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O princípio da presunção de inocência do réu em julgamento

Resumo: Saber a dimensão do espectro do princípio da presunção


de inocência é um desafio ainda presente na jurisprudência
brasileira, porém, recentemente pacificado pelo STF.

Palavras-Chave: Princípio. Presunção da Inocência do Réu.


Constituição Federal Brasileira de 1988. Direito Processual Penal.
Direito Penal.

O princípio em referência está previsto no artigo 5º, LVII da


Constituição Federal brasileira de 1988 lembremos que não possui
caráter absoluto pois o próprio texto constitucional admite a prisão
provisória1 antes da condenação desde que preenchido todos os
requisitos legais2.

Cumpre ab initio proceder o reconhecimento doutrinário da teoria


dos princípios que encontrou em Robert Alexy 3 um de seus
principais estudiosos. Lembrando que toda espécie de norma que

1
É sabido que são provisórias a prisão em flagrante, a prisão preventiva, a prisão administrativa, a prisão
por pronúncia, a prisão resultante de sentença condenatória recorrível e a prisão temporária, sendo
esta derradeira disciplinada pela Lei 7.960/1989. Sublinhe-se que a Constituição Federal brasileira ainda
admite também outras prisões, como a disciplinar, no caso de transgressão militar ou crime
propriamente militar (art. 5º, LXI da CF/1988), a prisão durante o estado de defesa (art. 136, § 3º, I da
CF/1988) e do estado de sítio (art. 139, II da CF/1988).
2
Requer a lei brasileira a prova da existência do crime e indícios suficientes que o acusado seja o autor
do delito imputado. Quando o crime deixa vestígios é curial para a prisão preventiva, o exame de delito
ou, na impossibilidade, de prova testemunhal que os supras (artigos 158 e 167 do CPP).
3
O objetivo de Alexy com sua teoria não é alcançar exatamente uma homogeneização de cada ordem
jurídica fundamental. Em verdade, visa é descobrir as estruturas dogmáticas e revelar os princípios e
valores que se escondem atrás das codificações e da jurisprudência. Posto que em qualquer lugar que
existam direitos fundamentais, surgem problemas semelhantes, como por exemplo, as diferenças
estruturais entre os direitos sociais e os políticos. Enfim, a tese de Alexy pretende dar resposta ao
questionamento de quem seria o titular dos direitos fundamentais, e se poderiam ser restringidos e qual
deve ser a intensidade de controle da corte constitucional sobre o legislador. No afã de obter
cientificidade, defende que os direitos fundamentais possuem caráter de princípios, e, que
eventualmente esses colidem, sendo necessária uma solução ponderada em favor de um destes.
2

disciplinar um direito individual ou coletivo ou garanta a um direito a


ser cumprido deverá ser observada na maior medida que possível.

Eis que a presunção de inocência do réu assume a estrutura


normativa de princípio e, para tanto, basta que seu conteúdo
primacial sirva de argumentação a um direito fundamental.

Diferentemente da regra que assume caráter descritivo sobre certas


condutas e que enuncia o modus como uma ação deve ser
produzida, descrevendo uma determinação positiva ou negativa.
O que nos faz perceber que a regra possui um âmbito de incidência
mais restrito do que a do princípio que pode transcender à outras
regras e, até mesmo a outros princípios.

As colisões de direitos fundamentais devem ser consideradas como


uma colisão de princípios, sendo que o processo para solucionar
tais colisões é a ponderação. Porém, totalmente diversa é a
dimensão dos problemas no plano de regras, onde o que se realiza
é a subsunção, visto que contêm determinações no contexto fático
e juridicamente possível, sendo aplicáveis ou não.

Aliás, o mesmo doutrinador, em sua obra intitulada "Teoria dos


Direitos Fundamentais" apresenta a Lei de Colisão 4 para resolver a
colisão de princípios utilizando um julgado do tribunal constitucional,
que diz respeito à não realização da audiência oral tendo em vista a
saúde abalada do acusado que sofre sério risco de infarto do
miocárdio.

E, nesse caso, há clara colisão entre o princípio da aplicação do


Direito Penal que obriga a realização da audiência oral, com o

4
A fórmula básica do sopesamento, como é chamado o método de solução das colisões entre princípios,
é: (P1 P P2) C →R A regra de solução (R) expressa que, nas condições representadas pela letra C, que
dizem respeito ao peso dos princípios em jogo no caso concreto, o princípio P1 prevalece (P) sobre o
princípio P2. Isso não significa dizer que esta solução poderá ser adotada numa situação futura
semelhante, pois as condições fáticas e jurídicas podem ter se alterado.
3

princípio de proteção do direito à vida e integridade do acusado


(que veda a realização de audiência oral).

