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O Direito entre fatos e normas

O distanciamento entre a verdade dos fatos e a verdade


construída no processo judicial brasileiro

Milton Carvalho Gomes

Sumário
Introdução. O Direito entre fatos e normas. A
busca da verdade como finalidade do processo:
ponto de vista normativo. A busca da verdade
como finalidade do processo: ponto de vista
prático. Conclusão.

Introdução
Há no Direito um antigo brocardo 1
que diz, em latim: da mihi factum, dabo tibi
jus. Em tradução livre para o português, a
expressão significa: dê-me o fato e dar-te-
-ei o direito. A expressão é de uso livre e
constante, seja em manuais jurídicos, em
livros monográficos de direito, ou mesmo
em decisões judiciais das mais variadas,
querendo significar que ao juiz não é ne-
cessário indicar quais normas devem ser
aplicadas, pois conhece o direito; para
aplicá-las, precisa apenas que lhe sejam
apresentados os fatos.
Não se menciona a origem da expressão,
e provavelmente isso não seja importante
para a finalidade em que é usada, mas sua
reiterada referência, como a um preceito
supralegal, um dogma, ao mesmo tempo
esconde as enormes dificuldades da apli-
cação da norma jurídica e mistifica o papel

Milton Carvalho Gomes é Mestrando em 1


O Dicionário Michaelis da Língua Portu-
Direito das Relações Internacionais no Centro guesa (2009) define o verbete “brocardo” como:
Universitário de Brasília – UNICEUB, 2011; sm (baixo-lat brocardu) 1 Axioma jurídico. 2 Aforismo.
Procurador Federal. 3 Anexim, provérbio.

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do magistrado no direito, ocultando pro- dissenso, mesmo que pequeno, há hoje in-
blemáticas da hermenêutica jurídica (como discutivelmente uma forte tendência de se
interpretação e compreensão da norma) e considerar o Direito como uma ciência, com
da transformação de fatos em fatos jurídi- um método e um objeto de estudo próprios.
cos por meio da classificação sistemática Ferraz Junior (2006), ao discorrer sobre a
dos acontecimentos. Ciência do Direito, esclarece que ela vem
Neste momento, deixando de lado a sendo considerada sob três perspectivas
crítica à larga utilização da expressão e a diferentes: uma primeira, que considera
tudo o que ela esconde, o que nos interes- a ciência jurídica como sistematização
sa aqui é o que ela representa na prática de regras, tratada como teoria da norma
jurídica: a concepção do Direito enquanto jurídica; uma segunda, que vê o direito
instrumento de ligação entre fatos e normas. como atividade interpretativa, chamada
É nesse intervalo entre um acontecimento de teoria da interpretação; e uma terceira,
qualquer e a aplicação de uma sanção dele que identifica o direito como um estudo
decorrente, em virtude de uma norma, que acerca da decidibilidade, denominada teoria
se localiza o fenômeno jurídico. da decisão.
Entretanto, embora seja claro que o Di- Independentemente da concepção que
reito busca os fatos para aplicar a norma, se adote da ciência jurídica (se estudo da
o discurso jurídico constrói uma ideia de norma, da atividade interpretativa ou da
verdade bastante particular em suas esferas decidibilidade), a aplicação prática do
normativa e prática. O objetivo deste artigo direito funciona sob uma lógica muito
é investigar de que formas o Direito se apro- simples, que é a de aplicar normas jurídicas
xima dos fatos, sob dois pontos de vista: o para regular ações humanas. Dessa opera-
da norma abstrata e o da prática jurídica. ção, denominada comumente subsunção,
emergem as maiores dificuldades para o
O Direito entre fatos e normas aplicador e o estudioso do Direito. Como
esclarece Engisch (2001), ninguém pode
Discorrendo sobre o pensamento jurí- ser punido apenas por ser merecedor de
dico, Engisch (2001) pondera que nossas uma pena, por um estado de espírito ou
condutas estão constantemente submetidas por uma condição pessoal; sua punição
à égide do Direito, e o significado determi- depende da configuração de um ato con-
nante que ele recebe em nossa vida con- siderado contrário a uma norma vigente.
siste na enunciação de regras concretas de A tarefa da subsunção desenvolve-se sob
dever-ser. Os atos praticados pelas pessoas a forma de um silogismo, no qual a norma
sofrem influência permanente do Direito, é a premissa maior, o fato (ou conduta) é a
especialmente em uma sociedade como a premissa menor e o resultado é a sanção.
nossa, em que o princípio da legalidade2 é Nessa operação subsuntiva, que é inva-
considerado preceito fundante do sistema riavelmente realizada por um indivíduo (ou
normativo. vários indivíduos, no caso dos órgãos cole-
O pensamento jurídico, portanto, giados de decisão, como os Tribunais), sur-
desenvolve-se por meio do estudo do fato gem dificuldades concretas especialmente
e da norma, em uma relação intermediada de duas ordens: a interpretação da norma,
pela aplicação do método jurídico. Não em primeiro lugar, que consiste no estudo
obstante a existência ainda de algum de seu alcance e abrangência abstrata, do
sentido de seus termos e de sua integração
Segundo o princípio da legalidade, previsto no
2

art. 5o, inciso II, da Constituição Federal, “ninguém


com as demais normas, consideradas como
será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa elementos de um mesmo e único sistema;
senão em virtude de lei”. e em segundo lugar, o conhecimento e

