
por outro lado esses princípios devem ser aplicados «conform e as circunstâncias do caso».
H á aqui uma nota individualizadora, pois o C ódigo prefere, à solução segundo a norma
conform e aos princípios do Direito N atural, a solução conform e as circunstâncias do caso,
individualm ente considerado. H á a preferência por um tratam ento mais equitativo. Essa
orientação foi afastada pelo novo C ódigo Civil p o r tu g u ê s , co m o veremos.
411

cípios gerais do direito não são regras, são princípios formais, que se des­
prendem, não apenas da ôrdem legislada, mas de toda a ordem jurídica.
Caminhamos pois para um entendimento amplo, próprio da doutrina m oderna
mais significativa, como a de Esser, Engisch, Larenz e Betti. Tais princípios
fundam-se em última análise nos princípios do Direito Natural, fundamento
de toda a ordem jurídica. Este quadro é suficientemente compreensivo
para dar uma resposta a todas as lacunas susceptíveis de integração.

243. A norma que o intérprete criaria...

I — O Código Civil português de 1966 recorreu a outra linha técnica.


Ligou-se a uma tradição que, rem ontando a Aristóteles, fora retom ada pelo
Código Civil suíço e até pelo art. 114 do antigo Código do Processo Civil
brasileiro, equivocadamente embora, como vimos.
Estabelece o art. 10/3, inovando profundam ente na ordem jurídica
portuguesa: «Na falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a
norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do
espírito do sistema».

II — Procurando interpretar esta fórmula, aliás difícil, observamos que


ela não pode significar:
1) uma remissão para o arbítrio do intérprete, pois isso seria absurdo;
2) um apelo para o sentimento jurídico, pois isso está excluído pelos
marcos objectivos que no preceito se estabelecem;
3) um recurso à equidade, porque se m anda resolver segundo a norm a
que corresponda ao sistema, e não segundo as circunstâncias do caso concreto.

Esta última observação é particularm ente importante, pois este preceito


traduz uma intenção generalizadora e não individualizadora. Resolver
«segundo a norma», quer dizer resolver com a valoração que merece, não
o caso concreto, mas a categoria de casos em que ele se enquadra (1). E a
referência ao acto de legislar conduz no mesmo sentido, pois supõe a ante-
rioridade da demarcação da ordem jurídica objectiva sobre a solução do
caso concreto. Enfim, a exigência de que esse hipotético acto de legislar
se processasse dentro do espírito do sistema am arra o intérprete às valora­
ções próprias da ordem jurídica, impedindo-o de se decidir autonom am ente,
pelo circunstancialismo do caso concreto.

(1) Expressamente o reconhece C astanheira N eves, ao criticar ( Q uestão-de-F acto,


págs. 309-312) a orientação do C ódigo Civil suíço e do Projecto do actual C ódigo C ivil
português, que seriam ainda reflexo do norm ativism o, e ao elogiar a fórm ula do C ódigo
do Vaticano.
412

III — Se estes elementos impelem para um entendimento generalizador


do texto, outro há que parece dar-lhe um acento subjectivista: referimo-nos
à referência à norm a que o próprio intérprete criaria... Parece haver aqui
um irremediável subjectivismo, confiando-se àquele intérprete a solução
daquele caso.
Pode-se até, atendendo-se aos antecedentes da fórmula portuguesa, supor
que ela se inscreve numa escalada para o subjectivismo (1).
Aristóteles, que está na origem desta orientação, diz que o caso omisso
deve ser resolvido «como o faria o próprio legislador se estivesse presente
e como ele teria prescrito na lei se tivesse podido conhecer o caso em
questão» (2).
O Código Civil suíço dispõe no seu art. l.° que o juiz decidirá «selon
les règles qu’il établirait s’il avait à faire acte de législateur».
O Código Civil português vem agora falar na norm a que o próprio
intérprete criaria... Aristóteles recorria pois ao legislador, o Código suíço
ao juiz, o Código português ao próprio intérprete, ou seja, a toda e qualquer
pessoa. Parece não se poder ir mais longe no abandono do entendimento
da lei à opinião individual.
Mas sendo assim, haveria contradição entre os vários elementos do
texto; e não se conseguiria apurar qual a relevância da opinião de quem
não estiver constituído em autoridade. Tal opinião não é evidentemente
vinculativa para os outros.