A partir de então é que Robert Alexy passou a adentrar em sua


tese, apoiando-se basicamente, no postulado da proporcionalidade.
E que apresenta a notória vantagem desse caminho escolhido que
é o poder de impedir o esvaziamento dos direitos fundamentais sem
introduzir uma rigidez excessiva.

Recordemos que a máxima da proporcionalidade é constatada


pelos critérios da adequação do meio usado para a persecução do
fim, a necessidade desse meio usado e aplicação stricto sensu da
proporcionalidade, ou seja, da ponderação.

Quanto ao conteúdo normativo e axiológico identifica um valor a ser


preservado e prevalente e um fim a ser galgado, assim o princípio
traz em seu âmago uma nítida decisão político-ideológica.

A presunção de inocência deve adequar-se às condições fático-


jurídicas que surgem naturalmente das inescapáveis contradições
normativas, quando surge a colisão de uma regra com outra ou de
um princípio com outro, ou ainda, da colisão de uma regra com um
princípio.

Percebe-se que coexistem limitações sistêmicas5 da presunção de


inocência como é o caso da prisão preventiva ou provisória
determinada judicialmente, de sorte que que o referido princípio
poderá ser contingenciado aos fatos e aos fundamentos jurídicos do
caso concreto.

5
Conforme a lei de ponderação, há de se realizar em três âmbitos, a saber: 1. Definir a intensidade da
intervenção, isto é, o grau de insatisfação ou afetação de um dos princípios; 2. Definir a relevância dos
direitos fundamentais justificadora da intervenção, isto é, a importância da satisfação do princípio
oposto; 3. Realizar a ponderação em sentido específico, ou seja, se a importância da satisfação de um
direito fundamental justifica a não satisfação do outro.
4

A presunção de inocência é, pois, um direito garantido a seu titular


nos moldes prima facie ou conforme o mandado de otimização, o
que significa afirmar que os agentes não tenham o dever de
respeitar e promover aquele direito, mas apenas que isso deve
acontecer na maior medida que possível. Possibilidade que se
extrai diretamente dos casos concretos.

Afinal, os princípios, de acordo com Alexy são mandados de


otimização, na medida em que determinam que algo seja realizado
na maior medida que possível, dentro das possibilidades jurídicas
reais e existentes.

Aliás, é este, exatamente o ponto decisivo de distinção entre as


regas e princípios, os quais podem ser cumpridos em maior ou
menor grau, conforme as possibilidades reais e jurídicas, sendo
estas determinadas pelos princípios e regras opostos.

O princípio da presunção de inocência como norma-princípio, o que


lhe confere a capacidade de irradiar seu conteúdo ao longo de todo
ordenamento jurídico, necessário se faz, pois, identificar quais os
elementos formadores de sua essência.

Vejamos: presunção é vocábulo advindo do latim praesumptio cujo


verbo é praesumere que significa antecipar, tomar antes, ou por
primeiro, prever, imaginar previamente.

Assim, o termo indica ser a presunção uma forma de se assumir


antecipadamente, algo que ainda não aconteceu ou que se espera
que aconteça.

Inocência cujo étimo é igualmente latino, inotentia, e, seu


significado original era relacionado às práticas religiosas. Afinal, a
inocência em seu campo canônico, era uma qualidade atribuída
àquele ou aquela pessoa que nunca pecou.
5

Historicamente desde o século XII até o final do século XVIII,


aplicou-se na Europa o chamado processo penal inquisitorial, de
sólida base romano-canônica, onde a supremacia do poder estatal
se sobrepunha ao direito de liberdade individual da pessoa,
concentrando o Estado, naquele tempo, em uma só pessoa (juiz), o
poder de instrução, acusação e julgamento.

Revelava-se, então, um Estado-juiz perverso e autoritário, não se


possuindo a mínima garantia em face aos seus excessos. Existia
tão-somente uma via de mão-única onde cabia ao Estado a total
liberdade de fazer o que bem entendesse, enquanto que caberia ao
imputado, somente o curva-se pacificamente diante da realidade
colocada à sua frente, sendo aceitável também, até mesmo a prisão
para a tortura, que era um meio usado para obtenção da confissão
e, ainda, para revelar nomes de cúmplices, ou mesmo, ainda, uma
eventual contradição.