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compreensão dos fatos, que consistem em ele “um campo limitado de construções
acontecimentos situados no passado e cuja possíveis” (RICOEUR, 1991, p. 203).
reconstituição parece ser fundamental para “É sempre possível advogar por ou
a elaboração final do silogismo, de onde contra uma interpretação, confrontar
decorrerá ou não a aplicação da sanção3. interpretações, arbitrar nelas, visar
Essa reconstrução fática tem por objetivo um acordo, ainda que este acordo
transformar um acontecimento passado continue longe de ser atingido”.
em um enunciado, ou seja, fazer corres- No Direito atual, principalmente após a
ponder um fato a uma inscrição que possa Constituição brasileira de 1988, tem surgido
substituí-lo dentro do processo judicial, e e se fortalecido uma estrutura normativa
que de alguma forma permita classificá-lo que utiliza com frequência expressões
em uma categoria: fatos jurídicos ou fatos mais abstratas, vagas, que permitem uma
juridicamente irrelevantes. maior margem de liberdade ao intérprete,
Como afirma Wambier (1998), ampliando as relações possíveis entre signi-
“o que se pode dizer é que se, de um ficante e significado. Essas normas têm sido
lado, o fenômeno jurídico envolve comumente chamadas de “conceitos legais
necessariamente fato/direito, a nosso indeterminados” e “cláusulas gerais”.
ver, pode-se falar em questões que Analisando esse tema, Storer (2008)
sejam predominantemente de fato pondera que as cláusulas gerais, ao tempo
e predominantemente de direito, ou em que conferem ao intérprete as diretrizes
seja, o fenômeno jurídico é de fato e teóricas para sua aplicação, conservam um
é de direito, mas o aspecto proble- espaço conceitual que deverá ser posterior-
mático deste fenômeno pode estar mente preenchido pelo intérprete de acordo
girando em torno dos fatos ou em com os valores componentes do sistema
torno do direito”. jurídico. Larenz (1997, p. 311) afirma que
Num primeiro momento4, o responsável a boa-fé, a justa causa, uma relação adequada,
pela aplicação do Direito deverá voltar-se um prazo razoável ou o prudente arbítrio
à análise do texto da norma, buscando sua “alcançam o seu preenchimento de
plena compreensão. Nesse ponto, a com- conteúdo mediante a consciência
preensão de um texto normativo, como jurídica geral dos membros da comu-
ademais a de qualquer outro texto (aqui nidade jurídica, que não só é cunhada
considerado como a inscrição de um dis- pela tradição, mas que é compreen-
curso), é em certa medida condicionada por dida como estando em permanente
circunstâncias pessoais do intérprete, não reconstituição”.
havendo um sentido único no texto, uma Alguns exemplos podem ser citados
única possibilidade de interpretação, sendo para ilustrar o grau de abertura interpre-
tativa admitida pelo sistema normativo.
3
Aqui o termo sanção vem sendo usado no sentido
A Constituição Federal, que ocupa o posto
de qualquer consequência jurídica decorrente da apli- mais alto na hierarquia das normas, utiliza
cação de uma norma a um fato ocorrido, não possuin- expressões como função social da proprie-
do o sentido voltado apenas para as normas punitivas, dade, direito à “plenitude de defesa” diante
características principalmente do Direito Penal.
4
A sequência específica a ser adotada é objeto
do Tribunal do Júri, “dignidade da pessoa
de forte dissenso entre os estudiosos, havendo quem humana”. O Código Civil, por sua vez,
defenda que se deve partir dos fatos (problema) para que tem por característica ter sido elabo-
a norma (Viehweg (2008), criador do Método Tópico- rado com um caráter aberto, traz de forma
-problemático) e outros que afirmam o contrario, que
se inicie pela norma, para depois conhecer os fatos e
inédita ao ordenamento jurídico conceitos
buscar a subsunção (Hesse (1998), criador do Método centrais e fundantes na forma de cláusulas
Hermenêutico-concretizador). gerais, como a “função social do contrato”

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e a “boa-fé objetiva”, para as quais não há ser possível a interpretação de um texto a
nenhuma definição legislativa, ficando ao não ser por meio das pré-compreensões do
encargo do intérprete determinar sua exten- intérprete. Trabalha o autor, assim, com um
são. As cláusulas gerais têm sido estudadas conceito de preconceito legítimo, a partir de
em diversos trabalhos recentes, no Brasil uma noção de que a compreensão se insere
e no exterior, não sendo de interesse do necessariamente dentro de uma tradição,
presente artigo o seu aprofundamento, mas que estabelecerá as premissas dessa mesma
simplesmente sua referência para ilustrar compreensão.
as novas dificuldades que surgem na fase “Desse modo, o sentido da pertença,
de compreensão da norma pelo aplicador isto é, o momento da tradição no com-
do Direito. portamento histórico-hermenêutico,
Refletindo sobre a tarefa da interpreta- realiza-se através da comunidade
ção de textos, Ricoeur (1991) afirma que a de preconceitos fundamentais e sus-
finalidade que se busca não é atingir o sen- tentadores. A hermenêutica precisa
tido que o seu autor pretendeu conferir-lhe, partir do fato de que aquele que quer
identificando assim uma disjunção entre a compreender deve estar vinculado
significação e a intenção, gerada pelo fato com a coisa que se expressa na trans-
de que, imediatamente após sua inscrição, missão e ter ou alcançar uma determi-
o discurso já adquire autonomia em relação nada conexão com a tradição a partir
ao seu criador, e “um leitor desconhecido, da qual a transmissão fala. Por outro
invisível, tornou-se o destinatário não pri- lado, a consciência hermenêutica sabe
vilegiado do discurso” (RICOEUR, 1991, p. que não pode estar vinculada à coisa
191). O ato interpretativo, segundo Ferraz em questão ao modo de uma unida-
Junior (2006), é problemático na medida em de inquestionável e natural, como
que existem múltiplas vias que podem ser se dá na continuidade ininterrupta
escolhidas, havendo um campo de liberda- de uma tradição. Existe realmente
de do intérprete que é um pressuposto da uma polaridade entre familiaridade
hermenêutica jurídica. e estranheza, e nela se baseia a tarefa
O objetivo do intérprete jurídico não é da hermenêutica” (GADAMER, 1997,
apenas o de conhecer a norma, mas prin- p. 390-391).
cipalmente o de fixar seu valor e alcance, Por outro lado, após a compreensão do
visando à sua aplicabilidade prática, à texto da norma, estando fixado seu âmbito
resolução de conflitos concretos. Esse va- de aplicação e seu alcance prático, o apli-
lor e esse alcance, por sua vez, não serão cador do Direito necessita compreender
encontrados na intenção do legislador. O também os fatos ocorridos, ou seja, conhecer
referencial do texto não é a vontade do seu a premissa menor, e nesse ponto se con-
autor, mas, como diz Ricoeur (1991, p. 51), centram talvez as maiores dificuldades da
“interpretar é explicitar o tipo de ser-no- ciência jurídica.
-mundo manifestado diante do texto”, pre- De um ponto de vista puramente lógico,
sente sempre o elemento da historicidade. como afirma Engish (2001), a verificação
Nesse sentido, o texto possui um mundo dos fatos num processo judicial se asseme-
próprio, e sua compreensão perde o caráter lha à verificação histórica dos fatos. Essa
de revelação de algo escondido para tornar- verificação histórica, que constitui objeto de
-se a construção de uma realidade nova, estudo do historiador, encontra obstáculos
pelo exercício da interpretação. em sua própria natureza, na medida em que
Gadamer (1997) afirma que na compre- descobrir um fato ocorrido implica a exis-
ensão ocorre algo como a aplicação do texto tência de provas, elementos materiais dos
à situação atual do intérprete e acredita não quais se possa concluir, após uma análise