IV — Supomos que esta contradição aparente se supera, se distinguir-


mos o que respeita ao agente do que respeita ao critério da integração.
Agente da integração é efectivamente toda e qualquer pessoa; todos
nós temos de recorrer à integração quando tratam os de apurar quais as nor­
mas jurídicas vigentes. A jurisdicionalização do quotidiano que decorreria
de se atribuir exclusivamente ao juiz essa função contraria a vida corrente:
a imensa maioria dos casos lacunosos é resolvida espontaneamente, com o
acordo ou pelo menos sem a oposição das partes.
Mas o acordo indicia por si que há uma solução objectiva, que serve
de ponto de encontro aos vários intervenientes. É que o intérprete é de
facto o agente da integração, mas o critério dessa integração é um critério

(1) Sobre todos estes problemas, cfr. a nossa Integração, em que desenvolvidamente
os abordám os. ,
(2) Ética a N icóm aco, Livro V, cap. X (ou cap. X IV ). O trecho traz todavia parti­
culares dificuldades por vir englobado na análise da equidade. Cfr. Raul Ventura, M anual
de D ireito Romano, I. O autor considera paralelamente a integração e a chamada inter­
pretação correctiva. D e todo o m odo, este processo generalizador (segundo a n orm a...)
n ã o se confunde com um processo individualizador. a equidade.
413

objectivo, idêntico para todos, e encontra-se na referência ao acto de legislar


dentro do espírito do sistema.
0 que seja o espírito do sistema, que assim vem arvorado a elemento
decisivo, exige um a indagação posterior. Corresponde aos «juízos de valor
legais», para utilizar a fórmula que constava do art. 110 do Estatuto Judi­
ciário português, mas aperfeiçoada. Nomeadamente, já se não limita ao s
juízos de valor legais, antes busca os que são próprios de todo o sistema
jurídico (1). Logo, mesmo quando os princípios substanciais de solução,
ínsitos no sistema jurídico, não permitem encontrar uma solução para o
caso, podemos e devemos recorrer aos princípios formais, ou juízos de valor,
para por meio deles integrar afinal a lacuna. O sistema ainda nos fornece o
ponto de partida objectivo para este procedimento.
Temos assim que o critério decisivo nesta última fase do problema da
integração das lacunas é a conformidade ao sistema de um a norma que o
intérprete deve determinar e lhe permitirá resolver os casos individuais.

244. A chamada plenitude do ordenamento jurídico

1 — É este o momento adequado para analisar um a pretensa caracte­


rística do ordenamento jurídico, que foi trabalhada pelos positivistas e muitos
autores ainda hoje acolhem: a plenitude.
No aspecto que nos interessa — porque relacionado com o problema
das lacunas — significa pura e simplesmente a negação da existência destas.
O sistema conteria tudo; nenhum caso que devesse ser juridicamente regulado
poderia ficar sem solução. Mesmo nas hipóteses em que a interpretação
não detectasse um a norm a expressa que resolvesse aquele caso a lacuna con­
tinuaria a ser aparente, pois a norm a estaria implícita no sistema. Por
processo essencialmente lógico, como dissemos, poderia atingir-se sempre o
princípio do qual derivaria a solução. Logo o próprio ordenamento con­
teria potencialmente a previsão de todos os casos (2).

II — Esta posição pode considerar-se hoje derrotada, pois a doutrina


reconhece a categoria de lacunas que chamamos «rebeldes à analogia» (3).

(1) E portanto, tam bém os im postos pelo D ireito Natural.