Com o advento do século das Luzes, veio a laicização a pregar o


racionalismo, vindo o termo divorciar-se de sua original concepção
religiosa, passando a ser inserido no sentido filosófico de um estado
ideal a ser conferido pelo cidadão.

Não se pode considerar racionalmente culpado acerca de um fato


sem que se tenha antes a certeza, de seu cometimento, o que torna
imperioso a demonstração de culpa.

A inocência mormente despida de seu caráter religioso passou


então a assumir o enfoque racional, com fulcro principalmente nas
ideias iluministas.

Historicamente, o princípio fora previsto pela prima vez em França


de 1789, na Declaração dos Direitos Humanos e do Cidadão, em
seu artigo 9º, in litteris: “Todo acusado é considerado inocente até
ser declarado culpado e, caso seja considerado indispensável
6

prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa


deverá ser severamente reprimido pela lei”. Tal dispositivo
representa a primeira positivação da presunção de inocência.

E, em nossa Constituição cidadã e vigente, o referido princípio foi


previsto pela prima vez no seu artigo 5º, inciso LVII. Apesar das
mais diversas críticas e interpretações controvertidas, há sim
compatibilidade entre o princípio da presunção de inocência e a
prisão processual, desde que se demonstre o fumus boni iuris e o
periculum in mora (ou periculum libertatis), ou seja, os quatro
pressupostos do ar. 312 do CPP – garantia da ordem econômica,
garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal e
garantia da aplicação da lei penal.

Seguindo a trilha dos ideais iluministas e, com base nas premissas


da Escola Clássica italiana6, o doutrinador Francesco Carrara7 erigiu
a presunção de inocência em postulado fundamental do processo
penal e, ainda a considerou como pressuposto para as demais
garantias do processo.

Porém, em sentido diametralmente oposto, afirmava Manzini 8 que a


finalidade específica do processo penal era mesmo conseguir a
realização da pretensão punitiva derivada de um delito, através da
utilização da garantia jurisdicional, isto é, a de obter, mediante a
intervenção do juiz, a declaração de certeza positiva ou negativa, do
6
A Escola Clássica italiana surgiu no final do século XVIII e, baseando-se nos postulados iluministas,
defendida um Estado Democrático Liberal, de total proteção aos direitos individuais em oposição ao
absolutismo, à tortura e ao processo penal inquisitorial.
7
Francesco Carrara (1805-1888) foi jurista italiano e político liberal que fora um dos principais
doutrinadores da lei criminal e advogados na abolição da pena de morte do século XIX. Carrara
inicialmente seguiu Mazzini, mas se aproximou-se de grupos liberais mais moderados na década de
1840. Ele ajudou a organizar a ascensão de Lucca à Toscana, considerando-o o primeiro pequeno passo
em direção à unidade nacional. Após a unificação italiana, Carrara foi eleito para o parlamento em 1863,
1865 e 1867 e, fora um membro influente da comissão que prepara o Código Penal da Itália, o chamado
Código Zanardelli, concluído em 1889.
8
Vincenzo Manzini foi expoente da Escola Técnico-Jurídica que estigmatizou a presunção de inocência
chegando a considerar como absurdo extraído do empirismo francês. E, entendia que a presunção seria
incompatível com qualquer tipo de procedimento criminal, sobretudo àqueles que afetam diretamente
o direito de liberdade do cidadão sem que exista em seu desfavor uma sentença definitiva, tais como a
prisão cautelar e a prisão em flagrante, porque se para a instauração de um processo e ou aplicação de
qualquer medida segregadora faz-se preciso indícios suficientes de autoria e prova da existência do
crime.
7

fundamento da pretensão punitiva que faz valer pelo Estado, o


Ministério Público.

Sendo a presunção de inocência uma norma a ser considerada no


julgamento enquanto que como regra probatória, e não se esgota
aí, passando a ser princípio de autônomo valor político de caráter
geral, que tem como corolário não só a plenitude da prova,
passando pela imparcial valoração de indícios, e terminando com a
moderação na aplicação da prisão preventiva, que sob
circunstância alguma poderá assumir natureza punitiva e que deve
obedecer ao critério da stretta necessitá, caracterizado pelo fato de
impor rigorosos limites à aplicação daquela e apenas de acordo
com as necessidades do processo de , de forma que a obtenção da
verdade e a aplicação de uma eventual para se revelem possíveis.