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conjuntural, a ocorrência desse fato. Mas magistrado acerca do que é importante e
“todo relato histórico é uma reconstrução que será levado em conta no momento do
seletiva do que aconteceu no passado”5 julgamento. Há uma perda de informações
(ARON, 2000), e assim a história contada significativa, primeiro pela impossibilidade
não consegue ser mais que um recorte dos de se extrair de uma pessoa tudo o que ela
acontecimentos reais. sabe sobre algo – pois há relações possíveis
Sobre esse aspecto da reconstrução de entre fatos que nem ela própria será capaz
fatos e construção de relatos, situa-se a prin- de identificar – e segundo pelo descarte,
cipal preocupação do Direito, manifestada definitivo, de tudo aquilo que se entender
por meio de suas regras processuais, mais não ser pertinente ou importante para a
especificamente no regramento a respeito solução do processo.
da prova. O processo judicial, em linhas O mesmo raciocínio se aplica às provas
gerais, é um instrumento de reconstrução documentais (sendo a documental e a tes-
dos fatos, da transformação de relatos orais temunhal as principais provas utilizadas
em transcrições, de reunião de documentos nos processos judiciais, com indiscutível
e análises periciais, voltado à formação da prevalência quantitativa sobre as demais),
convicção judicial a respeito de determi- com a vantagem de que não há, nesse caso,
nados acontecimentos. Nesse panorama, o descarte das informações consideradas
o elemento prova constitui o núcleo funda- irrelevantes, que permanecerão nos autos
mental do processo. mesmo que não levadas em conta no mo-
Voltando à ideia de que toda narrativa mento da decisão.
não é mais que um recorte dos aconteci- Geertz (2009, p. 258-259) apresenta bem
mentos reais, podemos afirmar que o ob- a questão, esclarecendo que os fatos não
jetivo do processo judicial é construir uma nascem espontaneamente, mas são constru-
narrativa o mais próxima possível dessa ídos socialmente “por todos os elementos
realidade e que a seleção e inscrição de jurídicos”, e que as configurações factuais
fragmentos dos relatos desenvolvidos no utilizadas nos tribunais não são mais que
processo, com o descarte dos demais, cons- “diagramas altamente editados da realida-
titui uma forte limitação nesse sentido. Na de”. Defende o autor que:
inquirição de uma testemunha, por exem- “A descrição de um fato de tal for-
plo, não apenas a escolha das perguntas que ma que possibilite aos advogados
lhe são feitas já constituem uma limitação, defendê-lo, aos juízes ouvi-lo, e aos
como também a seleção do que será inscrito jurados solucioná-lo, nada mais é
no processo6 representa uma escolha do que uma representação: como em
qualquer comércio, ciência, culto ou
5
A citação refere-se ao pensamento webberiano. arte, o direito, que tem um pouco de
6
O processo judicial no Brasil, salvo ainda raras todos eles, apresenta um mundo no
exceções, não utiliza sistema de gravação dos depoi-
mentos das testemunhas e das partes, seja no processo
qual suas próprias descrições fazem
civil ou penal, o que implica a perda definitiva de tudo sentido. (...) Trata-se, basicamente,
aquilo que não for transcrito para os autos. O que será não do que aconteceu, e sim do que
ou não transcrito segue a lógica da avaliação e vontade acontece aos olhos do direito; e se o
do magistrado, que deve ditar o que deve ser escrito
como pergunta e como resposta. A resposta de uma
direito difere, de um lugar ao outro,
testemunha, portanto, passa por vários filtros antes de uma época a outra, então o que
de ingressar no processo: o primeiro é o da própria seus olhos veem também se modi-
testemunha, que consciente ou inconscientemente fica”.
seleciona o que acha pertinente ou não à causa; o
segundo das perguntas realizadas, que se referem
apenas ao que as partes consideram importante; e respostas, seleciona o que será inscrito e dita para o
terceiro ao juiz, que, ao escutar as perguntas e as escrevente judicial.