(2) Veja-se a notícia de algum as posições filosóficas sobre o tema em Sam paio
Ferraz, Sistem a, 129 e segs.
(3) N o sentido de que « o D ireito Positivo règula, ora directa, ora indirectam ente,
todas as relações sociais presentes e futuras» cfr. ainda Carlos M axim iliano, Herm enêu­
tica, n.° 239. Contra a «plenitude lógica», Franzen de Lim a, D a Interpretação Jurídica,
n.os 128 e seguintes; mas este autor afirma que há mais de uma solução conform e ao sis­
tema (n.° 136).
414

O art. 10/3 do Código Civil português faz-se eco desta orientação, ao reconhe­
cer expressamente a possibilidade de persistência da lacuna «na falta de
caso análogo». Reconhece-se que não há plenitude hermética e o sistema
não contém todas as soluções.
Não nos vale a pena discutir a afirmação de que se não pode falar verda­
deiramente de lacuna quando a omissão é suprível por processos analógicos.
Basta-nos observar que o recurso aos princípios gerais do direito, no direito
brasileiro, ou à norma que o próprio intérprete criaria, no direito português,
pressupõe a existência de uma verdadeira lacuna. A regra que se elaborará,
para permitir a resolução do caso, não se pode dizer implícita no sistema,
pois a descoberta de um conteúdo substancial a partir de critérios formais
representa sempre, necessariamente, uma criação. Criação conforme ao
sistetna, criação em objectividade, sem dúvida; mas criação. Logo, não
se pode dizer que a regra estava implícita. Ela não existia, pura e simples­
mente, e portanto não há plenitude do ordenamento jurídico.

III — Note-se que nem sequer se pode dizer que a plenitude do orde­
nam ento se verifica como efeito da integração. A integração não altera
a situação normativa existente; após a integração, continua a haver lacuna.
Ela permitirá resolver um caso concreto pela determinação da regra apli­
cável, mas essa regra conforme ao sistema é apenas suposta e não é efectiva-
mente aditada ao conjunto. Por isso, se surgir posteriormente um novo
caso daquela índole reabre-se o problema, e voltarão a funcionar os pro­
cessos de integração.
Quer dizer, à luz da ordem jurídica portuguesa estes processos são gene­
ralizadores, mas não são geradores de regras. A integração não é uma
fonte do direito.
Enfim, anotemos que bem pode acontecer que nem todas as lacunas
sejam susceptíveis de integração. Se por exemplo há uma lei que remete
para certo meio técnico, órgão ou processo que não existe na ordem jurídica,
essa lacuna não pode ser suprida. Supomos que aqui se enquadra o que
alguns chamaram o obstáculo técnico insuperável. Se por exemplo uma
lei sujeita a hipoteca as concessões do domínio público, mas a lei do registo
imobiliário não está aparelhada para englobar esta categoria de bens, temos
uma lacuna que não pode ser integrada, porque sem registo não haverá hipoteca.
São da mesma ordem certos problemas suscitados pela aplicação de
lei estrangeira, competente por força da regra de Direito Internacional Pri­
vado, quando os meios técnicos deste ramo do direito não permitem afastar
a divergência dos quadros duma e doutra ordem jurídica.

IV —. Note-se que se poderá falar ainda em plenitude da ordem jurídica


para significar que a própria ordem jurídica deve conter os critérios que
415

permitam a resolução de todos osj casos que se defrontem (1). Nessa altura
não se trata de uma plenitude normativa da ordem jurídica, não se afirma
já que a ordem jurídica contém regras capazes de resolver todas as situa­
ções. Por isso, á^uela concepção' de plenitude não tem que nos ocupar neste
momento.