Aliás, a principal fonte inspiradora da nossa Constituição vigente, a


Constituição da República Portuguesa de 1976 que é apontada pelo
ministro Gilmar Mendes do STF, uma notada e manifesta influência
quanto aos direitos fundamentais e, também há, semelhanças
quanto à matéria do controle de constitucionalidade.

No diploma legal lusitano em seu artigo 32, n.2 in verbis: "Todo o


arguido se presume inocente até o trânsito da sentença de
condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível,
com as garantias de defesa".

O preceito primário do referido princípio é um mandamento de


ordem geral, de modo que todo indivíduo é considerado inocente
por natureza.

Já o preceito secundário vem por meio de preposição (até ou


senão) indicando a possível excepcionalidade capaz de subverter a
ideia original que presume todo e qualquer sujeito é naturalmente
inocente.
8

A formação do constitucionalismo brasileiro, na sua origem, acolheu


o pensamento constitucionalista predominante na Europa do início
do século XIX. Já a criação republicana do Supremo Tribunal
Federal também se baseou na Corte Suprema Americana, tanto em
relação às competências, como em relação à composição, forma de
investidura, garantias e impedimentos.

Também sob a nítida influência do sistema constitucional norte-


americano, foi a Constituição republicana de 1891 inaugurou o
sistema de controle de constitucionalidade difuso ou incidental,
típico do sistema do Common Law, da jurisdição universal (judicial
review) que também havia influenciado outros países latino-
americanos como o México de 1847 e a Argentina de 1860.

Somente após a superveniência de fatos e fundamentos jurídicos


que então passa o indivíduo ser reconhecido como culpado.

Basicamente o referido princípio é composto de três elementos, a


saber: 1. Todo acusado é presumido inocente, porque assim o
nasce; 2. O ônus da prova cabe à acusação e, não à defesa. Dessa
forma, descabe, o acusado provar um estado natural de inocência
que já lhe é presumido. Porém, incumbe à defesa apenas
posicionar-se contra as provas produzidas e apresentadas pela
acusação nos autos; 3. O estado de inocência somente pode ser
alterado por meio de declaração do Estado. In casu brasilis, por
sentença conforme bem preceitua o texto constitucional de 1988 9.

9
O princípio da presunção da inocência fora insculpido no texto constitucional brasileiro de 1988, tido
como direito fundamental assegurado a todos os indivíduos acusados de uma infração penal. Desde de
1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos celebrada pela Assembleia Geral da ONU que
acolheu o princípio da presunção de inocência, todavia, sua aplicação passou em albis no brasil. Apenas
em 1992 que o Brasil veio a aderir ao Pacto de São José da Costa Rica que fora celebrado em 1969,
mediante a promulgação do Decreto 678, de 6.11.1992, cujo o artigo 8º que afirma literalmente: "Toda
pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente
comprovada sua culpa". Ressalte-se, no entanto, que a Convenção Americana sobre Direitos Civis e
Políticos celebrada pela Assembleia Geral da ONU em 16.12.1966 e ratificado pelo Brasil em 24.1.1992
também admitia o referido princípio, apesar de que alguns doutrinadores já sustentassem o seu
reconhecimento em período anterior. De qualquer forma, o princípio naquela época carecia de maior
efetividade.
9

O vetor iluminista indicava pela presunção de inocência que a


maioria dos homens é honesta e não criminosa e que a
reconstituição probatória apenas se dirige ao provável, jamais à
perfeição.

De modo que uma vez remanescendo dúvida sobre o cometimento


ou não de crime, o razoável é manter o estado de inocência e, não
reconhecer sua culpa que corresponde à exceção e não à regra.

No sentido é curial revelar que o princípio in dubio pro reo decorre


do princípio da presunção de inocência, vez que por meio da carga
probatória é possível atingir à convicção de quem realmente é o
culpado pelo delito alegado pela acusação.

Ocorre que nem sempre a prova que fora produzida no processo é


plena, a qual deixa dúvidas, omissões e rastros lacunares, não
constituindo assim, em provas suficientes de autoria e materialidade
delitiva.