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Ao lado da limitação imposta pela aqui, de controlar o acaso de sua aparição; e
eleição do que será inscrito no processo 3) os procedimentos de controle do funcio-
(considerando a impossibilidade de se namento do discurso, sendo esse de maior
inscrever tudo e a tentativa de selecionar importância para o Direito na medida em
apenas o que possa, a priori, ser relevante que estabelece rituais, papéis, e não permite
para o deslinde da questão), decorrente da que todos tenham acesso a ele senão por
própria natureza da atividade reconstruti- meio da aceitação de suas regras.
va da história, há uma segunda limitação, As formas de controle do discurso
talvez ainda mais significativa. Essa é a jurídico, na prática do processo judicial,
limitação operada pelas próprias regras implicam, em grande medida, a também li-
jurídicas, sobre o que pode ou não pode ser mitação de suas condições de possibilidade
dito, sobre quem pode dizer o quê, sobre enquanto instrumento de acesso aos fatos,
em que momento se pode dizer alguma como pressupostos de aplicação da norma.
coisa e sobre as formas (instrumentos e A busca da verdade dos fatos no processo
ritos) pelas quais se pode dizer algo. judicial, na forma proposta pela legislação,
Neste ponto, considerando o caráter de em muito difere da verdade efetivamente
discurso do processo judicial e do sistema atingida no processo, dadas as limitações
normativo, no sentido proposto por Ricoeur subjetivas, objetivas e procedimentais
(1991)7, é relevante pontuar a suposição impostas pelo próprio sistema normativo.
elaborada por Foucault (2006, p. 8-9) de que
“em toda sociedade a produção do A busca da verdade como finalidade
discurso é ao mesmo tempo con- do processo: ponto de vista normativo
trolada, selecionada, organizada e
redistribuída por um certo número Em uma análise superficial dos nossos
de procedimentos que tem por fun- principais diplomas legislativos9, é fácil
ção conjurar seus poderes e perigos, identificar onde se coloca em destaque a
dominar seu acontecimento aleatório, questão da busca da verdade. A Constitui-
esquivar sua pesada e temível mate- ção Federal (1988) não menciona nem uma
rialidade”. vez sequer a palavra “verdade”, nem ne-
Ao fazer uma análise do discurso, Fou- nhuma expressão derivada. O Código Civil
cault (2006) identifica diversos instrumen- (2002) a menciona 7 vezes, e o Código Penal
tos de controle e limitação desses discursos (1940) 17 vezes10. O Código de Processo
em uma sociedade, elegendo como princi- Penal (1941) a menciona 13 vezes (10 delas
pais: 1) os procedimentos de exclusão, pelos complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto
quais a sociedade restringe o que pode ou de uma disciplina; antes de ser declarada verdadeira
não ser dito, conferindo valor ao conteúdo ou falsa, deve encontrar-se, como diria M. Cangui-
do discurso, tratando de dominar os seus lhem, ‘no verdadeiro’”.
9
Para este trabalho, serão considerados como prin-
poderes; 2) os procedimentos de controle cipais a Constituição Federal (1988), o Código Civil
interno, por meio dos quais os discursos (2002), o Código de Processo Civil (1973), o Código
exercem seu próprio controle por meio de Penal (1940) e o Código de Processo Penal (1941), por
narrativas que se repetem, conforme cir- conterem as normas principais utilizadas na ampla
maioria dos processos judiciais em curso.
cunstâncias bem determinadas8, tratando, 10
No Código Penal (1940), a quase totalidade
delas sem referir-se à verdade no sentido de fatos
7
Aqui notamos a presença de todas as caracterís- verdadeiros, mas no sentido contraposto ao de coi-
ticas do discurso enquanto acontecimento da lingua- sas falsificadas como: mercadoria (art. 175, inciso I),
gem: a temporalidade, a subjetividade (locutor e in- pedras (art. 175, §1o), moeda (art. 289, §2o), cédulas,
terlocutor) e a referência ao mundo (RICOEUR, 1991). notas ou bilhetes (art. 290), selo ou sinal (art. 296, §1o,
8
Sobre esse aspecto, Foucault (2006, p. 33) afirma inciso II), documento público (art. 297), documento
que “uma proposição deve preencher certas exigências particular (art. 298), firma ou letra (art. 300), certidão

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no sentido de fatos verdadeiros), utilizando verdade como revelação; 3o a verdade
expressões como “apuração da verdade como conformidade a uma regra; 4o a
substancial” (art. 566), “esclarecimento da verdade como coerência; 5o a verdade
verdade” (art.497, XI), “diga a verdade” como utilidade” (ABBAGNANO,
(art. 226, III), “a verdade do depoimento” 2003, p. 1182).
(art. 217), “calou ou negou a verdade” (art. O primeiro sentido é o da verdade como
211), “promessa de dizer a verdade” (art. correspondência à realidade, ou seja, ao que
203), “ser verdadeira a acusação” (art. 187, existe, de fato, no mundo. O segundo é o
§2o, I), “esclarecimento da verdade” (art. da verdade como revelação ou manifesta-
184). O Código de Processo Civil (1973) faz ção, é verdade o que se manifesta para o
referência à verdade 22 vezes, praticamente homem, seja por uma visão empirista ou
todas elas referindo-se à verdade acerca de uma visão metafísica. O terceiro usa a ver-
fatos ocorridos, como por exemplo: “expor dade como correspondência a uma regra
os fatos em juízo conforme a verdade” (art. ou conceito, ou seja, é verdadeiro tudo que
14, ao tratar dos deveres das partes no pro- estiver em conformidade com um conceito
cesso), “alterar a verdade dos fatos” (art. 17, estabelecido como parâmetro ou critério.
II, ao definir litigância de má-fé), “descobri- O quarto sentido é o da verdade como
mento da verdade” (art. 83, II), “reputar- coerência, não havendo verdade no que é
-se-ão verdadeiros os fatos alegados” (art. contraditório. Por fim, o quinto sentido é
277, §2o), “a verdade dos fatos alegados” o da verdade como utilidade, ou seja, uma
(art. 282, VI), “se presumirão aceitos pelo proposição verdadeira é apenas aquela que
réu, como verdadeiros, os fatos articulados possui alguma utilidade para a expansão
pelo autor” (art. 285), “presumem-se verda- do conhecimento de determinado campo
deiros os fatos não impugnados” (art. 302), do saber (ABBAGNANO, 2003).
entre outros. Voltando às normas processuais, obser-
Pode parecer uma conclusão óbvia, mas vamos que o sentido da expressão verdade
importante para a presente análise, a de que adotado é o da primeira forma, ou seja,
a preocupação com a verdade dos fatos é verdade enquanto correspondência com
uma preocupação predominantemente a realidade, com os fatos concretos e reais
processual. Pela análise dos dispositivos, que efetivamente aconteceram. A finali-
poderíamos afirmar que essa é uma preocu- dade do processo, portanto, é conhecer os
pação quase que exclusivamente processu- fatos, sendo a verdade sempre referida sob
al. Enquanto o direito material se preocupa esse prisma.
com a regulação de condutas humanas, Essa busca pela verdade, colocada pela
o direito processual volta-se à formação norma processual como uma verdadeira
de um instrumental técnico de resgate de reconstituição dos fatos, sofre, no entanto,
acontecimentos passados, como premissa limitações quanto ao que pode ser dito11, a
para a aplicação da norma adequada. quem pode dizer, a quando se pode dizer e
Interessante notar que o sentido no qual aos ritos pelos quais se pode dizer. Esses
as leis processuais utilizam a expressão limites estão explícitos ou implícitos na
verdade é apenas um dos sentidos possí- norma, sujeitos ainda às variações inter-
veis, pois
“é possível distinguir cinco concei- 11
O “dito” aqui é utilizado não no sentido pura-
tos fundamentais de verdade: 1o a mente verbal ou escrito do dizer algo, mas no sentido
verdade como correspondência; 2o a amplo da prática de todo e qualquer ato, dentro do
processo judicial, voltado à reconstrucão dos fatos
para a resolução da causa, ou seja, do que pode ser
ou atestado (art. 301, §1o), documento público ou levado em consideração no momento da decisão
particular (art. 305). conforme as normas aplicáveis.