245. A objectividade

I — Pensamos que esta interpretação generalizadora e objectivista é


a que corresponde à índole do sistema legal.
O primado da norma é acentuado pelo art. 8.°/3 do Código Civil por­
tuguês, que já referimos: tem de se resolver sempre pela perspectiva de uma
regra geral, e sempre de maneira que essa norma, a ser aceita por outros
intérpretes, permita uma aplicação uniforme do direito. A uniformização
da jurisprudência é também preocupação do direito brasileiro.
A objectividade resulta de numerosos elementos, e nomeadamente da
contraposição entre jurisdição e discricionaridade. Enquanto a discricio-
naridade pressupõe um momento de criação não controlável, porque assenta
em valorações que não estão contidas na ordem jurídica (de oportunidade,
por exemplo), a jurisdição só permite uma criação vinculada. Por isso a
solução do caso lacunoso pode ser apreciada de novo por tribunal superior,
e fazendo-se assim não se está a substituir um arbítrio por outro arbítrio:
está-se a controlar a correcção objectiva da solução dada. O postulado
de que há sempre uma norma, e uma só, conforme ao sistema, parece-nos
essencial para compreender a orientação legal (2).

II — Pode por isso a jurisprudência obrigatória, nos casos em que é


admitida, versar também sobre casos omissos. O tribunal superior não
faz uma declaração de vontade, que quebraria a declaração de vontade do
tribunal inferior, mas antes afirma aquela solução como a solução correcta.

(1) Veja-se o equacionam ento do problema por Luigi Caiani, Analogia, na Enci­
clopédia dei d iritto, II (1958), n.° 3. Pelo contrário, parece-nos pobre a fórm ula de Carlos
C ossio: «não há lacunas do direito porque há juizes»: Las lacunas dei derecho, pág. 219.
(2) M esm o quando o tribunal superior é cham ado a rever uma decisão pronunciada
no exercício da equidade, não há uma revisão discricionária de uma decisão discricionária.
O tribunal julga por equidade à luz de um critério .objectivo — a Justiça, qu e ilumina o
circunstancialism o do caso concreto. N ã o há regra, mas há um critério reconhecível e
uma aplicação objectivam ente controlável pelo tribunal superior. N a discricionaridade,
pelo contrário, há outorga a um órgão do poder de decidir segundo considerações de opor­
tunidade, inclusivam ente políticas, que o órgão jurisdicional nem tem de conhecer nem
está em condições de controlar.
416

Daí que a jurisprudência obrigatória seja mesmo nestes casos retroactiva,


pois afirma o entendimento que se deveria ter tido por verdadeiro desde o
início. A disparidade de interpretações a que se possa chegar só existe
na ordem do conhecimento, pois se pressupõe sempre que só há uma solução
objectivamente correcta.
Isto traduz um a orientação objectivista. E é natural que seja assim,
pois ao legislador não poderiam ser indiferentes os perigos de um arbítrio
judicial, que representaria um preço demasiado alto se por ele se tivesse de
pagar a fuga ao «arbítrio» da aplicação da regra.

■t
CAPÍTULO 5

Sucessão de leis:
âmbito da lei nova e da lei antiga

246. O problema

I — Toda a fonte do direito está historicamente situada. O fenômeno


é particularmente visível nas fontes intencionais, como a lei, em que se pode
marcar precisamente o antes e o depois da aquisição de validade. Por isso,
se surgem várias fontes, colocadas no mesmo nível hierárquico, mas repor­
tadas a tempos diversos, aplica-se o princípio fundamental de que «a lei nova
revoga a lei antiga», ou a fonte nova revoga a antiga.
Mas devemos tom ar consciência de que, por detrás da simplicidade
aparente deste princípio, subsiste um mundo de dificuldades. É que a lei
nova (e limitamo-nos daqui por diante à consideração da lei, pois aí os pro­
blemas podem ser apresentados de form a mais esquemática) entronca num
momento de um incessante processo social. Por isso aqueles «antes» e
«depois», separados pelo momento do nascimento da nova lei, representam
desde logo uma violência sobre a continuidade da vida social. Há sempre
situações juridicamente relevantes que, tehdo origem no passado, tendem
a prolongar-se para futuro: nem tudo term inou já, e nem tudo vai come­
çar de novo. A essas situações, que lei- se aplica? A antiga ou
a nova?

Você também pode gostar