Em caso de dúvida, o juiz não pronunciará o réu, mediante a


presunção de sua inocência. E, in casu, o juiz atuará em favor do
réu, pois não havendo certeza quanto à sua culpabilidade, não será
este punido.

Conclui-se que diante da dúvida, não se tem o suficiente para a


condenação, apesar do insaciável desejo pela impunidade. Por
outro lado, o princípio in dubio pro societate, que aduz que na
dúvida, decide-se em favor da sociedade, é defendido pela maioria
de doutrinadores e da jurisprudência, no entanto, não está expresso
no texto constitucional brasileiro vigente.

De sorte que não se admite que o magistrado decida a vida de um


acusado em favor de outrem, sem considerar os seus respectivos
direitos. Conclui-se ser inviável a aplicação do referido princípio
10

quando violar os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa


humana.

Neste princípio se extingue o contraditório e ampla defesa,


permitindo que o réu vá a júri popular, submetendo-o
consequentemente ao constrangimento em público, situação esta,
que pode se agravar ao permitir que a sociedade o encare como
delinquente, sendo que o mesmo ainda não usufruiu de todos os
recursos hábeis para provar sua inocência, isto é, a sociedade
poderá estar condenando um inocente contrariando o que
exatamente preconiza o Direito que é a justiça, a qual muitas vezes,
se torna uma utopia apregoada romanticamente pelos tribunais.

Nascendo a parêmia latina quilibet preasumitur bônus donec


contrarium probetur (qualquer um se presume bom, até que se
prove o contrário, e o ônus da prova cabe à acusação).

A prisão cautelar automática ou obrigatória relaciona-se diretamente


à concepção de risco potencial, colocando em destaque a
existência de verdadeira presunção de culpa quando se trata de
determinados delitos considerados graves pelo Estado, ao ponto de
cominá-los com o recolhimento obrigatório à prisão.

Conforme já afirmou o doutrinador Luigi Ferrajoli à perversão ais


grave do instituto da prisão preventiva foi a sua mutação de
instrumento exclusivamente processual, destinado à estreita
necessidade instrutória para ser instrumento de prevenção e defesa
social motivado pelas necessidades de impedir que o imputado
cometa outros crimes.

É nesse sentido que se constata que um dos sintomas mais


característicos dos sistemas processuais que rejeitam a presunção
de inocência do réu é a admissão da prisão preventiva em
inobservância à estrita necessidade instrutória, conforme afirmou
Ferrajoli.
11

É sabido que o STF está no topo de todas as demais instâncias do


Judiciário e tem como principal atribuição a guarda da Constituição
Federal, conforme prevê o artigo 102, caput da CF/1988. Dessa
forma, cabe a Corte Suprema impedir que quaisquer interpretações
ou leis violem a Carta Magna, bem coo seus princípios e garantias
nesta inseridas.

Porém, ocorre que, a decisão do STF em julgamento do HC


126.29210 que ocorreu em 17.2.2016 deu ensejo à nova
jurisprudência com interpretação diversa ao princípio da presunção
de inocência.

Deu-se, portanto, a mitigação da presunção de inocência, vez que


admitiu a execução da pena de prisão em segunda instância, antes
de transitar em julgado a sentença, além de não ser cabível a
análise do mérito no sentido de impor interpretação diversa da CF
infringindo os princípios e direitos nesta previstos, que em razão
disto, viola igualmente os princípios da ampla defesa e do
contraditório que nos remete a uma atividade judiciária a um
sistema inquisitório e a um Estado arbitrário.

Lembremos que não representa fundamento para a execução da


pena, o clamor público ou mesmo a gravidade do delito, senão
apenas os fundamentos e requisitos expressos em lei com a devida
fundamentação jurídica para a aplicação de prisões e medidas
10
Até então, e desde 2009 (HC 84.078), o Princípio da Presunção de Inocência tinha como condão de
impedir a execução da pena, mesmo se houvesse sentença de segunda instância recorrível. Era o
entendimento construído naquele writ, desde a promulgação da Carta de 1988.
O centro da discussão jurisprudencial ora estudada se encontra no alcance do Princípio da Presunção de
Inocência ou de não culpabilidade. Para alguns doutrinadores o termo certo seria “não culpabilidade”
porque a Constituição brasileira não explicitou o termo “presunção de inocência” já que consta na Carta
que “ninguém será considerado culpado...”. Nomenclaturas à parte, a questão continua sendo se o
indivíduo pode ser começar a cumprir a pena após a segunda instância, ou seja, o marco temporal de
quando o réu será preso, se após considerado analisada todas as provas e fatos ou após as pendências
de todo e qualquer recurso válido ainda no processo. Nesse diapasão, compara-se o que diz também
Pedro Lenza, sobre o réu que responde o processo em liberdade. Denegaram a ordem de habeas
corpus, sete ministros: Teori Zavascki, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Cármen Lúcia e
Gilmar Mendes. A favor da ordem mandamental, e vencidos, portanto, os ministros Rosa Weber, Marco
Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski. Mas a decisão deste habeas corpus ora estudado, no
que pese as várias argumentações dos excelsos ministros, possui uma forte dimensão hermenêutica.
12