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pretativas ampliativas ou restritivas pelos sobre as restrições impostas pela norma à
responsáveis por sua aplicação, e podem investigação e esclarecimento dos fatos,
chegar ao extremo de impedir completa- mas pretende simplesmente expor diver-
mente o conhecimento dos fatos. sos mecanismos que limitam esse acesso.
Sobre as limitações ao que pode ser O debate acerca da justiça, adequação ou
dito, vemos que há no Código de Processo utilidade de tais restrições constitui objeto
Civil (1973) uma aparente abertura, pois de estudo diferente do aqui proposto.
admite todos os meios legais e moralmente Há ainda as regras sobre quem pode
legítimos hábeis a provar a verdade dos dizer o que no processo, limitando o con-
fatos12. A aparente abertura, no entanto, junto de elementos que será considerado
muito mais restringe do que expande as para a reconstrução da verdade dos fatos no
possibilidades de esclarecimento dos acon- momento de ser proferida a decisão final do
tecimentos, pois ao tempo em que o termo processo, que constituirá a premissa menor
“todos” causa a impressão de amplitude, do raciocínio jurídico. Entre essas regras,
a expressão “meios legais e moralmente destacam-se as que tratam da admissão de
legítimos” impede que a prova ultrapasse testemunhas, que vedam expressamente
os rígidos limites da legalidade. Nesse sen- as incapazes, as impedidas e as suspeitas.
tido, não serão consideradas no processo, Assim, mesmo que determinado fato seja
por exemplo, as provas obtidas por meio de presenciado somente por um indivíduo
gravações telefônicas não autorizadas, do- com idade de 15 anos, ou vários abaixo
cumentos obtidos por meio de invasão de de 16 anos, não serão admitidos seus tes-
domicílio, elementos de prova adquiridos temunhos em juízo, dada a sua condição
por meio de violação de correspondência de incapaz.
ou de sigilo, entre diversas outras formas Como já dito, existem também limites
de provas ilícitas. Essas provas não serão claros quanto aos momentos nos quais se
aceitas mesmo que sejam as únicas aptas pode dizer algo no processo, o que re-
a conduzir ao esclarecimento dos fatos. presenta mais uma forma de dificultar o
Semelhantes limitações encontram-se no conhecimento da verdade. Sob esse aspecto,
Código de Processo Penal (1941), sendo o Código de Processo Civil (1973) deter-
que neste há uma limitação não apenas mina que os fatos devem ser afirmados
às provas ilícitas, mas também às provas no momento da petição inicial13, não se
derivadas das ilícitas. admitindo a alegação posterior, salvo em
A par das regras sobre o que se pode condições excepcionais. Da mesma forma,
dizer no processo, há as que admitem a a contestação do réu constitui o momento
omissão sobre fatos, mesmo que relevantes, único no qual pode ele apresentar suas
como por exemplo o art. 347 do CPC, que alegações, salvo as restritas possibilidades
dispensa a parte de depor sobre fatos crimi- do art. 303. Caso o réu não conteste a ação
nosos ou torpes, que lhe forem imputados, no prazo previsto, ou não apresente im-
e sobre aqueles a cujo respeito, por estado pugnação a todas as alegações da petição
ou profissão, deva guardar sigilo. No pro- inicial, presumem-se verdadeiros os fatos
cedimento de exibição de documento ou alegados pelo autor, configurando-se a
coisa, da mesma forma, a parte ou terceiro situação de revelia14. A consequência é a
pode se negar alegando algum dos motivos mesma se o réu não comparecer à audiência
listados no art. 363, incisos I a V, do CPC. de conciliação15.
Importante esclarecer que este trabalho
não se propõe a fazer um juízo valorativo 13
Art. 282 do Código de Processo Civil (1973).
14
Art. 319 do Código de Processo Civil (1973).
12
Art. 332 do Código de Processo Civil (1973). 15
Art. 277 do Código de Processo Civil (1973).

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Por fim, há as limitações impostas pe- verdade meramente parcial, ou mesmo a
los ritos a serem seguidos para a validade uma não verdade. Pelo contrário, demonstra
do procedimento. De início, somente tem uma forte confiança de que pode atingir a
acesso ao processo aquele que possui um verdade plena, e até mesmo uma ideia de
advogado, que o representará em juízo, salvo obrigação do processo, como forma de legi-
raras exceções16. Somente se admitem do- timação da própria ordem normativa. Uma
cumentos escritos no vernáculo, sendo que decisão verdadeira, nesse sentido, é aquela
os em língua estrangeira que não estejam que parte de um conhecimento total dos
traduzidos por um tradutor juramentado fatos (conhecidos por meio do processo) e da
não serão considerados. norma (conhecida pela interpretação), para,
De outro lado, diversas são as regras, por meio de um silogismo, aplicar o direito e
escritas e não escritas, de comportamento resolver o conflito. Porém, na prática jurídica,
do advogado e das partes em um processo a concepção de verdade e do papel dos fatos
judicial, desde a forma de se vestir até o no processo já sofre severas modificações.
vocabulário a ser usado. Nesse sentido,
é esclarecedora a observação de Baptista A busca da verdade como finalidade
(2008, p. 115) ao estudar o Tribunal de Justi- do processo: ponto de vista prático
ça do Rio de Janeiro, que reflete a realidade
prevalecente em toda a estrutura do Poder Voltando os olhos para a prática jurídica,
Judiciário Brasileiro: especialmente para o processo judicial e a
“Normalmente, em 1a instância, não forma pela qual ele se inicia, desenvolve-se
se exige vestimenta específica para e tem seu desfecho final, é possível identi-
partes ou testemunhas comparece- ficar que os preceitos normativos passam
rem às audiências. Os Juízes, nem pelo filtro da cultura jurídica existente, so-
sempre, mas muitas vezes, usam a frendo alterações significativas em sua pas-
toga. E, quanto aos advogados e esta- sagem do abstrato para o concreto. A forma
giários de Direito, há a obrigatorieda- como os operadores do direito concebem o
de de trajarem roupa social, quando fenômeno jurídico, e principalmente de seu
mulheres, ou terno e gravata, quando compromisso com a verdade, é bem dife-
homens. Há, inclusive, magistrados rente da forma concebida pela legislação.
que não recebem advogados ou Enquanto a norma processual enfatiza a
estagiários, mesmo fora de ocasiões finalidade do processo de esclarecer (des-
formais, se não estiverem vestidos de cobrir, reconstruir, reestabelecer) a verdade
tal maneira”. dos fatos, a prática do Direito mostra uma
A busca da verdade, no sentido de tendência de aceitar que essa possibilidade
correspondência com a realidade, de es- é remota, de improvável concretização, e
clarecimento e conhecimento dos fatos contenta-se com a concepção de processo
ocorridos, parece ser a finalidade primordial enquanto construção de uma verdade pró-
das regras que regem o processo judicial pria, por meio do diálogo entre as partes e
no Brasil. Entretanto, mesmo diante das do profundo respeito às limitações proces-
limitações impostas pela norma na busca suais ao esclarecimento da realidade.
pela verdade dos fatos, o Direito, sob seu O maior compromisso que se obser-
aspecto normativo, não admite expressa- va na prática jurídica não é com a busca
mente que o processo possa chegar a uma da verdade enquanto realidade, mas da
verdade como coerência17. Nesse sentido,
16
Destacando-se o acesso permitido sem advoga-
do nos Juizados Especiais, quando o valor da causa 17
Sobre a importância da análise da coerência
não ultrapassar 20 salários mínimos, conforme Lei interna do discurso jurídico, como instrumento de
no 9.099/95. crítica das práticas do Direito, ver Freitas Filho (2007).

Brasília a. 49 n. 195 jul./set. 2012 239


uma decisão será considerada verdadeira jurados, chamados individualmente, res-
na medida em que for o resultado de um pondem: “Assim o prometo.”
processo coerente, com a observância Aqui cabe uma observação importante
das regras vigentes e a participação dos acerca do julgamento pelo Tribunal do Júri:
interessados em um resultado adequado. enquanto nas causas julgadas pelo Juiz há
Essa noção de verdade parece satisfazer o o dever de motivação das decisões22, nas
operador do direito, deixando esvaziada a questões submetidas ao Tribunal do Júri
importância da busca da verdade dos fatos, esse dever não existe, ou seja, os jurados
colocada em destaque pela norma abstrata. apenas votam, secretamente, sim ou não
Essa afirmação pode ser observada em às questões que são postas pelo Juiz, e daí
um caso prático, que ilustra a forma que o se tem o resultado do julgamento, con-
Direito, quando da sua aplicação, flexibiliza denando ou absolvendo o acusado. Uma
a busca pela verdade como correspondência outra diferença de grande importância
com a realidade. O caso consiste em um é a referência da lei aos critérios a serem
processo criminal, em que o Ministério Pú- utilizados para o julgamento: enquanto o
blico do Estado do Mato Grosso do Sul acu- magistrado tem o dever de fundamentar
sou Rosalino Gonsales Valdez da prática sua decisão nas normas positivadas vigen-
do crime de homicídio qualificado18 contra tes, o Tribunal do Júri deve proferir decisão
Daniel Miranda da Silva, vulgo “Conan”. apenas de acordo com a sua consciência
O caso foi submetido a julgamento pelo e com os ditames da justiça, sem o mesmo
Tribunal do Júri, obedecendo à disposição compromisso com as normas.
constitucional do art. 5o, inciso XXXVIII, Ademais, a Constituição Federal (1988)
alínea “d”, por se tratar de crime doloso garante ao Júri a soberania dos veredictos,
contra a vida19. ou seja, suas decisões são soberanas e não
Nesses casos, o processo não é decidido podem ser modificadas, embora haja lei
pelo juiz, mas por um corpo de sete jurados ordinária prevendo uma hipótese de alte-
sorteados momentos antes do julgamento, ração. De acordo com essa previsão, uma
entre pessoas maiores de 18 anos e de no- decisão do Tribunal do Júri apenas pode ser
tória idoneidade20, componentes de uma analisada pelo Tribunal de Justiça quando
lista previamente elaborada. Antes de ini- “manifestamente contrária à prova dos
ciarem suas funções, esses jurados devem autos”. Mesmo nesse caso não há modifi-
submeter-se a um rito muito específico, no cação da decisão, mas a determinação de
qual o juiz, que conduz a cerimônia, fará realização de um novo Júri.
aos jurados a seguinte exortação: “Em nome Retornando ao caso tratado, o acusado
da lei, concito-vos a examinar esta causa foi submetido ao Tribunal do Júri, e foi
com imparcialidade e a proferir a vossa absolvido. O Ministério Público recorreu
decisão de acordo com a vossa consciência ao Tribunal de Justiça utilizando o argu-
e os ditames da justiça”21. Em seguida os mento da decisão manifestamente contrária
às provas dos autos, pedindo a realização
18
Definido no art. 121 do Código Penal como de um novo Júri. A defesa alegou que a
“matar alguém”, com as qualificadoras descritas no decisão foi correta e está protegida pela
parágrafo segundo, incisos I e IV (I – mediante paga
ou promessa de recompensa, ou por outro motivo
“soberania dos veredictos”. O Tribunal de
torpe; IV – à traição, de emboscada, ou mediante Justiça decidiu favoravelmente ao Minis-
dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne tério Público, entendendo que os jurados
impossivel a defesa do ofendido). foram manifestamente contra as provas
19
Processo HC 58295/MS – HABEAS CORPUS –
2006/0091312-8 – Superior Tribunal de Justiça
dos autos.
20
Art. 436 do Código de Processo Penal (1941).
21
Art. 472 do Código de Processo Penal (1941). 22
Art. 93, inciso IX, da Constituição Federal (1988).