cautelares, e que só devem ser executadas como medida


excepcional uma vez que possibilita consequências irremediáveis,
pois o aumento de encarceramento sem eficácia o que parece ser o
fim da impunidade, também não contribui para a promoção da paz
social.

Em resumo, pode-se afirmar que o sistema processual penal que se


baseia na presunção de inocência do réu, o recolhimento preventivo
do acusado é reconhecido como instrumento excepcional usado
apenas quando outras medidas se mostrarem insuficientes às
necessidades acautelatórias do Estado.

Nessa derradeira, quarta-feira, no dia 04 de abril de 2018, o STF


confirmou seu entendimento que a pena de prisão poderá ser
executada, mesmo antes do trânsito em julgado.

Por um placar estreito de seis votos contra cinco, que denegou o


Habeas Corpus impetrado em prol do ex-presidente Lula.
Reforçando-se que a pena seja concretamente executada, quando
se esgotar a segunda instância de jurisprudência.

Foram mais de dez horas de julgamento, numa verdadeira


maratona judicante, onde se confirmou a dita execução que não
viola o preceito constitucional insculpido no artigo 5º, inciso LVIII.

Consagrou-se a vitória do voto do Ministro Relator Luiz Edson


Fachin que denegou o HC sem que se configure uma teratologia ou
mesmo abuso de autoridade.

O voto que atraiu maiores atenções foi o do Ministro Barroso e,


ainda, o da Ministra Rosa Weber (que confirmou seu respeito ao
princípio do colegiado, aderindo ao voto do Ministro Relator).
13

Ademais, as premissas teoréticas que se fincaram na racionalidade


de suas próprias decisões e na obediência em seguir os próprios
precedentes da Suprema Corte.

Salientou também que a revisão de posicionamentos


jurisprudenciais da mais alta Corte judicial brasileira não pode ser
um processo subjetivo, afinal, deve-se efetivamente “desfulanizar 11”
a decisão para se conseguir a real semântica do princípio da
presunção da inocência do réu.

Registre-se que houve uma reclamação explícita da parte do


Ministro Marco Aurélio que se dirigiu a presente do STF, como
“mulher toda poderosa” e, ainda, consignou que venceu a
estratégia.

Em face da resistência da Presidente do STF de se pautar


primeiramente as Ações Declaratórias de Constitucionalidade
(ADCs) que discutem sobre a prisão se pode ser executada antes
do trânsito em julgado de maneira abstrata, sem observar casos
concretos.

Afinal, para o vice decano o escorreito procedimento seria a


Suprema Corte primeiramente definir a tese em abstrato nas ações
de controle concentrado para depois aplicar o entendimento nos
demais casos concretos12.
11
A expressão habeas corpus advém do latim e compõe-se dos vocábulos habeas que significa tomar e
corpus corpo, os quais, em sua literalidade, significam tomem o corpo. A doutrina majoritária vem
aceitar a tese de que tem caráter jurídico de ação independente ou sui generis, vez que não pode ser
considerado recurso, em face de sua instauração não necessita de estar vinculado a um processo pré-
existente, requisito fundamental e inerente a qualquer recurso. Nas palavras do Supremo Tribunal
Federal, o habeas corpus possui preferência sobre qualquer outro instrumento, uma vez que “é a via
processual que tutela especificamente a liberdade de locomoção, bem jurídico mais fortemente
protegido por uma data ação constitucional”.
12
O Estado preza não só pela celeridade, mas que o processo tramite de acordo com todos os requisitos
processuais devidos, até se chegar na justiça adequada. Questão importante é a discussão de quando
termina a presunção de inocência ou de não culpabilidade, referencial para se presumir o réu culpado e
assim cumprir a pena imposta pela jurisdição. Essa discussão passa, nas exposições dos ministros, pela
doutrina de maneira a avalizar seus pontos de vista, como por exemplos as estatísticas do sistema
prisional, comparações com o sistema judiciário alienígena, e principalmente o fim do revolvimento da
matéria fática no processo. Muito debatido nos votos também é a questão do término de apreciação de
fatos e provas em segunda instância, onde alguns ministros supõe a necessidade de iniciar o
14