240 Revista de Informação Legislativa


Para isso, o Tribunal fundamentou sua existência de “vertentes alternativas dos
decisão na análise das provas, resgatando fatos”, com a seguinte ementa:
depoimentos prestados pelo réu na polí- HABEAS CORPUS. DIREITO PRO-
cia, momento em que houve confissão do CESSUAL PENAL. HOMICÍDIO
crime, em detalhes, pelo acusado. Trouxe QUALIFICADO. JÚRI. SOBERANIA
ainda outros depoimentos que confirmam DE VEREDICTOS. VERTENTES AL-
o ocorrido, incluindo o depoimento de um TERNATIVAS DA VERDADE DOS
comparsa do acusado, que afirmou ter tam- FATOS. PROVA. INDEMONSTRA-
bém atirado na vítima. Outras testemunhas ÇÃO. ORDEM DENEGADA
confirmaram na polícia os mesmos fatos. 1. À instituição do júri, por força do
Na polícia o acusado disse que dispõe o artigo 5o, inciso XXXVIII,
“que o interrogando portava o revól- alínea “c”, da Constituição da Repú-
ver, seguiram por aquela rua rumo a blica, é assegurada a soberania de
Lagoa da Cruz, ou seja, afastaram-se seus veredictos.
do bairro, como já disse, não havia 2. O artigo 593, inciso III, alínea “d”,
ninguém além dos três no local, do Código de Processo Penal autoriza
oportunidade em que o interrogando, que, em sendo a decisão manifesta-
sem que a vítima tivesse tido tempo mente contrária à prova dos autos, ou
de reagir, sacou o revólver e efetuou seja, quando os jurados decidam ar-
cinco disparos na direção da vítima, bitrariamente, dissociando-se de toda
isso a uma distância aproximada de e qualquer evidência probatória, seja
apenas um metro e meio; que a víti- o réu submetido a novo julgamento
ma, ao receber o primeiro tiro, caiu, pelo Tribunal Popular.
ficou se mexendo no chão, no que 3. Oferecidas aos jurados vertentes
o interrogando efetuou os demais alternativas da verdade dos fatos,
disparos, em seguida recarregou a fundadas pelo conjunto da prova,
arma com mais cinco munições e mostra-se inadmissível que o Tribu-
passou a arma a João Dias para que nal de Justiça, quer em sede de apela-
este efetuasse mais disparos no corpo ção, quer em sede de revisão criminal,
da vítima, o que aconteceu”. desconstitua a opção do Tribunal do
A confissão foi posteriormente, em juí- Júri – porque manifestamente contrá-
zo, retirada, tendo o acusado afirmado ter ria à prova dos autos – sufragando,
confessado sob tortura, assim como o seu para tanto, tese contrária.
comparsa. Passaram, então, a acusar um ao 4. Não basta, todavia, a evitar seja
outro e a afirmar a si próprios como ino- o réu submetido a novo julgamento
centes. As testemunhas também mudaram pelo Tribunal Popular, a alegação
seus depoimentos em audiência judicial. Ao simples da existência de vertentes
Tribunal do Júri, portanto, foi sustentada alternativas da prova da verdade
pela defesa a tese da negativa de autoria, dos fatos, impondo-se que se a de-
acolhida, ao final, pelos jurados. monstre objetivamente nos autos,
Contra a decisão do Tribunal de Justiça particularizando as provas de que
do Estado do Mato Grosso do Sul a de- exsurge a versão outra que permitiu
fesa impetrou Habeas Corpus no Superior a convicção diversa dos jurados.
Tribunal de Justiça, alegando violação ao 5. Ordem denegada.
princípio da soberania dos veredictos. Ao Tanto o Superior Tribunal de Justiça
final, o STJ julgou o caso por unanimidade, quanto o Tribunal de Justiça Estadual,
favoravelmente ao acusado, reconhecendo nesse caso, admitem expressamente a ideia
a soberania dos veredictos e admitindo a da existência de verdades alternativas dos

Brasília a. 49 n. 195 jul./set. 2012 241


fatos, conferindo aos jurados a opção de chama de verdade dos fatos. Não que essa
escolher entre mais de uma possibilidade busca seja desprezada no processo, mas,
de verdade. Nota-se que a garantia da sim, no sentido de que o compromisso com
prevalência da soberania dos veredictos essa espécie de verdade parece ser muito
proporciona uma verdade suficiente para menos importante do que a observância das
o Direito, tornando periférica a discus- limitações impostas pelo próprio sistema.
são sobre o que efetivamente aconteceu
(a verdade como correspondência com a Conclusão
realidade), pela inserção da noção de “ver-
tentes alternativas de verdade dos fatos”. O fenômeno jurídico ocorre, como
Podemos identificar aqui a concepção de visto, no centro de uma relação entre fatos
verdade tanto como coerência (do processo) e normas, por meio de um processo de co-
quanto como conformidade com uma regra nhecimento da realidade para a aplicação
ou conceito. Assim, desde que observado da norma adequada. Porém, tanto a com-
o princípio da soberania dos veredictos, preensão do fato quanto a compreensão da
a decisão proferida situa-se no verdadeiro. norma apresentam limitações à sua busca
Em inúmeros outros casos23, é possível por objetividade.
perceber que a aplicação do direito na prá- A interpretação da norma depende,
tica está mais voltado para a construção de invariavelmente, dos preconceitos do in-
um processo judicial obediente às regras térprete, da consciência jurídica geral dos
do que comprometido com a busca do que membros da comunidade jurídica (LA-
RENZ, 1997). Na interpretação, a norma
é aplicada à situação atual do intérprete
23
Podemos citar como exemplos a Súmula 301 do
Superior Tribunal de Justiça, que cria uma presunção (GADAMER, 1997), no interior de uma
inexistente na norma, afirmando que, em um processo determinada tradição jurídica que forne-
de reconhecimento de paternidade, a negativa do supos- cerá os elementos indispensáveis à sua
to pai a submeter-se ao exame de DNA leva à presunção
compreensão. A compreensão da norma
de que ele é pai. Nesse caso não há prova de que o réu
é mesmo pai, mas se extrai da sua negativa ao exame revela um processo de emancipação do seu
uma consequência que substitui a prova necessária, texto em relação ao seu autor, e de criação
sacrificando-se a verdade dos fatos pela defesa de uma de um mundo do texto (RICOEUR, 1991),
verdade mais formal. Outro exemplo interessante é a
que admite uma multiplicidade de sentidos
forma pela qual o Direito separa as instâncias penal,
civil e administrativa, inserindo-se na cultura juridical possíveis e amplia as relações entre signifi-
a ideia de que essas instâncias são independentes, e que cante e significado.
uma decisão em uma delas não influencia nas demais, De outro lado, a compreensão dos fatos
salvo raras exceções. Admite-se, nesse caso, que o
está sujeita às limitações inerentes ao estu-
próprio Poder Judiciário, em dois processos judiciais,
possa chegar a conclusões completamente diferentes do da história, da necessidade de provas
sobre a verdade dos fatos, não havendo uma preocu- e da sua sempre parcialidade. Um relato
pação em uniformizar essas constatações. Por fim, um é sempre um recorte dos acontecimentos,
terceiro exemplo que merece ser citado é o referente à
e esse recorte deve fornecer elementos su-
coisa julgada. Como afirma o Código de Processo Civil,
art. 467, coisa julgada é a eficácia que torna imutável e ficientes para a aplicação da norma. Além
indiscutível a sentença, ou seja, é o que marca o fim do das limitações naturais, outras há de gran-
processo, quando não mais existem recursos cabíveis. de destaque: as limitações impostas pelas
Sobre a coisa julgada, o art. 469 do CPC excepciona dos
próprias normas de direito, implícitas ou
efeitos da coisa julgada “a verdade dos fatos, estabele-
cida como fundamento da sentença”. Esse dispositivo explícitas, controlando o que se pode dizer
permite, portanto, que os mesmos fatos que foram em um processo, quando se pode dizer,
apurados e esclarecidos em um processo judicial, que quem pode dizer e como pode dizer. Essas
chegou ao seu fim, possam ser novamente discutidos em
limitações são por vezes mais significativas
um novo processo, que por sua vez não estará vinculado
às constatações fáticas do primeiro. que as primeiras.

242 Revista de Informação Legislativa


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diferente em sua versão abstrata e em sua 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Brasília, 31
forma concreta. A norma abstrata utiliza o dez. 1940. Seção 1, p. 23911. Disponível em: <http://
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action?id=102343>. Acesso em: 20 mar. 2011.
com a realidade, e direciona o processo
judicial para o esclarecimento dessa reali- _____. Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941.
dade, como premissa para a aplicação da Código de Processo Penal. Diário Oficial da União,
Brasília, 13 out. 1941. Seção 1, p. 19699. Disponível em:
norma. Para a lei, descobrir o que aconteceu <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPubli-
é importante e tem o papel de legitimar o cacoes.action?id=230723>. Acesso em: 20 mar. 2011.
próprio Direito. _____. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Insti-
Por outro lado, a prática jurídica de- tui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília,
monstra um apreço menor pela descoberta 11 jan. 2002. Seção 1, p. 1. Disponível em: <http://
dos fatos e, diferentemente da norma, www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.
action?id=221601&norma=234240>. Acesso em: 20
utiliza os conceitos de verdade no senti-
mar. 2011.
do de coerência ou como conformidade
a uma regra. Para o operador do Direito, _____. Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui
o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União,
não é fundamental a verdade como cor- Brasília, 17 jan. 1973. Seção 1, p. 1. Disponível em:
respondência com a realidade, esta pode <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTex-
ser mesmo inacessível, ou seja, os fatos toIntegral.action?id=75584&norma=10237>. Acesso
podem não ser esclarecidos. Fundamental em: 20 mar. 2011.
é que o processo construa sua própria ver- _____. Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe
dade com a obediência rigorosa às regras sobre os Juizados Especiais Civis e Criminais e dá
e princípios do Direito, construindo uma outras providências. Diário Oficial da União, Brasília,
27 set. 1995. Seção 1, p. 15033. Disponível em: <http://
narrativa coerente e que, ao final, possibilite www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.
ser compreendida pelo sistema jurídico e action?id=75709&norma=10246>. Acesso em: 20 mar.
permita a aplicação da norma. 2011.
Nessa diferença marcante entre a busca _____. Superior Tribunal de Justiça. Habeas-Corpus no
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