Igualmente o Ministro Fux acompanhou o Ministro Relator, Fachin 13


que advertiu que o texto constitucional não pode ser lido
literalmente pois que se a presunção de inocência for levada ao
extremo, acarretará o descrédito do judiciário e plenifica a
impunidade.

Sofremos da síndrome da justiça tardia e, no mesmo sentido,


manifestou-se o constitucionalista o Ministro Alexandre de Moraes.

Cumpre sublinhar que nas primitivas vezes em que o STF decidira a


mesma matéria, o Ministro Gilmar Mendes concordava
integralmente com a tese de Fachin. Porém, nessa fatídica sessão
de julgamento, mudou abruptamente seu entendimento para então
afirmar que a pena de prisão deveria ser facultativa e somente
executada após a decisão do STF.

Lembremos ciosos que as questões de fato somente são arguíveis


processualmente nas duas primeiras instâncias de jurisdição e que,
então as demais instâncias só atuariam no sentido de exercer o
controle de constitucionalidade.

O derradeiro ministro a votar foi o decano e prestigiado ministro


Celso de Mello e afirmou que o resultado que se esquadrinhava
como sendo um “grande equívoco” e, que corresponderia a ser de
fato inconstitucional e ilegal.

Posicionando-se contrário a relativização do princípio da prevenção


da inocência do réu mesmo em prol do combate à corrupção e à
cumprimento da pena. O contraponto para outros ministros é que apesar do termino de análise de fatos
e provas, a Constituição garantiria somente a possibilidade de prisão após todos os recursos recorríveis,
ou seja, uma leitura literal e garantista da Constituição.
13
Em sua argumentação, expõe o ministro Fachin (STF, HC 126.292, p. 24-25) que admitir
absolutariedade do inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal, seria também admitir que a
execução imediata da pena privativa de liberdade só poderia se operar quando o réu se conformasse e
porventura deixasse de opor novos embargos declaratórios, como se condicionada a uma aquiescência
do réu, isso devido, segundo o ministro, ante à possibilidade de inúmeros recursos e os incipientes
mecanismos para repelir esses procedimentos protelatórios.
15

impunidade. A preleção erudita do Ministro Celso Mello foi em


defesa da jurisprudência da liberdade.

Enfim, foi a Ministra Cármen Lúcia a última a votar, para proceder o


desempate, denegando-se o HC em questão. Reconheceu, então,
que se tratava de uma matéria muito sensível onde se discute o
espectro do princípio da presunção da inocência do réu bem como
o significado do início da prisão diante da confirmação da sentença
em segunda instância.

Proferiu seu visto que se inclina pelo mesmo entendimento que já


era declarado desde 2009. E, somente em 2016 houve mutação
jurisprudencial que coincidentemente ocorrera no ápice da
Operação Lava Jato.

O entendimento que configurou o veredicto final confirmou que


todos devem ser iguais perante a lei. Também por maioria do
plenária se indeferiu o pedido de defesa de Lula, colocado como
questão de ordem para impedir a prisão de Lula até que o SF
julgasse o mérito das ADCs.

Ressalto ainda a fala poética do Ministro Barroso que in litteris: “A


justiça, eu penso, está para alma como a alimentação está para o
corpo. A gente tem que ser capaz de saciar essa demanda. Não é
com espírito punitivo. Sou contra os vingadores mascarados, sou
contra punitivismos em geral. (...)”. E garantismo não significa que
ninguém nunca seja punido por coisa nenhuma, não importa o que
tenha feito.

Desta forma, evita-se que a punição penal possa ser retardada por
anos e décadas, e que o início de cumprimento da pena evita a
morosidade processual e consequentemente a prescrição dos
delitos. E, nesse caso, se tutela a segurança jurídica. Não se pode
dar guarida a um processo penal ad infinitum para se enfim
conseguir a execução da pena.
16

Referências:

GONÇALVES DIAS, Marco André Bonotto. Habeas Corpus


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